We - Robert A. Johnson PDF
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WE - A CHAVE DA PSICOLOGIA DO AMOR ROMÂNTICO
ROBERT A. JOHNSON
EDITORA M ERCURY O. SÃO PAU LO, 1987
Uma Obser vação Q uanto às Fonte s do Mito
Robert A. Johnson
Uma Observação Para as Mulheres
O am or rom ântico é o m aior sistem a ener gético dentro da psi que ocidental. Na
nossa cultura, é - m ais ainda que a própria religião - a arena e m que home ns e
mulheres tentam conseguir transcendência, plenitude, êxtase e sentido para a
vida.
Como fe nôme no de m assa, o am or rom ântico é pe culiar a o Ocidente. Estam os
tão a costuma dos a c onviver c om as cr ença s e as suposições do am or rom ântico,
que o consideramos como a única forma de "amor" que pode gerar casamento e
relac ionam entos verdadeiros . Acham os que o am or rom ântico é o único
"verdadeiro amor". Mas existem muitas outras coisas a este respeito que
podem os aprender do Oriente. Nas culturas orientais, como a da índia ou a do
Japão, cons tatam os que os ca sais se am am com muita cordial idade, m uitas vezes
com uma devoção e uma estabilidade que desconhecemos.
Mas o am or deles não é o "am or rom ântico" como nós o conhece mos. Eles não
impõem aos seus relacionamentos os mesmos ideais que impomos aos nossos,
nem fazem exigências imposs íveis ou alimentam expec tativas c omo nós
fazemos.
O am or româ ntico não é apenas uma form a de "am or", m as é todo um conjunto
psicológico - um a com binação de ideais, crenças, atitudes e expectativas. Estas
idéias, freqüentemente contraditórias, coexistem no nosso inconsciente e, sem
que percebamos, dominam nossos comportamentos e reações.
Inconscientemente, predeterminamos como deve ser um relacionamento com
outra pessoa, o que devem os sentir e mesm o o que de vem os "lucrar com isso".
O am or rom ântico não significa apena s am ar alguém ; significa "estar
apaixonado". Este é um fenômeno psicológico muito peculiar. Quando estamos
"apaixonados", acreditamos ter encontrado o verdadeiro sentido da vida revelado
num outro ser humano. Sentimos que finalmente nos completamos, que
encontramos as partes que nos falt avam . A vida, de repente, par ece ter a tingido
uma plenitude, uma vibraç ão sobre- huma na, que nos ergue a cim a do plano
comum da existência. Para nós, estes são os sinais seguros do "amor verdadeiro".
Este conj unto psicológico inclui uma exigência inconsciente de que o nosso
am ante ou cônj uge nos alime nte continuam ente com esta sensaçã o de êxtase e
de emoção intensa.
Com a típica presunçã o ocidental de estarmos sem pre c om a razão, acham os que
o nosso conce ito de "am or", o am or rom ântico, deva ser o m elhor. Pr esumim os
que, com para do a este, qualquer outro tipo de a mor entre hom ens e m ulhere s
seria frio e insignificante. Mas se nós, ocidentais, form os rea listas, tere mos de
adm itir que o nosso enfoque do am or rom ântico não e stá funcionando bem .
Apesar do êxtase que sentimos quando estamos "apaixonados", passamos boa
parte do nosso tem po com uma profunda sensação de solidão, alienação e
frustração ca usada pela nossa incapacidade de construir relac ionam entos
afe tuosos, basea dos em com promissos.
Culpamos geralmente os outros por nos terem falhado; não nos ocorre que talvez
sejamos nós que precisemos modificar nossas próprias atitudes inconscientes - as
expectativas que alimentamos e as exigências que impomos aos nossos
relac ionam entos e à s dem ais pessoas.
Esta é a grande ferida na psicologia ocidental, é o problema psicológico básico da
nossa cultura. Jung disse que se descobrim os a f erida psíquica num indivíduo ou
num povo, aí descob rimos tam bém o ca minho para a conscientização, pois é no
processo de cura das nossas feridas psíquicas que acabam os por nos conhecer a
nós mesmos. O amor romântico, se realmente tentarmos compreendê-Io, pode
tornar-se tal caminho para a conscientização. Se os ocidentais se libertarem da
servidão maquinal às suas presunções e expectativas inconscientes, não apenas
atingirão uma nova consciência em seus relacionamentos como também uma
nova consciênc ia de si próprios.
O am or rom ântico se tem manifestado em muitas culturas no desenrolar da
história. Nós o encontramos na literatura da Grécia antiga, no Império Romano,
na antiga P érsia e no Japão fe udal, mas a nossa sociedade ocident al m oderna é a
única cultura da história que teve a experiência do am or rom ântico c omo um
fenôm eno de m assa. Somos a única sociedade a c ultivar o ideal do " am or
româ ntico" e a fazer do romance a base de ca same ntos e relacio nam entos
amorosos.
O ideal do am or rom ântico irrom peu na soci edade ocidental durante a I dade
Média, surgindo pela prim eira vez na litera tura no m ito de Tr istão e I solda, depois
nos poem as e nas ca nções de am or dos trovadores. Era conhecido com o "am or
cortês" e tinha por m odelo o intrépido cavaleiro que hon rava um a be la dam a e
fazia dela a sua inspiração, o símbolo de toda a beleza e perfeição, o ideal que o
incentivava a ser nobre, e spiritualizado, re finado e voltado par a assuntos
"elevados". Na nossa época introduzimos o amor cortês nos casamentos e nos
relacionamentos sexuais, mas ainda mantemos a crença medieval de que o amor
verdadei ro tem de ser a adoração e xtática de um homem ou de um a m ulher que
represent a para nós a imagem da perfeição.
Jung nos m ostrou que quando u m fenôme no psicológico m arc ante a contece na
vida de um indivíduo, isto significa que um trem endo potencial inconsciente e stá
em ergindo, prestes a m anifestar-se a o nível da cons ciência. O m esm o é válido
para as coletividades. Num determ inado ponto da história de um povo, uma nova
possibilidade surge do inconsciente coletivo; é uma nova idéia, um a nova crença,
um novo valor ou, ainda, um a nova m aneira de e ncar ar o universo. Isto
repre senta um bem em potencial, se puder ser int egra do ao consciente, m as a
princípio é assustador e até mesmo destrutivo.
O amor romântico é um desses fenômenos psicológicos realmente arrasadores
que surgiram na história dos povos ocidentais. Foi algo que esmagou nossa psique
coletiva e alterou perm anentem ente nossa visão do m undo. Ainda não
aprendemos a lidar coletivamente com o tremendo poder do amor romântico.
Freqüentemente nós o transformamos em tragédia e alienação e não em
relac ionam entos humanos duradouros. Acr edito, porém , que se hom ens e
mulhere s compre endere m os mecanismos psicológicos que atuam por trás do
am or româ ntico e aprenderem a lidar com eles con scientem ente, terão nas mã os
a chave para novas possibilidades de relacionamento, tanto com os outros como
consigo mesmos.
osso veículo para explorar o am or rom ântico é o m ito de Tristão e Isolda.
Trata-se de um dos mais comoventes, belos e trágicos de todos os grandes relatos
épicos. Foi a primeira história na literatura ocidental a lidar com o amor
romântico, e é a fonte da qual se srcinou toda a nossa literatura romântica, desde
Rome u e Julieta a té a história de a mor em cartaz nos cinem as do bairro.
Aplicando os princípios da psicologia j ungiana, interpretare mos os símbolos do
mito e c onhecerem os por ele a s origens, a natu reza e o significado do am or
romântico.
O m ito de Tristão e I solda, c omo o de P arsifal 2, é um "mito ma sculino". Ele
retra ta a vida do j ovem Tristão que se transform a num herói nobre e altruísta,
para depois se deparar com uma experiência arrasadora em sua vida: a paixão
pela Rainha Isolda. É com o uma simbólica peça de tapeçaria, que retrata em
cores vivas o desenvolvimento da consciência individual do homem na luta para
conquistar sua masculinidade, conscientizar-se do seu lado feminino e lidar com
o am or e o relac ionam ento. É uma história que m ostra um home m dividido entre
a lealdade e as forç as c onflitantes que se a gitam ferozmente na psique
masculina, enquanto ele é consumido pelas alegrias, paixões e sofrimentos do
romance.
A Respeito de Mitos
Senhores, se quiserdes ouvir uma sublime história de amor e de morte, eis aqui a
de Tristão e I solda; de como, para sua completa alegria e tam bém para sua dor,
eles se a mara m; e com o no final, juntos, um dia m orreram de am or, ela por ele
e ele por ela.
O mito de Tristão e Isolda é uma expressão profunda da psique ocidental. Ele nos
fala muito sobre o que nos impulsiona. É uma visão vívida, panorâmica, das
forç as psicológicas que a tuam no inconsciente dos ocidentais n os últimos mil anos
de nossa história. Ac ima de tudo, esse mito nos fornec e uma ima gem
dolorosam ente re al do am or rom ântico: porque e le surgiu em nossa c ultura, o
que ele é , e porque não e stá f uncionando m uito bem .
osso mito nos mostra que o am or rom ântico é um ingrediente nece ssário na
evolução da psique ocidental. Somente atingiremos a totalidade e passaremos
para um a nova etapa da nossa evolução de consciência, quando aprendermos a
conviver conscientemente com o amor romântico - isto é, com as imensas forças
psicológicas que ele representa. Na evolução da consciência, nosso maior
problem a é sem pre nossa oportunidade mais preciosa.
O Zen nos ens ina que o cre scimento interior sem pre e nvolve um a experiência
com o "um c arvã o em brasa e ntalado na gar ganta". No caminho de nosso
desenvolvimento, sem pre c hegam os a um problem a, um obstáculo tão gra nde
que nem o podem os engolir ne m o podem os expelir. É exa tam ente e sta a nossa
experiência ocident al com relaç ão ao am or rom ântico: não podem os viver c om
ele e não podem os viver sem ele - não o podem os engolir e não o pod em os
expelir! Esse "ca rvão ar dente" na garganta é um aviso de que um tre mendo
potencial evolutivo está tentando se m anifestar.
Após uma vivência de muitos anos no rico mundo da psique, aprendendo suas
leis, Jung notou uma enorm e forç a evolutiva atuando no universo psíquico. Ele
percebeu que a psique hum ana desenvolve um esforço constante em busca da
totalidade, um esforço no sentido de se completar e se tornar mais consciente. O
inconsciente procura transferir seu conteúdo para o nível da consciência, onde
pode ganhar existência e ser assimilado, formando uma personalidade consciente
mais completa. A psique de cada indivíduo tem um estímulo inerente para
evoluir, para integrar os elementos do inconsciente, juntando as partes que ainda
faltam ao indivíduo total para form ar um self c ompleto, pleno e consciente.
Jung nos ensina que o inconsciente é a fonte: a matéria primordial a partir da qual
se desenvolveu o c onsciente e a personalidade do e go. Todos os valores, idéias,
sentimentos, capac idades e condutas que transform am os em partes ativas de
nossa personal idade consciente srcinaram -se da matéria-prim a básica do
inconsciente.
Pa ra ter uma idéia clara disso, podem os ima ginar um a ilha de c orais que
gradualme nte e merge do fundo do mar. O ocea no lentam ente cr ia essa ilha a
partir de sua própria matéria e a im pele finalmente para a superfície, para a luz
do sol. Após séculos, desenvolve solo fértil e vida vegetal; aparecem animais e
pessoas, e a pequena ilha se torna um minúsculo centro de vida hum ana e de
consciência. Como o vasto oceano, o inconsciente coletivo dá srcem a uma
minúscula ilha; é a psique consciente, o ego, o "Eu" - aquela parte do ser que tem
consciência de si mesma.
Este pe queno ego, ce rcado pela ime nsidão do inconsciente, tem uma taref a
elevada e nobre, um destino especial a cumprir. Seu papel nessa evolução é o de
integra r m ais e m ais o inconsciente, a té que o consciente re flita verdadeira mente
a totalidade do seIf.
A huma nidade toda e stá à mercê desta e norme força evolutiva. Quando o
inconsciente c oletivo inicia um novo estágio neste proc esso não tolera nenhum
obstáculo. Pa ra introduzir um novo ideal ou um a nova possibilidade na psique
consciente de um povo, ele subverte a ordem de um a sociedade, ini cia c ruzadas,
cria novas re ligiões ou re duz impé rios a ruínas.
Esta visão da evolução psíquica é decisiva para nós tanto para a compreensão do
nosso mito, como par a um a visão do am or rom ântico numa perspecti va
verdadeira . O apa recim ento do am or rom ântico no Ocident e iniciou um
importante ca pítulo neste dra ma c ósmico da evolução. O a mor rom ântico é a
máscara atrás da qual se oculta uma gama incrível de novas possibilidades, à
espera de serem integradas ao consciente. Mas o que começou como uma
enorm e onda coleti va de e nergia psíquica deve ser aper feiçoado ao nível
individual. É sempre nosso dever, como indivíduos, completar a tarefa, levar o
processo divino à plenitude dentro do microcosmo de nossa própria alma. Cabe a
nós, como indivíduos, tomar esta energia inconsciente, energia brutal, do amor
rom ântico, esta infinidade desconc ertante de im pulsos e possibilidades, integrá-Ia
e transform á-Ia em consciência.
Todo grande mito é o registro simbólico de um estágio de crescimento na vida de
um povo. Isso explica porque e stas histórias de sentimentos tão f ortes, intensos,
nos envolvem tão completamente e tocam tão fundo nossos sentimentos. Tristão
e Isolda é um modelo simbólico de nossa psique ocidental em um mome nto
decisivo, um ponto crítico de nosso desenvolvimento psicológico. Ele nos mostra
os conflitos e as ilusões, m as tam bém as potencialidades contidas na situação.
Agora vam os exam inar esta "sublime história de am or e de morte". De tem pos
em tem pos, em nossa narr ativa, farem os uma pausa para aprenderm os a ler a
linguagem simbólica desse m odelo e c aptar a sabedoria que o m ito nos ofer ece.
PARTE 1
A NARRATIVA
Há muito tem po, na época do Rei Arthur, Mark reinava na Cornualha. Era um rei
usto e bom, e todos os seus súditos o amavam pela sua justiça e bondade. Mas
nem tudo
terras. corriaRivalen,
O bom bem para Mark,
rei de pois inimigos
L y onesse, veio dacruéis
Françacerc
comavam
seu eexér
invadiam
cito e suas
graç as à sua aj uda, Mark obteve uma grande vitória. Tã o grato ficou a Ri valen,
que lhe deu em ca sam ento sua única irmã , Blanchefleur, com o sinal de e terna
amizade e aliança.
Tal como seu nome, que significa "flor branca", Blanchefleur era alva, delicada e
bela. As bodas reais foram realizadas no castelo de Tintagel, e ali foi concebida
uma criança. Sobre ela a inda vam os falar m uito, pois essa cr iança f atídica era
Tristão.
ão dem orou muito e más notícias fora m anunciadas: as terra s do Rei Rivalen
em Lyonesse estavam sitiadas por um traiçoeiro tirano, o Duque Morgan. Rivalen
em barc ou de volta para defe nder suas terras levando cons igo seu exérc ito e a
nova rainha, Blanchefleur. Mas após me ses de guerra , o pobre rei foi
surpre endido numa pé rfida em boscada e crue lmente foi ass assinado por Morgan.
Ao saber disso, Blanche fleur ficou lívida e desfa lece u. Fugiu-lhe a vida, desde
então. Apesar de estar em adiantado estado de gravidez, não mais quis viver,
.tudo o que a nsiava e ra unir-se novam ente a o m arido, no. outro mundo. Por três
dias desej ou a m orte, m ergulhada e m profundo sofrime nto. No quarto dia, deu à
luz uma criança e saudou-a c om as seguintes palavra s: "Filhinho, tanto tem po
ansiei por te ve r! Mulher alguma j am ais trouxe ao m undo criatura tão bela. A
tristeza me seduziu, na tristeza te dei à luz, na tristeza passas o teu primeiro dia de
festa. E com o chegaste a e ste m undo ce rca do de tristeza, teu nome nã o pode ser
outro senão Tristão, filho da tristeza."
Foi assim que Blanchefleur escolheu o nome do filho. Beijou-o e, em seguida,
morreu.
Lord Rohalt, fiel marechal do Rei Rivalen, ao ver que a guerra estava perdida,
entregou os castelos ao Duque Morgan, e as terras de Lyonesse caíram sob sua
tirania. Mas Rohalt escondeu o peque no Tristão entre seus próprios filhos para
evitar que o m aldoso Duque Morgan a ssassinasse tam bém a c riança.
Tristão c resceu belo e forte e ntre os filhos de Rohalt, sem saber quem era,
acreditando que ele f osse seu ver dadeiro pai. C hegado o tem po, o fiel ca valeiro
ensinou-lhe todas as artes da baronia:
Lança e e spada,
Escudo e arco,
Lançar disco de pedra, Saltar largos fossos,
Odiar toda m entira e traiçã o, Honrar a palavra,
Cantar e tocar har pa, Exerc er o ofício de ca çador.
Tristão cavalgava como se ele e seu cavalo fossem uma única criatura. Era leal
e coraj oso e, apesar de ser apenas u m menino, ma nej ava a e spada com o um
cavaleiro adulto. Todos elogiavam Rohalt pelo seu nobre filho. Rohalt, porém,
olhava para Tristão e via nele o seu rei.
Certo dia, piratas noruegueses , dizendo-se m ercadores, atraíram Tristão para seu
navio. Apesar de o garoto ter lutado como um filhote de leão, os piratas o
capturaram e o prenderam, pois um jovem tão bonito poderia facilmente ser
vendido com o escr avo numa terra distante. Mas o m ar repeliu o navio dos
ladrões e uma terrível tempestade abateu-se sobre a embarcação, fazendo com
que grandes ondas invadissem o convés. Como os bandidos sabiam que as
divindades do ocea no estavam irritadas com o crim e c ome tido, colocaram
Tristão num bote e o soltaram . Im ediatam ente as ondas se acalmaram . Tristão
viu terra à sua frente e cheio de contentam ento rem ou para a praia. Eram as
belas praias da Cornualha, onde seu tio, o Rei Mark, continuava a reinar.
Por a caso, os caçadores rea is estavam na praia e Tristão tanto os agradou com
suas habilidades, que o levar am à corte do re i. Quando viu Tristão, Mar k sentiu-se
perturbado e, sem que soubesse o m otivo, encheu-se de ternura. Em Tristão ele
viu o rosto de sua a mada irm ã, Blanche fleur, e e ra com o se o sangue dela
clama sse por e le.
Depois do jantar, Tristão tomou da harpa e cantou antigas canções. Todos os
cora ções se e nterne ce ram e ha via lágrim as nos olhos de todos, e o Rei Mark
disse: "Filho bendito sej a o m estré que te e nsinou, e que De us te abençoe, pois
Deus ama os bons cantores. . . Para nossa alegria vieste a este teto; fica, pois,
conosco por longo tempo, amigo! E Tristão respondeu: "Aqui ficarei, ó meu
senhor e vos servirei fielmente como vassalo." Durante três anos, Tristão viveu
no Castelo Tintagel; o rei foi como um pai para ele e um afeto profundo
floresceu entre os dois.
Quando três a nos se passara m, o fiel Mare chal Rohalt foi à Cornualha, pois tinha
procurado Tristão por m uitas terras. Assim, Tristão descobriu quem era: sobrinho
do Rei Mark, filho do Rei Rivalen, herdeiro do trono de Lyonesse. Com um
regimento de bons cavaleiros, Tristão cruzou as águas em direção a Lyonesse e
insuflou os camponeses, que se e nchera m de cora gem para lutar contra o ti rano
Morgan. Defr ontou-se c om o traidor no cam po de ba talha e o m atou de um só
golpe de e spada, a ssim r epar ando a traiçã o com etida por Morgan no s tem pos
passados.
Tristão colocou Rohalt no trono de Lyonesse e disse aos seus barões: "Aqui sou
rei, e est a terra me é querida, m as m eu coraç ão está c om m eu tio, o bom Rei
Mark. Agora que o tirano está morto, deixo-vos meu fiel Rohalt para que governe
em meu lugar, pois devo voltar para servir a Mark, meu senhor."
Ouvindo estas palavras, os barões gemeram e se lamentaram em coro, pois
queriam manter Tris tão em Ly onesse par a governá-I os. Mas respondera m: "É
usto, meu senhor."
aqueles tem pos, a Ir landa e ra um reino poderoso, cuj o governante cobrava um
terrível tributo aos habitantes da Cornualha. Estes ra ngiam os dentes de raiva e
gem iam de dor, pois a c ada quatro anos era m obrigados a enviar trezentos
rapazes e trezentas moças, escolhidos entre seus filhos, para servir como
escra vos e m orrer na Ir landa. P orém , havia quinze a nos que o Rei Mark
recusava-se a pagar o tributo, e com isso o rei irlandês estava furioso. A rainha da
Irlanda era uma poderosa feiticeira e seu irmão, um gigante conhecido como
Morholt. Tão grande e forte e ra ele" que cinco c avaleiros j untos não consegu iam
derrotá-Io.
um dia funesto, Morholt desembarcou na Cornulha acompanhado de muitos
cavaleiros e exigiu o tributo de rapazes e donzelas.
"Mas", disse ele, "se algum cavaleiro da Cornualha e stiver disposto a me
enfre ntar, o com bate dec idirá se o tributo da Ir landa é rea lme nte justo. Pois Deus
me dará a vitória, se meu rei estiver com a razão!"
Morholt colocou-se diante dos barões da corte e propôs o julgamento por
com bate, ma s todos permanec era m em silêncio, am edrontados. No dia seguinte,
novam ente ele se a presentou diante da c orte e sugeriu o com bate, m as foi como
se um gavião tivesse penetrado numa gaiola de pardais: os barões da Cornualha
tremeram e esconderam a cabeça debaixo das asas. No terceiro dia, no entanto,
um rapazote adiantou-se e ajoelhando-se diante do rei disse: "Meu senhor,
permiti que eu lute." Este rapaz era Tristão.
Tristão deveria enfrentar Morholt numa pequena ilha ao largo da costa. No dia da
batalha, os barões choraram de pena e de vergonha por não terem a coragem de
Tristão. .A população a com panhou o j ovem até a praia, c horando e re zando. Eles
ainda mantinham a esperança, pois a esperança no coração dos homens
sobrevive e m magra s pastagens. Chegando ao ca mpo de batal ha, Tristão
desem barc ou e, e m seguida, em purrou o bote ao largo. Mo rholt ficou surpreso,
mas Tristão disse: "Somente um de nós sairá daqui com vida; um barco será
suficiente."
As pessoas reunidas na praia ouviram por três vezes um tremendo grito vindo da
pequena ilha. Os cavaleiros de Morholt riram, seguros da vitória, enquanto as
mulhere s da Cornualha c horara m e, e m fila, r ealizaram os rituais de luto,
batendo palmas em uníssono e gritando muito alto.
Ao m eio-dia, o povo viu o barco de Morholt voltando da ilha, com suas velas cor
de púrpura real enfunadas pelo vento. Neste instante, re alm ente perder am as
espera nças e choraram desesperadam ente mas, quando o barc o se aproxi mou,
viram Tristão em pé na proa, com o sol ref letido em sua arm adura, brandin do
duas espadas. Os jovens gritaram e alegremente jogaram-se na água, indo ao
seu encont ro. Depois que atrac ara m o barc o, Tristão disse a os cavaleiros d e
Morholt: "Senhore s da Ir landa, Morholt lutou brava mente. Vê de, m inha espada
está pa rtida e um estilhaço dela ficou preso em sua c abeç a. Leva i este a ço,
senhores: é o tributo da Cornualha."
Mesmo c om o sangue corre ndo de seus ferim entos, Tristão a travessou a c idade
de Tintagel em direção ao castelo. As pessoas acenavam com ramos verdes e
espalhavam flores à sua passagem. Entoavam cânticos de agradecimento a Deus
e pe nduravam ricas tapeça rias em suas j anelas. Ao l ongo do cam inho, os sinos
repicava m e as trom betas soavam alegrem ente. Diante do ca stelo, Tristão
desfaleceu devido aos ferimentos, sendo amparado pelo Rei Mark.
As feridas de Tr istão pioravam cada vez mais, pois Morholt o havia a tingido com
uma farpa e nvenenada. F icou pálido e definho u; nem médicos nem feiticeiros
conseguiam curá -lo. Pa ra aquele veneno, s ome nte a feiticeira Rainha da Irlanda
e sua filha, Isolda a Bela, possuíam os encantamentos secretos para salvá-lo. Mas
estas duas m ulhere s com seus poderes m ágicos estavam na Ir landa. Dia e noite
elas velavam o corpo de Morho lt; dia e noite elas am aldiçoava m o nome de
Tristão de Ly onesse; dia e noite elas c lam avam por vingança.
Agora Tristão sabia que não havia re médio para e le. na Cornualha, m as seu
coração lhe dizia que fosse ao mar e procurasse a cura ou a morte.
"Gostaria de tentar o mar que conduz a todas as possibilidades. .. Que o mar me
leve para longe, sozinho, a que terra s não importa. P ara que meus fer ime ntos
cicatrizem e, talvez algum dia, eu possa voltar para servir-vos, meu bom tio, mais
uma vez, com o tocador de har pa, ca çador e vassalo."
Colocaram-no com cuidado num pequeno barco, sem vela nem remos. Ele
deixou a e spada na pra ia, pois ela j á nã o poderia servir-lh e, m as levou a harpa
para confortá-Io durante a viagem. Chorando, em purraram o barco para o mar e
rec ome ndaram Tristão a Deus. E o ma r o levou consigo...
Durante sete dias e sete noites, Tristão ficou sobre as águas, depois, finalmente,
aproximou-se de uma pra ia. Na e scuridão da noite, pescadores ouv iram
melodias suaves com o a pra ta, flutuando sobre a s águas. Ao am anhec er, e les o
encontraram sem sentidos em seu barco, a mão pousada sobre a harpa
silenciosa. Os pescadores levara m Tristão para a praia e imediatam ente
enviaram uma mensagem para a sua senhora, pois ela possuía o dom de curar as
pessoas.
A senhora era I solda a Bela; sua m ãe, a f eiticeira Rain ha da Irlanda e este porto
era Whitehaven, onde Morholt repousava em seu túmulo. E assim, eles
transportaram o estrangeiro fe rido para a P rincesa Isol da. Entre todas as
mulheres do mundo, só ela podia curá-Io. Mas de todas as mulheres do mundo,
era ela a que m ais deseja va vê-Io morto .
1 - Blanchefleur
Deixem os, por ora, Tristão na Ir landa e faç am os uma pausa. Está na hora de
começarmos a examinar a linguagem simbólica do nosso mito e compreender as
verdades que ele tem para nos ensinar.
o com eço, encontramos um herói nascido na tristeza, que perde u a m ãe no seu
primeiro dia de vida. Mas quem é esta criança? O que significa a morte de
BIanc hefleur par a nós?
A perda da m ãe não é uma experiência e xclusiva de Tristão, pois ele é o
protótipo do homem ocidental moderno, o primogênito de nossa raça moderna. A
form a de pensar de Tristão é a nossa form a, seu m undo é o nosso m undo, seus
problem as são os nossos problem as, e sua perda é a nossa perda.
Psicologicamente, nossa era moderna começou no século XII, época em que
Tristão na sceu e este m ito passou a e xistir. Esse séc ulo foi um grande divisor de
águas na nossa história. As sementes do nosso pensamento moderno foram
plantadas nessa época: o que somos hoje - nossas atitudes, valores, conflitos e
ideais - é algo que se srcinou a partir dessas sem entes. A psique coletiva é uma
gigantesca árvore que cresce lentamente, século a século e, para esta enorme
mente c oletiva e m desenvolvimento, m il anos é um período de tem po m uito
curto.
Tristão é a nova cr iança, nascida na Idade Média, que foi cre scendo no decorr er
de um milênio até se tornar o m oderno homem ocidental. Sua m ãe e seu pai,
Blanchefleur e o Rei Rivalen, simbolizam a velha ordem, o pensamento antigo da
Europa. Eles m orrem , ma s gera m uma criança e esta c riança é o pensam ento
moderno do Oci dente. Ele é Tristão, o Novo Home m.
A morte trágica de Blanchefleur deixa Tristão num mundo tristemente
desvirtuado, destituído de quase todos os traços do f em inino e, c omo Tristão, nós
herdam os esse mundo. Blanchefleur é o interior fe minino, ela personifica a a lma
feminina interior do homem ocidental, os valores femininos que um dia existiram
em nossa c ultura. Sua m orte re lem bra aquele triste m omento de nossa história,
em que a mentalidade pa triarc al finalm ente expulsou por com pleto o fem inino
de nossa cultura e de nossas vidas.
Tristão é criado nas "artes da baronia". E que artes são essas? Lutar com a
espada, a lança e o a rco. Montar um cavalo de guerra e saltar largos fossos.
Caçar. Tudo no m undo dele enfatiza o lado m asculino da vida: o poder de
comandar, os treinos de combate, a defesa de territórios. Todo herói tem
necessidade destas habilidades - não resta a menor dúvida quanto a isso! Elas,
porém, representam apenas metade da natureza hum ana. O Rei Mark não tem
rainha; sua irmã, Blanchefleur, morreu. Todo o lado feminino da vida, ou seja, o
amor, o relacionamento sentimental, a introspecção, a experiência intuitiva e
lírica da vida, tudo isto praticamente desapareceu da Cornualha e de Lyonesse. A
única lembrança do feminino que resta a Tristão é a sua harpa e, como veremos,
é a harpa que o salv a.
Compre endere mos me lhor nossa história se tiverm os uma idéia clara do que
significa "o fem inino" para nós.
Jung constatou que a psique é andrógina: ela contém componentes masculinos e
fem ininos. Assim, home ns e m ulhere s vêm equipados com um a estrutura
psicológica que na sua totalidade inclui a riqueza de ambos os lados, de ambas as
naturezas, de ambos os conjuntos de capacidades e forças. A psique
espontanea mente se divide e m opostos complem entares e os representa com
uma configuraç ão m asculino-fem inina. Ela a ssinala a lguma s car acterística s
como sendo "masculinas" e outras, como "femininas". Como o yin e o yang, na
antiga psicologia chinesa, estes opostos complementares se equilibram e se
com pletam mutuam ente. Nenhu ma qualidade ou car acterística da personal idade
humana é com pleta em si: cada uma deve se faz er acom panhar de seu "par"
masculino ou fem inino, numa c ombinaçã o consciente, se quisermos alcançar
equilíbrio e totalidade.
A psique encara a capacidade ,de amor e relacionamento como sendo uma
qualidade "feminina", que vem do lado feminino da psique. Por outro lado, ela
considera a capacidade de exercer poder, de controlar situações e de defender
posições com o manifestações do seu setor m asculino. Para nos tornarm os um ser
com pleto, cada um de nós prec isa desenvolver am bos os lados da psique.
Precisam os ter a capac idade, tanto de lidar c om o poder com o de amar, tanto de
exer ce r o controle com o de deixar fluir naturalme nte a vida - c ada va lor no seu
momento apropriado .
Quando dizemos "feminino" nesse sentido, obviamente não estamos querendo
dizer "próprio de m ulheres". Estam os falando de qua lidades interiores,
psicológicas, que são comuns aos homens e às mulheres. Quando um homem
desenvolve as forças do seu lado feminino interior, isto, na verdade, completa sua
masculinidade. Ele se torna m ais completam ente viril na m edida em que se torna
mais completam ente humano. O h ome m mais forte é aquele que é capaz de
verdadei ram ente dem onstrar am or a seus filhos, da m esma form a que e nfrenta
a guer ra do mundo de negócio s, durante a sua j ornada de trabalho. Sua forç a
masculina é a ume ntada e equilibrada pela sua ca pacidade fe minina de se
relacionar, expressando seus sentimentos e seu afeto.
Em cada um de nós existe um potencial para a totalidade, para realizar uma
síntese, juntando as partes conflitantes dentro de nós. Temos um nome simples
para esta totalidade do indivíduo: Jung a cham ou de self.
O self é a soma de todas a s força s divergentes, das energias e da s qualidades que
vivem dentro de nós e que nos fazem ser o que somos: um indivíduo único. O self
é a unidade equilibrada, harmônica e simétrica, no próprio núcleo do ser, que
cada um de nós sente existir no interior. Mas raramente sentimos o self
conscientem ente; rara mente tem os esta sensação de unidade e de totalidade.
Ger alm ente nós nos sentimos com o uma massa ca ótica de desej os conflitantes,
de valores, ideais e possibilidades, alguns conscientes, outros inconscientes, que
nos puxam simultanea mente em várias direç ões.
O traba lho da "iluminaç ão" consiste em tornar conscientes e stas par tes divididas e
conflitantes dentro de nós, em despertar para a unidade primordial que junta
todas estas partes. Acordar para a unidade do self é a gra nde m eta da nossa
evolução psicológica, a Pé rola Que N ão Tem Preço, o objeto dos nossos desej os
mais profundos. É esta possibilidade que se manifesta pela natureza dual
mascuiino-feminino da psique.
o simbolismo m ítico, o self fr eqüentem ente é repre sentado por um par
masculinofem inino: um- re i e uma rainha, um irmã o e um a irm ã divinos, um
deus e uma deusa. Por este símbolo de casal real, a psique nos diz que o self é
uno, apesar de o sentirmos formado por opostos complementares. Isto nos mostra
que precisam os fazer um "ca sam ento", uma união sagrada, e ntre as duas grandes
polaridades da nossa natureza humana. Como os dragões do y in e do y ang, o rei
e a rainha interiores c onstantem ente cr iam nosso mundo a parti r das e nergias
masculinas e femininas do self, numa dança cósmica eterna.
o mundo de Tristão, porém , não e xiste rainha! Existe um rei: existe Mark. Mas
a rainha m orreu: Blanchefleur se foi.
São as qualidades femininas que trazem significado à vida: relacionamento com
outros seres huma nos, a c apac idade de suavizar o poder c om o am or, a
consciênc ia dos nossos sentime ntos e valores interiores, o r espeito pelo nosso
am biente terre stre, o prazer pela beleza da terra e a procura introspectiva da
sabedoria interior. Com estas qualidades prejudicadas, não encontramos muita
significação. Com espadas e lanças construímos nossos impérios, mas eles não
nos dão significa do ou finalidade na vida.
A morte de Blanchefleur, todavia, não significa que tenhamos perdido estas
qualidades para sempre. A morte, num mito ou num sonho, significa que algo
abandonou o consciente; no e ntanto, este a lgo continua, a inda, no inconsciente,
aguardando o s eu re nascime nto para a consciência. Hoje vem os as pessoas
tentando tra zer Blanche fleur de volta do inconsciente. As pe ssoas tentam
apre nder a expressar os seus sentimentos, a de monstrar a feto, a despertar pa ra o
lado intuitivo da vida. Uma boa parte dessas tentativas não dá certo, transforma-
se numa moda passageira, é reduzida a abra ços aca nhados e "espontaneidade"
forçada, mas pelo menos as pessoas estão tentando encontrar Blanchefleur.
Por que Blanchefleur morreu? Por que nós, ocidentais, perdemos tanto da nossa
capacidade de 'mar, de sentir, de nos relacionar?
Veja Blanchefleur! Ela está cercada pela guerra. Casada com um aliado de
guerra , é e mpurrada para outra guerra , em Ly onesse, que lh e mata o m arido e
destrói a vontade de viver. Sempre acompanhando exércitos, só entende de
soldados, batalhas, pactos e m orte. Na nossa cultura, o feminino interior se
encontra na mesma situação - sempre um acompanhante de exércitos, atrelado
ao velho impulso ma sculino do poder, sufocado pela guer ra, esquecido em meio
ao eterno e e nsurdece dor choque das lâm inas de aç o.
Quando Blanche fleur m orreu, naquele di a frio em Ly onesse, a alm a fem inina do
Ocidente foi-se e mbora. Pa rtiu para a Irlanda, para a lguma ilha m ítica do outro
lado do mar. Foi viver no inconsciente, aguardando uma época mais propícia
para retornar ao convívio da humanidade.
2 - O Filho da Tristeza
"A tristeza me seduziu, na tristeza te dei à luz, na tristeza passas o teu primeiro dia
de fe sta. E, com o chegaste a este m undo ce rcado de tristeza, teu nome não pode
ser outro senão Tristão, filho da tristeza."
