Heresia e Ortodoxia. História Social

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[DOI] 10.23925/1980-8305.

2018v1i1p234-248 234

HERESIA E ORTODOXIA: UMA ANÁLISE TEÓRICA NO CONTEXTO DA


INQUISIÇÃO

HERESY AND ORTHODOXY: A THEORETICAL ANALYSIS IN THE CONTEXT OF


THE INQUISITION

Anderson Cordeiro de Moura1

Resumo: Neste trabalho, propomo-nos a analisar o processo pelo qual a heresia torna-se
realidade. Trata-se de um estudo teórico com o intuito de compreender como a ortodoxia
“cria”, através do seu discurso, a heresia e legitima, por meio de vários mecanismos de
coerção, a intolerância. Para tanto, adotamos a pesquisa descritiva e de natureza bibliográfica,
tomando como base a análise do discurso norteado por Michel Foucault (1996), que
apresenta, mediante o estudo da formação discursiva de cada momento histórico, a relação
entre discurso e poder, considerando dispositivos de controle do poder nas diferentes culturas
e épocas históricas. Com base em nosso estudo, pretendemos evidenciar que, para que haja a
heresia, é fundamental o papel da ortodoxia. Ou seja, as heresias não nascem por oposição à
religião, mas de dentro da própria religião, como uma resposta crítica a ela.

Palavras-chave: Intolerância, heresia, discurso.

Abstract: In this work, we propose to analyze, the process by which the heresy becomes
reality. This is a theoretical study with the aim of understanding how the orthodoxy, “creates”
through its discourse of heresy, and legitimates through various mechanisms of coercion and
intolerance. For both, we have adopted the descriptive nature of the literature, taking as
analytical framework the discourse analysis guided by Michel Foucault (1996) that presents,
through the study of the discursive formation of each historical moment, the relationship
between discourse and power, whereas resistance devices and control of power in different
cultures and historical periods. Based on our study, we intend to highlight that, for there to be
heresy is fundamental to the role of orthodoxy. That is, heresies are not born out of opposition
to religion, but rather within religion itself, as a critical response to it.

Keywords: Intolerance, heresy, speech.

Introdução

O conceito de religião provoca ainda muitas discussões e não existe um consenso a


respeito do seu significado. Em muitas línguas, a palavra latina religio carrega um sentido
bastante especifico, uma vez que a cultura europeia foi profundamente marcada pelo
cristianismo. Quando se fala em religião, logo se remete ao cristianismo católico. Foi este

1
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba-
UFPB. Membro do VIDELICET - Estudos em Intolerância, Diversidade e Imaginário, vinculado ao
PPGCR/UFPB e ao CNPq: [email protected]
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sentido de religião proposto por Santo Agostinho que passou para o ocidente cristão: [...] “a
ideia de que religio significava uma ligação baseada na submissão e no amor entre o homem e
Deus” (FILORAMO; PRANDI, 1999, p. 257).

Nesse sentido, evidencia-se que o conceito de religião como o de “submissão a Deus”


cristalizou-se no ocidente e estabeleceu as normas pelas quais o homem deve seguir para
alcançar a Salvação. A religião cristã define-se como possuidora da única “verdade”. Por isso,
tudo o que lhe é contrário passa a ser entendido como mentira e deve ser combatido. Partindo
da necessidade de explicitar o verdadeiro do falso, o sagrado do profano e o certo do errado,
que surgiram os dogmas (a ortodoxia) e, consequentemente, as heresias.

Nessa perspectiva o presente artigo tem como objetivo realizar uma análise teórica
acerca do processo pelo qual a heresia torna-se realidade. Pretendemos compreender como a
ortodoxia “cria” a heresia e legitima, por meio de vários mecanismos de coerção, a
intolerância. Tomamos como objeto de análise a atuação do tribunal do Santo Oficio, uma vez
que fora o tribunal criado pela Igreja no intuito de combater as heresias que se haviam
espalhado pela Europa desde o século XII.

Adotamos como metodologia a pesquisa descritiva e de natureza bibliográfica com


abordagem qualitativa. Dessa forma, este estudo enquadra-se na perspectiva da História das
Religiões, pois, de acordo com Sergio da Matta, a moderna História das Religiões “[...] ela
quer - o que já é um desafio suficientemente grande - compreender e explicar geneticamente a
religião nas suas relações com a sociedade e a cultura" (MATA, 2010, p. 17). Observa-se que,
nas últimas décadas, o interesse da historiografia pelo campo religioso aumentou, os temas se
ampliaram e, além da história econômica e política, muitos historiadores têm se dedicado ao
estudo da cultura e das mentalidades. “Assim, jovens historiadores se aproximam de
sociólogos e antropólogos no seu interesse pelo estudo da religião, segundo uma perspectiva
histórica” (TORRES-LONDOÑO, 2013, p. 225).

