Religioes - Camara Cascudo
Religioes - Camara Cascudo
Religioes - Camara Cascudo
Juiz de Fora
2016
Ana Luísa Morais Barbosa
Juiz de Fora
2016
Ficha catalográfica
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Prof. Dr. Volney José Berkenbrock (Orientador)
Universidade Federal de Juiz de Fora
______________________________________________
Prof. Dr. Carlos Rodrigues Brandão
Universidade de Campinas
______________________________________________
Prof. Dr. Gilberto Felisberto Vasconcellos
Universidade Federal de Juiz de Fora
AGRADECIMENTOS
The aim of this thesis is to analyse the Brazilian popular religiosity according to Luís da
Câmara Cascudo’s reflections about superstition. From the analysis of the book Religion
in People (1974), mainly, it is intended to understand how the logic of superstition is
present and, at the same time, how it is the characterizing unit of all existing religiousness
since Brazil’s formation as a colony of Portugal. In order to do that, the conception of the
term “popular teology”, proposed by Câmara Cascudo, was analysed and linked to his
notions of superstition. Historical facts from the beginning of the colonization process
and the subsequent implementation of the Catholic Church in Brazil will be resumed
through a literature review. To this end, several authors, responsible mainly for
Christianity theology study, were used. It is crucial for this study the analysis of the logic
responsible for maintaining the peculiarity of Brazilian people’s religious behavior,
which was developed by and parallel to the recognitions of the Catholic Church.
1 INTRODUÇÃO 10
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 84
REFERÊNCIAS 88
9
1 INTRODUÇÃO
religião no povo. O estudo de sua obra representa uma contribuição ao estudo da religião e de
como essa pode ser percebida na realidade brasileira.
O texto de nossa pesquisa está dividido em três capítulos. O primeiro deles será
delimitado por considerações biográficas do autor, citando suas diversas facetas ao longo da
vida, como o Cascudo folclorista, historiador, político, modernista e memorialista.
Ressalta-se, contudo, a impossibilidade de se isolar quaisquer desses lados, na tentativa de
compreender o autor em sua totalidade, ou ao que foi possível detectar, tendo em vista a sua
complexidade. De maneira ampla, serão retomadas algumas questões a respeito dos estudos
sobre a cultura popular no Brasil, compreendendo a noção de Cascudo acerca do tema, bem
como da questão da religiosidade.
No segundo capítulo partir-se-á para a análise de fatos históricos dos primeiros séculos
a partir da colonização portuguesa no Brasil e a consequente implantação do modelo da
cristandade pela Igreja Católica. A dinâmica criada por tal modelo, bem como as condições
sob as quais a sociedade brasileira se desenvolveu, são fatores determinantes para a
compreensão do que Cascudo posteriormente elabora acerca da religiosidade popular. Para
tal, são utilizados diversos autores que abordam os primeiros séculos desde a colonização,
como Riolando Azzi, Eduardo Hoornaert e Gilberto Freyre, sendo esses os mais recorrentes
neste trabalho. Além dos aspectos históricos provenientes da implantação do modelo da
cristandade, serão estudadas as peculiaridades das etnias que se desenvolveram no Brasil e o
consequente entrosamento entre elas.
A partir do panorama exposto no segundo capítulo, será realizada, no capítulo terceiro,
uma análise do livro Religião no Povo, expondo a lógica da superstição inserida em
Tradição, Ciência do Povo, compreendida por Cascudo como fator unificador da
religiosidade brasileira. A título de comparação, tomar-se-á como base algumas considerações
do filósofo Baruch de Espinosa acerca da superstição, com o objetivo de tornar mais claros
alguns aspectos do conceito proposto por Câmara Cascudo. Ademais, ressalta-se a
possibilidade da permanência dessa lógica até os dias atuais que se mantem por processos de
readaptação.
A importância da pesquisa detém-se, portanto, na compreensão de uma determinada
dinâmica da religiosidade brasileira, detectada pelo estudioso norte-rio-grandense como
perene e contínua. Tal compreensão esclarece determinadas condutas referentes à
religiosidade do povo brasileiro, que se mantêm. Compreender a dinâmica da religiosidade
popular é, assim, compreender questões da própria nacionalidade brasileira. Mesmo que
12
Homenageado pelo Instituto Cultural Aletria, Cascudo, que não foi santo, nem
milagreiro, foi agraciado com a oração em epígrafe e nomeado Santo Padroeiro da Tradição.
A instituição que também funciona como editora, atualmente com sede em Belo Horizonte, é
responsável por diversos projetos culturais voltados para literatura infanto-juvenil, formação
de professores, contadores de história, e mediadores da leitura de maneira geral.
Traçar uma biografia satisfatória de Luís da Câmara Cascudo, sem que algo escape, é,
sem dúvida, tarefa complexa. Diversos autores como Américo de Oliveira Costa, Zila
Mamede, Carlos Lyra, Diógenes da Cunha Lima e Djalma Maranhão se encarregaram de
percorrer esse extenso caminho biográfico de um homem que viveu 87 anos, produzindo até o
ano de sua morte.
Nem mesmo o próprio Cascudo tinha noção do quanto escrevera. Em classificação
recente, a partir do acervo de Carlos Lyra, amigo e responsável por um importante material
1
Oração em homenagem a Luís da Câmara Cascudo feita pelo Instituto Aletria.
14
fotográfico do autor, foram constatados, dentre livros e plaquetes (livretos), 192 publicações.
Não apenas a quantidade de títulos, mas a extraordinária diversidade temática do autor nos
insere em um universo multifacetado, que perpassa diversas áreas do conhecimento. É, pois,
necessário delimitar com muita cautela o espaço que se intenciona explorar, uma vez que,
com uma obra tão extensa e de um homem tão diverso, corremos o risco de nos perder em
análises desconexas e confusas. “A obra cascudiana não é uma ilha; é um arquipélago, pela
multiplicidade e pela variedade dos territórios que a integram” (COSTA, 1969, p. 7).
Luís da Câmara Cascudo nasceu em Natal no dia 30 de dezembro de 1898, em uma
sexta-feira, no dia de São Sabino. Foi batizado como Ludovicus, mas registrado com o nome
pelo qual é conhecido, em função do tio paterno Manoel, conhecido como o “velho Cascudo”
devido à intensa devoção ao partido conservador. Sua filha, e grande pesquisadora de sua
obra, escreve sobre o nome, retomando a descrição do pai:
Sob a égide da superstição, Cascudo nasce e toma seu primeiro banho em uma bacia
de ágata com água morna, temperada com vinho do porto e acrescida de um patacão de prata
do Império. Isso lhe garantiria fortuna e saúde ao longo da vida. “Quem usa da superstição,
confia na sua suficiência” (CASCUDO, 1971, p. 166). Apesar da crença na eficiência, o autor
cresceu repleto de enfermidades que foram tratadas com as mais diversas crendices populares:
Como fui filho único, doente e triste, amamentou-me o leite de todas as crendices
populares. Rezas-fortes, banhos-de-cheiro, mezinhas serenadas, cascas de tronco do
lado-que-o-sol-nasce; velhas praieiras esconjurando, como na Caldéia, os demônios
das febres incontáveis; negros, altos e magros como coqueiros solitários, defumando
meu leito, o aposento, meus brinquedos imóveis, o cavalo de pau do talo de
carnaúba, o navio de papelão, a coruja retangular de papel de sêda: rezador vindo da
Serra da Raiz, dos brejos, areias de Maracajaú, pés-de-morros, pondo rosários no
meu pescoço, indulgenciados por aqueles teólogos sem Papa e sem Concílio. Meu
pai consultava o Doutor Joaquim Murtinho por telegrama (um assunto para a
cidade), e minha ama Bemvenuta de Araújo, Utinha, trazia uma mulata gorda e
lenta, que tinha morado no Pará, cantando baixinho de joelhos, para espantar o mau-
olhado. Padeci todas as enfermidades folclóricas, espinhela caída, cobreiro, entalo,
dormir com os olhos abertos, como os coelhos, mijo de maritaca, dentada de
caranguejeira, frieira por ter pisado em cururu, verruga por apontar estrelas.
(CASCUDO, 1971, p. 147).
15
Nunca pensei em deixar minha terra. Queria saber a história de todas as cousas do
campo e da cidade. Convivências dos humildes, sábios, analfabetos, sabedores dos
segredos do Mar das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios.
Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado. Pesquisas.
Indagações. Confidências que hoje não têm preço (CASCUDO, 1969, s/p).
2
O instituto abriga um acervo museológico com dez coleções classificadas como etnografia africana, etnografia
indígena, arte sacra católica, arte popular brasileira, arte popular estrangeira, iconografia/pinacoteca, mobiliário,
alfaias, objetos pessoais, além do acervo bibliográfico, composto por um arquivo documental (cerca de 15.000
correspondências, fotografias, discos, jornais, partituras, literatura de cordel, documentos históricos...) e sua
biblioteca pessoal, que abriga, aproximadamente, 10.000 livros.
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A centralidade do gênero memorialista pode ser constatada desde seu primeiro livro
publicado: Alma Patrícia (1921). Posteriormente, quatro volumes de memórias explícitas
foram escritos entre 1968 e 1972, dos 70 aos 74 anos: O tempo e eu – Memórias, Pequeno
manual de um doente aprendiz, Na ronda do tempo e Ontem – Memórias. Contudo,
importa destacar que a memória foi para Cascudo método e ferramenta fundamental na
construção de qualquer análise. As lembranças, capazes de mesclar fatos com o imaginário
individual e coletivo, foram acervos legítimos na construção do seu pensamento.
