Texto e Contexto
Texto e Contexto
Texto e Contexto
RESUMO: Ce petit article tudie la relation entre le texte et son contexte sous la lumire de la Linguistique Textuelle partir du travail de M. A. K. Halliday paru dans son uvre Language, Context and Texte (1989). Le texte de Lus Fernando Verssimo Experincia nova paru dans le quotidien Zero Hora le 4 avril 1993 y est analys en vue dune brve revision critique de la thorie. PALAVRAS-CHAVE: texto, contexto, sentido, discurso.
O objetivo deste trabalho o de discutir o conceito de contexto conforme a linha de estudos da Lingstica do Texto. Para tanto, estaremos apresentando o trabalho proposto por Halliday, sobre esse tema, nos primeiros captulos de seu livro em co-autoria com Ruqaiya Hasan, Language, Context and Text (1989). Os conceitos tericos de Halliday sero aplicados crnica de Lus Fernando Verssimo, Experincia nova, publicada em Porto Alegre, na ltima pgina da Revista ZH da edio dominical do jornal Zero Hora, em 4 de abril de 1993. Aps a aplicao, alguns comentrios sero feitos a respeito da teoria. A PROPOSTA DE HALLIDAY Em sua obra, Halliday prope uma abordagem da linguagem que focaliza o semitico, o social e o funcional. necessrio que fique definido primeiramente o que Halliday entende com esses termos. preciso que se explique ainda como se apresentam os conceitos de texto e de contexto nessa perspectiva. O termo semitica designa, no o estudo do signo inicialmente isolado, como uma entidade, e depois relacionado com outros signos, mas o estudo dos sistemas de signos numa rede de relaes, o que conduz ao estudo do significado de modo amplo. Uma srie de sistemas semiticos constitui a cultura, vista como uma srie de sistemas de significados inter-relacionados. A linguagem apenas um dentre muitos outros sistemas de sentido que constituem a cultura humana.
Leci Borges Barbisan professora na Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul
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Com o termo social, Halliday designa primeiramente um sistema social, uma cultura. Em segundo lugar, numa interpretao mais especfica, social indica relaes entre linguagem e estrutura social, considerando a estrutura social como um aspecto do sistema social. A perspectiva adotada por Halliday para estudar a linguagem relacionada com esse aspecto particular da experincia humana que a estrutura social. O modo de entender a linguagem reside no estudo do texto. Texto linguagem funcional, quer dizer, linguagem que desempenha um papel em um contexto. H o texto e h outro texto que o acompanha, o contexto, que vai alm do que dito e escrito, e inclui o no-verbal, o quadro total no qual o texto se desenvolve e onde deve ser interpretado. Um texto feito de sentidos, uma unidade semntica. Como tal, deve ser considerado de duas perspectivas: como produto e como processo. Como produto resultado e tem uma construo que pode ser representada sistematicamente. processo no sentido de escolha semntica contnua na rede de significados potenciais, em que cada escolha constitui o contexto para a srie seguinte. Na perspectiva scio-semitica, o texto como processo visto como um acontecimento interativo, como troca social de significados. Texto troca, interao entre falantes. Como produto, texto objeto no sentido prprio, instncia de significado social num contexto particular de situao. um produto de seu contexto, produto de um contnuo processo de escolhas no significado, escolhas representadas nas redes que constituem o sistema lingstico. O contexto de situao est contido no texto atravs de uma relao sistemtica entre o contexto social de um lado e a organizao funcional da linguagem de outro lado. Para interpretar o contexto social de um texto, Halliday prope trs conceitos: campo, teor e modo. O campo do discurso o que est acontecendo, a natureza da ao social, aquilo em que os participantes esto engajados. O teor refere ao status dos participantes, ao seu papel, s relaes temporrias e permanentes que h entre eles. O modo diz respeito a que parte a linguagem est representando, o status do texto e sua funo no contexto, incluindo o canal (oral e escrito), o retrico, o que est sendo