Tomamos como referencial teórico a Análise do Discurso norteado por Michel


Foucault (1996), que apresenta, pelo estudo da formação discursiva de cada momento
histórico, a relação entre discurso e poder, considerando dispositivos de resistência e de
controle do poder nas diferentes culturas e épocas históricas. Valemo-nos também do ensaio
publicado por Georges Duby (1989), fruto da Conferência Internacional Colloque de
Royaumont sobre “Heresias e Sociedades”, realizado em maio de 1962.

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Este artigo está dividido em três momentos. Inicialmente, buscamos apresentar o


conceito de heresia, conforme estruturado pela Igreja, a fim de estabelecer a diferença entre o
pecador comum e o herege. Num segundo momento, procuramos analisar o papel social do
herege, ou seja, trata-se de analisar o herege em seu meio, para perceber o discurso herético
na sociedade. Por fim, pautamo-nos a estabelecer a relação dicotômica entre heresia e
ortodoxia.

Acredita-se que este trabalho tem sua relevância, na medida em que aborda os
mecanismos de coerção e de controle de poder em um dado momento histórico. Como
principal resultado, pretendemos evidenciar que, para que haja a heresia, é fundamental o
papel da ortodoxia. Ou seja, as heresias não nascem por oposição à religião, mas de dentro da
própria religião, como uma resposta crítica a ela.

1 Pecado e Heresia: definindo os limites

Passemos, portanto, à compreensão do que vem a ser uma heresia e um herege do


ponto de vista doutrinal. Ou seja, qual a diferença entre o pecador comum e o herege, bem
como qual o papel do herege na sociedade do ponto de vista histórico.

Etimologicamente, a palavra heresia significa “escolher”, “preferir” (LOPEZ, 1993).


No Catecismo da Igreja Católica, encontramos a seguinte definição:

Chama-se heresia a negação pertinaz, após a recepção do Batismo, de qualquer


verdade que se deve crer com fé divina e católica, ou a dúvida pertinaz a respeito
dessa verdade; apostasia, o repúdio total da fé cristã; cisma, a recusa de sujeição ao
Sumo Pontífice ou da comunhão com os membros da Igreja a ele sujeitos (C.I.C,
2089)2.

Na esfera canônica, o herege é definido como o indivíduo que escolheu e “[...] isolou
de uma verdade global uma verdade parcial e, em seguida, obstinou-se na escolha” (D.M.
CHENU apud VAINFAS, 2014, p. 251). De acordo com o manual dos Inquisidores, herege é:
“Aquele que adere [...] com convicção e obstinação a uma falsa doutrina considerada como
verdadeira” (EYMERICH, 1993: p. 31). Ou seja, tratando-se da heresia, tão ou mais
importante que os atos criminosos era a consciência do transgressor ao cometê-las. “Na
heresia há recusa (ou pelo menos dúvida) a uma verdade que a Igreja ensina mas, para ser

2
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 3ª. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Paulinas, Loyola, Ave-Maria,
1993.

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classificado como herege, a pessoa deve, apesar de ter sido esclarecida, obstinar-se no erro”
(GONZAGA,1993, p. 129).

Já a ortodoxia consiste na rigorosa observação dos dogmas religiosos. Dessa forma,


Portella (2006) considera que, por mais ecumênica ou tolerante que seja, toda religião ou
Igreja constituída, precisa colocar, de forma clara, as fronteiras entre ortodoxia e heresia, pois,
caso contrário, tenderá a se esfacelar e perder a “legitimidade” de sua doutrina.

Nesse sentido, entendemos que o herege é aquele que contradiz as verdades da Igreja,
não por tentação ou ignorância, mas por convicção pessoal. Lopez (1993) nos revela que, na
Idade Média, as primeiras heresias surgiram no Oriente.

Os primeiros considerados estão os gnósticos (que pretendiam a união do


cristianismo com seitas místicas de origem helênica), os montanistas (que defendiam
as tradições ascéticas e igualitárias dos primeiros cristãos), os donatistas (que
defendiam um novo batizado para os apóstatas), os arianos (que diziam ser Cristo
semelhante, mas não igual a Deus), os nestorianos (que afirmavam ter o filho de
Deus se unido a um homem comum, Jesus) e os pelagianos (que afirmavam
poderem os crentes se salvar, prescindindo da Igreja) (LOPEZ, 1993, p. 24-25).

Além das apresentadas, destacam-se as heresias que culminaram em 1054 no primeiro


cisma do catolicismo: o “Cisma do Ocidente.” Depois de uma troca de insultos, a Igreja
Romana cortou ligações com a Igreja Bizantina excomungando o patriarca de Constantinopla
Miguel Celulari. Muitos foram os motivos que levaram a esse racha no Cristianismo, entre
eles questões políticas e econômicas. Porém as principais foram as heresias surgidas no
catolicismo bizantino, denominadas Monofisismo e Iconoclastia.
Os membros do movimento monofisista defendiam que Cristo tinha apenas uma
natureza divina, e não humana e divina como afirma a doutrina Católica. Já a iconoclastia (ou
iconoclasmo) defendia a proibição das imagens de santos nas igrejas. Seus seguidores
pregavam a destruição dessas imagens para impedir que elas fossem idolatradas.

