Cláudio Manoel Da Costa - Sonetos (ARCADISMO) PDF

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Ie ne fay rien

sans
Gayeté
(Montaigne, Des livres)

Ex Libris
José M i n d l i n
OBRAS POÉTICAS
DE

CLÁUDIO MANOEL DA COSTA


(GLAUCESTE SATURNIO)
c®o

N O V A E D I Ç Ã O
Contendo a reimpressão do que deixou inédito ou anda
esparso, e um estudo sobre a sua
vida e obras por

JOÃO RIBEIRO
da Academia Brasileira

TOMO I

SONETOS, ECLOGAS, EPÍSTOLAS, FÁBULA E EPICEDIOS


°ft°

H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR
71, — RUA DO OUVIDOR, — 71

RIO DE JANEIRO
1903
OBRAS POÉTICAS
DE

CLÁUDIO MANOEL DA COSTA


(GLAUCESTE SATURNIO)

Contendo a reimpressão do que deixou inédito ou anda


esparso, e um estudo sobre a sua
vida e obras por
JOÃO RIBEIRO
da Academia Brasileira

TOMO I

SONETOS, ECLOGAS. EPÍSTOLAS, FÁBULA E EPICEDIOS


- ^ X X Í

H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR
7 1 , — BUA DO OUVIDOR, — 7 1

RIO DE J A N E I R O
1903
ADVERTÊNCIA

A presente edição das obras de Cláudio Manoel


da Costa foi pela abundância de matéria dividida
em dous volumes. Em seguida ás suas Obras, da
edição de 1768, dispuzemos o poema Villa Rica e
as poesias inedilas.
No que é relativo ao texto das Obras, impressas
ainda em vida do auctor, não quizemos corrigir sem
vantagem a orthographia da edição primitiva, a
qual, segundo era a do tempo, mais se aproximava
da pronuncia ; apenas limitamo-nos a não seguil-a
na pontuação sempre defeituosa, e em certos
archaismos que hoje fariam mau ver (rey, tey, athé,
cançoens, e t c ) .
Ao juizo critico que precede o texto ajuntamos os
documentos essenciaes que completam a biographia
do infeliz poeta. Cora isso prestamos modesto ser-
viço ás letras pátrias, reunindo o que andava
esparso e offerecendo os materiaes que até hoje
foram encontrados á meditação e ao estudo d'aquelle
que um dia fizer a edição definitiva das obras do
poeta mineiro.
CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Carta ao Sr. José Veríssimo sobre a Vida e as


Obras do poeta.

Meu prezado mestre e collega!


A falta de uma edição tão completa quanto fosse
aqui possível organizar das obras poéticas de Cláu-
dio Manoel da Costa, inspirou-me a idea de ten-
tal-a, e ousei a fazel-o, é certo, porque a V. e pou-
cos outros que exercem entre nós o honesto e in-
grato dever da critica, é que cabiam a attribui-
ção e a auctoridade de emprehendel-a. Muito tempo
escoará ainda até que se façam dos nossos auctores
as edições perfeitas e definitivas com a revisão com-
pleta dos textos, as concordâncias, as variantes, e as
interpolações: será isso a tarefa d'outra edade,
quando já desattento dos nossos cuidados, possa
um homem consagrar toda a vida ao estudo de
outra vida.
Hoje a necessidade de fazer tudo pelo dever de
não esquecer cousa alguma, produz esses inven-
tários appressados nos quaes outra mais severa
justiça descobrirá vicios e corrupções, e o bisonho
critico perderá a sem razão ou o direito só por que
i. i
2 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

disse como o ignaro romano arbos em vez de vila.


Não ignoro, pois, os rigores do processo e também
é um pouco para me forrar ás penas d elle que me
acolho á experiência e á sympathia do mestre.
Na nossa Academia de Lelras a memória de
Cláudio Manoel da Costa foi honrada e lembrada
por um dos nossos collegas, e um dos maiores poe-
tas da geração presente o Sr. Alberto de Oliveira.
Sem embargo d'essa escolha, que foi excellente, e
de outras glorificações que o poeta tem merecido,
pode-se dizer que o povo quasi perdera de vista o
seu vulto e as feições que o faziam certo e comsigo
mesmo parecido.
N'elle sempre estiveram promptos a lembrar o
patriota e a esquecer o poeta. O seu livro principal
é raro quasi como um incunabulo, e excepção feita
dos curiosos e bibliomanos, só é conhecido e mal
pelo que está nas anthologias e collectaneas. E é
curioso verificar, só o patriotismo ou o sentimento
local é que explica as duas edições da única das suas
obras, assignaladamente inferior a todas as outras.
Esta modesta edição não tem mais que o intuito
todavia já de si meritorio, de vulgarizar as obras
do poeta que Garrett, de tão grande fé na matéria,
considerava o rival de Metastasio.
Ao colligir e ao recolher os materiaes esparsos que
formam as obras do poeta, impoz-se a necessidade
de estudar-lhe a vida, e logo notei quam pouco se
sabe d'ella. Em passos essenciaes falham os docu-
mentos, ou a auctoridade dos historiographos. Toda
a sua biographia foi intencionalmente eivada de
invenções e de fábulas que felizmente já se dis-
OBRAS POÉTICAS ó

siparam, conhecida a ausência de escrúpulos dos


seus inventores. De algumas das suas producções e
pequenos opusculos publicados em Coimbra apenas
resta a noticia bibliographica, até que o acaso ou a
diligencia de pesquizadores mais felizes os tragam á
publicidade. Vários períodos da vida do poeta são
intensamente obscuros: o da sua infância e adoles-
cência no Collegio dos Jesuítas e, maxime, o ultimo
decennio de sua vida que parece de absoluta inacti-
vidade.
Com tantas falhas e tão minguada bagagem
estime V. em quanto trabalho se ha de contar
a minha tarefa. O estudo do meia em que se agitou
a personalidade do poeta e a meditada leitura dos
seus versos deram-me essa impressão que transmit-
to tão sinceramente quanto senti.
Não esqueci, d'entre os meus deveres interinarios
de critico e escoliasta, o de discutir todos os pontos
duvidosos e de negar fé a quanta asserção (ainda de
boa fé) não me parecesse bem estabelecida e fun-
dada. Nos admiradores do poeta ha sempre mais
pendor para os vaticinios do que para as realidades.
Mas cuido que pude amal-o sem trair a conveniência
de ser verdadeiro.
Quando uma vez escreveu V. do poeta que era um
virtuose, esta só palavra deu-me o resume e a expres-
são cristallina que de balde eu procurava para apu-
rar-lhe o valor. Havia eu chegado ao mesmo resul-
tado mas diffusamente sem tocar a definição
verdadeira.
6 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