Apesar da intensa subjetividade no ato de recordar, o estudioso Gilberto Vasconcellos
(2009), em A questão do folclore no Brasil, atenta para o grau da objetividade utilizada pelo
autor em suas investigações. A posição subjetiva daquilo que é recordado pelo pesquisador (a
vivência e a memória foram o cerne de sua metodologia) não afeta em nada o grau de
objetividade atingido pela investigação científica da cultura popular, inclusive por saber
manejar tão bem os métodos do difusionismo, do paralelismo e do funcionalismo na
antropologia, ciente de que não existe civilização original e isenta de interdependência.
A utilização da memória, da história, a constante volta ao passado como método de
pesquisa e a nostalgia melancólica do autor mediante a perda das tradições aproximam
Cascudo dos autores do Romantismo. Não que se possa enquadrá-lo no movimento, mas é
possível identificar temas e conceitos desse período literário, que se desdobram na
compreensão individual e coletiva da experiência espaço-temporal no mundo, principalmente
em textos escritos na década de 1910. Experiência no sentido da interação do homem e dos
demais seres com o ambiente no qual vivem. O tempo e o espaço são concebidos como
componentes de uma mesma interação difusa, mútua, e não antropocêntrica.
Um bom exemplo que se enquadra nessa análise encontra-se no artigo “Filosofia das
ruínas”, publicado em 1918, no jornal A imprensa, do Rio Grande do Norte. O tema gira em
torno da ideia de “ruína”, central em diversos autores românticos.
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As ruínas têm a sua filosofia. Possuem sua estética, sua arte e seus conceitos.
Proclamam as efemeridades das glórias terrenas, bradam a recordação das glórias
passadas, choram silenciosamente o seu desalento, trazem na sua desolação, o fausto
de antanho e celebram no rito misterioso das sombras, a missa negra da saudade.
Atributos indispensáveis dos quadros melancólicos, traços de amarguras indefinidas
do lusco-fusco dos poemas em fogo, no verde escuro das paisagens polidas, há
sempre lembrando a morte, as ruínas cinzentas dos velhos burgos (CASCUDO,
1918, s/p).
Há na obra cascudiana sempre uma saudade e uma melancolia frente à perda das
tradições, embora essas nunca findem, de acordo com sua concepção. O passado ocupa um
lugar privilegiado em relação ao presente e certamente ao futuro.
Qualquer espécie animal ou vegetal citada... deverá ser acompanhada pela sua
classificação científica.... Mesmo não publicando a procedência da informação, é
aconselhável... anotar a data, local e nome do informador, guardando o original (...)
A virtude máxima do folclorista é a fidelidade. Não admitir a colaboração
espontânea, inconsciente e poderosa da própria imaginação ou material obtido
(CASCUDO apud COSTA, 1969, p. 72).
Para que um hábito, conduta, técnica seja a mesma ou quase a mesma em territórios
distantes e sem indicação de contacto histórico, restam duas fórmulas doutrinárias
explicativas. Representam criações locais, independentes, frutos da imaginação e
esforços nativos; ou receberam o modelo, inspiração, traços, imagens de terra e
gente alheias. A primeira diz-se Paralelismo ou Convergência. A segunda Difusão.
É a distinção simples entre o CRIADO e o RECEBIDO. Um grande problema
embevecedor para os etnógrafos é estabelecer essa separação, fixando a geografia
originária dos motivos determinantes (CASCUDO, 1973, p. 427).
Contudo o método, já superado por perspectivas mais críticas em relação aos fatos,
marcou grande parte dos estudos da cultura popular não só no Brasil, mas em outras partes do
mundo. Embora sejam considerados obsoletos ou de menor importância no que diz respeito às
ciências em geral, é inegável a importância e a pertinência do legado deixado por esses
estudiosos, que hoje são essenciais para a construção de interpretações da realidade.
Não serão tratadas neste trabalho as divergências entre folclore e cultura popular,
mesmo porque Cascudo não expõe tal preocupação; ao contrário, funde os termos quando diz
que o folclore é “a cultura do popular tornada normativa pela tradição” (CASCUDO, 2002, p.
240).
Assim como a dimensão política do autor, a dimensão metodológica não pode ser
automaticamente enquadrada em vertentes dogmáticas de uma determinada tendência.
Nenhuma das facetas isoladas podem ser consideradas como “única via explicativa de um
fazer cheio de nuanças teóricas, empíricas e estéticas” (SILVA, 2003, p. XV).
que pertencem ao mesmo organismo. São diversas, mas não adversas. Ambas existem sobre o
mesmo princípio da “retenção memorial, atendem a experiência, têm bases universais e há um
instinto de conservação para manter o patrimônio sem modificações sensíveis, uma vez
assimilado” (CASCUDO, 1973, p. 426).
Embora a cultura letrada, influenciada pelas formas institucionais de transmissão, se
diferencie da cultura popular, mantida pela oralidade, Câmara Cascudo observa a
intercomunicação dessas culturas. Ainda que influenciadas uma pela outra, observa-se uma
maior absorção por parte da cultura popular que da cultura letrada, ou erudita, como
costumava dizer.
Para ele, a cultura erudita e a popular são complementares. Embora ainda tenha uma
visão dual da cultura, não partilhava do pensamento positivista, valorizando o saber
tradicional sem inferiorizá-lo comparado ao cientificismo. A diferenciação dos níveis não
deveria estabelecer relação de inferioridade, mas de “valorização local de cada complexo no
plano de sua utilidade relativa aos possuidores e não aos observadores estranhos, portadores e
defensores de outras culturas” (CASCUDO, 1973, p. 24). Desse modo, é inoportuno partir de
regras comparativas no intuito de legitimar uma cultura sobre a outra. Deve-se avaliar a
substância real, aquilo que importa de fato, a suficiência, resultantes da aceitação natural em
um determinado local.
incorporando-as. De toda forma, nota-se sempre a presença dual da cultura, sendo uma delas a
oficial e a outra, informal.
A oralidade como base estruturadora da cultura popular não pode ser desvinculada da
questão geográfica. A região deve ser considerada como “elemento primordial na morfologia
da cultura popular” (VASCONCELLOS, 2009, p. 46). As diferenciações regionais constituem
critério de análise para a compreensão do imaginário popular. A articulação entre região,
nação e mundo consiste, para Cascudo, mais do que questão existencial, uma razão
gnosiológica.
A busca pela unidade e identidade nacional a partir da mentalidade popular parte
necessariamente da compreensão do regional. É a partir da região, das necessidades locais,
que todo o resto se desenvolve. Embora dê ao regionalismo importância nevrálgica quanto ao
desenvolvimento cosmológico dos homens, Cascudo reconhece a existência de uma unidade
específica humana. “O homem é universal fisiologicamente, psicologicamente é regional”
(CASCUDO apud VASCONCELLOS, 2009, p. 49).
27
Um dos pontos cruciais nos estudos de Câmara Cascudo foi a constatação da base
euro-ibérica como predominante na formação da cultura popular brasileira. Tal aspecto foi
analisado em Geografia dos mitos brasileiros, nos anos 1940, sem qualquer intenção de
confronto com os indianistas e africanistas.
Depois dos livros de Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Manuel Quirino, Edson
Carneiro, a religião dos afro-brasileiros baianos está clareada e podemos calcular o
infinito de seu alcance na psicologia do mestiço. Mas o mito, na redução de seu
processo de presença e finalidade, deve, rara, fortuita, parcamente, ao negro, na
própria terra baiana (CASCUDO apud VASCONCELLOS, 2009, p. 56).
Não se pode afirmar pela condição dos negros como sujeitos explorados e
economicamente subalternos que a base da cultura popular, mesmo dessa região, seja negra.
“Na Bahia os mitos de maior divulgação pertencem aos europeus e indígenas. São o
Lobisomem, a mula-sem-cabeça, o Batalão, Batatão ou Boitatá, confundidas com os cultos
28
Toda essa produção teológica, ao ser gerada, sempre teve uma finalidade prática: prescrever
aos infiéis como deveriam pensar ou agir diante de determinadas situações e contingências
históricas” (AZZI, 2008, p. 7).
Devido à quantidade de produções, o acervo teológico produzido foi reunido e
organizado em muitos tratados. A Suma Teológica, elaborada por Tomás de Aquino no século
XIII, foi a primeira grande síntese da doutrina. No mesmo século também aconteceram, o
Concílio do Latrão IV, responsável pela divulgação dos mandamentos da Igreja, e o Concílio
de Trento no século XVI, considerada a assembleia episcopal mais importante em reação ao
movimento luterano, mas sem grande repercussão na metrópole:
Importa-nos nessa citação a evidência de que existiu, por um longo período, uma
distância entre os agentes da Igreja e a população que se formava no Brasil, o que gerou
modos diversos na vivência da fé em relação à proposta dos clérigos desde a colônia.
A finalidade neste capítulo é, desse modo, compreender o contexto histórico no qual
foram produzidos temas teológicos importantes para a formação da sociedade brasileira,
especialmente nos três primeiros séculos de colonização, caracterizados pela implantação do
modelo da cristandade. Entendida como sistema de relações estabelecidas entre o poder da
Igreja e do Estado ou qualquer outra forma de poder político dentro de uma determinada
sociedade e cultura, é inaugurada a partir de Constantino e da chamada Pax Ecclesiae em 313
– acordo de paz feito pelo Imperador à Grande Igreja através do Edito de Milão que põe fim
às perseguições. Esse sistema se prolonga até praticamente a Revolução Francesa (1789).
A Pax Ecclesiae dá início à primeira modalidade de cristandade chamada
“constantiniana”. Como características destaca-se o cristianismo como uma religião de
Estado, portanto obrigatória aos súditos, e como religião de unanimidade, polivalente e
multifuncional, além da oficialidade do código religioso cristão, que deveria ser apropriado
mesmo que de forma diferente nos diversos grupos sociais.