Com o passar do tempo, o feudalismo foi sendo estruturado e o catolicismo se


sobrepôs a todas as outras religiões que existiam na Europa antes da sua instituição como
religião oficial. Assim, à medida que o feudalismo se firmava como sistema político,
econômico e social, cresciam as suas formas de exploração e opressão. Com isso, as heresias
perderam o seu sentido puramente doutrinal ou teológico e passaram a encerrar um sentido
mais político. “Em determinado momento, a oposição ao feudalismo e a Igreja confluíram
inevitavelmente para desencadear as heresias” (LOPEZ, 1993, p. 25). Para o referido autor, a
heresia foi a resposta ao verdadeiro mal - um sistema social injusto e opressor, a que se
juntava uma hierarquia eclesiástica onipotente e venal.

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São Tomás de Aquino apresentava a heresia sob três características conceituais:


Doutrina, Pecado e Delito (SIQUEIRA, 2013, p. 198), ou seja, o pecado se configura como
uma falta a Deus e aos seus mandamentos. Por tal razão, o pecado encontra sua remissão no
confessionário, por meio da absolvição sacramental conferida pelo sacerdote unicamente ao
pecador que humildemente reconhecia a sua falta e a apresenta ao confessor.

A origem do mal que movia o pecador para cometer o ato pecaminoso poderia ser de
natureza humana, ou seja, uma tentação “carnal”, uma tentação demoníaca, ignorância ou
omissão. Já a heresia possuía um caráter mais abrangente, pois se configurara como recusa ou
dúvida a uma doutrina da Igreja. Ao colocar em dúvida a autoridade da Igreja, que era a base
da sociedade feudal, o pecado torna-se um delito e passa a alçada não mais dos padres mais de
juízes inquisidores. Assim se configura uma heresia.

No Santo Ofício contavam-se as heresias e apostasias. As heresias, i.e., todas as


doutrinas diretamente opostas ás verdades reveladas por Deus e propostas como tais
pela Igreja, manifestados por fatos, (palavra ou escrito), e as apostasias, i.e.
renegação total da fé, eram delitos. E porque eram delitos, refugiam ao campo da
jurisdição dos teólogos, para penetrarem no dos penalistas canônicos
(SIQUEIRA, 2013. p. 472, grifo nosso).

Para Sonia Siqueira, pioneira dos estudos inquisitoriais no Brasil, os pecados comuns
possuíam um aspecto individual, já o pecado de heresia possuía um aspecto de coletividade,
pois colocava em risco o bem estar da sociedade, “[...] Isso porque, num meio católico, as
heresias e apostasias eram ameaças ao bem comum, uma vez que ameaçavam a integridade
religiosa da sociedade pelo proselitismo dos hereges ou pelo escândalo que eles causavam.
Afetavam a comunidade” (SIQUEIRA, 2013, p.472). E ainda “[...] A heresia era pecado pela
sua própria matéria, porque ia buscar fora da Igreja sua regra de fé. Implicava em revolta
consciente contra o magistério da Igreja, portanto no assentimento do espírito (2013, p. 198).
A autora assim declara:

A heresia era doutrina que se opunha imediatamente, diretamente e


contraditoriamente a verdade revelada por Deus e proposta autenticamente como tal
pela Igreja. [...] Era o pecado mais grave, porque supunha o mais completo
conhecimento da regra de fé e da verdade a crer e implicava na mais radical
oposição a revelação. Grave porque destruía a verdade da fé e consistia num
soberana injúria feita diretamente a Deus. Feria a autoridade de Deus revelador
manifestada pelo magistério da Igreja. A heresia era delito. Delito eclesiástico de
ação ou omissão que perturbava a ordem da Igreja e tinha uma nocividade externa
(SIQUEIRA, 2013, p. 198- 199, grifos nossos).

Com base nisso, pode-se compreender porque certos crimes não entravam na esfera
dos processos inquisitoriais.

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Ao Santo Ofício interessavam, fundamentalmente, os erros de doutrina passíveis de


serem captados não apenas em afirmações ou ideias contestatórias a verdade oficial
e divina, mas em atitudes ou comportamentos que por sua obstinação desafiadora
aquela verdade, implicavam suspeita de heresia [...] Por isso, como veremos em
detalhes, os inquisidores tomaram a seu cargo o julgamento dos bígamos, mas
não o dos concubinatos; por isso perseguiram os sodomitas por vezes culpados
do bestialismo, deixando os demais transgressores sexuais nas mãos de
confessores ou tribunais diocesanos. Eleição arbitrária de “pecados heréticos” –
poder-se-ia com alguma razão afirmar-, mas sempre justificada com o argumento de
que certos pecados eram tão graves que ameaçavam a pureza e a ordem da
verdadeira fé (VAINFAS, 2014, p. 252, grifos nossos).