pátria que lhe dictou um assumpto local, da capi-


tania ou mesmo, do paiz onde havia nascido. Por
isso mesmo, na dedicatória do poema ao segundo
Conde de Bobadella exprime-se em termos mais
exactos:
» Depois de haver escripto o meu poema da fundação de
VillaRica, Capital das Minas Geraes, minha pátria...»
E aqui já a clareza do epílogo do poema começa
a annuvear. Quando o poeta apostropha a Villa
Rica, não tem em mente apenas a cidade, mas a pá-
tria e com ella o seu poema; n'essa passagem é
apenas o imitador de Basilio que também diz :

Serás lido, Uraguay !


Em qualquer caso para o homem que vivia no
funccionalismo, na advocacia e no foro, ao seu espi-
rito apresentava-se, pela natureza das questões de
officio que muitas vezes devia tratar, a unidade
estreita de Mariana e Villa Rica aquella localidade
subordinada e até designada por esta em cousas de
justiça, pois eram a mesma comarca no tempo em
que só havia trez em todo o território das Minas.
Mariana é termo de Villa Rica. e pois Villa Rica
podia acaso ser chamada o berço do poeta, tanto
melhor quanto o poeta não nascera propriamente no
local da cidade, mas em terras d'ella.
Essas conjecturas coincidem com a verdade
quando d'ellas arrazoamos todas as demais pro-
vas que o próprio poeta nos fornece. No Auto de
peryuntas da Conspiração de 89, o poeia diz ser
« natural da Cidade de Mariana», no registro de
OBRAS POÉTICAS /

baptismos, ahi é apresentado á pia ; e são innume-


ros os passos das suas obras onde a affirmação se faz
de modo positivo, claro e ás vezes minuciosamente.
Eis alguns d'esses trechos:
No prólogo das suas Obras (edição princeps e
única) diz o poeta :
« Esta (paixão) me persuadiu a invocar muitas vezes, e a
escrever a Fábula do Riberão do Carmo, rio o mais rico
d'esta capitania que corre e dava o nome a cidade de Ma-
riana, minha pátria quando era villa. »
Estão na ECLOGA III os versos :
As lusitanas glorias
Levará a meu canto
Se o pátrio Ribeirão me inspira tanto-

Ainda na ECLOGA XIV Alcino (que é o poeta)


fala do
« Turvo e feio um ribeiro... »
e no Ribeirão do Carmo:
Vizinho ao berço caro
Aonde a pátria tive.
Entre as suas poesias inéditas que, prestando
inestimável serviço ás letras pátrias, pub(licou o
douto sr. Ramiz Galvão, as allusões ao berço natal
são também freqüentes.
Na Ecloga, saudade de Portugal e alegria de
Minas, deparam-se referencias preciosas, e n u m a
de suas Odes que começa Florescentes oiteiros ha
estes trechos:
8 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

« Formosas habitantes
Do pátrio ribeirão...

Venturoca Mariana

Gênios do pátrio rio.

E assim muitos outros que omitto por já ser de


mais o allegado. Ainda concorre para robustecelo, o
requerimento de Cláudio para habilitar-se á carreira
sacerdotal o que não levou avante (1), renuncia
feliz que o não arrancou ao seio culto da Europa
onde em mais polido e menos desconsolado meio
estava a apurar, esmerando-as, as suas grandes ap-
tidões naturaes.
Foi entre os aspectos selvagens e quasi bravios da
(1) Não tem razão José Pedro Xavier da Veiga nas suas ex-
cellentes Ephemeridades mineiras, com tanto labor organisadas,
para contestar com tão futeis fundamentos a natureza d'essa
prova. O texto do requerimento é: « Diz Cláudio Manoel da Costa
filho legitimo de João Gonçalves da Costa e Tereza Ribeira de Alva-
tenga da Vargem do ltacolumi... etc. » Em uma inquisição depu-
ritate sanguinis, só havia naturalmente a necessidade de indicar a
filiação do requerente ; a este e não aos pães é que podia aprovci-
rar para esclarecimento a indicação de naturalidade ou residência
quando uma não fosse differente da outra. Por isso não entravam
outras allegações por menores e insignificantes. Xavier da Veiga,
apesar de que é consciencioso e probo nas suas investigações, tomava
aqui o partido (cousa muito dos costumes provincianos e locaes) de
que Ouro-preto devia « vindicar a gloria de ter dado o berço ao
seu inolvidavel cantor»... Com esse estreito espirito de prosely-
tismo não é possível descobrir a verdade. Não nos esqueça toda-
via fazer justiça ao estudioso investigador a quem devemos o escla-
recimento de muitas duvidas que sem o seu zelo e intelligencia não
estariam ainda dissipadas.
OBRAS POÉTICAS 9
natureza que se lhe formaram as primeiras impres-
sões da meninice em alma que havia de sempre ser
frágil, mimosa e delicada. Ali, a terra é toda de
ferro, mineral e dura, as águas não tem nivel, nada
reflectem, e o ceo não tem profundeza tanto as
nevoas o toldam e apagam:
D'esles penhascos fez a natureza
O berço em que nasci. Oh quem cuidara
Que entre penhas tão duras se creara
Uma alma terna, um peito sem dureza.
Cláudio Manoel não é ainda o filho próprio do seu
habilat, é o primeiro fructo, ácido e mirrado, da
arvore humana transplantada. Effectivamente os
seus avós paternos são portuguezes e os avós ma-
ternos são immigrantes paulistas (1), pertence pois
á primeira geração dos mineiros, isto é, áquella que
nascendo entre as suas bravias montanhas, no mo-
mento pelasgico da conquista e da paz, represen-
tava-a concórdia entre os forasteiros e os bandeiran-
tes, concórdia obtida a custo de monstruosos e san-
guinolentos sacrifícios.
lnda perduravam na memória e deviam embalar a
infância de Cláudio, as historias terríveis dos pri-
meiros que chegaram á terra, e os tremendos episó-
dios da guerra dos emboabas* consumados a vinte
annos apenas de distancia do natal do poeta. Conta-
ram-lhe sem duvida, para atemorisal-o e augmenta-
(1). São os pães do poeta João Gonçalves da Costa e Tereza Ri-
beira de Alvarenga ; os seus avo* paternos são portugezes Anto-
tonio Gonçalves da Costa, da freguezia da Ribeira e Antônio Fer-
nandes, da freguezia de S. Mammede das Talhadas. Os seus avós
maternos sôo paulistas, Francisco deBarros Freire e Isabel Ro-
drigues de Alvarenga, ambos da freguezia de Guarapiranga.
1
10 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

dos da tradição, os horrores da iniqua catastrophe.