4 - A Espada e a Harpa
Tristão é, ao mesmo tempo, o ego do homem ocidental - o "Eu" que está vivendo
esta história - e a figura do herói. Isto tem um significado profundo para nos.
Pa ra o homem ocidental, o ego prec isa ser heróico, só o espírito heróico ergue-
nos acima do egocentri smo m esquinho. É e le que nos col oca a serviço de um
ideal m ais elevado e nos dá m eios para realizar nossa tare fa evolutiva.
O trabalho do herói é e specífico: em pree nder a jornada interior, enfr entar os
dragões e gigantes que lá existem e encontrar o tesouro escondido. O papel
externo do herói é cada vez menos importante nos dias de hoje. Castelos a
conquistar e dragões a ser em abatidos estão e m falta a tualme nte. No e ntanto, a
tarefa m ais heróica de todas pode ser realizada por qualquer pessoa,
independentem ente de suas c ircunstâncias externas. Qualqu er um pode
em preender a jornada interior e assumir a tare fa de se tornar c ompleto.
Duas coisas são nece ssárias a um herói: uma espada e uma harpa. Toda nossa
história a té agora f oi uma interação entre o poder da e spada e o poder da harpa.
Tristão nec essitou da e spada para a ba talha, prime iro com o crue l Duque
Morgan, depois com o brutal Morholt. A espada simboliza o uso drástico e
agre ssivo do poder masculino. Com a espada, o her ói enfrenta o m undo
agre ssivam ente, assu me o controle da situaçã o, posiciona-se firm em ente, derrota
o adver sário. A nível m ental, a e spada é o intelecto discriminador, que divide e
analisa. Em sentido figurado, ela "corta" em pedaços os problemas e as idéias
para compreendê-Ios; é a faculdade lógica, crítica da m ente.
Todos nós necessitamos do poder da espada. Existem ocasiões em que
precisamos ser lógicos e analíticos. As vezes precisamos nos posicionar com
firmez a, m as tam bém existem ocasiões em que nem a lógica nem a f orça nos
podem ajudar; é então que precisamos recorrer à harpa.
Depois da batalha com Morholt, quando Tristão está ferido e a espada não lhe
serve m ais, ele a a bandona e toma a harpa; é e la que o acom panha no m ar, ela é
o lado lírico, sentimental, que c orre sponde a o feminino interior. Com o poder da
harpa, ele constrói seus relacionamentos, demonstrando sentimento e amor. Foi
com o poder da harpa que Tristão despertou a afeição de seu tio. Ao ouvir a
harpa, o Rei Mark exclamou: "Para nossa alegria vieste a este teto, fica conosco
por longo tempo, am igo!"
A harpa repre senta o poder de desenvol ver um senso de valores, de a firm ar o
que é bom e ve rdadeiro, de apre ciar o belo; a ha rpa per mite que o her ói coloque
a e spada a ser viço de um ideal nobre. Nossa história m ostra que é a ha rpa que
nos perm ite viaj ar pelos mares do inconsciente.
Pa ra ser c ompleto, o herói nec essita ter a s duas coisas, pois sem a espada a harpa
se torna ineficaz e sem a ha rpa, a espada fica reduzida à força bruta, egoísta. As
pessoas confundem estes dois poderes nos seus relacionam entos, mais do que em
qualquer outra áre a da vida humana. F reqüentem ente, vem os um homem e uma
mulher tentando "pôr as coisas em ordem" e para isso discutem, criticando-se
mutuam ente, fa lando sobre lógica, descobri ndo contradições na s ar gume ntações
contrár ias, discutindo detalhes. Depois ainda se pe rguntam porque o sentimento
espontâneo do am or e do calor hu mano desapare ce u de seu ca sam ento ou das
ocasiões que passam juntos! As negociações desse tipo são sempre atividades da
"espada"; as pessoas não estão conver sando, estão se degladiando.
A espada não é capaz de construir relacionamentos; ela não pode resolver coisa
alguma, não pode unir as coisas; ela só consegue rasgar. Se você quiser "juntar os
pedaços" e construir um bom relacionam ento, então vai precisar aprender a usar
a linguagem da har pa. Você prec isa dar segura nça à outra pessoa, expressar seu
am or, seus sentimentos e sua dedicaç ão. Esta é uma lei absoluta: a espada f ere e
separa ; a harpa une e c icatriza.
A vitória de Tristão sobre Morholt é um a liçã o profunda qua nto ao uso corre to da
espada. É pre ciso dar atençã o a isso. Morholt representa a força indômita, o
poder primitivo, bruto - que o inconsciente feminino desencadeia contra o ego
masculino que tenta im pedir sua entrada. Assi m que Morholt apare ce em cena,
as coisas ficam muito sérias; não é mais um namoro. É uma guerra implacável.
O inconsciente fe minino não exige ape nas um lugar na vida de um home m, ele
exige o c ontrole a bsoluto, exige que Tristão pa gue o tributo e suj eite-se ao seu
feitiço.
Isto seria uma mudança e xtrem a, passar da ati tude patriarcal unilateral para um a
atitude f em inina igualmente desequi librada . Não seria um casam ento, não ser ia
uma união: seria um a escra vidão, seria c air no extrem o oposto do domínio
feminino. Quando um homem se rende e paga o tributo exigido ou quando seu
ego é destruído na luta com Morholt, ele perde sua masculinidade e se torna um
escravo do seu lado feminino.
Vem os isso em alguns homens, em determ inados estágios da vida. Um home m
que sem pre foi duro, um e mpree ndedor agre ssivo, de re pente se vê a tacado pelo
seu lado fem inino reprim ido. Isso pode toma r a f orm a de um a doença , de uma
depressão ou de um a pe rda do interesse pela vi da. De r epente, ele se vê pre sa de
humores, hiper-emotivo, indeciso. Sua esposa precisa assumir todas as decisões,
enquanto ele se refugia na hipocondria e nas m udanças de humor. 6
este ponto de nossa história, um grande paradoxo é colocado diante de nós.
Antes do ego masculino fazer as pazes com poder do seu elemento feminino. Ele
precisa desenvolver, em seu ego, suficiente força masculina para poder
enfre ntar esse poderoso elem ento feminino em term os de igualdade.
Muitos povos ocidentais, tendo com preendido m al a s religiões ou a filosofia
oriental, imaginam que o ideal sej a livrare m-se do ego. Pre cisam os entender que
o ego é absolutam ente nece ssário; ele tem um papel vital a desem penhar no
grande dram a do desenvo lvimento da consciênci a. O ego tem a tare fa específica
de ir à "Irlanda" interior, de fazer a união entre os diferentes centros de
consciência dentro do infinito universo da psique. Para essa tarefa, o ego
masculino precisa ser um herói, com o Tristão. E a prim eira tare fa do herói é
fortalecer sua consciência m asculina.
um home m, esse é o domíni o da ar te do espadac him. Ele pre cisa ter o poder da
espada para proteger sua vida consciente, da m esm a form a que prec isa do poder
da harpa pa ra a sua j ornada pelo i nconsciente.
Depois da maravilhosa vitória de Tristão sobre Morholt, advém uma grande
alegria, com os sinos repicando e o povo gritando de contentamento. Isso é o que
ocorre dentro do homem quando ele vence Morholt e conquista, assim, sua
masculinidade; existe um a profunda sensaç ão de libertaç ão, de triunfo sobre as
forças que o tornariam fraco ou dependente. Mas, nem bem acabou a alegria da
vitória e j á está o home m derrotado: a fa rpa e nvenenada está dent ro dele.
Que peç a terr ível prega o desti no! O bem triunfa sobre o m al. Os jovens são
salvos graç as à c oragem de Tristão. Que dest ino cruel fe re Tristão com a farpa
envenenada? É nece ssário que Tristão vá à I rlanda ou ele j am ais chegará até
Isolda a Bela. Ele simplesm ente irá re tornar à m entalidade patriarc al e unilatera l
da Cornualha, dando os parabéns a si mesmo pela sua superioridade masculina e
amais sequer pensará em reaproximar-se do feminino. A farpa envenenada nos
mostra que não existe uma vitória final sobre o feminino interior: em cada vitória
haverá sempre um a far pa envenenada e du rante as com em orações a d errota já
circula nas veias do v ence dor. É isto que forç a o hom em a a bandonar finalm ente
sua arrogância e ir voluntariam ente em direção ao fem inino.
Tristão nos mostra com o capitular na hora ce rta e da m aneira c erta. Ele coloca
de lado a espada, e ntra num barc o sem vela e sem remos e, levando consigo
apenas a ha rpa, deixa-se levar ao sabor do mar.
Chega um momento na vida do home m em que o ego não tem mais respostas,
ele nã o sabe o suficiente, nã o dispõe dos re cursos nece ssários para resolver uma
situação impossível. Por onde quer que Tristão procurasse, ninguém na
Cornualha era capaz de curar sua doença. Em momentos assim, o homem
precisa abrir m ão do comando, precisa lem brar-se das palavras de Tristão:
"Gostaria de tentar o m ar que conduz a todas as possibilidades... a que ter ra, não
importa, para que m eus ferim entos cicatrizem ." Ele pre cisa entregar-se a o
inconsciente e vagar e m suas corr entes até encont rar uma nova ilha de
consciência para este estágio de sua vida.
Um a das grandes vi rtudes do fe minino interior é a ca pacidade de se soltar, de
abrir m ão do controle do ego, de para r de tentar controlar a s pessoas e a s
situaçõe s, de deixar as c ircunstâncias a cargo do destino e ceder ao c urso natural
do universo. Abrir mão do remo e da vela significa abandonar o controle pessoal
e c olocar -se à disposiçã o de De us. Deixar a espada significa para r de tentar
entender pelo intelec to ou pela lógica, para r de tentar forç ar as c oisas. Usar a
harpa significa espera r pa cientem ente, ouvindo a voz suave que vem de dentro,
espera r pela sabedoria que vem não da lógica ou da a tividade, m as do
sentimento, da intuição, do não r acional e do lírico.
ós vemos Tristão ao sabor do mar, ouvimos o som da harpa flutuando sobre as
ondas. Atraído por um a força muito além da c ompre ensão do seu ego, sem
mapas que o gui em , Tristão chega finalme nte à Irlanda. E lá, Iso lda o e spera.
PARTE 2
A NARRATIVA
Retornem os agora à história de Tristão. Qua ndo o vimos pela última vez, ele
estava na Irlanda. Os pescadores encontraram seu barco à deriva, puxaram-no
para a praia e levaram Tristão ao palácio de Isolda a Bela. Apesar de m arcado
pela doença e pela febre, a P rincesa observou que ele estava bem vestido e que
era de sangue nob re. Enquanto ele dorm ia, Isolda e sua m ãe, a Rainha Feiticeira,
trataram dele com ervas secretas, poções e encantamentos. Com o tempo,
Tristão foi se recuperando. Tão modificado estava pelo veneno, que nenhum dos
cavaleiros de Morholt o reconhece u, e ele não dis se quem era nem de onde
vinha. Assim que re cuperou a s forç as, esca pou furtivam ente, consegui u
atravessar a s águas e retornou à Cornualha, onde o rei e a c orte o re cebera m
com surpresa e alegria.
Mas Tristão tinha inimigos na Cornualha. Quatro malvados barões o invejavam e
odiavam , pois ele er a o m ais fam oso cava leiro daquele reino, o mais am ado pelo
povo e, além disso, o rei o designara herdeiro do trono. Esses quatro foram ter
com os dem ais barõe s e dissera m: "Tristão deve ser um feiticeiro. De que outra
maneira poderia ele ter derrotado o gigante e se curado magicamente daquele
veneno? E, ainda, r etornado da m orte ce rta no m ar? Se ele se tornar rei, nossas
terras estarão nas mãos de um bruxo!"
Assim, os barões se voltaram contra Tristão, pois poucos sabem que aquilo que os
feiticeiros fazem pela m agia, algu ns home ns podem fazer pela bondade, pe lo
amor e pela coragem. Os barões procuraram o Rei Mark e disseram que ele teria
de arra nja r um a ra inha e gerar um her deiro, caso con trário, eles se re belariam .
O rei ficou perplexo e pensou em várias possibilidades de salvar o trono para
Tristão.
Certo dia, duas andorin has entrara m voando por um a janela do c astelo de
Tintagel e deixaram cair um fio dourado de ca belo de mulher,' longo e brilhante,
na mão estendida do espantado rei. Mark, então, chamou os barões e disse que só
aceitaria com o ra inha a donzela dona daquele c abelo dourado, pois espera va
desta maneira poder conter as exigências dos barões. Tristão, sentindo-se
humilhado, e para provar que não c obiçava o trono, adiantou-se e prome teu
encontrar a da ma dos cabelos de ouro.
"A procura é perigosa, mas eu arriscarei minha vida por vós, para que vossos
barões saibam que vos sirvo com lealdade. Faço o juramento de trazer comigo a
Rainha dos Cabelos de Our o, ou m orre r lutando por isso."
Mas quando Tristão viu o fio de c abelo, sorriu, pois lem brou-se de IsoIda a Bela;
ele já sabia que era ela a dona daquele fio de cabelo.
Tristão aprontou seu barco e partiu para a Irlanda. A tripulação tremia, pois desde
a morte de Morholt, o re i da Ir landa enforc ava todo m arinheiro da Cornualha que
conseguia capturar. Em Whitehave n, Tristão fingiu ser um com erciante e
esperou a chance de conquistar a Princesa Isolda. Certo dia, ouviu-se o rugir de
um terrível dragão que assolava o interior da Irlanda, e o rei prom eteu dar sua
filha, Isolda, em casam ento ao cava leiro que derr otasse aquele m onstro. Ao
saber disso, Tristão não perdeu tem po; rapidam ente c olocou a arm adura, m ontou
o cavalo e parti u para e nfre ntar o dragão.
Tão violenta er a a fera que a lança de Tristão partiu-se contra ela e seu cava lo
foi morto pelo fogo que o dragão expelia. Tristão afundou sua espada na região
do pescoço, onde o dragão não tinha escamas, e o monstro tombou morto. Isolda
encontrou Tristão, ferido e envenenado, perto do ca dáver fum egante do dragão.
E assim, mais uma vez, Isolda cuidou de Tristão com ervas cicatrizantes e o
trouxe de volta do umbra l da m orte.
Certo dia, Isolda e suas dam as prepar aram para Tristão um banho quente de
ervas. Enquanto ele estava todo satisfeito na água , ela se pôs a polir seu escudo e
a limpar o sangue do d ragão na sua espada, cum prindo os devere s que um a
donzela tem para com seu hóspede. De repente, deu c om os olhos numa pe quena
depressão na lâm ina. Sua c abeç a girou e ela trem eu; foi à procura do pequeno
estilhaço que tinha retirado da cabeça de seu tio, Morholt, e que ela guardava
num re licário. O fra gme nto de aço e ncaixou-se na depre ssão da espada de
Tristão. Ela bradou: "Vós sois Tristão, o m esm o que a ssassinou meu tio!" Ergueu
a espada pa ra m atá-I o, ma s Tristão ac alm ou-a e I solda, dividida entre a
espera nça do am or e os votos de vingança , fez uma pa usa pa ra ouvir:
"Filha do rei... um dia duas andorinhas voaram para Tintagel levando um fio dos
vossos cabelos de ouro, e eu achei que elas me traziam bons augúrios e paz, por
isso cruzei os mares à vossa procura. Enfrentei o monstro e seu veneno. Vede,
entre os fios de ouro do meu brasão, vosso cabelo foi entrelaçado: o ouro
escure ceu, m as o c abelo cont inua brilhando."
Quando Isolda ouviu estas palavras, abaixou a espada e foi olhar o brasão de
armas de Tristão, encontrando lá o fio de seu cabelo dourado. Guardou silêncio
por longo tempo, depois beijou-lhe os lábios.
Pa ssados alguns dias, Tristão foi ter à presença do rei e da r ainha da I rlanda e,
diante de todos os fidalgos irlandese s, reve lou sua identidade e ofereceu os ricos
presentes do Rei Mark. Contou-Ihes que derrotara o dragão para compensar a
morte de Morholt, e sugeriu que I solda a Bela, de sposasse o Rei Mark e viesse a
ser rainha da Cornualha. Então haveria paz e aliança perpétua entre os dois
reinos, o que poria fim à guerr a. O r ei e seus barões ficara m satisfeitos com as
suas palavra s e c om os presentes ofer tados, e sent iram -se f elizes pela honraria
concedida à P rincesa Isol da.
Mas Isolda a Bela fremia de humilhação e de dor. Tristão, tendo-a conquistado,
agora a de sdenhava; a be la história do cabelo de ouro não pass ara de um a
mentira! Era a outro que ele a entregava...
Assim, .pelo bem do Rei Mark, Tristão, usando a f orça e a astúcia, conquistou a
rainha dos cabelos de ouro.. .
Ele, o raptor, viera até a I rlanda... Usando um a rdil, afastara- a de sua m ãe e de
sua terr a: não tivera a dignidade de tomá -Ia para si mesm o, e agora a estava
levando com o sua pre sa, sobre a s ondas, para a terr a inimiga.
A Rainha Feiticeira colheu flores, ervas e raízes; embebeu-as em vinho e sobre
esta poção lançou um sortilégio: aqueles que a tomassem juntos se apaixonariam
com toda a força dos sentidos e do pensam ento, mas a poçã o perderia seu e feito
depois de três anos . Em seguida, entregou-a sec retam ente a Brangien, cr iada de
IsoIda, e enca rre gou-a de ofer ecer a poção somente ao Rei Mark e a Isolda na
noite de núpcias, quando estivessem sozinhos.
Feitos todos os preparativos, IsoIda embarcou no navio de Tristão e partiram para
a Cornualha. Mas os ventos não aj udaram e eles tivera m de anc orar num a
pequena ilha onde desembarcaram todos, menos Tristão, Isolda e uma j ovem
criada.
Tristão ouviu IsoIda, sozinha em sua tenda armada no convés, chorando
am argam ente a perda de sua terra na tal. Então, foi até ela e fa lou-lhe
docem ente, procurando cons olá-I a. Mas ela nã o quis enca rá-Io e respondeu-lhe
com poucas palavras.
Como o sol estivesse quente, e les pediram algo para beber; a criada, que er a
pouco m ais que um a criança, encontrou a bilha de vinho fresco que Brangien
havia e scondido e levou-a a té eles, que be bera m sofre gam ente, pois estavam
com sede.
Horas mais tarde, Brangien encontrou Tristão e Isolda, ainda sentados no mesmo
lugar, olhando-se fixam ente no f undo dos olhos, enlevados, presas do fe itiço. Ela
viu a bilha à sua frente e um calafrio percorr eu-lhe o corpo, po is era a bilha que
continha o vinho de ervas.
Durante doi s dias a poção do am or c irculou nas veias de Tristão e e le sofreu a s
agonias do amor, ora como se fosse picado por espinhos pontiagudos, ora como
se estivesse cercado de flores belas e perfumadas, com a imagem de Isolda
sem pre flutuando diante dos seus olhos. Finalm ente, no terc eiro dia, e le foi ter
com ela na tend a.
"Entrai, m eu senhor", disse ela.
"Mas por que me chamais de senhor", perguntou ele, "se na verdade sois minha
rainha?"
"Não", disse ela, "pois acontece que eu - e contra a minha vontade - tornei-me
vossa escra va. Antes j am ais tivésseis vindo às nossas pra ias! Ah, se e u vos tivesse
deixado m orre r ao invés de vos cura r! Mas então e u não sabia... eu não sabi a
com o seria atorm entada noite e dia." - Tristão a fitava com o se ela foss e um a
visão radiosa.
"Isolda", m urm urou ele, "o que nã o sabíeis? Isolda, o que vos atorm enta?"
"O am or que sinto por vós", disse ela. Então ele beij ou-lhe os lábios e ape rtou-a
contra si. Brangien surpreendeu-os assim enlaçados e exclamou: "Contende-vos!
Voltai atrás, se a inda puder des... Mas, ah! ne sse ca minho não há r etorno, pois o
Amor e sua força já vos impelem e jamais podereis outra vez conhecer alegria
sem dor... por minha causa, naquela faç a, bebestes não apenas am or, ma s uma
mistura de a mor e m orte."
Mas Tristão abra çou Isolda, e um desej o maior que a vontade huma na levou-o a
exclamar:
"Então, que venha a Morte!"
Mal acabara de dizer tais palavras e o vento avivou-se, enfunando as velas, e a
embarcação começou a singrar as ondas espumantes. Naquela noite escura,
enquanto o barco, ondulando sobre as águas, os transportava velozmente para o
litoral da Cornualha, os dois entregaram-se totalmente ao amor.
6 - O Vinho de Ervas
Siempre fuiste
historia de Ia raz.ón
un amor Como deno
mihay
existir
otroAdorarte para
igual, Que memihiz.o
fué com
religión...
prenderEs Todo
la el
bien, todo el mal; Que le dió luz. a m i vida Apagandola después... Ay ! Qué vida
tan oscura !
Sin tu amor no viviré.
E Isolda? Antes de beber a poção, ela odiava Tris tão. Ele não ape nas er a o
assassino de seu tio, com o tam bém o assassino de seu orgulho, pois a conquistara ,
ganhara sua a feiçã o e depois a traíra. Agora, com o vinho circulando em suas
veias, ela diz: "Sabeis que sois meu amo e senhor, e que sou vossa escrava."
Apesar da c ena nos ser fam iliar, apesar de a term os vivenciado em nossas
próprias vidas, existe algo de estranho nela. Tristão e Isolda estão "apaixonados",
mas nós nos perguntamos se eles estão apaixonados um pelo outro. Eles estão
fascinados, mesmerizados, apaixonados por uma visão mística - uma visão de
algo separ ado e distinto deles m esm os, algo que e les vêem atravé s da m agia do
vinho. O "am or" deles não é o am or huma no comum que decorre de nos
conhece rm os com o indivíduos. O símbolo nos mostra que é um am or "má gico",
"sobrenatural" - não é pessoal, nem voluntário. Ele vem de fora dos amantes e os
possui à revelia. Isso nos lem bra de algo que as pessoas freqüentemente dizem:
"Eles e stão a paixonados pelo am or."
O m ito diz que o am or rom ântico tem as m esm as ca racterísticas da poção do
amor, e ela é tanto natural quanto "sobrenatural". Se em parte é constituída de
vinho e ervas da terra simbolizando o lado huma no, comum do am or rom ântico -
em parte é tam bém form ada por sort ilégios e feitiçaria. O que, no am or
romântico, é evocado por estes símbolos?
Sabem os que e xiste algo de inexplicável no rom ance . Quando exam inam os os
sentimentos que nos assaltam , sabem os que não é apenas c ompa nheirismo ou
atraç ão sexual, e que não é aquele a mor ca lmo, dedicado, não-rom ântico que
freqüentemente vemos em casamentos e relacionamentos estáveis. É algo mais,
algo diferente.
Quando estamos "apaixonados", sentimo-nos completos, como se uma parte que
nos faltava nos tivesse sido devolvida; sentimo-nos enaltec idos, com o se de
repe nte nos tivéssem os elevado acim a do m undo com um. A vida torna-se
em ocionante, ganha um a im pressão de gl ória, ê xtase e transcendência.
o am or rom ântico, querem os ser possuídos pelo am or, querem os pairar nas
alturas e encontrar o m áximo de significado e de re alização na pessoa que
am am os. O que busca mos é a sensação de plenitude.
Se perguntarmos em que outro lugar procuram os estas sensações, exis te um a
resposta impressionante e perturbadora: na experiência religiosa. Quando
procuramos algo maior que nosso ego, quando vislumbramos a perfeição, um
sentido de integridade e de unidade interiores, quando alm ej am os erguer- nos
acima das coisas pequenas e r elativas da vida pessoal para chega r a algo
extraordinário e sem limites, isto é uma aspiração espiritual.
Def rontam o-nos aqui com um para doxo que nos deixa a turdidos, m as não
deveríam os ficar tão surpre sos ao descobri r que o am or rom ântico e stá
relacionado com a aspiração espiritual - até mesmo com nosso instinto religioso -
pois já sabem os que o "am or cortês", nas suas srcens, há muitos séculos, foi
concebido como um amor espiritual que elevava o cavaleiro e sua dama acima
da vida mesquinha e grosseira, para vivenciar um outro m undo, uma experiência
da alm a e do espírito. O am or rom ântico teve seu in ício com o um c am inho de
aspiraç ão e spiritual; inconscientem ente, hoje, procura mos este m esm o ca minho
tam bém através d o am or româ ntico.
o simbolismo da poção do am or, depara mo-nos subitam ente com o maior
paradoxo e o mais profundo mistério da nossa cultura ocidental: o que buscam os
incessantem ente no am or rom ântico não é a penas o relacion am ento ou o am or
humano, mas buscamos também uma experiência religiosa, uma visão de
plenitude. Aqui está o significado da magia, da feitiçaria, do sobrenatural na
poção do am or. Existe outro m undo fora da visão do ego: é o reino da psique, o
reino do inconsciente. É lá que vivem nossa alma e nosso espírito, pois, ignorados
pelo pensam ento ocidental, ambos são realidades psicológicas que. vivem em
nossa psique sem nosso conhecimento. É lá, no inconsciente, que vive Deus, seja
Deus quem for para nós com o indivíduos. Tudo o que ha bita do outro lado, no
mundo do inconsciente, aparenta ser, para o ego, algo exterior ao domínio
huma no natural; é m ágico, portanto, é sobrenatural. Par a o e go, a experiência
desse outro mundo não é diferente da experiência religiosa. O impulso religioso,
a aspiração, significa uma busca da totalidade em nossa vida, a totalidade do seIf,
esse se If que vive f ora do mundo do ego, no inconsciente, na vastidão invisível da
psique e do símbolo.
Eis aí o significa do desses símbolos na nossa história, e eis aí a c have secreta que
desvenda o m istério do am or rom ântico.
Voltemos à barca de Tristão: lá está ele, inteiramente abrasado devido ao vinho.
O que é este fervor em seus olhos? Isolda está a seu lado, mas os olhos dele fitam
algo distante eles fitam o infinito! Ele vê, não Isolda, mas uma visão. O que é este
tremor em seus me mbros? Se e ntrarm os na c ela de São J oão da Cruz,
encontrare mos esse m esmo ol har, ess a m esma expressão de c ontem plaçã o
mística. Se form os levados para o outro lado do ma r a um tem plo da índia,
encontraremos um hom em santo, no me smo estado d e êxtase, diante de um a ltar
de Shiva. É o m esm o instinto, o m esm o fer vor intenso, e que leva a o m esm o fim:
a transcendência.
O am or rom ântico sem pre e steve inextrica velme nte ligado à aspiraç ão e spiritual.
Isso é tão óbvio, que pareceria desnecessário dizê-Io, no entanto todos desviamos
o olhar e não vem os o óbvio. É uma ver dade próxima dem ais para ser vista.
Basta olhar as histórias de a mor, a poesia, a s cançõe s que vê m da e ra rom ântica
e c onstatarem os que o home m apaixonado fez da m ulher um símbolo de algo
universal, algo interior, eterno e transcendental. O que ele vê na mulher leva-o a
sentir que finalmente está realizado, que encontrou o significado da vida. Através
dela, ele enxerga uma realidade e special e sente-se pleni ficado, enob rec ido,
lapidado, espiritualizado, enaltecido. Ele é um novo homem, melhor e mais
completo.
Os grandes po etas rom ânticos não ocul tam este fa to; eles o proclam am . Os
trovadores e os cava leiros dos tem pos de Tristão o proclam avam aber tam ente.
Ao contrá rio de nós, que nos consideram os tão sofisticados, eles e stavam
perfeitamente conscientes do que procuravam através do amor romântico. Eles
preferiam não ver a mulher com o mulher, m as sim com o um símbolo do eterno
feminino, da alma, do amor divino, do enobrecimento espiritual e da plenitude.
Podem os discutir se e sta visão da m ulher a enobrec e ou se a r ebaixa à condição
de símbolo de algo que e la não é, um ícone que o home m rom ântico usa para
meditar sobre sua visão do eterno. Mas, por enquanto, basta-nos constatar que as
coisas são assim.
a c ançã o de a mor m exicana, c itada no início deste capítulo, encontramos tudo
isso condensado em algumas linhas. Na sinceridade de sua poesia ingênua, o
autor nos mostra o que freqüentem ente não re conhece mos: "Sem pre f oste a
razão da m inha e xistência; adorar -te, para mim, foi re ligião." Quando um ser
huma no se torna o obje to dessa a doraçã o e adquire o poder de "dar luz à nossa
vida" , ou de apagar e ssa m esm a luz, então adotam os o ser a mado com o imagem
e símbolo de Deus.
Esta é a de scrição m ais simples e direta do que é o am or rom ântico. O que se
esconde por trás do am or rom ântico é a realidade da aspiração espiritual; a
verdade que o home m ocidental inconscientem ente e involutariam ente procura
no amor romântico é a verdade intrínseca de sua própria alma. O homem
ocidental, sem o perceber, está envolvido numa busca da totalidade e, contra sua
vontade, é atraído inexoravelmente por uma visão do universal e do eterno. Mas
é na ima gem da m ulher, vista pelas lentes do am or rom ântico, que ele conce ntra
sua visão e para ela dirige sua busca.
Por que os ho mens de hoje não querem adm itir o que os homens de antigam ente
proclam avam, e até idealizavam, abertamente? É porque não queremos
conscientem ente a brir e spaço, em nossa vida, par a a aspiração espiritual. É algo
fora de moda, não compreendemos o que é e não o admitimos. Não estamos
conscientem ente interessados em plenificação, ma s sim e m produção, em
controle e e m poder; não a creditam os no espírito, acr editam os apenas no q ue é
físico e sexual. Mas o nosso anseio pela alma infiltra-se por onde menos
espera mos nas proj eções, nos ideais, nos êxtases e desesperos, nas paixões e nas
renhidas lutas do am or rom ântico. P or fa lta de um outro ca nal, de uma outra
forma, que lhe permitisse ser vivenciado na cultura moderna, nosso instinto
religioso migrou quase que completamente para o único lugar onde tem
permissão para viver sub rosa 7: o amor romântico. É por esse motivo que
acham os a vida inteiram ente sem sentido a m enos que e stej am os "apaixonados",
e é por isso que o a mor rom ântico tornou-se a maior força psicológica em nossa
cultura.
Os mitos estão repletos de paradoxos porque a realidade é, em si, paradoxal. A
palavra grega parádoxon significa literalm ente "contra-senso", ou sej a, um
paradoxo vai contra o senso comum da realidade. Gostam os de acreditar que j á
sabemos tudo, que já conseguimos imaginar tudo, e é por isso que o verdadeiro
paradoxo é sem pre doloroso. O paradoxo entra em conflito com os nossos
preconceitos, desafia nossas premissas e insulta nossas "verdades" coletivas. É
por isso que preferimos chamar os m itos de "contos de fada" e relegá-Ios às
crianças. É por isso que gostamos de interpretar os mitos como sendo fantásticas
invenções de mentes primitivas e infantis. Se os considerarmos seriam ente, com o
afirm ações da r ea lidade que eles são, então vere mos todos os nossos côm odos
chavões, todos os nosso velhos e sedim entados conce itos de "verdade" serem
incomodamente questionados.
Exam inar o mito à procura de sabedoria si gnifica " tornar à matéria prim ordial
da psique. Todos os símbolos contidos nos sonhos e nos m itos só nos podem soar
paradoxais, pois sua finalidade, seu papel psicológico, é abrir cam inho através do
"conhecido" e trazer do inconsciente a lgo de novo para nos ensinar. lnterpretar
um sonho ou um mito, buscando apenas a confirmação de nossas opiniões
arraigadas, só nos trará confusão. Os símbolos não fluem do inconsciente para
nos dizer aquilo que j á sabe mos, m as sim para nos mostrar o que a inda tem os
para aprender.
É assim também com a poção do amor. Seria muito mais fácil explicá-Ia como
uma fantasiosa superstição da mente primit iva do século XII! A poção do am or é
o para doxo dos para doxos! Nada poderia ir m ais contra o senso com um do que
afirm ar que é o nosso próprio instinto re ligioso, nossa própria busca inconsciente
do "outro m undo", que dá ao a mor rom ântico sua m agia, seu ar dor sublime e sua
ânsia pelo transcendental. Nada poderia violar mais nosso bom senso.
Supomos saber o que é o am or rom ântico, m as não sabem os nada; supomos
compreendê-Ia perfeitamente, embora ele seja de fato incompreensível; nós nos
supomos capazes de controlá-I o, quando na verdade ele nos possui. Nossa cultura
nos ofere ce todo um conj unto de verdade s sobre o rom ance que nós,
inconsciente e automaticamente, ace itam os. Nunca as questionam os e ficam os
irritados quando alguém o faz. Mas eis que nos defrontamos com o paradoxo e
não podemos evitá-Io: o amor romântico tenta vivenciar o "outro mundo" através
de um êxtase ardente, envolvente, que nos preenche e nos faz sentir
psicologicam ente inteiros, totalmente plenificados e em contato com o
significa do da vida.
Se nos deixam os mistificar por isso, é a ssim m esm o, o am or rom ântico é um
mistério. É um sistem a ener gético que irrompe das profund ezas desconhecidas e
inexploradas do inconsciente, de uma parte de nós que não vemos, não
com pree ndem os e não podem os reduzir ao senso com um. Como a poção do
am or, é a lgo que nos arre bata contra nossa vontade, nos vira de c abeç a par a
baixo, transtorna nossa vida, reorganiza nossa escala de valores. Esquecemos
nossos preciosos planos, abrimos mão de nossas crenças e abandonamos o tipo de
vida a que estávam os apegados .
É essa c aracterística "fora- de-c ontrole" do am or rom ântico que nos dá a pista
mais profunda par a a sua verdade ira naturez a. Esse deli rante e irresistível
"apaixonar-se" por alguém é um incidente que se processa nas profundezas do
inconsciente e acontece e m nossa vida. Não o com pree ndem os, não o
controlam os e não som os nós que o f azem os acontecer: é a lgo que simplesm ente
acontece.
É por isso que o e go do home m ocidental tem tanta dificuldade e m lidar c om o
am or r omâ ntico: por definição, é algo "fora- de-c ontrole". É a lgo fora de c ontrole
porque é justamente isso o que, secreta e inconscientem ente, queremos dele -
que nos leve a o êxtase, que nos carre gue para além das fronteiras estéreis d o
mundo pequeno e estreito do ego. Esse rompimento de laços, essa transcendência
do ego, é um a "experiência r eligiosa" e é isso que procura mos. Os home ns
ocidentais aprendem que o ego masculino deve ter controle sobre tudo que está
dentro e fora dele,. O único poder que resta na vida, capaz de destruir a ilusão de
"controle" e im pelir o home m a ve r que e xiste a lgo além de sua com pree nsão, é
o am or rom ântico. A igreja e a religião c onvencional há m uito deixaram de
am eaçar e ssa ilusão de controle do homem ocidental, pois ele r eduz a religião a
chavões ou a ignora c ompletam ente. Ele não procura encontrar sua alma na
religião, nem através da experiência e spiritual, nem em sua vida interior; m as
essa transcendência, esse m istério, essa re velaçã o ele procura na m ulher. Ele vai
se apaixonar.
Temos hoje uma visão preconceituosa da religião, em parte porque isso que
passa por religião já deixou de ter significado para muitos de nós. Ao ,vislumbrar
a psique como alma, como realidade, Jung nos leva de volta às raízes da religião.
Ele descobriu que a estrutura psicológica de cada indivíduo inclui uma função
"religiosa" independe nte. Isto não quer dizer que exista um a necessidade de se
seguir um credo ou um dogma em particular. Mas significa que ca da ser huma no
vem com o impulso psicológico inato para encontrar um significado na vida.
Todos nós sentimos algo dentro de nós que nos leva a crer na possibilidade de nos
tornar- mos seres c ompletos, de ver o significado re al da vida, de virm os a nos
conhecer totalmente. Jung observou que a maioria dos ocidentais, apesar de
conscientem ente ac reditar apena s no que é físico e rac ional, tem sonhos e
fantasias ca rre gados de símbolos com as m esm as ca racterísticas que a s pessoas
costuma vam procurar na vida re ligiosa: símbolos que evoca m um sentido de
totalidade e a visão de um mundo que transcende o ego.