As heresias eram interpretadas pelos teólogos cristãos como uma doença espiritual de
extrema gravidade. Por isso, os inquisidores agiam como verdadeiros “médicos”, a fim de
identificar as “doenças” da alma. “Os ministros do Tribunal procediam como um moderno
analista, procurando compreender os processos psicológicos para apreender o sentido da
falta” (SIQUEIRA, 2013, p. 477). Desse modo, a partir das confissões espontâneas ou
forçadas, o réu poderia ser classificado em quatro categorias: heresiarca, crente, suspeito e
faltosos

“Heresiarca” é aquele que formula a doutrina heterodoxa e a difunde; o “crente”


quem adere a essa doutrina; “suspeito” quem mostra simpatia pelos ensinamentos
heréticos; “faltosos”, quem aos hereges presta auxilio, mesmo sem abraçar a sua
doutrina (GONZAGA, 1993, p. 130).

Classificavam-se ainda os hereges como impenitentes, penitentes e relapsos.

Chamam-se hereges tenazes e impenitentes aqueles que, solicitados pelos juízes,


convencidos do erro contra a fé, intimados a confessar e abjurar, não querem
submeter-se e preferem manter teimosamente seus erros. Estes devem ser
entregues ao braço secular para serem executados. Chamam-se de hereges penitentes
aqueles que, havendo aderido intelectualmente e de coração a heresia, retrocedem,
têm piedade de si próprios, ouvem a voz da prudência e, abjurando seus erros e
suas atuações anteriores, suportam as penas que lhes são infligidas pelo bispo
ou pelo inquisidor. Chamam-se hereges relapsos, aqueles que, havendo abjurado
a heresia e se tendo tornado penitentes, recaem na heresia. Estes, quando sua
recaída é plena e claramente estabelecida, são livrados [sic!] ao braço secular
para serem executados, sem necessidade de novo julgamento. Todavia, se eles se
arrependem e confessam a fé católica, a Igreja lhes concede os sacramentos da
penitência e da Eucaristia (GONZAGA, p. 130, grifos nossos).

Portanto, a fim de apurar a verdade, e descobrir a heresia e o grau de culpabilidade


do réu, os interrogatórios do Santo Ofício eram verdadeiros esquadrinhamentos da vida, dos
sentimentos, aspirações, medos e desejos mais ocultos dos que eram investigados.
Questionava-se sobre a genealogia do réu, sua condição social, possível contato com outras
religiões, seu conhecimento sobre a doutrina católica, com que pessoas convivera, onde se
havia criado, etc.

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O caminho para atingir tal fim era o da compreensão das relações humanas,
principalmente as afetivas. Importava realmente apurar a existência da heresia,
não fossem as aparências induzir a juízos falseados. Por isso se interessavam eles
também por atos moralmente bons, situações específicas em que as faltas tinham
sido cometidas; saber se os implicados estavam em seu juízo perfeito, se não
estavam tomados de vinho, ou se o costumavam fazer, e em que conta os tinha a
opinião pública (SIQUEIRA, 2013, p. 478, grifos nossos).

Neste sentido, pode-se compreender porque a nomeação para o cargo de inquisidor


precisava corresponder a algumas exigências, como, por exemplo, o Papa Clemente V (1305-
1314), no Concilio de Viena (1311), dispôs que ninguém podia ser inquisidor antes dos
quarenta anos. Também se exigia dos Inquisidores formação em Teologia e Direito Canônico,
além de garantias de honestidade.

Como doutor, o Inquisidor devia ter a competência para discernir a heresia onde
quer que despontasse, sob as mais inocentes aparências de que se pudesse revestir. A
mesma asserção, feita por diferentes pessoas, pode conter ou não a heresia. Um
exemplo: a afirmação que constantemente reponta das confissões feitas ao Santo
Ofício de que o estado dos casados era tão bom ou melhor que o dos religiosos. A
proposição fora proibida por Trento, podia no entanto, revelar apenas ignorância por
parte de quem repetia, podia ter sido fruto de conversas inconsequentes, mas podia
também esconder a heresia condenada (SIQUEIRA, 2013, p. 488).

Dessa forma, durante o procedimento inquisitorial, no momento em que estava perante


o Inquisidor todos eram, por princípio, apenas “suspeitos de heresia”. A investigação
procedente deveria apurar se o sujeito era, de fato, herege ou apenas incorreu em práticas
heréticas por ignorância. Caberia ao inquisidor apurar se o réu aceita ou não os ensinamentos
da Igreja de formas consciente, o que exigia um alto nível de erudição por parte dos
inquisidores para captarem a “pureza” do depoimento. A realização de uma prática,
considerada herética era apenas o indício, o sintoma. No entanto, para ser considerado herege
era preciso clareza acerca do ato praticado e, apesar de ser alertado, obstinar-se no erro.

2 O herege no processo histórico

Até o momneto discorremos acerca das definições sobre heresia na esfera canônica.
No entanto, para uma análise da conjuntura social, cabe-nos buscar conceituar a heresia a
partir da visão dos “vencidos”, ou seja, aqueles cuja cultura oficial foi imposta. Trata-se de
fato “[...] de observar o herege no processo histórico” (DUBY, 1989, p.176) e assim perceber
o seu lugar social, dando-lhe a oportunidade de fala, condição indispensável para a
compreensão da intolerância.

