Religioes - Camara Cascudo

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO

Ana Luísa Morais Barbosa

“DEUS EXPLICADO É DEUS DIMINUÍDO” – DA SUPERSTIÇÃO À


TEOLOGIA POPULAR: um estudo da religião no povo em Luís da Câmara Cascudo

Juiz de Fora
2016
Ana Luísa Morais Barbosa

“DEUS EXPLICADO É DEUS DIMINUÍDO” – DA SUPERSTIÇÃO À


TEOLOGIA POPULAR: um estudo da religião no povo em Luís da Câmara Cascudo

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Ciência da Religião do
Instituto de Ciências Humanas da
Universidade Federal de Juiz de Fora/MG
como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Ciência da Religião.

Área de concentração: Ciências Sociais da


Religião

Orientador: Prof. Dr. Volney José


Berkenbrock.

Juiz de Fora
2016
Ficha catalográfica

Barbosa, Ana Luisa Morais.


“DEUS EXPLICADO, É DEUS DIMINUÍDO” – DA SUPERSTIÇÃO À
TEOLOGIA POPULAR : Um estudo da religião no povo em Luís da Câmara
Cascudo / Ana Luisa Morais Barbosa. – 2016.
89f.

Orientador: Volney José Berkenbrock


Dissertação (mestrado acadêmico) – Universidade Federal de Juiz de
Fora, Instituto de Ciências Humanas. Programa de Pós Graduação em
Ciência da Religião, 2016.

1. Luis da Câmara Cascudo. 2. Superstição. 3. Cultura Popular. 4.


Teologia. I. Berkenbrock, Volney José, orient. II. Título.
DEUS EXPLICADO É DEUS DIMINUÍDO” – DA SUPERSTIÇÃO À
TEOLOGIA POPULAR: um estudo da religião no povo em Luís da Câmara Cascudo

Ana Luísa Morais Barbosa

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Ciência da Religião,
Área de concentração em Ciências
Sociais da Religião, do Instituto de
Ciências Humanas da Universidade
Federal de Juiz de Fora como requisito
parcial para a obtenção do título de
Mestre em Ciência da Religião.

Aprovada em ___ de ____ de ______.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________
Prof. Dr. Volney José Berkenbrock (Orientador)
Universidade Federal de Juiz de Fora

______________________________________________
Prof. Dr. Carlos Rodrigues Brandão
Universidade de Campinas

______________________________________________
Prof. Dr. Gilberto Felisberto Vasconcellos
Universidade Federal de Juiz de Fora
AGRADECIMENTOS

Primeiramente a Luís da Câmara Cascudo, por me abrir o horizonte de seu universo


através de cada livro, cada trecho, cada palavra escrita. Seus ensinamentos para além do
papel me fizeram enxergar a beleza das pequenas e, por vezes, imperceptíveis coisas e a
dar-lhes importância quase sacral.
Ao responsável por me apresentar Cascudo da maneira mais instigante e magistral: o
professor Gilberto Felisberto Vasconcellos, peça fundamental, não apenas no meu
percurso acadêmico, mas na minha formação como pessoa em múltiplos aspectos.
Ao professor Carlos Rodrigues Brandão, pela serenidade e pelo acolhimento no seu
refúgio, me deixando à disposição sua biblioteca que muito me ajudou na concretização
deste trabalho.
Ao meu orientador Volney Berkenbrock, pela paciência, tranquilidade e pelo
acolhimento. Agradeço imensamente a oportunidade que me deu de poder absorver parte
do grande conhecimento que possui.
À Universidade de Juiz de Fora que, através do Programa de Pós-Graduação em Ciência
da Religião, me possibilitou escrever este trabalho agraciada pela bolsa de estudos que
me permitiu dedicação exclusiva. Sem o incentivo o tempo seria outro, assim como o
resultado.
Aos meus pais, Luiza e Antônio Carlos, que acreditaram e acreditam em mim
incondicionalmente, não me deixando faltar afeto e proteção.
Aos meus irmãos, Marcelo e Felipe, pelo exemplo de competência e, principalmente, pelo
amor e carinho que me são sempre presentes e fundamentais.
Ao Zé, pelo apoio e pela compreensão nos momentos em que estive ausente e por todo
amor cultivado.
Aos amigos, pelas conversas e pelos desabafos cascudianos, sempre muito confortantes.
À minha filha Sofia, meu motivo maior de existência e realização.
A todos que de alguma forma fizeram parte e contribuíram para que este trabalho se
concretizasse. Sou imensamente grata a todos vocês.
RESUMO

A presente dissertação tem como principal objetivo analisar a religiosidade popular


brasileira a partir das reflexões de Luís da Câmara Cascudo sobre a superstição. Com a
análise do livro Religião no Povo (1974), principalmente, pretende-se compreender como
a lógica da superstição se faz presente e, ao mesmo tempo, consiste na unidade
caracterizadora das diversas religiosidades existentes desde a formação do Brasil como
colônia de Portugal. Para isso, buscou-se analisar a concepção do termo “teologia
popular”, proposto por Câmara Cascudo, vinculado às suas noções da superstição. Por
meio de revisão bibliográfica serão retomados fatos históricos do início do processo de
colonização e da consequente implantação da Igreja Católica no Brasil. Para tal, diversos
autores responsáveis, principalmente, pelo estudo da Teologia da Cristandade, foram
utilizados. Fundamental se faz para este estudo, então, a análise da lógica responsável por
manter a peculiaridade do comportamento religioso do povo brasileiro que se
desenvolveu mediante e paralelo às oficializações propostas pela Igreja Católica.

Palavras-chaves: Religiosidade popular. Superstição. Luís da Câmara Cascudo


ABSTRACT

The aim of this thesis is to analyse the Brazilian popular religiosity according to Luís da
Câmara Cascudo’s reflections about superstition. From the analysis of the book Religion
in People (1974), mainly, it is intended to understand how the logic of superstition is
present and, at the same time, how it is the characterizing unit of all existing religiousness
since Brazil’s formation as a colony of Portugal. In order to do that, the conception of the
term “popular teology”, proposed by Câmara Cascudo, was analysed and linked to his
notions of superstition. Historical facts from the beginning of the colonization process
and the subsequent implementation of the Catholic Church in Brazil will be resumed
through a literature review. To this end, several authors, responsible mainly for
Christianity theology study, were used. It is crucial for this study the analysis of the logic
responsible for maintaining the peculiarity of Brazilian people’s religious behavior,
which was developed by and parallel to the recognitions of the Catholic Church.

Keywords: Popular religiosity. Superstition. Luís da Câmara Cascudo.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 10

2 ASPECTOS BIOGRÁFICOS E CONSIDERAÇÕES SOBRE A CULTURA


POPULAR NO BRASIL 14
2.1 CASCUDO DO RIO GRANDE, DO NORTE 14
2.2 AS ESCAMAS DE CASCUDO 18
2.2.1 Escama da história 19
2.2.2 Escama da memória 20
2.2.3 Escama modernista e o arpão integralista 21
2.2.4 Escama do folclore 22
2.3 CONSIDERAÇÕES SOBRE A CULTURA POPULAR NO BRASIL 24
2.3.1. As faces da cultura 25
2.3.2 Formação étnica da cultura popular 28
2.4 CASCUDO E A RELIGIOSIDADE POPULAR NO BRASIL 29

3 AS MÚLTIPLAS INFLUÊNCIAS DA FORMAÇÃO DA RELIGIOSIDADE


BRASILEIRA 32
3.1 TEMPO DO REI VELHO: O MODELO DA CRISTANDADE 32
3.2 EMENDAR AS CAMISAS: RELIGIÃO E RELIGIOSIDADE NO PERÍODO
COLONIAL 40
3.3 UMA VIA E DOIS MANDADOS: DANTE NO POVO 49

4 DA SUPERSTIÇÃO À TEOLOGIA POPULAR 57


4.1 RELIGIÃO NO POVO 57
4.1.1 Às Almas 60
4.1.2 Ao morto 63
4.1.3 Ao Diabo e às pragas 64
4.1.4 “Santo por Santo o de casa é mais perto” 65
4.2 CONSIDERAÇÕES SOBRE CREDO OFICIAL E CREDO POPULAR 67
4.3 NINGUÉM É, NEM DEIXA DE SER 69
4.4 “DEUS EXPLICADO, É DEUS DIMINUÍDO”: DA SUPERSTIÇÃO À TEOLOGIA
POPULAR 79

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 84

REFERÊNCIAS 88
9

1 INTRODUÇÃO

O encontro com Luís da Câmara Cascudo, em 2008, foi determinante. O autor


começou a fazer parte da minha vida em uma disciplina curricular do curso de Artes da UFJF,
intitulada Folclore Brasileiro, ministrada pelo professor Gilberto Felisberto Vasconcellos.
Fomos a turma derradeira da disciplina, que se extinguiu no fim do mesmo ano. Vasconcellos
foi e continua sendo um dos grandes intelectuais, admiradores e entusiastas de Câmara
Cascudo. Sua fala sobre o autor me trouxe com graça e vigor o universo cascudiano. A paixão
pelo folclore e pela compreensão da potência de sua relevância no entendimento das coisas e
do mundo determinou o que hoje tomou forma de dissertação.
Cascudo foi referência em todos os meus trabalhos acadêmicos durante a graduação
em Artes e, posteriormente, na especialização, na qual estudei religiosidades e religiões
afro-brasileiras, porta de entrada no campo da Ciência da Religião. Um dos grandes motivos
pelo meu fascínio por Cascudo foi justamente a possibilidade de enquadrá-lo, sem grande
dificuldade, em todas as esferas do conhecimento. Mais que questões acadêmicas, ele sempre
me acompanhou, com muita pertinência, nas vivências mais banais e insignificantes do
cotidiano. O tempo, a vela, o copo, a tesoura, o medo, a roupa, o chapéu, os dedos, o quiabo, a
mandioca, o grito, o canto, o conto... . Tudo começou a ser acompanhado por algo que
Cascudo disse, alertou, analisou. Posso afirmar que o autor foi responsável por ressignificar
muito da minha visão e do meu comportamento perante o mundo.
Ingressei no mestrado em Ciência da Religião da UFJF inicialmente com um projeto
confuso, no qual a umbanda era o objeto e o folclore, a metodologia. Com o início do curso e
a reformulação do projeto, meu orientador e eu chegamos à conclusão de que o autor
certamente era o foco, mas que seu entorno ainda não estava bem delimitado. Isso foi
modificado com a leitura de Religião no Povo, de 1974, e o capítulo “Para o estudo da
superstição”, inserido em Tradição, ciência do povo, de 1971, ambos de Luís da Câmara
Cascudo, que me auxiliaram a delinear esta dissertação, cujo foco é a compreensão da
superstição como elemento unificador da religiosidade popular nos estudos do autor.
Para dar início à pesquisa, foi utilizada a bibliografia de Câmara Cascudo, em parte de
sua obra, onde encontramos de maneira mais explícita o aspecto religioso e supersticioso.
Embora seja difícil separar categoricamente os escritos do autor, foram selecionados alguns
títulos nos quais a religião se encontra ligada a outras dimensões da tradição, como Religião
no Povo (1974), Tradição, ciência do povo (1971), Anúbis e outros ensaios (1951) e Dante
10

Alighieri e a tradição popular no Brasil (1963); além de estudos complementares presentes


em Dicionário do Folclore Brasileiro (2001), História dos nossos gestos (2003) e Locuções
tradicionais do Brasil (2004).
Importante destacar, contudo, o livro Religião no Povo como mola propulsora de todo
o presente trabalho. Nele, Câmara Cascudo apresenta uma perspectiva ampliada do fenômeno
religioso no Brasil, oferecendo uma visão da conexão entre crenças e ritos arcaicos e
populares que perpetuam no presente, derivados de uma memória de tempos remotos. A partir
da análise desses fenômenos, elabora a teologia popular, evidenciando a unidade lógica de
conceitos éticos e morais encontrados na crendice popular por todo o país.
Desse modo, o objetivo desta pesquisa é compreender o processo pelo qual Cascudo
entendeu a teologia popular, fundamentada no seu conceito de superstição, que, para ele, é a
unidade da mentalidade religiosa brasileira. Não se trata de analisar diferentes religiões
populares pontuando suas especificidades, mas compreender a unidade formadora da
mentalidade religiosa presente em todo o país. Portanto, o trabalho com a obra de Câmara
Cascudo será feito sem a intenção de desenvolver discursos avaliativos: procura-se refletir
como o autor, de modo peculiar, estabeleceu uma ligação entre superstição e teologia a partir
da religião no povo.
Apesar da diversidade de temas abordados pelo autor, a religiosidade aparece como
traço marcante, perpassando as diversas dimensões da vida dos brasileiros. Ainda assim,
poucos estudos abordam especificamente tal questão. Segundo Maristela Oliveira de Andrade,
as tentativas de reconstrução da história cultural brasileira a partir da religião são ainda
escassas e carecem de “estudos mais sistemáticos com propósito de interpretar a formação
deste traço marcante da cultura brasileira que se reflete na mentalidade e na conduta religiosa
da população (...)” (ANDRADE, 2009, p. 107-108).
A análise do que Cascudo chama de unidade da mentalidade religiosa brasileira
fornecerá uma melhor compreensão de aspectos fundamentais da formação da cultura no
Brasil. A temática, assim como o estudo do folclore, campo pelo qual tem maior
reconhecimento, ainda que criticado e, por vezes, rejeitado no meio acadêmico, não devem ser
ignoradas pela Ciência da Religião, já que são capazes de fornecer perspectivas amplas
principalmente no que tange a religiões e religiosidades populares.
Gilberto Vasconcellos (2009, p. 14) destaca também que “o folclore é um
imprescindível instrumento gnosiológico acerca da totalidade sociocultural”, sendo capaz de
contribuir de maneira substantiva para os estudos da religião. É inegável a importância do viés
da cultura brasileira desenvolvido por Câmara Cascudo, sobretudo no que ele chama de
11

religião no povo. O estudo de sua obra representa uma contribuição ao estudo da religião e de
como essa pode ser percebida na realidade brasileira.
O texto de nossa pesquisa está dividido em três capítulos. O primeiro deles será
delimitado por considerações biográficas do autor, citando suas diversas facetas ao longo da
vida, como o Cascudo folclorista, historiador, político, modernista e memorialista.
Ressalta-se, contudo, a impossibilidade de se isolar quaisquer desses lados, na tentativa de
compreender o autor em sua totalidade, ou ao que foi possível detectar, tendo em vista a sua
complexidade. De maneira ampla, serão retomadas algumas questões a respeito dos estudos
sobre a cultura popular no Brasil, compreendendo a noção de Cascudo acerca do tema, bem
como da questão da religiosidade.
No segundo capítulo partir-se-á para a análise de fatos históricos dos primeiros séculos
a partir da colonização portuguesa no Brasil e a consequente implantação do modelo da
cristandade pela Igreja Católica. A dinâmica criada por tal modelo, bem como as condições
sob as quais a sociedade brasileira se desenvolveu, são fatores determinantes para a
compreensão do que Cascudo posteriormente elabora acerca da religiosidade popular. Para
tal, são utilizados diversos autores que abordam os primeiros séculos desde a colonização,
como Riolando Azzi, Eduardo Hoornaert e Gilberto Freyre, sendo esses os mais recorrentes
neste trabalho. Além dos aspectos históricos provenientes da implantação do modelo da
cristandade, serão estudadas as peculiaridades das etnias que se desenvolveram no Brasil e o
consequente entrosamento entre elas.
A partir do panorama exposto no segundo capítulo, será realizada, no capítulo terceiro,
uma análise do livro Religião no Povo, expondo a lógica da superstição inserida em
Tradição, Ciência do Povo, compreendida por Cascudo como fator unificador da
religiosidade brasileira. A título de comparação, tomar-se-á como base algumas considerações
do filósofo Baruch de Espinosa acerca da superstição, com o objetivo de tornar mais claros
alguns aspectos do conceito proposto por Câmara Cascudo. Ademais, ressalta-se a
possibilidade da permanência dessa lógica até os dias atuais que se mantem por processos de
readaptação.
A importância da pesquisa detém-se, portanto, na compreensão de uma determinada
dinâmica da religiosidade brasileira, detectada pelo estudioso norte-rio-grandense como
perene e contínua. Tal compreensão esclarece determinadas condutas referentes à
religiosidade do povo brasileiro, que se mantêm. Compreender a dinâmica da religiosidade
popular é, assim, compreender questões da própria nacionalidade brasileira. Mesmo que
12

receba influências de diversas fontes, nota-se a permanência e a autonomia de uma conduta


característica, sendo ela responsável por dar uma coloração específica ao povo brasileiro.
13

2 ASPECTOS BIOGRÁFICOS E CONSIDERAÇÕES SOBRE A CULTURA


POPULAR NO BRASIL

2.1 CASCUDO DO RIO GRANDE, DO NORTE

Primeiro os preparativos: acenda o fumo, deixe a conversa tomar rumo. A rede


esticada, presa em duas palmeiras. O céu noturno cheio de estrelas.
Ajude-me meu São Cascudo
que tem coisas nesse mundo
que só existem nas memórias
do povo mágico das histórias.
Quero uma lição de geografia
que um índio velho contaria
para uma criança portuguesa
se fartando com a sobremesa
de pé de moleque e brigadeiro
junto com um peão de boiadeiro.
São Cascudo, me diga o que é
que vem de noite num só pé,
e como me livro dessa assombração,
meu Santo Padroeiro da Tradição.
Agora vou me deitar na rede,
pois eu sei que o Santo entende,
que amanhã é dia de festança
vai ter música, aguardente e dança
pro meu coração enamorado.
Valei-me meu São Cascudo!1

Homenageado pelo Instituto Cultural Aletria, Cascudo, que não foi santo, nem
milagreiro, foi agraciado com a oração em epígrafe e nomeado Santo Padroeiro da Tradição.
A instituição que também funciona como editora, atualmente com sede em Belo Horizonte, é
responsável por diversos projetos culturais voltados para literatura infanto-juvenil, formação
de professores, contadores de história, e mediadores da leitura de maneira geral.
Traçar uma biografia satisfatória de Luís da Câmara Cascudo, sem que algo escape, é,
sem dúvida, tarefa complexa. Diversos autores como Américo de Oliveira Costa, Zila
Mamede, Carlos Lyra, Diógenes da Cunha Lima e Djalma Maranhão se encarregaram de
percorrer esse extenso caminho biográfico de um homem que viveu 87 anos, produzindo até o
ano de sua morte.
Nem mesmo o próprio Cascudo tinha noção do quanto escrevera. Em classificação
recente, a partir do acervo de Carlos Lyra, amigo e responsável por um importante material

1
Oração em homenagem a Luís da Câmara Cascudo feita pelo Instituto Aletria.
14

fotográfico do autor, foram constatados, dentre livros e plaquetes (livretos), 192 publicações.
Não apenas a quantidade de títulos, mas a extraordinária diversidade temática do autor nos
insere em um universo multifacetado, que perpassa diversas áreas do conhecimento. É, pois,
necessário delimitar com muita cautela o espaço que se intenciona explorar, uma vez que,
com uma obra tão extensa e de um homem tão diverso, corremos o risco de nos perder em
análises desconexas e confusas. “A obra cascudiana não é uma ilha; é um arquipélago, pela
multiplicidade e pela variedade dos territórios que a integram” (COSTA, 1969, p. 7).
Luís da Câmara Cascudo nasceu em Natal no dia 30 de dezembro de 1898, em uma
sexta-feira, no dia de São Sabino. Foi batizado como Ludovicus, mas registrado com o nome
pelo qual é conhecido, em função do tio paterno Manoel, conhecido como o “velho Cascudo”
devido à intensa devoção ao partido conservador. Sua filha, e grande pesquisadora de sua
obra, escreve sobre o nome, retomando a descrição do pai:

Cascudo não é o besouro, o coleóptero, nem muito menos o gestual de castigo. É um


peixe de loca, acari, Precostomusloricariae. Cascudo é peixe, padrinho do rio
Carioca, vindo do Acari-Oca, paradeiro dos Acaris. Luís da Câmara Cascudo,
estudioso da heráldica, incluiu o peixe no seu ex-libris, acrescido da máxima latina:
Dum SpiroSpero, que significa: enquanto respiro, espero. Dizia Jorge Amado que
era a afirmação da esperança (CASCUDO, s/d).

Sob a égide da superstição, Cascudo nasce e toma seu primeiro banho em uma bacia
de ágata com água morna, temperada com vinho do porto e acrescida de um patacão de prata
do Império. Isso lhe garantiria fortuna e saúde ao longo da vida. “Quem usa da superstição,
confia na sua suficiência” (CASCUDO, 1971, p. 166). Apesar da crença na eficiência, o autor
cresceu repleto de enfermidades que foram tratadas com as mais diversas crendices populares:

Como fui filho único, doente e triste, amamentou-me o leite de todas as crendices
populares. Rezas-fortes, banhos-de-cheiro, mezinhas serenadas, cascas de tronco do
lado-que-o-sol-nasce; velhas praieiras esconjurando, como na Caldéia, os demônios
das febres incontáveis; negros, altos e magros como coqueiros solitários, defumando
meu leito, o aposento, meus brinquedos imóveis, o cavalo de pau do talo de
carnaúba, o navio de papelão, a coruja retangular de papel de sêda: rezador vindo da
Serra da Raiz, dos brejos, areias de Maracajaú, pés-de-morros, pondo rosários no
meu pescoço, indulgenciados por aqueles teólogos sem Papa e sem Concílio. Meu
pai consultava o Doutor Joaquim Murtinho por telegrama (um assunto para a
cidade), e minha ama Bemvenuta de Araújo, Utinha, trazia uma mulata gorda e
lenta, que tinha morado no Pará, cantando baixinho de joelhos, para espantar o mau-
olhado. Padeci todas as enfermidades folclóricas, espinhela caída, cobreiro, entalo,
dormir com os olhos abertos, como os coelhos, mijo de maritaca, dentada de
caranguejeira, frieira por ter pisado em cururu, verruga por apontar estrelas.
(CASCUDO, 1971, p. 147).
15

Seus relatos e depoimentos resgatam personagens e cenários sem economia de


lirismos, transportando seus leitores para o universo provinciano potiguar do início do século
XX. O tempo e Eu (1968), Histórias que o tempo leva (1924), A voz de Nessus (1966) e
Folclore do Brasil (1967) são algumas das obras que contêm relatos dos seus primeiros anos
de vida e de outras fases da infância e adolescência.
Confinado por conta das enfermidades, o ócio lhe foi imposto na infância:
“Proibiram-me movimentação na lúdica infantil. Não corria. Não saltava. Não brigava”.
(CASCUDO, 1968, p. 46). A necessidade do sedentarismo tornou Cascudo um leitor precoce,
lendo tudo o que encontrava desde muito menino. Em 1914, ingressou no Ateneu Norte Rio
Grandense, onde teve seu primeiro contato com as Humanidades. Começou a escrever no
jornal de seu pai, A imprensa, em 1915, e, em 1918, iniciou o curso de medicina em Salvador,
mas o abandonou no quarto ano por falta de vocação. Retornou a Natal, onde lecionou em
colégios e cursos particulares e, finalmente, a Recife, onde concluiu o curso de Direito em
1928, formando-se em Ciências Jurídicas e Sociais.
Novamente em Natal, voltou a dar aulas, dessa vez no Ateneu e em outros colégios,
além de em diversas universidades nas áreas de sociologia, etnologia, história, direito e
filosofia. Era reconhecidamente um professor diferenciado e, como relata seu amigo e aluno
Diógenes da Cunha, “quem foi seu aluno sofre de uma eterna orfandade, uma lacuna jamais
preenchida” (CUNHA apud CASCUDO, s/d).
O conjunto de pesquisas do autor ocupa unanimemente um espaço nos estudos
referentes ao Brasil. Mesmo livros que tratam de temas, à primeira vista, distantes do nosso
espaço geográfico, incluem no seu cerne análises profundas que transportam seus leitores de
volta à Ilha de Vera Cruz. As corriqueiras analogias e aproximações de fatos distantes, sejam
pelo espaço ou tempo, geram uma conexão de ideias capazes de fornecer uma visão
universalista de todas as coisas. Seu ponto de partida é, sobretudo, a curiosidade pelo que
chamamos de Brasil. Foi movido por essa paixão às “coisas nacionais” que Cascudo nunca
saiu da sua terra Natal.

Nunca pensei em deixar minha terra. Queria saber a história de todas as cousas do
campo e da cidade. Convivências dos humildes, sábios, analfabetos, sabedores dos
segredos do Mar das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios.
Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado. Pesquisas.
Indagações. Confidências que hoje não têm preço (CASCUDO, 1969, s/p).

Mesmo as honrarias institucionais, por exigirem presença física, não o seduziam a


ponto de sair da sua chamada “Pasárgada, onde é amigo do Rei, mas também de vaqueiros,
16

pescadores, cantadores, macumbeiros, pretas velhas, seresteiros, contadores de estórias


antigas, gente humilde da praia, do brejo ou do sertão” (COSTA, 1969, p. 15). As viagens ao
exterior com objetivos bem delineados tinham tempo definido. As elaborações do observava e
anotava eram produzidas em sua colmeia provinciana: “À semelhança de Descartes, ama
Cascudo viver ´dans sa poële´; ao influxo e na proteção do chão amorável de suas raízes
(Ibidem).
O Dicionário de Folclore Brasileiro, com primeira edição de 1954, é uma das
principais referências de estudos da cultura brasileira. Cinquenta anos foram necessários a
Cascudo para que recolhesse centena de verbetes referentes ao folclore em todo o território
nacional. É, por muitos, considerada a principal obra do autor: “Este Dicionário é, na
bibliografia cascudiana, a sua Suma, no sentido tomístico, escolástico, do termo. O Livro”.
(COSTA, 1969, p. 109).
Não apenas um dicionário de folclore, mas de etnografia, o que lhe confere maior
amplitude e importância. Importante notar que a viabilização dessa obra evidencia a
existência de uma linguagem do povo brasileiro estruturada no folclore, o que reforça sua
relevância. Em país algum existe obra semelhante. Sobre o dicionário, Carlos Drummond de
Andrade escreve:

— Já consultou o Cascudo? O Cascudo é quem sabe. Me traga aqui o Cascudo.