realizado pelo texto em termos de categorias como persuasivo, expositivo, didtico, etc. Campo, teor e modo esto expressos por traos lingsticos particulares. Assim, o campo se faz notar no vocabulrio, por exemplo. O teor, na noo de pessoa, na escolha da funo da fala: ordem, oferta, etc., que se traduzem pelo uso de imperativos, de funes declarativas e outros. O modo aparece na escolha dos temas, em traos lxico-gramaticais especficos lngua oral ou escrita, no uso de conjunes ou outro tipo particular de coeso. Segundo Halliday, esse o modo como as pessoas fazem predies. Constri-se na mente um modelo de contexto de situao. Atribui-se-lhe campo, notando o que est acontecendo, teor, reconhecendo as relaes pessoais envolvidas, e modo, vendo o que est sendo realizado por meio da linguagem. Os participantes de uma cultura fazem uso da relao estreita entre texto e situao, da
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correlao entre traos do texto e traos da situao como base para sua interao. Para se entender melhor esse fato, Halliday apresenta o conceito de registro: uma variedade de linguagem corresponde a uma variedade de situao. Registro um conceito semntico, configurao de significados que so tipicamente associados com uma configurao situacional particular de campo, teor e modo. Os traos lxico-gramaticais e fonolgicos indicam aos participantes a presena do registro em questo. Os traos textuais tornam o discurso coerente com ele mesmo e tambm com o conceito de situao. H redundncia entre texto e situao, um serve para predizer o outro. Diferentemente de lingistas como Malinowski, Bhler, Morris e outros que definem funo como uso da linguagem para diferentes propsitos de comunicao em termos no-lingsticos, vendo a linguagem de fora, Halliday prope que se d um passo frente e se entenda funo no como o uso da linguagem, mas como uma propriedade fundamental da prpria linguagem, algo que bsico para a evoluo do sistema semntico. Para analisar um texto, necessrio olhar seu significado como representao de algum tipo de processo, acontecimento ou estado do mundo real. Certos traos do texto representam o mundo real como apreendido por nossa experincia. Isso mostra o sentido experiencial do texto. Acrescente-se a isso a representao imaginativa ou oblqua da experincia, que constitui o metafrico. Mas o texto no s uma representao da realidade. tambm um modo de interao entre falante e ouvinte. um modo de agir que define o significado do interpessoal, no processo de interao social. Alm disso, prope Halliday, h nas lnguas naturais uma rede de relaes lgicas fundamentais, expressas como as diferentes formas de parataxe e hipotaxe. Esse aspecto da linguagem define o significado textual, ou seja, a textura. H quatro aspectos do significado: o experiencial, o interpessoal, o lgico e o textual. Cada sentena num texto no tem s um tipo de significado, mas multifuncional. Existe relao sistemtica entre campo e funo experiencial. O teor expresso pela funo interpessoal e o modo se manifesta atravs da funo textual. O contexto de situao, analisado em seus trs componentes (campo, teor e modo), correspondendo a trs metafunes (referencial, interpessoal e textual), o contexto imediato no qual o texto funciona. Explica-se assim por que certas coisas so ditas ou escritas em ocasies particulares. Mas h outro contexto, mais amplo, que o contexto de cultura. As pessoas dizem certas coisas em determinadas ocasies e atribuem significados e valores a elas, de acordo com o meio cultural em que vivem. A relao texto-contexto dialtica. O texto cria o contexto assim como o contexto cria o texto. Da relao entre os dois surge o significado. Parte do contexto uma srie de textos prvios compartilhados entre os participantes. Este um tipo de intertextualidade que inclui no s os traos mais obviamente experienciais, mas tambm outros aspectos do significado: tipos de seqncias