E' a mesma tradição que sabe tecer as lendas quem
imagina as historias terriveis.
Não acredita V. no influxo que teriam sobre a for-
mação do poeta as gestas dos conquistadores?
N'esse tempo, os levantes eram freqüentes para
saciar ambições ou para vingar iniquidades antigas
que injustiças novas ainda aggravavam, porque afinal
o ouro servia o prêmio do mais forte.
« O ouro, dizia elegantemente Rocha Pitta, tor-
nou-se o iman das gentes do Brasil. »
Das preoccupações de vil lucro e da « grossana
dos habitantes » nunca se consolará o poeta.
A natureza não é bastante risonha para desmaiar-
lhe o espectaculo humano, a Não são estas, dirá ao
chegar mais tarde (1), as venturosas praias da Arca-
dia, onde o som das águas inspirava a harmonia dos
versos. Turva e feia a corrente d'esses ribeiros, pri-
meiro que arrebate as ideas de um Poeta, deixa pon-
derar a ambiciosa fadiga de minerar a terra que lhes
tem pervertido as cores. »
Mas ainda que « entorpecendo o engenho dentro
do seu berço », aqui é que se reavigoram as impres-
sões indeléveis dos primeiros annos; o amor da pátria
prevalecerá quando a vir humilhada e por ella emfim
dará em holocausto a vida.
A própria terra gretada, lastimada e corrompida
pelo alvião da ganância, geme
Não se escuta a harmonia
Da temperada avena
Nas margens minhas que a fatal porfla
(1) No prólogo das suas Obras.
OBRAS POÉTICAS 11

Da humana sede ordena


Se attenda apenas o ruído horrendo
Do tosco ferro que me vae rompendo.

Mandado pelos pães para o Rio, iniciou ahi na ado-


lescência o seu curso de letras. Entrou para o Colle-
gio dos Jesuítas, onde freqüentou as aulas de philo-
sophia, rhetorica, theologia e a mathematica e o
estudo das letras latinas e gregas, formando o espi-
rito na verdadeira educação clássica. Eram então
esses estudos accuradamente feitos, como o provam
no tempo ao menos os excellentes discípulos que de
lá saíram para cursar a Universidade (1); ainda era,
em verdade, própria da época essa diligencia de que
quasi não existe mais a tradição, hoje que em nossos
atrapalhados institutos sob nomes pomposos e esté-
reis apenas ha um vestígio de humanidades sem hu-
manismo nem liberalismo de cultura. Ahi conquistou
Cláudio Manoel da Costa a laurea de mestre em artes.
Não sabemos quando chegou ao Rio de Janeiro,
mas deveria ser aos quatorze ou quinze annos de
edade (2), senão talvez um pouco antes. Em qualquer
caso, o momento decisivo que é o da sua consciência
de homem e o do sentimento das primeiras responsa
(1) Dá uma lista dos mais illustres, Varnhagem, alias sempre
pouco favorável e não raro injusto para com os Jesuítas. Florilegio,
tomo I (C. M. da Costa).
(t) Em 1743 ou 1744; não podia ser posterior a essa data, porque
em primeiro lugar representa a edade própria d'esta ordem de estu-
dos, e, em segundo lugar, tendo já a sua laurea em 1749 quando
partiu para Coimbra, não é muito suppor que cursasse o Collegio
por seis annos em disciplinas e estudos tão difficeis e feitos com o
rigor com que era costume fazel-os.
12 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
bilidades sob este céo foi que se revelou em sua alma
Deve-se considerar este período da adolescência,
vivido no Rio, como o da formação primeira do espi-
rito, o que logo devia denunciar o caracter, o gênio
e a originalidade. Na verdade, dos quatorze aos vinte
annos todas as compleições algo se definem e fixam
os traços da physiognomia futura. E essas revela-
ções principalmente se determinam nas almas tenras
e melancólicas, nas quaes a sensibilidade e a emoção
por mais intensas são difficeis de conter.
Era bem natural, pois, que sob esse esplendido
céo da Guanabara, subissem os estos da primeira
inspiração. Recato ou modéstia, conteve-os o poeta
occultos ou velados pela confidencia de seus amigos.
Não temos, é certo, versos que possam ser fixados
na época dos seus estudos de humanidades; todavia
póde-se dizer de Cláudio, como de todos, que nenhum
poeta começa a versejar depois dos vinte annos;
para não poucos já essa edade inicia o limite extremo
Ia inspiração emotiva e começa a habilidade technica
do versejador; falo dos que não são verdadeiramente
poetas e a custa de pura eloqüência e de imaginação
sonegam a esterilidade da alma. No próprio Cláu-
dio Manoel da Costa o período de inspiração não vae
aiém dos seus quarenta annos de edade (1), mas não
(1) 0 livro de Cláudio Manoel da Costa é de 1768. Depois d'esta
daía devem ser collocadas muitas das composições poéticas inéditas
e agora editadas pelo dr. Raraiz Galvâo(fleí). bras., tomo II, 1895).
A muitas d'ellas deve ser anterior o Villa Rica, poema que já fica
muito longe dos sonetos e das eclogas; já então Vergilio ou Petrarca
deixam de ser os mestres do poeta; e os seus modelos serão Lucano
ou Voltaire. Ainda encontram-se lampejos do antigo estro, mas sem
calor, sem affccto e sem verdadeira poesia.
OBRAS POÉTICAS 13
nos appressemos por emquanto em julgal-o na ma-
dureza da vida.