O Cascudo aparece, e decide a parada. Todos o respeitam e vão por êle. Não é
pròpriamente uma pessoa, ou antes, é uma pessoa em dois grossos volumes, em
forma de dicionário que convém ter sempre à mão, para quando surgir uma dúvida
sôbre costumes, festas, artes do nosso povo. Êle diz tintim-por-tintim a alma do
Brasil em suas heranças mágicas, suas manifestações rituais, seu comportamento em
face do mistério e da realidade comezinha. Em vez de falar Dicionário Brasileiro
poupa-se tempo falando “o Cascudo”, seu autor, mas o autor não é só dicionário, é
muito mais, e sua bibliografia de estudos folclóricos e históricos marca uma bela
vida de trabalho inserido na preocupação de “viver” o Brasil (ANDRADE, 1968,
s/p).

Apesar da diversidade temática, todas as narrativas do autor, independente da área a


qual se destinam, são permeadas por elementos que remetem à cultura popular. A
simplicidade da oralidade mescla-se à erudição de uma maneira peculiar. Evidencia-se a todo
momento sua erudição e seu conhecimento dos clássicos, o que pode ser detectado, por
exemplo, em Prelúdio e Fuga do Real, livro em que o autor, de maneira descontraída,
dialoga com grandes autores mundiais (Erasmo de Roterdam, Montaigne e Maquiavel),
figuras bíblicas (Maria Madalena, Caim e Judas Iscariotes) e seres mitológicos (centauro
Bianor, Pan e Rei Midas), dentre outros, somando 35 personalidades. Há nele um resumo
alegórico do cânone letrado com a cultura popular, o que é uma síntese do próprio Cascudo.
17

Alimentação, gestos, vestimentas, superstições, jeito de andar, de dormir, de comer, de


morrer. Sobre tudo escreveu e, como pesquisador nato, considerava legítima toda e qualquer
pesquisa: “Mesmo a sociologia dos grilos e o dinamismo caudal das lagartixas merecem
registos transcendentes” (CASCUDO, 1974, p. 15). Com esse ímpeto, Cascudo deixou um
vasto material de análise e interpretação da realidade do Brasil, vista por múltiplos ângulos
com criatividade, simplicidade, erudição e dinamismo.
O autor morreu aos 87 anos, vítima de parada cardíaca, em sua cidade ambiguamente
Natal. A casa onde passou toda sua vida com a esposa Dáhlia, falecida em 1997, ficou sob os
cuidados de sua filha Anna Maria Cascudo, que morreu em 2015. Aberta à visitação ao
público a partir de 2010, tornou-se o Ludovicus - Instituto Câmara Cascudo, que tem como
objetivo preservar, divulgar e gerir o patrimônio cultural de Cascudo2.

2.2 AS ESCAMAS DE CASCUDO

O reconhecimento de Câmara Cascudo é muitas vezes mitigado ao campo do folclore.


No entanto, como já discutido, o autor percorreu diversas áreas do saber, como etnografia,
estudos literários, história, geografia etc. Reconhecidamente um dos mais importantes
estudiosos da cultura popular no século XX, foi capaz de traçar dimensões sociais do homem
comum brasileiro a partir de observações do cotidiano. Qualquer fato, por mais banal e
corriqueiro, é tomado por Cascudo como objeto e agraciado com análises minuciosas.
“Folclorista, historiador, crítico literário, biógrafo, romancista, jornalista, antropólogo, poeta,
musicólogo, orador, etnógrafo, professor, humanista e poliglota (...)” (CASCUDO, 1998, p.
36), nos próximos tópicos serão abordadas brevemente as múltiplas escamas de Cascudo.

2
O instituto abriga um acervo museológico com dez coleções classificadas como etnografia africana, etnografia
indígena, arte sacra católica, arte popular brasileira, arte popular estrangeira, iconografia/pinacoteca, mobiliário,
alfaias, objetos pessoais, além do acervo bibliográfico, composto por um arquivo documental (cerca de 15.000
correspondências, fotografias, discos, jornais, partituras, literatura de cordel, documentos históricos...) e sua
biblioteca pessoal, que abriga, aproximadamente, 10.000 livros.
18

2.2.1 Escama da história

Em Natal, é comum a identificação de Luís da Câmara Cascudo como historiador. Em


1928, foi nomeado pelo governador Juvenal Lamartine como professor interino de história do
antigo Ateneu Norte Rio Grandense e, oficialmente, inicia-se no magistério, que o acompanha
por toda a sua vida. Professor de história e historiador, foi sócio-correspondente desde 1934
do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, com maior atuação no Instituto Histórico
Geográfico do Rio Grande do Norte.
Américo Oliveira da Costa, no capítulo “O professor de História e o Historiador”,
inserido na biografia Viagem ao Universo de Câmara Cascudo (1969), enumera os títulos
de Cascudo no campo da história, dentre eles ensaios, tratados e biografias que ultrapassam os
limites do Rio Grande do Norte: “López do Paraguai” (Natal, 1927); “A intencionalidade no
descobrimento do Brasil” (1933) e “O mais antigo marco de posse”(1940) incluídos no
volume Introdução de História e Etnografia (Recife, 1940); O conde d´Eu (1933); O
marquês de Olinda e seu tempo (1938); O Doutor Barata (1938); Governo do Rio
Grande do Norte (1939); História da cidade de Natal (1947); Os holandeses no Rio
Grande do Norte (1951); História do Rio Grande do Norte (1955); e História da
República no Rio Grande do Norte (1965).
O relato de Costa revela, com grande entusiasmo, uma maneira peculiar da
metodologia de Cascudo como professor de história.

Nada de compartimentos estanques, de zonas surdas, entre professor e estudantes.


Aquela “narrativa metódica dos fatos do passado” cedia a vez à “utilidade” dos
juízos de Salústio e à “inteligência do passado”, do conceito Bainville, pela busca
interpretativa dos fenômenos, suas origens, incidências e efeitos, inclusive nos dias e
nas situações do presente. Os fatos e circunstâncias antigos se viam, quantas vêzes,
esclarecidos pela comparação e projeção dos fatos novos, em desdobramentos e
prolongamentos imprevistos (COSTA, 1969, p. 26-27).

O fascínio pelo conhecimento é refletido em cada depoimento encontrado nos seus


escritos. A curiosidade pelas “pequenas coisas” o leva a análises profundas de temas curiosos
e pouco convencionais. Em episódio narrado em A voz de Nessus, conta por exemplo, que
“um colega de magistério pediu minha demissão ao governador Juvenal Lamartine, porque
era indignidade um professor do Ateneu Norte Rio Grandense andar indagando Lobisomem e
estudar Catimbó, enrolado com os ‘mestres’ e os juremais miríficos” (CASCUDO, 1971, p.
149).
19

A abordagem histórica é, sem dúvida, ferramenta metodológica e chave de


interpretação de toda sua obra.

2.2.2 Escama da memória

A centralidade do gênero memorialista pode ser constatada desde seu primeiro livro
publicado: Alma Patrícia (1921). Posteriormente, quatro volumes de memórias explícitas
foram escritos entre 1968 e 1972, dos 70 aos 74 anos: O tempo e eu – Memórias, Pequeno
manual de um doente aprendiz, Na ronda do tempo e Ontem – Memórias. Contudo,
importa destacar que a memória foi para Cascudo método e ferramenta fundamental na
construção de qualquer análise. As lembranças, capazes de mesclar fatos com o imaginário
individual e coletivo, foram acervos legítimos na construção do seu pensamento.
Apesar da intensa subjetividade no ato de recordar, o estudioso Gilberto Vasconcellos
(2009), em A questão do folclore no Brasil, atenta para o grau da objetividade utilizada pelo
autor em suas investigações. A posição subjetiva daquilo que é recordado pelo pesquisador (a
vivência e a memória foram o cerne de sua metodologia) não afeta em nada o grau de
objetividade atingido pela investigação científica da cultura popular, inclusive por saber
manejar tão bem os métodos do difusionismo, do paralelismo e do funcionalismo na
antropologia, ciente de que não existe civilização original e isenta de interdependência.
A utilização da memória, da história, a constante volta ao passado como método de
pesquisa e a nostalgia melancólica do autor mediante a perda das tradições aproximam
Cascudo dos autores do Romantismo. Não que se possa enquadrá-lo no movimento, mas é
possível identificar temas e conceitos desse período literário, que se desdobram na
compreensão individual e coletiva da experiência espaço-temporal no mundo, principalmente
em textos escritos na década de 1910. Experiência no sentido da interação do homem e dos
demais seres com o ambiente no qual vivem. O tempo e o espaço são concebidos como
componentes de uma mesma interação difusa, mútua, e não antropocêntrica.
Um bom exemplo que se enquadra nessa análise encontra-se no artigo “Filosofia das
ruínas”, publicado em 1918, no jornal A imprensa, do Rio Grande do Norte. O tema gira em
torno da ideia de “ruína”, central em diversos autores românticos.
20

As ruínas têm a sua filosofia. Possuem sua estética, sua arte e seus conceitos.
Proclamam as efemeridades das glórias terrenas, bradam a recordação das glórias
passadas, choram silenciosamente o seu desalento, trazem na sua desolação, o fausto
de antanho e celebram no rito misterioso das sombras, a missa negra da saudade.
Atributos indispensáveis dos quadros melancólicos, traços de amarguras indefinidas
do lusco-fusco dos poemas em fogo, no verde escuro das paisagens polidas, há
sempre lembrando a morte, as ruínas cinzentas dos velhos burgos (CASCUDO,
1918, s/p).

Há na obra cascudiana sempre uma saudade e uma melancolia frente à perda das
tradições, embora essas nunca findem, de acordo com sua concepção. O passado ocupa um
lugar privilegiado em relação ao presente e certamente ao futuro.

2.2.3 Escama modernista e o arpão integralista

Tanto o Romantismo como o Modernismo foram fundamentais na busca pela


identidade nacional brasileira. A partir do discurso literário, esses se mostram essenciais para
o despertar da consciência nacional. Há um diálogo contundente de Cascudo com os dois
períodos literários. Ele foi figura importante do modernismo brasileiro, responsável pela
divulgação do movimento no Rio Grande do Norte, principalmente pelo seu contato com
Manuel Bandeira, Mário de Andrade e outros autores de destaque desse período. Em 1922, se
envolveu no amplo movimento de questionamento da realidade brasileira.
A revalorização das tradições regionalistas a partir de 1924, com o movimento do pau-
brasil e da antropofagia, levaram Mário de Andrade a estreitar laços com Cascudo, que já se
encontrava submerso no universo regionalista. Uma série de correspondências escritas entre
1924-1944 foram publicadas em 1991 pela editora Villa Rica. Cascudo aderiu ao modernismo
sem que houvesse qualquer tipo de ruptura com o regionalismo, divergindo nesse ponto de
Gilberto Freyre, uma vez que não há no Rio Grande do Norte, como houve em Pernambuco, a
polarização entre o regionalismo e o modernismo. Cascudo foi capaz de transitar entre esses
dois universos.
A partir da década de 1930, período de intenso engajamento político, religioso e
social, não apenas no Brasil, mas na Europa e nos Estados Unidos, Cascudo embarca nas
discussões que se formavam. No entanto, suas motivações intelectuais não partiam do debate
com o culturalismo, como em Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado
Júnior, ou mesmo com o marxismo. Vê-se no estudioso um posicionamento profundamente
21

nacionalista, que resulta em um envolvimento com a vertente mais conservadora do


modernismo.
Cabe destacar que ele aderiu ao integralismo de Plínio Salgado, evidenciando seu
interesse pelo estudo do folclore que, como nos modernistas de 1922, viam nesse campo um
caminho para a compreensão do Brasil. Tal relação é complexa, mas pode ser compreensível
se for reafirmado seu interesse pelas “coisas brasileiras”. Antônio Cândido (1989, p. 12)
ressalta que “o movimento, mais do que um fanatismo e uma forma de resistência reacionária,
foi um tipo de interesse fecundo pelas coisas brasileiras”.
O envolvimento com o modernismo não é, nem de longe, o motivo pelo qual se dedica
ao estudo do folclore e da cultura popular brasileira, mas foi o interesse pelo movimento que o
fez aderir ao integralismo, já que fazia parte do discurso integralista a importância dos
costumes e da tradição do Brasil.

2.2.4 Escama do folclore

O interesse de Cascudo pelo folclore é despertado, segundo o autor, desde suas


experiências da infância: “Menino, fui com minha mãe para o sertão [...] Não estudei a vida
sertaneja há mais de meio século, vivi-a integralmente. Todos os motivos de pesquisa foram
inicialmente formas de existência natural, assombrações, alimentos, festas, soluções
psicológicas” (CASCUDO, 1972, p. 6).
Antes mesmo da organização da Comissão Nacional de Folclore, criada em 1947 por
Renato Almeida, com o objetivo de reconhecer o folclore como saber científico, Cascudo já
havia fundado em Natal a Sociedade Brasileira do Folclore. O escritor Edson Carneiro, em
Dinâmica do folclore (1941), cita sua importância no que se refere ao campo de estudo.

Coube a Luís da Câmara Cascudo, que desde 1922 vinha pesquisando


sistematicamente a poesia, o conto e os costumes do Nordeste, criar a primeira
associação dedicada ao estudo das coisas populares. Em Natal, e tendo por lema
pedibustardus, tenaxcursu, surgiu a Sociedade Brasileira de Folclore (1941)
(CARNEIRO apud COSTA, 1969, p. 70).

Além do pioneirismo, a organização garantiu uma série de conquistas aos estudos do


folclore.
22

(...) distribuição de listas de endereços de folcloristas estrangeiros; fornecimento de


informações bibliográficas a entendidos de outros países; fundação da Federação de
Folguedos Tradicionais; telegrama-circular aos governadores pedindo isenção de
emolumentos e licenças e propondo “uma pequena subvenção animadora a todos os
grupos folclóricos locais; representação nos Congressos de Folclore de Oslo e de
Estocolmo; publicação de uma classificação do conto popular; campanha de
valorização das bonecas de pano; sugestão ao Governo Federal no sentido da criação
do Museu do Povo; proteção ao artesanato (CARNEIRO apud COSTA, 1969, p. 71).

A grande força, segundo o folclorista baiano, deve-se ao alcance internacional


promovido pela organização. Estudiosos de diversas partes do mundo se corresponderam com
Cascudo em Natal, acumulando um vasto material folclórico e etnográfico que seguiam, de
forma criteriosa, os rigores científicos.

Qualquer espécie animal ou vegetal citada... deverá ser acompanhada pela sua
classificação científica.... Mesmo não publicando a procedência da informação, é
aconselhável... anotar a data, local e nome do informador, guardando o original (...)
A virtude máxima do folclorista é a fidelidade. Não admitir a colaboração
espontânea, inconsciente e poderosa da própria imaginação ou material obtido
(CASCUDO apud COSTA, 1969, p. 72).

Sem dúvida, Cascudo ocupa um lugar de destaque nos estudos da etnografia e do


folclore. Seu reconhecimento na área deve-se, para além dos méritos metodológicos e de
reconhecimento, à paixão do autor pela riqueza do folclore e da cultura popular universal.
Universal porque tem-se universalmente uma cultura popular que apresenta, em cada canto,
suas particularidades. O folclore é o todo, e Cascudo vê o mundo sob suas lentes.
Fechamos essa escama destacando que o procedimento analítico do autor se estrutura a
partir do folclore, que, segundo ele, é capaz de espelhar a particularidade da civilização
brasileira.
Sua complexidade, devido às suas diversas facetas teóricas e temáticas, coloca este
estudo em uma situação delicada. A vivência informal e pessoal, da oralidade, momentânea
ou não, é indissociável da formalidade acadêmica, dos títulos conquistados, da página
impressa. Há de se conciliar, ou ao menos tentar compreender harmoniosamente, a vida e a
obra do autor. “O homem explica a obra. Era a concepção de Sainte-Beuve. O homem, isto é,
suas origens, ambientes, formação, relações, influências, condições de vida, temperamento,
caráter. Discutível, certamente, mas como todo conceito; mas, como todo conceito,
envolvendo sempre uma parte da verdade” (COSTA, 1969, p. 18).
23

2.3 CONSIDERAÇÕES SOBRE A CULTURA POPULAR NO BRASIL

O campo de estudos da cultura popular brasileira aparece sustentado por duas


concepções teóricas básicas, que evidenciam procedimentos metodológicos reveladores de um
pensamento conservador e, em menor número, de um posicionamento mais crítico na
interpretação dos dados.
O posicionamento de Cascudo quanto à pesquisa acerca da cultura popular no Brasil
se enquadra nos estudos considerados conservadores, que avaliam as manifestações populares
como sobrevivência do passado no presente, idealização romântica da tradição. “As orações
fortes, os hábitos sociais, as festas da tradição, as conversas, as superstições, tudo era o
Passado inarredável, completo, no presente” (CASCUDO apud ARANTES, 1981, p. 17).
Foi comum essa conduta entre os primeiros estudiosos da cultura popular,
principalmente dos folcloristas. Celso de Magalhães, e até mesmo Silvio Romero, partem
desse princípio mais conservador. O método de trabalho utilizado para pesquisas inseridas
nessa linha teórica era o de documentar o maior número possível de manifestações e suas
variantes, localizando-as geograficamente e comparando-as com as de outros lugares. A partir
disso, os estudiosos buscavam sua origem temporal e espacial, formulando hipóteses a
respeito da convergência ou difusão. Percebe-se, então, que o trabalho se dava em função da
origem, a partir do método comparativo.

Para que um hábito, conduta, técnica seja a mesma ou quase a mesma em territórios
distantes e sem indicação de contacto histórico, restam duas fórmulas doutrinárias
explicativas. Representam criações locais, independentes, frutos da imaginação e
esforços nativos; ou receberam o modelo, inspiração, traços, imagens de terra e
gente alheias. A primeira diz-se Paralelismo ou Convergência. A segunda Difusão.
É a distinção simples entre o CRIADO e o RECEBIDO. Um grande problema
embevecedor para os etnógrafos é estabelecer essa separação, fixando a geografia
originária dos motivos determinantes (CASCUDO, 1973, p. 427).

Muitos trabalhos que seguiam essa dinâmica resultaram em simples listagens de


objetos, práticas e ritos, selecionados segundo a tradição e seus critérios. O uso da tradição
como correlata da cultura popular resultou na visão de uma cultura passível de cristalização.
Dessa forma, todo processo posterior à origem deturparia o fato em si, e as consequentes
pesquisas viriam à tona por simples curiosidade. “Aquilo que se considera como tendo tido
vigência plena no passado só pode ser interpretado, no presente, como curiosidade”
(ARANTES, 1981, p. 18).
24

Contudo o método, já superado por perspectivas mais críticas em relação aos fatos,
marcou grande parte dos estudos da cultura popular não só no Brasil, mas em outras partes do
mundo. Embora sejam considerados obsoletos ou de menor importância no que diz respeito às
ciências em geral, é inegável a importância e a pertinência do legado deixado por esses
estudiosos, que hoje são essenciais para a construção de interpretações da realidade.
Não serão tratadas neste trabalho as divergências entre folclore e cultura popular,
mesmo porque Cascudo não expõe tal preocupação; ao contrário, funde os termos quando diz
que o folclore é “a cultura do popular tornada normativa pela tradição” (CASCUDO, 2002, p.
240).
Assim como a dimensão política do autor, a dimensão metodológica não pode ser
automaticamente enquadrada em vertentes dogmáticas de uma determinada tendência.
Nenhuma das facetas isoladas podem ser consideradas como “única via explicativa de um
fazer cheio de nuanças teóricas, empíricas e estéticas” (SILVA, 2003, p. XV).

2.3.1 As faces da cultura

Em Civilização e Cultura (1973), Cascudo afirma que no Brasil a concepção de


cultura não advém de nenhum país latino, mas dos norte-americanos etnólogos, antropólogos
e, principalmente, pedagogos, que, inicialmente, foram uma grande influência na América do
Sul. A noção americana de Culture originava-se na Kultur alemã.

Cultura é o conjunto de técnicas de produção, doutrinas e atos, transmissíveis pela


convivência e ensino, de geração em geração. Compreende-se que exista processo
lento ou rápido de modificações, supressões, mutilações parciais no terreno material
ou espiritual do coletivo sem que determine uma transformação anuladora das
permanências características (CASCUDO, 1973, p. 21).

A cultura é o acúmulo de material herdado de geração em geração, reunindo elementos


de outras culturas e reinventando e readaptando novos modos de vida, que se fixam à tradição,
entendida como “patrimônio de observações que se tornaram normas. Normas fixadas no
costume, interpretando a mentalidade popular” (CASCUDO, 1988, p. 9).
A cultura popular como “o saldo da sabedoria oral na memória coletiva” (CASCUDO,
1973, p. 426) encontra-se anteposta ao conhecimento transmitido pela ciência. Tanto a cultura
letrada ou erudita como a popular coexistem na mentalidade humana e se intercomunicam, já
25

que pertencem ao mesmo organismo. São diversas, mas não adversas. Ambas existem sobre o
mesmo princípio da “retenção memorial, atendem a experiência, têm bases universais e há um
instinto de conservação para manter o patrimônio sem modificações sensíveis, uma vez
assimilado” (CASCUDO, 1973, p. 426).
Embora a cultura letrada, influenciada pelas formas institucionais de transmissão, se
diferencie da cultura popular, mantida pela oralidade, Câmara Cascudo observa a
intercomunicação dessas culturas. Ainda que influenciadas uma pela outra, observa-se uma
maior absorção por parte da cultura popular que da cultura letrada, ou erudita, como
costumava dizer.

Compreende-se que uma influência teimosa e polimórfica exerça pressão diária na


cultura popular, desde que as comunicações modernas determinaram um incessante
contacto. Navios, aviões, rádios, permutam os produtos do mundo ao mundo. A
cultura popular fica sendo o último índice de resistência e de conservação do
nacional ante o universal que lhe é, entretanto, participante e perturbador
(CASCUDO, 1973, p. 436).

Para ele, a cultura erudita e a popular são complementares. Embora ainda tenha uma
visão dual da cultura, não partilhava do pensamento positivista, valorizando o saber
tradicional sem inferiorizá-lo comparado ao cientificismo. A diferenciação dos níveis não
deveria estabelecer relação de inferioridade, mas de “valorização local de cada complexo no
plano de sua utilidade relativa aos possuidores e não aos observadores estranhos, portadores e
defensores de outras culturas” (CASCUDO, 1973, p. 24). Desse modo, é inoportuno partir de
regras comparativas no intuito de legitimar uma cultura sobre a outra. Deve-se avaliar a
substância real, aquilo que importa de fato, a suficiência, resultantes da aceitação natural em
um determinado local.

A mais espantosa conquista do século XX (...) foi a valorização das culturas,


defendendo-as dos desníveis da apreciação unitária, mostrando que as mais
rudimentares e obscuras talvez fossem portadoras de soluções de muito maior
coerência funcional que as outras, de esplendor e notoriedade. Talvez ou bem
possivelmente, o selvagem vivesse mais tranquilo, acomodado e normal no seu
mundo, obtendo recursos de uma economia racional e compatível com as energias
aquisitivas e necessidades imediatas que o cidadão da imensa cidade, com a
estalante aparelhagem que a eletricidade lhe fornece para diminuir-lhe a colaboração
pessoal (CASCUDO, 1973, p. 23-24).

O domínio cultural não pertence às camadas eruditas da sociedade, que assimilam as


crenças tradicionais a partir de referentes contaminados por diferentes valores,
26

incorporando-as. De toda forma, nota-se sempre a presença dual da cultura, sendo uma delas a
oficial e a outra, informal.

Como no passado e, ao contrário da lição dos mestres, acredita-se na existência dual


da cultura entre todos os povos. Em qualquer um deles haverá uma cultura sagrada,
hierárquica, veneranda, reservada para a iniciação, e a outra popular, aberta à
transmissão oral e coletiva, estórias e acessos às técnicas habituais do grupo,
destinada à manutenção dos usos e costumes no plano do convívio diário
(CASCUDO, 2002, p. 241).

A noção de popular e povo em Câmara Cascudo não permanece inalterável durante


seu processo de escrita; porém, pode-se dizer que o que se mantém dessa camada,
diferenciando-a da cultura letrada, é a oralidade como meio de disseminação. É por meio da
fala e da audição que os conhecimentos da cultura popular são transmitidos, assimilados e
enraizados. Não que o papel e a letra estejam fora desse panteão – e a literatura de cordel é
um exemplo disso –, mas a oralidade é a via fundamental de condução dessa cultura. A
dinâmica de sua base estruturadora é decididamente a oralidade. A própria mobilidade da
língua, do famoso “quem conta um conto, aumenta um ponto”, garante à cultura popular uma
constante modificação, desvalidando sua possível cristalização.

Essa modificação realiza a mecânica assimiladora, dividindo e recriando, s vezes, o


que recebera compacto. Nunca um narrador africano aprovara a redação verbal com
que Frobenius repetia o conto recém-ouvido. Essa transformação vocabular
inconsciente na reexposição das estórias populares é uma forma de renovação
instintiva (CASCUDO, 1973, p. 436).

A oralidade como base estruturadora da cultura popular não pode ser desvinculada da
questão geográfica. A região deve ser considerada como “elemento primordial na morfologia
da cultura popular” (VASCONCELLOS, 2009, p. 46). As diferenciações regionais constituem
critério de análise para a compreensão do imaginário popular. A articulação entre região,
nação e mundo consiste, para Cascudo, mais do que questão existencial, uma razão
gnosiológica.
A busca pela unidade e identidade nacional a partir da mentalidade popular parte
necessariamente da compreensão do regional. É a partir da região, das necessidades locais,
que todo o resto se desenvolve. Embora dê ao regionalismo importância nevrálgica quanto ao
desenvolvimento cosmológico dos homens, Cascudo reconhece a existência de uma unidade
específica humana. “O homem é universal fisiologicamente, psicologicamente é regional”
(CASCUDO apud VASCONCELLOS, 2009, p. 49).
27

A compreensão da universalidade parte da compreensão regional do homem. Em


Geografia dos mitos brasileiros (2002), nota-se a articulação regional e a tradição na cultura
popular. Pela primeira vez, como aponta Gilberto Vasconcellos (2009, p. 51), “o conjunto do
país é compreendido pelo prisma étnico e simbólico, incluindo mais tarde as esferas da
alimentação, da feitiçaria, da religião, da música e da superstição”.