Em certa medida, a cristandade medieval é a continuação da cristandade antiga do
Império Cristão dos séculos IV e V. A constituição de uma vasta rede paroquial e clerical
34
4
“O português Isaac Abarbanel anunciou a vinda do messias em 1503, assim como David Rubeni, em 1536,
prevendo a proximidade da redenção do povo eleito” (AZZI, 2004, p. 20).
35
Este rei tem tal nobreza / Qual eu nunca vi em rei. / Este guarda bem a lei / Da
justiça e da grandeza / Senhoreia Sua Alteza, / Todos os portos e viagens, / Porque é
rei das passagens / Do mar, e suas riquezas. (...). Servirão um só Senhor / Jesus
Cristo que nomeio / Todos crerão que já veio / O ungido do Senhor (QUADROS
apud AZZI, 2004, p. 20).
Foi nesse clima de expectativa messiânica que viveu o Padre Antonio Vieira,
também ele grande divulgador dessas profecias. Uma das ideias fortes do teólogo
jesuíta era que Portugal estava predestinado a ser no mundo o Quinto Império, de
extensão universal, sucedendo assim os quatro grandes impérios do mundo antigo:
assírio, persa, grego e romano (AZZI, 2004, p. 22).
Antonio Vieira via na figura de D. João IV, sucessor de D. Sebastião que morreu
precocemente, a esperança da restauração da monarquia lusa, sob o domínio espanhol. O
então monarca era considerado como o prometido de Deus e herdeiro da missão de D.
Sebastião. “Assim como Cristo havia ressuscitado, também D. Sebastião voltara redivivo na
pessoa de D. João IV” (AZZI, 2004, p. 22).
Paralelamente à ideia divina que circundava a coroa portuguesa, afirmava-se o caráter
dos portugueses como o povo eleito, “o novo povo de Deus presente na história” (AZZI,
2004, p. 23). A tradição portuguesa retomou a concepção do velho testamento da filiação de
Deus e sua descendência: “assim como no antigo testamento Deus manifestara sua escolha
pelo povo judeu, a partir de fins da Idade Média o novo povo de Deus vinha a ser a nação
lusitana, designada agora como uma nova Cristandade” (AZZI, 2004, p. 24).
A noção de cristandade reflete, fundamentalmente, a vontade de edificar uma
sociedade cristã, “a realização de reino de Cristo, sobre a terra” (Ibidem). Os portugueses
como povo eleito por Deus tinham uma missão política e religiosa de expandir a fé. Por isso,
36
(...) a inquisição nunca foi formalmente introduzida no Brasil, ainda que por volta de
1580, o tribunal de Lisboa tenha outorgado poderes análogos ao Bispo de Salvador,
e também os jesuítas foram autorizados a auxiliar os prelados diocesanos no preparo
do processo contra os hereges e a extraditar os acusados para ações inquisitórias em
Lisboa (VIEIRA, 2016, p. 35).
37
Nos primeiros séculos, a extensão do Santo Ofício no Brasil podia ser detectada nas
visitações de deputados que sondavam a vida do povo. A partir do século XVIII, se fizeram
presentes os familiares do Santo Ofício, que atuavam de maneira mais marcante, visando,
também, às riquezas do Brasil, deportando, por isso, centenas de brasileiros cristãos-novos
para o confisco de suas fortunas (HOORNAERT, 1991).
Como reação, os brasileiros criaram um novo tipo de catolicismo ostensivo, “praticado
sobretudo em lugares públicos, bem pronunciado e cheio de invocações ortodoxas a Deus,
Nossa Senhora, os santos” (HOORNAERT, 1991, p. 16). A preocupação com possíveis
suspeitas de heresia deu origem, assim, ao formalismo típico do catolicismo brasileiro.
Por isso, houve certa facilidade na formação dos numerosos sincretismos dentro das
fórmulas católicas. A preservação dos cultos africanos sobreviveu, mesmo diante da
repressão, devido à astúcia do negro e do bom senso dos funcionários da colônia, que
alegavam como folclóricas as manifestações negras, como danças e músicas profanas. Assim,
sob o véu da pomposa invocação às entidades católicas, mantiveram em segredo sua adoração
aos orixás.
O catolicismo deveria estar firmemente estabelecido na vida pública da colônia. Em
função disso, eram comuns as numerosas irmandades e confrarias, como a “Santa Casa de
Misericórdia”, difundida pelas cidades coloniais desde os primeiros anos da colonização,
sendo elas responsáveis pelo serviço social nas comunidades.
sociedade em relação ao catolicismo. O que se tinha, na verdade, era uma aceitação por
questões de sobrevivência: “proteger a casa comercial, o engenho, a indústria, sob invocação
religiosa de um santo era uma maneira de escapar à desconfiança dos ‘deputados’,
‘familiares’ e ‘oficiais’ do Santo Ofício” (HOORNAERT, 1991, p. 18).
Destaca-se também um dos principais meios utilizados pela Igreja no intuito de
consolidar o catolicismo na colônia: a ideia de guerra santa. A concepção medieval do termo,
utilizado para justificar as expedições católicas em defesa do Santo Sepulcro de Jerusalém, foi
trazida pelos portugueses. O discurso sobre a guerra dos teólogos cristãos foi inspirado pelos
conceitos mulçumanos: “(...) a expansão do Islã não foi feita apenas por razões políticas e
econômicas, mas também por uma meta religiosa, apresentada como prioritária: tratava-se, de
fato, de expandir a verdadeira fé” (AZZI, 2004, p. 125). Dessa forma, a ideia de guerra santa
foi incorporada à cosmovisão católica, que não apenas a aceitava por motivos religiosos como
a incentivava.
A radicalidade da negação da alteridade gerou uma visão do outro como inimigo infiel
da fé católica, considerado como “a própria personificação do Mal” (AZZI, 2004, p. 128).
Assim, “sendo a Cristandade colonial a realização de um desígnio específico de Deus, e a
nação lusitana tida como seu povo escolhido, era uma dedução lógica que os seus opositores
passassem a ser considerados como representantes das próprias forças do mal” (Ibidem). Em
contrapartida, os portugueses que davam a vida em prol do território e da fé eram
considerados como heróis ou mártires.
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Não houve passividade na ocupação do território brasileiro por parte dos portugueses.
A reação violenta dos indígenas5, que não se conformavam com a privação territorial, levou
os colonizadores a considerá-los violentos, selvagens e agressivos, características que
justificavam qualquer ataque.
5
Riolando Azzi cita os ataques a engenhos e fazendas por parte dos indígenas, assim como roubo de animais,
objetos e morte de alguns colonos.
6
“Emendar as camisas é uma indiscutível sobrevivência, valendo debate decisivo, luta desesperada, sem pausa.
Discussão intérmina e acalorada” (CASCUDO, 2004, p. 33).
40
podem ser sintetizadas entre a tensão “cultural/ social [...] cultura escrita/ imagens”
(GINZBURG apud MACEDO, 2008, p. 3). Tais dualidades existiam na Europa medieval,
sendo reproduzidas também no Brasil colonial.
Segundo Hoornaert (1991), elas se desdobram em três categorias de catolicismo no
Brasil: o guerreiro, o patriarcal e o popular. O catolicismo guerreiro reflete o espírito de
organização do Estado português e dos jesuítas frente ao empreendimento colonizador, ou
seja, na catequização e no desbravamento dos selvagens. São Sebastião, São Miguel, São
Tiago, São Jorge e Santo Antônio foram santos guerreiros utilizados para reafirmar e
legitimar a pertença ao Império Português e ao catolicismo contra os infiéis franceses ou
holandeses. O culto a São Sebastião, por exemplo, é um dos mais antigos no Brasil. Patrono
da cidade do Rio de Janeiro, fundada como São Sebastião do Rio de Janeiro, a devoção ao
santo foi largamente difundida na sociedade colonial. Auxiliados pelos santos guerreiros, os
colonizadores mantinham o território livre das invasões heréticas estrangeiras, consolidando,
assim, a cristandade colonial luso-brasileira.
O catolicismo patriarcal instaurou-se nos engenhos de cana de açúcar nos séculos XVI
e XVII. Objeto de estudo de Gilberto Freyre (1992), o patriarcalismo estava presente nas
propriedades dos senhores de engenho, que procuravam integrar escravos e outros
funcionários das fazendas na estrutura de produção e poder da produção açucareira. Nesse
caso, fala-se em um poder mais privativo, já que se limita às capelas próximas à casa grande.
Por fim, tem-se o catolicismo popular, praticado pelos gentios, indígenas e escravos,
mais amplo e com ganho de novos significados. Seus valores e costumes, quando
confrontados com outras culturas, geraram novas culturas mescladas. Apesar da hegemonia
católica, não foi possível a imposição plena dos dogmas, ocorrendo com isso, um processo
sincrético, na medida em que não houve conservação da religiosidade como nos locais de
origem, mas o surgimento de novas características no confronto de uma com a outra.
Transcende-se a configuração anterior ao contato. A própria diferenciação da condição
geográfica e cultural pressupõe certas modificações: a dimensão popular do catolicismo
brasileiro se mostra mais dinâmica em comparação às demais, sendo nele constatada a
renovação e a adaptabilidade, que agora adquire coloração própria.
Dentre as peculiaridades do que se formou na colônia, ressalta-se a intensidade do
culto aos santos, o grande número de capelas, a teatralidade da religião, a irreverência e os
inúmeros sincretismos com as diversas etnias, o que contribuiu de forma mosaica para a
formação do catolicismo brasileiro colonial.