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lgicas e at traos interpessoais. Halliday entende que todo texto tem coerncia, se mantm unido e coeso. O que vem antes fornece o contexto ao que vem depois. H expectativas internas e estas tm a ver com as externas: contexto de situao e de cultura. Resumindo-se a proposta de Halliday, cinco consideraes devem ser feitas na relao texto-contexto: 1. um texto um complexo de significados referenciais, interpessoais e textuais; 2. o contexto de situao a configurao de campo, teor e modo, traos que especificam o registro do texto; 3. o contexto de cultura o quadro institucional e ideolgico que d valor ao texto e limita sua interpretao; 4. o contexto intertextual constitudo pelas relaes com outros textos e afinnaes que so feitas a partir da; 5. o contexto intratextual a coerncia dentro do texto, incluindo a coeso lingstica que compreende as relaes semnticas internas. ANLISE Vai-se tentar seguir de perto a proposta de Halliday, aqui apresentada, para o estudo do contexto, analisando o texto de Luis Fernando Verssimo, Experincia nova. Em seu escrito, que pode ser enquadrado no gnero crnica, o autor apresenta um dilogo entre dois protagonistas: um delegado de polcia e um ladro de galinhas. O dilogo interrompido algumas vezes pelo narrador para relatar a evoluo da atitude do delegado em relao ao ladro. Os trs conceitos de campo, teor e modo devem permitir fazer a descrio situacional do texto. Quanto ao campo, trata-se de um texto de carter ldico em que o autor conta um fato que se inscreve no domnio do policial: a histria de um ladro de galinhas. O campo, dilogo policial, aparece refletido no vocabulrio, na nomeao de processos tais como roubar, especular, superfaturar, sonegar, depositar ilegalmente, e na designao de participantes: delegado de polcia, ladro. Aparece ainda o uso de palavras como venda de artigo roubado, drogas, coisa proibida, castigo, cadeia, que apontam para dois motivos: o da ao ilegal e o da censura dessa ao, com sua conseqente punio. O teor indica que os participantes do discurso so um delegado de polcia e um ladro. um dilogo entre ambos, se passa numa delegacia, e consiste na investigao dos furtos praticados pelo ladro. O delegado a autoridade que representa a lei, enquanto o ladro o delinqente. Mas esse dilogo foi escrito e publicado pelo autor, Luis Fernando Verssimo, conhecido escritor e humorista, que aqui um cronista e tece comentrios a respeito de determinadas situaes para o pblico leitor do jornal, especialmente para aqueles que apreciam ler seus
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escritos. O texto tem ento um teor secundrio, o de um cronista dirigindo-se a seus contemporneos. O teor expresso por meio de traos lingsticos como o cara, vagabundo, sem-vergonha, safado, pilantra, tu, voc, o preso, doutor, o senhor, excelncia, para designar o ladro. O delegado nomeado como delegado pelo narrador. No dilogo entre delegado e ladro, este no o nomeia, presta apenas os esclarecimentos exigidos. Percebe-se, ento, na relao interpessoal, a hierarquia claramente definida pela funo de fala de pedido de esclarecimento do delegado, a quem atribudo o estatuto autoritrio, e a funo de fala de prestao de esclarecimentos do ladro a quem somente isso permitido. O modo se refere linguagem. um texto escrito, que imita um dilogo oral, com alguns traos de lngua falada, mesclados com caractersticas de lngua escrita, lembrando dilogos de romance ou de teatro. As intervenes do ladro contm uma narrativa, que pode ser percebida no que conta o ladro a respeito de suas aventuras. Outra questo a considerar quanto ao modo a escolha temtica. Observando-se globalmente, passa-se do roubo de galinhas ao comrcio de ovos e galinhas, aplicao dos lucros, aventura de roubar e possibilidade de punio. A relao entre roubo, censura e punio se coloca desde o incio e evolui, chegando a se anular quando a revelao das aes fraudulentas do ladro se tornam mais numerosas e mais sofisticadas. Essa relao roubo-censura-punio o tema central da crnica. Uma anlise de Experincia nova, do ponto de vista funcional, deve ser feita com relao aos significados experiencial, interpessoal, lgico e textual. Quanto ao seu significado experiencial, o texto relata acontecimentos, aes, estados, lugares que representam fenmenos do mundo real. um modo de pensar a realidade. H agentes como o ladro, o dono do galinheiro, o delegado de polcia. H