III

Partiu Cláudio Manoel da Costa para Coimbra,


onde devia concluir os seus estudos.
Não ha documento da sua partida, mas devia ter
sido em 1749, quando aos vinte annos de edade; por
que não só essa dilação é necessária tendo alcança-
do, como o fez aqui, a laurea de mestre em artes,
mas ainda tendo-se graduado em cânones em 1753
e havendo deixado a pátria por espaço de cinco
annos (1), só assim se conciliam, sem repugnância,
os factos.
Mas ainda aqui as duvidas são numerosas. A data
de 1753 como a da sua graduação é dada sob a fé de
um bibliographo, o Conego Januário Barbosa. Temos
comtudo pelo menos um documento que indica que
em 1751 já vivia em Coimbra o nosso poeta : é a im-
pressão do seu Munusculo métrico nas officinas de
Luiz Secco Ferreira e dedicado ao 111. e Rev. Senhor
D. Francisco da Annunciação, confirmado segunda
vez na dignidade de Reitor da Universidade (1751).
Evidentemente se ainda não houvesse saido do Brasil
não se explicaria a dedicatória a este personagem
(1) No prólogo das suas Obras : «Não permittiu o céo que alguns
influxos que devi ás agoas do Mondego, se prosperassem por muito
tempo : e destinado a buscar a pátria que por espaço de cinco
annos havia deixado... »
14 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
pouco notório, a quem de cá não saberia conhecer
nem admirar (l).
A difficuldade poderia ser, até aqui, explicada se
não chegássemos depois ao conhecimento de outros
factos de importância capital. Um documento novo
da vida do poeta, publicado pelo dr. Ramiz Gal-
vão (2), o processo degenere ou depuritate sanguinis,
vem complicar todas as deducções estabelecidas.
Segundo o texto d'essa inquirição, Cláudio Manoel
da Costa, o requerente, é já orphão de pae e quer
seguir a vida ecclesiastica, tanto para servir a Deus
como «para amparo de uma mãe viuva e de suas
irmãs ». O requerimento não tem data, mas o despa-
cho do bispado de Mariana é de 12 de maio de 1751.
Sabe-se pela publicação do Munusculo que a esse
tempo, 1751, Cláudio Manoel vivia em Coimbra e já
cursava a Universidade. N'este caso, que é inilli-
divel, é necessário admittir que mandou de lá o re-
querimento para ser encaminhado por seus parentes
e amigos (e isso explica talvez a omissão da data) e
(1) Uma vez por todas fique aqui declarado que não perderei ó
tempo em desfazer as puras invenções de críticos e escriptores sem
auctoridade. Assim deixamos a margem todas as affirmações de Pe-
reira da Silva, Con. Fernandes Pinheiro e do bom Innocencio que
escreveu sob a fé do primeiro d'aquelles dois, para só guiarmos-nos
pelos poucos que conscienciosamente estudaram o assumpto embore
deslizassem por vezes em erro ou contradição.
(2) Na Gaz. de Noticias de 1895 (abril). Pelasrasões em seguida
expostas pensamos que o requerimento foi remettido de Coimbra.
O despacho do bispado de Coimbra é de 1755, o de S. Paulo de
1757, um e outro já dados em época posterior ao doutoramento de
Cláudio e quando já o poeta no Brasil. O poeta fala de que « tem
exercitado até o presente os estudos » naturalmente em Coim-
bra, pois já não estava no Collegio dos .'esuitas do Rio.
OBRAS POÉTICAS 15

que a sua intenção fora de passar-se á faculdade de


theologia, elle que «já tem exercitado os estudos
com disvello e aproveitamento ». Acariciava o filho
da cidade episcopal a ambição e a idéa de formado
em cânones, ordenar-se theologo; requeria em 1751
porque a delonga entre o requerer e o despachar nos
negócios ultramarinos deve durar dous annos, e no
caso, pois, o despacho chegaria ao tempo em que
teria concluído (1753) o curso de direito canonico.
Veiu, porém, o despacho muito tarde e já o poeta
não estava mais em Coimbra; é advogado em Mi-
na se provavelmente lhe careceria vocação sacer-
dotal.
Ouso ainda dizer que essa vocação nunca existiu
e que a tristeza e a melancolia que lhe eram um «es-
tado d'alma » habitual, e talvez a vontade de sua mãe
viuva, poderiam induzil-o a essa resolução, dado o
momento propicio. E esse momento effectivamente
se deu quando pelos fins de dezembro de 1750 se
fundou em Mariana o Seminário; era natural que a
mãe agora viuva e desamparada quizesse ao pé de si
o filho que andava em terra distante podendo ora na
pátria concluir os seus estudos na carreira ecclesias-
tica. L plausível admittil-o, porque o despacho do
bispado é de maio de 1751, quando apenas se inicia-
vam os trabalhos do novo Seminário para onde de-
viam acorrer os mais dislinctos dos filhos da diocese.
Seja como fôr e para não dar vulto a simples con-
jectura ainda que não destituída de fundamento,
convém não insistir demasiado no assumpto.
Em Coimbra viveu o poeta cinco annos, nas deli-
cias de sociedade differente da colonial, mais polida
16 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