41
Este senhor permitia em suas terras um culto sincrético realizado por índios em que
se destacavam uma índia a que chamavam Santa Maria e um índio que ora aparece
como “Santinho”, ora como “Filho de Santa Maria”. Os devotos tinham um templo
com ídolos, que reverenciavam. Alguns depoentes aludem a um papa que vivia no
sertão, que “dizia que ficara do dilúvio de Noé e escapara metido no olho de uma
palmeira”. Os adeptos da Santidade diziam “que vinham emendar a lei dos cristãos”,
e, ao fazer suas cerimônias “davam gritos e alaridos que soavam muito longe
arremedando e contrafazendo os usos e cerimônias que se costumavam fazer nas
igrejas dos cristãos, mas tudo contrafeito a seu modo gentílico e despropositado”.
“Santa Maria”, ou “Mãe de Deus”, batizava neófitos, tendo nisso a permissão de
Fernão Cabral e de sua mulher, Dona Margarida. O próprio senhor de Jaguaripe
costumava freqüentar o templo, ajoelhando-se ante os ídolos; segundo um dos
depoentes, ele era bom cristão, parecendo “que fazia aquilo por adquirir assim a
gente gentia” (SOUZA, 1986, p. 95).
eram bem vistos pelas tradições indígenas. A água batismal era recusada pelos índios, que a
associavam à morte.
Os jesuítas tiveram um papel essencial no processo de conversão indígena bem como
na totalidade da evangelização colonial. A língua tupi-guarani foi aprendida e utilizada pelos
padres da Companhia de Jesus como forma de propagar a fé. Dilermano Ramos Vieira (2016)
atenta para o fato pouco recordado de que o idioma português não tinha se consolidado até o
século XVIII. A língua dos indígenas tupinambás, falada em grande parte da costa atlântica,
começou a ser compreendida pelos portugueses, que a denominaram língua brasílica.
O Padre José de Anchieta foi responsável por sistematizar uma gramática da língua,
impressa em Coimbra no ano de 1595 sob o título de Arte de Gramática da Língua mais
usada na Costa do Brasil (VIEIRA, 2016, p. 52). A gramática de uso comum e sua
sistematização foi chamada de língua geral. Até mesmo as crianças receberam esforços por
parte dos missionários, que traziam crianças órfãs de Portugal no intuito de facilitar a
aproximação.
(...) para atrair crianças indígenas buscaram trazer meninos órfãos de Lisboa para
fazerem a ligação com os curumins [...] faziam-no representar autos, mistérios, de
fundo e sabor medieval, para depois chamá-los às missões, às escolas, aos colégios,
onde o ensino doutrinário e programático, na linha da Ratio Studiorum, assentada na
teologia do Concílio de Trento, apontava para uma religião universal e salvífica
(RIOS, 1994, p. 22).
desgraça na comunidade. Ainda assim era uma figura respeitada por comunicar-se também
com o mundo sobrenatural. O status de feiticeiro era alcançado por um caminho árduo e de
autodisciplina do corpo e da vontade, domesticando o corpo à dor. A resistência corporal
servia como prova de superioridade às forças naturais.
Novos conceitos e vocábulos foram introduzidos na religiosidade indígena pelos
jesuítas. A mitologia desse povo é reinterpretada com a incorporação dos seus heróis à crença
cristã. O anjo, elemento inexistente entre os tupis, recebeu por Manuel da Nóbrega o vocábulo
karaibebê, associando-o a um pajé com asas (LAUBE apud MACEDO, 2008, p. 10).
Também os mouros tiveram uma presença cultural importante na formação da
religiosidade brasileira. Câmara Cascudo (1978) aponta que diversas expressões católicas e
invocações exaltando o poder divino – pela graça ou pelo poder de Deus – são semelhantes à
enunciação mulçumana, que afirma que Deus (Allah) é grande. A tradicional inimizade dos
portugueses com os mouros não existiu na colônia, porém, como destaca o autor, há uma
herança portuguesa da mentalidade bélica contra eles.
no século XVII mesmo no XVIII, não houve senhor branco, por mais indolente, que
se furtasse ao sagrado esforço de rezar ajoelhado diante dos nichos; às vezes, rezas
quase sem fim, tiradas por negros e mulatos. O terço, a coroa de Cristo, as ladainhas.
Saltava-se das redes para rezar nos oratórios: era obrigação. Andava-se de rosário na
mão, bentos, relicários, patuás, santo-antônios pendurados no pescoço, todo o
material necessário às devoções e às rezas... Dentro de casa, rezava-se de manhã, à
hora das refeições, ao meio-dia e de noite, no quarto dos santos; os escravos
acompanhavam os brancos no terço e na salve-rainha. Havendo capelão, cantava-se:
Mater purissima, ora pro nobis... Ao jantar, diz-nos um cronista que o patriarca
benzia a mesa e cada qual deitava a farinha no prato em forma de cruz. Outros
benziam a água ou o vinho fazendo antes no ar uma cruz com o copo. No fim
davam-se graças em latim... Ao deitar-se, rezavam os brancos da casa-grande e, na
senzala, os negros veteranos... Quando trovejava forte, brancos e escravos reuniam-
se na capela ou no quarto do santuário para cantar o bendito, rezar o Magnificat, a
oração de São Brás, de São Jerônimo, de Santa Bárbara. Acendiam-se velas,
queimavam-se ramos bentos (FREYRE, 1992, p. 651).
7
O regalismo refere-se às práticas jurisdicionalistas absorvidas por Portugal, nas quais o rei soberano, pela
própria condição de soberania, tem liberdade de intervir nas questões eclesiásticas. “No caso português, a
afirmação desse sistema foi também uma indesejada resultante das concessões papais, que forçaram os reis
lusitanos a criar órgãos específicos para a gestão do aparato eclesiástico que lhes fora confiado pelo padroado
régio” (VIEIRA, 2016, p. 70).
46
O catolicismo oficial, definido pela teologia e pelo direito canônico, nunca existiu.
Existem sistemas concretos, constituídos por uma certa impregnação cristã de várias
civilizações. Mas o cristianismo puro, oficial, não existe. Nem os próprios clérigos o
vivem. A diferença entre o catolicismo dos clérigos e o catolicismo popular consiste
apenas nisso: que os clérigos imaginam que o seu cristianismo é puro e o único
verdadeiramente autêntico, enquanto os outros não têm problema de ortodoxia nem
de autenticidade. Na realidade existem apenas diferentes sistemas de tradução do
cristianismo em condições concretas de vivência humana. As formas populares
merecem tanto respeito quanto as formas oficiais. A conversão ao cristianismo não
se fará por imposição a todos de um cristianismo oficial definido a priori pelos
clérigos, mas sim pelo contacto renovado com o evangelho que cada um firme
dentro das suas próprias estruturas (COMBLIN apud HOORNAERT, 1991, p. 29).
Cabe notar que esse estudo se apoia em vários dos apontamentos supracitados: não
existe um grupo específico ou uma determinada classe que seja detentora da autenticidade
cristã, em termos de vivência concreta; o catolicismo popular e o oficial estão em um mesmo
patamar, sem que um se sobressaia em detrimento do outro; há uma dinâmica de incorporação
do cristianismo pelo povo, que não reproduz fielmente doutrinas impostas, incorporando-as e
reproduzindo-as conforme suas necessidades.
Nas próximas seções, serão retomados alguns pontos importantes do estudo de Câmara
Cascudo quando analisa a gênese da formação da mentalidade religiosa brasileira.
8
A locução tradicional no Brasil refere-se “(...) à prática utilizada no tempo, possibilitando a realização de dois
encargos na mesma oportunidade”. “Com uma cajadada, matar dois coelhos!” (CASCUDO, 2004, p. 140).
49
religião, mas principalmente na vivência do dia a dia, nos costumes e nas expressões da nossa
religiosidade. A estrutura medieval liga-se sobretudo à nossa sensibilidade.
Hilário Franco Junior (apud AMARAL, 2011), em um estudo intitulado Raízes
medievais do Brasil, com uma abordagem crítica ao livro de Sérgio Buarque de Holanda,
Raízes do Brasil, apresenta um dado que escapou não apenas a Holanda, mas a outros autores
da mesma época: as raízes do Brasil, mais que na civilização moderna portuguesa, deveriam
ser buscadas na Europa medieval. Segundo o autor, as estruturas mais características desse
período se firmaram por todo o território nacional.
Jerome Baschet afirma algo semelhante em relação ao México e à Espanha, quando
ressalta que “a história de um país colonizado apresenta certos laços particularmente estreitos
com a da sua metrópole, e tão profundamente que mergulha em toda a sua dinâmica da
cristandade medieval que se assentaria em terras colonizadas pelos europeus” (BASCHET,
2006, p. 33 apud AMARAL, 2011, p. 447).
Detecta-se, então, no Brasil a implantação de um sistema de valores medievais, o que
não pode caracterizar uma Idade Média brasileira como houve na Europa, embora esse
período tenha influenciado diretamente a maneira de viver do povo que aqui se desenvolveu.
Valores, costumes, hábitos, tão latentes quanto explícitos, sobretudo aqueles que
emergem da vida do cotidiano, das práticas familiares mais tradicionais, das
expressões de uma religiosidade mais íntima e própria de um grupo étnico-cultural
mais circunscrito espacialmente, das tradições orais que deixam fluir as
desconcertadas histórias e de longuíssima duração, cheias de maravilhas,
especialmente o miraculosus cristão, cuja origem é medieval (AMARAL, 2011, p.
447).