processos realizados por roubar, vender, fazer um acerto, especular, investir, sonegar, etc. Encontram-se elementos circunstanciais como locativos: vai pra cadeia, o dinheiro depositado no exterior, e tambm nomes de coisas usados aps um processo, casos de roubar galinhas, botar ovos brancos, aumentar os preos. Todos esses traos representam o mundo real como ele apreendido em nossa experincia. Mas, ao lado deles, h ainda, no texto, representaes imaginativas ou oblquas da experincia; elas so metafricas e envolvem transferncia. Seria um exemplo comprei alguns deputados, onde o significado da ao transita para um nome de ser animado humano quando seria de se esperar um nome de ser inanimado ou no-humano. No h outra metfora no texto, que parece ser essencialmente uma representao do mundo real. Considerando-se a funo de interao social, isto , o significado interpessoal do texto, seria necessrio ver nele a relao entre falante e ouvinte. Essa interao d-se, neste caso, em duas dimenses. Internamente, delegado e ladro dialogam. H, na fala do delegado, sentenas que so perguntas, solicitaes
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de esclarecimentos mescladas com sentenas avaliativas de censura. Na fala do ladro, percebem-se sentenas declarativas, respostas que satisfazem ao pedido de esclarecimento, juntamente com sentenas com funo de protesto diante da indulgncia do delegado. Esse dilogo interrompido em determinados momentos por uma outra interao, constituda pela fala de apenas um dos participantes. um monlogo: o de um narrador onisciente que, por meio de sentenas declarativas, explica a transformao da atitude do delegado em relao ao ladro. Externamente, seria interessante considerar a interao autor-leitor. O autor narra, atravs de um dilogo, a histria de um ladro. O interlocutor dessa narrativa o leitor da crnica que, evidentemente, no participa da interao, j que se trata de um texto escrito, mas que deve ser previsto pelo autor, que a ele dirige seu texto. O significado lgico se traduz pelas relaes de coordenao e subordinao entre partes do texto. Encontram-se, na crnica em estudo, principalmente coordenaes com mas e e. Mas, utilizado tanto pelo ladro quanto pelo delegado, quanto ainda pelo narrador, tem a funo de contestar a afirmao anterior. o caso da interveno do ladro ao dizer que no fazia concorrncia desleal ao comrcio estabelecido porque vendia mais caro seus produtos. O delegado, por sua vez, contesta, com mas, a pressuposio inferida de que eram as mesmas galinhas, as do galinheiro e as do ladro. O mas do narrador modaliza as exclamaes de avaliao negativa do delegado, indicando a mudana de atitude deste no que diz respeito s aes do ladro. A coordenativa e articula partes do texto com funes de fala da mesma classe, como acontece na interveno do narrador que coordena com e duas sentenas declarativas. ainda o caso da articulao por e de sentenas tambm declarativas do ladro. Quanto ao significado textual, h o equilbrio do ponto de vista semntico entre pedidos de esclarecimento feitos pelo delegado e asseres como satisfaes a esses pedidos, de parte do ladro. Quanto ao aspecto gramatical, a relao entre perguntas e respostas parece constituir a textura da crnica. Os elementos at aqui levantados no texto em anlise referem-se ao seu contexto imediato. O outro contexto de que fala Halliday o cultural. O texto de Luis Fernando Verssimo est inscrito numa cultura em que o roubo punido. Assim, o delegado de polcia representa a autoridade a quem a sociedade atribui o papel e o poder de fazer cumprir a lei e de punir quem a transgredir. A autoridade tem seu status, que se percebe no texto pelo tratamento de desprezo e pelos insultos que o delegado dirige ao ladro. Este aceita, sem protestar, tal tipo de tratamento, reconhecendo implicitamente a lei e sua posio de infrator. Est-se diante de uma norma social que defende o direito de propriedade e pune quem desrespeita esse direito, assim como pune outras infraes como trfico de drogas, suborno, estelionato. O conhecimento dessas normas culturais compartilhado pelo autor e pelo seu leitor que, desse modo, pode apreender significados a partir do texto.