ós podemos examinar a geografia da psique e entender o lado religioso da vida
de uma nova m aneira; é a m esma fac uldade reli giosa, porém abordada c om
uma linguagem diferente. O e go, essa parte c onsciente do ser, é c omo um a ilha
no vasto oceano da psique: lá, no oce ano do ser , fora dos limites do m undo do ego
e a lém do que ele c onhece ou pode ver , estão as partes que fa ltam ao nosso ser
total. Somos seres psicológicos: nossa maior parte não é de natureza física, mas
psíquica, e a maior parte da psique está no inconsciente. Ao contrário das noções
populares que tem os de psicologia, as partes desconhecidas e inconscientes do
nosso ser total excedem em muito as partes consci entes, Não t em os a sensação
de plenitude e de realizaç ão, e não nos sentimos inteiros dentro deste peque no
mundo do ego. Sentimos que a lém dele e xiste mais, muito m ais, apesar de não
saberm os onde procura r nem o que procura r.
Aquilo que buscamos vem das ca madas profundas d a psique e se manifesta
com o um símbolo, algo que antigam ente se cham ava de imago dei: a im agem
divina. A imagem divina afIora da psique manifestando o arraigado anseio que
nos impele à totalidade e à unidade. Esta ima gem que surge e spontanea mente - a
repre sentação daquilo que procura mos - é a fonte primordial da intuição que nos
diz que deve existir algo m ais eleva do do que este e go; algo ca paz de reunir o
total da vida, o total dos fe nômenos, e nos desvelar o significa do da e xistência.
Isto cria e m nós um sentir de que a visão unitiva é possível.
Jung nos diz que a necessidade de explorar as fronteiras do inconsciente e a
nece ssidade de ter um a vida religiosa são a mesm a c oisa. Isto era algo bem
conhec ido nos tem pos antigos:
"Conhec er o home m é o início da plenitude, m as c onhecer a Deus é a plenitude
perfeita." Clem ente de Alexandria diz no Paedagogus: "Portanto, tal com o
parece, o maior de todos os ensinam entos está em conhecer-se a si mesmo; pois
quando o homem conhece -se a si mesm o, ele conhece a De us." E Monoimos, na
sua carta a Theophrastus, escre ve: "Busca por Ele fora de ti e de scobre quem é
que comanda tudo dentro de ti, dizendo: meu deus, meu espírito, meu
entendime nto, minha a lma , m eu corpo; e com pree nde por que ra zão existe dor e
alegria, e amor e ódio... e por que te irritas quando não querias te irritar, e te
apaixonas quando não querias te apaixonar. E, se observares atentamente tais
coisas, tu O enc ontrarás dentro de ti, o Um e o Todo." (Jung, Aion, p. 222).
Antigamente, os ocidentais vivenciavam a imagem divina através da religião,
através da contem plação m ística, em rituais carre gados de poder si mbólico, na
imagem da igrej a tradicional, na P alavra revelada, no s santos, na c omunidade de
fiéis. Recentem ente, porém , esses veícul os tradicionais da im ago dei per dera m
seu valor. Se nos perguntarmos os motivos, já teremos uma parte da resposta na
história de Tristão: a mentalidade patriarcal da nossa sociedade é inerentemente
parcial, dedicada a vivenciar o lado masculino da natureza hum ana em
detrimento do fem inino e e m detrimento da totalidade. Ne ssa c oncepçã o
rigidam ente fec hada e m si mesm a, quase nada pode penetrar . Somos
impermeáveis ao inconsciente, aos sentimentos, ao feminino e à nossa própria
alm a. Ne ssa ve rdadeira armadura que usam os em nossos dias o único ponto onde
somos vulnerá veis, a única brec ha para a nossa alm a, é j ustam ente o am or.
A poção do amor significa que o mundo sobrenatural, abruptamente, invade o
mundo natural através do am or rom ântico - o f ogo que desce dos céus! O m undo
da alma e do espírito, a força irresistível da potencialidade religiosa da psique,
abruptam ente, invade o m undo com um dos relacion am entos huma nos. Aquilo
que sem pre de sej am os - a visão da unidade e do suprem o propósito - nos é, de
uma só vez, desvelado na form a de outro ser hum ano.
É uma séria descoberta saber que pegamos nosso instinto de totalidade e o
proj etam os inteiramente nos nossos am ores. Retiramos a imago dei do tem plo,
do céu, e ra pidam ente a c olocam os aqui no nosso meio, ence rra da no
relacionam ento entre dois sere s huma nos. Essa é a incrível inversã o do instintos
huma nos, o important e redirecionam ento das e nergias humanas, que foi
realizado pe la feitiçaria da poção do amor. Ao nos sentirm os possuídos por nossos
am ores, preso s a um poder que nos subjuga com pletam ente, redescobrimos
nossa vida r eligiosa. Enquanto estam os "apaixonados" por alguém , o m undo se
reve ste de tam anho significado, com o nenhum mortal até hoj e c onseguiu
proporcionar. Mas quando nos "desapaixonamos", o mundo instantaneam ente
parece ser desolado e vazio, apesar de continuarmos ao lado do m esmo ser
humano que antes nos inspirara tanto êxtase.
É por isso que homens e mulheres exigem coisas tão impossíveis de seus
relac ionam entos: nós realm ente ac reditam os, inconscientem ente, que esse ser
huma no mortal tem a obrigação de nos ma nter sem pre f elizes, de tornar nossa
vida significa tiva, vibrante, plena de ê xtase!
Certa ve z alguém disse: "O com eço da sabedori a é a real compre ensão do
óbvio." Se par arm os de be bericar da poção do am or o suficiente pa ra ver nela
um símbolo, talvez possamos enxergar o que é evidente. À medida que
continuarm os nossa viagem mística com Tristão e I solda, vivere mos com eles a
história de todos os enamorados que provaram do vinho mágico. Veremos com
maior clare za com o m isturam os nossa a spiraçã o espiritual - nossa ânsia na busca
do divino - com nossos relacionamentos humanos. Este é o conhecimento secreto
que existe por trás do mistério do am or rom ântico: com o respeitar e com o
conviver c om essas duas poderosas ene rgias que m isturam os, de m aneira tão
deliciosa, embora tão arriscada, no vinho do amor.
7 - Isolda a Bela
o decorr er da nossa viagem , vam os nos depar ando com muitos aspectos do
fem inino interior e descobrimos o papel que ca da um deles tem a desem penhar,
tanto na psicologia masculina, quanto na dinâmica do amor romântico. Já
encontramos Blanche fleur, que simboliza o destino do fe minino no nosso mundo
patriarcal. Eis, agora, Isolda a Bela, a mais poderosa, a mais universal presença
fem inina no m undo m oderno e talvez por este m esm o m otivo - dentre todas, a
mais difícil de ser c ompre endida.
Princesa de uma ilha m ística, filha de um a rainha f eiticeira, hábil nos mistérios
da magia e do espírito, Isolda é em parte feiticeira e em parte mulher comum,
parcialmente hum ana e parcialmente divina. Ela é o ideal interior do eterno
fem inino, a deusa que vi ve dentro d a psique do home m, uma imagem de beleza
e de perfeição que o inspira a buscar o significado da vida.
Jung deu um nome especial a este aspecto de nos sa psique; ele o cha mou de
anima. Literalmente, anima significa "alma" em latim, pois Jung descobriu que a
anima personifica a par te da psique que cha mam os de "alma ". Isolda a Bela,
surge nos sonhos e nos mito s dos homens fre qüentem ente com o uma figura de
beleza sobre-hum ana, de expressão divina. É exatam ente essa parte de si
mesmo, a anima, que Tristão vê em Isolda no instante seguinte ao ter sorvido a
poção. É na anima que o hom em sente que encontrará o significado da vida, a
rea lização com o ser, a plenitude e uma vivência che ia de êxtase.
O princípio fe minino dentro de um home m é, a cim a de tudo, um princípio de
"ligaçã o"; ma s a a nima leva o homem a um tipo especial de li gaçã o: ela
personifica a capacidade que ele tem para se relacionar com o seu self interior,
com o mundo interior de sua própria psique, com o inconsciente. Curiosamente,
ela o a fasta dos relac ionam entos humanos, assim com o afa sta Tr istão de sua
lea ldade pa ra com o tio, tirando-lhe o senso de de ver e de obrigação. Num
determ inado estágio de nossa evolução, a ligaçã o que m antem os com nossa
alma, e a que m antem os com a nossa esfera humana pess oal, entram em terrível
conflito e este c onflito é uma prova de f ogo para se c hegar à conscientização.
As mulheres têm uma estrutura psicológica equivalente no seu interior, a que
Jung cham ou de animus, a alma da m ulher, da me sma forma que a nima é a
alma do homem . O animus, geralmente, s e m anifesta c omo uma força
masculina e surge nos sonhos das m ulhere s com o uma figura masculina. O
relac ionam ento da m ulher c om o animus é difere nte do relac ionam ento que o
homem mantém com a anima, m as existe um a coisa que é com um a am bos: o
am or româ ntico sempre consiste na proj eç ão da imagem da alma . Quando uma
mulher se a paixona, é o animus qu e e la vê proje tado no homem mortal que e stá
diante dela, e quand o um home m bebe da po ção do am or, é a a nima, a sua a lma,
que ele vê sobrepos ta à im agem da m ulher.
A proj eção som ente pode ser dissolvida quando o filho vê que no re ino da sua
psique existe uma imago... da filha, da irm ã, da am ada, da deusa celestial e da
Baubo ctônica 8. Toda m ãe e toda m ulher é forç ada a personificar esta eterna e
onipresente imagem , que corresponde à r ealidade m ais profunda do homem . Ela
lhe pertence, esta perigosa imagem da Mulher; ela substitui a lealdade à qual,
devido a c ertas c onveniências da vi da, ele de ve à s vezes re nunciar; ela é a
com pensaçã o, extremam ente nec essária, pelo s riscos, pelas lutas e pelos
sacrifício s que ger am tantos desapontam entos; ela é o conforto para a amargura
da vida. E, ao mesmo tempo, ela é a grande ilusionista, a sedutora que, através de
May a, o ar rasta par a a vida - nã o apenas para os aspectos razoáveis e úteis da
vida, m as tam bém para seus assustadores par adoxos e a mbivalências, onde o
bem e o mal, o sucesso e a ruína, a esperança e o desespero, se equilibram
mutuam ente. Um a vez que e la é para o homem o perigo máximo, é o m áximo
que ela exig e do homem , e se ele tiver e ste m áximo dentro de si, ela o rec eber á.
Esta imagem é "Minha Senhora Alma" (Jung, Aion, p. 24).
Um a das m anifestações peculiare s do nosso mundo oci dental, é que não tem os
mais qualquer idéia de term os uma alm a. Quando nos perguntam o que á a alma,
nossa m ente fica e m branco. A palavra a lma não evoca sentime ntos ou imagens;
não existe nada em nossos sentimentos ou em nossa vida a que possamos nos
ref erir, dizendo: "Eis a m inha a lma - aí está ela." É uma pa lavra usada por
filósofos, teólogos e poetas, mas não sabemos o porquê e, secretamente,
duvidam os que e les o saibam . "Alma " tornou-se um a simples figura de retórica,
um sentimentalismo.
A psicologia de Jung nos leva de volta à alm a com o uma rea lidade c oncreta,
passível de ser conhecida, descrita e vivenciada. Aqui está o ponto de interseção
entre a vida interior encontrada nas religiões antigas e a vida interior da
psicologia dos arquétipos; ambas comprovam a realidade da alma, e ambas
sabem que é a penas através da a lma que encont ramos o inconsciente, a vida
interior, o lado que está além do ego e fora do âmbito estreito de sua visão
superficial.
Existem três coisas que Jung disse a respeito da Alma, que nos podem guiar
enquanto em pree ndem os esta j ornada c om Tr istão e Isolda. Em prim eiro lugar,
a a lma não é uma figura de r etórica ou uma superstição: a a lma é um a r ealidade
psicológica, um órgão da psique; ela vive em nosso inconsciente, mas afeta
profundam ente nossa vida. Ela é aquela parte do inconsciente que - embora fora
do ego, fora do seu raio de vi são - funcio na c omo m ediadora entre o e go e o
inconsciente. Segundo Jung, a alm a é o órgão que re ce be a s imagens do
inconsciente e as transmit e pa ra o consciente, e la é "tanto um receptor, com o um
transmissor".
de
remMaio e ontes
anesce Ha llowee n, sera
sec ulare dema ntigas
srcinalm ente c elebraç
re ligiões que foraões
m re ligiosas; são
suprimidas pelo
cristianismo. O m esm o tam bém é válido para ideais e convicções. Muitas das
posturas e das crenças das antigas religiões foram consideradas heresias e
externam ente r eprimidas, m as c ontinuam vivendo, inconscientem ente, dentro de
nós e de nossa cultura por um motivo: correspon dem a nece ssidades e realidades
psicológicas hum anas, que não são satisfeitas nem pela ortodoxia nem pelos
conceitos "oficiais".
Eis uma form a válida para se exam inar o am or românti co com o uma força
psicológica: é o veículo que nos traz de volta o que havia sido banido de nossa
vida e de nossa cultura há muito tempo. A natureza humana é pródiga em
recursos; inconscientemente ou não, sempre arranjamos uma maneira de nos
agar rarm os àquilo que nece ssitam os.
Um a da s mais poderosas entre a s primeiras re ligiões foi o movi mento
maniqueísta, cuj o nome deriva do profeta persa Manes. Na Europa, est a r eligião
se tornou o "Catar ismo", pois seus seguidores se auto-denom inavam "cátar os", o
que significa "puros". No século XII , cidades e províncias inteira s no sul da
França, apesar de serem nominalmente cristãs, praticavam o catarismo, e uma
boa parte da nobreza européia era formada por cátaros. Na França, o movimento
foi conhecido com o here sia albigense, por ter se c entralizado na c idade fra ncesa
de Albi.
Um a de suas cre nças bás icas e ra de que o " am or verdadei ro" não era o am or
humano comum entre m arido e m ulher, ma s sim a a doraç ão de uma mulher
redentora, uma m ediadora ent re De us e o homem , que rec ebia c om um beijo
sagrado todo "puro" que che gava a o cé u, e e m seguida c onduzia a ele, ou a ela,
até o Reino da Luz. Em contraste com este amor "puro", a sexualidade humana
com um e o c asam ento eram coisas bestiais e não-espi rituais. Os cátaros
acr editavam que o am or do homem pela m ulher deveria ser uma alegoria
terrena do seu amor espiritual pela Rainha do Céu. 9
9 - Astúcia e Força
ter umasequer
houve rainha,uma
e durante tod feminina
presença os esses anos, desde
na corte da aCornualha.
morte de Blanche
Mas o RfIe ur, nãohão
ei Mark
quer ca sar-se, ele não desej a um a esposa ou uma rainha. Sobre Isolda a Bela, ele
com certeza ouve fa lar, porém, não dem onstra m ais intere sse que o própri o
Tristão. Assim, o rei e seu sobrinho retornam à rotina, contentando-se em
organizar justas sangrentas, vencer guerra s, executar inimigos, m atar dragões e
tantos outros passatem pos ma sculinos. E quando Tristão retorna à Irlanda, nã o é
para procurar Isolda pelo que ela é ou representa para ele, nem muito menos
porque ele a valorize ou queira com ela ter algum tipo de relacionamento. Ele vai
tal qual um pirata ao ataque, po r "astúcia e forç a", para arre batá-Ia com o um
despojo de ba talha.
Por que Tristão pa rte e m busca da Rainha dos Cabelos de Our o? A princípio, seus
motivos parecem ser nobres e altruístas quando diz ao Rei Mark: "Eu arriscar ei
minha vida por vós, para que vossos barões saibam que eu vos sirvo com
lea ldade". Mas, por trás dessas palavras, sabem os realm ente o que ele quer , e e le
quer usar I solda c omo ga rantia na sua disputa com os barões, quer trazê-Ia para
casa com o mais um motivo de glória. Um troféu para sua m asculinidade, prova
de que ele é o mais leal e o m ais bravo dos cam peões da corte da Cornu alha.
Assim é que transformamos as virtudes do herói em defeitos, pois na atitude de
Tristão par a c om Isolda e stá refletida a atitude do homem ocidental em relação à
sua a lma.
Quando nos vemos tão feridos que nada nos pode ajudar, quando não
conseguimos encontrar nada entre os inúmeros truques do ego que possa
restaurar o significado ou a sanidade de nossa vida, então, com relutância,
apelam os para nossa alm a. Como Tristão, finalme nte nos colocaremos à deriva
no inconsciente: finalme nte irem os explorar nossos domínios internos e buscar o
significado da vida. Mas depois de lá termos estado e de termos encontrado a
cura pelas mã os de I solda, ime diatam ente voltam os a ce ntralizar a vida do ego
patriarcal: nossos projetos, nossas linhas de produção, nosso status e prestígio no
mundo exterior. Como Tristão, ficam os exce ssivam ente pre ocupados com as
apar ências: o que é que os outros barões pensam de nós? Quem é o m aior dos
campeões? Quem produz mais? Quem ganha m ais dinheiro?
A recusa do Rei Mark em se casar é um símbolo agoure nto. No m ito ou no sonho,
o fato de o re i não toma r um a rainha e , assim, não ter um herdeiro, si mboliza a
não ac eitação da totalidade, a r ecusa de cresce r, a nã o ace itação do destino que
vem sob a form a de uma criança. Nos v elhos tem pos, as pessoas se
preocupavam quando o rei não tinha geração; eles tem iam que o solo não
continuasse fértil, que as chuvas não caíssem, que as suas famílias tivessem
poucos filhos, que o reino ficasse seco e estéril. Por outro lado, o casam ento do
rei ou da rainha e o nascimento de um herdeiro prov ocava m alegria. Ai nda hoje,
quando um m onarca ou um príncipe gera um filho, principalmente um herdeiro
do trono, o m undo inteiro se m ostra interessado e milhões de pe ssoas se
rej ubilam com o se estivessem pessoalme nte e nvolvidas com essa cr iança . Existe
uma grande energia psicológica subjacente à reação coletiva, frente ao
nascime nto de um a c riança real. Ao nível m ais profundo da psique, o rei e a
rainha simbolizam para nós a e volução do seIf, e o herdeiro rec ém -nascido
simboliza a nova consciência e a força que tem os dentro de nós em potencial.
Sej am quais forem nossas atitudes conscientes em relação à rea leza, é muito
bom lem brar que existe um a realeza arquetípica dentro de cada um de nós. O
símbolo do rei e da rainha dirige nossa consciência para o que existe de mais
elevado e de mais verdadeiro dent ro de nós, e para o potencial que tem os para
realizar a síntese de valores masculinos e femininos.
Assim, a rec usa do Rei Mark em tomar uma rainha nos inform a que a lguma
coisa está faltando na psique do homem ocidental. Ele não apenas perdeu o
fem inino, como tam bém nem sequer está interessado, pois nem ao m enos sabe -
conscientem ente - que o per deu. P erseguimos durant e tanto tem po nossos valores
masculinos e nossos valores exterio res, que passam os a considera r a alm a c omo
sendo uma com plicaçã o desnecessária num m undo masculino ordeiro e
organizado.
Estranham ente, são os bar ões "ma lvados", os inimigos mor tais de Tristão, que
desaf iam esse e stado de coisas. Do ponto de vista de Tr istão, eles são "bandidos"
na psique, m as é sem pre a lguma coisa que consideram os com o sendo ruim em
nós mesmos, que nos impele para a totalidade. É uma ameaça, um grão de areia
na e ngrenagem , algo que per turba o m undo do nosso ego e desarr anj a nossa vida
"tipo linha de produção". Pode ser uma doença, o stress causado por excesso de
trabalho, uma ne urose que surge de repe nte e que perturba nos sa vida, forç ando-
nos a procurar o significado que está dentro daquilo que não conseguimos
explicar. Os sintomas e as seqüelas nos parecem ser "bandidos" que apenas
querem nos causar problemas, mas são estes malvados que nos forçam a sair em
busca da rainha.
Quando finalme nte nos pomos a caminho à sua procura , partimos, com o Tristão,
com "astúcia e força ". Quando a vida fica e stéril, saím os em busca da a nima,
mas nós a querem os sob nossas condições; querem os apropriar-nos del a c omo
um suplemento para o ego, um enfeite para a persona. Queremos que a anima
nos encha de energia, que ilumine nossa vida, que nos dê um significado e uma
direção e que torne a vida m ais em ocionante. Mas não quere mos dela apre nder -
nos termos dela - e não querem os tratá-Ia em term os de igualdade. Tristão quer
usar Isolda c omo gara ntia no j ogo político, usá-Ia para selar a liança s entre e gos
masculinos. Essa é a nossa atitude usual.
Tristão, que nos conta coisas do nosso heroísmo, também nos mostra porque esse
heroismo se per deu. Quando est á no banho de ervas, convence Isolda de sua
devoção, com doces palavras:
"Filha do rei... um dia duas andorinhas voaram para Tintagel levando um fio dos
vossos cabelos de ouro, e achei que e las m e tra ziam bons augúrios e paz, por isso
cruzei os mares à vossa procura. Enfrentei o monstro e seu veneno. Vede, entre
os fios de ouro do meu brasão, vosso cabelo foi entrelaçado: o ouro escureceu,
mas o cabelo continua brilhando." É possível que toda a tragé dia na vida do
home m moderno tenha tido seu início com esse logro fa tal, pois é a si mesm o
que ele e ngana. O que há de belo nas palavras de Tr istão é o fa to de elas estarem
tão c ertas, porém, a tragédia, é que e le só falou da boca par a fora. Se e le fosse
sincero em suas palavras, isso representaria um grande passo evolutivo, uma
reviravolta no ego masculino ocidental, uma construtiva busca do feminino. Mas,
se o nosso antepa ssado patriarc al, Tristão, não fez valer o que disse, quais as
conseqüências desse ato para nós? Será que poderíam os aprender a nos
aproximar do lado feminino da vida com estas m esm as belas palavra s, mas
usando de sinceridade? A anima envia-nos mensagens de paz, mas será que após
séculos de astúcia sere mos capazes de nos aproxi mar dela honestam ente?
Quando Isolda ouve as belas palavras de Tristão, quando fica sabendo que um
dos seus cabelos d ourados está entrelaça do no brasão de le, ela a baixa a espada.
Vai em busca dessa prova de devoção e , pensando tê-Ia encontrado, depõe a
espada e, a o invés de golpeá- Io, beij a-o. Aqui vem os um e xem plo de com o o
feminino interior e a mulher exterior são semelhantes. O princípio que norteia a
am bos é o sentimento de a feição, de af inidade. Como Isolda, se um a m ulher é
ignorada ou se sente ferida por um homem, freqüentemente ela irá encontrar
uma form a de voltar a espada dele cont ra ele m esmo, para f eri-Io at ravés de seu
próprio impulso. No m omento em que o hom em desperta para a sua própria
nece ssidade e ofe rec e o seu a mor, conseguindo relacionar- se positivam ente com
ela, a m ulher tem um poder quase m ágico de per doar. O fem inino usa a e spada
de seu antago nista e quando o antagonista e nterra a e spada e ofere ce a a feiçã o, a
mulher e nterr a a sua, no m esm o instante. A agre ssão, assim, é transform ada em
afe ição. O fem inino, independentem ente de se m anifestar na m ulher ou no
home m, geralm ente abandon a suas queixas e m ágoas, esq uece ndo os ferime ntos
do passado, quando lhe ofer ecem , no presente, um relacionam ento baseado
numa afeição genuína. Este é um dos mais nobres e belos instintos da mulher,
uma das form as pelas quais ela serve à vida e transform a a vida. Afeiçã o,
ligação, é o seu primeiro princípio, a tônica de sua natureza, a principal razão de
sua vida, mais do que qualquer outra coisa.
Assim é com Isolda. Quando T ristão a convence de que lhe e stá ofe recendo
afe ição e a mor, e que a valori za e desej a por ela m esm a, então todo o ódio e
todos os planos de vingança são colocados de lado; ela. a baixa a espada . Estão
aqui dois lados da anima. A alma não é apenas um sentimento cálido que
carregamos dentro de nós e tiramos para usar em casos de necessidade,
ignorando-o no ma is das vezes. Ela tam bém assim com o a m ulher pre cisa de
ligações afe tivas nas relações com o mundo interior e tam bém exige um a
parcela do esforço e do tem po de um homem . Quando ele a ignora, ela se
enra ivece m uito. A anima vai ao ataque us ando a espada dele m esm o,
am eaçando-o violentam ente; ela perturba a vida dele, cr ia-lhe obsessões e
neuroses, e c onsegue e ntrar na bre cha da s proje ções e das convulsões do am or
rom ântico. A anima , de espada na mão, é um ser per igoso, capaz de deixar um
rastro de destruição por onde passa, mas, como Isolda, está disposta a fazer as
pazes. Se form os ao seu encalço, se a tratarmos de igual para igual, se
procurarm os seu mundo e sua sabedoria, ela saberá fazer as pazes e abrirá para
nós seu mundo interior.
Infelizmente, o home m ocidental é como Tristão, um hom em que sabe levar as
pessoas na conversa. Aqui, porém, existe um a charada, um enigm a que oferece
uma saída: fre qüentem ente, quando m entimos, sem querer estam os dizendo a
verdade. O que c onscientem ente ac ham os que não quere mos dizer, é
exatam ente o que é a verdade ao nível inconsciente. Tristão ac redita que e stá
mentindo. O que ele não sabe é que por trás de seus motivos conscientes, seu
inconsciente o impele inexoravelm ente e m direção a Isolda. Tudo o q ue disse a
ela é verdade, na s profundezas do seu ser, se bem que será ele o último a
percebê-lo.
Por que Isolda c rê nele? A alm a é uma feiticeira vid ente; ela não é tola! P or que
ela c rê nele? Porque e la é capaz de ouvir a verdade que está por detrás da
mentira, e é à verdade mais profunda que o fem inino interior re age.
ossas falsidades fre qüentem ente expressam nece ssidades e desej os
inconscientes mais profundos, aqueles que não conseguimos reconhecer
conscientemente. Mas esta afirmação não nos dá carta branca para enganar ou
para trair. Se aprendêssemos a procurar a verdade que existe dentro de nossas
fra udes, sej a quando m entimos para nós mesm os ou quando m entimos a outros,
então poderíamos responsabilizar-nos por essas verdades e passar a vivê-Ias
franca mente, honestam ente.
Como Tristão, todos nós já dissemos palavras poéticas, floreadas, que pensamos
não terem sido honestas, m as se exa minarm os cuidadosam ente, a srcem oculta
e sec reta de tais palavra s, descobrirem os que é por Isolda que buscamos e que é
de Isolda que pre cisam os.
Tristão não sabe do que nec essita nem o que busca e, a ssim, por um a e stranha e
inversa alqui mia do inconsciente, e le transform a a sua ver dade num a m entira.
Quando Isolda, diante dos barões irlandeses, fica sabendo da real intenção de
Tristão e percebe ter sido enganada, u ma fa ca penetra seu coraç ão e e la f rem e
"de humilhação e dor".
Tristão, tendo-a conquistado, agora a desdenhava; a bela história do cabelo de
ouro não passara de um a m entira! Era a outro que ele a entregava ... Assim...
Tristão, usando a f orça e a astúcia, c onquistou a Rainha dos Cabelos de Ouro.
Mas força e astúcia ac abam por não funcionar. Pe la astúcia e pela forç a o ego
masculino é c olocado c ontra seu próprio self - contra suas nec essidades m ais
profundas e contra sua própria alma. Tristão acredita ter conquistado o feminino,
e que o arra stará para c asa para garant ir a lianças e firmar o poder do ego
masculino.
Mas, ele nã o sabe o que tem pela fr ente! Ac redita-se c onquistador, porém , o
conquistado ser á e le próprio. O destino dispõe diante de Tristão um a ânfora de
barro repleta de um vinho raro e revigorante, e ele, sem nada suspeitar, dele
bebe sofregamente.
PARTE III
A NARRATIVA
Assim, Tristão e Isolda negar am sua c ulpa e dissera m a Ogrin que a culpada era
a poção e voltara m para a f loresta.
Pouco depoi s, um ladino lenhador encontrou a c abana em que estavam e,
correndo para Tintagel, o desavergonhado traidor vendeu-se ao rei para conduzi-
Io a os am antes. Chegando ao lo cal, o rei desmont ou e f urtivam ente a proximou-
se de e spada na m ão, m as depar ou-se com os dois, inteiram ente vestidos,
dormindo no chão. A espada de Tristão, desembainhada, jazia entre eles, e seus
sem blantes era m castos e inocentes.
10. O texto em francês antigo foi tomado da versão de Béroul. (N. A.)
O rei, então, pensou consigo próprio:
"Deus m eu, não devo ma tá-los! Durante to do o tem po em que vivera m juntos
nessa floresta, tivessem eles sido consumidos por um am or desenfr eado, teriam
colocado esta espada entre eles? Não sabe, então, o mundo inteiro que uma
espada desem bainhada separ ando dois corpos é a prova e a guardiã da castidade?
Se eles se amassem com um amor desenfreado, estariam aqui deitados com
tanta pureza?"
Mark, então, tirou um anel do dedo e colocou-o no de Isolda e, retirando a espada
de Tristão, cr avou a sua no lugar. Assim, deixou-Ihes os sinais de re conciliaçã o e
de perdão.
Ao acorda rem sobressaltados, Tristão e Isolda e ncontraram a e spada e o anel do
rei, e o m edo que toma ra c onta deles, lentam ente transform ou-se em espanto. A
compaixão do rei perturbou-os mais que seu ódio. Pela primeira vez, Tristão
perguntou-se se agira certo; sentia falta do amor de seu tio e de sua
camaradagem.
"Mas", pensou, "ele irá retomar Isolda! Que estou pensando? Como poderia eu
suportar isso? Melhor ter ia sido se o r ei m e tivesse m atado dura nte o sono, pois
agora, com sua compa ixão, ele desperto u minha cons ciência!"
Tristão re lem brou-se da época em que Isolda fora rainha ao lado d e Mark, com o
vivera num c astelo repleto d e finas sedas; na florest a, a gora, ela vivia com o um a
escra va, desperdiçando a j uventude numa vida selvagem , numa choupana.
"Realme nte", pensou ele, "ela é a sua esposa, ela é a rainha, c asada pelas leis de
Deus e c oroada diant e de todos os barões. Certam ente devo entregá-I a a o rei."
Durante a noite toda não pode decidir-se, atormentado pelo sofrimento. Isolda,
por sua vez, também pensou melhor:
"Tristão deveria ter ficado no castelo do rei entre seus pares, deveria ter partido
para aventuras, mas por minha causa esqueceu-se de que é cavaleiro; exilado
está da corte e está sendo procurado, levando uma vida à toa e inútil!"
De c omum acordo, resolvera m que ela dever ia voltar para o rei. Mas, disse
Tristão:
"Senhora, ac onteça o que a contecer, e onde quer que eu vá, some nte serei vosso,
pois que servirei a um único amor."
Os am antes, então, partiram para os limites da floresta, a o encontro de Ogrin , o
eremita, que ao vê-Ios exclamou:
"Amigos, não quereis finalmente arrepender-vos da loucura? Tristão, meu filho,
não ireis devolver a rainha e pedir misericórdia ao rei?"
Ao que Tr istão re spondeu:
"Ogrin, m eu senhor, para o nosso am or não pode haver penitência. O que não
quero é que Isolda se c onsuma nesta terra inóspita por m inha c ausa. P eço-vos,
senhor, que envieis um pedido por escrito ao rei dizendo-lhe que se ele aceitar a
rainha, eu a devol vere i, e se ele m e aceitar c omo seu vass alo, retornare i para
cum prir o meu dever."
Ogrin, diante do a ltar rezou e louvou a De us. Depois, o bom erem ita, usando
belas palavras, com o era próprio dos sacerdotes, escreveu o pedido e o enviou ao
Rei Mark, na mesma noite.
Assim que o rei reuniu o conselho formado pelos barões, mostrou-Ihes o
documento e ordenou que fosse lido para todos. E os barões disseram:
"Senhor, de ixai que a rainha volte para o vosso lado. Quanto a Tr istão, perm iti
que ele deixe est as terra s e vá servir o rei da F ranç a ou, quem sabe, o rei do s
Pa íses do Norte, pois caso ele re torne a Tintagel, sem pre have rá rum ores e
intrigas, o que porá a c oroa e m risco de desonra."
E assim foi: o Rei Mar k enviou sua m ensage m a Tristão dizendo-lhe que
devolvesse a rainha num determ inado dia, deixand o-a na margem do rio à a ltura
do vau, e que depois abandonasse as terras da Cornualha para servir outros
reinos.
o dia e m que Tristão devolveu Isolda, os am antes sentaram -se e m um belo
rec anto da flores ta e choraram am argam ente e , antes de irem ter c om o re i,
trocara m muitas j uras:
"Senhora", disse Tristão, "onde quer que meu destino me leve, enviar-vos-ei
mensageiros , e c aso m e venhais a buscar, virei a vós, n ão im portando a que
senhor e u estej a servindo, não importando q uão longe eu e stej a. "
Isolda deu a Tristão um anel de jaspe verde dizendo:
"Amigo, tenho aqui um anel de jaspe verde. Tomai-o pelo amor que sentis por
mim e coloca i-o e m vosso dedo; se a lguém vier a m im dizendo que foi enviado
por vós, nele não acreditarei se não m e m ostrar este anel; mas, assim que o vir,
não haverá poder ou édito rea l que m e im peça de fa zer o que de m im pedirdes -
ato sábio ou sandeu.
Depois da volta de Isolda, o país tornou a ser feliz, e todo o povo da Cornualha
viveu em paz. Os barões m alvados, porém , continuavam a falar m al de Isolda,
dizendo que agira mal junto com Tristão, o que acabou por chegar aos ouvidos da
rainha. Isolda, então, exigiu de seu esposo e rei o que era seu de direito: o
Julgam ento de Deus. É ass im o j ulgam ento: uma bar ra de fe rro é a quecida até
ficar rubra; Isolda deve jurar que diz a verdade, sobre relíquias de santos e, em
seguida, segurar a barra de fe rro inca ndesce nte. Se ela estiver f alando a verdade,
Deus não permitirá que o ferro queime suas mãos (e isso todos os bons cristãos
sabem }. Mas, se ela esti ver m entindo, então o ferro a queimará, e todos saberã o
que é culpada, e ela dever á, por sua traição, ser quei mada na f ogueira.
Isolda e nviou um rec ado a Tristão pedindo sua a juda num plano secr eto e, a ssim,
no dia do julgam ento, Tristão f oi à pra ia disfarç ado com o um pobre pere grino,
com roupas esfarra padas.
Lá, tudo estava prepar ado para o julgam ento: o fogo ace so e ao lado d ele a s
relíquias sob guarda, e o cadafalso com lenha e galhos secos.
A rainha aproximou-se da praia em seu barco e, apontando Tristão, disse a um
cavaleiro:
"Cham a a quele pobre peregri no para me car regar pela a reia m olhada, p ara que
eu possa chega r diante do povo limpa e com boa apar ência."
Tristão entrou na água, to mou a rainha nos braços e a c arregou até a a reia sec a.
Vestida de branco cor da neve, ela se postou diante dos bar ões de Tintagel e de
Cam elot - pois até o Rei Arthur e sua c orte vieram de Cam elot para servir de
testem unhas, para que ninguém jam ais pudesse questionar o Julgam ento de Deus
- e todos estavam pasma dos com a beleza da ra inha. Então, segurando as
relíquias dos santos, ela fez seu juramento:
"Juro pelos santos, que homem algum jam ais me tomou nos braços além de m eu
marido, o rei, e também aquele pobre peregrino que me carregou do barco até
aqui."
Depois disso, pálida de medo mas firme e decidida, a rainha foi direto ao fogo e
apanhou o ferr o em brasa e o segurou nas m ãos, enquanto dava nove lentos
passos, após o que, lançou-o ao chão. Abrindo os braços em forma de cruz,
encarou as pessoas e lentamente abriu as mãos. E pasmem! as palmas estavam
frias e incólumes. O povo quedou-se em silêncio, maravilhado e, depois, todos ao
mesmo tempo, louvaram a Deus, chorando de alegria.