2.3.2 Formação étnica da cultura popular

Um dos pontos cruciais nos estudos de Câmara Cascudo foi a constatação da base
euro-ibérica como predominante na formação da cultura popular brasileira. Tal aspecto foi
analisado em Geografia dos mitos brasileiros, nos anos 1940, sem qualquer intenção de
confronto com os indianistas e africanistas.

Os mitos brasileiros vêm de três fontes essenciais: Portugal, Indígena e África. A


colocação é proposital e na ordem da influência (...) O elemento branco, colonial, foi
o responsável pela maioria dos mitos. Senão em volume mas em força modificadora,
em ação contínua. Nenhum mito se imunizou do prodigioso contato e todos trazem
vestígios, decisivos ou acidentais, sempre vivos, do “efeito” português (CASCUDO,
2002, p. 47-48).

Com os colonos portugueses, chegaram mitos de quase toda a Europa, “diversificados


e correntes no fabulário lusitano” (CASCUDO, 2002, p. 48). Para ele, mesmo na Amazônia
não são os mitos indígenas que prevalecem, como na Bahia não predominam os mitos afro-
brasileiros.

Depois dos livros de Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Manuel Quirino, Edson
Carneiro, a religião dos afro-brasileiros baianos está clareada e podemos calcular o
infinito de seu alcance na psicologia do mestiço. Mas o mito, na redução de seu
processo de presença e finalidade, deve, rara, fortuita, parcamente, ao negro, na
própria terra baiana (CASCUDO apud VASCONCELLOS, 2009, p. 56).

Não se pode afirmar pela condição dos negros como sujeitos explorados e
economicamente subalternos que a base da cultura popular, mesmo dessa região, seja negra.
“Na Bahia os mitos de maior divulgação pertencem aos europeus e indígenas. São o
Lobisomem, a mula-sem-cabeça, o Batalão, Batatão ou Boitatá, confundidas com os cultos
28

iorubas, o zumbi que é uma espécie de curupira ou feiticeiro” (CASCUDO apud


VASCONCELLOS, 2009, p. 57).
Chegamos, aqui, a um aspecto importante no pensamento de Cascudo: a influência do
europeu na formação da mentalidade popular brasileira. Partindo dessa premissa, o autor
desenvolve seus estudos, inclusive os que se referem à religiosidade popular no Brasil.

2.4 CASCUDO E A RELIGIOSIDADE POPULAR NO BRASIL

Em alguns livros específicos, Câmara Cascudo se dedicou a analisar a religiosidade


brasileira: Anúbis e outros ensaios (1951); Religião no povo (1971); Prelúdio e Fuga do
real (1974); Geografia dos mitos brasileiros (2002); Meleagro (1978); Superstição no
Brasil (2004); História dos nossos gestos (2003); Contos tradicionais do Brasil (2000) e
Cinco livros do povo (1953). Fica claro nesses estudos a preocupação do autor em mostrar a
riqueza da tradição cultural brasileira e as influências das diferentes fontes na construção do
ethos e da visão de mundo do homem comum brasileiro.
Extraindo diversas narrativas da memória oral popular, Cascudo frisa que para esses
sujeitos “interessava o espírito divino nas entidades grupais dentro da igreja ou fora dela. O
comportamento exprimindo a convicção íntima de uma ortodoxia hereditária” (CASCUDO,
1974, p. XV).
Sempre há na história a preocupação em buscar a origem de comportamentos,
costumes e superstições, acompanhando seu desenvolvimento ao longo do tempo e o modo
como aparecem no cotidiano popular. Além disso, deve-se pensar na sobrevivência da
tradição, enquanto cultura popular, na modernidade: “Esse corpo doutrinário é inalterável e
resiste aos sucessivos reajustamentos modernizantes” (CASCUDO, 1974, p. 6).
Não há possibilidade, de acordo com ele, de se extinguir a tradição ou as práticas
supersticiosas, analisadas mais detidamente nos capítulos seguintes. Elas não são eliminadas
com o cientificismo e o pensamento racional, mas sobrevivem por se ajustarem
psicologicamente aos elementos religiosos contemporâneos, sempre condicionados à
mentalidade popular. “Permanecem no automatismo mímico, frases afastadoras do mal, ou
renúncias denunciando os limites lícitos das devoções diluídas no tempo. É um reflexo
associado” (CASCUDO, 1971, p. 150).
29

É a partir da tradição que a religião popular se consolida no Brasil. Há um movimento


duplo: elementos adaptáveis à devoção tradicional são retirados dos cultos ortodoxos e
integrados ao imaginário popular, regido pela fé e pela certeza da imutabilidade dos fatos. Da
mesma forma, elementos heterodoxos são retirados do imaginário popular da fé e acolhidos
como ortodoxos. O “tudo sempre foi assim”, comumente ouvido e muito pouco contestado,
constitui razão básica, sem que haja julgamento das coisas sagradas.
A tradição cristã e católica, juntamente com as tradições de matrizes africanas e
indígenas, foram as responsáveis pela formação de uma visão própria do povo brasileiro. A
delimitação da ideia de povo de Cascudo pode ser assim sintetizada:

as criaturas complementares da cidade, as mais afeitas às tarefas sem interesse na


valorização publicitária, funcionalismo de pequena categoria, vendedores
ambulantes, carroceiros, Carregadores, engraxates, operários não especializados, no
fundo das oficinas, garagens, tipografias, as últimas empregadas domésticas, ainda
nascidas depois de 1920, enfim Povo, representam a legitimidade das crenças
tradicionais na circulação policolor deformante da cidade grande (CASCUDO,
1974, p. 24).

A ideia romântica soma-se à afirmação de que o povo é, ao mesmo tempo, uniforme e


heterodoxo em relação à sua fé. Uniforme por concordar de maneira geral nos mesmos
preceitos, e heterodoxo por não se enquadrar por completo na ortodoxia dogmática católica,
ocorrendo, portanto, uma adaptação modificadora.
Dessa forma, Cascudo aponta para uma mentalidade peculiar característica na vivência
religiosa do povo brasileiro. A amplitude da influência europeia constituiria sua base. Há, por
exemplo, comparações, em diversas passagens, do povo brasileiro com o português
quinhentista:

como esses portugueses entendiam e viviam a Fé, talqualmente sente e vive o


brasileiro do Povo, contemporâneo e viril. (...) exerce a notoriedade pecadora e o
jubiloso exercício dos vícios históricos. Não poderia improvisar uma casuística
protetora nem resguardar a contemporaneidade mental se não possuísse a pragmática
instintiva de uma lógica milenar, racional, coerente e movente em quartorze séculos
convictos (CASCUDO, 1974, p. 3).

Foram os portugueses, e não os indígenas e africanos, os responsáveis por formatar a


base da sustentação religiosa e moral dos novos brasileiros. O português aqui “ficou fiel ao
Deus que o batizara em Portugal e, como o distante avô romano, reservou um altar oculto para
a desconfiança crença nos divinos assombros das negras e cunhãs tenebrosas de tempestades e
rumores insólitos no escurão da noite equinocial” (CASCUDO, 1974, p. 3).
30

Mais que no sangue e na língua, a influência portuguesa constituiria uma “permanente


motora no mecanismo da mentalidade brasileira” (CASCUDO, 1985, p. 262). Mesmo práticas
comumente associadas aos indígenas e africanos, como é o caso do Catimbó, são percebidas
pelo autor, com um fio originário europeu; a magia e o feitiço são gregos. Por isso, o título
Meleagro, “nome pedante para justificar feitiço da Grécia em mão africana” (CASCUDO,
1978, p. 5), foi escolhido para sua pesquisa sobre o catimbó.
Há em Cascudo a construção de uma categoria básica de religião popular que
culminaria na elaboração do que chamou de teologia popular, entendida como “processo de
incorporações do Infinito às limitações do entendimento material, submetido aos órgãos
falíveis da percepção” (CASCUDO, 1974, p. 172). Deus, no caso da teologia popular “não
deve dar satisfação a ninguém” (Ibidem).
No capítulo seguinte serão retomados elementos históricos que influenciaram na
formação da religiosidade brasileira. Importa-nos a gênese da formação, estritamente
vinculada ao catolicismo português, e das condições nas quais essa religião se desenvolveu,
tornando-se responsável pelas peculiaridades geradas no modus vivendi do povo brasileiro.
Serão considerados alguns aspectos importantes do processo, como a obrigatoriedade do
catolicismo, a presença da inquisição na colônia, bem como a transplantação a partir das
missões do modelo da cristandade medieval portuguesa para o Brasil.
Também será estudada a importância da superstição e sua influência, a partir dos
diferentes grupos, na formação da religiosidade que aqui se fez e ainda se faz presente. “Há,
evidentemente, uma Ciência de Deus entre o Povo. Um critério uniforme na apreciação dos
acontecimentos grupais e atitudes isoladas rege uma inflexível classificação sentenciosa,
apoiada no consenso da comunidade (CASCUDO, 1974, p. 171).
31

3 AS MÚLTIPLAS INFLUÊNCIAS DA FORMAÇÃO DA RELIGIOSIDADE


BRASILEIRA

No intuito de compreender as condições pelas quais a religiosidade brasileira se forma,


alguns dados históricos da implantação do catolicismo português na colônia serão retomados,
considerando o modelo da cristandade e as características que moldaram a vivência da
população colonial. Para isso, partiremos de uma análise histórica, com destaque para os
primeiros séculos da colonização, compreendendo alguns processos elaborativos da teologia
católica no Brasil, fator determinante para a formação da religiosidade brasileira, assim como
a influência dos diversos povos que aqui se instauraram. Também será abordado o
pensamento medieval e as superstições dos diversos povos que se encontraram nessas terras
como parte integrante da religiosidade e fator de unidade cultural e religiosa para Câmara
Cascudo.

3.1 TEMPO DO REI VELHO3: O MODELO DA CRISTANDADE

Compreender a presença católica no Brasil é conhecer elementos importantes da


história do país. A chegada e ocupação dos portugueses no século XVI, já por motivos
religiosos, mas também políticos, trouxe uma realidade capaz de moldar e estruturar uma
“original nacionalidade dos trópicos. (...) A nação europeia que colonizou o Brasil – Portugal
– teve uma história em que as atividades da religião e da política junto ao povo fiel
comumente se mesclavam” (VIEIRA, 2016, p. 7, 9).
De um lado, tem-se uma nação predestinada por Deus a difundir a fé católica pelo
mundo; de outro, a sociedade luso-brasileira que se forma juntamente com os indígenas, já
instalados no território.
Ao longo dos séculos, a teologia católica, inspirada pelas Sagradas Escrituras,
acumulou um conjunto de princípios religiosos com o intuito de orientar as crenças e a vida
moral dos infiéis e fiéis. Além das Escrituras, sínodos e concílios, muitos autores
contribuíram para o acervo teórico teológico, que tinha como contrapartida a prática. “(...)
3
A locução tradicional, segundo Cascudo (2004, p. 204), é “referência à época em que presidiu no Brasil o
Príncipe Regente, depois D. João VI, de janeiro de 1808 a abril de 1821”. No presente contexto, entretanto, não
nos restringimos à época referida por Cascudo.
32

Toda essa produção teológica, ao ser gerada, sempre teve uma finalidade prática: prescrever
aos infiéis como deveriam pensar ou agir diante de determinadas situações e contingências
históricas” (AZZI, 2008, p. 7).
Devido à quantidade de produções, o acervo teológico produzido foi reunido e
organizado em muitos tratados. A Suma Teológica, elaborada por Tomás de Aquino no século
XIII, foi a primeira grande síntese da doutrina. No mesmo século também aconteceram, o
Concílio do Latrão IV, responsável pela divulgação dos mandamentos da Igreja, e o Concílio
de Trento no século XVI, considerada a assembleia episcopal mais importante em reação ao
movimento luterano, mas sem grande repercussão na metrópole:

apesar dos esforços de membros na Companhia de Jesus, o Concílio de Trento não


teve quase influência nos dois primeiros séculos de vida colonial luso-brasileira.
Apenas na primeira metade do século XVIII surgiu um novo impulso por promover
a doutrina tridentina, especialmente através das Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia, promulgadas em 1707 por D. Sebastião Monteiro da Vide;
alguns anos depois também o moralista baiano Nuno Marques Pereira tentou
difundir esses princípios em sua obra Compêndio Narrativo do Peregrino da
América, mas os resultados não foram muito expressivos (AZZI, 2004, p. 8).

A formação católica da sociedade brasileira permaneceu sendo influenciada pela


tradição teológica medieval, embasada pelo modelo da cristandade. Serão citados três
modelos posteriores, mas nossa análise se limitará apenas ao primeiro deles.
O primeiro modelo instaurado, que perdurou praticamente por todo o período colonial
e sobreviveu parcialmente durante o Império, foi o modelo da Igreja-Cristandade, que
consiste basicamente na oficialização da religião pelo Estado. Por ordem da Santa Sé, os
monarcas portugueses tinham a missão de implantar a fé católica nas terras colonizadas. Não
apenas as fronteiras, mas também a fé deveria se expandir.
O rei de Portugal tornava-se, com isso, chefe efetivo da nova Igreja que se estabelecia
na colônia. A primeira cruz erguida em Porto Seguro simbolizava não apenas a fé, mas a
conquista da terra. Era um marco religioso, mas também político. Sendo assim, “a religião era
com frequência instrumentalizada a serviço da coroa portuguesa” (AZZI, 1977, p. 42).
No fim do século XVIII, e mais marcadamente no início do século XIX, há uma
tentativa de implantação, por parte do clero, da Igreja-Nacional. Para além do reconhecimento
oficial do Estado, a Igreja assumiria características locais, distanciando-se da dependência da
Santa Sé. Embora alguns episódios tenham consolidado a tentativa, o caráter nacional não
alcançou unanimidade na concretização.
33

Em contrapartida, o modelo posterior implantado por bispos no Brasil foi o da Igreja


Sociedade Perfeita, vinculada a uma concepção da Igreja como societas perfecta, seguindo os
moldes tridentinos. Vigorou até fins da década de 1950. Outro novo modelo surgiu a partir
dos anos 60, influenciado pelo Concílio do Vaticano II: A Igreja Povo de Deus. Há, nesse
período, um confronto entre os defensores do modelo anterior, baseado na Igreja tridentina, e
os promotores da Igreja Renovada, fruto do último concílio.
Segundo Riolando Azzi, há períodos de presença não muito evangelizadora e também
processos de evangelização sem uma efetiva presença junto ao povo. A relação dos modelos
posteriores à cristandade com sociedade brasileira é assim explicada pelo autor:

na tentativa de implantar uma Igreja Nacional, os clérigos liberais se solidarizaram


com as aspirações do povo brasileiro, embora nem sempre sua presença tenha sido
nitidamente evangélica. Por sua vez, quando foi introduzido o modelo de Igreja
Sociedade Perfeita, os bispos reformadores insistiram na missão catequética da
Igreja, mas ao mesmo tempo procuraram afastar o clero de uma presença efetiva ao
lado do povo. Finalmente no novo modelo eclesial Igreja Povo de Deus, existem
ensaios de uma verdadeira presença evangelizadora no meio do povo (AZZI, 1977,
p. 40).

Importa-nos nessa citação a evidência de que existiu, por um longo período, uma
distância entre os agentes da Igreja e a população que se formava no Brasil, o que gerou
modos diversos na vivência da fé em relação à proposta dos clérigos desde a colônia.
A finalidade neste capítulo é, desse modo, compreender o contexto histórico no qual
foram produzidos temas teológicos importantes para a formação da sociedade brasileira,
especialmente nos três primeiros séculos de colonização, caracterizados pela implantação do
modelo da cristandade. Entendida como sistema de relações estabelecidas entre o poder da
Igreja e do Estado ou qualquer outra forma de poder político dentro de uma determinada
sociedade e cultura, é inaugurada a partir de Constantino e da chamada Pax Ecclesiae em 313
– acordo de paz feito pelo Imperador à Grande Igreja através do Edito de Milão que põe fim
às perseguições. Esse sistema se prolonga até praticamente a Revolução Francesa (1789).
A Pax Ecclesiae dá início à primeira modalidade de cristandade chamada
“constantiniana”. Como características destaca-se o cristianismo como uma religião de
Estado, portanto obrigatória aos súditos, e como religião de unanimidade, polivalente e
multifuncional, além da oficialidade do código religioso cristão, que deveria ser apropriado
mesmo que de forma diferente nos diversos grupos sociais.
Em certa medida, a cristandade medieval é a continuação da cristandade antiga do
Império Cristão dos séculos IV e V. A constituição de uma vasta rede paroquial e clerical
34

favoreceu e reforçou a situação de unanimidade e conformismo através de um consenso social


homogeneizador e normatizador. As instituições tendiam, de maneira geral, a apresentar um
caráter de sacralidade, oficialmente cristão.
A ideologia na cristandade medieval era eminentemente religiosa, com a intenção de
sacralizar o poder, as autoridades e a ordem vigente. Sobretudo a arbitrariedade das relações
senhoriais e servis só poderia ser justificada e naturalizada por essa sacralização. "As relações
sociais apareciam na consciência dos agentes sociais como ´naturais´ e necessárias,
naturalizadas, portanto. As práticas sociais delas decorrentes eram percebidas não como uma
imposição, mas como atos voluntários ou como deveres morais e religiosos” (GOMES, 2002,
p. 222).
A ordem natural não se distinguia da ordem social, ambas garantidas pela ordem
divina, sobrenatural. Sendo assim, “as relações sociais eram simultaneamente naturalizadas e
sobrenaturalizadas” (Ibidem). A compensação da situação terrena se realizaria na salvação
futura, evidenciando, com isso, a função integradora e de coesão social da religião.
Base de toda construção teológica no reino lusitano, a Igreja como cristandade foi
transplantada para o Brasil assim que os colonizadores por aqui chegaram, perdurando pelos
três primeiros séculos da colonização.
Em Portugal a concepção teológica da cristandade surgiu ancorada na concepção
divina da monarquia. “O monarca é o eleito de Deus; e por força dessa eleição gratuita seu
poder é humanamente incontestável. O poder real é assim considerado como um dom, como
graça divina. É ‘pela graça de Deus’ que o monarca ocupa sua posição de chefia política sobre
o povo” (AZZI, 2004, p. 16). Soma-se a isso a profunda influência das concepções
messiânicas pelas quais o país passou durante os séculos XVI e XVII, fruto de três fontes
convergentes: a tradição milenarista medieval, a forte influência do pensamento judaico e a
renovação do espírito messiânico entre os cristãos lusitanos.
Os portugueses entusiasmaram-se com os anúncios de judeus que previam a chegada
do messias no século XVI4 e logo surgiram previsões da vinda de um monarca responsável
por expandir o império cristão pelo mundo. As trovas, versos que profetizavam o futuro de
Portugal, anunciando a vinda do rei, tiveram grande repercussão em todo o reino luso.

4
“O português Isaac Abarbanel anunciou a vinda do messias em 1503, assim como David Rubeni, em 1536,
prevendo a proximidade da redenção do povo eleito” (AZZI, 2004, p. 20).
35

Este rei tem tal nobreza / Qual eu nunca vi em rei. / Este guarda bem a lei / Da
justiça e da grandeza / Senhoreia Sua Alteza, / Todos os portos e viagens, / Porque é
rei das passagens / Do mar, e suas riquezas. (...). Servirão um só Senhor / Jesus
Cristo que nomeio / Todos crerão que já veio / O ungido do Senhor (QUADROS
apud AZZI, 2004, p. 20).

Os temas eram compatíveis com a expansão portuguesa e a propagação da fé. D.


Sebastião, neto de D. João III, ao assumir o trono, foi considerado como o messias esperado.
O sebastianismo, como foi chamado o messianismo a partir de D. Sebastião, visava ao
estabelecimento da unidade da fé católica por todo o Império e por todo o mundo. Mesmo
depois da sua morte precoce e da Coroa de Espanha assumir o reino de Portugal, o
sebastianismo consistiu em força articuladora do espírito nacional.
No Brasil, essas ideias logo se propagaram, surgindo relatos como os do Padre
Antônio Viegas, acusado pelo Santo Ofício por sua fama sebastianista, e da Companhia de
Jesus, que também sofreu forte influência do sebastianismo. Nesse contexto, viveu, ainda,
Padre Antônio Vieira, que disseminou a ideia da grandeza do reino português.

Foi nesse clima de expectativa messiânica que viveu o Padre Antonio Vieira,
também ele grande divulgador dessas profecias. Uma das ideias fortes do teólogo
jesuíta era que Portugal estava predestinado a ser no mundo o Quinto Império, de
extensão universal, sucedendo assim os quatro grandes impérios do mundo antigo:
assírio, persa, grego e romano (AZZI, 2004, p. 22).

Antonio Vieira via na figura de D. João IV, sucessor de D. Sebastião que morreu
precocemente, a esperança da restauração da monarquia lusa, sob o domínio espanhol. O
então monarca era considerado como o prometido de Deus e herdeiro da missão de D.
Sebastião. “Assim como Cristo havia ressuscitado, também D. Sebastião voltara redivivo na
pessoa de D. João IV” (AZZI, 2004, p. 22).
Paralelamente à ideia divina que circundava a coroa portuguesa, afirmava-se o caráter
dos portugueses como o povo eleito, “o novo povo de Deus presente na história” (AZZI,
2004, p. 23). A tradição portuguesa retomou a concepção do velho testamento da filiação de
Deus e sua descendência: “assim como no antigo testamento Deus manifestara sua escolha
pelo povo judeu, a partir de fins da Idade Média o novo povo de Deus vinha a ser a nação
lusitana, designada agora como uma nova Cristandade” (AZZI, 2004, p. 24).
A noção de cristandade reflete, fundamentalmente, a vontade de edificar uma
sociedade cristã, “a realização de reino de Cristo, sobre a terra” (Ibidem). Os portugueses
como povo eleito por Deus tinham uma missão política e religiosa de expandir a fé. Por isso,
36

toda a sociedade luso-brasileira foi revestida de sacralidade e “todas as manifestações da vida


cotidiana apareciam envolvidas pelo manto da fé” (AZZI, 2004, p. 25).
É, então, sob o símbolo da cruz que a nova terra se desenvolve. O catolicismo
brasileiro se impõe nos primeiros séculos como religião não apenas oficial, mas obrigatória.
Eduardo Hoornaert, em Formação do Catolicismo Brasileiro 1550-1800 (1991), detecta a
inquisição portuguesa como fator importante para a consolidação dessa obrigatoriedade.
Não houve no Brasil, como nos demais países da América Latina, um tribunal do
Santo Ofício. Durante os primeiros dois séculos do primeiro pacto colonial, a inquisição era
um poder controlado por ninguém, coexistindo com os dois poderes repressivos tradicionais
da sociedade portuguesa: do papa, bispos e sacerdotes e do rei e seus funcionários. Entretanto,
a Inquisição teve um papel importante na formação da consciência católica brasileira,
“criando a impressão de que todos são católicos da mesma forma, obedecendo as mesmas
normas e lutando contra os mesmos inimigos” (HOONAERT, 1991, p. 14).
O autor aponta para o grande número de estudos que ignoram a atuação da inquisição
no Brasil, passando a ideia de certa tranquilidade na imposição da religião à sociedade que ora
se configurava. No entanto, segundo ele, o clima era de medo e repressão: não houve, em
nenhum momento, confraternização do catolicismo com as demais crenças. Africanos e
ameríndios reduzidos à escravidão apresentavam-se como católicos não por simpatia, mas
pela simples questão da sobrevivência e da aceitação na sociedade. “Ainda há muita
documentação em torno da inquisição a ser pesquisada, mas mesmo assim parece que não se
pode negar a sua influência marcante na formação do catolicismo brasileiro” (AZEVEDO
apud HOONAERT, 1991, p. 14).
A emigração dos chamados cristãos-novos para a América, Ásia e África em função
da organização da inquisição em Portugal, em 1536, foi uma forma de fugir dos rigores da
instituição. A América era considerada um bom refúgio para esses cristãos que chegavam
carregando medo e insegurança vividos sob o jugo da inquisição na Europa. Diversos judeus
ou judaizantes eram queimados vivos em praça pública nos chamados autos-da-fé em Lisboa,
Évora e Braga, onde o Santo Ofício se fazia presente.

(...) a inquisição nunca foi formalmente introduzida no Brasil, ainda que por volta de
1580, o tribunal de Lisboa tenha outorgado poderes análogos ao Bispo de Salvador,
e também os jesuítas foram autorizados a auxiliar os prelados diocesanos no preparo
do processo contra os hereges e a extraditar os acusados para ações inquisitórias em
Lisboa (VIEIRA, 2016, p. 35).
37

Nos primeiros séculos, a extensão do Santo Ofício no Brasil podia ser detectada nas
visitações de deputados que sondavam a vida do povo. A partir do século XVIII, se fizeram
presentes os familiares do Santo Ofício, que atuavam de maneira mais marcante, visando,
também, às riquezas do Brasil, deportando, por isso, centenas de brasileiros cristãos-novos
para o confisco de suas fortunas (HOORNAERT, 1991).
Como reação, os brasileiros criaram um novo tipo de catolicismo ostensivo, “praticado
sobretudo em lugares públicos, bem pronunciado e cheio de invocações ortodoxas a Deus,
Nossa Senhora, os santos” (HOORNAERT, 1991, p. 16). A preocupação com possíveis
suspeitas de heresia deu origem, assim, ao formalismo típico do catolicismo brasileiro.

J. Gonçalves Salvador relata como a expressão “Rogo à gloriosa Maria Senhora


Nossa Mãe de meu Senhor Jesus Cristo” no testamento de um cristão novo já era
suspeita. O certo era: “Rogo à gloriosa Virgem Maria Nossa Senhora e Mãe de
Deus”. Falando da Igreja a fórmula era: “A Santa Madre Igreja” (mais tarde:
“apostólica romana”, contra os protestantes); a fé: “A Santa Fé”; a missa: “O santo
sacrifício da Missa” (contra os protestantes). Todos se esforçaram a pronunciar de
maneira certa as expressões recomendadas, e finalmente acreditaram em tudo “o que
crê a Santa Madre Igreja”. Era o jeito (HOORNAERT, 1991, p. 16).