Isso pode ser percebido, por exemplo, nas práticas folclóricas do povo brasileiro, e na
presença da belicosidade e da religiosidade nas cavalhadas do Nordeste, que caracterizam
uma continuidade de costumes e modos de agir e de sentir tipicamente medievais. O apego a
devoções místicas e ascéticas da religiosidade popular, como as peregrinações, temores do
inferno e do Juízo Final e autoflagelações evidenciam a permanência da longa duração do
cristianismo medieval da Alta Idade Média e mesmo de épocas posteriores. Segundo Amaral,
essa característica é mais marcante justamente nas tradições populares, “atitudes religiosas
mais tendentes a visões dualistas do sagrado, percepções de fundo gnóstico, atitudes de
renúncia e penitência” (AMARAL, 2011, p. 447).
Até mesmo o sincretismo brasileiro caracterizado pela miscelânea resultante da fusão
e do aculturamento recíproco do cristianismo católico e das crenças africanas e indígenas
condiz com a realidade da cristianização medieval. O cristianismo proselitista da Alta Idade
50
Média “teve que se adaptar às expressões das religiosidades europeias autóctones e clássicas,
ora rechaçando-se, ora adotando-as, ainda que, nesse último intento, por um processo de
desnaturalização de suas significações e características primitivas, ou seja, cristianizando-as”
(AMARAL, 2011, p. 448).
Em relação às religiosidades africanas e indígenas, assim como na Europa
alto-medieval, há “uma cristianização do ‘paganismo’ e uma ´paganização’ do cristianismo”,
tendo em vista que as influências culturais, mesmo que impositivas, agem em uma via de mão
dupla. Uma cultura absorve a outra em maior ou menor grau, gerando uma fusão. “Mais que
uma aculturação, nasce um corpus em grande medida híbrido, como é o caso do encontro de
expressões religiosas que se fundem impositiva ou naturalmente” (AMARAL, 2011, p. 448).
Quanto à mentalidade e ao imaginário que norteiam a relação do homem com o
sagrado, a discussão se dá no nível do inconsciente: “Os sentimentos e crenças mais ligadas às
culpabilizações, demonizações, cerceamentos de desejos e superstições, como o
pressentimento que comumente nos abate de futuro mal-estar decorrente de um presente de
maior gozo e felicidade” (AMARAL, 2011, p. 448). A influência do sentimento medieval
faz-se no inconsciente, não apenas individual, mas coletivo do povo brasileiro.
associação da tradição popular de Dante e dos brasileiros. Dante foi transferido ao nordeste
brasileiro, ao sertão, à caatinga, ao Brasil. A compreensão popular, por sua vez, readapta as
versões recebidas no processo modificador de adaptação.
A superstição está fortemente vinculada à religião, embora não se limite a ela. Fato é
que a religiosidade que se formou no Brasil carrega na sua gênese uma dimensão
supersticiosa que permeia todas as religiões que aqui se desenvolveram com peculiaridade,
resultado do encontro de diversas crenças.
São consideradas superstições gestos e palavras, atitudes e ações, rogativas para
afastar o mal. São heranças milenares que induzem atitudes mentais, produzindo determinado
comportamento. Estão ligadas às necessidades básicas de comer, beber, existir. São
mecanismos de defesa do homem diante de uma situação misteriosa e incompreensível. As
superstições são, para Cascudo, permanências e continuidades de práticas que se perdem no
tempo e não têm origens exatas. “Somos representantes, biologicamente resignados, de povos
de alto patrimônio supersticioso” (CASCUDO, 1971, p. 156). Amerabas, portugueses e
africanos são o nosso alicerce.
9
“Entrar com pé direito é prenuncio de felicidade, ventura, êxito. Superstição que Roma oficializou,
derramando-a pelo Mundo” (CASCUDO, 2004, p. 73).
53
Dos povos indígenas, os tupis, jês e cariris são os que mais profundamente marcaram e
colaboraram com a formação de nossa cultura. Aruacos, caraíbas e outros grupos foram
menos determinantes.
No plano das atividades supersticiosas não havia como concorrer com esse infindável
complexo lusitano. Os escravos, mestiços, mamelucos, curibocas, cafusos foram, entretanto,
seus divulgadores. As crianças eram amamentadas em mães indígenas e depois,
preferencialmente, em “mães pretas”, que seguiam “pingando pavores nas almas meninas”.
Silvio Romero já havia salientado o papel do mestiço na circulação e modificação do folclore
brasileiro (CASCUDO, 1971, p. 160). A influência supersticiosa do negro, se for considerada
sua predominância numérica na sociedade brasileira, deveria ser, segundo Cascudo, o triplo
do que foi. Contudo, rapidamente adaptados ao ambiente da senzala, os escravos aderiram
com profundidade à cultura local. Mesmo nos quilombos, e depois libertos, as histórias e
crendices “brancas”, além de práticas dos senhores nas casas-grandes ou fazendas, eram
contadas e disseminadas.
Por outro lado, se os brasileiros receberam o sangue supersticioso dos portugueses,
estes receberam e foram influenciados pelos romanos. Considerada o berço de todas as
religiões, Roma precisou reagir por muito tempo contra as constantes invasões de soldados,
marinheiros, escravos, colonos e milícia estrangeira. Templos surgiam, marginais aos centros
urbanos, competindo no Capitólio com as égides supremas do povo do Império. Caldeus,
egípcios, persas, povos da Ásia menor e das ilhas do mar Egeu permeavam a cidade,
carregando cultos diversos.
Os cultos orgiásticos, as iniciações tenebrosas, as liturgias sangrentas, as previsões
horoscópicas seduziram a gravidade romana. As alianças bárbaras, embaixadas,
intercâmbio comercial, as ondas sucessivas de aventureiros asiáticos alagaram
Roma, as almas dos legionários, semeadores infatigáveis no mundo calcado pelas
cáligas insaciáveis (CASCUDO, 1971, p. 184).
gestos diários que se dão de maneira mecânica, instintiva, sem que se questione os porquês.
Ele se preocupa com as raízes da superstição considerando, no entanto, a
impossibilidade de se exportar, comprar, imitar ou importar uma civilização. Recria-se,
modificando e adaptando.
O caráter supersticioso da religiosidade popular brasileira deve êxito ao encontro
desses inúmeros povos de diversas crenças e superstições. A permanência de tal aspecto
instigou o nosso autor, culminando no livro Religião no Povo (1974). Nele o autor apresenta
um termo foco do nosso trabalho: a teologia popular, que se baseia no princípio da superstição
como fator comum às diversas religiões e religiosidades brasileiras.
O peso dessa dimensão supersticiosa no Brasil é significativo no sentido de ser campo
comum das tradições (orais e escritas), podendo ser percebida como caminho de unidade
cultural sem que se elimine as peculiaridades regionais.
56
povo. Não é o indivíduo que pertence à religião, mas a religião que faz parte do indivíduo. A
partir dessa ideia, analisa, utilizando as diversas influências anteriormente citadas, a
mentalidade religiosa brasileira, considerando hábitos, gestos e superstições.
Cascudo acredita que as noções de paraíso, dilúvio e compensações extraterrenas
foram heranças catequéticas, e não um produto nativo. Os indígenas, segundo o autor, não
tinham cultos organizados, hierarquia, ritual ou teogonia. O pajé era sacerdote e curador por
processos mágicos e intervenções sobrenatural, utilizando, em alguns casos, a flora nativa.
Ainda que inseridos, de certo modo, na religião católica, eles não abandonaram as práticas
tribais, o que também ocorreu com os africanos. “Sudaneses e bantos possuíam terapêuticas
permitidas pelos seus deuses, nada exigentes no rigorismo cerimonial, inversos aos
mulçumanos ciumentos de Alá” (CASCUDO, 1974, p. 2).
Os segredos miríficos eram guardados na base do animismo natural. Existiam forças
para o bem e para o mal sem que nenhuma potência superior às presidisse. A catequese para o
negro, assim como para o indígena, foi “desinteressada das reais conquistas da alma”
(Ibidem), tendo por finalidade a sobrevivência. “Alma seria necessidade do homem branco”
(Ibidem). Não há violação das crenças, uma vez que elas se diluíam nas funções diárias.
“Mantiveram as defesas mágicas e não os atos pragmáticos do culto tribal” (Ibidem). Nos dois
casos não há uma teologia de oposição. No entanto, de acordo com o autor, a sensibilidade
africana, e não a indígena, foi a detentora mais marcante do catolicismo cristão.
Uma questão importante na teoria de Cascudo se refere ao processo de adaptação dos
cultos cristãos às diversidades existentes na colônia. Segundo ele, o processo segue a mesma
lógica fixada desde o início do ciclo de adaptação cristã em relação aos cultos politeístas
autorizados pelo Papa Gregório Magno (590-609) ainda no século VI. “Enfrentando o
problema da resistência pagã aos nascentes dogmas da Cristandade, o arguto Pontífice
dedicou à nova Fé que se destinara aos Deuses gregos, romanos e orientais, África
Setentrional e Ásia Menor” (CASCUDO, 1974, p. 3).
Em fins do século VI, para evitar problemas, esse Papa transformou templos pagãos
em igrejas e festas dionisíacas em ágapes fraternais, sem que houvesse destruição ou
proibição direta, o que resultou em uma cristianização da esfera pagã pelo contágio do
sagrado. Houve o que Cascudo chamou de “uma absorção sem assimilamento
descaracterizador” (Ibidem). Os elementos heterogêneos foram conservados no âmago da
memória coletiva sem dissolução. Jesus Cristo, nesse contexto, foi entendido como sucessor,
e não usurpador dos antigos deuses, o que lhe garantia uma existência mais pacífica.