Apesar de todos os problemas e sempre escapando por um triz, Tristão não
queria deix ar a Cornualha nem podia m anter-se a fastado da ra inha. Um a noite,
sorra teiramente, foi at é a janela da am ada e im itou o canto do rouxinol; a ra inha
conhecia bem aquele canto; relembrou seu juramento a Deus, seu juramento a
Ogrin, seu j uram ento ao rei, e senti u o perigo da m orte. Mesm o assim,
exclamou:
"Que importa a m orte ? Vós me cham ais, vós me quer eis, eu irei!"
Assim, e les se encontravam na e scuridão das noites e saciavam seu am or. Mas,
espiões traiçoeiro s e mal-intencionados reuniam -se pa ra espionar a rainha, e,
portanto, os am antes sabiam que logo voltariam a ser descobertos. Finalmente
Tristão, após muitas lágrimas e palavras de déspedida, partiu da Cornualha.
Separ ados, os am antes não podiam nem viver nem morre r, pois que er a vida e
morte ao m esm o tem po, e Tristão buscou ref úgio para as suas má goas nos
mares, ilhas e terr as estrangei ras.
Devemos fazer uma pausa para analisar o que isto significa para nós, pois existe
um casam ento, dentro de nós, que c orre sponde a e sse; uma união que não
devem os enca rar superficialmente. Isolda passou a ser rainha a par tir do
momento em que uma andorinha entrou voando por um a da s ja nelas de Tintagel,
trazendo um fio de seus cabelos dourados a Mark. Tristão chama-a de rainha
antes me smo de e la se casar com o Rei Mark, e a c ham ava "rainh a" ainda na
Floresta de Morois. Isolda a Bela é, sempre foi e será, a rainha; ela não pode ser
outra coisa.
O casam ento rea l nos diz que é justo que a anima se j unte ao r ei interior. Mesmo
que Tristão a tenha e nganado e usado d e força e a stúcia, m esm o que os motivos
dele tenham sido injustos, e que ela tenha ido contra sua vontade, mesmo que
eles tenham bebido da poção do amor em alto-mar, mesmo assim, Isolda é a
Rainha do Mundo Interior, e está destinada a um único lugar: ser a rainha, ocupar
o trono ao lado do Rei Mar k, o re i interior. Nenhum outro lugar pode ser mais
apropriado p ara sua realeza e divindade.
Se perc eber mos isto, podem os então c ompree nder porque Trist ão de strói o reino
quando trai o Rei Mark. Ele não apena s trai o re i, com o tam bém rebaixa a rainha,
colocando-a num lugar m enos digno do que aquele que e la mere ce, por direito.
Isto afeta não só Tristão no seu mundo pessoal, como também afeta o reino todo.
Quando Isolda c asou-se c om o Rei Mark, o povo sentiu-se livre dos ma les, e a
alegria inundou o país inteiro. Quando Tristão induz Isolda aos encontros furtivos
debaixo do pinheiro, as repercussões desse ato são sentidas em toda parte: a
rainha torna-se m enos do que é , ela é derrubada do trono e banida. Seu cora ção
está dividido, Tristão está dividido, e logo o reino todo ficará repleto de discórdia,
porque eles não podem resolver o conflito dentro de si mesmos.
O dilem a do mito - e a fonte de todos os conflitos, confusões e sofrim entos - é
uma única exigência de Tristão: ele r eclam a o direito de ter Isolda
exclusivam ente para si. Ela, que deve ria ser a rainha de todo um r eino, é r aptada
por
Qualum indivíduo. O
o significado ego ato
desse usurpa aquilo
na vida do que pertence
homem ao self.
moderno? A maneira pela qual
desviamos a anima de seu papel exato dentro de nós - como Rainha do Mundo
Interior - é a través das t entativas de transform á-I a num a m ulher e xterior, física.
Fazem os isso por proj eção, é a form a de o nosso ego tentar possuir a anima , de
aprisioná-I a em carne mortal, de vivê-Ia ao nível físico, exterior, pessoal.
Algo muito específico é nec essário para de volver à anima o seu papel
psicológico de Rainha do Mundo Interior: o homem precisa estar disposto a parar
de projetar a anima nas mulheres de sua vida. Isso por si só já possibilita que a
anim a desem penhe o papel e xato dentro da sua psi que, e só isso já possibilita que
ele veja sua mulher tal qual ela é, sem o fardo de suas projeções.
Jung diz o seguinte sobre corr igir a s proje ções: Ao se para r de fazer proj eções, a
anima volta a ser o que era srcinalmente: uma imagem arquetípica que em seu
loco exato age em prol do indivíduo... atuando entre o ego e o Inconsciente...
(Jung, Psy chology of the Tra nsference, p. 504).
Qual é o "loco exato" da anima? É "atuando entre o ego e o Inconsciente",
vivendo na psique interior do homem, na sua imaginação, inspirando-o de dentro
para fora.
Quando Tristão exige a posse da rainha, significa que ele tenta transformar a
anima num ser físico, ao invés de re conhece r que e la é um ser psicológico que
vive no m undo interior. Ao invés de vivenc iá-la e m um nível simbólico, com o
uma imagem fem inina interior, ele tent a transfo rm á-Ia numa mulher de c arne e
osso. Nós não apenas to mam os a im agem da m ulher c omo símbolo da anima,
com o tam bém esquec em os que fizem os dela um símbol o. Acreditam os que
anima é mulher e que mulher é anima; exigimos que a mulher desempenhe esse
papel, e que sej a deusa, não ser humano. Ao humanizar a anima perdemos nossa
alma de vista; ao tentar tornar divina a mulher, perdemos de vista sua
huma nidade e lhe roubam os sua c ondição de m ulher.
O ca sam ento rea l de Isolda e sua coroaçã o com o rainha nos dizem que ela deve
reinar sem pre no m undo interior, com o rainha. P or m ais que tentem os, não
vam os poder af astá-Ia do rei interior, tirá- Ia do seu c asam ento real, ou
exteriorizá-la em nossos relacionamentos físicos. Se tentarmos fazer qualquer
uma dessas tentativas, o reino será dividido, a estrutura dos relacionamentos e da
vida hum ana ficar á ser iam ente com prome tida. Tristão c ontinua tentando ver a
anima como uma mulher física, por isso mesmo é que nunca a vivenciará como
"Minha Senhora A lma", que é o seu verdade iro desej o, fruto de um a profunda
sabedoria.
Existe um outro c am inho. Podem os aprender a diferenc iar o interior do e xterior,
cedendo a ra inha a o re i e deixando q ue e la desvele todo um mundo novo de
consciência m undo que só podem os ver quando no s aproximam os dela c omo um
arquétipo, vivido no interior.
o fundo de seu coraç ão, Tristão sabe que I solda deve ser sem pre a rainha. Por
isso é que ele j am ais tenta realizar um casam ento com um c om e la; é por isso
que, num dado mom ento crítico, ele c oloca a e spada desem bainhada e ntre
am bos. Em última análise, ele sabe que não pode possuí-Ia de uma form a física
e pessoal. Ele a devolve ao rei com uma das mãos, ao mesmo tempo em que
tenta possuí-Ia com a outra, e faz isso inconscientemente, a contragosto,
lamentando-se de seu destino e não vendo os motivos que existem por trás de
suas próprias ações.
Se Tristão pudesse fazer seu ato de sacrifício conscientemente, se ele pudesse
recolocar a rainha no trono e compreender porque é preciso que assim seja, seu
destino não seria a tra gédia que é. P oderia ter per manec ido perto de su a rainha,
poderia tê-Ia vivenciado como deusa que é e poderia conviver com ela
interiorm ente, na dimensão exata. El e teria sua a lma , a Suprem a Rainha, com o
rea lidade interior e seria li vre par a viver com uma mulher m ortal ao nível
exterior e am á-Ia intensam ente, por ela me sma, com o ela m ere ce .
E de que cr ime deveria e u arr epender- me, Ogrin, meu senhor?... Vós que e stais
aí para julgar-nos, sabeis de que c álice bebem os quando estávam os em pleno
mar? Aquele bom gole que sorvem os nos inebria a am bos.
Com estas palavras, Tristão responde a Ogrin, o Eremita, quando ele o aconselha
a a rre pender-se de sua traiçã o e a dultério. Com estas palavras, uma nova
moralidade entra no mundo. Quem bebe da poção do amor, exige uma
tolerância especial. Tristão nos diz que é inocente, que nada fez de errado, que
obedece
ele paira agora
a cim aa dos
outras leis. padrões
velhos Inebriado
decomo
ce rtoestá,
e errasob
do:oele
efeito
nãodo
se vinho mágico,
deix ará j ulgar
por lei alguma salvo a lei da paixão.
E como Deus interveio tantas vezes em seu favor, ele se sente no direito de
reivindicar o "aval" celeste.
A prim eira vez que isso se dá é debaixo do alto pinheiro, o lugar secreto onde os
am antes se encontram . A lua surge com o sua a liada para avisá-I os que o re i os
espreita do alto da árvore. E depoi s que eles arm ara m toda a c ena e conseguiram
enganar o rei, Brangien exclama:
"Deus perm itiu um milagre , pois Ele tem com paixão e não ca stiga os que não
têm culpa no coraç ão."
O que é isso? Eis uma contradição difícil de explicar. Como é que esses amantes
"não têm culpa no cora ção", se traem o rei, quebram os votos feitos a ele, e
fazem -no de tolo? É este o m esm o Deus que santifica o casam ento e pre screve a
fidelidade e a honestidade? Será que Deus bebeu do mesmo vinho que os
am antes e com eçou a ser conivente com traições e a dultérios?
E mais, quando os amantes são apanhados e Tristão é conduzido ao cadafalso, ele
se atira do alto de um penhasco. M iraculosam ente uma rajada f orte de ve nto
enfuna seu m anto, que está preso à bot a, a mortecendo assi m sua queda. De pois,
na Floresta de Morois, quando o Rei Mark se depara c om os am antes que
dorme m lado a lado , Tristão havia c olocado sua espada de sem bainhada e ntre ele
e Isolda; e foram novamente salvos. Finalmente, quando Isolda se coloca diante
de todo o baronato reuni do para se submeter ao Julgam ento de Deus, ela e rgue
nas mãos uma barra de ferro incandescente e não se queima. O próprio Deus
confirma que ela diz a "verdade".
O que são estes milagres? O que querem eles nos dizer? Não são meros artifícios
dram áticos. Procure mos entender, os am antes dizem a ve rdade: eles são " os
inocentes"! Eles "não têm culpa no coraç ão". Foram dominados por um a verdade
e por um poder tão terríveis, que perder am o rum o; eles estão em sintonia c om
outro mundo, com outro nível de existência que os coloca em oposição a todos os
padrões do mundo humano com um.
Esses m ilagre s nos dizem que os am antes estão a gindo corretam ente, m esm o
quando pare cem estar f azendo coisas "erra das". Pelo m enos, estão f azendo o
melhor que podem sob o efeito do terrível sortilégio que se abateu sobre eles. O
"outro mundo" intervém constantemente nesta vida para livrar os dois amantes
das conseqüê ncias natura is dos seus atos, pois se eles estão descom passados em
relação ao mundo comum e à moralidade humana, estão, no entanto,
inteiramente no compasso desse "outro mundo". Mas esse mundo tem seu preço
e suas próprias conseqüências, e logo veremos quais são elas.
Se perguntarmos com que m undo estes am antes m antêm sintonia, basta
voltarmos ao pinheiro e ouvir o que diz Tristão:
"Este não é o bosque e ncantado, mas, um dia, am iga, irem os juntos a uma terra
bem aventurada, da qual ninguém jamais retorna. Lá se ergue um castelo de
márm ore branco; em cada um a de suas mil janelas arde a lu z de uma vela; e em
cada um a, um m enestrel toca e canta uma m elodia sem fim... "
Este "bosque encantado" é o m undo interior da psique, a parte inexplorada do ser
huma no, fora do tem po e do espaço. Tristão nada sabe desse m undo até beber da
poção do am or, m as desde o m omento em que a prova é esse m undo que o
consome. Seus olhos estão fascinados pelo que ele nunca vira antes; sua mente e
seu corpo, e todos os seus sentimentos, estarão sintonizados, para sem pre, com
um só nível de e xistência.
Mas... e quanto ao re i? E quanto à vida e os deve res huma nos de Tr istão? E
quanto ao casamento de Isolda e seus votos? E quanto à sua vida com o marido?
Aqui, debaixo do pinheiro, com eçam os a sentir que a poção do am or e xige
dem ais, é dem ais o que e la toma de nós. A não ser que a tornem os consciente, a
não ser que a coloquemos no seu devido lugar, ela nos possuirá e nos dominará
totalme nte a pa rtir das profundezas; ela dissolverá nossa vida hum ana, nossos
relacionamentos e nossos compromissos humanos, sem nada deixar no lugar. O
mundo que ela nos abre é raro e m aravilhoso; é um a par te de nós que há m uito
tínham os nece ssidade de re descobrir e de tocar. Mas, com o ac ontece c om cada
nova e poderosa ver dade que em erge do inconsciente, a poçã o do am or penetra
em lugares que não lhe são devidos, destruindo coisas que deveriam ser
mantidas, exigindo ma is do que lhe é de direito.
Quando a poção do am or domina Tris tão e Isolda, ela não a penas exig e que eles
acrescentem uma nova dimensão às suas vidas, como também exige que
apaguem totalm ente o sent ido de c erto e errado, todos os padrões de lea ldade,
com prom isso e fidelidade, por m eio dos quais nós, m ortais com uns, m antem os
nossa vida e nossos relacionamentos humanos intactos na superfície desta terra.
Vimos como um só gole da poção do am or deixou o mundo de c abeç a pa ra
baixo. Agora, vemos que ela inverte a moralidade: inverte nossos valores,
transformando o certo em errado e o errado em certo. Desde o surgimento do
am or rom ântico, a maioria dos ocidentais está c onstantem ente dilacer ada entre
dois ideais opostos: um é o idea l do rom ance; o outro é o ideal do com prom isso
nos relacionamentos humanos. Comumente achamos que ambos são a mesma
coisa, mas são coisas totalmente opostas.
Com o "amor cortês", um conjunto totalmente novo de valores penetrou em
nossa cultura. Sem que perce bêssem os, uma nova m oralidade nasce u em nós e
com eç ou a m oldar nossas atitudes. O roma nce a utêntico procura apenas um a
coisa - pa ixão. Ele e stá disposto a sacrificar tudo o mais - todos os deveres,
obrigaçõe s, relacion am entos ou comprom issos - para ter a paixão. Com o "am or
cortês" nós com eç am os a acreditar que a coisa m ais importante na vida é
procurar pela nossa alma através da projeção rom ântica; não registramos que
existe um a outra form a de e ncontrar a alm a. O nosso ideal de roma nce nos
ensina que pre cisam os procura r o ê xtase máximo, descobrir o " bosque
encantado" pelo único meio que conhecemos: nos "apaixonando".
O culto do roma nce determ ina um a nova def inição de "bem " e "ma l". Nossa
nova m oralidade diz que não e xiste nada tão importante qua nto "estar
apaixonado", sentir esta em oção f orte, este êxtase, e acreditar que se tornou a
encontrar a própria a lma ausente, desvelada no s er am ado. A paixão é o cam inho
- o único - que conduz à plenitude e à realização. A paixão é a única trilha que nos
conduz ao mundo perdido dos deuses.
Acr editando nisso, o que podem os fazer é de cre tar um novo padrão de certo e
errado: tudo o que decorre de "estarmos apaixonados" é "certo"; tudo o que serve
à pa ixão é certo; e tudo o que se coloca no cam inho da paixão deve ser a fastado
em benefício da "m eta superior". Todos nós respondem os com Tristão: "Vós que
estais aí para j ulgar-nos, sabeis de que cá lice bebem os quando estávam os em
pleno mar?" Acreditam os que tem os o direito de seguir nossas proj eções onde
quer que elas n os levem e de buscar a paixão pela paix ão, sem levar em conta os
relacionamentos que se rompem, sem levar em consideração as pessoas a quem
magoam os. Inconscientem ente elegem os a pa ixão o nosso bem mais elevado, a
nossa principal m eta na vida, e todos os dem ais valores c omume nte são
sacrificados pel o bem dela.
É típico de um ho mem moderno começ ar um casam ento com su a imagem
anímica projetada na espo sa; ele somente c ome ça a c onhecer a e sposa c omo
mulher depo is que a projeçã o come ça a se e svanece r. Ele descob re que a am a
com o m ulher, que a valoriza e a respeita, e le sente a beleza de e star
comprom etido com ela e saber que ela e stá c omprome tida com ele. Um dia,
porém, ele encontra uma m ulher que capta a projeção da anim a, e ele não
conhece nada sobre anima e menos ainda sobre projeção; sabe apenas que essa
"outra m ulher" parec e ser a essência da perf eição; uma luz dourada pare ce
envolvê-Ia , e a vida tornase e xcitante e ganha significado, sem pre que ele está
em sua c ompanhia.
esse dia, os dois exércitos que se contrapõem dentro da psique ocidental pegam
as suas esp adas e vão à guerra . As duas m oralidades iniciam um duelo. Por um
lado, a m oralidade "humana" lhe diz que é errado trair a e sposa e e nveredar por
um caminho que levará ao fr acasso do relac ionam ento existente entre os doi s.
Seus instintos lhe dizem para preservar o que possui, para cuidar do amor durável
que o alimenta, da e stabilidade e da c onfiança mútua que e le e a e sposa
conseguiram alca nçar.
Mas, do outro lado de se u inconsciente, um a outra voz se faz ouvir: a m oralidade
do roma nce. O rom ance lhe diz que sua vida som ente terá sentido se e le partir
em busca da anima, e que e le prec isa procurar sua a lma e specificam ente no
corpo da "outra mulher" - nada menos que isso servirá, pois é lá que está a paixão
e a paixão é tudo. A moralidade da poção do amor lhe diz que é preciso buscar a
paixão a todo custo: ele tem o "direito" de se apaixonar ao sabor do acaso, afinal,
isso é tudo o que vale na vida! Ele tem, para consigo mesmo, o "dever" de
conseguir toda a excitação e toda a emoção que puder encontrar. As vozes dos
antigos cátaros, dos cavaleiros e damas "corteses" sussurram todas em uníssono
que o "verdadeiro am or" não é encontrado n o ca sam ento nem dentro de um
relacionamento comum, que o "verdadeiro amor" somente é encontrado em
uma mulher que não é a sua e sposa um a m ulher que ele não vê como m ulher,
ma s como a imagem da deu sa.
Tal é a moralidade que envolve Tristão; esta é a lei pela qual ele vive, ora
marcando encontros debaixo do alto pinheiro ora vagando com Isolda pelas
trilhas da flore sta. A única voz que se le vanta pa ra contestar é a voz ásper a do
velho Ogrin:
"O home m que trai o seu senhor m erece ser e straç alhado por cava los e
queimado na fogu eira, e onde quer que su as cinzas ca iam , não ma is cre scerá a
grama... Senhor Tristão, devolvei a rainha ao homem que a desposou por direito,
segundo as leis de Roma... Fazei penitência, Tristão."
Tem os aqui um velho enca ntador e fantástico, um a voz dos tem pos antigos. As
palavras da antiga lei soam com estranheza, ao saírem de sua boca. Sentimo-nos
tentados a rir e a desprezar suas exortações como uma moralidade fora de moda,
irremediavelmente ingênua, própria de uma era passada.
Mas por trás de cada ideal de m oralidade e xiste algo que m erece ser e xam inado:
um conj unto de va lores humanos. Esses valores não são fa bricados
arbitrariam ente a partir do nada, e les vêm de a lgum lugar na s profundezas da
psique hum ana e atendem a necessidades humanas genuínas. Cedo demais a
moralidade torna-se um sistem a social superf icial, um fóssil calcificado a fixar
regra s arbitrárias, inteiram ente desligado das verdade iras nec essidades das
pessoas. Mas podem os olhar além da artificialidade e descobrir quais as reais
nece ssidades que e sse sistem a atende.
Por trás das est ranhas palavras, o v elho erem ita def ende ar dorosam ente as
virtudes da lealdade e da fidelidade, principalmente dentro do casamento. Ogrin
vocifera que os seres hum anos devem poder contar uns com os outros. Ele está
dizendo que a vida humana não pode continuar, que não se pode levar adiante um
relac ionam ento, e que o a mor de um a pe ssoa por outra perde o significado, a
menos que os sere s huma nos honrem verdade iramente os com prom issos
assumidos uns para com os outros. Ogrin sabe que Tristão e Isolda não somente
transgrediram a fidelidade sexual, mas que também abriram mão de toda a
lealdade, de todos os compromissos, de todos os deveres, com uma única
exceção: sua dedicação à paixão.
Mas um com promisso com a pa ixão não é um substituto para um com promisso
com um ser humano. Na nossa cultura, confundimos estes dois sentimentos.
Todos nós estamos comprometidos em encontrar paixão, todos estamos
com prom etidos em ficar eternam ente "apaixonados", e im aginam os que isso é a
mesm a coisa que estar c omprom etido com um a pessoa. A paixão, porém , se
esvai, ela migra para a outra pessoa pela qual nos sentimos atraídos, e se nosso
com prom isso é a penas ir aonde a paixão nos leva, e ntão não podem os ser
verdadeiramente fiéis a alguém.
A lealdade e o compromisso são arquétipos da nossa estrutura humana, e nos são
tão necessários quanto o alimento e o ar. Desta profunda necessidade humana de
ter relac ionam entos estáveis, sinceros e duradouros, surge a moralidade de
Ogrin, a m oralidade do c omprom isso.
Quase todo mundo est á à procura de "relac ionam entos com promissados". A
maioria das pessoas sente que é di sso que elas prec isam e fa lam e lêem sem
parar sobre "relacionam entos". Mas, apesar de tudo o que dizem os sobre
"compromissos", somos sabotados por nossa presunção antes mesmo de
começarmos. Presumimos que o único ingrediente que precisamos para o
"relacionam ento", a única coisa indispensável, sej a o rom ance mas, na verdade ,
os ingredientes essenci ais para um relacionam ento são a feto e com promisso. Se
examin arm os clarament e, começ arem os a perceber qu e o romance é um
sistem a de ener gia c ompletam ente diferente, um conj unto de valores totalm ente
distinto, do am or e do com promisso. Se é rom ance o que procuram os, então é
romance o que devemos encontrar - mas não compromisso ou relacionamento.
Um homem somente se c omprome te c om um a m ulher quan do interiorm ente é
capaz de afirmar que se liga a ela como um ser individual, e que permanecerá
com ela m esm o quando não e stiver mais "apaixonado", mesm o quando am bos já
não estiverem mais na cham a da paix ão e e la j á não m ais represent ar para ele o
ideal de perf eiçã o ou o reflexo d e sua alm a. Quando um home m é capaz de dizer
isto interiorm ente, e c om toda a sincer idade, e ntão e le alca nçou a e ssência do
com prom isso, ma s prec isa saber que terá um a batalha interior pela fre nte. A
poção do am or é forte: a nova moralidade do rom ance está profundam ente
inculcada e m nós; ela nos toma e domina quando menos esperam os. Colocar a
poção do am or no lugar certo, vivenciá-Ia sem trair os relacionam entos humanos
- eis a m ais difícil tarefa de c onscientização que um hom em pode empree nder
no nosso mode rno m undo ocidental.
Aqui, portanto, estão as duas moralidades contrapostas que encontramos debaixo
do alto pinheiro: a m oralidade do rom ance e a moralidade do com promisso
humano. Dentro de cada um de nós, dois exércitos saídos de um passado antigo,
com suas hostes fa ntasm agóricas, travam , ainda, as int erm ináveis batal has de um
milênio já vivido. Nesta guerra não pode haver uma solução pelo com bate, pois
na bandeira de ca da fac ção, bri lha o em blem a de um a verdade que
necessitamos, e que não pode ser perdida nem destruída. Mas os dois exércitos
vão chocar-se e destruir-se até que finalmente aprendamos em que nível
podem os viver cada um a dessas verdades. A verdade oculta na moralidade do
rom ance é a da a lma , o m undo interior, o verda deiro "bosque enca ntado"; ela
deve ser vivida interiorm ente. A verdade oculta na m oralidade de Ogrin é a do
com prom isso e da lea ldade hum ana; ela deve ser vivida e xteriorm ente, ao nível
dos nossos relacionamentos com outras pessoas.
osso papel deve ser o de pac ificar e procurar encontrar o nív el corre to - o nível
onde cada ver dade deve ser vivida, e então vivê-Ia positivam ente. Quando cada
nece ssidade for r espeitada e c ada mundo dentro de nós for re speitado, estes
antigos exércitos irão depor suas armas; eles farão a paz.
A NARRATIVA
De Como Tristão Encontr ou Isolda das Mãos B r anc as e Como Amor e Mor te
Finalmente
se Misturaram
meu
O re i,tio. Como
porém vosso
, não vassalo
podia estáTristão,
receber agind o pois
m al,restava
venho ofer ecer-vos
pouca com idaminha aj uda."
e m Carhaix,
a situação er a desespera dora e a am arga derr ota não estava m uito distante. Mas
o jovem filho do rei, Kaherdin, disse: "Meu pai, eis um respeitável cavaleiro.
Deixai-o entrar, desde que sej a c oraj oso o bastante par a c ompartilhar de nossa
sorte e de nossa desgraç a."
Kaher din rec ebeu Tristão com honrarias e tratou -o com o am igo e irm ão,
levando-o a c onhecer todo o castelo, com suas m asm orras e todo o apar ato
defensivo. Em seguida, pe las m ãos de K aherdin, Tristão foi conduzido ao
aposento das mulheres, e lá encont rou a m ãe e a irmã de Kaher din entoando
uma canção c ostumeira, e nquanto se ocupavam do tear. Tristão fez-Ihes um a
reve rência e Ka herdin disse: "Vê, a migo Tristão, com o as m ãos de m inha irm ã
tec em os fios de ouro neste pano. Com razão, minh a irm ã, sois cham ada 'Isolda
das Mãos Brancas' ."
Ao ouvir esse nom e, Tristão e stremeceu, m as sorriu e contem plou-a
polidam ente.
Enquanto isso, Riol, o traidor, estava acampado com um grande exército a três
milhas de Carhaix , e à noite podiam -se ver as fogueiras do aca mpam ento. Riol
mantinha o ca stelo sitiado para f azê-Ios render- se pela fom e. Da quele dia e m
diante, porém, Tristão e Ka herdin saíam diariam ente com alguns cavaleiros d e
confiança e corajosamente emboscavam o inimigo, sempre conseguindo bons
despojos: carroças de víveres e armas. A esperança renasceu em Carhaix, os
homens do Rei Hoël passaram a combater com mais entusiasmo e entre as
tropas de Riol cresce ram rum ores sobre dois ca valeiros invencíveis que sem pre
lutavam lado a lado, o que fe z com que o traidor com eçasse a f icar ba stante
preocupado.
Kaherdin ia para a batalha ao lado de Tristão, e juntos consolidavam suas
posições. Um tomava conta do outro, sem pre se ajudando m utuam ente.
Voltavam contentes dos combates, conversando sobre a Cavalaria e as nobres
façanhas, sobre amor e aventuras. Assim, uma profunda afeição, alimentada
pela confiança e pela gentileza, cresceu entre eles, e, como narra a história,
tornara m-se m ais unidos que irm ãos. Sem pre que Ka herdin cavalgava a o lado de
Tristão, falava de sua irmã, Isolda, tecendo elogios à sua beleza, bondade e
simplicidade.
Certo dia, o Conde Riol atacou Carhaix com um grande exército e poderosas
máquinas de guerra . Tristão e Kahe rdin, por sua vez, cora josam ente postaram -se
com seus cavaleiros d iante da s muralhas e Trist ão lançou-se di retam ente sobre o
Conde Riol, travando com ele renhida luta, espada contra espada, até que Riol,
com o elmo fendido pela espada de Tristão, pediu misericórdia. Riol rendeu-se,
ordenando a seu exér cito que pa rasse de com bater, depoi s entrou em Carhaix
para pedir misericórdia diretam ente ao Rei Roel, e lá m esmo jurou-lhe
obediência.
Tudo terminado, Kahe rdin dirigiu-se ao pai: "Senhor, nã o deixeis que Tr istão se
vá. Pe rm iti que ele se c ase c om m inha irm ã e se torne um filho para vós e um
irm ão par a m im." O re i ace itou o pedido e disse a Tristão:
"Amigo, conquistastes meu afeto. Tomai agora minha filha, Isolda das Mãos
Branc as, cuj o sangue rea l provém da m ais nobre a scendência. Tomai-a, ela é
vossa."
E Tristão respondeu: "Eu a aceito, senhor."
Tristão, assim, esqueceu-se de suas mágoas e sentiu-se novamente viver. Ele
am ava I solda das Mãos Brancas pela sua bon dade e beleza. Am ava seu irm ão,
Kaherdin, tinha importantes coisas para fazer e um rei para servir. Assim sendo,
ele disse: "Eu a aceito, senhor."
Tristão c asou-se com Isolda das Mãos B ranc as, Pr ince sa da Bretanha, diant e das
portas da catedral, e Isolda estava feliz. O coração de Kaherdin transbordava e
todos se alegrava m.
aquela noite, porém, quando seus pagens o despi ram , o anel de j aspe ver de
escorre gou do dedo de Tris tão, que o e scutou cair no chão de pedras. Pa ra os
ouvidos de Tristão, foi com o se tivesse ouvido os sinos do destino. Voltou a si e
fitou o anel. Lembrou-se de Isolda a Bela, lá longe, na Cornualha. No mesmo
instante as mágoas retornaram.
"Ah! Agora m eu c oraç ão m e diz que agi m al. Foi na florest a que me destes este
anel, onde sofrestes p rivações por m inha c ausa. Quão er rado estive ao a cusar-
vos de traição, Isolda a Bela, pois fui eu que vos traí! Casei-me com outra, e
agora que pena sinto de m inha esposa, pela sua confiança e pelo seu coraç ão
ingênuo. Vede com o estas duas Isoldas m e encontraram numa hora infeli z! E a
am bas fui infiel!"
o leito nupcial', Tristão deitou-se imóvel, frio como uma pedra, não
conseguindo tocar sua esposa. Finalm ente, e la indagou: "Meu senhor, que f iz eu
para irritar-vos ou o que deixei de fazer para não merecer sequer um beij o de
meu marido?"
Tristão inventou uma história. Disse-lhe que, c erta vez, no seu leito de morte
devido a um ferimento causado por um dragão, havia feito um juramento
sagrado à Mãe de De us: se ela o curasse, e ele vi esse a c asar -se, não bei jaria sua
noiva, nem teria prazer com ela, durant e um ano. E reiterou: "Prec iso cumprir
minha promessa ou irei arriscar-me à ira do Deus TodoPoderoso." Isolda
concordou , m as no dia seguinte, quando as cr iadas colocar am sobre sua c abeç a o
véu das m ulhere s ca sadas, ela sus pirou tristem ente e pensou que nada f izera para
merecer usá-Io. Tristão ficou aind a m ais tac iturno e pensava e m Isolda a Bela a o
olhar para o anel de ja spe verde e m sua m ão.
Com o passar do tempo, Isolda das Mãos Brancas não pôde mais ocultar o
segredo a Kaher din, seu irm ão. Ele ficou sabendo da verdade : Tristão nunca a
tomara fisicam ente com o esposa. Kaher din primeiro ficou espant ado e, depois ,
furioso. Foi até Tristão e disse:
"Apesar de ser es m eu am igo ma is am ado e m eu irm ão, não posso perm itir esta
humilhaçã o. Tens de transform ar m inha irmã em tua verda deira espos a, ca so
contrário te desafiarei às armas, vingando assim a desonra." Tristão contou então
a Ka herdin o que nunca r evelara a outro home m, a não ser a Ogrin, o Erem ita.
Contou-lhe com o fora e m busca de Isolda a Bela, com o beber am da poção do
am or em alto-m ar, contou-lhe das dores e dos desej os que a ssolara m seu espírito
e seu corpo durante dias e noites, do tem po na Floresta de Morois, dos leprosos e
do cadafalso, dos votos trocados, do anel de jaspe verde. "Agora sei que sem
Isolda a Bela não posso viver nem morre r, e a vida que levo é a m orte e m vida."
Kaher din, ao ouvir a história, não pôd e continuar com raiva e, c om muita pena
do jovem, disse: "Amigo Tristão, que Deus poupe todos os homens das mágoas
que sofre ste! Vou pensar durante trê s dias sobre tudo que m e disseste e depois
comunicarei minha resolução "
Quando os três dias se passaram, Kaherdin tonou a Tristão:
"Am igo, procure i aconselhar-m e com m eu cora ção. Sim, tu me disseste a
verdade, a vida que vives nesta terr a é um delírio, é um a loucura , e nada de bom
pode resultar nem para ti, nem para m inha irm ã, Isolda das Mãos Brancas. Ouve
o que te propon ho. Viaj arem os juntos para Tintagel; verás a rainha e saberá s se
ela ainda chora por ti e se ela te é fiel. Caso tenha ela te esquecido, talvez possas
sentir m ais ternura por m inha irmã Isolda, a meiga, a simples. E u te
acompanharei: não sou teu parceiro e camarada?"
"Irm ão", disse Tr istão, "falaste bem : 'O c oraç ão de um home m vale todo o ouro
de um país.'"
Kaherdi n e Tristão disfarçar am -se com o peregri nos e tomara m um barco para a
Cornualha. Tristão e nviou o anel de j aspe verde a Isolda c om uma mensagem
para que ela viesse encontrá-Io. Mas Isolda a Bela estava num dilem a: ouvira a
notícia do c asam ento de Tristão com Isolda das Mãos B ranc as e ac reditava que
Tristão a houvesse traído, que prefe rira outra mulher a ela. No e ntanto, ela
prom etera!... O que fazer? Preparou um encontro com Tristão, m as depois
surgiram novamente rumores de sua traição. Finalmente, quando Tristão foi ter
com ela, disfarç ado de m endigo, mandou que seus criados o espancasem e o
expulsassem . Assim, Tristão par tiu magoado e r etomou com Kaher din para a
Bretanha. Isolda ao ouvir que Tristão partira desesperado, percebeu o seu erro, e
chorando am argam ente, passou dias e noites em penitência, ca rre gada de
remorsos.
Em Carhaix, Tristão definhava: nem sua esposa nem as aventuras, n em as
caçadas, nem a própria vi da despertavam nele interesse algum. F inalme nte,
chegou à conclusão: "Preciso voltar a vê-Ia , pois antes m orrer tentando vê-Ia
mais uma vez que m orrer a qui por falta dela. Qu em vive na do r j á é um home m
morto, e quero morrer, mas que a rainha saiba que é por seu amor que morro. Se
ao m enos eu pudesse saber se ela sofre por m im c omo sofro po r ela!"
Tristão disfarçou-se novam ente de pe regrino e, sem nada dizer a Kaher din,
retomou a Tintagel. Sujou o rosto com lama e fingiu ser um palhaço, um bobo da
corte, um bufão itinerante. Chegando à corte, disse ele ao Rei Mark: "Dai-me a
Rainha I solda e eu a tomare i nos braços e vos servirei por am or a ela."
Rindo, o re i respondeu: "E par a onde a levar ias, ó bufão?"
"Lá bem alto, suspenso entre a s nuvens e o cé u, há um belo lugar c ercado de
anelas transparentes, onde penetram os raios do sol mas os ventos não ousam
perturbar. Colocaria a rainha nesse aposento de cristal, repleto de rosas e de
manhãs."
Fazendo-se de louco, Tristão c onseguiu entrar nos aposentos da rainha e mostrou-
lhe o anel de j aspe verde . Desconfi ada, a princípio, ela finalm ente o rec onheceu
e caiu em seus braços. Enlouquecido pelo desejo, ele voltou lá durante três dias
para saciar a paixão, até que os guardas desconfiaram e ele percebeu que teria
de par tir par a nã o ser surpree ndido.
"Amiga, pre ciso fugir, pois levantam os suspeitas. Pr eciso fugir e talvez nunca
mais possa ver- vos. Minha m orte está próxima e, longe de vós, m orrer ei de
desejo."
"Am igo," disse ela, "envo lvei-m e num abra ço, e streitai-m e fortem ente, e tanto,
que nossos cora ções se rom pam e vossa alma e a minha finalmente se libertem .
Levai-m e par a a quele lugar de fe licidade do qu al m e falaste há tanto tem po. Os
campos de onde ninguém jam ais retorna, m as onde m ara vilhosos trovadores
cantam suas ca nções et ernam ente. Levaime, a gora."