e cheia de outros ideaes que não o das riquezas


ephemeras ou súbitas. As saudades do Mondego tan-
tas vezes denunciadas e tão grandemente sentidas,
habilitam-nos a julgal-o. Não só Coimbra foi o me-
lhor de sua vida, mas foi sua vida mesma. Não so-
mente foi lá que poliu o seu estro na convivência
das novas e múltiplas academias que surgiam innu-
meras por toda a parte; mas também a verdade é
que chegando aqui perdeu como que o equilíbrio da
própria personalidade e a sua readptação ao clima
americano pareceu difficil e quasi impossível. Aqui é
preciso renunciar aos seus hábitos; o vocabulário
poético secularmente ennobrecido desde Vergilio, os
thesouros do mytho, os campos da Arcadia não se
ageitam á natureza do Brasil; não pôde ao seu pare-
cer, sem ridículo, imaginar as nymphas no feio e
turvo Ribeirão do Carmo e nem ao menos lhe é pos-
sível aqui a sombra de uma faia. Está como o sol-
dado que de repente perdera as munições.
Em Coimbra, o ócio era grande; todas as vaga-
bundagens, inclusive as do espirito, haviam então
chegado ao seu esto. A indisciplina, a desmoralisa-
çâo dos cursos universitários em extrema decadên-
cia, preparavam pela indignação a férrea reforma
que será realisada mais tarde.
Asociedadebeata, ignorante, epicurista e dissipada
de D. João V encaminhava-se pela dissolução para
receber o freio das severidades de Pombal.
A Universidade de Coimbra atravessava crise quasi
de morte. Ensino, já não o havia. Os alumnos por
annos inteiros não iam ás aulas, e medidas governa-
mentaes procuravam inutilmente chama-los ao de-
OBRAS POÉTICAS 17
ver (1). As pateiadas ou investidas aos novatos ti-
nham-se de tal modo tornado terríveis, que por vezes
tocaram ao assassinato; n'este particular, em docu-
mento publico, um dos mestres não hesitara pedir
em equipollencia de defeza, contra os estudantes,
« castigo rigoroso, ainda mesmo de morte »; tal eram
o escândalo e o terror.
Os estudos eram mal organisados, nem sequer or-
ganisados. Aos aluirmos distribuiam-se algumas the-
ses, de longo tempo as mesmas, poucas e futeis e
insignificantes, entre as quaes figuravam tradicio-
nalmente as De Clerico venatore e a De voto. Durante
largo período, anterior á reforma de Pombal, muitas
cadeiras estavam e permaneciam vagas; outras, nas
mãos de mestres sem saber, que viviam sob o protec-
torado de ociosos alumnos.
O methodo adoptado no ensino era o chamado
analytico e que consistia em receber por apostillas a
exposição de alguns títulos do corpo do direito civil
ou canonico. Como não estudavam princípios geraes,
nem as instituições, nem a legislação do paiz, nem
gênero algum de matérias subsidiárias que desco-
nheciam por completo, d'àlli saiam os escolares para
a practica da jurisprudência, onde abandonando a
interpretação das leis, coagidos pela tradição de ig-
norância, guiavam-se apenas pelos casos julgados,
houvesse ou não identidade da espécie (2).

(1) Leia-se Th. Braga, Hist. da Universidade, loco; tomo 111.


(2) Depois ainda da reforma de Pombal ainda não se ensinavam a
egislação pátria e a praxe, mas abandonou-se o pretendido methodo
lanalytico e são criadas as cadeiras de direito natural e historia d°
direito. Th. Braga. O. cit. 111.
18 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Sem fazer injustiça ao poeta, aos nobres estimulo»


e a diligencia já provada em outros estudos, póde-se
talvez imaginar que esse descrédito da Universidade
facilitava a expansão de outras excellencias. Sob
essa atmosphera de infindos lazeres, de indolência e
de vida contemplativa medravam as sociedades lite-
rárias e o culto da poesia com desacostumado vigor.
Ahi conheceu o poeta todos os segredos technicos
da sua arte. Os seus mestres e modelos são os dos
arcades : Virgilio, Ovidio, Theocrito eMoscho, Que-
vedo, Metastasio, e Petrarca que continua ainda
como na época camoneana a ser o mestre do soneto.
As Arcadias quaes nol-as descrevem os seus historia-
dores e melhor o testemunham as producções do
tempo, sob a apparencia de templos ideaese de divin-
dades quasi invisíveis, eram todavia inflexíveis com
os seus pastores, não lhes favoreciam o estro nem a
originalidade e antes os traziam jungidos aos câno-
nes de sua esthetica alexandrina e erudita. A lar-
gueza e simplicidade de inspiração dos tempos clás-
sicos succediam a feitura acadêmica, correcta mas
fria, o espirito estreito da technica do verso e pouco
mais que a technica. Essa correcção e medida foram
de certo uma reacçâo contra os abusos do gongoris-
mo, ainda não de todo desapparecidos.
Os poetas da Arcadia, salellites eternos d u m phan-
tasma, são todos seguidores de escola, são sempre
criaturas e nunca creadores.
Quando um ou outro d'elles emitte luz própria,
como é o caso de Dirceu, já inconscientemente nos
repugna classifical-o entre os arcades e damos-lhe
logo um lugar entre os precursores do romantismo.
OBRAS POÉTICAS 19
Todavia entre os próprios e verdadeiros Arcades
podemos distinguir os que tinham inspiração e
quasi gênio como Garção e Cláudio Manoel da
Costa; n'elles, não fora a tyrannia da moda e da
época, encontraríamos sentimento e emoção egual
a de alguns dos quinhentistas.
De Coimbra datam as primeiras publicações do
poeta, o Munusculo métrico de 1751 ; o Epicedio de
1753 e o Labyrinlho de Amor do mesmo anno,
todos, pequenos poemas avulsos, themas desenvolvi-
dos segundo as regras do tempo, de medíocre mérito
(a julgar pelo Epicedio que possuímos) e aos quaes
o próprio auctor julgou indignos de serem incluídos
mais tarde nas suas Obras (1).
No Epicedio ainda imperam o mau gosto gongo-
rico, o abuso de exageradas imagens e amplifica-
ções:
Morreste! e como esphera se limita
Do coração ao gyro do tormento,
A mortal anciã que o pesar fecunda
Em ais se accende, em lagrimas se inunda.

E mais adiante :
Assim dos Orbes o Motor glorioso
Prova o constante ardor no braço erguido
Do velho Pai que com piedade estranha
Victima o Filho vê, ara a Montanha.
(1) A esses opusculos deve-se junctar os Números harmônicos
temperados em heróica e lírica consonância. Coimbra 1753 V.
Notas Bibliogr. pelo dr. Teixeira de Mello, Rev. Inst. t. L1II. É
possível que estes últimos fossem aproveitados na edição das
Obras.
20 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
Na penúltima estrophe encontra-se essa outra
imagem :
Tu que ao túmulo triste da agonia
Entregas por cadáver a alegria...
De parte o interesse que poderiam despertar nos
eruditos, creio que bem fez o poeta em expurgar o
seu livro de versos taes.
Entretanto se as Obras marcam a máxima altura
do seu gênio poético, a acreditar nas próprias confis-
sões do auctor foram na maior parte escriptas ainda
em Coimbra. Foram-n'o algumas,ou talvez nenhuma;
tenho que não se deve aceitar, sem reservas, a affir-
mativa do poeta. As Obras datam de 1768, quinze
annos depois do seu regresso (1). É natural que an-
tes de entregal-as ao prelo muito polisse, fizesse e
refizesse com tanto maior talento quanto o provam
de sobejo as composições de origem nacional como
a Fábula do Ribeirão do Carmo que inda tem o
mesmo vigor e emoção do auctor dos sonetos e das
eclogas. A sua confissão de que compoz a maior
parte do livro em Coimbra resulta de que deseja
justificar o seu tanto falar das nymphas, das faias,
dos sovereiros e de outras cousas de que no novo
mundo não acha como substituir ; mas n'esse falar,
percebe-se bem que é a saudade e não o bem pre-
sente que o inspira; aqui, elle se diz poeta dester-
rado, não pode «entre a grossaria» da terra»
« substabelecer aqui as delicias do Tejo e do Mon-
(1) Quinze annos (de 1754 a 1768) e não cinco como por um pe-
queno lapso, diz uma vez o mais bem informado e consciensoso dos
eus biographos, Norberto de Sousa Silva.
OBRAS POÉTICAS 21