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A maior parte daqueles que escreveram a história vista de baixo aceitariam em um


sentido amplo a opinião de que um dos resultados de terem seguido essa abordagem
tem sido demonstrar que, os membros das classes inferiores foram agentes,
cujas ações afetaram o mundo (as vezes limitado) em que eles viviam. Voltamos
a argumentação de Edward Thompson de que as pessoas comuns não eram apenas
“um dos problemas com que o governo tinha de lidar” (SHARPE, 1992, p. 60,
grifos nossos).

Concernente a isso, entendemos que: “o historiador está portanto autorizado a


examinar em profundidade as reações da personalidade do heresiarca face ao seu meio; ele
está autorizado a indagar sobre sua psicologia” (DUBY, 1989, p. 179). Salientamos que, para
os historiadores da nova historiografia e diante do crescente interesse nas últimas décadas por
novas abordagens historiográficas como a cultura, família, religião, etc., o acesso às
informações de grupos marginalizados que há tempos foram silenciados pela historiografia
oficial, é uma extraordinária realidade nos documentos inquisitoriais, que tem despertado o
interesse de vários historiadores em trabalhos recentes, pois neles é dado o poder de fala às
classes populares. Nessa medida, Lopez esclarece que: “o que foi identificado pela
historiografia cristã como heresia, nas origens do cristianismo, a historiografia científica atual
interpreta como sendo a visão dos vencidos” (LOPEZ, 1993, p. 24). E nas fontes inquisitoriais
encontram-se grande quantidade de informação sobre esses grupos.

Oferecem, [as fontes inquisitoriais] no conjunto, não só a óbvia possibilidade de


análise das especificidades que calcavam a religiosidade e a fé da sociedade
colonial - como a ideologia religiosa, o imaginário da fé colonial, a atuação dos
clérigos e as práticas populares em suas principais representações e heresias -,
mas ainda indícios veementes sobre a estruturação econômica, política, cultural e
social das regiões visitadas, num leque que se estende das formas de moradia,
alimentação, festas e confraternização dos denunciados, confitentes e/ou
acusadores, até as intrigas na disputa pelo poder local, passando por feitiços de
amor, concubinatos, homoerotismo, vinganças pessoais ou assuntos do
cotidiano (ASSIS, 2004, p. 6, grifos nossos).

Inevitavelmente, deparamo-nos com uma dificuldade analítica, posto que os relatos


dos personagens analisados nem sempre são objetivos, sendo relevante se levar em
consideração que muitos deles partem do medo das pressões realizadas pelos inquisidores.
Medo dos castigos, do banimento, do confisco de bens ou mesmo da morte.

O desejo de verdade por parte dos inquisidores (a verdade deles, naturalmente)


produziu um testemunho extremamente rico para nós - profundamente destorcido,
todavia, pelas pressões psicológicas e físicas que representavam um papel tão
poderoso nos processos (GINZBURG, 1991, p. 12).

No entanto, o autor nos mostra que essas dificuldades não podem desencorajar os
historiadores. “O fato de uma fonte não ser “objetiva” (mas nem mesmo um inventário é

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objetivo) não significa que seja inutilizável [...] Mesmo uma documentação exígua, dispersa e
renitente pode, portanto, ser bem aproveitada” (GINZBURG, 2006, p. 16). O autor expõe,
todavia, a necessidade de analisar a documentação inquisitorial pela utilização de filtros sobre
o documento, tendo cuidado com as informações fornecidas pelas fontes.

Eu não estou pretendendo naturalmente que esses documentos sejam neutros ou nos
forneçam informações “objetivas”. Eles devem ser lidos como o produto de uma
inter-relação peculiar, claramente desequilibrada. No sentido de decifrá-los,
devemos aprender a captar, por baixo da superfície uniforme do texto, uma
interação sutil de ameaças e temores, de ataques e recuos. Devemos aprender a
desencadear os diferentes fios que formam o tecido factual desses diálogos
(GINZBURG, 1991, p. 15, grifos nossos).

Por essa razão, gostaríamos de conceituar adiante as heresias a partir do seu papel
social, detectando o “perigo” que representava o discurso do herege para que deles se
preocupasse tão intensamente o Santo Ofício. “Mas o que há enfim, de tão perigoso no fato de
as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal está o
perigo?” (FOUCAULT 1999, p. 8). Em concordância com o que expomos até agora, percebe-
se pelo caráter de crítica social que as heresias assumiram a partir da estruturação do
feudalismo na Idade Média, os hereges passam à condição de perigosos, pois ameaçavam o
sistema social vigente. “Protesto contra a pobreza, rebelião contra a autoridade, denúncia de
corrupção eclesiástica, pregação evangelizadora para restaurar a pureza original do
cristianismo, tudo isso se misturou para dar origem ao fenômeno herético” (LOPEZ, 1993, p.
25).