"Eu vos levar ei à Feliz Terra dos Vivos, rainha! O tem po está pr óximo, e quando
ele c hegar, se e u vos cham ar, vireis, minha a miga?"
"Am igo," disse ela, "cham ai por m im e tende certeza de que irei."
Com esta profec ia de m orte, Tristão a fastou-se e Isolda nunca mais o viu em
vida.
Tristão r etomou a Carhaix, m as continuava re cusando-se a tocar e m sua e sposa,
e j am ais a fe licidade huma na iluminou seus olhos, jam ais a alegria estam pou-se
em seu sem blante. Depois de algum tem po, ele partiu para aj udar Kaher din na
luta contra um barã o inimigo. Caíram numa em boscada e, a pesar de Ka herdin e
Tristão tere m abatido os sete c avaleiros q ue os atac aram , Tristão foi ferido com
uma lança e nvenenada. Mai s uma vez em sua vida, e le é prostrado pelo veneno
mortal nas veias, e nem médicos nem magos conseguiram encontrar a c ura.
Tristão chamou Kaherdin e disse-lhe:
"Irm ão, para mim não há m ais cura. Toma este a nel de j aspe verde e procura
Isolda a Bela. Mostra-o a ela e dize-lhe que se não vier eu morrerei; dize-lhe que
precisa vir pois bebemos nossa m orte juntos e que se lembre do juramento que
fiz de servir a um só am or, pois de m inha parte c umpri este j uram ento."
E com binara m um sinal: se Kaher din retoma sse c om Isolda a Bela, ele dever ia
iça r um a vela branca, m as se e la se re cusasse a vir, a vela seri a negra.
"Amigo, não chores", disse Kaherdin, "pois farei o que desejas."
Mas Isolda das Mãos Brancas ouviu através da porta e quase desmaiou, ao
com pree nder final mente porque seu m arido a rej eitara. A partir desse dia,
apesar de não o demons trar, e la c ome çou a tram ar uma cruel vingança -
vingança contra Isolda a Bela, que lhe roubara tanto o marido quanto a felicidade
na terra .
Kaher din em barc ou num navio que o levou diretam ente a Tintagel, com a a juda
de bons ventos. Apresentand o-se na c orte do rei como m ercador e m ostrando
seus artigos à rainha, pôd e colocar diante dela o a nel de j aspe ver de, enquant o
sussurrava a m ensagem de Tristão. Im ediatam ente a r ainha deixou o castelo e,
sem ser vista, em barc ou no navio de Kaher din que par tiu com a m aré. Isolda
acompa nhava a proa que ia c ortando as ondas espumantes, mas seu olhar e stava
sem pre voltado para Carhaix.
Tristão sentia-se tão fraco que já não podia mais ficar de vigília nos rochedos
perto de Carhaix. Mas todos os dias, deitado em seu catre, perguntava à esposa se
ela via o navio retomando. Certo dia, ela olhou para o mar e viu o navio com a
vela branca enfunada pelo vent o. Então, cheia de maldade no coraç ão, ela
realizou a vingança. Aproximando-se do marido disse:
"Senhor, o navio está a vista."
"E a veIa", perguntou Tristão, "que cor tem a vela?"
"Sua cor", responde ela, "é negra."
Tristão virou-se para a pa rede.
"Não posso continuar vivendo", m urm urou ele e com eçou a c ham ar: "Isolda,
minha amiga." Repetiu estas palavras lentamente por quatro vezes, e na quarta
vez morreu.
Mas no mar, o vento soprou mais forte e enfunando a vela conduziu o navio' à
praia, onde Isolda a Bela desceu. Já nas ruas, ouviu as lam entações e o dobrar
dos sinos na catedral e nas torres das capelas; perguntou às pessoas o porquê do
toque f únebre e o porquê das lágrima s. Um velha lhe r espondeu:
"Senhora, uma grande tristeza abateu-se sabre nós. Tristão, que foi tão leal e tão
usto, está morto. É o pior infortúnio que já aconteceu a esta terra."
Ela subiu corre ndo ao castel o pelas aléi as, e sua c apa esvoaça va selvagem ente
ao vento. Os bretões fica ram para lisados à sua passagem ; ja mais haviam vista
uma m ulher de tão rara beleza e e xclam avam :
"Quem é ela e de onde vem?"
Ao lado de Tristão, Isolda das Mãos Brancas estava prostrada, enlouquecida pelo
mal que ca usara, chora ndo e lam entando-se sobre o homem morto. A outra
Isolda entrou e disselhe:
"Senhora, erguei-vos e deixai-me ficar ao lado dele, tenho mais razões que vós
para chorá-lo - acreditai-me."
E depois de se ter voltado para o leste e feito suas preces a Deus, moveu um
pouco o corpo de Tristão e deitou-se j unto dele, ao lado do amigo. Beij ou-lhe a
boca e o rosto e o abraçou fortem ente; e então entregou sua alma, morrendo de
dor, ao lado do am ado.
Quando a notícia chegou ao Rei Mark, ele c ruzou o mar e levou-os à Cornualha,
construindo para cada um deles um be lo túmulo, um à esquerda e o outro à
direita de uma capela. Certa noite, um pé de roseira brava brotou no túmulo de
Tristão. Fortes e ram seus ram os, verdes suas folh as e perf uma das suas flores.
Rapidamente, subiu através da capela e desceu do outro lado, enraizando-se perto
do túmulo de I solda. E pe rdurou por m uitas geraç ões, forte e belo, sem pre
exalando sua fragrância.
13 - Enigmas e Paradoxos
por Tristão.
vagando Quando
solitário se profundo
e em inicia essadesespero:
parte da nossa
"Seráhistória,
que j amencontramos
ais encontrar Tristão
ei alguém
que ponha um fim à minha tristeza? "
A pergunta logo é r espondida. Ele e ncontra I solda das Mãos Branc as, Ka herdin,
um rei para servir, um a vida huma na dec ente para viver. Mas, logo a seguir ele
rejeita tudo isso! P or quê? Não f az sentido. Ele não c onseguiu construir um
relacionamento humano com Isolda a Bela; ele a devolveu ao Rei Mark, e Isolda
a Bela tem a sua própria vi da lá. P or que, então, ele não vi ve um a vida hum ana
com Isolda das Mãos B rancas?
Por qual estranha moralidade, por quais estranhas noções de "certo" e "errado",
"fidelidade" e "traição", ele a cha que deve se condenar a um sofrim ento
sem piterno e à mais terrível solidão? Por que a credita ser dever seu re jeitar a
mulher com a qual vive, para morrer de desejo por uma deusa idealizada cuja
imagem carrega no pensamento, mas que nunca poderá realmente possuir nesta
vida física?
Hum anamente falando, isso não faz sentido, pois tal atitude de strói a vida
huma na, literalm ente re duz a vida de Tristão a uma "morte em vida". Pa ra o
nosso lado r omântico, no entanto, as a titudes de Tristão fazem muito sentido.
Um a voz dentro do homem insiste com veem ência que é algo ma ravilhoso essa
eterna busca do ideal fe minino perfe ito, ao invés de se c ontentar c om a m ulher
de ca rne e osso que a vida c olocou em seus braç os.
Todo psicólogo tem uma fila e norme de pac ientes que re petem a pergunta de
Tristão: "Será que jam ais encontrarei a lguém que ponha um fim à minha tristeza,
à minha infelicidade?" É a pe rgunta m ais fre qüentem ente form ulada na nossa
sociedade. E a maior parte dos h ome ns segue o m odelo de Tristão. Quando uma
mulher m ortal, de c arne e osso aparec e na vida de um homem , oferec endo-lhe
am or e af eição, el e ac aba por rej eitá-Ia porque e la não pode ser com parada à
perfeição idealizada - Isolda a Bela - que só pode viver dentro das profundezas de
sua psique.
O segundo grande enigma dessa parte de nossa narrativa é o seguinte: que
"am or" é esse que e xiste e ntre Tristão e Isolda a Bela? À m edida que vam os
acompanhando os dois, nós nos mostramos muito crédulos durante a maior parte
do caminho; afinal de contas, somos ocidentais românticos. Finalmente, porém,
com eç am os a nos dar c onta da e gocentricidade grit ante, dos caprichos , que um
impinge ao outro em nome do "am or"!
Tristão queixa-se a respeito de Isolda porque "Mark a respeita e ela lhe dá
alegria!" Por que, se Trist ão a am a tanto, não quer ele vê- Ia feliz ao lado do
marido? Pode parecer uma pergunta ingênua, mas se Tristão afirma ser
motivado pelo "amor", temos o direito de fazer essa pergunta. E mais tarde ele
diz: "Quero m orrer , m as que a r ainha saiba que é por seu am or que m orro. Se a o
menos eu pudesse saber se ela sofre por m im c omo sofro po r ela!"
Que tipo de "am or" é esse que leva Tris tão a desej ar, não a feli cidade da am ada,
mas o seu sofrime nto? Se ele a cre dita que e la se r econciliou com o passado e
está feliz com o Rei Mark, por que vai ele voltar lá para jogar lenha no fogo da
paixão? Por que ele procura renovarlhe o sofrimento, atrapalhando sua vida com
o Rei Mark?
E quanto a I solda? Que a mor é esse que a leva a desprezar Tristão porque e le se
casou com outra mulher? Isolda é casada c om o Rei Mark e vive c om ele. No
entanto, por esses estranhos padrões, Tristão não pode casar-se com outra
mulher, não po de am ar nenhuma outra m ulher; e, ac ima de tudo, ele não pode
ser fe liz. Se e le fizer uma que sej a de ssas coisas huma nas norm ais, então ele é
um "traidor" para Isolda a Bela! Que espécie de "am or" faz com que Isolda
queira ver Tr istão sem pre só e infeliz, sem uma esposa, sem um lar, sem filhos?
Isso não é a mor. O am or é um sentime nto dirigido para um outro ser hum ano,
não dirigido para a própria paixão. O am or desej a o bem -estar e a felicidade da
pessoa amada e não aquele drama enorm e que se faz às custas do outro. Ainda
assim, estranham ente, Tristão e Isolda c ham am a isso "am or".
Pe los padrões huma nos está tudo invertido: eles se "am am ", m as c ada qual quer
que o outro sofra, que sej a infeliz. Eles fa lam de "traição", m as para eles
"fidelidade" m útua pre ssupõe que o m arido de um a ou a e sposa do outro sej am
traídos. Eles se rec usara m a construir uma fam ília e a levare m juntos uma vida
huma na norm al, e nenhum perrnite que o outro consiga fa zer isso com alguém
mais.
Tudo isso não chega a ser realmente novo para nós. Já vimos pessoas
"apaixonadas" agirem dessa form a. A grande m aioria de ntre nós já viveu essas
mesmas atitudes contraditórias. Às vezes conseguimos ser ligeiramente mais
sutis, ma s no mito o para doxo apar ece dessa form a tão gritante porque a
mensagem brota nua e c rua diretam ente do inconsciente.
a medida em que form os estudando nossos símbolos, vai tornar-se cada vez
mais claro que o m aior dos paradoxos é o próprio am or rom ântico: como um
conj unto e proce dimentos, ele é a fonte de onde em anam todas essas
contradições. O am or rom ântico é a mistura profana de duas espécies s agra das
de a mor. Um é o a mor divino do qual já falam os: é o impulso natural que nos
leva para o m undo interior, é o a mor que a alm a sente por De us, ou pelos deuses.
O outro é o am or "humano", o am or que sent imos pelas pessoas - ser es huma nos
de carne e osso. Ambos são válidos, ambos são necessários. Mas, por algum
artifício da evolução psicológica, nossa civilização misturou os dois tipos de amor
na poção do am or rom ântico e quase pôs am bos a pe rder.
O m elhor do rom antismo e do am or rom ântico é que são tentativas válidas para
devolver à consciência ocidental o que havia sido perdido. O romantismo procura
restaurar o sentido do lado divino da vida, a vida interior, o poder da im aginaç ão.
o mito, o sonho, a fantasia. A tragédia, que essa parte da nossa narrativa mostra, é
que usam os ma I o ideal do roma ntismo, situam os erra dam ente o am or divino, e
neste processo acabamos destruindo nossos relacionamentos humanos.
Cham am os de "am or" o que não é am or, invertem os o significado de
"fidelidade", e perseguimos uma imagem idealizada, efêmera, da anima, em vez
de am arm os um ser huma no de car ne e osso.
Aqui vai uma a dvertência: à m edida que e xam inam os alguma s das terrívei s
com plicaçõe s da tragédia e m que se trans form a "Tristão e Isolda", prec isam os
lem brar que o am or rom ântico é um estágio necessário d e nossa evolução
psicológica. Não importa o que possa ser dito contra ele, não importa o que
tenham os que fa zer para consertar nosso relacionam ento com ele, é o nosso
caminho: a nossa m aneira ocidental de evol uir e purificar essas .duas espécies de
amor que misturamos na poção mágica. O amor romântico é como o "túnel do
am or';" não podem os ficar em paca dos lá dentro no escuro; . tem os de sair do
outro lado e r esolver o para doxo. Mas par a os ocidentais parec e ser ne cessário
entrar no túnel. A única maneira que conhece mos de encontrar o sentime nto, de
enfrentar os dois grandes tipos de a mor, é nos "apaixonando", é nos torturando
pelo paradoxo, para então aprender.
a m edida em que form os avança ndo, e expondo as contradições, e
desma scar ando as ilusões, lem brem o-nos de que a quest ão não é saber se
devem os louvar o am or rom ântico ou condená-I o, se deve mos conservá-I o ou
ogá-Io fora . Nossa taref a é fazer de le um c am inho para a conscientização, viver
honestam ente o par adoxo e a prender a respeitar os dois mundos que e xistem no
amor romântico: o divino, de Isolda a Bela, que Tristão persegue, e o humano, de
Isolda das Mãos Brancas, que ele r ej eita.
14 - Isolda da Terra
Tristão
assumenunca
os comc hega a ter um
promissos relacionam
do dia-a -dia de ento
um ahuma
vida eno com para
stável, Isoldaque
a Bela, nunca
possam
encontrar o c alor huma no e o c ompanheirismo que tanto nece ssitam . É espantoso
constatar isso quando pensamos em todos os dramas e aventuras pelos quais eles
passam. Encontram-se secretam ente, assumem riscos inimagináveis, são
arr astados ao ca dafa lso, fogem e c ontinuam seu dram a na Floresta de Morois -
lutando com a natureza e com os inimigos. Tudo isso, no entanto, não pode nunca
traduzir um relacionam ento huma no!
Um dos grandes paradoxos do amor romântico é que ele jamais cria um
relacio name nto humano enqu anto perm anece româ ntico. Ele cria dra ma,
aventuras ousadas, ce nas de am or ar dentes e m ara vilhosas, ciúmes e tra ições;
mas pare ce que as pessoas nunca se de cidem por um relac ionam ento próprio de
seres
passemhuma
a senos de ca
amar emrnevez
e osso
de seaté que sup erem o estágio do am or rom ântico, e
apaixonar.
Come ça mos a compre ender porque is to é assim. Isolda a Bela é a a nima. É o
am or divino que Tristão procura nela; inconscientem ente, ele proc ura uma
passagem para o m undo interior. Tristão não consegue ter um relacionam ento
humano comum com Isolda a Bela porque ela é a anima e deve ser vivida como
um elemento interno, um símbolo.
Quando Tristão parte da Cornualha, deixando Isolda com o Rei Mark, ele cai em
desespero, crê que está a bandonando a anima , literalm ente personi ficada numa
mulher mortal, exatam ente c omo fazem todos os home ns quando "apai xonados".
Do ponto de vista de seu e go, a vida não tem mais sentido, pois ele a cha que este
sentido somente pode ser encontrado em Isolda a Bela.
"Separ ados, os am antes não podiam nem viver nem morrer , pois que era vida e
morte ao m esm o tem po, e Tristão buscou ref úgio para as suas má goas nos
mares, ilhas e terr as estrangei ras."
E assim, chega mos à fam osa per gunta de Tristão: "Será que j am ais encontrare i
alguém que ponha um fim à minha tristeza?"
Embora para o seu e go pareça a morte, o destino o conduz em direção à própria
vida! Pois a tranqüila e despretensiosa mulher que o aguarda no Castelo de
Carha ix é a e ncar naçã o da vida huma na: ela é Isolda das Mãos Brancas, Isolda
da Terra.
Como Tristão, chega mos a esta Isolda c om um far do de pre conceitos, com a
lealdade já comprometida anteriormente. Não gostamos de algo que seja
"simples": para nós "simples" significa monótono ou obtuso ou estúpido. Nós nos
esquec em os de que a simplicidade é uma nece ssidade da vida huma na: é a a rte
humana de encontrar sentido e alegria nas coisas pequenas, naturais e
corriqueiras. No seu nível m ais elevado, é a c onsciência que vê através das
confusões que inventamos, encontrando a realidade essencial e singela da vida.
Mas em nossa é poca, tem os um prec onceito coletivo contra Isolda das Mãos
Branc as. Se um relacionam ento direto, simples e espontâneo nos ofer ece
felicidade, não o aceitamos. É "simples demais", "monótono demais". Estamos
condicionados a r espeitar apena s o que é exage rado " pomposo, o que é grande,
complicado ou "altamente excitante".
A verdadeira tragédia de Tristão e Isolda está oculta num lugar quieto e humilde,
onde não estamos acostumados a olhar, e não é a morte de Tristão, pois todos os
home ns morre m. A tragédia de Tristão é que ele se r ecusa a viver e nquanto
ainda está vivo, e assim ele nã o tem vida hum ana ou valor hum ano. É assim que
sua vida se torna um a "morte e m vida". A verdade ira tragédia ocorre naquele
instante em que Tristão rec usa Isolda da Mãos Brancas; com esse a to, ele rec usa
a terra e tudo o que vem com a vida humana terre stre - o am or humano, os
relac ionam entos, todas as alegrias terre nas.
Pa ra nós ocidentais, que sorvem os a forte bebid a do rom ance misturada a o leite
materno, IsoIda das Mãos Brancas parece ser uma personagem menor. Ficamos
mesmerizados pelo outro drama: os encontros secretos e as despedidas, as
intrigas e a em oção intensa - nã o pertencente a este m undo - que se apodera de
Tristão e Isolda a Bela. Mas, se nos afastarmos disso tudo e contemplarmos
Isolda das Mãos Brancas, poderá a contec er o que disse Ka herdin: "Talvez possas
sentir m ais ternura por m inha irmã Isolda, a meiga, a simples. "
Esta Isolda personifica um lado diferente do interior feminino, um lado que não
tínham os encontrado antes. Suas "mã os brancas" l em bram , simbolicam ente,
muitas coisas. Elas são claras e delicadas, mas habilidosas no trabalho prático da
vida. Esta Isolda se de licia c om a vida c omum, hum ana, terr ena. Nós a
encontramos pela primeira vez no aposento feminino do castelo onde ela estava
tecendo tapeçarias, bordando com fios de ouro um fino tecido. Ela é de sangue
real, mas podemos imaginá-Ia tendo filhos, criando-os, cozinhando, convivendo
com as atividades simples que tornam a vida humana possível.
Cham arem os de "fem inino terrestre" este aspecto do fem inino que liga o hom em
a e ste plano físico, aos dem ais sere s humanos, à vida c omum , a tudo o que fa z
parte de estar encarnado nesta dimensão hum ana, limitada pela necessidade,
pelo comprom isso, pelo dever, pelo tempo e pelo espaço. O feminino terrestre é
o elem ento interior que lhe dá a possibilidade de am ar em um nível humano,
construindo relacionamentos humanos.
Isolda das Mãos Brancas personi fica a capacidade que tem o homem de ver a
beleza, o valor e o que existe de sagrado no mundo, na vida física e na condição
huma na. Ela preside os seus relacionam entos com os sere s de fora , no mundo
exterior. Por outro lado, a anima preside seus relacionam entos com os seres de
dentro, no mundo interior. O fe minino terrestre sabe am ar de um a m aneira que
não é a do idealismo rom ântico, nem é um a proj eção dos deuses interiores sobre
os mortais. Sua m aneira é um am or que nos liga a outros homens e m ulhere s de
carne e osso, valorizando-os na sua condição humana natural.
Tudo o que Isolda das Mãos Brancas faz mostra-nos que sua única preocupação é
esse tipo de relac ionam ento. Este é o seu único princípio, o seu sistem a
fundam ental de e nergia. Tristão diz a respeito de Isolda a Bela: "Bebemos nossa
morte juntos." Mas esta outra Isolda não está interessada na morte, está
intere ssada na vida, nesta vida hum ana natural da terr a, c om uma pessoa que a
am e pelo que e la é , que c uide dela, que sej a a lime ntada por e la. Esta Isolda da
Terra não pede pa ra ser levada ao "bosque enca ntado" encontrado a penas no
reino da m orte; em vez disso, ela pede que Tris tão a am e e viva c om ela e m
Carha ix, no mundo do aqui-e-agora que é a vida de a mbos na terra .
Podemos ver o feminino terrestre mais claramente quando comparamos Isolda
das Mãos Brancas à Isolda a Bela. Não conseguimos imaginar Isolda a Bela
com o dona de c asa, c riando filhos, m exendo as panelas no fogão, t ecendo
cobertores, envelh ecendo com o m arido no dia-a-dia de um lar. Conseguimos
imaginá-Ia somente c omo parte de um grande dram a, feito de arre batadores
encontros furtivos, torturantes despedidas, ou como a rainha, entronada num
castelo de conto de fadas. Ela é uma feiticeira, filha da Rainha Feiticeira, nascida
numa ilha m ística além do Desconh ecido. Ela é deusa: me io divina, m eio
huma na. Ela é aquele aspecto do feminino que se m antém sem pre e squivo,
inatingível, é a "princesa distante", que somente pode ser realmente vivenciada
em um nível simbólico, imaginário. A anima pode ser vivenciada internamente,
ou pode ser exteriorizada num drama - o cadafalso, os leprosos, a Floresta de
Morois. O que ela nã o pode é ser c ontida num relac ionam ento huma no comum e
simples, com seus dever es e seus limites finitos.
E a Isolda das Mãos B rancas? Ela é huma na. Ela não nasce u de f eiticeiras e
semideuses numa espécie de "posto avançado do outro mundo". Ela nasceu de
pais mortais neste mundo conhecido, foi criada em am bientes hum anos comuns,
preparada para uma vida humana, um a vida pessoal. Ela é aquele aspecto do
fem inino que se enc aixa em nossa própria vida e em nossos relac ionam entos
pessoais.
A meta da a nima é sem pre nos levar para o mundo interior, para as profundezas
ilimitadas, infinitas, do inconsciente, sem restrições, sem compromissos com
quem quer que sej a, sem se deter diante dos limites da nece ssidade ou do dever.
O fe minino terrestre, por sua vez, nos dirige pa ra o mundo pessoal e f inito do
relac ionam ento humano - a quele que é limitado por com promissos, devere s,
obrigações, e também afeição e afinidade com relação a um ser individual.
À medida que a vida se transforma em morte e a morte se aproxima, existe
apenas um a oca sião em que Tristão com eça a viver outra vez, e é quando s e
aproxima de Isolda das Mãos Brancas: ele qu er viver, quer a mar e quer ser
huma no novam ente. Ele se e squece do seu e sdrúxulo pacto com a m orte.
Kaher din abre as portas de Carhaix e a s portas de seu cora ção para Tristão, que
lá encontra afeto, am izade, a mor e nobres faç anhas para r ealizar.
"Será que jam ais encontrarei alguém que ponha um fim à m inha tristeza?" Ali
está um a esposa que o am a, que lhe dará com panheirismo, devoçã o, uma vida
com sentime ntos, am or e rótico, os laços huma nos do lar e da fa mília. Com ela
vêm também um irmão, um pai, uma pátria. Por que ele rejeita tudo isso?
Mais adiante na história e le nos conta por quê... Deitado no seu l eito de morte,
Tristão c onfia o a nel de j aspe ver de a Kaher din e o e nvia numa última tentativa
para buscar Isolda a Bela. "Dize-lhe que precisa vir, pois bebemos nossa m orte
untos, e que se lem bre do jura mento que fiz de servir a um só am or, pois eu, de
minha parte, cumpri este juramento."
É este ideal m al com pree ndido, este j uram ento, que fundam enta toda a tragédia
do am or rom ântico. Tristão jurou servir a um só am or. Esse único am or é o a mor
divino do qual já falamos. O amor que nos atrai para o mundo interior. Mas
quando Tristão j ura servir apenas a e sse amor divino da anima, ele tam bém jura
renunciar ao a mor huma no e ao relac ionam ento huma no. Existem dois grandes
amores, dois mundos nos quais o homem deve viver, duas Isoldas às quais deve
servir. A grande fa lha no am or rom ântico é que e le procura um am or, ma s se
esquece do outro. Este é o significado exato da rejeição que Isolda das Mãos
Branc as sofre da parte de Tristão.
Quando Tristão r ecusa Isolda da s Mãos Brancas, e le nos most ra a conduta padrã o
do home m ocidental, que inconscientem ente crê que sej a certo usar seu
casam ento para tent ar ligar-se à sua a nima, usar uma mulher para ser a
portadora de sua imagem aním ica proj etada, e que ele não precisa nunca
considerar seriam ente a mulher c omo o ser físico e individual que e la é, c om
uma estrutura c omplexa e uma consciência. O home m acr edita que deve
sem pre procura r lsolda a Bela e que deve sem pre re jeitar lsolda das Mãos
Branc as; que deve sem pre procura r o m undo divino que e le proje ta sobre um a
mulher, m as nunca se re lacionar c om e sta m ulher, com o um ser individual.
O am or rom ântico, fiel à sua naturez a para doxal, nos engana: dá a impressão de
que sua finalidade sej a prom over um relac ionam ento huma no entre dois seres.
Afinal de contas, não se está meditando num templo; estamos "apaixonados" por
um ser humano. Ou não? Para nós é difícil ver a diferença - a enorme diferença
entre relacionar-se com uma pessoa e usar essa pessoa como veículo para a
proj eção.
o jura mento de Tristão e na sua re cusa e m consuma r o ca same nto
encontramos a fa lha básica do roma ntismo: sua par cialidade. Ele tent a
compensar a unilateralidade de nossa psique ocidental restaurando a experiência
dos deuses, o mundo interior, os mistérios e o amor divino mas, como todas as
tentativas coletivas para encontrar o equilíbrio, ele se torna unilateral na direção
oposta. Ele a dota a polaridade oposta, idea liza o m undo divino m as não deixa
espaço para a condiçã o humana. A vida huma na com um, com suas obrigações,
seus laços, seus compromissos, seus deveres, suas limitações, essa vida centrada
no ser hum ano com um, é por dem ais ligada à terr a, por dem ais monótona e
mesquinha, de acordo com nossos preconceitos românticos.
O casamento de Tr istão simboliza sua aceitação instintiva e involuntária da vida
huma na e do relac ionam ento huma no. Seus instintos clam am por um
companheirismo simples, físico, amoroso, com uma mulher comum e mortal. O
Rei Hoel ofere ce-lhe a filha; Tristão r esponde, m ovido por puro re flexo e de sej o
de viver: "Eu a a ceito, senhor." Ela nã o é sua a lma, e la não é a pe rfe ição, ela não
é um a visitante dos céus. Mas ela é bela na sua form a hum ana de ser, ela é
am orosa, ela é capaz de r elacionar-se com ele e e la é rea l. Não é um a f antasia
que em ergiu para a superfície do mundo externo.
Tristão, em bora c asado com Isolda de direit o, recusa-a de fa to. Sua re cusa em
consumar o casamento, significa que ele rejeita um relacionamento humano
com um ser mortal, em favor de uma visão passional, uma fantasia que some nte
pode ser vivida interiorm ente. Esse é o efeito que a índole romântica tem sobre a
maioria dos casam entos e dos relacion am entos moder nos. Nós nos casam os
segundo as norm as, nós proferim os as palavra s, ma s não assumim os
interiorm ente o comprom isso. Existe uma característica de ef em eridade na
maioria dos relacionamentos e cada um secretamente inclui uma cláusula para
esca par do com promisso. Cada um de nós se re serva o direito de rom per e sse
compromisso assim que surgir outra pessoa sobre a qual se possa projetar aquela
visão passional.
É exatam ente isso que o m ito está pre vendo para nossa cultura, e é e xatam ente
isso que ve mos como padrã o norm al. As pessoas rea lizam um casam ento de
direito, mas o recusam de fato. Elas se recusam a assumir um compromisso real
com um ser humano, porque apenas se comprometem com sua visão, seu ideal
interior, sua busca da m anifestação per feita da a nima ou do animus, s ua busca do
am or divino. Como e las ainda não sabem que isto é um a tarefa interior,
imaginam que pre cisam manter sempre suas opções em aberto, precis am
sem pre se re servar o direi t o de seguir para onde quer que a proj eção do ideal
interior as leve. Nas brumas do idealismo romântico achamos que isso é muito
nobre, muito "libera do" mas, na verdade , trata-se ape nas de m á c ompre ensão da
rea lidade. Ê a noss a m aneira de anular o lado h uma no da e quaçã o, a nossa
forma de recusar um compromisso com Isolda das Mãos Brancas.
A tragé dia é que Tristão, c om todas as possibilidades de vir a ter um a vida de
relac ionam entos, cer cado de c alor huma no, nega- se o direito de vivê-los.
Curiosamente, não há nada que ele precise fazer: só precisa abrir os olhos,
despertar para as riquezas que o ce rcam e vivê-Ias. Mas essas bruma s do
idealismo româ ntico, essa m ácula do m undo humano, impedem que ele alca nce
ustam ente esse am or que tanto desej a. Ao re jeitar Isolda das Mãos Branc as, ele
renova seu pacto com a m orte.
Esse padrã o de am or rom ântico re pete-se const antem ente na vida das pess oas de
hoje. Ao viver um relacionamento ou um casamento, o homem sente-se
vagamente insatisfeito: ou a vida não tem suficiente significa do, ou ele sente fa lta
da e mpolgaçã o e do enlevo qu e sentia antes. Ao invés de com pree nder que e stá
sentindo a falta do amor divino - a experiência interior da anima, que é de sua
própria responsabilidade - ele põe a culpa na m ulher. Ela não o está fazendo feliz;
ela não é suficientemente boa; ela não realiza os seus sonhos. Apesar de ela lhe
dar tudo o que está ao alcance de um a m ulher m ortal, ele a re jeita e continua
procurando IsoIda a Bela. Ele sempre pressupõe que em algum lugar, em
alguma mulher ou em alguma aventura, irá encontrar IsoIda a Bela, e será,
então, capaz de possuí-Ia fisicamente e encontrar nela o significado de sua vida e
sua realização. E assim denegrim os o am or huma no, assim rejeitam os IsoIda das
Mãos Brancas, assim renovam os nosso jura mento coletivo de "servir a um só
amor".
O amor humano, simbolizado por Isolda das Mãos Brancas, é totalmente
diferente daquilo que chamamos de "apaixonar-se". Para o homem, amar
segundo a m aneira huma na do fem inino terr estre, significa que ele terá de
direcionar seu amor para um ser humano mortal, não para a imagem idealizada
que proje ta. Significa r elac ionar- se com uma pessoa de ver dade, identificar -se
com ela, re conhece r o seu valor e os seus elem entos sagra dos, tal com o ela é, na
sua totalidade - com seu lado sombrio, suas imperfeições e tudo aquilo que a
toma um ser m ortal com um. "Estar apa ixonado" é difere nte: não é a lgo
direcionado para uma m ulher; é a lgo dirigido para a a nima, o ideal do homem :
seu sonho, sua fantasia, sua esperança, suas expectativas, sua paixão por um ser
interior que ele sobrepõe à mulher exterior.
Isso explica porque um a pa rte tão grande deste "am or" entre Tristão e IsoIda a
Bela é tão inequivocamente egocêntrico. Tristão quer que IsoIda sofra, que se
unte a ele na sua infelicidade, porqu e seu am or não e stá realm ente dirigido para
Isolda como mulher mortal, mas para si mesmo! Ele está preocupado com as
suas próprias proj eções, com a sua própria paixão - est a paixão cuj a c ulpa e le
oga na poção do am or, m as que ele fa z questão de a lime ntar com sucessivas
viagens até Isolda.
Isolda, de maneira similar, não parece preocupar-se com a felicidade ou com o
bem estar de Tristão. Ela se preocupa em saber se ele a coloca em primeiro
lugar, se sua aliança é somente com ela, se ele continuará a representar com ela
o dram a que a transporta para o "bosque enc antado". Eles não est ão pre ocupados
com a felicidade ou o b em -estar ou a sobrevivência do outro, m as apena s em
renovar a própria paixão, em serem transportados para um lugar mágico, em
usar o outro para m anter o dram a passional em andam ento. No final de suas
vidas, sua única preocupação é usarem-se mutuamente para se libertarem
complet am ente da terra mesquinha e a lçar em vôo para a quele m undo
imaginário e m ágico, onde "maravilhosos trovadores ca ntam suas ca nções
eternam ente". Na verdade, eles n ão se am am , usam -se m utuame nte para
vivere m as exper iências ardentes e passi onais que de sej am ter.
Isto, independentem ente de o a dmitirm os ou não, é o a mor rom ântico. Em
Tristão e em Isolda, o egoísmo, o uso do outro para criar a paixão pela paixão, é
tão evidente, tão ingênuo, tão infantil, que se torna inequívoco. Mas as nossas
próprias versões do amor romântico, dificilmente chegam a ser m ais sutis.
Simplesme nte nunca entra e m nossa ca beça rom ântica que possa existir algo de
estranho em procurar um assim chamado "amor" para conseguir a minha
rea lização, para da r vazão às m inhas em oções, para tornar re alidade os me us
sonhos, as m inhas fa ntasias, a minha "necessidade de ser a mado", o m eu ideal do
amor perfeito, a minha segurança, o meu entretenimento.
Quando genuinam ente am am os outra pessoa, trata-se de um ato espontâneo de
ser, uma identificação com a outra pessoa que leva a reconhecê-Ia, a valorizá-Ia
e a honrá-Ia, que nos leva a desejar a felicidade e o bem-estar dessa pessoa.
esses raros m ome ntos em que estam os am ando, e nã o concentrados no nosso
próprio ego, paramos de perguntar que sonhos vam os realizar através dessa
pessoa, que vibrantes e extraordinárias aventuras ela nos irá proporcionar.
Existem dois casamentos que Tristão precisa fazer. O primeiro é interno, com sua
própria alma, com Isolda a Bela. Esse casam ento ele precisa fazer indo ao seu
mundo interior, pra ticando sua re ligião, fa zendo seu traba lho interior, vivendo
com os deuses desse mundo interior. O segundo é com Isolda das Mãos Brancas,
e e sse c asam ento significa uma união c om outro ser hum ano, significa aceitá-Ia
com o tal. Significa tam bém fazer outros relac ionam entos - f azer am igos por
exem plo, e assumi-los com o seres huma nos.
Podem os compre ender e sses dois casam entos com o o reflexo das du as naturezas
que se m isturam dentro do homem : a huma na e a divina. P ara nós ocidentais, o
grande símbolo dessas duas naturezas em integração é Cristo, e as dimensões
dessa realidade são expre ssas de form a perfe ita no simbolismo da doutrina c ristã
da Encarnação. Nela é dito que Deus veio habitar o mundo físico e o redimiu;
Deus torna-se hum ano! As conseqüênci as dessa cr ença , toma das com o símbolo,
são enormes. Significam que este mundo físico, este corpo físico e esta vida
mundana que levam os na terra tam bém são sagra dos. Significam que os dem ais
seres hum anos têm o seu própri o valor intrínseco: eles não estão aqui me ramente
para que possam os ver refletida neles nossa fantasia de um mundo mais perfeito
ou para que transpo rtem nossas projeções de anima , ou ainda que se j untem a
nós na re presentaçã o de um a a legoria de um outro m undo. O m undo físico,
mundano, com um, tem sua própria belez a, sua validade própria e sua próprias
leis para serem observadas.
Existe uma asserção no Zen: "Esta terra - eis o Caminho! " O Caminho para a
iluminação, para a alm a, não é pelas nu vens, não é pela negaç ão da terra : ele é
encontrado dentro desta vida mortal, dentro da simplicidade das nossas tarefas
mundanas e dos nossos relacionamentos com pessoas comuns. Tudo isso está
expresso na realidade simbólica da Enca rnaç ão.