Por isso, houve certa facilidade na formação dos numerosos sincretismos dentro das
fórmulas católicas. A preservação dos cultos africanos sobreviveu, mesmo diante da
repressão, devido à astúcia do negro e do bom senso dos funcionários da colônia, que
alegavam como folclóricas as manifestações negras, como danças e músicas profanas. Assim,
sob o véu da pomposa invocação às entidades católicas, mantiveram em segredo sua adoração
aos orixás.
O catolicismo deveria estar firmemente estabelecido na vida pública da colônia. Em
função disso, eram comuns as numerosas irmandades e confrarias, como a “Santa Casa de
Misericórdia”, difundida pelas cidades coloniais desde os primeiros anos da colonização,
sendo elas responsáveis pelo serviço social nas comunidades.

Em Salvador, por exemplo, conforme pesquisou Carlos Ott, a “Santa Casa”


era hospital (o único antes de 1759), orfanato (a famosa “roda” para
“exposição” de crianças), recolhimento para moças casamenteiras, escola de
medicina, farmácia, mecenato de artistas, proprietária de prédios urbanos,
fazendas e engenhos, capela com serviço religioso assegurado, empresa
funerária etc (HOORNAERT, 1991, p. 18).

A sociedade colonial se desenvolveu, desse modo, apoiada nos serviços oferecidos


pela instituição religiosa oficial. Todas as etapas da vida social, do nascimento à morte, eram
legitimadas sob sua custódia. Tal dinâmica criou erroneamente uma sensação de consenso da
38

sociedade em relação ao catolicismo. O que se tinha, na verdade, era uma aceitação por
questões de sobrevivência: “proteger a casa comercial, o engenho, a indústria, sob invocação
religiosa de um santo era uma maneira de escapar à desconfiança dos ‘deputados’,
‘familiares’ e ‘oficiais’ do Santo Ofício” (HOORNAERT, 1991, p. 18).
Destaca-se também um dos principais meios utilizados pela Igreja no intuito de
consolidar o catolicismo na colônia: a ideia de guerra santa. A concepção medieval do termo,
utilizado para justificar as expedições católicas em defesa do Santo Sepulcro de Jerusalém, foi
trazida pelos portugueses. O discurso sobre a guerra dos teólogos cristãos foi inspirado pelos
conceitos mulçumanos: “(...) a expansão do Islã não foi feita apenas por razões políticas e
econômicas, mas também por uma meta religiosa, apresentada como prioritária: tratava-se, de
fato, de expandir a verdadeira fé” (AZZI, 2004, p. 125). Dessa forma, a ideia de guerra santa
foi incorporada à cosmovisão católica, que não apenas a aceitava por motivos religiosos como
a incentivava.

A partir do século XI os próprios pontífices romanos se tornaram promotores das


“guerras santas”. As cruzadas foram consideradas como a grande epopeia cristã. Ao
grito de “Deus o quer!” os cristãos eram arregimentados para a guerra. Aqueles que
morriam no combate aos infiéis eram objeto de especiais indulgências por parte da
Santa Sé. Dessa forma, a hierarquia eclesiástica passou a promover uma verdadeira
sacralização da guerra (AZZI, 2004, p. 128).

Na colônia, a guerra santa atuou para garantir a unidade territorial, possibilitando a


expansão colonizadora e vencendo a oposição dos indígenas que negassem a fé católica,
assim como franceses e holandeses.

Em nome da fé, os luso-brasileiros lutaram contra os franceses, holandeses. Em tais


guerras, os portugueses se designavam como “católicos”, e davam a seus adversários
o apelativo de “hereges”. À frente dos soldados portugueses iam membros do clero
com a cruz e símbolos da fé católica (AZZI, 1977, p. 43).

A radicalidade da negação da alteridade gerou uma visão do outro como inimigo infiel
da fé católica, considerado como “a própria personificação do Mal” (AZZI, 2004, p. 128).
Assim, “sendo a Cristandade colonial a realização de um desígnio específico de Deus, e a
nação lusitana tida como seu povo escolhido, era uma dedução lógica que os seus opositores
passassem a ser considerados como representantes das próprias forças do mal” (Ibidem). Em
contrapartida, os portugueses que davam a vida em prol do território e da fé eram
considerados como heróis ou mártires.
39

Não houve passividade na ocupação do território brasileiro por parte dos portugueses.
A reação violenta dos indígenas5, que não se conformavam com a privação territorial, levou
os colonizadores a considerá-los violentos, selvagens e agressivos, características que
justificavam qualquer ataque.

Assim sendo, na concepção dos portugueses, os índios começaram a ser


considerados como violentos, selvagens, agressivos. Por essa razão, nesses casos de
inconformidade indígena com a sucessiva ocupação de seus territórios, a guerra
contra eles passou a ser tida como justa. Estabelecida a legitimidade da guerra, os
inimigos poderiam ser mortos no combate ou, caso ficassem prisioneiros, ser
tratados como escravos (AZZI, 2004, p. 129).

Essa atitude é, portanto, coerente com os princípios teológicos lusitanos, que


pretendiam expandir o território cristão vencendo toda e qualquer resistência. As tribos
opositoras eram consideradas diabólicas, não tendo, por isso, direito à vida. A morte ou a
escravidão, nesse sentido, eram legitimadas a favor da expansão do reino de Deus.
Esses elementos foram importantes e determinaram caminhos pelos quais a
religiosidade popular brasileira se formou. A posição do clero mediante a pressão da
metrópole com ideais bem claros, bem como a sua adaptação frente às diversidades
encontradas, formou na colônia uma vivência religiosa diversa do que se vivia na Europa.

3.2 EMENDAR AS CAMISAS6: RELIGIÃO E RELIGIOSIDADE NO PERÍODO


COLONIAL

Há no Brasil colonial um delicado equilíbrio entre a religiosidade popular e o


catolicismo de Roma na Idade Média. Uma relação de tensão constante “tentando integrar o
que recebe de aceitável e esforçando-se por eliminar o que desfigura ou ameaça as forças que
o estruturam” (MANSELLI apud SOUZA, 1986, p. 99). Uma relação entre a unidade e a
multiplicidade, a transitoriedade e o vivido. Oposições dualistas, detectadas por Carlo
Ginzburg quando se refere à tensão na religiosidade medieval europeia: “indivíduos cultos/
camponeses; latim/ línguas vulgares; pintura/ escultura; Cristo/ santos; religião/ superstição”,

5
Riolando Azzi cita os ataques a engenhos e fazendas por parte dos indígenas, assim como roubo de animais,
objetos e morte de alguns colonos.
6
“Emendar as camisas é uma indiscutível sobrevivência, valendo debate decisivo, luta desesperada, sem pausa.
Discussão intérmina e acalorada” (CASCUDO, 2004, p. 33).
40

podem ser sintetizadas entre a tensão “cultural/ social [...] cultura escrita/ imagens”
(GINZBURG apud MACEDO, 2008, p. 3). Tais dualidades existiam na Europa medieval,
sendo reproduzidas também no Brasil colonial.
Segundo Hoornaert (1991), elas se desdobram em três categorias de catolicismo no
Brasil: o guerreiro, o patriarcal e o popular. O catolicismo guerreiro reflete o espírito de
organização do Estado português e dos jesuítas frente ao empreendimento colonizador, ou
seja, na catequização e no desbravamento dos selvagens. São Sebastião, São Miguel, São
Tiago, São Jorge e Santo Antônio foram santos guerreiros utilizados para reafirmar e
legitimar a pertença ao Império Português e ao catolicismo contra os infiéis franceses ou
holandeses. O culto a São Sebastião, por exemplo, é um dos mais antigos no Brasil. Patrono
da cidade do Rio de Janeiro, fundada como São Sebastião do Rio de Janeiro, a devoção ao
santo foi largamente difundida na sociedade colonial. Auxiliados pelos santos guerreiros, os
colonizadores mantinham o território livre das invasões heréticas estrangeiras, consolidando,
assim, a cristandade colonial luso-brasileira.
O catolicismo patriarcal instaurou-se nos engenhos de cana de açúcar nos séculos XVI
e XVII. Objeto de estudo de Gilberto Freyre (1992), o patriarcalismo estava presente nas
propriedades dos senhores de engenho, que procuravam integrar escravos e outros
funcionários das fazendas na estrutura de produção e poder da produção açucareira. Nesse
caso, fala-se em um poder mais privativo, já que se limita às capelas próximas à casa grande.
Por fim, tem-se o catolicismo popular, praticado pelos gentios, indígenas e escravos,
mais amplo e com ganho de novos significados. Seus valores e costumes, quando
confrontados com outras culturas, geraram novas culturas mescladas. Apesar da hegemonia
católica, não foi possível a imposição plena dos dogmas, ocorrendo com isso, um processo
sincrético, na medida em que não houve conservação da religiosidade como nos locais de
origem, mas o surgimento de novas características no confronto de uma com a outra.
Transcende-se a configuração anterior ao contato. A própria diferenciação da condição
geográfica e cultural pressupõe certas modificações: a dimensão popular do catolicismo
brasileiro se mostra mais dinâmica em comparação às demais, sendo nele constatada a
renovação e a adaptabilidade, que agora adquire coloração própria.
Dentre as peculiaridades do que se formou na colônia, ressalta-se a intensidade do
culto aos santos, o grande número de capelas, a teatralidade da religião, a irreverência e os
inúmeros sincretismos com as diversas etnias, o que contribuiu de forma mosaica para a
formação do catolicismo brasileiro colonial.
41

Como analisado anteriormente, a ausência da presença constante do Santo Ofício, bem


como a distância da metrópole, permitia certa liberdade de culto, sem os rigores exigidos pela
Igreja. Muitos senhores de engenho permitiam, e até mesmo participavam, de práticas
religiosas consideradas sincréticas. No depoimento que segue, pode ser observado um caso de
acusação de heresia que retrata bem a religiosidade popular brasileira. Ele se refere ao senhor
de engenho de Jaguaripe, Fernão Cabral de Taíde, no fim do século XVI, alvo da Primeira
Visitação do Santo Ofício na colônia.

Este senhor permitia em suas terras um culto sincrético realizado por índios em que
se destacavam uma índia a que chamavam Santa Maria e um índio que ora aparece
como “Santinho”, ora como “Filho de Santa Maria”. Os devotos tinham um templo
com ídolos, que reverenciavam. Alguns depoentes aludem a um papa que vivia no
sertão, que “dizia que ficara do dilúvio de Noé e escapara metido no olho de uma
palmeira”. Os adeptos da Santidade diziam “que vinham emendar a lei dos cristãos”,
e, ao fazer suas cerimônias “davam gritos e alaridos que soavam muito longe
arremedando e contrafazendo os usos e cerimônias que se costumavam fazer nas
igrejas dos cristãos, mas tudo contrafeito a seu modo gentílico e despropositado”.
“Santa Maria”, ou “Mãe de Deus”, batizava neófitos, tendo nisso a permissão de
Fernão Cabral e de sua mulher, Dona Margarida. O próprio senhor de Jaguaripe
costumava freqüentar o templo, ajoelhando-se ante os ídolos; segundo um dos
depoentes, ele era bom cristão, parecendo “que fazia aquilo por adquirir assim a
gente gentia” (SOUZA, 1986, p. 95).

A tolerância e a permissão de práticas heterodoxas por parte dos senhores eram


comuns, fosse por simpatia ou interesse em angariar mão de obra. Há nessa tolerância
sobretudo um aspecto de controle social, uma vez que as autoridades eram insuficientes e
distantes da metrópole.
As crenças e os costumes indígenas existentes antes da colonização foram muitas
vezes tolerados para facilitar a catequização. Com a chegada dos portugueses, iniciou-se um
processo de dinamismo cultural, adaptação e reinterpretação. O elemento europeu entre os
tupis é por vezes associado ao retorno “de heróis míticos ou divindades” (CASTRO, 2002, p.
210). Esses indígenas tinham atributos divinos, como a imortalidade, simbolizada pela
constante troca de pele, ou seja, de roupas. Eles eram batizados e recebiam a pregação da vida
eterna.
Por vezes resistentes à evangelização pelos jesuítas, sua inconstância na alma os fazia
ora aceitar com fervor a nova religião, ora rejeitá-la. Os maus hábitos, como relata Antônio
Vieira, “canibalismo e guerra de vingança, bebedeiras, poligamia, nudez, ausência de
autoridade centralizada e de implantação territorial estável” (CASTRO, 2002, p. 188-189),
deveriam ser combatidos, culminando em um processo longo de adaptação e reinterpretação
dos novos costumes cristãos. A missa dominical, a prática de sacramentos e o batismo não
42

eram bem vistos pelas tradições indígenas. A água batismal era recusada pelos índios, que a
associavam à morte.
Os jesuítas tiveram um papel essencial no processo de conversão indígena bem como
na totalidade da evangelização colonial. A língua tupi-guarani foi aprendida e utilizada pelos
padres da Companhia de Jesus como forma de propagar a fé. Dilermano Ramos Vieira (2016)
atenta para o fato pouco recordado de que o idioma português não tinha se consolidado até o
século XVIII. A língua dos indígenas tupinambás, falada em grande parte da costa atlântica,
começou a ser compreendida pelos portugueses, que a denominaram língua brasílica.
O Padre José de Anchieta foi responsável por sistematizar uma gramática da língua,
impressa em Coimbra no ano de 1595 sob o título de Arte de Gramática da Língua mais
usada na Costa do Brasil (VIEIRA, 2016, p. 52). A gramática de uso comum e sua
sistematização foi chamada de língua geral. Até mesmo as crianças receberam esforços por
parte dos missionários, que traziam crianças órfãs de Portugal no intuito de facilitar a
aproximação.

(...) para atrair crianças indígenas buscaram trazer meninos órfãos de Lisboa para
fazerem a ligação com os curumins [...] faziam-no representar autos, mistérios, de
fundo e sabor medieval, para depois chamá-los às missões, às escolas, aos colégios,
onde o ensino doutrinário e programático, na linha da Ratio Studiorum, assentada na
teologia do Concílio de Trento, apontava para uma religião universal e salvífica
(RIOS, 1994, p. 22).

Os jesuítas souberam combinar a crença animista dos indígenas, como é o caso da


entidade maligna Jurupari, associada ao Diabo pelo catolicismo, que era responsável pela
ordem e pelo temor vindo da mata. Mulheres e crianças desobedientes era pegas pela entidade
e levadas para o inferno (FREYRE, 1992). Não existia entre os indígenas a distinção entre o
bem e o mal. Foram os missionários cristãos que introduziram esse dualismo, próprio da
religiosidade cristã. Eles reinterpretaram também a figura de Tupã, força ligada ao raio, com a
do Deus cristão, e Anhangá ao demônio.
Também a pajelança deve ser destacada na religiosidade indígena, que consistia na
comunicação do pajé, pela dança e pelos instrumentos musicais, com os espíritos do mundo
natural e espiritual dos tupis, controlando-os e afastando-os. O tabaco e outras plantas
psicoativas, como é o caso da Ayahuasca e da Jurema, eram também utilizadas como meio de
alcance ao mundo espiritual.
Segundo Mircea Eliade (2005), em algumas comunidades a figura do feiticeiro
contrapunha à do pajé, sendo o primeiro entendido como responsável por alguma moléstia ou
43

desgraça na comunidade. Ainda assim era uma figura respeitada por comunicar-se também
com o mundo sobrenatural. O status de feiticeiro era alcançado por um caminho árduo e de
autodisciplina do corpo e da vontade, domesticando o corpo à dor. A resistência corporal
servia como prova de superioridade às forças naturais.
Novos conceitos e vocábulos foram introduzidos na religiosidade indígena pelos
jesuítas. A mitologia desse povo é reinterpretada com a incorporação dos seus heróis à crença
cristã. O anjo, elemento inexistente entre os tupis, recebeu por Manuel da Nóbrega o vocábulo
karaibebê, associando-o a um pajé com asas (LAUBE apud MACEDO, 2008, p. 10).
Também os mouros tiveram uma presença cultural importante na formação da
religiosidade brasileira. Câmara Cascudo (1978) aponta que diversas expressões católicas e
invocações exaltando o poder divino – pela graça ou pelo poder de Deus – são semelhantes à
enunciação mulçumana, que afirma que Deus (Allah) é grande. A tradicional inimizade dos
portugueses com os mouros não existiu na colônia, porém, como destaca o autor, há uma
herança portuguesa da mentalidade bélica contra eles.

O mouro viajou para o Brasil na memória do colonizador. E ficou. Até hoje


sentimos sua presença na cultura popular. (...) E todos sabem do auto de Cristãos e
Mouros, conhecido por Chegança, lutas dos soldados da Cruz contra o Crescente,
num barco assaltado por estes: batalhas de espadas e cantos, acompanhados a rufos
de tambores, findando os infiéis vencidos e batizados, de acordo com o secular
preceito catequístico (CASCUDO, 1967, p. 17-18).

Já os judeus chegaram ao país nos primeiros séculos da vida colonial, fugindo da


inquisição portuguesa, juntamente com os colonos católicos nas tripulações dos navios. O
antagonismo entre os católicos brasileiros os levou à quase endogamia e proselitismo, mas
reforçaram a piedade e o zelo na conservação de sua fé. Não eram bem vistos ao assumirem
as tarefas de cobrança e arrecadação de impostos do reino, além de empréstimos e da prática
da condenada “usura” entre os católicos.
A partir do século XVII, em Salvador e Recife, senhores de terras passam a ser
financiados por judeus na fundação de engenhos e na compra de escravos. Recife, que Freyre
(1992) denominou de judaico-holandês, local no qual conviviam judeus e reformadores
holandeses, negros, caboclos e católicos. Com a descoberta do ouro no século seguinte,
muitos deles seguiram para Minas Gerais e o Centro-oeste brasileiro.
Cabe ressaltar que a religiosidade católica portuguesa que ancorou nas terras
brasileiras permaneceu com mais força, difundida por meio de cantos e exemplos, com o
intuito de propagar a mensagem aos que se distanciavam da cultura católica. As festividades e
44

os foguetórios comuns ao catolicismo brasileiro animavam a “população mal regida por um


clero escasso e inculto” (MACEDO, 2008, p. 9).
Um fator importante das condições do clero na colônia foi a organização geográfica
desses agentes. A irregularidade na distribuição dos padres se dava pelo território com a
concentração litorânea nas maiores cidades, por conta da facilidade de assistência e
remuneração. As paróquias, até o final do primeiro século, não passavam de 50, e do segundo
século, de 90 (RIOS, 1994). Com a expansão do povoamento, que seguia o cultivo de açúcar e
gado no Nordeste e as bandeiras à procura de ouro e índios no Sul, a evangelização ocorria
por meio dos próprios colonos, graças à instituição da capela, parte integrada da casa-grande,
das fazendas e do engenho. Por isso, as missas aos domingos eram geralmente regidas pelo
capelão, autorizado a catequizar negros e até mesmo a alfabetizar as crianças dos fazendeiros,
ensinando as primeiras orações e o catecismo. Sob estrita influência dos senhores de engenho,
nascia uma religiosidade latifundiária e patriarcal.
Segundo Hoornaert (1991), os jesuítas assumem uma postura contra o catolicismo
patriarcal. Lutas foram travadas pelos discípulos de Santo Inácio contra o comércio e a
escravidão indígena por parte dos primeiros colonos, sendo eles responsáveis pela criação das
bases de uma cultura intelectual cristã, por meio de escolas e colégios, que formariam mais
tarde importantes inteligências da colônia portuguesa – uma elite de doutores e bacharéis que
dirigiriam o país. Dentre as diversas ordens religiosas da Igreja na colônia, os jesuítas
destacavam-se como os mais intelectualizados, fundamentando, por isso, a base intelectual a
partir da teologia, da filosofia e do latim.
Em 1759 eles foram expulsos da colônia por ordem do Marquês de Pombal, em função
da vitória do Iluminismo e da Monarquia Esclarecida. Com isso, o campo de evangelização
ficou nas mãos do clero regular, da monarquia e dos vigários da paróquia, o que resultou em
uma disciplina católica frágil, de moral desvalida, em um ambiente hierárquico longe de
Lisboa.
Há uma responsabilidade considerável do clero brasileiro na permanência da
diversidade religiosa. Diferentemente do poder e da marcante representatividade do clero nos
países da América Hispânica, que recebiam grandes investimentos do Estado espanhol, o
clero brasileiro foi caracterizado pela falta de instrução e pelo relapso moral. Mesmo as
ordens estrangeiras que chegavam no Brasil não modificaram a situação. “A questão foi que,
no Brasil, a Coroa não conseguia criar estruturas eclesiásticas eficientes” (VIEIRA, 2016, p.
17).
45

Poucos padres ocupavam altas hierarquias da sociedade. O regalismo7 da colonização


à República foi responsável por colocar a maior parte do clero na condição de funcionários
públicos e mal pagos. Podia-se notar o reflexo dos costumes correntes da sociedade na qual
viviam, que contrariavam muitas vezes a moral católica. O concubinato, por exemplo, era
prática comum e frequente (FREYRE, 1992).
Justamente por estarem inseridos nessa dinâmica local, o clero nunca foi alvo de
revoltas populares. A prática de costumes e ritos exteriores ao culto oficial reafirmava uma
religiosidade presente, sincrética e singular quanto aos padrões romanos. No trecho que segue
de Gilberto Freyre, percebe-se essa singularidade da religiosidade popular brasileira:

no século XVII mesmo no XVIII, não houve senhor branco, por mais indolente, que
se furtasse ao sagrado esforço de rezar ajoelhado diante dos nichos; às vezes, rezas
quase sem fim, tiradas por negros e mulatos. O terço, a coroa de Cristo, as ladainhas.
Saltava-se das redes para rezar nos oratórios: era obrigação. Andava-se de rosário na
mão, bentos, relicários, patuás, santo-antônios pendurados no pescoço, todo o
material necessário às devoções e às rezas... Dentro de casa, rezava-se de manhã, à
hora das refeições, ao meio-dia e de noite, no quarto dos santos; os escravos
acompanhavam os brancos no terço e na salve-rainha. Havendo capelão, cantava-se:
Mater purissima, ora pro nobis... Ao jantar, diz-nos um cronista que o patriarca
benzia a mesa e cada qual deitava a farinha no prato em forma de cruz. Outros
benziam a água ou o vinho fazendo antes no ar uma cruz com o copo. No fim
davam-se graças em latim... Ao deitar-se, rezavam os brancos da casa-grande e, na
senzala, os negros veteranos... Quando trovejava forte, brancos e escravos reuniam-
se na capela ou no quarto do santuário para cantar o bendito, rezar o Magnificat, a
oração de São Brás, de São Jerônimo, de Santa Bárbara. Acendiam-se velas,
queimavam-se ramos bentos (FREYRE, 1992, p. 651).

Constata-se, assim, uma dupla face do catolicismo brasileiro: a primeira de caráter


oficial, vinculada e dependente das instituições eclesiásticas e suas diretrizes, com um menor
número de agentes qualificados, e a segunda distante das instituições eclesiásticas. Thales de
Azevedo (apud RIOS, 1994, p. 39) classifica o catolicismo popular brasileiro da seguinte
forma:

7
O regalismo refere-se às práticas jurisdicionalistas absorvidas por Portugal, nas quais o rei soberano, pela
própria condição de soberania, tem liberdade de intervir nas questões eclesiásticas. “No caso português, a
afirmação desse sistema foi também uma indesejada resultante das concessões papais, que forçaram os reis
lusitanos a criar órgãos específicos para a gestão do aparato eclesiástico que lhes fora confiado pelo padroado
régio” (VIEIRA, 2016, p. 70).
46

(1) um corpo de noções ou crenças derivadas do catolicismo “oficial”, mas


empobrecida no seu conteúdo dogmático e moral, sobretudo na menor importância
atribuída à salvação; (2) um sistema ético em parte resultante do modelo formal, mas
do qual se desprendem certos elementos, entre os quais se nota a ausência do
pecado; (3) a significação secundária que se atribui aos sacramentos, do que resulta
a minimização do papel do sacerdote, encarado muito mais como um provedor de
serviços religiosos do que um mediador entre Deus e os homens; (4) a ênfase no
culto propiciatório dos santos, considerados seres benevolentes e milagrosos – que
constituem uma hierarquia prenatural, na qual tendem a confundir-se Jesus Cristo, a
Virgem Maria e os santos canônicos; e (5) uma liturgia doméstica ou localizada em
determinados santuários.