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POSIO CRTICA Entretanto, a questo que se coloca a de como, a partir desses princpios culturais, o leitor dessa crnica consegue produzir sentido se, medida que se desenvolve a narrativa e aumentam e se agravam os delitos do ladro, v-se uma diminuio na severidade do delegado, se modifica substancialmente a relao delegado-ladro, surgindo condescendncia de parte da autoridade para com o infrator, chegando ao ponto de desaparecer a possibilidade de punio. Esses fatos contrariam a cultura e acabam por criar incongruncia e nonsense. Parece ento que o chamado contexto cultural no d conta do sentido da crnica, considerando-se, como quer Halliday, que h relao direta e estreita entre texto e contexto. Aqui o texto estaria contrariando o contexto cultural. Poder-se-ia objetar que se est em presena de um discurso que se serve de procedimentos irnicos como estratgia argumentativa e que, assim sendo, afirma o contrrio daquilo que quer defender (definio de ironia com a qual, sabese, dificilmente se pode concordar integralmente). Admitindo-se a ironia, que realmente existe nesse texto, ainda assim a questo no ficaria resolvida, porque ento se perguntaria: por que o recurso ironia? Que sentido ela assume no texto? Por que o autor se serve dessa estratgia para defender um ponto de vista cultural compartilhado pelo leitor-destinatrio, participante do ato de linguagem, inseridos ambos na mesma cultura? Isso no estaria em contradio com a primeira condio de adequao (CHAROLLES, 1980), segundo a qual um locutor s faz uma argumentao para convencer seu interlocutor sobre alguma coisa se ele pensa que este ltimo, at o momento da enunciao, no acredita naquilo sobre o que ele est argumentando? Para se encontrar uma soluo questo levantada, torna-se indispensvel apelar para a noo de condies de produo, no prevista pela proposta de Halliday. Entende-se, com Courtine (1980), as condies de produo alinhadas anlise histrica das contradies ideolgicas presentes nos discursos e articulada ao conceito deformaes discursivas. Para dar coerncia ao texto em estudo e esclarecer seu sentido, deve-se fazer apelo ao momento de sua produo (abril de 1993), quando aes altamente controvertidas, do ponto de vista cultural, quanto integridade de personalidades do alto escalo governamental eram reveladas nao atravs dos diferentes meios de comunicao, e nenhuma medida de punio era tomada como seria esperado social e culturalmente. Entende-se ento que, diante de fatos dessa ordem, que estariam numa cultura que se caracterizaria como discriminante e permissiva, o autor tome posio contra ela, posio que se torna a chave do sentido do texto em questo. Vendo-se o ato de linguagem sob essa perspectiva, outras questes tericas aparecem, e que no coincidem com a proposta de Halliday. Uma delas a de que o sentido no mais entendido como o resultado de um processo interacional entre dois sujeitos empricos, um eu e um tu, que compartilham
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conhecimentos de mundo e experincias, e em que o eu o onipotente dono da linguagem e fonte do sentido. Do ponto de vista que aqui se prope, h um sujeito que se inscreve numa determinada formao discursiva. O sentido no , ento, determinado pela referncia que a linguagem faz ao mundo, mas definido pela relao do sujeito com o ideolgico. o que se evidencia nesta crnica, na qual no so os fatos reais narrados pelo ladro que determinam o sentido do texto, mas as relaes que se estabelecem entre elementos do saber de formaes discursivas antagnicas, marcando a posio que o sujeito assume em seu discurso. A prpria ironia que se percebe na crnica decorre desse antagonismo e assim se explica. Outra questo que se coloca a de que no se trata de um sujeito nico, individual, do qual se quer que emane o sentido, como se depreende da perspectiva de anlise do contexto estabelecido por Halliday, mas de uma interdiscursividade, que cria efeitos de sentido. Vrias vozes dialogam, a partir de lugares diferentes, nessa crnica. E nesse rumor polifnico, em que predominam relaes de antagonismo entre essas vozes que se sedimenta o sentido. CONCLUSO Concluindo, seria possvel afirmar-se que a proposta de Halliday (1989) para explicar a importncia do contexto na definio do sentido no parece plenamente satisfatria. Os componentes do contexto imediato campo, teor e modo e suas relaes com as funes experiencial, interpessoal e textual denotam apenas os significados referenciais e as relaes compartilhadas no contexto de comunicao entre os sujeitos empricos eu e tu. O contexto cultural coloca os protagonistas e o prprio ato de linguagem numa rede de relaes, num contexto mais amplo, mas que limita a interpretao do texto. Como se viu, ao se fazer a breve anlise da crnica de Lus Fernando Verssimo, a teoria de Halliday para o contexto no explica o sentido do texto. Torna-se ento oportuno buscar solues nas condies de produo, nas formaes ideolgicas e discursivas e na pluralidade de vozes que esto na origem dos efeitos de sentido que se produzem no discurso.