A Encarnação nos fala do paradoxo de duas naturezas: o amor divino e o amor
huma no, am bos misturados num único cáli ce, am bos contidos num mesm o ser
huma no. A Encar naçã o nos diz que Deus se fe z carne, e o Deus enca rnado,
Cristo, era ao m esm o tem po huma no e divino. Nesta imagem está ref letida a
natureza dupla do ser humano, os dois amores que, legitimamente, exigem nossa
lealdade e a integração que devemos fazer de ambos. Portanto, a Encarnação
nos mostra que o mundo divino e o mundo pessoal coexistem dentro de cada ser
huma no, e é quando as duas natu rezas vivem juntas numa integra ção consciente
que uma pessoa se torna um self consciente.
Independent em ente de quais p ossam ser nossas idéias sobre a Encar naçã o
histórica real, prec isam os rec onhecer as im pressionantes c onseqüências do
Deus-feito -home m com o um símbolo, como um modelo arquetípico ar raigado
no inconsciente oc idental. É um a realidade psicológica , um princípio unifica dor
que atua em nós de dentro para fora , pouco importand o se tem os ou não
consciência disso. Vamos viver essa natureza dual de uma forma ou de outra,
consciente ou inconscientemente.
A Encarnação simboliza a integração; a poção do amor simboliza a mistura
desordenada. Se admitirmos conscientemente nossa natureza dual,
conseguiremos a integra ção transce ndental; se a toma rm os ao a caso, sem
consciência, teremos a poção do amor. A história psicológica do Ocidente é esta:
na me dida em que deixam os de ace itar seriam ente a Encarnaç ão, mesm o como
rea lidade simból ica, a verdade da nossa na tureza dual é re legada a o
underground. Inconscientemente, o amor divino, e todo o paradoxo do amor
divino e do amor humano, infiltram-se na poção do amor. É lá que ambos se
encontram atualme nte, borbulhando num caldeirão de proje ções, m isturados na
sopa do am or rom ântico.
Aprendem os que um a da s raízes culturais do am or rom ântico é o dualismo
maniqueísta, que viveu na Europa Ocidental no século XII como heresia
albigense. A doutrina de sta religião dizia que a metade divina da realidade é o
bem absoluto. Para os albigenses, o Único bem era o que existia no plano
"espiritual", o que se encontrava no "céu". Os ser es hum anos físicos, a vida
humana comum, a sexualidade, o amor erótico e toda esta terra física eram
vistos como "m al", com o um abismo de trevas exa lando vapores de c orrupção.
Esta é a expressão teológica que corresponde ao que Tristão diz na linguagem do
rom ance , quando lem bra "o jura mento que fiz de servir a um só am or".
Dualismo albigense, dualismo cristão e idealismo rom ântico, tudo nos ensina que
devem os servir a penas ao a mor divino, que os sere s humanos comuns não são
merecedores do nosso amor, que devemos amar as pessoas apenas na medida
em que reflitam nosso ideal, reflitam as nossas projeções sintonizadas na
vibraç ão de um outro m undo super-huma no, cósmico e divino.
O culto do romance nos ensina que as pessoas comuns não são suficientes, que
precisamos procurar um deus ou uma deusa, um astro de Hollywood, a mulher
ou o homem dos sonhos, uma rainha de belez a: um a pe rsonificação da a nima ou
do animus. Enquanto fica r preso ness a m entalidade, o homem jam ais irá ac eitar
qualquer coisa que não sej a sua anima ; ele só vai se relacionar com a m ulher
que refletir o seu sonho de Isolda a Bela.
A história de Isolda da s Mãos Brancas é a história da oportunidade perdida por
Tristão quando deix a de descobrir que e xistem duas espécies de a mor e duas
espécies de relac ionam ento: um c om a anima , no interior, e outro com a m ulher,
no mundo físico. Cada qua l é distinto do outro e cada um tem seu próprio valor,
mas se Tristão, como nós , tivesse um a segunda c hance , ele apre nderia com
Isolda das Mãos Brancas ao invés de re jeitá-Ia. Ele poderia apre nder que o
significado da vida não é encontrado apenas na busca do seu ideal interior; ele
tam bém pode ser encontrado n a m ulher f ísica com a qual vive no castel o de
Carhaix.
15 - Do Sofrimento e da Mor te
De tous les ma ux, le mien diffe re; Il me plait; je me réj ouis de lui; Mon m al est
ce que j e ve ux Et ma douleur e st ma santé! Je ne vois donc pas de quoi je m e
plains, Car mon mal m e vient de m a volonté; C'est mon vouloir que devient mon
mal, Mais j' ai tant d' a ise à vouloir ainsi Que j e souffre agré ablem ent, Et tant de
oie dans m a douleur Que j e suis ma lade avec délice s.
Estas são as palavras de um dos maiores poetas da época dos trovadores, que
primeiro registraram alguns dos mais importantes "romances" dos primórdios da
literatura rom ântica. Com que perf eiçã o ele c apta o estranho e desconh ec ido elo
entre romance e sofrimento! O sofrimento parece ser uma parte integrante do
roma nce, com o sabem homens e m ulheres qu e j á estiveram apaixonados.
Tentam os escapar dele, e a lgumas vezes até imaginam os tê-Io conseguido, ma s
ele sempre nos aguarda num lugar onde menos o esperamos. Até mesmo a
palavra paixão srcinalmente significava "sofrer".
É com o se o sofrim ento tivesse sido incluído no rom ance por nossos ancestrais
que, ao contrário de nós, viam-no como sendo uma doutrina espiritual. Ao
ensinar-nos a buscar - num homem ou numa mulher um ideal de perfeição que
amais poderia encarnar-se numa pessoa, eles nos condenaram a um ciclo
apar entem ente interminável de expec tativas im possíveis, seguidas de am argos
desapontamentos.
Há m ais: tam bém é ver dade que in conscientem ente procuram os nosso próprio
sofrim ento! Como Tristão, parece que inconscientem ente esforç am o-nos para
criar situações impossíveis, para nos envolvermos com pessoas que não
deveríamos, esperando coisas absurdas dos nossos relacionamentos, que
possivelm ente não se realizam . Procuramos o sofrimento como se ele fosse
imprescindível à experiência r omâ ntica, com o se não pud éssem os passar sem
ele. Incons cientem ente, parec e que nos deliciam os com ele: "Ele m e alegra ; eu
me regozijo nele." Se meus desejos são impossíveis, e se trazem mais dor que
prazer, ainda assim, "encontro tanta satisfação em assim querendo, que sofro
agra davelme nte, e tanta alegria e m minha dor, que esto u doente de delícias."
Há m uito o que apre nder ao exa minar a poesia e os rom ance s de nossos
ancestrais, pois eles tinham a virtude de dizer as verdades que não queremos
enca rar. Seé,puderm
realmente os abrir a aptos
então estaremos mentea ecompreender
deles aprender
que com o dizer
forças atuamaquilo que
dentro de
nós. Não é coincidência que toda a literatura romântica - de Tristão e Isolda a
Romeu e Julieta e outros, até nossos dias seja repleta de sofrimento e morte. A
própria natureza do rom ance parece exigir um a atm osfera de situações
impossíveis, obstáculos intransponíveis e adversidades tenebrosas. P ercebendo a
impossibilidade de seu romance no mundo físico, muitos amantes arquetípicos -
como Romeu e Julieta - escolheram morrer juntos.
Que espécie de idealismo é esse, tão extremado, que prefere a morte e outro
mundo, ao invés de a ceitar uma vida m enos perfeita aqui na terra ? O que há
nesse tipo de sofrime nto que nos atrai com tal poder fazendo com que sem pre
retornem os às suas labar edas, sem nos importarmos com as vezes que j á fom os
nelas queimados? É isto que nos perguntamos ao observar o sofrimento e a morte
de Tristão e Isolda.
Em sua noite de núpcias, Tristão deixa cair do dedo o anel de jaspe verde, que
bate no chão de pedras. Esse fato representa o último grande m arco de sua vida,
e ele então resolve que para ser fiel ao seu ideal interior representado por Isolda
a Bela - ele pre cisa r ej eitar sua m ulher. "E agora, que pe na sinto de m inha
esposa, pela sua confiança e pe lo seu cora çã o ingênuo. Vêde c omo e stas duas
Isoldas m e e ncontraram numa hora infeliz! E a am bas fui infiel!"
esse instante um a porta de fe rro se fe cha par a m etade da naturez a de Tristão,
que dec ide repudiar sua e sposa e, no m esm o ato, desiste da vida. Daí em diante,
até seu último suspiro, ele pare ce apena s aguardar a morte que - a credita ele -
irá uni-Io f inalme nte ao seu ideal, seu so nho, sua idéia de perf eição, sua a lma -
tudo encarna do em Isolda a Bela.
Ele a bre m ão de todo o am or terre no de Isolda das Mãos Brancas; servirá apena s
ao a mor divino, buscando sua alm a na r ainha. Mas Tris tão não encontra sua a lma
em Isolda, nem Isolda e ncontra a sua e m Tristão. Em última a nálise, eles
encontram somente o re flexo do reino d ivino que anseiam encontrar do out ro
lado do túmulo. Tristão é duplam ente infeliz, pois perde u as dua s Isoldas. Perdeu
a alegria da vida terrena junto da esposa e, querendo manter um relacionamento
físico com I solda a Bela, ac aba por perde r a ligação com ela. Não pod e tê-I as
nos termos que e le quer. Pe rde sua vid a interior e perde a espera nça de vir a
ree ncontrá-Ia , a não ser que m orra e encontre Isolda a Bela no s céus.
Se tivéssemos observado, poderíamos ter visto a Morte aproximando-se muito
cedo. Os am antes j á e stavam clam ando por ela debaixo do alto pinheiro,
ansiando por um lugar perfeito onde pudessem ver realizado o seu ideal
rom ântico. Ouvimos o desejo na voz de Tristão quando ele f alou do "outro
mundo":
"Mas, um dia, amiga, iremos juntos a uma terra bem-aventurada, da qual
ninguém jam ais retorna. Lá s e. ergue um c astelo de m árm ore branco; em cada
uma de suas mil janelas arde a luz de uma vela; e em cada um a, um m enestrel
toca e canta uma melodia sem fim..."
ovamente ouvimos as palavras de Tristão junto ao rei, quando se faz passar
pelo bobo da corte, pedindo a rainha para si. Para onde irá ele levá-Ia?
"Lá bem alto, suspenso entre a s nuvens e o cé u, há um belo lugar c ercado de
anelas transparentes, onde penetram os raios de sol mas os ventos não ousam
perturbar. Colocaria a rainha nesse aposento de cristal, repleto de rosas e de
manhãs."
Onde é que tal terra maravilhosa pode existir? Como poderem os encontrar o
caminho que nos levará até e la? Tristão planej a c hegar lá pelo escuro ca minho
da m orte. Quando ele se despede da r ainha pela última vez, ma rca um encontro
com ela - um encontro de am bos com a m orte. Ao dizer o que vai ac ontecer, ele
mostra sua intenção:
"Minha m orte e stá próxima , e longe de vós, m orrer ei de desej o."
E Isolda responde:
"Am igo, envolvei-m e num a braç o, estreitai-m e fortem ente e tanto, que nossos
corações se rompam e vossa alma e a minha finalmente se libertem . Levai-m e
para aquele lugar de felicidade do qual me falastes há tanto tempo. Os campos
de onde ninguém jam ais retorna, onde m aravilhosos trovadores ca ntam suas
canções eternam ente..."
"Eu vos levarei à Feliz Terra dos Vivos, rainha! O tem po está próxim o e quando
ele c hegar, se e u vos cham ar, vireis, minha a miga?"
Quase no fim, quando Tristão está prostrado pelo veneno da lança, ele coloca o
anel de j aspe verde na m ão de Kaherdi n e pede para que l eve uma mensagem a
Isolda: "Dize-lhe que pre cisa vir, pois bebem os nossa m orte j untos."
Realmente, beberam juntos a m orte, e quando o fim e stá próximo, a m orte
parece ser o obj eto de todos os seus desejos. O sofrim ento de am bos na face da
Terra somente se torna su portável pela e sperança de e ncontrar per feição, beleza
e felicidade no mundo q ue virá após a m orte. Mas que m ara vilhosa terr a é essa
de c astelos de m ármore bra nco e aposentos repletos de rosas, est e "Pa lácio da
Felicidade dos Vivos"?
Esse reino perfeito e belo só pode ser o mundo interior. Nós todos instintivamente
sabem os a re speito desse m undo, vibram os com essas palavra s dos am antes; o
que a lmej am desperta um a onda de simpatia e m nossa a lma. É a terra dos
contos de fa da, o mundo da ima ginaçã o, onde a a lma convive em segredo com
os deuses. Por que, então, esse mundo interior da alma é simbolizado pela Morte?
Por que Tristão e Isolda a creditam que lá só poderão c hegar pelo cam inho dos
mortos?
Desde os tempos primordiais a morte foi concebida como o "visto de saída" da
dimensão limitada do tempo e espaço, para o universo ilimitado e imensurável do
espírito e da eter nidade. Esta "liberação" do físico é, pa ra o inconsciente, um
símbolo de a lgo m ais sutil: a liberação do e go dos limites de se u m undo exíguo e
dos seus pontos de vista mesquinhos, para o universo interior, livre e ilimitado da
psique. Sem essa visão restrita que a associa com o fim, a m orte é um símbolo de
mudanças profundas, de transformação.
A "terra dos mortos" é o m undo interior da alm a. O significa do mais profundo da
morte, vivenciado nas profunde zas do inconsciente, é um símbolo de
transform ação. A transform ação do ego, qu e ao penetrar no reino da psique,
encontra-se c om a a lma e se integra a e la, e desiste de seu m inúsculo império
para viver na vastidão de um universo m aior.
O entendimento desse a specto nos permite um a visão nova e mais am pla: o que
se exige de nós é transform ação, não morte! I sto é sem pre m ostrado nos
rom ance s, onde se usa a "morte" com o símbolo. Esta é a solução par a os
conflitos, para os valores, quando ficam confusos, e para os terríveis sofrimentos
que a contece m no romance. A única e verdadei ra solução é uma mudança de
consciência e uma mudança de valores.
Mesmo assim, uma verdadeira "morte" nos espera na e xperiência de
transform ação: a m orte do ego. Com a "m orte do ego" não querem os dizer que
ele se eva pora ou desapar ece, m as sim que ele sacr ifica seu velho mundo, seu
velho ponto de vista, suas velhas a titudes e nraizadas. Quando surge na vida um
novo conjunto de valores e uma nova síntese torna-se possível, ele deve destruir a
velha ordem do mundo do ego, e ele só pode sentir isto como sendo "morte".
Se o ego toma esta m orte com o uma am ea ça, então ele vai resis tir e va i lutar
contra a mudança. Todos nós agimos assi m, no am or rom ântico; m esm o quando
vem os a nece ssidade de transform ar nossos valores para vivenciarm os a
verdadeira r evelaç ão do am or rom ântico, sentimo-nos am eaçados. Ainda nos
agar ramos às velhas atitudes, impomos as m esm as velhas exi gências às out ras
pessoas e tentam os viver nossas fantasias rom ânticas nos mesmos velhos níveis.
Mudar, questionar nossas opiniões, alterar nossos padrõe s, é algo que se ntimos
com o um de sastre iminente. Esta é a "m orte do ego ", a m orte que nos espera no
âm bito da transform açã o.
a é poca de Tr istão eles tomavam o símbolo ao pé da letra, ac reditavam que
somente encont rariam o mundo da alma e do espírito por m eio da m orte, ao
deixar o corpo f ísico. Num ponto, no entanto, eram mais sábios que nós: tinham
maior c onsciência e e ram mais diretos em relação a o que procuravam no amor
rom ântico. Os cátaros e os t rovadores clara mente diziam que estavam em busca
da transformação, que a estavam procurando por meio do amor apaixonado e da
morte. A morte, porque e la os libertava da escr avidão da carne; a paixão, porque
sentiam que dentro dela e stava a vibraç ão de um outro m undo, o prazer e o
sofrim ento, e e les viam nisso tudo uma espécie de antegozo do mundo divino. O
am or româ ntico para e les era uma iniciação, achavam que a paixão do am or
espiritualizava o eleito na antecipação da paixão final, ela consumia pelas
chamas a vida humana que nos separa dos "campos de onde ninguém jamais
retorna.
ós não somos tão diretos, não temos consciência do que buscamos, mas
herdamos as mesmas crenças. Caminhamos pela vida esperando muito por uma
experiência que nos transforme, o vislumbre que trará significado e plenitude à
nossa vida. Estam os em busca da a lma , do mundo d ivino, ma s não sabem os
como viver com os deuses no plano simbólico e interior. Inconscientemente,
impulsivamente, como seres possessos, procuramos isso na paixão, apaixonando-
nos, entregando-nos a um poder que nos envolve e nos domina. É prazer, é
sofrimento, é uma espécie de morte, mas principalmente é uma amostra do que
costuma va ser procura do no após a m orte: transfiguraç ão. É m orte e
rena scime nto: mortos para o m undo e vivos para um reino ma ior que a vida.
Enquanto a paixão perm anec e a cesa, enquanto as proj eções são m antidas, é isso
o que se sente, e isso, acima de tudo, é o que se busca.
Tristão acredita que para atingir o mundo interior existem duas maneiras:
primeiro, pelo sofrimento e pelo êxtase de sua paixão por Isolda a Bela; segundo,
pela morte, ao deixar este mundo físico. Nós os ocidentais de hoj e, reduzimos
ainda mais as opções; a maioria de nós busca o mundo interior num só lugar - a
paixão rom ântica. P or que é assim?
Em parte, por causa de nosso dualismo ocidental, a divisão da vida em duas
partes: a vida física na terra, a vida espiritual no céu. Tanto o catarismo como o
cristianismo m edieval ens inam a Tr istão que a vida na terra é na da, que a vida
espiritual só pode ser alca nçada após a m orte, no "céu". Essa crença tornou-se,
em nossa mente, a idéia inconsciente de que o lado espiritual da vida é sempre
"em algum outro lugar" ou "do lado de lá". É sempre nalgum lugar diferente de
onde estamos, num lugar fora de nossa vida. Nós, ocidentais, não acreditamos
realmente que possamos vivenciar nossos deuses e nossa vida espiritual, como
uma experiência ín tima, e ao m esmo tem po levar um a vida c omum , no dia-a -
dia aqui na terra. É difícil para nós conceber a idéia desses dois mundos - interior
e e xterior - coexistindo ao m esm o tem po num ser hum ano. Por iss o que tentam os
sem pre m aterializar o mundo divino em alguém ou em algo fora de nós mesm os.
Outra razão par a buscar nosso m undo interior no a mor rom ântico é
simplesm ente porque os ocid entais não c rêem no m undo interior, e ,
conseqüentemente tudo o que fazemos com esse lado não vivido, tem de ser
inconsciente, tem de ser projetado no mundo físico. A idéia de um mundo não
físico e interior é difícil de ser concebida pelos ocidentais; falamos de realidades
interiores, falam os de "alm a" e de "espírito", m as na ver dade, não a creditam os
neles. Com o passar dos séculos, perdemos o contato com a vida interior e seu
simbolismo, à medida que nossa cultura se foi tornando mais chã e materialista.
essa área realmente fizemos uma evolução ao inverso.
a é poca de Tristão a m aioria da s pessoas concebiam "alm a" e "espírito" com o
sendo entidades quase físicas, ligeira mente m ais sutis que o cor po físico;
deveriam estar num corpo físico ou num "lugar" - um "limbo" ou "céu". Eles
imaginavam o "cé u" com o sendo um m ero lugar físico, não um e stado de
espírito, e r ealme nte passara m séculos especuland o sobre a localização do cé u no
universo físico!
Mesm o vários séculos depois de T ristão, nos dias de Galileu, profe ssar a
astronomia e ra bastante per igoso, porque a maioria das pessoas e stavam
convencidas de que o mundo divino estava localizado "lá em cima", entre as
estrelas e os planetas. Considerara m Galileu um here ge porque o que e le viu
atra vés de se u telescópio contradizia essa idéia.
ão evoluímos muito mais em nosso século. Nossa religião é o romance:
colocamos o mundo divino em pessoas de carne e osso - pelas quais nos
apaixonamos. Qualquer psicólogo que afirme (após consultar seu telescópio) que
o m undo divino não pode ser rea lme nte encontrado no rom ance , provavelm ente
deixará a s pessoas m uito irritadas, e será rotulado como um desma ncha-
prazeres, ou até m esm o com o herege.
Agora encontramos a chave da escrita secreta que decifra "sofrimento e morte".
Começamos por ver que a "morte" que procuramos no amor romântico é a
transform ação, o fim do mundo ant igo, o toque arde nte do fogo qu e m ata e dá a
vida ao m esm o tem po. O sofrim ento no roma nce, e m última análise, não difere
do sofrime nto no plano da religião e do m isticismo. É a dor que os m ortais
sentem ao dar à luz o mundo divino que está em sua vida na vida física com seus
limites finitos.
Por que é que nos deliciam os principalme nte com alguns relatos de am or
impossível? Porque quer em os muito ser m arcados a fogo; porque querem os
muito estar cientes do que está em fogo dentro de nós. Sofrimento e
entendimento estão profundamente ligados; morte e autoconsciência são aliadas;
o romanti smo europ eu pode ser com parado a um homem para quem os
sofrimentos principalmente os de amor - constituem-se num privilegiado método
de entendime nto. (de Rougem ont, Love in the Western World, p. 51-2.)
O sofrime nto é o c am inho inevitável que deve ser trilhado para se che gar à
consciência, o preç o inevitável da transform ação que buscamos. Não há c omo
esca par- lhe; nós que tentam os fugir dele, j am ais conseguiremos, e nossa
infelicidade é dupla, pois além de pagar o preço, não alca nçam os a
transfo rm açã o. Há um a lei terrível e imut ável em aç ão: só há trans form açã o
quando aceitamos nosso sofrimento de maneira consciente e voluntária;
tentativas de f uga some nte nos coloca m nos ciclos cá rm icos que se repetem
infinitamente e nada produzem.
Portanto, é por isso que sofremos, e é por essa causa que, inconscientemente, nós
até procura mos sofrer : "Porque quere mos muito ser m arcados a fogo; porque
querem os muito estar c ientes do que está e m fogo dentro de nós."
os é da da a liberdade de e scolher c omo suportar o sofrime nto. Em ger al, as
pessoas o tomam sem consciência, e é por isso que lhes parece que ele não leva
a nada, a não ser à dor. É por isso que o roma nce f reqüentem ente pare ce ser um
ciclo sem significado: apaix onam onos, arm am os nosso ideal de perfe ição, e com
o passar do tem po, ficamos am argam ente desapont ados. Sofrem os. Seguimos
nossas proje ções, sem pre procurando aquela que se enca ixe no ideal imposs ível
e que m agicam ente nos transform e. Quando não encont ramos o mundo divino
onde o procuram os - num ser huma no - sofre mos, nos desespera mos.
Por outro lado, se tomamos nosso sofrimento conscientemente, voluntariamente,
ele nos dá algo em troca, ele promove a real transformação. Sofrer com
consciência si gnifica sobrevi ver à "morte do ego ", ac abar com as proj eções, não
mais buscar o "mundo divino" num cônjuge, e ao invés disso, encontrar a própria
vida interior c omo um ato psicológico e religioso. Significa assum ir a
responsabilidade de descobrir a própria totalidade, a s possibilidades inconscientes.
Significa questionar nossos velhos padrões e estarm os ansiosos por m udá-I os.
Tudo isso envolve conflito, auto-questionam ento, e ainda traz à tona duplicidades
que preferiríamos não ter que enfrentar. É algo doloroso e difícil.
o entanto, é esse o sofrimento que nos leva à totalidade, coloca o romance
com o estrada que leva ao m undo divino. Descobri mos que nã o há a nece ssidade
da m orte física par a que possam os nos depara r com esse m undo. Só precisam os
morre r simbolicam ente, e o sofrime nto repre senta essa m orte simbólica.
A maravilha finalmente desvelada é que podemos viver no mundo divino ao
mesmo tem po em que vivem os em car ne, na terra , pois dentro de cada um de
nós ergue-se um "castelo de m árm ore branco; em cada uma de suas m il ja nelas
arde a luz de uma vela; e em cada um a, um m enestrel toca e canta uma m elodia
sem fim". Para encontrar esse lugar de maravilhas não precisamos nem olhar
para outra pessoa nem para o que fica além túmulo; basta olhar para dentro de
nós mesm os.
Se vivermos de form a correta e ssa m orte - por m ais paradoxal que possa
parecer - esse processo se transforma numa j ornada de descobertas que nos leva
a um a nova vida. A morte m ostra-se com o a outra face da vida, e a "m orte" que
nos aguarda bem no me io do roma nce não significa a destruição da vid a, m as
sim o florescimento de um mundo interior.
Em seu m ais nobre aspec to, o am or rom ântico é a e strada que nos conduz a um a
dupla re velaçã o: transporta-nos para além do prosaísmo e do ma terialismo da
mentalidade ocident al e coloca-nos face a fa ce com a vida simbólica; abre
nossos olhos para o significado do amor humano. Mas, em seu aspecto mais
falho, o am or rom ântico torna-se um ciclo de ilusões que nos faz desp erdiçar a
vida, prejudicando nossos amores ao invés de beneficiá-Ios.
Como uma faca de dois gumes - extremamente útil quando usada corretamente,
e e xtrem am ente nociva quando usada da forma erra da - o am or româ ntico
reflete os dois lados da a nima : ela pode ser Isolda, a Rainha do Mundo Interior,
que nos conduz ao nosso mais profundo self, ou pode ser Maya, a Deusa da
Ilusão. De um lado, ela serve à vida e lhe dá sentido, ma s sua outra face é
terrível- ela pode re duzir a fa rra pos uma vida huma na, ela nos afasta da
rea lidade e transform a nossos esforços n o sentido do am or numa perpétua dança
de ilusão. Aca bam os de ver Tristão e Isolda nessa dança da anima , numa
core ografia que tod os nós conhece mos muito bem .
É oportuno lembrar o que Jung disse sobre as duas faces de Isolda:
Ao se par ar de fa zer proj eções, a anima volta a ser o que era originalme nte: uma
imagem arque típica que, no seu "loco exato", age em prol do indivíduo.
Colocada entre o e go e o m undo, ela é com o uma Shakti a mudar
incessantem ente, enqu anto tece o véu de May a e dança a ilusão da e xistência.
Mas, atuando entre o ego e o I nconsciente, a anima se torna a matriz de todas as
figuras divinas e semidivinas, desde as deusas pagãs até a Virgem, desde a
mensageira do S anto Gra al até a santa. (J ung, Psy chology of the Tra nsfer ence ,
p. 504.)
Colocada entre o ego e o incon sciente, a a lma abre o cam inho para Deus; ela
torna a vida e spiritual possível par a o ser. Se tra nsferida par a os seus
relac ionam entos pessoais com outros seres hum anos, ela os transform a em
ilusões; ela lança o enca ntam ento de May a.
a m itologia hindu, May a é a de usa que exec uta a dança da ilusão, tece ndo um
véu de fina tei a que e la estende e ntre a realidade e o mundo dos homens,
distorcendo a visão daquilo que e xiste. Freqüentem ente se diz que a finalidade da
prática da ioga é "ver através do véu de May a".
A medida que nosso mito caminha para o final, esse véu cobre os olhos de
Tristão. Maya lança seus sortilégios sobre ele. Não é mais Isolda quem o inspira,
mas May a, m antendo-o num sonho eterno, faz endo com que seus pés nunca
toquem o chão; ele susp ira, ele sente f alta, e le vagueia entre Carhaix e a
Cornualha num delírio, num real estado de loucura. Nada o atinge, nada o
intere ssa, a nã o ser a ima gem de Isolda que toma conta de sua m ente e o deix a
obceca do. No entanto, ela j á nã o serve m ais à vida, não o leva a nada. Ele e stá
perdido numa fantasia que não o aproxima em nada do mundo interior, e que
ainda o isola do mundo exterior - dos amigos, da esposa, da vida física. Durante o
restante de seus dias, ele vagueia no sonho de Maya, morto para tudo o mais,
dançando loucam ente ao som de um a m úsica que somente ele ouv e, vinda de
um reino que ninguém mais vê, além dele mesmo.
May a é Ilusão, é distorção e perda da r ealidade. Nossa narr ativa nos diz que o
am or rom ântico é atorm entado pela ilusão; um home m só se torna ciente da
ilusão quando lhe ocorre que a mulher pela qual está apaixonado não pode, nem
vai resolver todos os seus problem as e fazer de sua vida um mar de rosas sem o
menor esforço de sua parte. Sua esposa se torna ciente da ilusão quando vê que
ele é be m difer ente daquel e hom em com o qual pensou ter se c asado e, pior
ainda, que e le fre qüentem ente é insensível e desatencio so, exatam ente com o
todos os dem ais. Não ha via visto o hom em , havia visto a ilusão. Mas, af inal, de
onde vêm estas ilusões?
Muitos hindus, da mesma forma que alguns cristãos, acreditam que o mundo
físico que nos cerca é um mundo ilusório - que apenas o mundo espiritual é real.
A maioria dos ocidentais , no entanto, ac redita que o m undo espiritual interior é a
ilusão, que apenas o mundo físico é real. Mas a ilusão não é nem o mundo
interior da psique e nem o mundo físico exterior. A ilusão é um relacionam ento
distorcido entre o interior e o exter ior. Fazem os nasce r a ilusão ao sobre porm os
nosso mundo interior de ima gens - nosso fluxo contínuo de fa ntasia - ao m undo
exterior e à s pessoas que vivem nele. Vem os o mundo físico c olorido e distorcido
através do filme das nossas imagens interiores. Assim como disse São Paulo:
"Agora vem os com o que através de um e spelho, obscuram ente."
O m undo físico é ve rdadeiro e re al; o mundo interior tam bém é ver dadeiro e re al
e, é quando os confundimos, quando não c onseguimos viver o mundo interior
como símbolo, quando tentamos localizá-Io em pessoas de carne e osso, que este
mundo ilusório é c riado. O m undo ilusório é o m undo proj etado, que a ssim
distorce tanto o interior quanto o exterior, de maneira que não conseguimos
enxergar nenhum deles tal como é.
Quando um homem experimenta uma fantasia de extrema paz e plenitude
precisa entender que essa fantasia é uma manifestação do que ele tem e do que
pode conseguir dentro de si mesmo. Geralmente, porém, ele irá proj etar essa
imagem de par aíso numa mulher, pedin do-lhe inconscientem ente, que
materialize essa ima gem . Nesse instante, e le cr ia a ilusão, enxerga "através de
um espelho, obscuramente"'. Deixa de ver a esposa tal como é, e também não
enxerga sua visão interior como a realidade que é. Os dois mundos estão
deform ados, am bos estão desrespeitados.
A anima se transforma em Maya, não porque ela tenha algo de errado, mas é o
que os home ns fazem com ela. Vam os relem brar que o qu e c hama mos de anima
é a alma de um homem. A alma não é algo amorfo, um capricho inventado para
figurar e m ca rtas de am or. A alma é um a parte específi ca do ser, com uma
função e specífica: é um órgão psicológico que desem penha um papel gerador de
vida de ntro dessa e stranha e mara vilhosa com binaçã o de partes psicológica s e
físicas que formam o ser humano.
A alma de um indivíduo, num certo sentido, tem por finalidade capacitá-Io - a ele
ou a ela - a ve r um lado difer ente do cosmo, a viv enciar um a vida e uma
perspectiva que são infinitas. A alma somente pode fazer aquilo que foi designado
para ela, o que está em sua natureza: ela inexoravelm ente vai nos levar em
direção ao infinito. Se a colocarmos em situações finitas, ela continuará a nos
conduzir para o infinito; se a colocarmos em situações pessoais ela continuará a
nos puxar na direção do impessoal e do transpessoal. É assim que Isolda se
transfo rm a e m May a - não porque haj a a lgo nocivo na a lma, m as por ser tão
boa e tão persistente, no sentido de nos puxar para o seu lado da existência, o lado
que vibra com o infinito.
Quando um home m tenta prender sua alm a e m situações pessoais, ela c ontinua
fazendo o que deve f azer, ou sej a, atra i essa situaçã o pessoal em direç ão às
imagens psíquicas do inconsciente coletivo e "infinitiza" a situação finita,
convertendo -a numa alegoria de gra ndes tem as a rquetípicos - disputas e ternas,
buscas sagradas, cruzadas. Vem os homens colocando a alma em todos os tipos de
situações hum anas finitas; e a í dizem os que e stão fazendo "um bicho de sete
cabeças" ou "uma tempestade em copo d'água". Em termos terrenos, falamos de
"inflaçã o": o exagero de um a situação f inita porque o home m nela c olocou a
alma, e a alma, como é de sua natureza, "infinitizou" a coisa. Assim, Isolda se
torna May a e a a nima é transform ada, sem quere r, em autora da il usão.
A natureza da anima é c riar o lado de fa ntasia que a vida tem , e quando
vivenciam os essa fantasia, cons cientem ente, em um nível simbólico, a a nima
cria um mundo de e splendor, uma visão do universo atem poral que nos eleva
muito além dos limites da vida pessoal e nos faz travar conhecimento com o
universal e o eterno. V em o-nos a nós me smos e vem os a vida c om uma nova
perspectiva; vemo-nos no decorrer das eras e observam os que nossa vida é
manifestação individual daquilo que é e sem pre será .
A alm a é aquela parte do ser que lu ta para renovar sem pre a consciência do que
é universa l, dos grandes tem as da vida que estão for a dos assuntos pessoais e que
transcendem à vida pessoal, mas que são comuns a todos. A alma está voltada
para Deus, como um girassol voltado apenas para a luz; ela som ente vê os
arquétipos, os deuses interiores, o gra nde leitmotiv que se encontra por trás de
toda existência individual. É por isso que a anima exerce tanta pressão sobre a
vida de uma pessoa: a anima não está interessada nas idiossincrasias particulares
da vida quotidiana - se minha c onta bancá ria e stá equilibrada, se meus
relac ionam entos com a s pessoas são corre tos, se o me u gram ado está apara do.
Seus olhos estão voltados para as contas cósmica s, equilibrada nos pra tos de
Libra, onde a única questão é nossa totalidade interior. Seus valores não sã o
valores humanos, ma s cósmicos; seu único interesse é saber se vivem os e
vivenciamos cada um dos grandes temas existenciais que estão contidos
potencialmente dentro do nosso ser.
A alma do homem exige que ele seja, e que ele viva, cada uma das grandes
personagens arquetípicas do inconsciente coletivo: o traidor e o traído, o que ama
e o que é amado, o opressor e a vítima, o nobre e o ignóbil, o conquistador e o
conquistado, o guerreiro e o sacerdote, o homem dos sofrimentos e o que
renasceu de si mesmo.
Quando um home m tenta viver sua a lma dentro do ca sam ento finito, sua alm a
"infla" e distorce a visão que e le tem , tanto da e sposa quanto do próprio
casam ento. Sua alm a c ontinua tentando impelir o re lacionam ento em direção ao
infinito, transform ando-o numa alegoria de a mor, m orte e para íso perdido,
convertendo esse casam ento humano num enorme , arra sador, dram a
arquetípico. Esse dra ma, de qualqu er form a, e stá a contecendo dentro do home m
- todo o tem po - ao nível da fa ntasia. Se ele pudesse a prender a m antê-Io lá, vê-
Io com o um símbolo e vivenciá-I o com o tal, então e le poderia viver de form a
usta com sua alm a. P oderia segui -Ia , no m undo interior, e m direção ao infinito,
permanecendo, porém, dentro dos limites do finito no seu relacionam ento com a
mulher.
o trabalho através dos sonhos, na imaginação ativa, na meditação, ele seguiria
sua alm a até Cam elot, onde participaria de justas e tornei os com os cavaleiros .
Ele partiria em busca do Santo Graal, combateria dragões e Morholts, salvaria
donzelas, curaria os doentes e encontraria cura para seus próprios ferimentos. Ele
trairia e seria traíd o, pecaria e se a rre penderia, e se vin garia: viveria, enfim ,
todos os arquétipos do inconsciente c oletivo, m as de form a simbólica. Ele
manter ia o infinito contido no símbolo - o único re cipiente c apaz de c ontêIo sem
rac har e sem destruir sua vida pessoal.