Noções básicas e precárias da doutrina católica permearam o catolicismo popular:


pouca instrução no Evangelho e um quê de vida própria, distante das diretrizes da metrópole.
A vastidão territorial e a escassez do clero tornaram-se uma constante na história do país.
Laura de Mello e Souza (1986, p. 88, 97) aponta para as características básicas que refletiam o
caráter colonial, ou seja, “branca, negra, indígena, [que] refundiu espiritualidades diversas
num todo absolutamente específico e simultaneamente multifacetado (...) tecendo uma
religião sincrética”.
Quanto aos negros afrodescendentes, ressalta-se que eles marcaram presença em certas
irmandades, na devoção a determinados santos, como Santa Ifigênia e São Bento, e na mistura
de suas crenças e práticas com o catolicismo. “Na primeira noite de Nossa Senhora dos
Prazeres, no sábado, acendia-se a fogueira junto ao cruzeiro e havia ladainhas e danças de
‘xangô’ durante a noite inteira” (RIBEIRO, 1978, p. 141). Pela tradução dos seus idiomas,
cantavam o que entendiam da Ave Maria, louvando a Iansã. As correspondências não
prejudicavam a permanência de seus cultos e divindades.
Percebe-se, com isso, o caráter agregador das diversas religiosidades africanas que
vieram para o Brasil. Ao contrário do que acontece com o catolicismo, que elimina o que não
faz parte do seu universo, as religiões ou religiosidades africanas recebiam novas
manifestações, agregando-as às suas crenças anteriores.
Entretanto, importante destacar que as crenças africanas no Brasil ganharam novos
contornos. “Abarcam-se crenças como a religião dos orixás, o candomblé dos nagôs,
antecedidos no Brasil pelos bantos, com o candomblé congo e angolano, assim como o
candomblé-caboclo que inseriu elementos da sociedade brasileira” (MACEDO, 2008, p. 13).
Como exemplo tem-se o tambor de mina no Maranhão e a encantaria no Pará, que
incorporaram elementos indígenas nas práticas. São contornos próprios dos africanos no novo
ambiente social. A ligação do praticante com seu “egum”, sua genealogia, seus antepassados,
no candomblé ficaria em segundo plano, importando mais sua filiação particular com o orixá
(PRANDI, 2005).
47

A umbanda só se consolidaria no Brasil como crença afro-brasileira nas primeiras


décadas do século XX, incorporando elementos do catolicismo, dos indígenas e do
espiritismo, seguindo a mesma dinâmica sincrética presente nos primórdios da sociedade
brasileira.
Três grupos principais de africanos são identificados no Brasil, segundo Costa (2001,
p. 327): “Os de cultura sudanesa: iorubás advindos da Nigéria (Nagô, Ketu etc.); povos do
Benin (Gêge, Ewe Fon) e os Fanti e Ashanti do Gana, Costa do Marfim, Serra Leoa, Gâmbia
e Guiné; Bantus, vindos do Congo, Angola e Moçambique; Sudaneses islamizados como os
Fulanis, Haussás, Mandiga etc.”. As diversas contribuições culturais de cada grupo geraram
uma variedade de cultos:

- Macumba, praticados, sobretudo, no Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo;


- Batuque, Rio Grande do Sul, de origem banto como a anterior;
- Casa de Mina, praticados por Nagôs no Maranhão;
- Candomblé, na Bahia por sudaneses;
- Encantaria ou pajelança, no Amazonas e Pará, misturados com cultos indígenas;
- Catimbó, no Nordeste brasileiro, com influências africanas, indígenas e do
catolicismo popular europeu;
- Umbanda, culto influenciado pelo espiritismo kardecista baseado na idéia de
“reencarnação”, em religiões afro-brasileiras, cultos indígenas e no catolicismo
popular;
- Xangô, difundida no Nordeste (COSTA, 2001, p. 327).

Os espíritos afro-brasileiros cultuados caracterizam-se por ser em sua maioria,


guerreiros a serviço da justiça, como Xangô e Ogum. Até mesmo Exu, o mensageiro dos
mundos, foi identificado pelo catolicismo como o Diabo e, por isso, marginalizado e malvisto
pela sociedade até a contemporaneidade. Apesar da vivência na própria fé, a instrução católica
fez-se, pelos párocos, sumária na vida dos negros. Mesmo nos quilombos há relatos da
manutenção de aspectos importantes da vivência católica, ainda que readaptados.

Interessante observar que os negros quilombolas de Palmares, a seu modo, não se


afastaram do Catolicismo. (...) os portugueses quando adentraram o mocambo do
Macaco, encontraram lá três imagens, uma do menino Jesus, “muito perfeita”, outra
de Nossa Senhora da Conceição e mais outra de São Brás. Édson Carneiro salienta,
no entanto, que os palmarinos fizeram “adaptações”, ou seja, escolhiam “um dos
mais ladinos” para lhes servir de sacerdote, especialmente para as cerimônias de
batismo e casamento, mas provavelmente também para pedir ajuda celeste nas suas
lutas. Ensinava-se igualmente em Palmares certas orações cristãs, ainda que as
práticas religiosas locais, segundo o mesmo Carneiro, devem ser “uma incrível
mistura de Catolicismo popular, tingido de todas as superstições da Idade Média e
de invocações de fundo mágico”. De outra feita, não se permitia a presença de
feiticeiros no quilombo (VIEIRA, 2016, p. 67-68).
48

Dessa realidade mista de crenças, práticas, superstições e costumes nasce no Brasil


uma experiência nova e peculiar, que permanece arraigada no imaginário e na vivência do
povo brasileiro. As manifestações da religiosidade popular são, sobretudo, reflexo dessa
formação heterogênea. O catolicismo oficial, embora imposto, não pode ser encontrado em
sua forma pura na colônia, assim como em qualquer outra parte do mundo. Hoornaert
recupera uma citação de Comblin que argumenta sobre a inexistência de um cristianismo puro
e oficial, até mesmo na vivência dos clérigos.

O catolicismo oficial, definido pela teologia e pelo direito canônico, nunca existiu.
Existem sistemas concretos, constituídos por uma certa impregnação cristã de várias
civilizações. Mas o cristianismo puro, oficial, não existe. Nem os próprios clérigos o
vivem. A diferença entre o catolicismo dos clérigos e o catolicismo popular consiste
apenas nisso: que os clérigos imaginam que o seu cristianismo é puro e o único
verdadeiramente autêntico, enquanto os outros não têm problema de ortodoxia nem
de autenticidade. Na realidade existem apenas diferentes sistemas de tradução do
cristianismo em condições concretas de vivência humana. As formas populares
merecem tanto respeito quanto as formas oficiais. A conversão ao cristianismo não
se fará por imposição a todos de um cristianismo oficial definido a priori pelos
clérigos, mas sim pelo contacto renovado com o evangelho que cada um firme
dentro das suas próprias estruturas (COMBLIN apud HOORNAERT, 1991, p. 29).

Cabe notar que esse estudo se apoia em vários dos apontamentos supracitados: não
existe um grupo específico ou uma determinada classe que seja detentora da autenticidade
cristã, em termos de vivência concreta; o catolicismo popular e o oficial estão em um mesmo
patamar, sem que um se sobressaia em detrimento do outro; há uma dinâmica de incorporação
do cristianismo pelo povo, que não reproduz fielmente doutrinas impostas, incorporando-as e
reproduzindo-as conforme suas necessidades.
Nas próximas seções, serão retomados alguns pontos importantes do estudo de Câmara
Cascudo quando analisa a gênese da formação da mentalidade religiosa brasileira.

3.3 UMA VIA E DOIS MANDADOS8: DANTE NO POVO

Mesmo tendo surgido em um período pós-Idade Média, o Brasil apresenta diversas


características próprias do medievalismo, não nas estruturas externas, mas arraigadas no
imaginário e na cosmovisão do povo brasileiro. Não apenas na política, na moral, na ética e na

8
A locução tradicional no Brasil refere-se “(...) à prática utilizada no tempo, possibilitando a realização de dois
encargos na mesma oportunidade”. “Com uma cajadada, matar dois coelhos!” (CASCUDO, 2004, p. 140).
49

religião, mas principalmente na vivência do dia a dia, nos costumes e nas expressões da nossa
religiosidade. A estrutura medieval liga-se sobretudo à nossa sensibilidade.
Hilário Franco Junior (apud AMARAL, 2011), em um estudo intitulado Raízes
medievais do Brasil, com uma abordagem crítica ao livro de Sérgio Buarque de Holanda,
Raízes do Brasil, apresenta um dado que escapou não apenas a Holanda, mas a outros autores
da mesma época: as raízes do Brasil, mais que na civilização moderna portuguesa, deveriam
ser buscadas na Europa medieval. Segundo o autor, as estruturas mais características desse
período se firmaram por todo o território nacional.
Jerome Baschet afirma algo semelhante em relação ao México e à Espanha, quando
ressalta que “a história de um país colonizado apresenta certos laços particularmente estreitos
com a da sua metrópole, e tão profundamente que mergulha em toda a sua dinâmica da
cristandade medieval que se assentaria em terras colonizadas pelos europeus” (BASCHET,
2006, p. 33 apud AMARAL, 2011, p. 447).
Detecta-se, então, no Brasil a implantação de um sistema de valores medievais, o que
não pode caracterizar uma Idade Média brasileira como houve na Europa, embora esse
período tenha influenciado diretamente a maneira de viver do povo que aqui se desenvolveu.

Valores, costumes, hábitos, tão latentes quanto explícitos, sobretudo aqueles que
emergem da vida do cotidiano, das práticas familiares mais tradicionais, das
expressões de uma religiosidade mais íntima e própria de um grupo étnico-cultural
mais circunscrito espacialmente, das tradições orais que deixam fluir as
desconcertadas histórias e de longuíssima duração, cheias de maravilhas,
especialmente o miraculosus cristão, cuja origem é medieval (AMARAL, 2011, p.
447).

Isso pode ser percebido, por exemplo, nas práticas folclóricas do povo brasileiro, e na
presença da belicosidade e da religiosidade nas cavalhadas do Nordeste, que caracterizam
uma continuidade de costumes e modos de agir e de sentir tipicamente medievais. O apego a
devoções místicas e ascéticas da religiosidade popular, como as peregrinações, temores do
inferno e do Juízo Final e autoflagelações evidenciam a permanência da longa duração do
cristianismo medieval da Alta Idade Média e mesmo de épocas posteriores. Segundo Amaral,
essa característica é mais marcante justamente nas tradições populares, “atitudes religiosas
mais tendentes a visões dualistas do sagrado, percepções de fundo gnóstico, atitudes de
renúncia e penitência” (AMARAL, 2011, p. 447).
Até mesmo o sincretismo brasileiro caracterizado pela miscelânea resultante da fusão
e do aculturamento recíproco do cristianismo católico e das crenças africanas e indígenas
condiz com a realidade da cristianização medieval. O cristianismo proselitista da Alta Idade
50

Média “teve que se adaptar às expressões das religiosidades europeias autóctones e clássicas,
ora rechaçando-se, ora adotando-as, ainda que, nesse último intento, por um processo de
desnaturalização de suas significações e características primitivas, ou seja, cristianizando-as”
(AMARAL, 2011, p. 448).
Em relação às religiosidades africanas e indígenas, assim como na Europa
alto-medieval, há “uma cristianização do ‘paganismo’ e uma ´paganização’ do cristianismo”,
tendo em vista que as influências culturais, mesmo que impositivas, agem em uma via de mão
dupla. Uma cultura absorve a outra em maior ou menor grau, gerando uma fusão. “Mais que
uma aculturação, nasce um corpus em grande medida híbrido, como é o caso do encontro de
expressões religiosas que se fundem impositiva ou naturalmente” (AMARAL, 2011, p. 448).
Quanto à mentalidade e ao imaginário que norteiam a relação do homem com o
sagrado, a discussão se dá no nível do inconsciente: “Os sentimentos e crenças mais ligadas às
culpabilizações, demonizações, cerceamentos de desejos e superstições, como o
pressentimento que comumente nos abate de futuro mal-estar decorrente de um presente de
maior gozo e felicidade” (AMARAL, 2011, p. 448). A influência do sentimento medieval
faz-se no inconsciente, não apenas individual, mas coletivo do povo brasileiro.

Tais vicissitudes do espírito assentes no inconsciente coletivo nos colocam muito


acerca da sensibilidade religiosa medieval de tendência tipicamente gnóstica e
pessimista quanto à realidade mais mundanas. Neste conceber, a Idade Média está
presente no inconsciente, tanto individual quanto coletivo, das gentes do Brasil e se
externa em nossos hábitos, crenças e costumes (AMARAL, 2011, p. 448).

É por agir no nível mental que compreende-se a longa duração e a permanência no


tempo de determinadas práticas, bem como a sutileza das mudanças dos hábitos, embora elas
sejam lentas e, às vezes, pouco perceptíveis. Há, portanto, uma raiz medieval profunda e
arraigada na mentalidade do povo brasileiro, que pode ser sentida e percebida sem muita
dificuldade, até mesmo em nosso tempo.
Cascudo, no livro Dante Alighieri e a tradição popular no Brasil (1963), trata de um
estudo curioso sobre a relação, à primeira vista estranha, das concepções de inferno,
purgatório e céu expostas pelo autor italiano e detectadas nas tradições populares. São
influências medievais que penetram as tradições brasileiras. Dante foi responsável por levar a
mentalidade do seu momento histórico “para os círculos do inferno, planícies do purgatório e
amplidões do paraíso” (CASCUDO, 1962, p. 13). A Divina Comédia contém muito da
tradição popular medieval, com a exploração das superstições e dos costumes da época,
podendo esses ser equiparados às nossas tradições.
51

LA DIVINA COMMEDIA não é, visivelmente, fonte e origem dos elementos dos


séculos XIII e XIV resistindo na cotidianidade da vida brasileira. Apenas não será
possível deparar-se documento mais expressivo e demonstração mais autêntica para
a função ininterrupta desses assuntos na existência popular do Brasil, encontrado
179 anos depois que o poeta morrera (CASCUDO, 1963, p. 18).

O paraíso dantesco, “geométrico, didático, astrológico”, “hierárquico feudal”, se


compatibiliza com a ideia de céu dos brasileiros. Não a concepção do Éden, mas do céu do
alto, acima das nuvens, imóvel. O que acontece no céu, não cabe aos homens saber. “O povo
não guardou a figura do Éden, jardim celestial que influenciou as liturgias do Oriente Próximo
nos primeiros séculos do Cristianismo e a Dante Alighieri. Afirma a intuição popular que o
céu está situado no alto, acima das nuvens e das estrelas, supra firmamentum...” (CASCUDO,
1963, p. 47-48) Dizia Dante que “o céu é pura luz” (ALIGHIERI apud CASCUDO, 1963, p.
49), afirmativa semelhante à popular.
A imagem do purgatório, tradicional na vivência popular, é recriada pela imaginação
coletiva, independente da pronunciação teológica. Nesse local as almas atravessam fogo
ardente, inferior ao do inferno, e vivem em penitência. No inferno, a imagem predomina sobre
o fogo ardente, eterno e punidor. Dante descreve água fervente, areia queimante, mutilações
sucessivas, serpentes insaciáveis.... Por toda parte há desespero, rebeldia e inconformismo. A
visão popular concebe o inferno como uma “caldeira onde fervem em azeite, água, alcatrão,
os suplicados no Diabo” (CASCUDO, 1963, p.32). Segundo Cascudo, é a imagem comum da
punição infernal.
Para além das três esferas sobrenaturais, há conexões diversas com hábitos, gestos e
superstições. Américo de Oliveira Costa (1969, p. 184-185), ao analisar tal obra, enumera
alguns pontos dessa convergência:

os lugares de suplício do Inferno, os contactos dos Purgatório e suas penas, o Paraíso


e sua arquitetura, dividida em esferas concêntricas e sucessivas, as hierarquias de
santos e anjos, tronos e dominações, prestígios de merecimento e intercessão, santos
cultos e santos populares, o argumento famosos de Buridan, o jogo da Zara,
significações da língua estirada, São Nicolau, (...) sugestões e influencias do mês de
maio, os monstros dos pés ao contrário, arvores sangrando e gemendo, o poder do
olhar da virgem, os bons signos da cor branca, (...) o morto sem túmulo, santos
feitos pelo povo, a procissão das almas (...)o gesto de bater no peito, os anúncios
secretos da borboleta, (...) as figas de Vanni Fucci, o pecado da gula de Ciacco, a
vênia medieval, Caim e as lendas do homem da lua, o amém medida de tempo, (...) o
silêncio como sinal de atenção, a sopa no túmulo, o conselho do anjo, a voz do
gesto, (...), os braços em cruz (...).

A complexidade da escrita de Cascudo nesse livro, repleto de erudição, nos limita a


destacar os aspectos ora apresentados, convergências de origens inexatas presentes na
52

associação da tradição popular de Dante e dos brasileiros. Dante foi transferido ao nordeste
brasileiro, ao sertão, à caatinga, ao Brasil. A compreensão popular, por sua vez, readapta as
versões recebidas no processo modificador de adaptação.

Os indígenas ameríndios ouvindo a catequese levavam-na para suas aldeias,


aplicando-a na forma e efeito entendidos, bem diversos da pregação. A ainda hoje a
vigilância ortodoxa guarda o rebanho que constantemente, inventa e usa de preceitos
pessoalmente julgados superiores aos ministrados. Assim os lugares do prêmio,
purgação e castigo assumem as configurações mais simpáticas ao espírito do povo.
Um coletor de estórias sabe como o Paraíso ou o Inferno vivem na sensibilidade
popular. Os contos são depoimentos imemoriais e testemunhas da credibilidade
anônima e persistente (CASCUDO, 1963, p. 35).

As noções da religiosidade popular serão abordadas mais detalhadamente no próximo


capítulo, com o resgate das associações feitas por Cascudo da visão plástica e das concepções
da realidade pós-morte dantesca na tradição popular no Brasil. No próximo tópico, será
discutida a formação da religiosidade brasileira com foco no período colonial e nas diferentes
fontes influenciadoras.

3.4 COM O PÉ DIREITO9: UMA NAÇÃO SUPERSTICIOSA

A superstição está fortemente vinculada à religião, embora não se limite a ela. Fato é
que a religiosidade que se formou no Brasil carrega na sua gênese uma dimensão
supersticiosa que permeia todas as religiões que aqui se desenvolveram com peculiaridade,
resultado do encontro de diversas crenças.
São consideradas superstições gestos e palavras, atitudes e ações, rogativas para
afastar o mal. São heranças milenares que induzem atitudes mentais, produzindo determinado
comportamento. Estão ligadas às necessidades básicas de comer, beber, existir. São
mecanismos de defesa do homem diante de uma situação misteriosa e incompreensível. As
superstições são, para Cascudo, permanências e continuidades de práticas que se perdem no
tempo e não têm origens exatas. “Somos representantes, biologicamente resignados, de povos
de alto patrimônio supersticioso” (CASCUDO, 1971, p. 156). Amerabas, portugueses e
africanos são o nosso alicerce.

9
“Entrar com pé direito é prenuncio de felicidade, ventura, êxito. Superstição que Roma oficializou,
derramando-a pelo Mundo” (CASCUDO, 2004, p. 73).
53

Dos povos indígenas, os tupis, jês e cariris são os que mais profundamente marcaram e
colaboraram com a formação de nossa cultura. Aruacos, caraíbas e outros grupos foram
menos determinantes.

O tupi, arrancado da América Central, derramou-se pela América Austral numa


incessante infiltração, povo inquieto, lidador, cantor e bailarino, valorizador da
farinha de mandioca, tida do aruaco, emigrando em massa, procurando a terra onde
não se morria, base inicial de aproximação lusitana, servos, mestres, padrinhos dos
topônimos: os jês irradiavam-se dos chapadões, combatidos, inassimiláveis,
sobrevivente de milênios, o inimigo, fantasma guerreiro, Timbiras, Aimorés,
Botocudos, morrendo com seus mistérios, “adivinhado” pela etnologia tateante; o
cariri empurrado para os sertões, sólido, taciturno, reservado, saudoso da orla azul
onde nasce o sol floresce o cajueiro (CASCUDO, 1971, p. 157).

Já o português trouxe consigo uma série de influências de outros povos, “ibéricos,


gregos, cartagineses, romanos, a onda germânica, o preamar mouro e árabe, judeus,
cavaleiros, cruzados, o conde dom Henrique, o primeiro Rei de Portugal, vendo a cruz de
Cristo no céu de Ourique, catolicismo missionário e guerreiro, lendas, sacrifícios, milagres”
(Ibidem). Por sua vez, os africanos, sudaneses e bantos,

(...) além da herança tradicional, carregavam a presença berbere da África


Setentrional, pelo Sudão as lembranças egípcias e das populações circundando os
lagos, cabeceiras dos rios fabulosos, mais semeados de lendas que de viventes;
impérios, cultos, façanhas, confusamente poderosas na imaginação obstinada
(CASCUDO, 1971, p. 157).

Tais influências, segundo o autor, permaneceram na memória e são reminiscências do


povo brasileiro, presentes e ativas “na química de todos os pavores coletivos” (Ibidem).
A influência europeia portuguesa é mais profunda e marcante que a dos negros e
indígenas. Ressalta-se, no entanto, que foi a partir dessas três influências múltiplas e
heterogêneas que se criou a superstição brasileira. “Não há um mito ou uma crendice ameraba
ou negra que haja alcançado toda a população brasileira” (CASCUDO, 1971, p. 159).
Cascudo retoma a citação de dois historiadores americanos Samuel Morison e Henry Steele
Commager para corroborar sua análise de que os portugueses conseguiram estabelecer contato
com grupos humanos isolados e independentes: “não havia tribo nem nação índia que
soubesse coisa alguma do seu próprio continente para lá de umas poucas centenas de milhas”.
“Por isso o lobisomem trota em todo o continente e aqueles lindos fantasmas ameríndios têm
uma melancólica área de expansão” (CASCUDO, 1971, p. 159).
A disputa no ranking das superstições era um tanto injusta. Os portugueses foram
responsáveis por trazer não apenas hábitos e costumes como também animais – boi, vaca,
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galinha, cachorros, gatos, coelhos, ratos, protagonistas de diversas superstições -, e


instrumentos utilitários e alimentos, disseminados por todo Brasil.
Veio a família “branca”, nascimento, educação, noivado, casamento, parto, moléstia,
remédios, morte, enterro, alma do outro mundo, aparatos subsequentes para
aclimatação. Depois a sociedade, convivências, festas, negócios, armas, nova rotina
de trabalhos, construção de edifícios, barcos, pontes, abertura de estradas, com os
indispensáveis cerimoniais. E a parafernália doméstica, cama, estrado, cadeiras,
mesa, cozinha, açúcar, pão, ovos, doces, bolos, fornos, iluminação, enfim o mundo
familiar, plantando sementes de frutos inesgotáveis (CASCUDO, 1971, p. 159-160).

No plano das atividades supersticiosas não havia como concorrer com esse infindável
complexo lusitano. Os escravos, mestiços, mamelucos, curibocas, cafusos foram, entretanto,
seus divulgadores. As crianças eram amamentadas em mães indígenas e depois,
preferencialmente, em “mães pretas”, que seguiam “pingando pavores nas almas meninas”.
Silvio Romero já havia salientado o papel do mestiço na circulação e modificação do folclore
brasileiro (CASCUDO, 1971, p. 160). A influência supersticiosa do negro, se for considerada
sua predominância numérica na sociedade brasileira, deveria ser, segundo Cascudo, o triplo
do que foi. Contudo, rapidamente adaptados ao ambiente da senzala, os escravos aderiram
com profundidade à cultura local. Mesmo nos quilombos, e depois libertos, as histórias e
crendices “brancas”, além de práticas dos senhores nas casas-grandes ou fazendas, eram
contadas e disseminadas.
Por outro lado, se os brasileiros receberam o sangue supersticioso dos portugueses,
estes receberam e foram influenciados pelos romanos. Considerada o berço de todas as
religiões, Roma precisou reagir por muito tempo contra as constantes invasões de soldados,
marinheiros, escravos, colonos e milícia estrangeira. Templos surgiam, marginais aos centros
urbanos, competindo no Capitólio com as égides supremas do povo do Império. Caldeus,
egípcios, persas, povos da Ásia menor e das ilhas do mar Egeu permeavam a cidade,
carregando cultos diversos.
Os cultos orgiásticos, as iniciações tenebrosas, as liturgias sangrentas, as previsões
horoscópicas seduziram a gravidade romana. As alianças bárbaras, embaixadas,
intercâmbio comercial, as ondas sucessivas de aventureiros asiáticos alagaram
Roma, as almas dos legionários, semeadores infatigáveis no mundo calcado pelas
cáligas insaciáveis (CASCUDO, 1971, p. 184).

Segundo Cascudo, as legiões foram grandes disseminadoras de superstições, que


emergem, principalmente, pela oralidade popular, traduzindo o entendimento comum,
disseminando a sabedoria sagrada, explicando os fenômenos metereológicos, orientações,
gestos oblacionais e propiciatórios, a razão de ser das coisas e dos seres. Tomar bênção, tirar o
chapéu, abaixar a cabeça, fazer o sinal da cruz, bater na madeira, fazer figa são exemplos de
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gestos diários que se dão de maneira mecânica, instintiva, sem que se questione os porquês.
Ele se preocupa com as raízes da superstição considerando, no entanto, a
impossibilidade de se exportar, comprar, imitar ou importar uma civilização. Recria-se,
modificando e adaptando.
O caráter supersticioso da religiosidade popular brasileira deve êxito ao encontro
desses inúmeros povos de diversas crenças e superstições. A permanência de tal aspecto
instigou o nosso autor, culminando no livro Religião no Povo (1974). Nele o autor apresenta
um termo foco do nosso trabalho: a teologia popular, que se baseia no princípio da superstição
como fator comum às diversas religiões e religiosidades brasileiras.
O peso dessa dimensão supersticiosa no Brasil é significativo no sentido de ser campo
comum das tradições (orais e escritas), podendo ser percebida como caminho de unidade
cultural sem que se elimine as peculiaridades regionais.
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4 DA SUPERSTIÇÃO À TEOLOGIA POPULAR

Tendo em vista o panorama apresentado no capítulo anterior, neste tópico serão


discutidas as ideias de Câmara Cascudo acerca da unidade da religiosidade popular brasileira.
Um dos seus pontos fundamentais é a questão supersticiosa como permeadora das diversas
formas de crença que aqui se instauraram e prevaleceram, segundo o autor, sem previsão de
extinção. Talvez se possa considerar que suas previsões tenham se concretizado se for
analisado que as superstições mudam de trajes, mas não de conteúdo. A partir da
compreensão da superstição em Cascudo, partir-se-á, então, para a compreensão da unidade
da religiosidade popular brasileira e da teologia popular.
Religião no Povo foi publicado pela primeira vez em 1974, em João Pessoa, pela
Editora Imprensa Universitária, com segunda edição em 2011 da Editora Global. Segundo
Cascudo, o livro foi resultado de “quarenta anos de pesquisa discreta e contínua”
(CASCUDO, 1974, p. X), no qual encontradas histórias colhidas na sua memória, com
referências a personagens muito próximos do autor. O livro contém 27 capítulos, além de
prefácio e introito. No presente trabalho serão discutidos alguns desses capítulos conforme a
relevância e proximidade com o tema da dissertação, como Santas Almas Beneditas; O Morto
é Juíz; Santos tradicionais do Brasil; Com o diabo no Corpo; Rogar Pragas e, por fim, Da
Teologia popular.
Em diversos livros de Cascudo a religiosidade está presente, por vezes diluídas em
outras temáticas. A escolha por essa publicação se deve justamente por nela se detectar com
mais tranquilidade a predominância do tema.