dego »; como Arcade, senle que o seu vocabulário


está estragado e sem sentido, e não pode ou não
sabe ennobrecer os termos e as cousas indígenas
que repudia; no meio da nova natureza sente-se en
torpecido. Ao repetir, quinze annos depois do re-
gresso, as inspirações do velho mundo, sente-se
tolhido e inventa que só lá nasceram na sua alma.
Mas quanto affirma, é evidentemente falso e para
proval-o basta cotejar o Epicedio que é do anno da
sua graduação em cânones (1753) com qualquer das
composições de suas Obras. Tão differente é esta e
assim as outras do tempo de Coimbra que até o pró-
prio poeta nem sequer procura a feiçoal-as para dar-
lhes ao menos um lugar entre as de suas Obras;
agora que ao poeta « não é extranho o estylo sim-
ples » como diz com enlevo no prólogo d'aquelle
livro, o seu gosto é já outro.
Como todo o espirito melancólico, egoistico e con-
centrado, elle possue o dom de conservar, quasi
embalsamar ad xlernum, as suas impressões de dôr
ou de prazer o que afortunadamente aqui lhe ser-
viu ao estro porque a natureza nova não cabe nas
suas formulas acadêmicas, na flora e fauna da Ar-
cadia.
Não oocultemos, com tudo, que as suas melhores
composições embora datem da época do regresso,
são filhas do influxo europeu sem o qual na forma
em que existem seriam impossíveis. São documentos
da sua saudade e por ventura de algum amor infeliz
como dizem aventurosamente alguns dos seus bio-
graphos.
22 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

IV

Da poética Coimbra voltou Cláudio saudoso e des-


consolado para o Brazil e para as margens da feya
e turva corrente, entre rudes trabalhadores atreitos
á ambicioza fadiga de minerar a terrra. Eil-o, pois,
fora das academias literárias, no exilio, aggravado
ainda pelas responsabilidades e pelas duras escravi-
dões da vida independente.
Mas a data do seu regresso não é conhecida e
aproveitando essa obscuridade o mais inventivo
dos seus biographos ahi collocou as suppostas
viagens do poeta pela Itália onde teria sido recebido
membro da Arcadia romana (1).
Effectivamente, Cláudio se diz Arcade romano em
algumas de suas poesias escriptas na língua de
Dante e Petrarca que conhecia a fundo, mas é toda
de fantasia essa viagem, como para ser Arcade
nunca fez mister visitar a Grécia (2).
O anno de regresso de Cláudio pode ser fixado
em 1754, o mais cedo e em 1758 o mais tarde, eis o
(1) Foi Pereira da Silva quem primeiro imaginou essas viagens do
poeta, e foi o erro copiado e repetido por F. Wolf, Innocencio da
Silva, Teixeira de Mello e alguns outros.
(2) O nome arcadico de Cláudio é Glauceste Saturnio è também
se diz arcade ou pastor ultramarino e em algumas das suas canções
em lingua italiana nas suas Obras, arcade romano. Títulos equiva-
lentes aos de symbolista, romântico ou decadista de hoje. Os
poetas eram arcades no sentido em que ainda hoje se dizem roma-
nos os catholicos da Polynesia e de todo o orbe.
OBRAS POÉTICAS 23

que por emquanto se pode afirmar com segurança.


Graduado em 1753 deveria ter voltado em seguida
para o Brazil por que, elle propio o diz, passou cinco
annos fora da pátria e foram naturalmente os dos
«eus estudos universitários, de 1749 a 1753; não es-
teve portanto mais tempo alem d'esse em Portugal
nem em viagens pela Itália.
No caso, porem, em que fossem invalidados estes
fundamentos (pois que a primeira data certa da sua
estada em Coimbra é a publicação do Munusculo,
1751, como mostrei paginas acima) o seu regresso
seria pelo menos em 1756, e então não teria acertado
o Conego Januário Barboza em marcar-lhe oanno de
1753 como o do seu doutoramento em cânones. Não
temos, porem, rasão alguma para levantar essa du-
vida.
Em qualquer caso é certo que em 1758 já estava
no Brazil porque a essa data attinge o documento
mais remoto que possuímos (1).
No Brazil, e chegando sem despacho de Coimbra,
o poeta enceta a carreira da vida pela advocacia; e

(1) 0 dr. Ramiz Galvão publicando na Rev. Brás. tomo II, 1895,
as poesias inéditas de Cláudio Manoel da Costa, fel-as preceder de
noticia onde declara ter visto uma carta autographa do poeta já ad-
vogado em Minas, de 1761. Não é todavia este o documento mais
antigo; outro fora descoberto e publicado na revista do A rchivo
Publico mineiro por X. d a Veiga por onde se prova que em de-
zembro de 1758 residia em Ouro Preto o notável poeta. É o docu-
cumento referente a uma carta topographica, de que falaremos
depois.
É possível que ainda se venham a descobrir outros documentos
mais antigos e fique assim provada a data de 1754 ou quando
muito 1755, que são as mais plausíveis do regresso de Cláudio.
24 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
não era profissão somenos em terra tão rica e
rixosa.
Offerecia singular caracter o estado de espirito e
de costumes da capitania pelos meiados do sécu-
lo xvin. Da psychologia moral d'esta época, ainda
que pouco lisongeira, temos o testemunho e a pala-
vra leal de um hábil administrador, de vinte annos
gastos na experiência do governo e dos homens e das
cousas do Brasil (1).
Ao dirigir-se ao seu successor, em 1752, diz o
Conde de Bobadella :
« Amparar os pobres é obrigação dos governadores; mas
adverti que nas minas ha d'estes muito trapaceiros insolen-
tes e petulantes; ide com grande sentido.
Effectivamente, a lista das misérias moraes de
tanta gente que a aventura ou a ambição reunira,
não é pequena. Os officiaes militares « são poucos e
mal criados » ; a ignorância os torna presumidos e
« não ha cabo que se não presuma alferes ». Os ou-
vidores andam em rixas com os juizes de fora. Assas-
sinos poderosos não minguam, ao menos no gênero
d'aquelles que se cercam de malfeitores profissio-
naes, e « atiram a pedra e escondem a mão » ; os go-
vernadores traçam por acabar com estas hordas de
condottieri, « congregação de pés rapados, caribócas
e mulatos que hoje são executores das insolencias ».
Aqui ou alli, formam-se estranhas parcialidades,
mas « é mais de ladrões que de poderosos ». É d'essa
(1) 0 Conde de Bobadella, na Instrucçáo e norma que deu a seu
irmão para o governo de Minas, de 7 de fevereiro de 1752. Na Rev
do Inst., tomo XVI, pgs. 366-376.
OBRAS POÉTICAS 25