De um a j ornada simból ica em direç ão a o infinito, seguindo sua a lma na
imaginação e no sonho, o home m poderia e ncontrar seu ca minho de volta para o
mundo finito. Lá ele encontraria seu lar, sua esposa, seus relacionamentos
intactos, e concordaria em lidar com as questões finitas e com os limites da vida
com um. Ele poderia a prender a não brigar c om sua e sposa por e star irritado com
algumas ca racterísticas dentro de si me smo ou porque sua alm a quer levá-Io a
lutar com vilões interiores. Ele apre nderia a ver sua fantasia com o um
acontecimento seu, de seu interior, e a vivenciá-Ia nesse nível interior.
Um home m que coloca a anima no seu casam ento está colocando sua fa ntasia
no casam ento e transform ando-o numa série de c enas ar quetípicas, num
"playground" para as forças impessoais do inconsciente. Sua mulher, caso não
participe da fantasia, começa a perceber que não é tanto uma esposa, mas sim
uma figurante de uma gigantesca encenação: o drama cósmico que se desenrola
o tem po todo no mundo interior do seu m arido.
A anima , usada com o aj uda num r elacionam ento, está rea lmente m uito distante
de ser um elem ento de ligaçã o, e pare ce estranho que tenha sido considerada
assim, algum dia. Em cada uma de suas formas clássicas, ela é uma criatura
não-huma na ou sem i-humana, e sua influência. no s afa sta da situação huma na
individual. Ela causa mudanças de humores, distorções, ilusões que servem à
ligação huma na ape nas quando as pessoas em questão com partilham do me smo
estado de espírito ou da mesma fantasia. Se quisermos nos "relacionar", que a
anima fique de f ora! Nada perturba m ais a exati dão dos sentimentos entre as
pessoas que a anima...
A afinidade de George e Mar y depende das natu rezas espec íficas de Ge orge e
Mary, ela r eflete todo um processo d inâm ico ao lidar com os sentimentos, e o
relacionamento resultante é único e exclusivo dos dois. Se esse relacionamento
fosse determinado pela anima, transformar-se-ia mais num reflexo de fantasias
arquetípicas que num r eflexo deles m esm os. Quando isso ac ontece, e les se
tornam atores coletivos interpretando uma fantasia inconsciente, ou seja,
amantes, companheiros, inimigos...
... Ela não conduz ao sentimento humano, m as sim para fora dele. Como f unção
que liga o consciente ao inconsciente, ela impede o sentimento consciente,
tornando-o inconsciente e transform ando o humano em desuma no. Ela coloca
outras coisas na mente que não o mundo humano" (Hillman, Anima, p. 111-2.)
o instante e m que um homem se "apaixona" ele vai além do amor e com eça a
adorar a encar nação de sua alma na m ulher. A anima ime diatame nte c ome ça a
inflar desmesuradamente seu relacionamento humano, que acaba por sair das
proporções hum anas. O amor não é apenas am or, m as sim um êxtase divino;
cada visão da am ada traz con sigo não um a fe licidade tranqü ila, m as uma bem -
aventurança do outro m undo. Mais tarde, quando a a lma transfere sua a tenção
para o lado negativo dos arquétipos, cada um dos humores tornase m otivo para
uma briga ou uma separação, cada deslize é o máximo da traição, cada olhar
para outro hom em ou para outra mulher justifica explosões de raiva e de ciúme:
qualquer fa tor corriqueiro torna-se par te de um enorm e dra ma. A anima só pode
tirar os homens das mesquinhezas finitas para conduzi-Ios à grande encenação
universal.
Pa rece estranho, ma s é j ustam ente nesse ponto que o homem sente sua
individualidade acentuada, sente-se único como se isso jamais tivesse acontecido
a qualquer outra pessoa além dele e de sua amada. Na verdade, justamente
nesse ponto é que de perde a individualidade. Os amantes perdem suas
identidades individuais; eles são Tristão e Isolda, ou Romeu e Julieta - atores de
uma peça teatral coletiva, cujo roteiro é predeterminado e cujas cenas são
antecipadam ente conhecidas. É just am ente porque a pessoa deixa de ser e la
mesm a e torna-se par ticipante de um dram a universal, que e la se sente tão ativa,
tão fora do comum e, à primeira vista, tão m aravilhosa.
Mas, como S em ele, que exigi u de Zeus que lh e apar ec esse em todo o esplendor
de sua divindade, os relacionamentos humanos simplesmente são calcinados -
"queimam-se" quando submetidos ao poder divino contido nas projeções da
anima e do animus. As pessoas freqüentem ente se queixam que ficara m
"arrasada s" por um r elacionam ento. Isso é re alm ente verdade iro, elas se deix am
exaurir de tal form a pe lo ardor do am or rom ântico, tal com o tentam os vivê-I o,
com seus êxtases e seus confrontos, despedidas e reconciliações, que finalmente
nada rest a - nem força vital, nem boa vontade, nem afe ição - para ofer ec er a
outra pessoa, numa relação de companheirismo e amor em um nível humano.
ão deve surpree nder o f ato de que m uitas pessoas, sentindo-se pre sas à da nça
da ilusão, se tornem tão am arguradas. Elas decidem que o am or rom ântico é um
círculo vicioso cansativo e monótono, um embuste sem sentido, e desistem do
am or. Existe, porém , uma maneira m elhor para sair da dança . É preciso superá-
Ia, encontrando a verdade que está mascarada pela ilusão. Se procurarmos
diligentemente essa verdade oculta, fecharemos o círculo: nós nos
encontraremos novam ente no barc o com Tristão, Isolda e a poçã o do am or.
Estamos novamente nos perguntando porque o esplendor de Deus vem a nós não
pela vida religiosa, mas por nossos amores, nossas projeções, nossas ilusões. A
resposta é espantosa: porque nã o tem os vida religiosa e o reino divino prec isa
encontrar-nos onde quer que sej a possível, até m esm o nos prepara ndo
armadilhas. Nós temos igrejas, temos dogmas, temos doutrinas, temos opiniões,
temos grupos e reuniões; mas não temos vida religiosa porque damos pouca
atenção à nossa alma e à nossa vida interior.
Tristão nos m ostra quem somos; conscientem ente, ele nunca procura Isolda a
Bela para segui-Ia numa vida espiritual; voluntariamente, ele nunca dá qualquer
atençã o à sua alma , ma s ela o encontra, não pel a vontade dele, m as na poção do
amor e, mais tarde, na Dança da Ilusão. Nós também não damos atenção à nossa
alm a, não a procuram os, nem aos nossos deuses, de m aneira consciente ou
voluntária, ma s me smo assim a alma nos encontra e nos apanh a nas ar madilhas
de nossas proj eções, de nossas ilusões. O hom em bebe a poção, olha par a Isolda,
e vê, não Isolda, mas Maya; imperceptivelmente, sem que tome conhecimento,
seus pés come ça m a se m ovimentar e ele entra na dança.
Quando um home m evolui para além da ilusão e a e xpulsa dos seus am ores, faz-
se necessário um ato direto vindo da vontade. Apenas decidir abandonar as
proj eções com o ato heróico é algo que não irá funcionar; ele somente conseguirá
retirar a anima do seu c asam ento, dos seus relacion am entos e de sua vida
pessoal, quando assegurar um lugar para ela em um outro plano de sua vida.
O ato interior exigido do homem ocidental é aceitar sua própria natureza
religiosa, o que significa rec onhecer seriam ente que a s imagens e os sentimentos
que lhe ocorre m no sonho, na fa ntasia e na im aginação, são própri os do m undo
divino, são um tipo de realidade diferente da realidade de sua vida física e
pessoal, mas igualm ente real e igualmente importante. Ele deve m ostrar-se
disposto a levar essas imagens a sério, a gastar um certo tempo de convívio com
elas, a vê-I as com o tendo um poder muito importante dentro de si mesm o, como
habitantes de um reino espiritual que a alma lhe transmite por meio de símbolos.
Isso pode ser feito pela prática religiosa tradicional, pela meditação
contem plativa, pela ioga, pela fa ntasia e pelo trabalho do sonho, ou pela
imaginação ativa de Jung. Mas isso requer uma prática interior, uma vida que
assegure realmente a manifestação da alma, para ser vivenciada dia após dia.
Quando o homem consegue fazer isso, ele começa a captar a diferença entre o
interior e o exterior, entre o que deve ser vivido simbolicamente e o que deve ser
vivido fisicamente. Ele proj eta, m as apre nde o que fa zer c om a proj eção; ele
não é a tropelado e dom inado por suas proj eções. Ele sofre , m as seus sofrime ntos
produzem antes evolução e m udança, que um a vã repetição da dança. Sua alma,
finalmente tendo a permissão para viver e "infinitizar" em Seu elemento natural-
o símbolo - penetra ca da vez me nos na vida pe ssoal e finita do homem . Ela j á
não precisa prepar ar-lhe arm adilhas distorce ndo seu am or huma no, seu
relac ionam ento ou seu ca sam ento.
Essas a titudes m ostram uma difer enciaç ão, um passo evolutivo, uma
conscientização, que chega para o homem que paga o preço. Para ele, a dança
logo se desvanece , transform ada na vida simbólica que a ilusão m asca rava;
May a ergue seu véu e ele tem sua visão clare ada. Ele apre nde o que significa ser
um homem mortal com uma a lma imort al.
CONCLUSÃO
O toque de genialidade
exatamente daquilo quena história de Tristão
é; mostra-nos e Isolda é quedetalhes
em impressionantes ela nos ofala
que nos
aconteceu como civilização e como indivíduos. Como um espelho fiel, ela reflete
nossas atitudes, nosso comportamento, e mostra as forças psicológicas que agem
em nós, porém , ela nos deixa, em certo sentido, num dilem a. Ela nos fala
.daquilo que é , m as nã o nos diz. como agir.
Ao me smo tem po que nos perm item ver c omo somos na rea lidade, o mito e o
sonho freqüent em ente nos dão um a solução para o problem a. Vam os agora
exam inar dois outros relatos míticos que pare ce m ofer ecer- nos a resolução do
nosso dilem a.
O primeiro é um mito da nação Oglala dos Sioux, recontado pelo grande
feiticeiro Alce Negro - a história da Mulher-Espírito Bisão Branc o. Este é o relato
de com o uma mulher divina trouxe o primeiro cac himbo sagrado para os
Oglalas.
Há m uito tem po, dizem , dois batedores saíram à c aça de bisões; ao chegare m no
topo de uma alta colina, olhara m para o norte e viram algo surgindo de muito
longe, e quando chegou ma is perto exclam aram : "É uma mulher!" E era . Então,
um dos batedores, por ser parvo, teve maus pensam entos e os expresso u em voz
alta; mas, o outro replicou: "É uma mulher sagrada; livre-se de todos os seus
maus pensam entos."
Quando ela c hegou ainda m ais perto, puderam notar que usava um a bela r oupa
de ca murça branca , que seus cabel os era m muito longos e que era jovem e
muito bonita. Ela lia seus pensamentos, e disse numa voz que mais parecia um
canto: "Você não me conhece, mas se quer fazer o que está pensando, pode vir."
E o parvo foi , m as assim que parou di ante dela, uma nuvem branca envolveu-os.
A bela jovem saiu da nuvem e, quando ela se dissipou, tudo o que havia restado
do parvo era um esqueleto coberto de ver mes. Então a mulher disse ao que não
era parvo: "Volte para casa e avise seu povo que estou chegando, e por isso
devem construir uma grande tenda para mim no centro da nação." E o homem,
apavorado, corre u e a visou os dem ais, que fizeram o que e la m andara ; e
esperaram a mulher em volta da tenda. Depois de um certo tempo ela veio,
muito bonita, cantando os versos segui ntes, enquanto entrava na tenda:
Com hálito visível estou caminhando.
Envio m inha voz enquanto ca minho.
De forma sagrada estou caminhando.
Minhas pega das são visíveis quando estou ca minhando.
De form a sagrada cam inho.
E enquanto cantava, de su a boca saía um a nuvem branca que exalava um
perfum e. Em seguida ela deu ao chefe um cachimbo entalhado em um dos lados
com a figura de um filhote de bisão para simbolizar a terra que nos sustenta e nos
dá alimento - e, pendendo d o cabo, doze pena s de águia, am arr adas com uma
fibra que j am ais se r ompe , para simbolizar o cé u e a s doze luas. Disse ela:
"Ouçam , com isto vocês se m ultiplica rão e serã o uma naç ão j usta, e sem pre
terão c oisas boas. Some nte a s mãos dos bons devem cuidar dele, e os m aus não
deverão sequer pôrlhe os olhos." Ela cantou novamente e deixou a tenda e,
enquanto o povo a via partir, sua figura transformou-se num bisão branco que se
afa stou a galope, resfolegando , e logo desapare ceu.
É isto que contam , e se aconteceu não sei; ma s, pensando bem , pode-se ve r que é
verdade. (Black Elk, in Neihardt, Black Elk Speaks, p. 3-4.)
Aqui, em linguagem mítica, temos a essência daquilo que estamos tentando dizer.
a difer ença de a titudes entre os batedores, o parvo e o sábio, vem os as duas
abordagens do homem em relação à anima, e os resultados decorrentes de cada
uma delas. Não podem os evitá-Ia, pois que ela vem encontrar-nos em meio às
nossas atividades, mudando o rumo de nossa vida comum, quando menos
espera mos por um visitante do "outro m undo". Mas, a form a com o a tratam os é
que vai det erm inar a difere nça e ntre a bem- aventurança e a destruição.
A anima é um a m ulher sagra da, e nossa disposição em tratá-Ia , ou não, com o
um ser sagrado é que faz toda a difere nça. Este fem inino interior que proj etam os
é a "Mulher-Espírito", com o na "Mulher-Bisão Branc o", um ser do outro m undo.
Se form os com o o batedor sábi o, diremos: "É um a mulher sagrada; livre- se de
todos os ma us pensam entos." E quando a tra tam os como um ser sagra do, ela nos
traz o cachimbo sagrado, ela traz o céu e as doze luas, ela nos traz formas de
conhece r o outro mundo.
Se form os com o o batedor parvo, se tentarm os transform á-Ia num ser físico,
proj etandoa num ser exterior, perderemos o que ela tem de sagrado, perderemos
a possibilidade de re ceber o que e la nos tem a da r. O que há de terrível na a nima
é que ela nos perm ite encar á-I a como quisermos - como par vos ou como sábi os.
Ela diz: "Você não me conhece, mas se você quiser fazer o que está pensando,
pode vir." Mas o preço é terrível; o preço por deixar de tratáIa com o um ser
sagrado, com o um a entidade e spiritual do m undo interior, não é apena s a pe rda
do outro m undo, ma s tam bém a destruição da vida huma na, enquant o a e stam os
vivendo. É este o significa do do esqueleto do batedor pa rvo com ido pelos vermes,
ogado aos seus pés.
Quando nos aproxima mos da a nima respeitando-a c omo uma presença divina do
mundo interior, quantas bençãos ela nos concede! Ela nos dá o mundo sagrado de
presente, a restituição do sagrado em nossa vida.
Pa ssam os parte da vida sentindo a f alta de a lgo, procurando não sabem os o quê.
Tantas das nossas "pretensas m etas", tantas das c oisas que pe nsam os querer,
acabam por revelar- se m ásca ras, atrás das qu ais ocultam os nossos verda deiros
desejos; elas são símbolos para os verdadeiros valores e qualidades que
alm ej am os. Não se pode re duzir esses valores a c oisas físicas e m ateriais, nem
mesm o a um a pe ssoa, se são qual idades psicológicas: am or, verdade,
honestidade, lealdade , utilidade - algo que podem os sentir que é nobre, pre cioso e
que m erece nosso zelo. Tentam os reduzir tudo isso ao plano físico - casa, carro,
um c argo m elhor ou um ser humano - m as não dá c erto. Sem saber, est am os em
busca do sagrado, e ele não é redutível a nada.
um certo sentido, o sagrado é um sentimento, mas um sentimento que vai direto
ao â mago da vida. É o sent ime nto de r ecognição dirigido ao que é grande e
levado o suficiente para dar significado à vida mesquinha que levamos, para
colocar uma nova perspectiva nas nossas batalhas pessoais. É o sentimento de
reve rência. O que cham am os de sagrado é, em última instância, um univ erso de
paradigm as que usam os para avaliar nossos esforços pessoais, nossa vida, para
ver se neles tam bém existe significado.
Pa ra a psique m asculina, a descoberta do s agra do, a comunhão com o sagra do,
dá-se por m eio do fe minino interior. É a Mulher-Bisão Branc o que tra z o sagra do
à vida, a visão do céu e das doze luas.
Com hálito visível estou caminhando.
Envio m inha voz enquanto ca minho.
De forma sagrada estou caminhando.
Minhas pega das são visíveis quando estou ca minhando.
De form a sagrada cam inho.
Como um rio da vida, no qual todas as correntes da vida interior se juntam, todos
os valores que instintivamente sentimos como "sagrados" convergem para a
imagem da a nima e se tornam conscientes por m eio dela. Ela é com o disse Jung:
"A matriz de todas as im agens divinas e sem idivinas, desde a s deusas pagã s até a
Virgem , desde a mensageira do S anto Graal até a santa."
Pa rece que nunca saím os direta ou conscientem ente à procura do lado sagra do
da vida. Como os dois batedore s, vagam os por nossos velhos territórios de caça, à
cata apenas do rot ineiro e do conhecido . De re pente, nos depar am os com um a
parte desconhecida de nós mesmos: ela vem chegando, usando roupas de
camurça branca; e quando ela fala, sua voz assemelha-se a um canto. A
.princípio ficam os confusos: sua ima gem é de m ulher e querem os crer que é
possível nos aproximarmos dela como se ela fosse uma m ulher. É difícil
acr editar que não s ej a um a m ulher de ca rne e oss o, mas sim uma força
metafísica tão poderosa qu e nã o ousam os tocá-Ia fisicam ente.
Essa é a realidade que o sagra do nos apresenta, é a ssim que o sagra do se torna
uma "pessoa" e nos fala com uma voz singular. Isto é a anima.
Caso contrário, sentiríamos o sagrado apenas vagamente como o "outro lado da
vida", o "outro lado de nós m esm os", que nunca atingimos. Ele se m anife sta e m
sonhos de a venturas intensam ente desej adas, em triunfos que quase podem os
saborear, em seres c heios de luz que encontram os pelos corre dores e pelos rein os
fabulosos da mente. Sem a interferência do raciocínio e do pensamento, nossos
sentimentos nos em purram para o outro lado de nós mesm os, onde c ada im agem
vibra c om a prome ssa de um a extraordinária exper iência transcendental , rica de
significado e plenitude.
Tudo isso converge para um ser interior e nele se concentra; a Mulher-Bisão
Branc o chega aos dois batedores c omo uma visitante de um mundo m aior, fora
do campo de visão do ego, de suas opiniões, de suas noçõe s de "rea lidade". A
rea lidade é tão ma ior, tão repleta de pot encial para am pliar nossa vida e dar- lhe
significado, que o inconsciente nos diz: "Isto é sagrado; isto é o que deve ser
tratado como sagra do."
A Mulher-Bisão Branco canta: "Com hálito visível estou caminhando. Envio
minha voz enquanto ca minho."
Hálito, sopro, é um símbolo m uito antigo da vida e do espírito. Para os povos
antigos o sopro - a respiração, o hálito - era uma substância de Deus, o sopro
dado pelo Criador nas narinas do ser humano, a centelha da energia divina
em prestada à carne m ortal, durante um curto período de tem po na terr a: o sopro
da vida. Qua ndo a Mulher-Bisão Branc o ca minha com hálito "visível", ela
materializa o lado da vida a que cha mam os de "espiritual". Ela transforma o
invisível em visível.
Quando tratam os a Mulher- Bisão Branco com o sendo nossa a lma, e la tem o
poder de transform ar o "sagrado" num conhecimento instantâneo, direto e
consciente. Ela diz: "Minhas pegadas são visíveis quando estou caminhando." Ela
não é física, ela é P siquê, Pneum a, um ser etér eo, e, ainda assim, suas pegadas
podem ser vistas. Ela tem substância; ela é o poder que dá ao m undo sagrado a
matér ia do símbolo. Ela tira o sa grado do nível da teoria, do abstrato, do
sentimental, da f igura de r etórica. Ela torna o sagrado ac essível no aqui-e-agora,
para ser tocado, sentido e vivenciado com o se fora físico. O m undo do espírito se
faz instantâneo e palpável através da experiência simbólica.
Assim, e la tem o poder de nos dar a fé psicológica:
... a fé originada da psique, que se apre senta como fé na re alidade da a lma.
Como a psique é fundamentalmente imagem, e imagem é sempre psique, essa
fé
se manifesta pela crença em imagens... A fé psicológica começa no amor pelas
imagens, e f lui principalme nte por m eio das form as huma nas em sonhos,
fantasias, ref lexões e ima ginaçã o. Sua c resce nte vivificaç ão nos dá uma
cre scente convi cção de ter - e de pois de ser - um a realidade interior de profundo
significa do, que transce nde a vida pessoal.
A fé psicológica é ref letida num ego que dá c rédito às imagens e a elas
recorre em sua cegueira. (Hillman, Revisioning Psychology, p. 50.)
Podere mos chega r a ve r que a f é psicológica e a fé e spiritual cruzam -se num
nível m ais profundo. Desde os primór dios do cristianismo, os cristãos sabiam que
"a fé é a substância das coisas que tant o espera mos, a evidência das coisas não
visíveis". Encontramos a fé nos símbolos numinosos, divinos, fluindo da alma
para o consciente, sendo até possível perceber a substância daquilo que
esper am os, a substância da quilo que sonham os, a substância da quilo que vive
dentro de nós, além dos limites da esfera física.
É a anima - a Mulher- Bisão Branco - que traz à consci ência as provas da
realidade nã o visível ao m undo físico. Buscamos o reino do espírito no am or
rom ântico, nós o buscamos no sexo, na posse física das coisas, nas drogas, nos
seres hum anos, mas esse re ino não está lá. Ele só é e ncontrado por m eio da
alma.
O cachimbo sagra do é o poder que possibilita o contato com o "outro m undo",
Este poder c onsiste no uso consciente do si mbolismo, pois é pe la experiênc ia
simbólica que inalam os os deuses do mundo arquetí pico, com o a fum aça do
cachimbo sagrado.
Pelas doze penas de águia representando o céu e as doze luas, nos é dado o poder
de conhece r a totalidade da vida, uma visão que a malgam a e spírito e m atéria, o
sagrado e o prosaico. Doz e é o número que simbolicam ente com bina o três e o
quatro. Anteriormente já falamos do três e do quatro: o três simboliza a vida
ordenada, limitada e finita do mundo físico, a existência prática do dia-a-dia. O
quatro simboliza o m undo infinito da alma onde vislumbra mos a visão do plano
arquetípico sem limites e a totalidade do cosm o. O doze c ombina estes dois lados
da natureza hum ana numa síntese, c ombina cé u e ter ra, o "outro m undo" com o
mundo comum, a vida espiritual com a física. Este é o simbolismo dos doze
apóstolos que rodeiam Cristo num círculo perfeito da mandala cristã, das doze
luas do ano solar e dos doze signos do zodíaco, que m arcam os ciclos das eras no
universo galá tico.
De um lado do ca chimbo sagrado e stá entalhado um filhote de bisão, lem brando-
nos que a terr a - e a vida huma na terre stre - tam bém está incluída nesta síntese
com o sagrado, qu ando nos aproximam os da Senhora com sabedoria.
Talvez a lição m ais importante que a prendem os com o batedor sábi o é que a
condição de sagrado consiste não apenas no que existe no mundo interior, mas
tam bém na atitude que adotam os em relaç ão a e le. Algo é feito sagra do não
apenas po rque o é em si mesmo, m as tam bém pela nossa atitude com relaçã o a
ele. Ao re conhecê -Io e tratá-Io c omo tal, incorporam os seu poder. O grande
poder da Mulher-Bisão Branco é manifestado para todos, somente porque o
batedor sábio reconhece que ela é sagrada e lhe confere o devido respeito.
Pa ra que, a anima nos confira seus d ons, ela depende de a lguém , do ego de um
indivíduo que abra os olhos para reconhecer os elementos sagrados que ela
carrega. Se o batedor sábio tivesse seguido o caminho do parvo, haveria dois
esqueletos ao invés de um só. O "outro m undo" não teria sido desvelado à na ção,
nenhuma grande tenda teria sido erguida no meio do povo, não haveria o
cac himbo sagrado para c onclama r a Naçã o do Trovão e obter sua aj uda.
Psicologicamente, a característica do sagrado consiste num duplo fluxo de
ener gia: parte é o desvelam ento do m undo interior para o ego, parte é a
reve rência do e go em relação ao m undo interior dos ar quétipos. Quando nosso
ego é capaz de reverenciar e quando respeito e admiração fluem de dentro de
nós, somente neste instante é que alguma coisa pode ser "sagrada" para nós.
Aqui encontramos um fato estranho e m aravilhoso, que mostra porque a s pessoas
sempre acr editara m que a evolução do co smo é f eita de parcer ia e ntre Deus e a
huma nidade: o sagrado sem pre está presente, m ais próximo de nós do que
qualquer pessoa pod eria estar, m as e le só tem o poder de dar significado e ,valor
à nossa vida, quando abrim os os olhos e nos inclinam os com respeito e
reverência. Eis um dos grandes mistérios: é a nossa consciência, o nosso ato de
reconhecimento, que tem o poder de fazer com que as coisas sejam o que são e
de tornar sagrado o que é sagrado.
A maioria das pessoas comporta-se mais como o batedor parvo, pois nossa
civilização irre vere nte nos ensina desde a infância que nada é sagrado, nada
merece ser re vere nciado, que tudo pode ser r eduzido à posse física ou a um ato
sexual. O batedor sábio sabe que está diante de algo muito além de sua
experiência, a lgo que e le não pode li dar usando as c ostumeiras a rtimanhas do
ego. Ele sente o sagrado naquela mulher, age com reverência e adverte o
batedor parvo: "É uma mulher sagrada; livre-se de todos os maus pensam entos."
O que o sábio quer dizer quando afirma: "Livre-se de todos os maus
pensamentos?" O que faz com que sejam "maus"? Não é por serem pensamentos
ligados a sexo. Os índios norte-americanos - diferentemente de nós - não tinham
a tradição do puri tanismo, não denegriam o que se re lacionava a o físico e a o
sexo. O problema é bem mais sutil. O batedor parvo está tentando encontrar no
lado sexual da vida algo que não pode estar lá; está tentando transformar a
Mulher-Espírito em algo físico, tentando apreendê-Ia por meio de um contato
físico. Em termos psicológicos, ele está tentando torná-Ia física, projetando-a
numa mulher exter ior. Os re sultados são de sastrosos: ao invés da benevolente
Deusa-Bisão, ele se de fronta com Kali, a Deusa da Morte, que o re duz a um
monte de ossos descarnados no chão.
Se existe algo que possa ser considerado uma blasfêmia psicológica, é a tentativa
de converter o sagrado em alguma outra c oisa; é tentar transforma r o sagrado
em "brasa" para a "sardinha" do ego. Sexo, aspectos físicos, "imoralidade", não é
isso que constitui um pe cado "psicológico", m as sim dizer que um a coisa é o que
rea lme nte nã o é, tratand o-a c omo se f osse diferente do que é , fazendo de conta
que se faz uma coisa, quando se está fazendo outra. Este é o pecado contra a
consciência, a re cusa de enc arar a vida conscientem ente. Os pensam entos do
batedor parvo são "maus" por que ele foi posto frente a frente com o que é
espiritual, sagrado, e transpessoal, e quer tratá-Io como se fosse algo físico,
sexual e pessoal. Ele quer reduzir a Mulher-Bisão Branco a um acessório para o
mundo do seu ego.
Ela nos dá uma instrução: "Volte para casa e avise seu povo que estou chegando,
e por isso devem construir uma gra nde tenda para mim no me io da naçã o."
Construir para ela um a tenda no m eio da naç ão significa a brir um e spaço para a
anima e um lugar para o sagrado, bem no centro da nos sa vida. Significa dedicar
tem po e e nergia para vivenciar a psique, explorar nossa consciência, descobrir
quem somos nós e o que somos quando não somos só este ego. Para um
ocidental, a prim eira c oisa nec essária é r econhecer que o m undo sagra do existe.
Ele precisa estar disposto a considerar que, por trás da sua fantasia sobre a
mulher "perfeita", sobre o modo de vida "perfeito", sobre o relacionamento
"perfe ito", ele e stá em busca de a lgo fora deste mundo dos fenôme nos, ele e stá
em busca do sagra do. Ele pre cisa gastar tem po e ener gia a prendendo a vi venciar
essas energias qu e se manifestam por símbolos e fa ntasias - com o rea lidades
interiores e como partes interiores dele mesmo. É exatamente isso que significa
aceitar a Mulher-Bisão Branco tal com o ela é , com o Mulher-Espírito, e pre para r
para ela um lugar no centro da nação.
Ela vem caminhando com hálito visível, com pegadas visíveis, caminhando de
uma form a sagrada. El a virá a nós, se prepararm os para e la um a m orada sacra,
se abrirmos nossos olhos e a virmos tal qual ela é. Mas sua verdadeira morada é
feita da matéria de nossas atitudes para com ela, do nosso sentimento de
reverência. O local que preparamos é dentro de nós; se ela realmente vai morar
conosco, prec isa ser lá.
nicho. O sinofora
O sacerdote se enca ixa perfe
instruído paraitam
ir à ente.
extremidade oeste da basílica, quando o sino
da Virgem fosse devolvido, para fazer repicar os grandes sinos das torres,
anunciando ao mundo que ele fora encontrado e devolvido à Cristandade.
Aqueles gra ndes sinos nunca haviam soado desde que fora m feitos, espera ndo
pelo dia em que o sino da Virgem Maria fosse devolvido. Sento-m e num banco
ao lado do altar, enquanto o padre se dirige apressado para o outro lado da
basílica para repicar os grandes sinos.
O que devo fazer? Devo ficar e cobrar a a clam açã o e a fam a que me caber iam
por ser o descobridor do sino da Virgem Maria? Ou devo afastar-me sem fazer
alarde e evitar todo o envolvimento? O sacerdote, em toda sua excitação, nem
olhou para mim, de maneira que eu ainda poderia manter-me no anonimato. Eu
me decido por esta última opçã o.
Justam ente quand o os grandes sinos com eç am a repicar e a população da c idade
com eç a a acorre r à ba sílica, saio por uma porta latera l e inicio minha j ornada
solitária para fora da c idade.
Aqui, numa bela e poderosa linguagem simbólica, e stá uma resposta à s perguntas
que estam os formulando , uma resposta que vem das m ais profundas regi ões do
inconsciente e dirige-se ao nosso problema moderno. Estamos perguntando o que
o homem ocidental m oderno deve faz er com sua a lma, com o desenredá-Ia do
em aranhado do am or rom ântico. Como viver c om I solda a Bela sem destruir seu
relac ionam ento com Isolda das Mãos B rancas? Como dar à anima o devido lugar
em sua vida, separa ndo-a, porém , dos seus re lacionam entos humanos? Como
aprender a r espeitar a a lma sem desrespeitar a mulher?
ão nos deve surpreender o fa to de encontrarm os uma par te da respos ta num a
basílica, em meio aos grandes símbolos da vida religiosa. Estivem os na presença
da poção do amor, vimos um castelo branco onde um menestrel canta em cada
uma das mil janelas, e uma tenda sagrada instalada no centro de uma nação - e
agora a basílica. Na estrada que percorremos, diante dos poderosos símbolos de
transfo rm açã o, começ am os a ver claram ente o que a princípio era impensável:
o caminho que leva à compreensão do amor romântico também nos conduz
inexora velm ente à natureza re ligiosa, ao a specto espiritual do nosso ser, que tanto
nos esforça mos para deixar de lado.
Aprendem os que o am or rom ântico m obiliza um enorm e sistem a de f orça s no
inconsciente, um a e nergia tão grande que a penas consegu imos falar dela na
linguagem da religião e do misticismo: nós "adora mos", nós "veneramos" o ser
am ado; quando estam os apaixonados, ficamos em "estado de gra ça", estam os
"no sétimo céu", "morremos", seja de alegria, seja de tristeza. Com isso, fica
clara a busca da divindade, do fogo celestial, da iluminação espiritual, do
significado, da consciência do self. Na civilização ocidental diferentemente de
outras c ivilizações - e sta enorm e força está direcionada, nã o para a religião ou a
vida m ística, m as para os am ores huma nos; o am or rom ântico se tornou o ca nal
através do qual esta impressionante força flui para a vida humana quotidiana.
Estam os agora nos perguntando o que f azer com esta forç a ter rível. Como
canalizá-I a corre tam ente, de m aneira que enriqueç a nossa vida - tant o no mundo
do espírito como no do relacionamento - ao invés de sabotá-Ia.
Este sonho nos dá a resposta numa linguagem clara e vibrante: "Devem os
rec olocar a nossa parte divina na catedral, onde é o seu lugar, e viver a nossa
parte hum ana, tal com o deve ser vivida, ou seja, de form a comum e simples."
Precisam os tirar nossa alm a do am or rom ântico e de volvê-I a ao lugar interior - à
catedral interior.
O viaj ante fa tigado que pe nosam ente ca minha a té a porta dessa grande ba sílica
está c oberto de poeira de um a longa j ornada, esgot ado pelo far do que ca rre gou
durante séc ulos. Este sino é gra nde e pesado dem ais para ser carre gado por um
único home m mortal. É pesado dem ais para ser ca rre gado na vida pessoal do
ego, é um fardo terrível, por demais exagerado para ser colocado em um
casam ento ou em um relacio name nto com um ser m ortal. Quantos já não se
quebrara m sob o seu peso? Existe apena s uma estrutura suficientem ente grande e
suficientemente forte para sustentar este sino: a basílica.
Desde o séc ulo XII, quando o primeiro Tr istão re tirou o sino do tem plo, bebeu da
poção do am or e tentou prender seu poder na intimidade dos casos de amor, o
home m ocidental tem lutado para c arrega r o sino. Tentou ca rre gá-Io na sua vida
pessoal, no seu casam ento e nos seus impérios terrenos. Agora, quase mil anos
depois, ele se esqueceu de que o sino era de srcem divina. P or ter sac rificado o
sagrado ao profa no e a psique a o ego, durante tanto tem po, ele j á nã o consegue
lem brar- se a quem pertence o sino. Suas costas estão alqu ebra das e e le está
morto de cansaço pelo peso ; seus re lacionam entos huma nos mortais est ão
despedaç ados pelo far do esmagador que ele m esm o lhes impôs, mas ele não
conhece outro ca minho. Ele não se lem bra da basílica, não sabe onde ela se
encontra.
Este sino é a nossa exper iência c om a a nima, é a sua voz. Ele nos lem bra a s
palavras da Mulher-Bisão Branco: "envio minha voz enquanto caminho." Como o
sino, a anima em ite um a voz para ser ouvida por nós; ela ca nta e seu ca nto nos
cham a pa ra a vida interior. Seu poder e xiste pa ra nos fazer chega r m ais perto do
conteúdo do nosso inconsciente, para manifestar os arquétipos, como imagens
vivas, sussurrantes, que sentimos com o forç as vivendo dentro de nós.
O sino representa o conhecimento lírico da psique do homem, no mesmo sentido
com que o povo hispânico fala do el modo lírico: conhecimento que vem da
experiência direta e não da atividade intelectual. Os sinos e a música da
Cristandade foram as únicas vozes através das quais o Ocidente f alou do espírito
sem se perder em conce itos, abstraç ões e palavras; os sinos em item um som que
é puro sentimento, que ultrapassa a mente e provoca uma reverberação
involuntária na alma.
A anima, como o sino, tem o poder de desvelar o lado dionisíaco da experiência
espiritual, onde a ve rdade é sentida com os sentidos, sentida nas ima gens que
fluem do inconsciente, sentida como um encontro vivo com "pessoas" interiores.
Realme nte, os sinos estão e ntre os poucos re manescentes de Dionísio na nossa
religião ocidental; eles nos cham am à música, a o hino, à dança , ao sentimento - à
unidade dentro do drama cósmico do sacrifício e do renascimento. Os sinos
reIembram que o Rei David dançou perante Deus.