58
Seguindo essa lógica, o português “ficou fiel ao Deus que o batizara em Portugal e,
como o distante avô romano, reservou um altar oculto para a desconfiada crença nos divinos
assombros das negras cunhãs temerosas de tempestades e rumores insólitos no escurão da
noite equinocial” (CASCUDO, 1974, p. 3). Tal coexistência justificaria para Cascudo a
plasticidade sentimental brasileira. “Essa dupla nacionalidade espiritual, reverente aos
mistérios trazidos no sangue e deparados no clima habitado, sincera e natural, liberta-o dos
casos de consciência e das angústias da Incredulidade” (Ibidem).
A herança portuguesa e a catequese cristã se inserem profundamente na mentalidade
brasileira desde o século XVI, em interação com a cultura popular, oral e anônima. A
mentalidade medieval europeia trazida pelos portugueses resiste nos hábitos e costumes
religiosos, que se modificam em aparência, mas permanecem em sua substância íntima.
Mesmo que Deus lançasse seus filhos no azeite fervente e nas chamas sem fim,
Nossa Senhora interromperia o martírio inominável. Todos compreendem e
justificam a pena de morte, mas repelem horrorizados os tormentos, o jogo lento,
implacável sadismo do sofrimento provocado, minucioso, tranquilo, sobre a carne
viva de uma criatura humana. Admitem a forca de Tiradentes mas não as tenazes de
Antônio-José, o judeu. Galés perpetua. Não torrar em fogo-lento, como quem assa
perdiz (CASCUDO, 1974, p. 8).
4.1.1 Às almas
devoção popular, “a alma é uma invisível contiguidade humana, inseparável da terra pelo
hábito, e fora dela pela destinação mortal” (CASCUDO, 1974, p. 31). Consiste em um
espírito incorpóreo, detentor de funções orgânicas (audição, tato, voz, memória, visão e
raciocínio), e aparenta forma humana “vaporosa, espessa, fumo branco, transparente,
indecisamente luminoso, de contorno definido e normal” (Ibidem).
As almas disformes e assustadoras são enviadas pelo Diabo e as demais cumprem
missões de Deus na realização de penitências quando vivos, no intuito de salvarem-se na vida
eterna. Não têm, portanto, autonomia nos deslocamentos. No cumprimento das penitências,
podem assumir forma animal como “(...) cavalos, éguas, bois, expandem em relinchos e
mugidos autênticos as culpas antigas” (Ibidem), que, se praguejadas, têm sua pena aumentada.
Segundo Cascudo, não é comum as almas brasileiras tomarem formas de vegetais como na
Grécia antiga e na tradição italiana, à exemplo de Dante, que descreve grandes árvores como
hospedeiras de espíritos em penitência.
No início do século XIV, o Papa Clemente V, por meio de um decreto no XV Concílio
Ecumênico em Viena, definiu “ter a alma racional unicamente a forma humana” (CASCUDO,
1974, p. 32), e considerou heréticos os que não a concebiam desse modo. Apesar da medida, o
povo manteve a heterodoxia morfológica do pensamento anterior ao decreto, o que, para
Cascudo, caracteriza a continuidade imutável da lógica coletiva.
Por sua vez, as almas do inferno não cumprem penitência na terra. “O Demônio não
tem poder de retirá-las, mesmo momentaneamente” (Ibidem). A sentença definitiva não
permite, assim, que as almas deixem o recinto. A aparição assustadora provém do purgatório,
“excitando piedade, provocando orações pacificantes ou sugerindo, pelo sofrimento exposto, a
contrição corretora da conduta” (Ibidem)
Outra categoria de alma com aparição turbulenta e assustadora diz respeito às almas
perdidas, que não subiram ao céu ou desceram ao purgatório. “São os espíritos malfazejos”,
errantes por não terem sido sepultados ou por outras razões que o povo desconhece, que “(...)
ficam vagando pelos recantos onde viveram, numa temerosa irradiação de tremuras e calafrios
circunjacentes” (Ibidem).
O exorcismo dessas visões dá-se pela exposição de crucifixos ou mesmo no gesto de
cruz feito com os dedos. Vale fechar os olhos, interrompendo a “comunicação magnética”
com o assombro. Frases com evocação de santidades e rezas também apresentam funções
afastadoras. “Alma não ousa falar, interrompendo oração” (CASCUDO 1974, p. 34).
A hermenêutica popular é diversa e, segundo Cascudo, têm raízes profundas, lógicas,
emocionais. O merecimento do sofrimento é seu fundamento, uma vez que Deus valoriza os
61
O espírito dos mortos cristãos tem composição diversa da alma na Roma pagã. O
espectro romano, esquecido pela família, sem alimentos oblacionais, sem lembrança
religiosa e doméstica na Ferália, Parentália, Lemurália, especialmente sem túmulo,
tornava-se malfazejo, perseguidor, vingativo, derramando pavores irresistíveis,
acompanhando Hécate nas noites de lua, seguida pelo cortejo dos cães uivantes. (...).
As almas romanas e gregas não podiam ser emissárias dos deuses porque estavam
em desespero, tentando obter, pela imposição do terror, um lugar para os ossos e um
momento de pacificação reparadora (CASCUDO, 1974, p. 37).
(...) surgem no Brasil fantasmas que constituem tradições da Europa fidalga, figuras
com nobres pergaminhos testificadores da ancianidade crédula. Espectros já velhos
quando São Luis, Rei da França, vivia. Viajaram mais nas mentes que nos olhos.
Denunciam finalidade benéfica pela ausência de aspectos monstruosos, impressões
terríficas, consequências dolorosas. São “almas em pena” há mais de sete séculos
pertencentes às imaginações aristocráticas da Idade Média. Agora participam do
humilde patrimônio anônimo do Povo brasileiro, fielmente transmitidos
(CASCUDO, 1974, p. 54).
Ao contrário de Portugal, no Brasil não houve culto tão intenso e complexo como o
das Alminhas10 em terras lusitanas. Segundo o autor, o cenário influencia nessa dinâmica de
aparições sobrenaturais. As noites frias, com reuniões familiares ao pé da lareira, são
condições favoráveis no avivamento das tradições. O calor brasileiro seria, nesse sentido,
responsável por uma certa dispersão.
4.1.2 Ao morto
A imortalidade da alma era crença comum aos negros africanos e indígenas; contudo,
a ideia da vivência do morto é produto dos portugueses. Em Anúbis e outros ensaios,
Cascudo (1951, p. 13) faz um estudo minucioso desse culto, referindo-se ao deus dos mortos
da seguinte forma:
desde a mais remota civilização do Delta houve no Egito um deus popular, mais
venerado em determinada região, mais conhecido e amado por toda a terra sagrada
que o Nilo atravessa. Era ANUBIS. Nos mais velhos documentos arqueológicos de
Mênfis, quando a divindade não se materializara em imagens, quando Osiris, o deus
funerário, não possuía representação, já aparecia Anubis, guarda da Casa Eterna dos
Mortos, quarenta e cinco séculos antes de Cristo.
10
Culto tradicional em Portugal às almas do purgatório. Alminhas são pequenos altares espalhados por estradas e
encruzilhadas para as quais se direcionam as orações.
63
Quando Dante Alighieri visitou o paraíso, o apagado e doce Pettinaio estaria entre os
eleitos de Deus, com o nome de São Pedro Pettinagnolo. Mas esse santo fora eleito
pelo povo e sua canonização decretada pelo governo como uma nomeação
administrativa dentro de sua competência funcional. Em 1328 o Senado de Siena
intimou que todos os habitantes da cidade, sem exceção, comparecessem à igreja de
S. Francisco para assistir à festa de São Pietro Pettinagnolo (CASCUDO, 1974, p.
94).
À exemplo disso, cita-se Padre Cícero, que depois de anos de adoração popular foi
reconciliado pela Igreja Católica. A dinâmica da canonização dos santos consiste em uma via
de mão dupla. Muitas vezes o povo elege informalmente, ou seja, independentemente da
canonização oficial da Igreja Católica, seu santo. Ao mesmo tempo, a Igreja, com o tempo,
absorve a adoração popular, oficializando e adorando esses mesmos santos. Uma fonte nunca
deixa de alimentar a outra.
Constata-se, também, a eleição de santos nas famílias. Os oragos ou padroeiros
responsáveis por defender e zelar pela família, têm a vantagem de já ser conhecido por todos,
o que garante certas regalias e amenizações morais.
em conceder a Santo Antônio uma magnitude muito considerável, importante e eficaz junto
ao Espírito Santo” (RAHNER, 1969, p. 53).
A incorporação dos santos, por parte dos negros e indígenas, não foi resistente.
Segundo Riolando Azzi, mais ainda que os portugueses, esses povos tinham uma concepção
bem clara da situação do homem imerso no mundo sagrado da natureza. Retomando Roger
Bastide, o autor destaca que a assimiliação dos santos católicos pelos orixás africanos se deu
mediante as seguintes razões:
1º) A relação estrutural entre teologia católica da intercessão dos santos junto à
Virgem, da Virgem junto a Jesus, de Jesus junto a seu Pai e a cosmologia africana
dos orixás, considerados como intercessores do homem junto a Olorum.
2º) A relação cultural da concepção funcional dos santos que presidem cada qual a
uma atividade humana ou que estão encarregados de curar tal ou qual tipo de
doença, e a concepção funcional dos Voduns ou Orixás, que dirigem um setor da
natureza, ou que são, do mesmo modo que os santos, protetores de confissões, a de
caçador, a de ferreiro, a de guerreiro, etc (BASTIDE apud AZZI, 2004, p. 250).