fermentação humana que se vae gerar a vida ou a


cultura; por que sobre essas Iristes e cupidas ener-
gias pesa o freio da gente bem educada, do escol da
sociedade, já agora apta para domar aquelles exces-
sos, restos das antigas tradições sanguinolentas de
quando outr'ora se degladiavam no deserto as ambi-
ções do ouro.
Mas ainda assim os espíritos melancólicos habi-
tualmente retraídos e affastados das agitações da so-
ciedade conservam límpida e tranquilla a alma onde
se vem reflectir a vilania humana, que se move ex-
teriormente e que elles aprendem a detestar. Perce-
bem então como Cláudio a grossaria dos habitantes
da terra, e a selvageria e a fealdade da natureza, que
não podem imaginar senão animada pelos seus gê-
nios e não podem abstrair da sociedade em ruína que
a povoa. Todavia, sem essa decomposição, não seria
possivel o germen das sociedades novas que hão de
ter egualmente no seu tempo devido a flor e a per-
feição, o acabamento de cultivo que lhe será pró-
prio.
Durante quasi a sua vida e na melhor porção
d'ella, Cláudio não soube senão cantar o Mondego,
o Tejo, as nymphas dos rios europeos, os campos de
trigo, as montanhas e o céu estrellado do outro hemis-
pherio, A natureza do Brasil não é esthetica ou não
cabe na sua esthetica.
Ao que pôde de um relance abranger toda a nossa
historia literária, perguntarei, se já foi achada a es-
thetica da nossa natureza e se jamais foi possivel
estylisal-a na arte decorativa, na poesia, no romance
ou na pintura? Se o indio, a palmeira, a monarchia
i. 2
26 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

ou a republica, ou o Amazonas, já lhe empresta-


ram um traço sequer que a ennobrecesse.
Sem duvida, Cláudio como outros corrigirá esse
absenteismo e escreverá um poema nacional como o
Villa Rica; mas fica logo abaixo de si mesmo, se
não é que o próprio poema é a pérfida suggestão de
sua decadência.
A nossa sociedade como as sociedades coloniaes
estão sempre em estado permanente de desmoralisa-
ção, emprestando a esse termo o sentido que lhe
dão os neo-ethnologistas tedescos, ao estado em que
pelo fluxo e refluxo das gentes novas não é possível
um espirito consuetudinario, e por tanto não é possivel
a lei, não é possivel a tradição, nem sequer é possi-
vel o caracter. Cada lustro nosso corresponde a todo
o século de Catão quando entravam em Roma os gre-
gos e com elles os costumes novos de arte, de luxo,
de miséria e vagabundagem e alheismo. E imagine
V. quaes são os hellenos que nos chegam, cada mo-
mento, de além-mar. Em vez de soldarem de geração
em geração, as camadas sociaes são rápidas, mo-
mentâneas, innumeras e sem outra adherencia que
este céo commum e a terra commum, entre os
quaes fervem e se destroçam. No meio dlellas ha
apenas um fio tênue que é o da vida local, fallida,
com o seu fio de vida, chronica, em perpetua crise e
brada agora contra o escândalo do presente e a ruina
das cousas antigas.
Por isso mesmo, emquanto não se forma o equilí-
brio e a homogeneidade das nações, não ha nem
pôde haver espirito nacional. A nossa literatura é
aquelle tênue fio a que me referi, no meio d'essa bul-
OBRAS POÉTICAS 27
burdia de interesses excêntricos da gente passageira
de todas as zonas do globo de um lado e d'outro lado
dos ausentes nacionaes. O nosso trabalho é sempre
de Sisipho, e a cada século que começa, nós começa-
mos a nossa guerra dos cem annos. Sob o protecto-
radó dos nossos senhores necessários, fingimos uma
vida nacional, soberba e independente. Relegados a
essa pobre aristocracia de bureaucratas, dentro d'ella
nos corrompemos, criamos a imprensa para adulal-
os e nos calumniarmos a nós mesmos, aviltando-nos
uns aos outros, quasi sempre pelo maior ou menor
quinhão de servilismo que nos cabe.
E todavia a cousa única nacional é essa gente pa-
rasitaria e semi-escrava que somos. Muito embora !
podemos d'ella fiar as nossas esperanças t..
Desculpe-me V. essa digressão involuntária que
não diz nada do poeta, mas estava no meu espirito e
se insinuou por esta pagina.
Desde o tempo de Coimbra, n'elle tem influxo
as numerosas academias literárias que caracterisam
essa época da historia literária da metrópole; mas
não fez elle parte da Arcadia lusitana senão como
arcade que todos os poetas podiam arrogar-se o di-
reito de sêr, e muitos assim se disseram « dos que
não foram chamados ». O Snr. Theophilo Braga col-
loca o nome de Cláudio entre os dos sócios da Arca-
dia lusitana, fundado exclusivamente, creio, em asser-
ção do dr. Teixeira de Mello, a qual é inteiramente
fabulosa (1). Quando foi fundada a Arcadia lusitana
(1) Fabulosa, ouso a dizer da opinião do cxcellente poeta, porque
não tem fundamento conhecido, nem ha documento que o prove.
Não basta, de certo, affirmar que Cláudio fez parte da Arcadia tu-
CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
28
em NaHa se oppõe todavia a que uvca=>
c ;i r
da s o c t d a d e T e r a r i a que precedeu a Arcadia a Aca-
JemTa dos Occultos; nesta figuram alguns nomes
que se passaram para a Arcadia, e entre os membros •
d'ella, n'uma lista de 1753, ha um certo João Manoel
da Costa, que tem os dous appelidos de Cláudio.
Seria temerário com tudo, sem outros argumentos,
identificafo com o poeta mineiro.
Vejam-se os perigos e as insidias de uma opinião
incerta! Como arcade romano, igualmente não seria
necessário ao poeta ter viajado a Itália. « Para obter
tal titulo, observa judiciosamente Norberto, não era
precisa alli a sua presença, como não foi. Esse nome
de Glauceste Saturnio só se lê na frente de suas
Obras como pastor ultramarino. »
A verdade torna-se comprehensivel quando se
attende a que Arcadia é mais um nome de guerra e
nome de escola literária do que de simples cenaculo;
e a guerra era a feita ao cattivo gusto do marinismo
e do gongorismo. A Arcadia romana, que é o pri-
meiro núcleo de reacção contra o seiscentismo, faz
nascer succursaes por toda a parte a quem e além-
mar, e todas com idêntico programma. A Arcadia
süana por que usava o nome de Glauceste Saturnio; esse mesmo
nome servirá, e serviu de facto, para que outros o dissessem mem-
bro da Arcadia romana. A afíirmação é ainda fabulosa, por que se
estriba na outra de que o poeta permaneceu doze annos depois de
graduado em cânones, em Portugal, e já mostrei que é impossível
sustentar essa opinião. Em 1758, Cláudio vivia em Minas Geraes, e
voltou ao Brasil em 1754. A Arcadia lusitana foi fundada em 1736,
sendo que só mais tarde iniciou as suas reuniões, e do que anda
publicado das sessões d'ella não apparece o nome de Cláudio.
OBRAS POÉTICAS 29
portugueza não tem outro cuidado preliminar que
o de expurgar de seu seio os seiscentistas (1).
Nas poesias de Cláudio não ha um só passo que
faça lembrar as terras, tão cheias de poesia, de Itá-
lia, o que é certamente extranho em poeta tão pró-
digo em relembrar as nymphas e os gênios da terra
portugueza (2).
Da vida do poeta em Minas Geraes, a principio e
como está visto á saciedade, tudo são saudades que
parecem irremediáveis da vida européa. Mas essa
mesma impressão vae pouco e pouco se desfazendo,
e a sociedade que o cerca e da qual vive não deixa
em breve de se lhe tornar necessária.
Em 1758, quatro annos apenas depois do regresso,
vemol-o habitante de Villa Rica e interessado pela
terra; da capital da Capitania levanta o poeta uma
Carla topographica, que deveria ser interessanlissi
ma, mas que nunca foi achada e nem constou do
espolio quando seqüestrados os seus bens. Revela
esse trabalho aptidões até agora não imaginadas no
poeta, e é certo que o executou com maestria, pois
o senado da Câmara do lugar premiou o autor com
meia libra, ou 128 oitavas de ouro. O joven advoga-