Entendemos, frente ao exposto, os hereges como aqueles que quebraram a “ordem do


discurso” de seu tempo. Não estiveram inseridos nos paradigmas da época. E como explica
Foucault (1999), o que não está na ordem do discurso não pode ser aceito. Por isso, sofreram
interdição ou foram excluídos do convívio social. Pois, para que um discurso seja aceito em
determinada época, faz-se necessário que ele obedeça “[...] as regras de uma ‘polícia’
discursiva, que devemos reativar em cada um de nossos discursos” (FOUCAULT, 1999, p.35).
Para elucidar tal questão, o autor ilustra o caso de Mendel, que, mesmo falando a “verdade”,
sua teoria não foi aceita, uma vez que contrariava os preceitos da ciência do seu tempo
histórico. “Mendel dizia a verdade, mas não estava ‘no verdadeiro’ do discurso biológico de
sua época” (1999, p. 35).

O mesmo podemos dizer de homens e mulheres perseguidos pelo Santo Ofício, visto
que eles não entravam na lógica do discurso sustentado pela sociedade da época em que
viveram. Para Grigulevich, a Inquisição surgiu para combater a heresia enquanto ameaça à

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dominação vigente (apud LOPEZ, 1993, p. 15). Dessa forma, a heresia surge como um
produto do seu meio, como uma quebra ou ruptura com as “verdades” estabelecidas pela
sociedade em que ela atua como uma forma de rejeição ao discurso institucionalizado.

3 Heresia e ortodoxia

Segundo Foucault “a heresia e a ortodoxia não derivam de um exagero fanático dos


mecanismos doutrinários, elas lhes pertencem fundamentalmente” (1999, p. 42). Ou seja, ao
entender-se como a única religião possuidora da “única verdade”, o catolicismo iria trabalhar
no sentido de distinguir o verdadeiro do “falso”, o bom do “mau”, a religião da “heresia”.

Os discursos e práticas particulares deveriam ser sistematicamente excluídos,


proibidos, denunciados - tomados, tanto quanto possível, impensados, impensáveis;
outros porém, deveriam ser incluídos, permitidos, celebrados e inseridos na narrativa
sagrada (ASSAD, 2010, p. 268).

Corroborando com essa ideia também nos esclarece Duby: “é com efeito, a sentença
de condenação pronunciada pelos clérigos que isola um corpo de crenças e lhe dá nome”
(1989, p. 178). Isto é, o discurso da ortodoxia, consiste na denúncia que a própria Igreja fazia
daquilo que procurava subverter a “verdade”: seus dogmas e preceitos.

A igreja Medieval não procurou estabelecer a uniformidade absoluta das práticas,


pelo contrário, seu discurso autoritativo sempre se preocupou em especificar
diferenças, gradações, exceções. O que ela buscava era a sujeição de toda prática a
uma autoridade unificada, a uma fonte autêntica e única que pudesse distinguir a
verdade da falsidade. Foram os antigos pais da Igreja que estabeleceram o princípio
de que apenas uma Igreja unificada poderia se tornar o discurso autenticador
(ASSAD, 2010, p. 269).

Algo peculiar recordado por Lopez (1993) é o fato de que alguns Santos da Igreja
também possuíam em sua pregação certas afinidades com os discursos dos heréticos
queimados nas fogueiras. O autor cita dois personagens: Santa Catarina de Sena e São
Francisco de Assis: O caso de Santa Catarina é emblemático, pois ela verberou a imoralidade
do papado de Avignon. “Obstinada e piedosa, foi, como outros santos da mesma estirpe, o
reverso da medalha cuja outra fase era a heresia” (1993, p. 26).

Santa Catarina de Sena desempenhou um papel fundamental na história da Igreja,


principalmente no que se refere ao episódio conhecido como “papado de Avignon”, um
momento dramático do Catolicismo em que, por razões políticas, o Papa se encontrava
exilado em Avignon, na França. Catarina exortou o Sumo Pontífice a voltar para Roma. Ela
obteve êxito já que o papa acata seu pedido em janeiro de 1377. Com seus ensinamentos,

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Catarina é sempre lembrada pelos seus biógrafos como uma jovem de personalidade forte e
corajosa.

Quanto a São Francisco, seu discurso em muito se assemelhava com o de Arnaldo de


Bréscia. Ambos pregadores mendicantes medievais, preocupados com a fortuna que a Igreja
ostentava, pregavam a necessidade de uma Igreja mais pobre, a exemplo de Cristo, que foi
pobre. Em face disso, cabe a pergunta: “porque São Francisco e ela [Catarina de Sena]
ganharam a glória dos altares, e outros foram condenados? A razão está provavelmente, no
fato de que eles, apesar de tudo, não desafiavam o sistema vigente” (LOPEZ,1993, p. 26). Ou
seja, os hereges eram aqueles a quem faltava a “humildade”. A mesma humildade que
“salvou” Francisco, Catarina, Tereza D’Ávila e tantos outros que criticavam a Igreja, mas
sempre de forma ponderada e até respeitosa, desejavam a mudança da Igreja por dentro, e não
por fora.