Sendo essa a lógica, pode-se dizer que toda a sociedade colonial, com toda sua
diversidade étnica e cultural, “buscava abrigo sob o manto dos protetores celestes” (AZZI,
2004, p. 250)
Quanto à Maria, esta ocupa um lugar central na fé popular. Vê-se uma intimidade
maior com Nossa Senhora que com o próprio Cristo, o que, de certa forma, abre caminhos do
Novo Testamento aos fiéis. Cascudo reafirma essa predileção, chamando a atenção para a
função materna, que faria de Maria a mais compreensiva das criaturas.
Sabe-se que o culto mariano foi difundido e tornou-se a principal devoção dos fiéis
católicos. “Na Península Ibérica passou a ocupar lugar de destaque tanto na Corte como na
tradição popular” (AZZI, 2004, p. 215). Essas manifestações remontam a uma tradição
pré-cristã, com influência da antiga religião céltica. Para além do catolicismo e seus dogmas,
no culto mariano há “um fundo naturalista, antiquíssimo, vindo de sua religião arcaica,
primevamente ligada à Terra-Mãe (...) até às celebrações festivas de fertilidade, em coloração
telúrica” (COSTA apud AZZI, 2004, p. 215).
A expansão do culto mariano se deve, portanto, à capacidade de Maria, de acordo com
os fiéis, em atender às necessidades da população colonial bem como a de seus colonizadores.
68
Por meio de registros milenares, por assimilações e analogias, Cascudo percebeu que
as superstições são uma constante na história dos povos, modificando seus trajes para se
adaptar às necessidades locais, mas permanecendo em conteúdo.
Fórmula eficaz no afastamento dos males, ela precedeu e caminhou paralela às funções
religiosas: “Quando afirmamos a origem religiosa da superstição, excluímos a unidade
criadora, porque ela decorre, como um imenso rio, da coordenada imprevisível de afluentes”
(CASCUDO, 1971, p. 151). A finalidade da proteção é comum em ambas as esferas, não
havendo, nesse sentido, grandes diferenciações, assim como na Roma Antiga o fanun no
espaço rural coexistia ao templum:
Embora esse sentimento seja a causa, não são todos os tipos de medo, mas um em
particular: o homem torna-se vulnerável às superstições em momentos de
insegurança perante as adversidades da vida, a perda de bens materiais ou mesmo da
impossibilidade de alcançá-los, abandonando, dessa forma, a razão.
quando estão de posse dos bens da fortuna que amam sem moderação, os homens
supersticiosos se tornam vaidosos. Se, porém, começam a perder tais bens, sua
vaidade vai se transformando em tristeza, em medo de perder mais bens e em
esperança de ganhar. Se as perdas continuam, a tristeza ressentida cresce, o medo se
torna pânico. Esse medo inflamado, dominando afetivamente o ânimo preso à
ausência dos bens de fortuna almejados, consiste na causa da superstição.
respostas divinas. Contudo, para Espinosa, a imaginação não é uma forma de conhecimento
totalmente confiável, sendo, assim, incapaz de fornecer uma ideia adequada do real, mas
responsável por criar imagens confusas das coisas, tornando o homem impossibilitado de
compreender as leis naturais que regem o mundo e todas as coisas.
Ademais, o medo para Espinosa está relacionado à nossa potência de agir. Segundo
ele, o homem é definido por suas propriedades físicas, mas também por sua atividade.
Diversos elementos afetam nosso corpo, elevando ou diminuindo nossa potência de agir. “O
corpo humano pode ser afetado de numerosas maneiras pelas quais a sua potência de agir é
aumentada ou diminuída; e ainda, por outras que não aumentam nem diminuem sua a potência
de agir” (ESPINOSA, 1997, p. 285).
A ação do homem é diminuída pelo medo, atribuído ao ato de imaginar algo que existe
exterior a ele e que, tendo uma força arbitrária maior que a sua, é capaz de destruí-lo.
Imaginando que sua potência não seja capaz de vencer esse outro campo de força, o homem,
inseguro e vulnerável, busca sustentação na religião supersticiosa, na tentativa de manter seu
equilíbrio. O homem vulnerável pelo medo se torna, portanto, facilmente manipulado e
dominado por outrem: “[...] não há nada mais eficaz do que a superstição para governar as
multidões. Por isso é que estas são facilmente levadas, sob a capa da religião, ora a adorar os
reis como se fossem deuses, ora a execrá-los e a detestá-los como se fossem uma peste para
todo o gênero humano” (ESPINOSA, 2003, p. 7).
Tomado pelo pavor e, por isso, privado da razão e da capacidade de enxergar as coisas
como elas realmente são, o homem supersticioso não é livre. A liberdade em Espinosa é
definida pela capacidade do homem de agir sem qualquer tipo de constrangimento. Deus é
livre por não ser constrangido por nenhum fator externo a ele mesmo. Sendo assim, aquele
que se encontra sob o domínio do medo, ancorado pela superstição, está condicionado à
servidão.
A ideia inadequada de uma potência superior ao homem, capaz de dominá-lo e,
possivelmente, destruí-lo o leva a buscar fora da razão e da natureza certezas que acalentem
seus anseios. Esse amparo é encontrado, então, na religião. Sobre essa questão, Marilena
Chauí (2003, p. 11), com base em Espinosa, reafirma que “por medo e esperança, nascidos da
impotência para dominar as circunstâncias de suas vidas, os homens se tornam supersticiosos
e alimentam a superstição por meio da religião como crença em seres transcendentes ao
mundo e que o governam segundo decretos humanamente incompreensíveis”.
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A religião teologizada funciona como uma moral para o vulgar, que a considera uma
porta de salvação para sua impotência. A magia, no caso, exerce uma força significativa na
mente desses homens, evitando uma possível ira divina capaz de destruí-los. A incapacidade
de conceber adequadamente Deus como potência presente em toda parte faz com que o
vulgar, que precisa de uma autoridade, se contente com o conteúdo da palavra profética,
criando, assim, uma relação de dependência em relação às ilusões das narrativas bíblicas. Isso
torna os homens obedientes e dominados por aqueles considerados capazes de interpretar as
narrativas.
Em síntese, compreende-se que para o filósofo a superstição consiste em um desafio à
razão. O vulgar, ao considerar as superstições como verdadeiras, cria uma visão distorcida da
realidade e é, a todo momento, constrangido por fatores externos, diminuindo, assim, sua
capacidade de agir em liberdade. Há em Espinosa uma visão claramente negativa com relação
à superstição, que envolve toda a crítica proferida às religiões reveladas ou mesmo a qualquer
forma de irracionalismo seja na religião, política ou filosofia.
A abordagem de Luís da Câmara Cascudo é, até certo ponto, diversa da de Espinosa.
Enquanto a superstição é tematizada por ele no âmbito filosófico e político, Cascudo
apresenta uma abordagem sociocultural ancorado na etnografia e na historiografia. Há,
contudo, divergências e convergências entre as concepções.
11
Espinosa usa o termo vulgar para se referir aos homens do senso comum.
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É uma solução dependente da vontade individual. Farás tal ato para tal resultado. E
também se associa uma outra lógica, pré-lógica ou hiperlógica, de sentido oculto,
incompreensível mas real e que deve possuir efeitos decisivos, embora escapando à
percepção do homem. Essa fase escura, tenebrosa, cheia de forças imprevisíveis, é a
que mais atrai no ritmo da realização e da esperança. Fundamenta-se na confiança de
poder dispor, evitar, afastar, dispensar, aproximar as grandezas imortais, fazendo-as
ou tornando-as acessíveis e dóceis aos interesses pessoais, do agente supersticioso
(CASCUDO, 1971, p.155).
Importante destacar que a ação supersticiosa não é criadora, mas repetidora de algo
que se transmite permanentemente através do tempo. Se as discussões sobre as forças externas
de Espinosa forem consideradas, a superstição conceituada por Cascudo é plenamente
compatível.
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objetos, que ganham mais o status de enfeite que propriamente de proteção, unindo, com isso,
o útil ao agradável. De toda forma, as novas práticas não excluem as anteriores, ainda que não
sejam nítidas a consciência de sua existência e finalidade.
A lógica da superstição, para Cascudo, detém-se no caráter de defesa coletiva ou
individual presente em todos os tempos e condições. As necessidades humanas e sua
impotência frente a determinadas situações geram uma procura às práticas supersticiosas. “A
superstição determina uma hiper-sensibilidade, percepção de suspeita de reações punitivas dos
ofendidos, pela via mágica. O homem pressente presságios por toda parte” (CASCUDO,
1971, p. 165).
A superstição se mantém e se atualiza em um processo de adaptação constantes. “O
que atualiza uma superstição é o fascínio miraculoso de sua força de adaptação. A esparsa e
confusa galharia disfarça a verdadeira articulação ao mesmo tronco e esse a projeção da única
raíz terebrante” (CASCUDO, 1971, p. 172). Velhas superstições ganham novas modelagens,
mantendo um fio original:
as superstições dos modernos chauffeurs são permanências das abusões dos velhos
cocheiros dos carros de aluguel, nas últimas décadas do século XIX. Os primeiros
fregueses, os primeiros encontros durante a marcha, grupos, transeuntes isolados,
trajes, funções sugerem as mesmas impressões, associando-se às antigas prevenções
dos condutores de tílbure, caleche, coupé, a sege do tempo de Machado de Assis.
Nunca foram ouvidos mas conservariam algumas reminiscências dos defuntos
colegas das cadeirinhas e serpentinas do século XVIII (CASCUDO, 1971, p. 172).
Portanto, todos os indivíduos estão suscetíveis e contêm uma parte, menor ou maior,
de superstição. Olavo Bilac, Santos Dumont, Mário de Alencar, Joaquim Nabuco, o Barão do
Rio Branco, Afrânio Peixoto e outros tantos homens reconhecidos pelo cânone cultural foram
pessoas as quais Cascudo se referiu como supersticiosas. O teatro, a televisão, o cinema e a
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esfera dos esportes são campos férteis da propagação supersticiosa que se encontra enraizada
em seus agentes.