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ANEXO
Experincia nova Pegaram o cara em flagrante roubando galinhas de um galinheiro e levaram para a delegacia. Que vida mansa, hein, vagabundo? Roubando galinha pra ter o que comer sem precisar trabalhar. Vai pra cadeia! No era pra mim no. Era pra vender. Pior. Venda de artigo roubado. Concorrncia desleal com o comrcio estabelecido. Sem-vergonha! Mas eu vendia mais caro. Mais caro? Espalhei o boato que as galinhas do galinheiro eram bichadas e as minhas no. E que as do galinheiro botavam ovos brancos e as minhas botavam ovos marrons. Mas eram as mesmas galinhas, safado. Os ovos das minhas eu pintava. Que grande pilantra... Mas j havia um certo respeito no tom do delegado. Ainda bem que tu vai preso. Se o dono do galinheiro te pega... J me pegou. Fiz um acerto com ele. Me comprometi a no espalhar mais boato sobre as galinhas dele, e ele se comprometeu a aumentar os preos dos produtos dele para ficarem iguais aos meus. Convidamos outros donos de galinheiro a entrar no nosso esquema. Formamos um oligoplio. Ou, no caso, um ovigoplio. E o que voc faz com o lucro do seu negcio? Especulo com dlar. Invisto alguma coisa no trfico de drogas. Comprei alguns deputados. Dois ou trs ministros. Consegui a exclusividade no suprimento de galinhas e ovos para os programas de alimentao do governo e superfaturo os preos. O delegado mandou pedir um cafezinho para o preso e perguntou se a cadeira estava confortvel, se ele no queria uma almofada. Depois perguntou: Doutor, no me leve a mal, mas com tudo isso, o senhor no est milionrio? Trilionrio. Sem contar o que eu sonego do Imposto de Renda e o que tenho depositado ilegalmente no exterior. E, com tudo isso, o senhor continua roubando galinhas? s vezes. Sabe como . No sei no, excelncia. Me explique. que, em todas essas minhas atividades, eu sinto falta de uma coisa. Do risco, entende? Daquela sensao de perigo, de estar fazendo uma coisa
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proibida, da iminncia do castigo. S roubando galinhas eu me sinto realmente um ladro, e isso excitante. Como agora. Fui pego, finalmente. Vou para a cadeia. uma experincia nova. O que isso, excelncia? O senhor no vai ser preso no. Mas fui pego em flagrante pulando a cerca do galinheiro! Sim. Mas primrio, e com esses antecedentes...
BIBLIOGRAFIA CHAROLLES, M. Les formes directes et indirectes de largumentation. Pratiques, n.28, oct. 1980. COURTINE, J.-J. Quelques problmes thoriques et mthodologiques en Analyse du Discours propos du discours communiste adress aux chrtiens. Universit de Paris X- Nanterre, 1980. (tese de 3 ciclo). HALLIDAY, M. A. K. & HASAN, R. Language, context and text. Oxford, Oxford University Press, 1989. VERSSIMO, L. F. Experincia nova. Zero Hora, 4 abr. 1993.
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Perspectiva da Enunciao