Na verdade, a Igreja não poderia simplesmente condenar todos os movimentos que,


na baixa Idade Média, clamaram por uma religião voltada ao povo e reformada em
seus costumes. Aceitou aqueles que poderia aceitar e os utilizou como antídoto para
as sua defesa - fabricou dois rótulos e, entre ambos ergueu a muralha intransponível
- o santo e o herege (LOPEZ,1993, p. 26).

E assim compreendemos os princípios de exclusão e interdição do qual nos fala


Foucault (1999). Os discursos de Francisco e Catarina não desafiavam o sistema vigente, pois
buscavam uma “reforma” na Igreja de forma pacífica, por meio do diálogo com os líderes,
sempre ancorados no princípio da obediência e da submissão. Dessa forma, sempre que a
Igreja conseguia estabelecer o diálogo e “pacificar” o discurso herético, por meio da
interdição imposta aos hereges, a heresia perdia sua criticidade, podendo reconciliada com a
Igreja, cair no esquecimento ou em alguns casos, ser apropriado por ela, como nos casos
acima mencionados. “Vimos que a ortodoxia suscitava a heresia, condenando-a e dando-lhe
nome. Podemos perceber também, que a ortodoxia reabsorveu muitas heresias, domesticando-
as, reconciliando-as consigo, apropriando-se delas” (DUBY, 1989, p.183).

Se essa pacificação da rebeldia do herege não acontecia, logo ele sofreria o princípio
da exclusão, por meio do banimento, da prisão, ou do suplício no auto-de-fé. Recordamos o
famoso caso de Domenico Scandella, apresentado pelo historiador Italiano Carlo Ginzburg
(2006). A princípio, pareceu aos Inquisidores que haviam conseguido “domesticá-lo”
persuadindo-o a obedecer a Igreja e reconhecer nos “absurdos” que havia falado, fruto de
inspiração demoníaca. Domenico teria dito que “[...] a igreja não vai bem, e não deveria ter

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tanta pompa3” (GINZBURG, 2006, p. 128). Nas palavras dos seus acusadores, com sua
desobediência ele “[...] criou uma nova seita e um novo modo de viver” (2006, p. 130). No
final do processo, porém, Domenico escreve uma carta pedindo perdão, redimindo-se dos seus
erros, expressando-se nestes termos:

Eu disse isso por vontade do falso espírito, o qual me cegara o intelecto, a


memória e a vontade, fazendo-me pensar, acreditar e falar no falso e não na
verdade [...] Entretanto, se eu pensei, acreditei, falei e fui contra os mandamentos
de Deus e da Santa Igreja, estou doente e aflito, arrependido e infeliz [...] Eu
prometo assim, não incorrer mais naqueles erros, ser obediente a todos os meus
superiores e pais espirituais em tudo o que eles me ordenarem e a nada mais
(GINZBURG, 2006, p. 140-142, grifos nossos).

Pela prova de reconhecimento de sua desobediência e rebeldia, após três anos de


prisão, ele obteve a permissão para voltar à vida em sociedade, desde que mantivesse a
mesma postura que expressara durante a prisão. No entanto, após um tempo de liberdade, a
Inquisição novamente recebe queixas contra Domenico e ele volta a ser investigado e termina
executado na fogueira. A história revela que muitos outros tiveram o mesmo destino.

A partir do século XVI, conforme Sônia Siqueira, as heresias que foram combatidas
tornaram-se mais refinadas, pois, embora mantivessem o caráter de crítica ao sistema, a
Igreja, a nobreza, etc., elas passaram a se esconder sob diferentes formas, disseminadas na
sociedade sob diferentes rótulos, influenciadas pelo iluminismo, luteranismo, judaísmo, entre
outros. “Talvez fossem mais graves porque se ocultavam, disfarçadas sob novas versões da
espiritualidade cristã. O Santo Oficio combateu as novas mobilidades da heresia próprias dos
tempos modernos” (SIQUEIRA, 2013, p. 201).

A autora esclarece que a Igreja da Reforma Católica foi uma Igreja de combate,
mobilizada contra a heresia, por isso, apareceram traços novos. Dentre os “traços novos” aqui
mencionados, ressalta-se o fator cristão novo, alvo principal das inquisições ibéricas, pois
eram vistos como um perigo à unidade do reino e à hegemonia de um catolicismo abalado. A
igreja após a Reforma torna-se ainda mais obstinada em sua missão de “salvar o mundo” dos
perigos do judaísmo, luteranismo e tudo o mais que ameaçasse o seu poderio e a sua Doutrina.