4.1 RELIGIÃO NO POVO

Nos capítulos iniciais de Religião no Povo, Cascudo oferece um panorama da


formação da religiosidade brasileira, tomando por base as diversas influências responsáveis
pela nossa peculiar “brasilidade”. Nota-se que o autor não fala de religião do povo; a escolha
da preposição é proposital, vez que direciona seus leitores para uma certa religião que se
encontra inserida no povo: é a religião dentro do povo. Com isso, pode-se compreender o foco
em uma religião que não é, necessariamente e obrigatoriamente, “do” povo, mas que “está” no
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povo. Não é o indivíduo que pertence à religião, mas a religião que faz parte do indivíduo. A
partir dessa ideia, analisa, utilizando as diversas influências anteriormente citadas, a
mentalidade religiosa brasileira, considerando hábitos, gestos e superstições.
Cascudo acredita que as noções de paraíso, dilúvio e compensações extraterrenas
foram heranças catequéticas, e não um produto nativo. Os indígenas, segundo o autor, não
tinham cultos organizados, hierarquia, ritual ou teogonia. O pajé era sacerdote e curador por
processos mágicos e intervenções sobrenatural, utilizando, em alguns casos, a flora nativa.
Ainda que inseridos, de certo modo, na religião católica, eles não abandonaram as práticas
tribais, o que também ocorreu com os africanos. “Sudaneses e bantos possuíam terapêuticas
permitidas pelos seus deuses, nada exigentes no rigorismo cerimonial, inversos aos
mulçumanos ciumentos de Alá” (CASCUDO, 1974, p. 2).
Os segredos miríficos eram guardados na base do animismo natural. Existiam forças
para o bem e para o mal sem que nenhuma potência superior às presidisse. A catequese para o
negro, assim como para o indígena, foi “desinteressada das reais conquistas da alma”
(Ibidem), tendo por finalidade a sobrevivência. “Alma seria necessidade do homem branco”
(Ibidem). Não há violação das crenças, uma vez que elas se diluíam nas funções diárias.
“Mantiveram as defesas mágicas e não os atos pragmáticos do culto tribal” (Ibidem). Nos dois
casos não há uma teologia de oposição. No entanto, de acordo com o autor, a sensibilidade
africana, e não a indígena, foi a detentora mais marcante do catolicismo cristão.
Uma questão importante na teoria de Cascudo se refere ao processo de adaptação dos
cultos cristãos às diversidades existentes na colônia. Segundo ele, o processo segue a mesma
lógica fixada desde o início do ciclo de adaptação cristã em relação aos cultos politeístas
autorizados pelo Papa Gregório Magno (590-609) ainda no século VI. “Enfrentando o
problema da resistência pagã aos nascentes dogmas da Cristandade, o arguto Pontífice
dedicou à nova Fé que se destinara aos Deuses gregos, romanos e orientais, África
Setentrional e Ásia Menor” (CASCUDO, 1974, p. 3).
Em fins do século VI, para evitar problemas, esse Papa transformou templos pagãos
em igrejas e festas dionisíacas em ágapes fraternais, sem que houvesse destruição ou
proibição direta, o que resultou em uma cristianização da esfera pagã pelo contágio do
sagrado. Houve o que Cascudo chamou de “uma absorção sem assimilamento
descaracterizador” (Ibidem). Os elementos heterogêneos foram conservados no âmago da
memória coletiva sem dissolução. Jesus Cristo, nesse contexto, foi entendido como sucessor,
e não usurpador dos antigos deuses, o que lhe garantia uma existência mais pacífica.
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Seguindo essa lógica, o português “ficou fiel ao Deus que o batizara em Portugal e,
como o distante avô romano, reservou um altar oculto para a desconfiada crença nos divinos
assombros das negras cunhãs temerosas de tempestades e rumores insólitos no escurão da
noite equinocial” (CASCUDO, 1974, p. 3). Tal coexistência justificaria para Cascudo a
plasticidade sentimental brasileira. “Essa dupla nacionalidade espiritual, reverente aos
mistérios trazidos no sangue e deparados no clima habitado, sincera e natural, liberta-o dos
casos de consciência e das angústias da Incredulidade” (Ibidem).
A herança portuguesa e a catequese cristã se inserem profundamente na mentalidade
brasileira desde o século XVI, em interação com a cultura popular, oral e anônima. A
mentalidade medieval europeia trazida pelos portugueses resiste nos hábitos e costumes
religiosos, que se modificam em aparência, mas permanecem em sua substância íntima.

Esse corpo doutrinário é inalterável e resiste aos sucessivos reajustamentos


modernizantes. Parecerá sacrílega outra hermenêutica. Não litúrgica, transformável,
mas dogmática, inabalável. A razão é o sempre foi assim! Ensino da Santa Tradição,
origem do Costume, intérprete da Lei. (...) O povo tudo ouve e vê, mas dificilmente
muda o que julga sagrado e certo por ter sido Ciência dos Antigos, a voz dos
antepassados impecáveis. Na intimidade do pensamento, raciocina como o bisavô,
embora manobrando mastrodontes motorizados, comendo de lata, bebendo venenos
destilados, envergando camisa vermelha e calça verde. A defesa instintiva
respondendo perguntas hábeis sobre sua religião, é concordar, confirmar,
esgueirando sorrisos astutos. Nada de comprometer-se. Identicamente aos negros
africanos e aos nossos indígenas impassíveis, atendendo sábios de Kodak e
gravador. “Para o preto a confidência é um sacrilégio!” dizia-me em Luanda o
etnógrafo José Redinha (CASCUDO, 1974, p. 6).

A dinâmica da religiosidade popular, da mentalidade do homem do povo, apresenta


algumas peculiaridades, expostas por todo o livro, como o culto a Jesus Cristo, a
impenetrabilidade e os mistérios da sabedoria divina, a competência de Nossa Senhora por
sua condição de mãe e a independência do poder do Espírito Santo em relação a Jesus.
Jesus Cristo mostra características paternas como a severidade, a autoridade e o poder
de decisão. Seu temperamento vai assumir características diversas, dependendo do grupo
étnico. Não há julgamento unânime quando se trata de teologia popular. “A universalidade do
julgamento unânime, imutabilidade do divino critério nas supremas sentenças, é uma
afirmativa que a Teologia popular ignora” (CASCUDO, 1974, p. 8). As penas do inferno,
segundo relata, são temporárias, modificadas pela misericórdia do Pai que sofre ao ver seus
próprios filhos entregues ao Demônio. A sensibilidade coletiva popular não admite o
sofrimento lento e eterno.
59

Mesmo que Deus lançasse seus filhos no azeite fervente e nas chamas sem fim,
Nossa Senhora interromperia o martírio inominável. Todos compreendem e
justificam a pena de morte, mas repelem horrorizados os tormentos, o jogo lento,
implacável sadismo do sofrimento provocado, minucioso, tranquilo, sobre a carne
viva de uma criatura humana. Admitem a forca de Tiradentes mas não as tenazes de
Antônio-José, o judeu. Galés perpetua. Não torrar em fogo-lento, como quem assa
perdiz (CASCUDO, 1974, p. 8).

A heterodoxia popular não compreende a “eternidade dos castigos sobrenaturais”


(CASCUDO, 1974, p. 9). A tortura é produto do homem, “conquista do progresso” (Ibidem).
São ações contra Deus, e não ao seu serviço. Esse complexo reprovador é, segundo o autor,
“uma defesa da personalidade moral da Criatura” (Ibidem), feita à imagem e semelhança de
Deus. As agressões faciais são ofensivas, sacrilégios, por alusão à face divina. “Uma
punhalada é uma agressão. Mão na cara, ofensa indelével” (CASCUDO, 1974, p. 8). A
humilhação é imperdoável e as raízes são religiosas. Todos esses elementos se tornaram
atributos sociais e se mantêm no uso, sem que haja necessariamente o conhecimento das
fontes.
Cascudo reafirma o que foi dito no capítulo anterior em relação à importância do papel
do clero na sociedade brasileira. A ausência de uma intervenção minuciosa na vida mental do
povo possibilitou a manutenção de conceitos e receitas no julgamento das coisas cotidianas.
Importava a obrigação ao culto, e não a vivência da doutrina cristã. O entendimento popular,
natural e lícito não foi incompatível com a consciência catequética.
Diferentemente dos intelectuais, o povo não se interessa por explicações para os
fenômenos sobrenaturais. “Para o Povo o Sobrenatural é lógico pela simples evidência,
explicando-se pelo próprio mistério impenetrável às argúcias da curiosidade humana”
(CASCUDO, 1974, p. 18). Os mistérios divinos não pertenciam aos homens. Importava o
para quê, utilitário, e não os porquês, explicativos. “O homem do Povo é naturalmente,
discutidor, exceto nos assuntos da Fé religiosa” (CASCUDO, 1974, p. 25).
Nos próximos tópicos serão analisados alguns capítulos de Religião no Povo, que se
relacionam às condutas e crenças comuns na religiosidade brasileira.

4.1.1 Às almas

No capítulo “Santas almas benditas”, Cascudo discorre sobre a concepção de alma do


povo brasileiro, retomando, para isso, narrativas e fatos da história da humanidade. Segundo a
60

devoção popular, “a alma é uma invisível contiguidade humana, inseparável da terra pelo
hábito, e fora dela pela destinação mortal” (CASCUDO, 1974, p. 31). Consiste em um
espírito incorpóreo, detentor de funções orgânicas (audição, tato, voz, memória, visão e
raciocínio), e aparenta forma humana “vaporosa, espessa, fumo branco, transparente,
indecisamente luminoso, de contorno definido e normal” (Ibidem).
As almas disformes e assustadoras são enviadas pelo Diabo e as demais cumprem
missões de Deus na realização de penitências quando vivos, no intuito de salvarem-se na vida
eterna. Não têm, portanto, autonomia nos deslocamentos. No cumprimento das penitências,
podem assumir forma animal como “(...) cavalos, éguas, bois, expandem em relinchos e
mugidos autênticos as culpas antigas” (Ibidem), que, se praguejadas, têm sua pena aumentada.
Segundo Cascudo, não é comum as almas brasileiras tomarem formas de vegetais como na
Grécia antiga e na tradição italiana, à exemplo de Dante, que descreve grandes árvores como
hospedeiras de espíritos em penitência.
No início do século XIV, o Papa Clemente V, por meio de um decreto no XV Concílio
Ecumênico em Viena, definiu “ter a alma racional unicamente a forma humana” (CASCUDO,
1974, p. 32), e considerou heréticos os que não a concebiam desse modo. Apesar da medida, o
povo manteve a heterodoxia morfológica do pensamento anterior ao decreto, o que, para
Cascudo, caracteriza a continuidade imutável da lógica coletiva.
Por sua vez, as almas do inferno não cumprem penitência na terra. “O Demônio não
tem poder de retirá-las, mesmo momentaneamente” (Ibidem). A sentença definitiva não
permite, assim, que as almas deixem o recinto. A aparição assustadora provém do purgatório,
“excitando piedade, provocando orações pacificantes ou sugerindo, pelo sofrimento exposto, a
contrição corretora da conduta” (Ibidem)
Outra categoria de alma com aparição turbulenta e assustadora diz respeito às almas
perdidas, que não subiram ao céu ou desceram ao purgatório. “São os espíritos malfazejos”,
errantes por não terem sido sepultados ou por outras razões que o povo desconhece, que “(...)
ficam vagando pelos recantos onde viveram, numa temerosa irradiação de tremuras e calafrios
circunjacentes” (Ibidem).
O exorcismo dessas visões dá-se pela exposição de crucifixos ou mesmo no gesto de
cruz feito com os dedos. Vale fechar os olhos, interrompendo a “comunicação magnética”
com o assombro. Frases com evocação de santidades e rezas também apresentam funções
afastadoras. “Alma não ousa falar, interrompendo oração” (CASCUDO 1974, p. 34).
A hermenêutica popular é diversa e, segundo Cascudo, têm raízes profundas, lógicas,
emocionais. O merecimento do sofrimento é seu fundamento, uma vez que Deus valoriza os
61

que sofrem. “É a lição de todos os místicos. As pessoas com moléstias incuráveis,


prolongadas, dolorosas, fazem penitência no mundo, diz o povo, e gozam de uma espécie de
graça particular. Deus provando-as em vida dará subidos prêmios no céu” (CASCUDO, 1974,
p. 36). As almas do purgatório sofrem, mas não estão condenadas; pagam por seus pecados e
não podem pecar mais. À medida que se purificam, se aproximam de Deus.
Atesta-se que há diferenças na composição dos espíritos de mortos cristãos e pagãos.
As almas batizadas são direcionadas ao paraíso, purgatório ou inferno; as demais vagam
perdidas e desesperadas. Cascudo retorna à Roma e aos gregos para explicar tais diferenças.

O espírito dos mortos cristãos tem composição diversa da alma na Roma pagã. O
espectro romano, esquecido pela família, sem alimentos oblacionais, sem lembrança
religiosa e doméstica na Ferália, Parentália, Lemurália, especialmente sem túmulo,
tornava-se malfazejo, perseguidor, vingativo, derramando pavores irresistíveis,
acompanhando Hécate nas noites de lua, seguida pelo cortejo dos cães uivantes. (...).
As almas romanas e gregas não podiam ser emissárias dos deuses porque estavam
em desespero, tentando obter, pela imposição do terror, um lugar para os ossos e um
momento de pacificação reparadora (CASCUDO, 1974, p. 37).

A fase mais intensa do início do povoamento do Brasil pelos portugueses coincide


com o Concílio de Trento (1545-1563). A dogmática tridentina afirmava a existência do
purgatório e a legitimidade das indulgências e tornava lícita a invocação aos santos. Era
tradicional a compaixão às almas, mas depois de Trento, a comiseração passou a ser dever
ortodoxo. Jurar pela alma para o povo era jurar por coisa séria. “Alma tornou-se uma entidade
de supremo respeito. O juramento mais sagrado, e raro a proferir-se, era: - Juro pela salvação
da minh´alma!” (CASCUDO, 1974, p. 46).
Segundo a crença popular, e contrariando as noções dogmáticas, as almas cumprem
penitência onde pecaram. “As ‘aparições’ estão desempenhando mandatos de confiança
divina, mensageiras de advertências, súplicas de satisfações não cumpridas, promessas não
pagas...” (CASCUDO, 1974, p. 50).
A interseção das almas na terra deve ser crença posterior ao século XVI, segundo
destaca Cascudo. Inúmeros contos populares europeus se espalharam pelo continente
americano com variantes. A partir da análise de diversos relatos, o autor expõe algumas
histórias ouvidas por ele mesmo e por seus fiéis informantes de aparições de almas das mais
diversas. Há nesses casos a influência de personagens dessa e de outras terras longínquas no
tempo e no espaço.
62

(...) surgem no Brasil fantasmas que constituem tradições da Europa fidalga, figuras
com nobres pergaminhos testificadores da ancianidade crédula. Espectros já velhos
quando São Luis, Rei da França, vivia. Viajaram mais nas mentes que nos olhos.
Denunciam finalidade benéfica pela ausência de aspectos monstruosos, impressões
terríficas, consequências dolorosas. São “almas em pena” há mais de sete séculos
pertencentes às imaginações aristocráticas da Idade Média. Agora participam do
humilde patrimônio anônimo do Povo brasileiro, fielmente transmitidos
(CASCUDO, 1974, p. 54).

Ao contrário de Portugal, no Brasil não houve culto tão intenso e complexo como o
das Alminhas10 em terras lusitanas. Segundo o autor, o cenário influencia nessa dinâmica de
aparições sobrenaturais. As noites frias, com reuniões familiares ao pé da lareira, são
condições favoráveis no avivamento das tradições. O calor brasileiro seria, nesse sentido,
responsável por uma certa dispersão.

As almas têm poucas oportunidades de intervenção, exceto nas regiões do interior,


com a população em residências espalhadas, zonas agro-pastoris, onde há caminho
escuro e deserto para alcançar a casa. O cenário é uma provocação invocadora do
complemento sobrenatural (CASCUDO, 1974, p. 58).

As crenças, portanto, sobrevivem, modificando-se conforme as condições locais. O


processo metodológico de Cascudo segue esse caminho, partindo de assimilações e
cruzamentos de dados e observando as modificações de cada lugar.

4.1.2 Ao morto

A imortalidade da alma era crença comum aos negros africanos e indígenas; contudo,
a ideia da vivência do morto é produto dos portugueses. Em Anúbis e outros ensaios,
Cascudo (1951, p. 13) faz um estudo minucioso desse culto, referindo-se ao deus dos mortos
da seguinte forma:

desde a mais remota civilização do Delta houve no Egito um deus popular, mais
venerado em determinada região, mais conhecido e amado por toda a terra sagrada
que o Nilo atravessa. Era ANUBIS. Nos mais velhos documentos arqueológicos de
Mênfis, quando a divindade não se materializara em imagens, quando Osiris, o deus
funerário, não possuía representação, já aparecia Anubis, guarda da Casa Eterna dos
Mortos, quarenta e cinco séculos antes de Cristo.

10
Culto tradicional em Portugal às almas do purgatório. Alminhas são pequenos altares espalhados por estradas e
encruzilhadas para as quais se direcionam as orações.
63

Ele enfatiza a presença e a perenização do culto e da representação da morte desde a


colônia, influenciada pelo pensamento greco-latino, povos herdeiros de Moisés, que passaram
pelo Egito trazendo o mito. O povo de Moisés, segundo o autor, disseminou histórias e
influências por todo o mundo. No prefácio do livro, justifica sua pesquisa constatando a
continuidade das práticas mortuárias presentes ainda em seu tempo, herança de povos
longínquos. “O culto dos mortos, os vestígios egípcios, mesmo diluídos nas águas vivas de
outras tradições continuam no Brasil à sombra de Anúbis” (CASCUDO, 1951, p. 16). Segue,
então, com referências e pontos de contato, analisando o nome do cadáver, o velório, o
enterro, a sepultura, o luto, o julgamento e fazendo relações com o folclore e os hábitos dos
portugueses, espanhóis, franceses e as respectivas transfigurações: São Miguel, protetor das
Almas, confusamente Xangô nas macumbas cariocas e Oxóssi no candomblé baiano.
Permanece no povo, o dever do perdão, que deve ser concedido pelo morto aos que em
vida têm culpa. O morto tem, assim, a função de julgar e se comunicar de alguma maneira,
seja por sonhos ou sinais exteriores.
Na mentalidade popular árabe o rei criminoso e adúltero só poderia ser julgado pela
própria vítima, e não por Deus. Da mesma forma, “nas estórias brasileira, portuguesa,
espanhola, o réu é sentenciado pela morta e nenhum sacerdote ousa absolver ou condenar. O
Morto é juiz!” (CASCUDO, 1974, p. 118).

4.1.3 Ao Diabo e às pragas

Embora a ordem ortodoxa contemporânea tenha desmoralizado a possessão das almas


pelo Diabo, o povo o mantém em seu cotidiano. Cascudo cita como amenizadora dessa
situação a proclamação teológica e científica da entidade como o Anjo Negro detentor da
“inocência funcional na descendência de Adão”. (CASCUDO, 1974, p. 165). No interior do
Brasil, o Diabo age e vive disseminando ideias e atitudes malignas que, para o povo, são
claramente produto de forças sobrenaturais. A Igreja transfere os casos de possessão à
psiquiatria, “que deliberará sobre a Intenção, razão-de-ser do comportamento” (CASCUDO,
1974, p. 166). Permanece, contudo, a ideia popular do “diabo no corpo”, expressão utilizada
até os dias atuais. Cascudo acredita na imutabilidade dessa doutrina popular, mesmo que a
ciência não dê crédito às questões sobrenaturais.
64

A lição, recebida do Oriente e que permanece há mais de 50 séculos, dita que as


mortes súbitas são castigo de Deus e as demais enfermidades, causas externas condicionadas
pela vontade do Demônio. A expulsão do Daimôn, presente nas doenças, restabelece a saúde
anterior. Os endemoniados participam da história e persistem na memória coletiva popular há
mais de cinco mil anos e, por isso, as práticas exorcistas permanecem e são combatidas com
terapêuticas mágicas, ritualísticas e sagradas. “O Povo, acredita no Diabo!” (CASCUDO,
1974, p. 167).
Ainda com o diabo no corpo, Cascudo cita o hábito comum das pragas rogadas. “E
praguejar seria ‘jurar pelas chagas’” (CASCUDO, 1974, p. 169). Para ele, tal ato evidencia a
intervenção divina na realização de um malefício. “Vai p´rós infernos! Diabos te carreguem!”
Precedidos ou não pela forma recorrente de “Deus permita, Deus seja servido, Deus queira”
(Ibidem).
A voz contém poder e feitiço capazes de evocar o que foi dito, como as lições de
Frazer e Muller. “Sua enunciação, intencional e veemente, pode recriar quanto significa na
essência(...). A palavra dá corpo ao que representa” (CASCUDO, 1974, p. 70). A enunciação
de nomes é potência mágica, mas nem sempre fórmula eficaz, como a ilustrada pelo autor:
“Praga de sapo não faz chover! Se praga matasse não havia soldado. Praga não serve mas
ajuda a raiva” (CASCUDO, 1974, p. 170).

4.1.4 “Santo por Santo o de casa é mais perto”

Há santos universais e regionais. Os universais são considerados regulares, segundo


Cascudo, e os regionais “irregulares canonicamente, mas consagrados pela confiança popular”
(CASCUDO, 1974, p. 96). O povo faz seu santo. A prática da canonização dos santos
populares, e inicialmente não oficiais, é associada pelo autor a atos muito antigos, como o
caso abordado em Dante Alighieri de Pier Pettinaio, homem eleito pelo povo para se tornar
santo.
65

Quando Dante Alighieri visitou o paraíso, o apagado e doce Pettinaio estaria entre os
eleitos de Deus, com o nome de São Pedro Pettinagnolo. Mas esse santo fora eleito
pelo povo e sua canonização decretada pelo governo como uma nomeação
administrativa dentro de sua competência funcional. Em 1328 o Senado de Siena
intimou que todos os habitantes da cidade, sem exceção, comparecessem à igreja de
S. Francisco para assistir à festa de São Pietro Pettinagnolo (CASCUDO, 1974, p.
94).

À exemplo disso, cita-se Padre Cícero, que depois de anos de adoração popular foi
reconciliado pela Igreja Católica. A dinâmica da canonização dos santos consiste em uma via
de mão dupla. Muitas vezes o povo elege informalmente, ou seja, independentemente da
canonização oficial da Igreja Católica, seu santo. Ao mesmo tempo, a Igreja, com o tempo,
absorve a adoração popular, oficializando e adorando esses mesmos santos. Uma fonte nunca
deixa de alimentar a outra.
Constata-se, também, a eleição de santos nas famílias. Os oragos ou padroeiros
responsáveis por defender e zelar pela família, têm a vantagem de já ser conhecido por todos,
o que garante certas regalias e amenizações morais.

A continuidade devocional daria valores emocionais de recordação aos “vultos”


familiares, uma pátina de impressionante prestígio para as orações. Os santos de
casa são sempre entidades concordantes com os seus devotos, espécie de DII
CONSENTES ou DII COMPLICES, demasiados compreensivos e sem maior
análise finalista quanto ao interesse moral das súplicas (CASCUDO, 1974, p. 96).

O povo compreende que se é capaz de eleger seus pontífices e arcebispos, também o é,


por direito, de consagrar seus santos: “Voz do Povo, voz de Deus! O povo está convencido
que lhe assiste o direito dessa indicação sobrenatural, talqualmente possuiu o instinto de
nomear seus velhos tribunos em Roma” (CASCUDO, 1974, p. 98-99). Independentes das
ações canônicas, segue elegendo seus santos, como afirma Cascudo (1974, p. 99): “(...) o
povo, desconhecendo desdenhosamente o Código Canônico, segue funcionando como se
vivesse no século X. Prêcher pour son Saint”.
Diversas práticas são retomadas e analisadas pelo autor, que busca no percurso do
tempo, por meio de registros, suas origens ou, se isso não é possível, seus relatos mais
antigos. Práticas comuns da religiosidade brasileira são, assim, tornadas costumes e hábitos da
sociedade, dentre elas a consulta às vozes, a importância do culto à “Minha nossa senhora”, as
rezas de maior e menor poder, as superstições e crenças, como as consequências de se dormir
na Igreja durante um ato litúrgico. Todas elas são conectadas por Cascudo com práticas muito
anteriores à nossa colonização, em sua maioria heranças europeias, que carregam, por sua vez,
também a mistura e a influência de outros povos.
66

O gesto é a comunicação essencial, nítida, positiva. Não há retórica mímica, apenas


reiteração da mensagem. Essa limitação recorda o inicial uso entre humanos, quando
o metal era pedra e a caverna abrigava a família nas horas da noite misteriosa.
“Aprende com os mudos o segredo dos gestos expressivos”, aconselhava Leonardo
da Vinci. A palavra muda. O gesto não (CASCUDO, 2001, p. 19).

Essa dinâmica de perenidade no tempo, mesmo com os processos adaptadores, é o


cerne da pesquisa de Cascudo, aplicada à dinâmica do folclore, seguindo, com isso, os
mesmos princípios da superstição.