Pelo teatro, televisão e cinema a superstição talvez possua um dos reinos mais
poderosos, dominadores e sólidos. Haverá ator ou atriz sem uma mascote? Sem a
desconfiança em algo que ajuda ou atrasa? Objetos e atos são inevitáveis, públicos
ou discretos. Pé direito em cena, bater na madeira, rezar, evitar certas cores, roupa
nova, gravatas, sapatos, tais vestidos, encontros que são de azar infalível, frases
soltas ouvidas sem querer e ajustadas ao acaso, trechos musicais casualmente
ouvidos, recebimento de cartas, desaparecimento de jóias, enfeites, cão, gato,
pombo, vistos, ausência de determinado frequentador que dá ou não dá sorte; difícil
gente de palco sem os motivos protetores, mania, predileção auspiciosa, auxílio
mágico. Se infinitas superstições são mantidas na velha forma arcaica, outras
sobrevivem pela convergência, aliança ou fusão com outros tipos. O número 13 foi
excluído das poltronas dos aviões e dos camarotes transatlânticos, reaparecendo 12-
A ou 12-bis, cautelosamente. (...). Sabemos em técnica de propaganda, que nenhum
produto deva possuir nome contrário a uma superstição (CASCUDO, 1971, p. 173).
Grande parte dos nossos hábitos atuais foram, conforme Cascudo, “gestos religiosos,
comuns e rituais” (CASCUDO, 1971, p. 176). Por vezes, a essência religiosa se esvai e
permanece o ato “indispensável e natural às necessidades modernas” (Ibidem). A maneira
secular de se portar diante de determinadas circunstâncias se repete no automatismo do
costume.
A memória, o inconsciente coletivo, o arquétipo junguiano, o saber do povo, a
oralidade são vias de manutenção do costume por meio de símbolos, que são forças atuantes
na latência da piedade e da crueldade do homem. Basta um acontecimento da história, um
estado de angústia, um acontecimento avassalador para que os hábitos, que ficam ocultos,
subam à superfície, retornando com a mesma vitalidade que as originaram. Cascudo retoma
Freud, considerando a superstição “uma percepção endopsíquica” (CASCUDO, 1971, p. 168),
ou seja, mantêm-se viva na memória e, mediante uma situação favorável para a eclosão,
projeta-se “como uma realidade exterior” (Ibidem).
Para esclarecer melhor a concepção de superstição proposta por Cascudo, é necessário
retomar uma de suas descrições metafóricas a fim de ajudar a criar uma imagem do que
significa a sobrevivência dos cultos desaparecidos.
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No capítulo “Da teologia popular”, do livro Religião do Povo, Cascudo afirma que
“há, evidentemente, uma Ciência de Deus entre o Povo”. Segundo o autor, existe um critério
uniforme na vivência dos acontecimentos grupais e individuais que rege uma “classificação
sentenciosa apoiada no consenso da comunidade” (CASCUDO, 1971, p. 171).
Ao contrário do que pressupõe a teologia dogmática, a teologia popular contraria a
racionalidade no entendimento da esfera divina. “Ao contrário da presunção teológica:
teimosa, louvável e contraprudente, o raciocínio popular nega formalmente que a razão
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castidade? Nas fêmeas. No homem “nada péga”. O pecado sexual Deus deixou no
Mundo porque fez os membros apropriados para a fecundação. Só se peca porque
ELE permite. O maior crime é o roubo. O assassinato é justificável e o furto nunca.
A traição é a sujeira repugnante numa criatura. A ingratidão, esquecimento dos
benefícios, é defeito da carne fraca, assim como a mentira mas o falso é por todos
condenado. Continua o horror ao incesto, atingindo afilhadas e comadres
(CASCUDO, 1971, p. 176).
O celibato clerical é prática desacreditada pelo homem do povo, que duvida da pureza
sacerdotal. “Fora do altar, são homens como outros” (CASCUDO, 1971, p. 176). A exigência
restringe-se aos deveres e à assistência cristã, não sendo cobrada a prática do sermão. A
missão dos clérigos detém-se nos conselhos, conversas e admoestações. Dizer “vá conversar
com o vigário” (CASCUDO, 1971, p. 177) era recorrer a uma instância máxima. A
interrupção do ministério por prática indevida do vigário não era admitida. “A prevaricação
ao sexto mandamento não afeta a obediência primordial ao primeiro” (Ibidem). O
consentimento à cópula é lícito e justificado. “Para isso Deus aparelhou os dois sexos”
(Ibidem). Consiste em crime a violência carnal, estupro, coito não consentido por ambas as
partes. “A castidade é um compromisso entre o padre e Deus” (CASCUDO, 1971, p. 178).
Permanece o interesse do povo no exercício do ministério na comunidade e não a vida privada
do padre.
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Outra constante observada por Cascudo diz respeito à predileção pelos ditos
sentenciosos, “sínteses da longa elaboração íntima” (…) Peço esmola, mas não peço
proceder”; “A diferença entre rico e pobre é só dentro do bolso”; “A lição do homem é no que
faz e não no que diz”; “O homem entorta o que Deus fez certo” (CASCUDO, 1971, p. 180).
Não há comentário ou justificativa após a sentença, deixando clara a intenção moral.
As frases curtas e sinceras têm um poder incontestável. “Dito e feito”. O conjunto de
provérbios consiste em código de ética comportamental, que a memória conserva porque
aceita. “As origens são longínquas, variando o vocabulário da apresentação recente. A
memória conservou esse patrimônio porque concordava com ele. É uma orientação religiosa
às repercussões da vida diária” (Ibidem). A memória do povo não se desocupa dos
julgamentos morais.
O homem do povo para Cascudo não se atreve a mergulhar em raciocínios adversos,
contrários aos dogmas da própria conclusão, “restrições formais imobilizando as soluções de
sua hermenêutica” (CASCUDO, 1971, p. 181). A consciência é a da certeza, hereditariedade
da confiança. “Onde começa o mistério para o intelectual, inicia-se a constatação para o
Povo” (Ibidem).
A teologia popular segue os preceitos da lógica supersticiosa. O conjunto de hábitos,
crenças, ritos, apesar de diversos em cada região apresenta uma unidade lógica e imutável.
São reminiscências psicológicas que afloram de maneira generalizada na vivência da fé por
todo o Brasil. Independente das chamadas religiões populares e de quais sejam, a
religiosidade do brasileiro encontra sua unidade nessa lógica supersticiosa, na lógica do
super-stitio, daquilo que sobrevive. O povo reproduz a dinâmica milenar sem a consciência da
reprodução, mas confiante na eficácia.
Percebe-se, assim, que Cascudo encontra uma unidade na atuação do povo brasileiro
que segue a lógica da superstição. Existe uma força que age no inconsciente coletivo, que
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
da instantaneidade das informações e das pesquisas cada vez mais direcionadas à cyber
tecnologia, o caráter supersticioso permanece vinculado a esses mesmos meios. Em tempos de
internet discada, as rezas, as figas e os dedos cruzados não desapareceram. Atualmente,
rezamos pelo wi-fi, para afastar os mesmos males e alcançar a mesma graça.
De acordo com a concepção de Cascudo, a impossibilidade da extinção supersticiosa é
garantida pelos infinitos processos de readaptação. As superstições mudam de trajes; porém,
permanecem em conteúdo, sendo compreendidas, essencialmente, como atos defensivos às
inconstâncias e ameaças externas, que se transfiguram, mas não se findam. É perceptível uma
alteração no traje supersticioso que ainda encontra na contemporaneidade terreno fértil de
atuação. Enquanto houver medo, haverá superstição. Exterminar o medo ainda não foi
possível e não sabemos se será. De toda forma, a lógica atual do mercado global e do
desenvolvimento cada vez maior da mentalidade meritocrática, em que se pesa o ganhar e o
perder constantes, viabiliza a crença sobrenatural, protetora e psicologicamente confortante.
Novos atos defensivos surgem, sempre com a mesma finalidade.
Compreender a dinâmica da mentalidade popular em Câmara Cascudo ajuda a
compreender aspectos da sociedade que permanecem por toda a história e são perceptíveis no
modo de viver do povo brasileiro. Vale lembrar que o autor viveu em um período bem diverso
do atual e que acompanhou com um certo distanciamento a difusão da televisão, quiçá da
internet, já que fenômeno contemporâneo.
Em relação às religiosidades, embora o cenário seja outro, é possível detectar a
presença mais fiel em relação às constatações de Cascudo, em ambientes mais afastados das
cidades, onde ainda se encontra uma vivência religiosa mais sistemática e comunitária. As
modificações nas concepções atuais da extrema valorização do indivíduo em detrimento da
coletividade modificaram as práticas e as dinâmicas sociais. A busca pela religiosidade de
culto individual e a constante criação de movimentos religiosos, como a New Age, as
influências do pensamento e das práticas orientais ou mesmo a expansão progressiva dos
pentecostais e neopentecostais, geram um novo cenário que modificam o campo religioso
brasileiro. Tais fatos, infelizmente ou felizmente, não foram vivenciados por Cascudo, que
certamente teria muito a nos dizer.
Consideramos, portanto, que existe uma teologia que se forma a partir da superstição,
como afirma Cascudo, e que, ao mesmo tempo, retroalimenta a superstição. Assim, da
superstição surge uma teologia no povo, que a mantém verdadeira, a fim de ser instrumento
de compreensão da realidade vivida. Dessa forma, uma esfera torna possível a outra e vice-
versa. Soma-se à lógica dessa teologia, enquanto instrumento permanentemente válido de
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