O sonho nos conta que este sino não pertence ao nosso ego, ele pertence, como o
cachimbo sagrado, a uma "nação" interior, a uma "Cristandade" interior. Sabia-se
que aquilo que per tencia a todos, aquilo que a Igre ja tinha o dever de guarda r,
algum dia retomaria à basílica. Simbolicamente, isto significa que aquilo que
pertencia ao foro da vida espiritual além do ego e que deveria ter sido guardado
reverentemente no mundo interior, foi perdido. É a nossa alma, a nossa psique.
Depois de ter sido perdida no inconsciente, e la foi vaga ndo pelo mundo do ego;
através da poção do am or, foi pro jetada nos relac ionam entos pessoais. Tentam os
transform ar o transpessoal no pessoal, tentam os transform ar num f eudo do ego o
que pertencia ao inconsciente. Mas este poder está destinado a ser abandonado
pelo ego para ser devolvido à "catedral" interior.
É difícil para nós imaginar o que significa devolver uma parte de nossas vidas à
"catedral". Isto não significa nece ssariam ente o e nvolvimento com uma religião
externa e coletiva, significa, isso sim, diferenciar entre o que pertence à nossa
vida exterior e o que pertence ao self interior. Significa tomar algo que estamos
tentando viver através dos relacionamentos externos e, ao invés disso, vivê-Io
num lugar interior, calmo e privado - um lugar que existe apenas ao nível do
espírito.
Bem lá dentro de cada um de nós existe um lugar desses, um aposento de cristal,
"repleto de rosas e de manhãs", uma grande basílica onde os sinos das
verdadeira s vozes aguarda m para anunciar o re torno da Alm a de sua longa
ornada. Para o homem, devolver a anima à catedral significa sacrificar alguma
coisa ao nível da vida do ego, sacrificar sua reivindicação de viver a alm a
proj etando-a numa m ulher. Significa retirar este fardo de uma pessoa e colocá-
Io dentro do poderoso edifício interior que foi construído para suportar-lhe o pe so.
Às vezes, quando prec isam os enfrentar um a "m orte do ego" - sac rificar um
estágio de velhas ati tudes ar raigadas - certos sonhos nos vêm para com pensar
temores e sombrias expectativas. Os sonhos nos dão um senso de proporção e nos
em prestam cora gem , mostrando-nos a beleza e a glória das c oisas que fa zem os,
que não conseguimos ver por nós mesmos, e o esplendor da vida que nos espera
do outro lado do nosso sacrifício.
Devolver a anima à basílica é um ato de sacrifíci o. Os home ns têm a opçã o de
tentar viver a anima através de outras pessoas. Renunciar a esta tentativa exige
um ato consciente de sacrifício; é preciso sacrificar todo um estágio de existência
para poder passar para outro. Do ponto de vista do ego, isto parece a m orte.
Renunciar a viver a anima por proje ção significa a brir m ão de grande par te do
fascínio artificial dos relacionamentos; significa que as coisas irão parecer mais
calmas e menos excitantes.
Colocar sua alma na catedral e parar de tentar vivê-Ia através de um ser
huma no, significa que o homem prec isa tirar do re lacionam ento toda uma
dimensão da vida e recolocá Ia num outro lugar, num outro nível um nível que
ele não pode viver e xteriorm ente, que ele deve viver por si mesm o. Par a seu ego
é c omo se seus relac ionam entos humanos estivessem em pobrec endo ou com o se
ele estivesse sendo traído. A princípio, ele sente que metade da emoção, da
excitação, do divertimento e do enca nto foi retirada do relac ionam ento huma no.
Com o tempo, ele aprende que sua vida anímica não era mesmo de lá e que seu
relac ionam ento humano está verdade iramente se desenvol vendo muito m elhor;
mas durante a lgum tem po, tudo parece som brio.
É assim que se sent e e sse hom em que ca rre ga o sino, aquele que teve o sonho. Se
ele devolve o sino, sente-se como se estivesse abrindo mão de alguma coisa da
sua vida pessoal, do ego. Essa também foi a sensação do batedor parvo quando o
advertiram para que não tocasse a Mulher-Espírito: ele sentiu-se renunciando a
algo que queria, algo que o excitava e o emocionava, ao nível do ego.
O simbolismo da grande basílica, dos grandes sinos que esperaram toda uma vida
para repicar pelo retorno do sino sagrado, fala-nos da glória e da beleza que nos
aguardam do outro lado do sacrifício. Por estas imagens o sonho nos ensina que o
ego rea lme nte nada perde a o colocar mos a a lma no seu legítimo lugar, pois a
catedral está de ntro de nós, é um a pa rte de nós me smos. O que par ece ter sido
perdido não foi realm ente perdido, mas transformado em algo que pertence a
um nível ma is elevado - algo com a im ensidão m aj estosa da basílica, e a beleza
sublime das vozes dos grandes sinos.
a verdade, o império do ego realmente nunca nos separou dos mistérios ou do
chamado da basílica. Como já aprendemos, a alma encontra o caminho para
chegar à nossa vida, através da enorme fenda que se abriu na armadura do ego:
o amor romântico. Eis porque o amor romântico, essa curiosa mistura do divino e
do letal, veio a ser a maior força isolada na nossa cultura: tornou-se, à revelia, o
cálice no qual nos esforça mos para e ncer rar tudo o que foi excluí do do império
do ego, tudo o que está no incons ciente - tudo que é transce ndental, que é
insondável, impressionante, tudo, enfim, que nos inspira reverência.
O home m do sonho veio a c ompre ender isso. O batedor sábi o com pree nde tudo
isso quando está na presença da Mulher-Bisão Branc o, pois vê que e stá diante de
algo do outro m undo, e sabe que não deve tentar m antê-Io para o seu e go, mas
sim devolvê-Io ao lugar que lhe foi reservado, o único lugar suficientemente
forte para contê-Io.
Se Tristão tivesse tido este sonho, se e le tivesse com preendido este sonho, será
que teria a gido de m aneira di fere nte e m relação à poção do am or e em relação
à Isolda a Bela? Como o homem do sonho, ele poderia ter saído silenciosamente,
anonimamente, pela porta lateral. Ele teria deixado sua parte divina no templo,
colocado a sua par te humana e m dimensões huma nas, e não teria m isturado as
duas coisas. Toda a dificuldade de ste sonho está em apre nder a diferenciar a s
duas coisas: a pa rte divina e a parte pesso al, humana, c omum .
Bem, vimos tudo isso como símbolo. Mas, na prática, como proceder? Como
devolver o sino ao templo? Como preparar um novo lar para essa parte divina e
irre sistível que tem os em nós mesm os e que j am ais pedimos, mas que sem pre
encontramos enfiada debaixo do braç o ou j ogada sobre nossas costas, tal como o
sino?
Jung costumava fazer um paciente voltar à religião dos seus ancestrais o mais
rápido possível, se a pessoa o podia fazer. Ele enviava um católico de volta às
confissões e às missas, um judeu de volta à sinagoga, um seguidor de Zoroastro
de volta às suas raízes nativas. Se este caminho está aberto para o homem ou
para a mulher, é o cam inho mais simples e m ais direto para devolverm os nossa
parte divina à basílica. Mas, para muitas pessoas, isso não é possível; o ritual e os
símbolos da religião c ulturalm ente transmit ida j á não têm mais vida par a elas.
Pa ra estas pessoas - e elas existem em quantidades ca da vez maiores - e xistem
outros cam inhos. É preciso com pree nder que a suprem a ba sílica, a suprem a
catedral, sinagoga ou templo, é interior. O que se faz necessário não é tanto uma
religião exterior, coletiva, mas uma experiência interior do reino divino,
numinoso, que se manifesta através da psique. Para estas pessoas a vida religiosa,
a basílica, é encontrada nas horas diárias de meditação solitária, no ritual
simbólico, na im aginação ativa, na intera ção com ima gens que fluem pela
fantasia, num a confrontação é tica com as "pessoas" interiores que se manifestam
em nossos sonhos.
Esta é a vida simbólica - aceita voluntariam ente, cons cientem ente, com uma
atitude de r ever ência, com a m esm a devoçã o e intensidade que os míst icos
cristãos m edievais colocavam na ora ção contem plativa, ou que o hindu coloca na
visão de Shiva, ou os Zenbudistas colocam no Zazen. P or m eio de um a vida
assim, encontramos o caminho de volta ao solo primordial do qual brotaram
todas as religiões: os sonhos individuais, as visões e os ricos encontros pessoais
com os seres do mundo interior. Antes mesmo do dogma e da doutrina estarem
estabelec idos, j á e xistia Jacó lutando com um anj o, Pa ulo arr em essado ao so lo
na e strada par a Dam asco, pela vi são que teve de Cristo, Gautam a sentado
em baixo da Ár vore Bodhi, envolvido pela unidade do universo.
Existe um templo interior, mas ele nos parece mais difícil e mais solitário: nós
nos sentimos como o homem do sonho que, tendo devolvido o precioso fardo ao
lugar sagrado, s ai, por uma porta latera l, para um a estrada em poeirada e
caminha para o anonimato, no que diz respeito à sua vida pessoal.
Este talvez seja o evento mais comovente e mais poderoso no sonho: a decisão
deste Tristão moderno, não apenas de devolver o sino ao lugar sagrado, mas de
renunciar a o poder, ao a plauso, à e mpolgaçã o, à exaltação do ego qu e e le
poderia ter tido, mantendo a posse do sino. Sair pela porta lateral é um sacrifício
correto e verdadeiro, uma transformação genuína. Inesperadamente, esse ato
nos mostra que um a das qualidades que vem desde as ra ízes do am or rom ântico
é a humildade: a hum ildade de um ego que está di sposto a renunciar a um
engrandecimento do seu mundo, dos seus relacionamentos pessoais,
engrandec ime nto que term inaria por levar à quela poderosa si tuaçã o de dram a. É
nece ssária uma profunda hum ildade par a que se devolva e sta pa rte divina de nós
mesmos à catedral .
É provável que Tristão não pudesse agir de forma diferente. O ocidental precisou
beber da poção do am or, ele precisou encontrar seu caminho para a anima e
para os deuses da única maneira que conhece. Mas há séculos antes de nós, ele
passou seu período de tempo na Floresta de Morois; vagou e carregou um pesado
fardo ao longo de incontáveis estradas poeirentas. Ele se apaixonou e se
desapaixonou; ele traiu e foi traído; ele se casou com Isolda das Mão Brancas e,
ainda assim, parte sem rum o em com pleta solidão - sem pre c arrega ndo o sino,
sem pre procura ndo Isolda a Bela nos seus am ores, buscando a sua i magem em
cada rosto que vê. Ele tem o direito, agora, de apre nder do pass ado, de apre nder
de sua experiência, de aprender dos seus sonhos.
Se Tr istão a prender hoj e c om seu sonho, ele far á de Isolda a Bela a rainha do seu
mundo interior, a gra nde personagem da a lma que irá c onduzi-Io interiorm ente à
presença dos deuses. Ele a conduzirá ao tem plo interior e a instalará num trono
de ouro, que a acomoda perfe itam ente, pois que a a guardou durante m uitos
séculos. Tristão de sistirá de procurá- Ia numa mulher mortal ou em
circunstâncias externas, e depois de sair pela porta lateral da basílica , sem alarde ,
tomará o ca minho de volta ao c astelo de Carhaix. Lá irá procurar o aposento
onde sua esposa o a guarda: Isolda das Mãos Brancas. E, ao to mar-lhe a m ão,
descobrirá um mistério: a Isolda que ele deixou no trono da grande basílica lhe
foi devolvida, na forma exata e no nível exato; esta mulher simples e mortal, a
Princesa da Bretanha, t am bém é divina, e este a posento é um lugar sagra do.
19 - Do Amor Humano
As pessoas ficam tão exaurid as com os ciclos e os becos s em saída do rom ance ,
que c ome çam a se pergu ntar se rea lmente e xiste e ssa coisa cham ada "am or".
Existe, m as a lguma vezes pre cisam os prom over profundas m udanças de atitudes
antes de poderm
em nossa vida. os descobrir o que é o am or e a ssim a brir um espaço para ele
O am or entre sere s huma nos é um a das re alidades abso lutas da na tureza
humana. Assim como a Alma - Psiquê - era uma das deidades do Panteão grego,
o Amor tam bém era um deus e seu no me e ra Eros. Por ser um arquétipo do
inconsciente coletivo, os gregos o viam como sendo eterno e universal. Para os
gregos, esse era um motivo suficientem ente forte para classificá- Io com o um
deus.
Por ser o amor um arquétipo, ele apresenta sua própria individualidade, suas
peculiaridades, sua "personalidade". Como um deus, o amor comporta-se com o
uma "pessoa" no inconsciente, um ser indepe ndente na psique. Am or é distinto do
meu ego; ele j á estava no m undo antes de m eu ego chegar , e quando este se for,
o am or continuará a existir a qui. Ainda assim, o am or é alguma c oisa ou
"alguém " que habita de ntro de c ada um. É um a força que atua do interior para o
exterior, que perm ite a o ego enxergar além de si mesm o, e com isso ver os outro
seres humanos como algo que deve ser valorizado, estimado e não usado.
Quando eu digo que "am o", não sou eu quem am a; na re alidade, é o Am or que
age a través de m im. O am or não é algo q ue eu fa ço, m as algo que eu sou, ele
não é um fazer, é um estado de ser - um a ligaçã o, uma construçã o de elos, com
outros m ortais. Uma identificaç ão que simplesme nte flui de dentro para fora,
independentem ente de m inhas intençõe s ou de meu e sforço.
Esse estado de ser pod e expressar- se na aç ão ou na form a de tratar a s pessoas,
mas jamais poderá ser reduzido a um conjunto de "fazeres". É o sentir interior. O
am or re aliza m elhor sua alquimia - m ais do que podem os ima ginar - quando
seguimos o conselho de Cordélia, no Rei Lea r, de Shakespea re: "Am a e
permanece em silêncio."
O amor existe independentemente de nossas opiniões sobre como ele deveria ser.
Apesar das m entiras e do egoísmo que tent am os justificar em nome do "am or",
ainda assim ele m antém imutáveis suas c aracterísticas. Sua e xistência e sua
natureza não de pendem da nossa ilusão, de nossas opiniões ou de nossas fra udes.
O am or não é o que a sociedade nos leva a espera r, não é aquilo que o nosso ego
desej a, não é o palavre ado piegas nem os êxtases exagera dos que nos
acostumam os a e sperar dele. Acont ece que o a mor é, e le é a quilo que "eu sou", e
não o que o ego gostaria que ele fosse.
É nec essário que saibam os tudo isso a respeito do am or, ca so contrário ja mais
agüentaríamos encarar honestamente nossos auto-enganos. Às vezes as pessoas
dizem: "Não me tirem as ilusões; sem ilusões, o que é que resta na vida?" Parece
que consideram os o am or com o um "artefa to feito pelo home m", com o se fora
uma criação de nossa mente. Apesar de o amor romântico não se ter
transform ado naquilo que pe nsávam os dele, ainda assim existe inerentem ente
dentro de nós um am or huma no, que estará conosco m esm o depois que a s
proj eções, as ilusões e os artifícios tiverem desaparecido.
O amor humano está tão distorcido pelos excessos e pelas perturbações do
roma nce, qu e quase nun ca procuram os o am or pelo am or, e m al sabem os o que
procurar quando o buscamos. À medida que passam os a entender suas
carac terísticas e sua form a de agir, come çamos por divisá-Io dentro d e nós -
manifestado nos sentimentos, na vibraç ão e spontânea de c alor huma no com
relação às pessoas, nos pequenos gestos de afeição que nos .passam
despercebidos, e que tecem o fio secreto de nossa vida de todos os dias.
O am or é o poder que dentro de nós ace ita e valoriza o outro ser hum ano tal
com o ele é, que ac eita a pessoa que ali está, verda deiram ente, e não a
transform a no ser idealizado pela noss a proj eção. O a mor é o deus interior que
abre nossos olhos cegos para a beleza, o valor e as qualidades da outra pessoa. O
amor nos faz respeitar a pessoa como um todo, um self individual, o que significa
que tanto ac eitam os o lado ne gativo quanto o positivo, tanto as impe rfeiçõe s
quanto as qualidades adm iráveis. Quando alguém rea lme nte ama um ser
humano - e não uma proj eçã o - ele am a a sombra ass im com o am a todo o resto.
Ele ac eita a totalidade do outro.
O am or huma no perm ite ao homem ver o valor i ntrínseco na m ulher, e por isso
mesmo o am or o leva a honrá-Ia e a servi-Ia, a o invés de usá-Ia para os
intere sses de seu ego. Quando tem o am or por guia, ele se preocupa c om as
nece ssidades dela e com seu bem -estar, não se fixando em seus próprios desej os
e c aprichos.
O am or altera nosso senso de im portância. P elo am or vem os que nós e os ou tros
temos o mesmo valor como indivíduos perante o cosmo; torna-se tão importante
para nós que um ser se complete, que viva plenamente, que encontre a alegria na
vida, quanto nos é im portante suprir nossas próprias nec essidades.
o mundo do inconsciente, o amor é uma das grandes forças psicológicas que
têm o poder de transform ar o e go, de despertá-Io para a existência de a lgo fora
dele m esm o, fora de seus planos, de seu im pério, fora de sua ha bitual segurança .
O am or liga o ego n ão somente a o resto da raça humana, com o tam bém à a lma
e a todos os deuses do mundo interior.
O amor é, por sua própria natureza, o oposto do egocentrismo. Usamos a palavra
am or de m aneira m uito vaga, nós a usam os para dar dignidade à s forma s de
conseguir poder, a tençã o, segurança e a ceitaç ão por parte de outras pessoas.
Quando, porém , nos preocupam os com as "necessidades" criadas por nós , com
os nossos desejos, sonhos, com o poder que exercemos sobre as pessoas, isto não
é amor. O amor é algo totalmente distinto dos desejos do ego e de seus jogos de
poder. Ele leva a outra direção, ou sej a, em direção à bondade, ao respeito, às
nece ssidades das pess oas que nos cer cam.
Em sua própri a e ssência, o am or é um a a preciação, um rec onhecimento do
valor do outro. Ele leva o hom em a honrar a m ulher, a o invés de usá-I a, fa z com
que ele se pergunt e sobre a m elhor form a de ser vi-Ia . E se a mulher e stiver
ligada a ele pelos laços do amor, terá essa mesma atitude com relação a ele.
A natureza arque típica do amor talvez jamais tenha sido melhor descrita que nas
palavras simples de São Paulo:
O am or é pac iente, é bom; o am or não invej a; o am or não se vang loria e não se
envaidece... O amor não procura seus próprios interesses, não se irrita, não folga
com a injustiça... Suporta todas as coisas, crê em todas as coisas, espera por todas
as coisas, re siste a todas as c oisas.
As profe cias falharão, as lí nguas se ca larão, a c iência desapar ecerá. Mas o am or
am ais há de falhar.
Tem os aqui uma curta e eloqüente dem onstraçã o da difer ença entre um ego
agindo por si mesmo e um ego agindo sob a influência do amor. O ego se
preocupa apenas consigo mesm o, mas o "amor é paciente e é bom". O ego é
invej oso, procurando s em pre inflar-se com as ilusões de poder e controle
absolutos, mas "o amor não se vangloria e não se envaidece". O ego,
abandonando-se ao seu egocentrismo, irá sempre trair, mas "o amor jamais há
de falhar". O ego sabe somente defender-se a si mesmo e aos seus desejos, mas
"o amor não procura seus próprios interesses". O amor defende tudo da vida:
"suporta todas as coisas, crê em todas as coisas, re siste a todas as coisas."
Por isso criticam os o am or rom ântico, e esta é a principal distinção e ntre o am or
huma no e o am or rom ântico: o romance , pela sua própria natu reza, e stá fadado a
degenera r par a o e goísmo, pois ele não é um am or dirigido a outro ser huma no.
A paixão do rom ance é sem pre dirigida à s nossas proj eções, às nossas
expectativas, às nossas fa ntasias. Na ve rdade, não é am or que se sente por uma
pessoa, mas o que sentimos por nós mesmos.
Deve ficar claro agora, qu e à medida que um relacio nam ento se baseia em
proj eções, o com ponente do am or hum ano está ausente. Estar apaixonado por
alguém que não se conhece como indivíduo e sentir-se atraído porque esse
alguém reflete a im agem do deus ou da deusa que está na alm a, significa, num
certo sentido, estar apaixonado por si mesmo, não pelo outro. Apesar da aparente
beleza das fantasias de amor que poderem os ter nesse estado de estarm os
apaixonados, poderem os, de fato, estar num estado m ental totalm ente
egoísta.
Some nte existe o verdade iro am or quando uma pessoa passa a r econhecer o
outro por aquilo que ele rea lme nte é com o ser hum ano, e com eça por gostar dele
e ,a se import ar com ele com o tal.
... Ser capaz de um verdade iro am or significa a madurec er, ter atitudes
realísticas para com o outro. Significa aceitar a responsabilidade pela nossa
própria felicidade ou infelicidade; e não esperar que o outro nos faça feliz, nem
culpá-I o por nosso mau hum or ou por nossas frustrações. (Sanford, Invisible
Partners, p. 19-20.)
Quando nos centramos em nossas proj eções, estam os centrados em nós mesm os,
e a paixão e o amor que sentimos por essas projeções é um amor reflexivo,
circular, que inevi tavelmente se volta para nós mesm os.
Mas aqui, de novo, me rgulham os de c abeç a no para doxo do am or rom ântico. O
paradoxo é que devem os am ar nossas projeções e que tam bém devemos am ar a
nós mesm os. No rom ance , o am or do self to rna- se distorcido, torna-se
egocêntrico e su a natureza primá ria é per dida. Mas se apre nderm os a procurá -Io
na sua próp ria dimensão, o am or do self é um am or re al e válido: é a segunda
grande corr ente de ener gia que flui para o am or rom ântico, é o par a rquetípico
do amor humano, a outra face de Eros.
Precisam os respeitar as partes proj etadas, inconscientes, de nós me smos.
Quando amamos nossas projeções, quando honramos nossos ideais românticos e
nossas fantasi as, dam os existência a dimensões ext remam ente pre ciosas do nosso
self total. A grande c hara da e stá em am ar o próprio self sem cair no egoísmo.
À medida que aprendemos a conhecer a geografia da psique humana, com suas
ilhas de consciência, sua e strutura de m uitas cam adas e muitos centros, vem os
que o amor do self total não pode ser uma centralização do universo em nosso
ego. O am or do self é a busca e mpree ndida pelo ego p ara encontrar as "pessoas"
do mundo interior, que se ocultam dentro de nós; é a falta que o ego sente das
vastas dimensões do inconsciente, sua disposição em abrir-se para as outras
partes do nosso ser total e para seus pontos de vista, seus valores e suas
necessidades.
Compree ndido dessa f orma , o am or que e mana de nosso self é tam bém o am or
"divino": a nossa busca do supremo significado, de nossa alma, da revelação de
Deus. Esse entendimento nos leva de volta às palavras de Clemente de
Alexandria:
Portanto, parec e que o m aior dos ensinam entos é o conhece r-se a si mesm o; pois
quando o homem conhec e a si mesmo, ele conh ece a De us.
O erro do amor romântico não está no fato de amarmos a nós mesmos, mas no
fato de nos am armos de form a erra da. Tentando revere nciar o inconsciente por
meio das proj eções româ nticas que c olocam os nas pessoas, deixam os de
perceber a realidade que existe nessas proj eções: não percebem os que estamos
buscando nosso self.
A tare fa de resgat ar o a mor dos pântanos do romance com eça com uma
mudança de vis ão em relação a o mundo interior; tem os de despertar para esse
mundo, tem os de apre nder com o viver o "am or do self" com o uma experiência
interna. Chega, depois, o tempo de voltar a dirigir nossa atenção para fora, para
as pessoas e para os relacionam entos que m antem os com elas. Nós precisam os
aprender os princípios do amor "humano".
Há m uitos anos, ,uma sábia a miga deu-m e um nome par a o a mor humano. Ela o
cham ou de amor de "me xer m ingau de aveia". E la estava c erta: dentro desta
fra se, desde que nos tornem os suficientem ente humildes para pe rceber , está a
verdadeira essência do q ue é o am or huma no, e e la nos mostra as prin cipais
difere nças entre a mor huma no e rom ance.
"Mexer m ingau de ave ia" é um ato humilde, não é excitante, nem causa
sensação, m as simboliza a afeiçã o que traz o am or para a dime nsão do terra-a-
terra. Representa a vontade premente de compartilhar da vida humana comum,
encontrar significado nas tare fas simples e não-rom ânticas: ganhar a vida, viver
dentro de um orçam ento, levar a lata do l ixo para fora, preparar a m am adeira do
bebê no meio da noite. "Mexer m ingau" significa encontrar a afeição, o valor, até
mesm o a beleza, nas pe quenas coi sas corriqu eiras, não fica r e xigindo
eternamente um drama cósmico, grandes diversões ou uma vibração
extraordinária e m todas as c oisas. Como o descasca r do a rroz dos monges Zen, a
roca de fiar de Ghandi e a feitura de tendas de São P aulo, repre senta a
descoberta do s agra do em meio às coisas humildes e c omuns.
Disse Jung certa vez que sentimento é uma questão de âmbito pequeno, e no
am or huma no podem os ver que isso é verdade iro. A ligaçã o rea l entre duas
pessoas é vivida nas pequenas coisas que fazem juntas: a conversa calma que
mantêm quando term ina a faina diária, a palavra m eiga de com preensão , o
com panheirismo de todo o dia, a quele encora jam ento nos mom entos difíceis, um
pequeno presente nos m omentos em que m enos se espera, os gestos espontâneos
de a mor.
Quando um casal está verdade iramente ligado pelos laços da afe ição, os dois
estão dispostos a abraçar o espectro total da vida humana. Conseguem
transform ar até m esm o coisas ma çantes, coisas difíceis ou prosaicas, em
aspectos alegres e gratificantes da vida. Por outro lado, o amor romântico só
pode durar enquanto ambos estiverem "altos" enquanto houver dinheiro e os
lazeres fore m em ocionantes. "Mexer mingau de a veia" significa que duas
pessoas tiram seu amor do nível etéreo e emocionante da fantasia e o trazem
para o nível prático do terra-a-terra.
O am or se alegra e m fazer as coisas que aborrec em o ego, está disposto a
trabalhar c om os variados humore s de um a pessoa e com seus momentos de
irracionalidade. O amor está pronto para preparar o desjejum e fazer o balanço
da c onta bancá ria. O a mor e stá ansioso por fa zer esses "mingaus de ave ia" da
vida, porque há ternura e não proje çã o.
O am or huma no vê a pe ssoa c omo indivíduo e constrói com ela um
relacionamento individualizado, ao passo que o amor romântico a vê apenas
como um ator desem penhando um papel numa peça teatral.
O am or humano faz com que o homem queira ver a mulher com o um ser
complet o e independente, encoraj ando-a a ser e la m esma . O am or româ ntico
apenas r eforç a aquilo que e le gostaria que e la fosse, par a que se ident ifique com
a anima.
Enquanto o homem se deixa dom inar pelo rom ance , ele só aceita a mulher na
medida e m que ela se deixa m oldar, para que possa re fletir o ideal que ele
proj etou. O rom ance nunca está satisfeito e feliz com o outro, tal qual é.
ecessariamente, dentro do amor humano está a amizade: a amizade no
relac ionam ento, no ca sam ento, a a mizade e ntre marido e m ulher. Quando um
homem e uma mulher são verdadeiramente amigos eles conhecem os pontos
difíceis e a s fra quezas do outro, m as não c edem à tentação de criticá-los. Estão
mais interessados na ajuda m útua e no prazer que sentem na com panhia um do
outro, do que em descobrir os defeitos.
Am igos, verdade iros am igos, são com o Kahe rdin: eles quere m mais consolidar a
am izade do que ficar censurando um ao outro; não fica m mimando um a o outro,
nem tampouco se prendem às imperfeições mútuas. Os amigos apóiam-se em
tem pos difíceis, aj udam -se nas tare fas pesadas e nas taref as com uns da vida.
Eles não impõem padrões impos síveis um ao outro, não exig em perf eição e
preferem aj udar-se mutuam ente, a se desgastarem com exigências e
imposições.
o amor romântico há ausência de amizade. Romance e amizade são forças
totalmente opostas, são inimigos naturais com propósitos totalmente opostos. Às
vezes a s pessoas dizem : "Não quero ser a migo (ou am iga) de m inha e sposa (ou
marido); isso aca baria de vez com o roma nce de nossa ca sam ento." E é verda de,
a a mizade a caba com o teatro e c om as em oções art ificiais de um
relacio name nto, mas t am bém aca ba com o egocentrismo e c om a
improdutividade, e substitui o drama por algo humano e real.
Se um home m e um a m ulher são am igos, então são tanto "o próximo" um do
outro, como também am antes, e seu relacio nam ento se e nquadra numa frase de
Cristo: "Am a a teu próximo com o a ti me smo." Uma das contradições m ais
notórias do am or rom ântico é que m uitos casais tratam seus am igos com muito
mais bondade, c onsideração, generosi dade - e até c apac idade de perdoar - do
que j am ais o fizeram um c om r elaç ão ao outro. Quando as pessoas estão com
seus am igos, elas são agra dáveis, atenciosas e corteses, m as, quando chega m
.em ca sa, m uitas vezes dão vazão à raiva, a os ressentimentos, aos humore s e à s
frustrações. Estranham ente, eles tratam melhor a seus am igos.
Quando um casal está a paixonado, as pessoas com umente dizem que eles são
"mais que apenas amigos", mas, com o decorrer do tempo, eles parecem tratar-
se com o se fossem bem menos que am igos. Muita gente ac ha que estar
"apaixonado" é um relacionamento mais íntimo, mais "significativo" do que uma
"mera " am izade. P or que então eles se negam a bondade e a boa vontade que
dedicam com tanta facilidade aos am igos? As pessoas não podem exigir que seus
am igos carre guem todas as suas proje ções, que sej am bodes expiatórios para
seus humore s, que as m antenham sem pre fe lizes e que tornem a vida plena para
eles. Por que os casais exigem tudo isso um do outro? Porque o culto do romance
nos ensina que temos o pleno direito de esperar que todas as nossas projeções
sej am carre gadas pela pessoa por quem estam os apaixonados, e ainda que ela
satisfaça todos os nossos desejos, e que faça com que todas as nossas fantasias se
realizem. Em um dos ritos hindus do casamento, o noivo e a noiva juram
solenem ente: "Você será o m eu m elhor a migo." Os ca sais ocidentais têm de
apre nder a ser a migos, a viver juntos no espírito da a mizade, a ter c omo guia a
virtude da am izade para sair do em aranhado que fizem os do am or.
Muito aprenderemos sobre o amor humano se olharmos com mente aberta a
civilização oriental e suas form as de se c onduzir.
o período em que estive na Índia e no Japão, observei ca sam entos e
relac ionam entos am orosos que não estavam baseados no roma nce, m as num
amor cálido, devotado e duradouro. Os hindus são instintivamente mestres na arte
do am or huma no. Acr edito que isso se deva a o fato de eles nu nca ter em aceitado
o am or româ ntico com o uma forma de relacion am ento. Eles automa ticam ente
fazem a diferenciaçã o que nós ocidentais não cons eguimos fazer, por
misturar mos tudo. Eles sabem com o venera r a anima , os arquétipos, os deuses,
as re alidades interiores; eles sabem com o m anter a experiência do lado di vino da
vida distinta de seus relacionamentos pessoais e de seu casamento.
Os hindus aceitam o mundo interior ao nível simbólico; eles traduzem os
arquétipos interiores em imagens e símbolos exteriores por intermédio da arte
dos tem plos e dos rituais alegóricos. Eles não proj etam os deuses interiores no
cônjuge. Eles tomam os arquétipos personificados como símbolos de um outro
mundo e vêem-se uns aos outros como seres humanos. O resultado disso é que
não fazem exigências absu rdas e nã o se desapon tam .
Um hindu não exige que sua e sposa sej a sua a nima, ou que e la o leve a um outro
mundo, ou que ainda pe rsonifique toda a força e toda a perfe ição de sua própria
vida interior. Como a e xperiênc ia re ligiosa lírica ainda é parte de sua civilização,
os hindus não tentam fazer do casamento nem do relacionamento um substitutivo
para a com unhão com a alma. Encontram seus deuses no tem plo, na meditação
ou, alguma s vezes, no guru; não tentam fazer com que os relac ionam entos
exteriores de sem penhem o papel dos i nteriores.
À prime ira vista um ocidental fica confuso com a form a de ser do hindu. O am or
entre e les não par ece e star borbulhando com a intensidade e o ca lor suficientes
para satisfazer o gosto rom ântico ocidental. Se, entretanto, observarm os
pacientem ente e deixarm os de lado os preconceitos ocidentais, começarem os a
questionar a prem issa de que o rom ance é o único "verdadeiro am or". Existe um
am or tra nqüilo, constante, nos casa mentos hindus; existe afeto profundo e
estabilidade, eles não se envolvem nas violentas oscilações entre o "apaixonar-se"
e o "desapaixonar- se", entre a a doraçã o e a dece pção, a que os ca sais ocidentais
estão acostumados.
o ca sam ento tradicional hindu, o com promisso que o m arido assume com
relaç ão à esposa não de pende de continuar "apaixo nado" por ela. Como ele nã o
estivesse m esm o apaixonado, não há com o "desapaixonar-se". Seu
relac ionam ento com a esposa é baseado no am or que sente por e la, não no "estar
apaixonado" por um ideal que proj eta nela. Seu re lac ionam ento não vai
desmoronar só porque um dia ele se "desapaixona", ou porque encontra outra
mulher que ca pte m elhor suas projeç ões. Ele tem um com promisso com uma
esposa e um a fa mília, não com uma projeçã o.
Gostam os de pensa r que somos m ais sofisticados do que os "simples" hindus ma s,
em com paraçã o com e les a m édia dos ocidentais é c omo um tou ro com um aro
no focinho, sem pre indo atrás de sua proje ção, passando de um a m ulher pa ra
outra, sem construir qualquer r elacionam ento verdadeiro ou qualq uer
compromisso com uma delas. Na área dos sentimentos humanos - amor,
relac ionam entos - os hindus desenvolveram uma consciência altam ente
diferenciada, sutil, refinada. Nesses assuntos, sabem agir melhor do que nós.
Um a das coisas m ais impressionantes e surpre endentes qu e pude observar entre
os hindus tradicionais foi a vivac idade, a felicidade e a saúde psicológica de suas
crianças, que não são neuróticas; elas não são atormentadas no íntimo, como
tantas crianças ocidentais. Estão constantemente envoltas em calor humano e
sentem a vibraçã o de paz e af eiçã o entre seus pai s. Elas sentem a e stabilidade, o
caráter permanente de sua família. Seus pais têm um compromisso para sempre;
elas não os ouvem se perguntare m se seu casam ento vai dar certo"; separa ção e
divórcio não pairam no ar c omo e spectros.
Para nós, ocidentais, não há como voltar atrás no tempo. Não podemos seguir a
forma de ser dos hindus, não podemos resolver nosso dilema ocidental pela
imitação dos costumes ou condutas de outros povos. Não podemos fazer de conta
que nossa psique é oriental, quando ela é ocidental. Tem os de lidar tanto com
nosso inconsciente oc idental quanto com nossas fe ridas ocidentais; tem os de
encontrar o bálsamo cicatrizante dentro de nossa alma ocidental. Bebemos da
poção do am or e mergulham os na era rom ântica de nossa evolução, e a única
saída é o ca minho que nos leva para a frente. Nã o podem os voltar e não
devem os para r.
Mas podem os, sim, apre nder c om os orientais a sair de dentro de nós mesm os, de
dentro de nossas presunções e nossas cre nças, o tem po nece ssário para nos
vermos em uma nova perspectiva. Podemos aprender, sim, como nos aproximar
do amor com novas atitudes, sem o pesado fardo dos dogmas de nossa
civilização.
Podemos aprender que o relacionamento humano é inseparável da amizade e do
com prom isso. Podem os apre nder que a e ssência do am or não é usar o ou tro para
a nossa felicidade, mas sim servir e encorajar. aquele a quem amamos; e,
finalm ente, podere mos descobrir para nossa surpresa - que o que m ais
nece ssitam os não é tanto serm os am ados, mas sim am ar.
FIM