4.2 CONSIDERAÇÕES SOBRE CREDO OFICIAL E CREDO POPULAR

Existe uma distância perceptível entre a fé da Igreja oficial e a fé do povo, entre as


instâncias hierárquicas, da profecia e do ensinamento da Igreja e a fé popular, que abrange a
maior parte da população. Neste tópico, algumas situações que favoreceram essa distinção ao
longo do tempo serão discutidas, utilizando, para isso, considerações de Karl Rahner e
Riolando Azzi, importantes teólogos do século XX.
As precisões teológicas e o acervo doutrinal aumentam continuamente. Desde o
Concílio do Vaticano II produziu-se um vasto material a respeito de temas doutrinais:
cristologia, pneumatologia, eclesiologia, liturgia, ecumenismo, escatologia, moral sexual,
eucaristia, controle de natalidade, bioética, teologia da libertação, método de oração,
interpretação de dogmas etc. Esses problemas teológicos, salvo algumas exceções, não fazem
parte da vida da maioria da população que, por vezes, ignora toda a teoria. O distanciamento
para além da atualidade diz respeito à mesma tradição de fé da Igreja.
O povo, ainda que recorra a diversas entidades, é essencialmente monoteísta. Rahner,
em O Deus Trino, fundamento transcendente da história da salvação (1972), se arrisca a
dizer que “se o dogma trinitário tivesse que ser eliminado como falso a maior parte da
literatura religiosa poderia, neste processo, permanecer quase inalterada” (RAHNER, 1972, p.
285). Isso não ocorre apenas com a literatura, mas também com a fé do povo, que
permaneceria inalterada, já que baseada majoritariamente na tradição oral.
Os santos recebem importância tal qual a divindade suprema. Ao lado de Deus estão
Santo Antônio, São Tiago e outros tantos, não sendo eles inferiores na capacidade de
atendimento: “Deus é uma realidade junto a outras, (o povo) não vê dificuldade, naturalmente,
67

em conceder a Santo Antônio uma magnitude muito considerável, importante e eficaz junto
ao Espírito Santo” (RAHNER, 1969, p. 53).
A incorporação dos santos, por parte dos negros e indígenas, não foi resistente.
Segundo Riolando Azzi, mais ainda que os portugueses, esses povos tinham uma concepção
bem clara da situação do homem imerso no mundo sagrado da natureza. Retomando Roger
Bastide, o autor destaca que a assimiliação dos santos católicos pelos orixás africanos se deu
mediante as seguintes razões:

1º) A relação estrutural entre teologia católica da intercessão dos santos junto à
Virgem, da Virgem junto a Jesus, de Jesus junto a seu Pai e a cosmologia africana
dos orixás, considerados como intercessores do homem junto a Olorum.
2º) A relação cultural da concepção funcional dos santos que presidem cada qual a
uma atividade humana ou que estão encarregados de curar tal ou qual tipo de
doença, e a concepção funcional dos Voduns ou Orixás, que dirigem um setor da
natureza, ou que são, do mesmo modo que os santos, protetores de confissões, a de
caçador, a de ferreiro, a de guerreiro, etc (BASTIDE apud AZZI, 2004, p. 250).

Sendo essa a lógica, pode-se dizer que toda a sociedade colonial, com toda sua
diversidade étnica e cultural, “buscava abrigo sob o manto dos protetores celestes” (AZZI,
2004, p. 250)
Quanto à Maria, esta ocupa um lugar central na fé popular. Vê-se uma intimidade
maior com Nossa Senhora que com o próprio Cristo, o que, de certa forma, abre caminhos do
Novo Testamento aos fiéis. Cascudo reafirma essa predileção, chamando a atenção para a
função materna, que faria de Maria a mais compreensiva das criaturas.

A função materna envolve-a de compreensão, entendimento, misericórdia. O povo


confia na piedade ilimitada de quem trouxe ao mundo a redenção de Cristo. Utiliza o
infalível processo da “exploração” sentimental talqualmente as crianças tudo obtêm
da ternura materna”. (CASCUDO, 1974, p. 80).

Sabe-se que o culto mariano foi difundido e tornou-se a principal devoção dos fiéis
católicos. “Na Península Ibérica passou a ocupar lugar de destaque tanto na Corte como na
tradição popular” (AZZI, 2004, p. 215). Essas manifestações remontam a uma tradição
pré-cristã, com influência da antiga religião céltica. Para além do catolicismo e seus dogmas,
no culto mariano há “um fundo naturalista, antiquíssimo, vindo de sua religião arcaica,
primevamente ligada à Terra-Mãe (...) até às celebrações festivas de fertilidade, em coloração
telúrica” (COSTA apud AZZI, 2004, p. 215).
A expansão do culto mariano se deve, portanto, à capacidade de Maria, de acordo com
os fiéis, em atender às necessidades da população colonial bem como a de seus colonizadores.
68

Na crença popular, a devoção ela assumiu características humanizadoras muito marcantes,


diferenciando-se da imagem altamente devocional da Idade Média, na qual a imagem
hierática ampara de longe o filho de Deus. Ao contrário, Maria é a mãe que acolhe Cristo no
colo e abraça-o.
O grande reforço a tal culto chega no Brasil com os franciscanos nas últimas décadas
do século XVI e com o grande número de templos dedicados à Conceição Imaculada de
Maria. Cabe destacar também que seu culto, além de igrejas e capelas, ocorria nos nichos e
capelas dos engenhos e em pequenas ermidas no alto dos morros, com diversificadas imagens
da mesma padroeira.
A imagem de Deus disseminada pelos colonizadores, ao contrário, foi, seguramente, a
de um Deus distante e cruel, capaz de castigar os que não respeitavam a doutrina imposta. A
dogmática autoritária e demasiadamente diversa do universo indígena e negro foi, por si só,
capaz de gerar maior simpatia por Maria e os santos. Esse mesmo Deus era causa e motivo da
escravidão e do massacre de grande parte da população. O catecismo foi aprendido e
memorizado, mas a maior assimilação ligava-se, sobretudo, aos ritos sacramentais, às festas
litúrgicas e às devoções secundárias.
A seleção supracitada tem, portanto, sua lógica. Mediante um Deus distante e cruel,
símbolo dos conquistadores violentos, o povo buscou ajuda, refúgio e consolo em mediadores
e na misericórdia de outros deuses, responsáveis por interceder por eles junto ao Deus Todo
poderoso dos conquistadores. Sobretudo Maria ganha destaque nas devoções, sendo ela a
transfiguração do rosto materno de Deus. Essa característica não se restringe ao caso
brasileiro, mas percorre a América Latina, sendo a intensa devoção a Virgem de Guadalupe
um exemplo disso.

4.3 NINGUÉM É, NEM DEIXA DE SER

Como já estudado no primeiro capítulo, Cascudo viveu em um ambiente cercado por


inúmeras superstições e crendices populares. Para ele, a superstição constituía-se como uma
das indagações mais sedutoras no âmbito da cultura popular. A percepção de que as histórias
ouvidas na infância eram reminiscências de tempos muito distantes fez com que todo o seu
trabalho ganhasse uma unidade argumentativa partindo desse princípio. A concepção de
folclore segue, para ele, a mesma lógica supersticiosa.
69

Por meio de registros milenares, por assimilações e analogias, Cascudo percebeu que
as superstições são uma constante na história dos povos, modificando seus trajes para se
adaptar às necessidades locais, mas permanecendo em conteúdo.

Surpreendia nos livros venerando a solução que a fé transmite à confiança devota,


revendo-a nos humildes servos familiares, pobres, analfabetos, tímidos. Davam-se
explicações misteriosas que eram oráculos, ditados pela musa pitonisa da tradição. A
literatura greco-romana parecia-me repetir, no infinito do tempo, as vozes mansas do
meu povo fiel. Era uma transmigração afetuosa. Almas de Atenas, Tessália, ilhas do
Egeu, Siracusa, Roma, Cartago, sibilas, áugures vestais, arúspices, falando como Tia
Lica, seu Nô, Bibi, João Medeiro. Frases curtas, decisivas, cheias de sabedoria
hermética: - Faz mal! Não dá certo! Atrasa! É o contra! Ao catecúmeno não se
explica. Aconselha-se, orienta-se, corrige-se. Era um limiar sagrado com as névoas,
os silêncios, as compreensões inacessíveis aos neófitos, trêmulos e crentes nos adros
da iniciação (CASCUDO, 1971, p. 147).

A sobrevivência de cultos desaparecidos é revelada em atos que remontam a um


tempo sem origem exata, mas que continuam a existir até mesmo nos dias atuais. Segundo o
seu Dicionário de Folclore, as superstições

resultam essencialmente do vestígio de cultos desaparecidos ou da deturpação ou


acomodação psicológica de elementos religiosos contemporâneos, condicionados à
mentalidade popular. São milhões de gestos, reservas e atos instintivos,
subordinados à mecânica do hábito, como gestos reflexos. As superstições
participam da própria essência intelectual humana e não há momento na história do
mundo sem sua inevitável presença (CASCUDO, 2002, p. 648).

Fórmula eficaz no afastamento dos males, ela precedeu e caminhou paralela às funções
religiosas: “Quando afirmamos a origem religiosa da superstição, excluímos a unidade
criadora, porque ela decorre, como um imenso rio, da coordenada imprevisível de afluentes”
(CASCUDO, 1971, p. 151). A finalidade da proteção é comum em ambas as esferas, não
havendo, nesse sentido, grandes diferenciações, assim como na Roma Antiga o fanun no
espaço rural coexistia ao templum:

O fanum determinou o fanático, ardente, teimoso, com o orgulho de uma ortodoxia


bem diversa, possuindo interpretações, testemunhos, intervenções sobrenaturais sem
a dependência dos sacerdotes regulares, respeitados mas inoperantes naquela outra
área sagrada. Como um missionário capuchinho no arraial de Canudos, de Antônio
Conselheiro. Do Templum podiam nascer superstições pelo processo modificador da
imaginação popular, alheia às sutilezas da casuística. O fanum foi uma outra fonte
de vulgarização a serviço do entendimento comum. Do templum desciam as águas
de nascentes serenas, curso normal e conhecido desde as cabeceiras. Do fanum
rumorejavam as torrentes criadas pela fé tempestuosa, entrechocando-se na
variedade das opiniões devocionais (CASCUDO, 1971, p. 151).
70

Desse modo, a mobilidade das classes sociais é fator determinante na dinâmica


supersticiosa. “Plebeu e nobres, mudando de ‘estado’, espalhavam no novo ambiente suas
crenças” (CASCUDO, 1971, p. 150).
A superstição seguiu, pois, um caminho contínuo de transmissão e contágio,
agregando conteúdos de contextos diversos. No entanto, permanece, não sendo possível sua
extinção. Mesmo o cientificismo estruturado no pensamento racional não é capaz de eliminar
a prática supersticiosa, que se “ajusta psicologicamente aos elementos religiosos
contemporâneos, sempre condicionados a mentalidade popular” (Ibidem). Mais que atos
intencionais, a superstição está relacionada a atos reflexos, como as práticas gestuais
intencionais ou instintivas acionadas em um momento de insegurança, surpresa, medo etc.
“Permanecem no automatismo mímico, frases afastadoras do mal, ou renúncias denunciando
os limites lícitos das devoções diluídas no tempo. É um reflexo associado” (Ibidem).
Exemplos como dedos cruzados, figa e sinal da cruz são gestos que surgem sem que
entendamos o processo neles envolvidos.
Cascudo também estuda sobre os gestos em História dos nossos gestos (2001), no
qual investiga a importância da articulação gestual na comunicação humana. Antes da voz, o
gesto, primeira linguagem do homem, é mais fiel que a palavra, que se modifica conforme o
dialeto. Para ele, o gesto carrega inalterável a história da comunicação humana.

O gesto é a comunicação essencial, nítida, positiva. Não há retórica mímica, apenas


reiteração da mensagem. Essa limitação recorda o inicial uso entre humanos, quando
o metal era pedra e a caverna abrigava a família nas horas da noite misteriosa.
“Aprende com os mudos o segredo dos gestos expressivos”, aconselhava Leonardo
da Vinci. A palavra muda. O gesto não (CASCUDO, 2001, p. 19).

Há muito do gestual, que ultrapassa a finalidade religiosa, e permanece sem restrição à


cultura popular: aplausos, acenos, dar bananas, morder os dedos... O caminho de Cascudo
nesse livro já é conhecido – a origem do gesto -, mesmo não sendo possível precisar datas,
percebendo coincidências da anterior presença na comunicação humana. Eles também fazem
parte do acervo supersticioso pesquisado pelo autor.
Apesar do automatismo e dos atos instintivos, a superstição nesse contexto não é
considerada ato irracional, ilógico, mas algo que está além da racionalidade, integrando-se aos
atos reflexos. “Esse movimento instintivo, obscuro, poderoso, está muito além do raciocínio e
se integra na intimidade misteriosa dos atos reflexos” (CASCUDO, 1971, p. 152).
A concepção de Cascudo é diversa em certos pontos da questão apresentada pelo
filósofo Baruch de Espinosa (1632-1677), no Tratado Teológico Político (1670), no qual são
71

expostas as suas ideias a respeito da superstição. Tomemos como exemplo a comparação e,


para isso, serão mobilizados alguns autores que se encarregaram da questão referente à
superstição em Espinosa, no intuito de facilitar o entendimento.
No prefácio da obra citada, o filósofo concebe o medo como a principal causa para o
surgimento das superstições.

Embora esse sentimento seja a causa, não são todos os tipos de medo, mas um em
particular: o homem torna-se vulnerável às superstições em momentos de
insegurança perante as adversidades da vida, a perda de bens materiais ou mesmo da
impossibilidade de alcançá-los, abandonando, dessa forma, a razão.

Se os homens pudessem, em todas as circunstâncias, decidir pelo seguro ou se a


fortuna se lhes mostrasse sempre favorável, jamais seriam vítimas da superstição.
Mas como se encontram frequentemente perante tais dificuldades que não sabem
que decisão tomar, e como os incertos benefícios da fortuna que desenfreadamente
cobiçam os fazem oscilar, a maioria das vezes, entre a esperança e o medo, estão
sempre prontos a acreditar seja no que for: se têm dúvidas, deixam-se levar com a
maior das facilidades para aqui ou para ali; se hesitam, sobressaltados pela esperança
e pelo medo simultaneamente, ainda é pior; porém se estão confiantes, ficam logo
inchados de orgulho e presunção (ESPINOSA, 2003, p. 5).

É, então, devido à impotência para a resolução dos próprios infortúnios que a


superstição toma o lugar da razão. O homem, dependente de bens econômicos, de cargos
honoríficos e dos objetos de prazer, vê-se exposto à própria inconstância da fortuna, de
obtenção e perda, que fazem oscilar os sentimentos de esperança e medo: “(...) os bens
incertos da fortuna que imoderadamente desejam os fazem oscilar, na maioria das vezes, entre
a esperança e o medo...” (ESPINOSA, 2003, p. 5). O ânimo supersticioso é, segundo ele,
regido por essa dinâmica da fortuna, de ciclos de esperança e medo, de posse e privação,
oscilando entre a prosperidade e a adversidade. André Menezes Rocha (2008, p. 85) também
discute essa questão:

quando estão de posse dos bens da fortuna que amam sem moderação, os homens
supersticiosos se tornam vaidosos. Se, porém, começam a perder tais bens, sua
vaidade vai se transformando em tristeza, em medo de perder mais bens e em
esperança de ganhar. Se as perdas continuam, a tristeza ressentida cresce, o medo se
torna pânico. Esse medo inflamado, dominando afetivamente o ânimo preso à
ausência dos bens de fortuna almejados, consiste na causa da superstição.

O fracasso do homem diante da busca pelos bens incertos gera o desespero e,


consequentemente, o medo. Dessa forma, o entorpecimento distorce a ideia adequada do real
que o homem faz de si mesmo e de Deus. Quando não é capaz de salvar a si próprio implora o
auxílio divino, alegando a incapacidade da razão em indicar-lhe uma saída segura em direção
ao que deseja. Em contrapartida, os sonhos e os devaneios da imaginação parecem-lhe
72

respostas divinas. Contudo, para Espinosa, a imaginação não é uma forma de conhecimento
totalmente confiável, sendo, assim, incapaz de fornecer uma ideia adequada do real, mas
responsável por criar imagens confusas das coisas, tornando o homem impossibilitado de
compreender as leis naturais que regem o mundo e todas as coisas.
Ademais, o medo para Espinosa está relacionado à nossa potência de agir. Segundo
ele, o homem é definido por suas propriedades físicas, mas também por sua atividade.
Diversos elementos afetam nosso corpo, elevando ou diminuindo nossa potência de agir. “O
corpo humano pode ser afetado de numerosas maneiras pelas quais a sua potência de agir é
aumentada ou diminuída; e ainda, por outras que não aumentam nem diminuem sua a potência
de agir” (ESPINOSA, 1997, p. 285).
A ação do homem é diminuída pelo medo, atribuído ao ato de imaginar algo que existe
exterior a ele e que, tendo uma força arbitrária maior que a sua, é capaz de destruí-lo.
Imaginando que sua potência não seja capaz de vencer esse outro campo de força, o homem,
inseguro e vulnerável, busca sustentação na religião supersticiosa, na tentativa de manter seu
equilíbrio. O homem vulnerável pelo medo se torna, portanto, facilmente manipulado e
dominado por outrem: “[...] não há nada mais eficaz do que a superstição para governar as
multidões. Por isso é que estas são facilmente levadas, sob a capa da religião, ora a adorar os
reis como se fossem deuses, ora a execrá-los e a detestá-los como se fossem uma peste para
todo o gênero humano” (ESPINOSA, 2003, p. 7).
Tomado pelo pavor e, por isso, privado da razão e da capacidade de enxergar as coisas
como elas realmente são, o homem supersticioso não é livre. A liberdade em Espinosa é
definida pela capacidade do homem de agir sem qualquer tipo de constrangimento. Deus é
livre por não ser constrangido por nenhum fator externo a ele mesmo. Sendo assim, aquele
que se encontra sob o domínio do medo, ancorado pela superstição, está condicionado à
servidão.
A ideia inadequada de uma potência superior ao homem, capaz de dominá-lo e,
possivelmente, destruí-lo o leva a buscar fora da razão e da natureza certezas que acalentem
seus anseios. Esse amparo é encontrado, então, na religião. Sobre essa questão, Marilena
Chauí (2003, p. 11), com base em Espinosa, reafirma que “por medo e esperança, nascidos da
impotência para dominar as circunstâncias de suas vidas, os homens se tornam supersticiosos
e alimentam a superstição por meio da religião como crença em seres transcendentes ao
mundo e que o governam segundo decretos humanamente incompreensíveis”.
73

Vale ressaltar que a crítica de Espinosa à religião refere-se às concepções proferidas


pela teologia. A dificuldade do vulgar11 em aceitar que é possível conhecer Deus pelos
caminhos da luz natural torna o homem suscetível a crer nas narrativas proféticas
impregnadas de superstição. O filósofo trata com minúcia a figura do profeta e o papel da
teologia, expondo a relação direta com o campo político, que não pode ser ignorada. A ação
dos profetas de maneira alguma pode ser considerada deliberada. Uma vez vulnerável e
inseguro, o vulgar seria facilmente dominado pela teologia, que conserva o medo e a
esperança, submetendo o homem aos desígnios divinos.

A teologia é a teoria imaginária da contingência. Centrada na imagem de uma


vontade onipotente e transcendente que cria e governa o mundo, a imaginação
teológica propõe explicações que conservem o medo e a esperança, pois deixam
cada um dos humanos suspensos aos desígnios imprevisíveis de um poder altíssimo;
e propõe códigos de conduta em que a vontade humana se submete à divina pela
mediação daquele que afirma saber interpretá-la, isto é, o teólogo (CHAUÍ, 2003, p.
9).

A religião teologizada funciona como uma moral para o vulgar, que a considera uma
porta de salvação para sua impotência. A magia, no caso, exerce uma força significativa na
mente desses homens, evitando uma possível ira divina capaz de destruí-los. A incapacidade
de conceber adequadamente Deus como potência presente em toda parte faz com que o
vulgar, que precisa de uma autoridade, se contente com o conteúdo da palavra profética,
criando, assim, uma relação de dependência em relação às ilusões das narrativas bíblicas. Isso
torna os homens obedientes e dominados por aqueles considerados capazes de interpretar as
narrativas.
Em síntese, compreende-se que para o filósofo a superstição consiste em um desafio à
razão. O vulgar, ao considerar as superstições como verdadeiras, cria uma visão distorcida da
realidade e é, a todo momento, constrangido por fatores externos, diminuindo, assim, sua
capacidade de agir em liberdade. Há em Espinosa uma visão claramente negativa com relação
à superstição, que envolve toda a crítica proferida às religiões reveladas ou mesmo a qualquer
forma de irracionalismo seja na religião, política ou filosofia.
A abordagem de Luís da Câmara Cascudo é, até certo ponto, diversa da de Espinosa.
Enquanto a superstição é tematizada por ele no âmbito filosófico e político, Cascudo
apresenta uma abordagem sociocultural ancorado na etnografia e na historiografia. Há,
contudo, divergências e convergências entre as concepções.

11
Espinosa usa o termo vulgar para se referir aos homens do senso comum.
74

Espinosa considera a superstição, no contexto de sua crítica à religião revelada, como


negativa, uma vez que ela distorceria a realidade, impedindo o homem de agir em liberdade.
Cascudo não analisa de forma valorativa o caráter supersticioso, mas aponta para a sua
perenidade, ocasionada pelo mesmo princípio proferido por Espinosa: o caráter defensivo,
movido pelo medo de algo supostamente maior e fora do controle do homem.
Uma advertência de Cascudo para o estudo da superstição, que diverge da concepção
espinosiana, é justamente afirmar a lógica do fenômeno. Deve-se indagar pela estrutura íntima
desses atos à primeira vista banais, mas que outrora foram sabedoria doutrinal. “Começar do
princípio para o fim e não do fim para o princípio” (CASCUDO, 1971, p. 146). A ideia
ilógica dessa prática é combatida pelo autor com o argumento de que os atos pertencem à
vontade individual, que têm uma lógica clara e necessária.

É uma solução dependente da vontade individual. Farás tal ato para tal resultado. E
também se associa uma outra lógica, pré-lógica ou hiperlógica, de sentido oculto,
incompreensível mas real e que deve possuir efeitos decisivos, embora escapando à
percepção do homem. Essa fase escura, tenebrosa, cheia de forças imprevisíveis, é a
que mais atrai no ritmo da realização e da esperança. Fundamenta-se na confiança de
poder dispor, evitar, afastar, dispensar, aproximar as grandezas imortais, fazendo-as
ou tornando-as acessíveis e dóceis aos interesses pessoais, do agente supersticioso
(CASCUDO, 1971, p.155).

A ciência como meio de dissolução das superstições como em Espinosa, que as


considera fator negativo na ação independente do homem condicionada aos fatores externos, é
berço de inúmeras superstições. Mesmo desqualificando a validade de qualquer aspecto
sobrenatural da existência humana, a ciência carrega, segundo Cascudo (1971, p. 154), um
corpo supersticioso.

A superstição vale crédito, de credere, acreditar. Que é um “conceito” senão uma


superstição, imperativa e renovável? Não creiam que a superstição, esteja cedendo
sob a pressão científica. Muda de continente e não de conteúdo. Há uma superstição
científica que segue como uma sombra a irmã formal e grave, vez por outra
confundindo-se notadamente no domínio da interpretação psicológica. As “escolas”,
e sobretudo o scholar, guardam muito de imponência através do aparato
supersticioso. A propaganda é uma fórmula supersticiosa, impondo aceitação antes
da evidência.

Importante destacar que a ação supersticiosa não é criadora, mas repetidora de algo
que se transmite permanentemente através do tempo. Se as discussões sobre as forças externas
de Espinosa forem consideradas, a superstição conceituada por Cascudo é plenamente
compatível.
75

O supersticioso apenas obedece a mecânica de processos milenares, escapando ou


dispensando, totalmente, a colaboração do raciocínio contemporâneo. É preciso
atentar para a ancestralidade funcional supersticiosa e a nenhuma intenção criadora,
e sim repetidora, em sua utilização (CASCUDO,1971, p. 166).

A liberdade em Espinosa é defendida justamente pelo ato de criar do homem,


enquadrada no terceiro gênero do conhecimento. Nesse sentido, a superstição, claramente,
para ambos os autores, não age em favor da criação, logo, da liberdade proferida por
Espinosa. Se a superstição não pode ser extinta, como diz Cascudo, a liberdade conceituada
pelo filósofo é impossibilitada, mas essa questão é tema para um outro estudo.
Cascudo não acredita que haja contribuição individual contemporânea para a criação
de novas superstições. Os gestos e as fórmulas que afastam o azar ou dão sorte são, em sua
maioria, recriações dos mesmos processos antigos adaptados às novas condições. Não há total
impossibilidade de se criar uma nova superstição, mas isso exige o que ele chamou de quarta
dimensão, resultado da “capitalização de hábitos na invariável insistência da mesma reação,
até a mecânica do reflexo” (CASCUDO, 1971, p. 172). O tempo é fator imprescindível na sua
consolidação.
O popular adere com simpatia à prática supersticiosa, vivendo-a sem, contudo,
questioná-la. O maravilhoso na aceitação coletiva é mais lógico que o natural. A possibilidade
do milagre e a intervenção sobrenatural consistem, para o autor, em uma base homogênea e
confiante no direcionamento de súplica aos poderes ocultos ou sobrenaturais. Sem mais
alternativas, apela-se para os ritos protetores, amuletos, rogativas, rezas, feitiços. Não há
contradição nas diversas pertenças religiosas do homem do povo brasileiro, consistindo em
prática comum a dupla ou tripla pertença religiosa.

Não há, intimamente, a menor antinomia no homem do povo dirigir-se ao babalorixá


e depois comparecer, orante e contrito, a uma cerimônia religiosa ortodoxa. As mais
antigas e prestigiosas mães-de-terreiro na cidade do Salvador, Bahia, eram e são
católicas, pertencentes às irmandades e com enterro sob benção litúrgica. Xangô,
Egum, Iemanjá não tem poder de afastar nenhum dos seus devotos do Paraíso dos
brancos (CASCUDO, 1971, p. 153).