Sabemos que um dos principais alvos de perseguição por parte do tribunal português
foram os cristãos novos acusados de criptojudaísmo, isto é, a realização de ritos judaicos de
forma clandestina, “secreta”. No Brasil, muitos cristãos novos foram denunciados e
processados pela Inquisição durante as visitas que aconteceram no período colonial: a
primeira, em 1591 e 1595, a segunda entre 1618 e 1621, e a terceira entre 1627 e 1628. As

3
Mais uma heresia que se assemelha ao pensamento de São Francisco contra a fortuna da Igreja.

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práticas que sinomizavam a realização de ritos judaicos pela porção cristã nova da população
eram variadas, desde guardar o sábado, até mesmo, vazar as águas dos potes que se
conservavam em casa, quando do falecimento de alguém, rejeitar carne de porco, açoitar e até
mesmo urinar sobre um crucifixo, dentre tantos outros costumes, conforme destacado por
Ronaldo Vainfas:

[...] 1) guardar o sábado, vestindo-se com roupas e joias de festas, limpando a casa
na sexta feira e ascendendo candeeiros limpos com mechas novas, mantendo-os
acessos por toda a noite; 2) abster-se de comer toucinho, lebre, coelho, aves
afogadas, polvo, enguia, arraia, congro, pescados sem escamas em geral; [...] 7)
utilizar ritos funerários judaicos, a exemplo de comer em mesas baixas pescado,
ovos e azeitonas quando morre gente na casa de judeus, amortalhar os defuntos com
camisa comprida, enterrá-los em terra virgem, cotar-lhes as unhas para guarda-las,
pondo lhes na boca uma pérola ou mesmo uma moeda de ouro ou prata e dizendo-
lhes que é para pagar a primeira pousada, mandar lançar fora a água dos potes e
vasos da casa quando alguém morre na casa (VAINFAS, 1997, p.22-23).

Nesse sentido, percebemos que o criptojudaísmo era visto pela Igreja como uma grave
heresia uma vez que negava a divindade de Cristo, porquanto os judeus não aceitaram o
messias Jesus. Em virtude disso, o discurso judaico era ameaça à própria base do cristianismo.
A incorporação de elementos judaicos e as afirmações “blasfemas” dos cristãos novos contra
a pessoa do Papa, contra os clérigos e até contra o Deus cristão, eram ameaças à unidade da fé
pretendida pela coroa portuguesa.

Dessa forma, os criptojudeus, por seu comportamento desviante, punham em risco “a


ordem” da sociedade colonial. Os cristãos novos ameaçavam o ideal de unidade cristã que
ambicionava o reino português. “[...] eram os cristãos novos judaizantes que deveriam ser
erradicados de suas heresias, porque eram elas que ameaçavam a unidade espiritual nacional”
(SIQUEIRA, 2013, p. 183).

Não foram, no entanto, apenas os cristãos novos perseguidos pela Inquisição. Na


realidade, todos os comportamentos que representassem alguma ameaça à ortodoxia da fé
cristã foram combatidos. Conforme destaca Portela (2006, p. 571): “assim como no caso das
prisões, pode-se aplicar às Instituições (Igreja) a questão da vigilância e punição na questão
do zelo pela ortodoxia contra a heterodoxia do discurso e ação”.

Considerações finais

Atualmente vivemos em uma sociedade cercada de discursos extremamente


intolerantes. Discursos racistas, machistas e homofóbicos, de intolerância religiosa e

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discriminação social, que sobrevivem ao tempo e continuam se reproduzindo e ecoando


perenemente seus efeitos devastadores ao longo dos séculos em nossa sociedade. De acordo
com Cavalcanti (2015) acreditamos que o estudo de uma instituição intolerante como foi a
Inquisição só faz sentido na medida em que atenta para sua capacidade de enraizamento
cultural. Ou seja, trata-se de analisar os motivos pelos quais a intolerância passou a ser
assimilada pelas pessoas.

Perguntas como estas não possuem respostas prontas, mas merecem atenção para uma
reflexão cuidadosa acerca dos efeitos devastadores dos discursos que tendem ainda hoje a
reascender as chamas de uma nova Inquisição, como nos alertou Hoornaert:

Os senhores da Inquisição eram capazes de construir verdades a respeito de


judaísmo, heresia, superstição que impressionaram o povo por muito tempo [...]
contudo nascem novas “verdades” que ninguém ousa contradizer por medo de
repressão. Não se combate mais o judaísmo, a heresia, as superstições como antes. O
combate é dirigido contra marxismo, fascismo, imperialismo, capitalismo, tudo o
que incomoda ao grupo que está no poder, afinal de contas, ninguém explica a razão
de ser dessas verdades, mas todos aceitam com medo. As instituições modernas
repetem os estragos feitos na alma popular pela antiga Inquisição (HOONAERT,
1991, p. 57).

Dessa forma, consideramos que o estudo da Inquisição, “[...] todos nós o sentimos,
desemboca no estudo da intolerância e das suas diversas motivações” (DUBY, 1989, p. 178).
Acreditamos que o estudo do Santo Oficio traz à baila o problema da intolerância na história e
vem demonstrar quão perigoso pode ser quando o discurso religioso se confunde com
interesses políticos, dando margem a diversos problemas e conflitos.

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