A característica acumuladora e agregadora comum nos negros africanos que vieram


para o Brasil é estruturadora dessa dinâmica popular. Fé e proteção nunca são demais. A
exemplo disso, observa-se objetos em que há fusão de símbolos, como a cruz com figas na
extremidade, comuns na Bahia, e medalhas do Senhor do Bonfim, com figas e patas de
coelho. Os amuletos, inicialmente utilizados com ação protetora, ganham outros significados,
como a simples ornamentação. Vale ressaltar que a indústria se apropria muitas vezes desses
76

objetos, que ganham mais o status de enfeite que propriamente de proteção, unindo, com isso,
o útil ao agradável. De toda forma, as novas práticas não excluem as anteriores, ainda que não
sejam nítidas a consciência de sua existência e finalidade.
A lógica da superstição, para Cascudo, detém-se no caráter de defesa coletiva ou
individual presente em todos os tempos e condições. As necessidades humanas e sua
impotência frente a determinadas situações geram uma procura às práticas supersticiosas. “A
superstição determina uma hiper-sensibilidade, percepção de suspeita de reações punitivas dos
ofendidos, pela via mágica. O homem pressente presságios por toda parte” (CASCUDO,
1971, p. 165).
A superstição se mantém e se atualiza em um processo de adaptação constantes. “O
que atualiza uma superstição é o fascínio miraculoso de sua força de adaptação. A esparsa e
confusa galharia disfarça a verdadeira articulação ao mesmo tronco e esse a projeção da única
raíz terebrante” (CASCUDO, 1971, p. 172). Velhas superstições ganham novas modelagens,
mantendo um fio original:

as superstições dos modernos chauffeurs são permanências das abusões dos velhos
cocheiros dos carros de aluguel, nas últimas décadas do século XIX. Os primeiros
fregueses, os primeiros encontros durante a marcha, grupos, transeuntes isolados,
trajes, funções sugerem as mesmas impressões, associando-se às antigas prevenções
dos condutores de tílbure, caleche, coupé, a sege do tempo de Machado de Assis.
Nunca foram ouvidos mas conservariam algumas reminiscências dos defuntos
colegas das cadeirinhas e serpentinas do século XVIII (CASCUDO, 1971, p. 172).

Exemplos diversos são dados pelo autor no intuito de explicitar a presença


supersticiosa e de, principalmente, considerá-la como prática comum de todas as classes
sociais, todas as idades, em todas as esferas. A ideia da associação limitante da superstição
como prática de ignorância é por ele combatida:

não me parece lógico considerarmos a superstição como índice de retardamento


intelectual quando verificamos a existência em potencial desse fermento,
independentemente de processos de aquisição pessoal. Ninguém procurou decorar,
acreditar e exercer um ato supersticioso, com intenção deliberada. Não se nasce
supersticioso. Disse que era reflexo associado. Digamos ser um vício sugerido pela
emanação ambiental. Depois torna-se hábito, aparentemente congênito, como certos
ergares nervosos (CASCUDO, 1971, p. 181).

Portanto, todos os indivíduos estão suscetíveis e contêm uma parte, menor ou maior,
de superstição. Olavo Bilac, Santos Dumont, Mário de Alencar, Joaquim Nabuco, o Barão do
Rio Branco, Afrânio Peixoto e outros tantos homens reconhecidos pelo cânone cultural foram
pessoas as quais Cascudo se referiu como supersticiosas. O teatro, a televisão, o cinema e a
77

esfera dos esportes são campos férteis da propagação supersticiosa que se encontra enraizada
em seus agentes.

Pelo teatro, televisão e cinema a superstição talvez possua um dos reinos mais
poderosos, dominadores e sólidos. Haverá ator ou atriz sem uma mascote? Sem a
desconfiança em algo que ajuda ou atrasa? Objetos e atos são inevitáveis, públicos
ou discretos. Pé direito em cena, bater na madeira, rezar, evitar certas cores, roupa
nova, gravatas, sapatos, tais vestidos, encontros que são de azar infalível, frases
soltas ouvidas sem querer e ajustadas ao acaso, trechos musicais casualmente
ouvidos, recebimento de cartas, desaparecimento de jóias, enfeites, cão, gato,
pombo, vistos, ausência de determinado frequentador que dá ou não dá sorte; difícil
gente de palco sem os motivos protetores, mania, predileção auspiciosa, auxílio
mágico. Se infinitas superstições são mantidas na velha forma arcaica, outras
sobrevivem pela convergência, aliança ou fusão com outros tipos. O número 13 foi
excluído das poltronas dos aviões e dos camarotes transatlânticos, reaparecendo 12-
A ou 12-bis, cautelosamente. (...). Sabemos em técnica de propaganda, que nenhum
produto deva possuir nome contrário a uma superstição (CASCUDO, 1971, p. 173).

Grande parte dos nossos hábitos atuais foram, conforme Cascudo, “gestos religiosos,
comuns e rituais” (CASCUDO, 1971, p. 176). Por vezes, a essência religiosa se esvai e
permanece o ato “indispensável e natural às necessidades modernas” (Ibidem). A maneira
secular de se portar diante de determinadas circunstâncias se repete no automatismo do
costume.
A memória, o inconsciente coletivo, o arquétipo junguiano, o saber do povo, a
oralidade são vias de manutenção do costume por meio de símbolos, que são forças atuantes
na latência da piedade e da crueldade do homem. Basta um acontecimento da história, um
estado de angústia, um acontecimento avassalador para que os hábitos, que ficam ocultos,
subam à superfície, retornando com a mesma vitalidade que as originaram. Cascudo retoma
Freud, considerando a superstição “uma percepção endopsíquica” (CASCUDO, 1971, p. 168),
ou seja, mantêm-se viva na memória e, mediante uma situação favorável para a eclosão,
projeta-se “como uma realidade exterior” (Ibidem).
Para esclarecer melhor a concepção de superstição proposta por Cascudo, é necessário
retomar uma de suas descrições metafóricas a fim de ajudar a criar uma imagem do que
significa a sobrevivência dos cultos desaparecidos.
78

Uma rodovia asfaltada, iluminada, com sinais de transito, ladeada de residências ou


de granjas confortáveis, teria sido, inicialmente, uma picada de caça, caminho de
boiadas para as feiras, estradas de transporte pelas récuas de muares e asininos,
carros de bois, automóveis de carga. O solo calcado e batido pelos comboios
animais foi comprimido mecanicamente, coberto de pedras lisas, depois a camada de
asfalto facilitou a velocidade do tráfego pelos motores de explosão. A primitiva
paisagem lateral transformou-se gradualmente, substituindo-se até o aspecto atual. O
eixo alargara-se, corrigira-se, ampliando o raio das curvas e diminuindo o ângulo
dos aclives. Percorrendo-a ninguém mais evoca que por ali corriam veados, pacas e
porcos do mato. Nem a esquecida existência de rancho de palha, casebres de taipa,
abrigando misérias renitentes. A direção útil, coordenada geográfica, orientação
azimutal, não mudaram através do tempo. Sul e norte. Leste e Oeste.
Inderrogavelmente a mesma. A superstição é o teimoso rumo desse caminho. Os
cultos desaparecidos, a vereda de caça inicial (CASCUDO, 1971, p.165-166).

Superstição do latim super-stitio significa aquilo que sobrevive. Da mesma forma,


Cascudo aplica essa fórmula ao folclore, quando constata que a prática folclórica é a presença
do milênio na contemporaneidade. Com isso, afirma a permanência de uma essência universal
que se modifica em aparência conforme a localidade.
Conclui-se, portanto, que superstição não é, como entendia Espinosa, uma lógica
falha, uma lógica-substituta que desapareceria quando fosse implantada a lógica-titular. Ao
contrário, ela faz parte de uma maneira perene de interpretar o mundo, uma das formas de
compreensão desse mundo que coexiste com outras. A adaptação feita por Cascudo na
seguinte adivinhação revela esse caráter da superstição: “Ninguém quer ter. Quem tem, não
quer perder” (CASCUDO, 1971, p. 158) para “Ninguém é... nem deixa de ser” (Ibidem).
No próximo tópico será brevemente demonstra a teologia, ou a maneira de pensar
religiosa, que tem por base a lógica supersticiosa.

4.4 “DEUS EXPLICADO, É DEUS DIMINUÍDO”: DA SUPERSTIÇÃO À TEOLOGIA


POPULAR

No capítulo “Da teologia popular”, do livro Religião do Povo, Cascudo afirma que
“há, evidentemente, uma Ciência de Deus entre o Povo”. Segundo o autor, existe um critério
uniforme na vivência dos acontecimentos grupais e individuais que rege uma “classificação
sentenciosa apoiada no consenso da comunidade” (CASCUDO, 1971, p. 171).
Ao contrário do que pressupõe a teologia dogmática, a teologia popular contraria a
racionalidade no entendimento da esfera divina. “Ao contrário da presunção teológica:
teimosa, louvável e contraprudente, o raciocínio popular nega formalmente que a razão
79

esclareça os desígnios do Criador, como não é crível a criança compreender todas as


determinações paternas” (Ibidem).
Compreendida como “processo de incorporação do Infinito às limitações do
entendimento material, submetido aos órgãos falíveis da percepção” (CASCUDO, 1971, p.
172), assim como Cristo doutrinou por meio de alegorias, parábolas e comparações, a teologia
ocupou-se em informar com argumentos a serviço do homem. A patrística e a apologética
foram responsáveis por dar a ela a missão submissa do criador à criatura. Segundo Cascudo,
esse é o clímax que diferencia a Teologia do Povo e a Ciência Teológica. Para o povo, “deus
explicado, é deus diminuído” (Ibidem), limitado às concepções terrenas.
Dessa forma, a não compreensão é fato natural. “No povo a fé cimenta-se numa
simplicidade racional que alegraria Santa Teresa de Jesus. Quando Deus quer ser entendido lo
hace sin trabajo nuestro. Não encontrar explicação é reconhecer a fronteira inevitável do
incognoscível”. “O povo não discute” (Ibidem). Não é necessário que se compreenda Deus
para ser cristão, assim como não é preciso compreender o Brasil para ser brasileiro. A fórmula
popular consiste na obediência a Deus sem a pretensão de minimizar a ordem recebida. “O
dever de explicar é um direito de insubmissão espiritual” (Ibidem).
Cascudo atenta para o domínio da consciência de uma mentalidade antiga, exata e
formal em relação ao exercício do culto litúrgico, caracterizada por ser inalterável. “O povo
reproduz, imperturbável, uma argumentação aposentada, mas eficaz e justa para ele. Não é
ignorância. É convicção” (CASCUDO, 1971, p. 173). O caráter sempre cristão é irreformável,
conservando crenças condenadas por vários concílios, mas que eram comuns e legítimos antes
deles. “Nenhum legislador, religioso ou civil, poderá determinar novas ou afastar as antigas.
Imutáveis heranças antidiluvianas” (CASCUDO, 1971, p. 173-174).
Mesmo aspectos culturais não interferem, mas se adaptam à mentalidade coletiva. As
existências são por vezes paralelas e não convergentes. “Os povos de ontem, no continente
americano, são inconfundíveis. As classes letradas valem invólucro. Vistoso e mutável. Sobre
essa superfície é que incide a policromia literária, no interior, o complexo homogêneo,
espesso, maleável sem que mude a substância real, guarda a surpreendente unidade”
(CASCUDO, 1971, p. 174).
A fé indagadora, inquieta e insistente não faz parte da religiosidade popular, não
havendo “curiosidade modificante ou dúvida infiltradora” (CASCUDO, 1971, p.174). Não
por indiferença, mas por suficiência. “Não sente necessidade de fazer circular o capital idôneo
para satisfazer-lhe a tranquilidade mental” (Ibidem). A ciência de Deus no povo não age pela
via da compreensão, sendo afirmativamente definitiva.
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Defende, inconscientemente, uma Teologia básica, desinteressada pelas


especulações casuísticas e debates em círculo fechado, rodando no mesmo perímetro
metafísico. Todas as questões inexplicáveis são evitadas por pertencerem ao divino
privilégio do Mistério. Não se sente humilhado pela ignorância porque lhe denuncia
ter alcançado a fronteira imperscrutável da suprema Ciência, definitiva, mas
incognoscível (CASCUDO, 1971, p. 174).

Ignora o povo questões de predestinação, livre arbítrio, eucaristia, sacramentologia,


trindade e toda a retórica sobre os dogmas estabelecidos pela Igreja. No entanto, para crer não
é necessário que se compreenda, basta concordar. A fé permanece intacta antes, durante e
depois dos concílios e da patrística. A análise popular é imóvel. “Pura, intacta, virgem, no seu
castelo impenetrável aos demônios da dúvida. Fideísta” (CASCUDO, 1971, p. 175).
Por sua vez, a moral popular está vinculada ao Antigo Testamento, e não ao Novo. A
dinâmica patriarcalista predomina, sendo o pai de família suplente de Deus. A posição
materna é secundária, restrita aos afazeres domésticos. Embora o tempo tenha mudado as
dinâmicas do costume, o preceito julgador permanece o mesmo. “Faca muda de cabo, mas
não muda a folha (lâmina). Só se dispensa o substituível” (CASCUDO, 1971, p. 176). O autor
cita algumas situações e o consequente julgamento popular:

castidade? Nas fêmeas. No homem “nada péga”. O pecado sexual Deus deixou no
Mundo porque fez os membros apropriados para a fecundação. Só se peca porque
ELE permite. O maior crime é o roubo. O assassinato é justificável e o furto nunca.
A traição é a sujeira repugnante numa criatura. A ingratidão, esquecimento dos
benefícios, é defeito da carne fraca, assim como a mentira mas o falso é por todos
condenado. Continua o horror ao incesto, atingindo afilhadas e comadres
(CASCUDO, 1971, p. 176).

O celibato clerical é prática desacreditada pelo homem do povo, que duvida da pureza
sacerdotal. “Fora do altar, são homens como outros” (CASCUDO, 1971, p. 176). A exigência
restringe-se aos deveres e à assistência cristã, não sendo cobrada a prática do sermão. A
missão dos clérigos detém-se nos conselhos, conversas e admoestações. Dizer “vá conversar
com o vigário” (CASCUDO, 1971, p. 177) era recorrer a uma instância máxima. A
interrupção do ministério por prática indevida do vigário não era admitida. “A prevaricação
ao sexto mandamento não afeta a obediência primordial ao primeiro” (Ibidem). O
consentimento à cópula é lícito e justificado. “Para isso Deus aparelhou os dois sexos”
(Ibidem). Consiste em crime a violência carnal, estupro, coito não consentido por ambas as
partes. “A castidade é um compromisso entre o padre e Deus” (CASCUDO, 1971, p. 178).
Permanece o interesse do povo no exercício do ministério na comunidade e não a vida privada
do padre.
81

Outra constante observada por Cascudo diz respeito à predileção pelos ditos
sentenciosos, “sínteses da longa elaboração íntima” (…) Peço esmola, mas não peço
proceder”; “A diferença entre rico e pobre é só dentro do bolso”; “A lição do homem é no que
faz e não no que diz”; “O homem entorta o que Deus fez certo” (CASCUDO, 1971, p. 180).
Não há comentário ou justificativa após a sentença, deixando clara a intenção moral.
As frases curtas e sinceras têm um poder incontestável. “Dito e feito”. O conjunto de
provérbios consiste em código de ética comportamental, que a memória conserva porque
aceita. “As origens são longínquas, variando o vocabulário da apresentação recente. A
memória conservou esse patrimônio porque concordava com ele. É uma orientação religiosa
às repercussões da vida diária” (Ibidem). A memória do povo não se desocupa dos
julgamentos morais.
O homem do povo para Cascudo não se atreve a mergulhar em raciocínios adversos,
contrários aos dogmas da própria conclusão, “restrições formais imobilizando as soluções de
sua hermenêutica” (CASCUDO, 1971, p. 181). A consciência é a da certeza, hereditariedade
da confiança. “Onde começa o mistério para o intelectual, inicia-se a constatação para o
Povo” (Ibidem).
A teologia popular segue os preceitos da lógica supersticiosa. O conjunto de hábitos,
crenças, ritos, apesar de diversos em cada região apresenta uma unidade lógica e imutável.
São reminiscências psicológicas que afloram de maneira generalizada na vivência da fé por
todo o Brasil. Independente das chamadas religiões populares e de quais sejam, a
religiosidade do brasileiro encontra sua unidade nessa lógica supersticiosa, na lógica do
super-stitio, daquilo que sobrevive. O povo reproduz a dinâmica milenar sem a consciência da
reprodução, mas confiante na eficácia.

Surpreendente é a unidade lógica desses conceitos por todo o Brasil popular.


Nenhuma discrepância na ética das afirmativas formais, como brotando do inatismo
cartesiano. Apenas o vocabulário defende o regionalismo da expressão, expondo
imagens naturais da ecologia ambiente. O paroara amazônico e o peão gaúcho não
modelam as mesmas frases, mas o sopro que as destina ao entendimento parte do
quadrante imutável da convicção religiosa. A finalidade é uma humilde iluminação
ao passo hesitante do homem, denunciado pela pergunta sarcástica ou curiosa,
sempre no plano da informação sobrenatural. A quase totalidade das criaturas
credoras do meu afeto não sabia ler mas reproduzia a voz misteriosa e perene de
uma sabedoria sem fontes impressas, insinuações capciosas, impulso de valorizar-se.
Ostentação. Vaidade. Importância. Apenas obedecia a uma demonstração sincera de
expor o que sabia (CASCUDO, 1971, p. 183).

Percebe-se, assim, que Cascudo encontra uma unidade na atuação do povo brasileiro
que segue a lógica da superstição. Existe uma força que age no inconsciente coletivo, que
82

concebe tanto gestos, palavras, intenções quanto manifestações grupais de localidades


dispersas, resultado de sabedorias ancestrais.
A relação harmoniosa do povo com a teologia popular liga-se sobretudo à
funcionalidade e à praticidade das concepções. A suficiência e a aceitação inquestionável dos
fatos sobrenaturais, assim como a passividade mediante os desígnios divinos, são aspectos
que se enquadram em uma compreensão de mundo que tem, sobretudo, uma lógica
explicativa. Essa lógica não é, contudo, menos legítima que qualquer outra existente e
permanece paralela e contínua pela aceitação coletiva. É certo que se procura a todo tempo
explicações para acontecimentos que não são, à primeira vista, compreensíveis, e a teologia
popular é justamente uma delas, entretanto, com uma dinâmica própria.
83

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procurou-se, no percurso deste trabalho, compreender a noção da teologia no povo de


Luís da Câmara Cascudo a partir da superstição como fator unificador das diferentes
colorações que no Brasil se fizeram presentes. Percebe-se que há aspectos da formação da
religiosidade brasileira desde a colonização portuguesa, o que contribuiu para a peculiaridade
na maneira de crer do povo brasileiro.
O caráter multifacetado de Cascudo nos fez percorrer diversas dimensões pelas quais o
autor se enveredou. Aspectos históricos, sociológicos, políticos, culturais e religiosos
possibilitaram a este estudo uma visão ampla, considerando as múltiplas esferas do que nos
foi proposto analisar.
Constatamos que a dimensão religiosa no caso brasileiro não se fragmentou das
demais questões, sendo parte intrínseca da nossa cosmovisão a partir da colonização. Eram os
índios supersticiosos pelo fato de praticarem atos e ações mágicas em favor de proteção, antes
mesmo de os portugueses chegarem. Contudo, por uma série de fatores e, principalmente, pela
condição de dominadores que percorreram todo o território nacional, as superstições
portuguesas prevaleceram quantitativamente, sendo mais marcantes na sociedade
luso-brasileira e, posteriormente, brasileira.
O modelo da cristandade medieval no período colonial do Brasil, somado à
diversidade religiosa, cultural e social dos diversos povos que aqui se instauraram, foram
aspectos determinantes na formação da mentalidade popular. A preferência por cultos
específicos, como os de Nossa Senhora e dos santos, independente das ordens e dos ofícios
eclesiásticos, bem como a imagem enraizada das concepções de céu, purgatório e inferno,
evidenciam que há uma distância entre o que o povo crê e o dogma da Igreja. A utilidade
prevalece, refletida pelo o apego às superstições.
A imposição do cristianismo de dogmática não unificada e as dificuldades do clero de
se estabelecer organizadamente permitiu a sobrevivência e a coexistência das práticas
religiosas dos outros povos, principalmente indígenas e africanos. Entretanto, tal fato ganhou
contornos próprios no caso brasileiro pela peculiaridade do acolhimento e capacidade de
adaptação dos cultos heterodoxos, mesmo com a imposição, por vezes violenta e massacrante.
Essa presença impositora e dominante criou um campo favorável para a prática e submissão
supersticiosa. O medo e a insegurança dos que aqui se desenvolveram encontraram amparo e
salvação nas crenças sobrenaturais.
84

A presença da superstição entre os povos que se cruzaram e sua permanência é,


sobretudo, reflexo de uma realidade onde há dominadores e dominados. Não apenas no caso
brasileiro, mas se pode afirmar, a partir das ideias de Cascudo sobre o homem e sua essência,
que o aspecto supersticioso da permanência contínua e readaptadora se faz presente em todas
as nações, perdurando no tempo desde os primórdios da existência humana. Sobretudo a
cultura popular, oral e anônima, é fundamentada nessa lógica.
No primeiro capítulo, limitado a questões biográficas e conceitos básicos, como a
noção de cultura e cultura popular do autor, compreendeu-se o universo complexo no qual
Cascudo se insere. Sinteticamente, para o autor, a cultura popular consiste no saldo da
sabedoria oral na memória coletiva e se encontra anteposta ao conhecimento transmitido pela
ciência. Tanto a cultura letrada ou erudita como a popular coexistem na mentalidade humana
e se intercomunicam, uma vez que pertencem ao mesmo organismo. Diversas, mas não
adversas.
Já no segundo capítulo, percorremos panoramicamente as condições nas quais o
catolicismo se desenvolveu no Brasil, considerando os modelos instaurados juntamente com o
encontro dos diversos povos que aqui viveram, com destaque para a influência portuguesa
sobre as demais etnias em diversos aspectos. Considera-se a cristandade, a obrigatoriedade
católica, a inquisição, o espírito da guerra santa e as deficiências na organização clerical na
colônia como fatores determinantes para a formação da religiosidade brasileira.
No terceiro capítulo compreendemos a lógica de funcionamento da teologia popular,
regida pela mesma ideia supersticiosa de permanência readaptadora. As práticas comuns da
religiosidade popular e suas concepções específicas sobre a dimensão sobrenatural, como a
dinâmica das almas, dos santos, dos cultos, e de hábitos provenientes desse universo, são
peculiaridades que se desenvolveram viabilizadas pelas condições culturais, econômicas e
religiosas vivenciadas pela sociedade brasileira. A superstição manteve através do tempo o
caráter de defesa contra ameaças externas e supostamente maiores que o homem. Sendo
assim, constatou-se que a teologia popular é regida pelo processo autorrenovável da
superstição, que se mantém por sua própria natureza modificadora e suficiente, sempre regida
pelo mesmo princípio da proteção.
É comum ouvir que as superstições estão em vias de extinção, principalmente no
século XXI, e que passar debaixo da escada ou temer os sete anos de azar ao se quebrar um
espelho são besteiras que a ciência atesta como simples ditos populares. O termo assumiu, de
fato, um caráter pejorativo ao longo do tempo e é mal visto nos meios acadêmicos e
científicos. Contudo, fato é que, mesmo depois de Cascudo e com o surgimento da internet,
85

da instantaneidade das informações e das pesquisas cada vez mais direcionadas à cyber
tecnologia, o caráter supersticioso permanece vinculado a esses mesmos meios. Em tempos de
internet discada, as rezas, as figas e os dedos cruzados não desapareceram. Atualmente,
rezamos pelo wi-fi, para afastar os mesmos males e alcançar a mesma graça.
De acordo com a concepção de Cascudo, a impossibilidade da extinção supersticiosa é
garantida pelos infinitos processos de readaptação. As superstições mudam de trajes; porém,
permanecem em conteúdo, sendo compreendidas, essencialmente, como atos defensivos às
inconstâncias e ameaças externas, que se transfiguram, mas não se findam. É perceptível uma
alteração no traje supersticioso que ainda encontra na contemporaneidade terreno fértil de
atuação. Enquanto houver medo, haverá superstição. Exterminar o medo ainda não foi
possível e não sabemos se será. De toda forma, a lógica atual do mercado global e do
desenvolvimento cada vez maior da mentalidade meritocrática, em que se pesa o ganhar e o
perder constantes, viabiliza a crença sobrenatural, protetora e psicologicamente confortante.
Novos atos defensivos surgem, sempre com a mesma finalidade.
Compreender a dinâmica da mentalidade popular em Câmara Cascudo ajuda a
compreender aspectos da sociedade que permanecem por toda a história e são perceptíveis no
modo de viver do povo brasileiro. Vale lembrar que o autor viveu em um período bem diverso
do atual e que acompanhou com um certo distanciamento a difusão da televisão, quiçá da
internet, já que fenômeno contemporâneo.
Em relação às religiosidades, embora o cenário seja outro, é possível detectar a
presença mais fiel em relação às constatações de Cascudo, em ambientes mais afastados das
cidades, onde ainda se encontra uma vivência religiosa mais sistemática e comunitária. As
modificações nas concepções atuais da extrema valorização do indivíduo em detrimento da
coletividade modificaram as práticas e as dinâmicas sociais. A busca pela religiosidade de
culto individual e a constante criação de movimentos religiosos, como a New Age, as
influências do pensamento e das práticas orientais ou mesmo a expansão progressiva dos
pentecostais e neopentecostais, geram um novo cenário que modificam o campo religioso
brasileiro. Tais fatos, infelizmente ou felizmente, não foram vivenciados por Cascudo, que
certamente teria muito a nos dizer.
Consideramos, portanto, que existe uma teologia que se forma a partir da superstição,
como afirma Cascudo, e que, ao mesmo tempo, retroalimenta a superstição. Assim, da
superstição surge uma teologia no povo, que a mantém verdadeira, a fim de ser instrumento
de compreensão da realidade vivida. Dessa forma, uma esfera torna possível a outra e vice-
versa. Soma-se à lógica dessa teologia, enquanto instrumento permanentemente válido de
86

compreensão da realidade, a autonomia, ou seja, a capacidade de se autoimpor sem a


necessidade de instâncias institucionais que a sustentem. O funcionamento e a manutenção da
teologia popular não dependem da Igreja Católica, de qualquer outra igreja e talvez de
nenhuma outra instituição religiosa. As explicações teológicas populares são suficientes para
resolver questões que até mesmo os homens da ciência ainda não foram suficientemente
capazes de resolver.
87

REFERÊNCIAS

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diversidade de crenças e o processo sincrético. Revista eletrônica de Ciências Sociais, n. 14,
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