(1) Vide Th. Braga. A Arcadia lusitana, edição de 1889.


(2) Em uma das suas eclogas, a XIV, Alcino, que pelas circums-
tancias do poema é o próprio poeta, diz falando de s i :
Alli depois que a sua desventura
Chorando esteve em dous amargos mares.
Poderia referir-se ao Atlântico e ao Mediterrâneo ou aos dois he-
mispherios do Atlântico, aos mares do Brasil e de Portugal.
Foi o único passo que pude encontrar e ainda assim assaz obscuro
insignificante.
2
30 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
do no meio dos deveres de officio e das questiuncula
locaes, vae-se naturalmente interessando tanto pelas
misérias como pelas grandezas da região natal. Essa
paixão, é elle próprio que o diz, é quem lhe inspira
logo nos seus primeiros annos algumas composições
como a do Ribeirão do Carmo, prosopopea delicio-
samente escripta e que é mesmo o fundamento de
inspirações e paraphrases ulteriores como o poema de
Villa Rica. (1).
É provável que as suas Obras, em 1768, tivem sido
impressas em pequeníssima edição, porque sendo
estimadas e procuradas pelo alto valor que possuem,
não se comprehende como seja, onde os devia haver,
tão extraordinariamente raro um exemplar d'ellas.
Muitas das composições do livro correram e correm
ainda manuscriptas.
Outra circumstancia devia contribuir para que fos-
sem avidamente desejadas e disputadas as Obras de
Cláudio. Eram o primeiro livro de poeta nacional
que chegava ao Brasil, o que lhes realçava o mérito
de si verdadeiro ; só um anno depois virá o Uraguay
que foi recebido com ainda mais extraordinários
applausos e mais tarde o Caramurú.
Apesar de seu espirito antinacional (o que não era
toleima nem singularidade n'aquelle tempo) Cláudio
Manoel da Costa, com o poemeto do Ribeirão do
Carmo, precede e com brilhantismo, o poema nati-
vista de Basilio da Gama.
Em 1768 é ainda o poeta um exilado, e tal se con-
sidera ; o interesse pela terra natal é ainda parcella
(1) Será de Cláudio M. da Costa a carta topographica de Villa
Rica que existe anonyma no Archivo Militar do Rio ?
OBRAS POÉTICAS 31

insignificante em seu espirito. Vemol-o todavia mais


progressivo na esthetica de suas producções. O de-
feito de que se condemna é o do pendor para o su-
blime ou o do exaggero e da emphase. EUe próprio
o diz e confessa como o poeta latino que embora
conhecendo e approvando o melhor, muitas vezes
segue o contrario.
... Vídeo meliora, proboque;
Deteriora sequor.
Ha pessimismo n'esse juizo, porque já nos Sonetos
não se encontram os exaggeros e a inchação de es-
tylo do autor do Epicedio. A sua preoccupação é
salutar, porque visa ao atticismo da forma e da ex-
pressão como nos grandes modelos : « Bem creio,
diz elle falando ao leitor, que te não faltará que cen-
surar nas minhas obras, principalmente nas pastoris,
onde preoccupado da commua opinião te não ha de
agradar a elegância de que são ornadas. Sem te
apartares d'este mesmo volume, encontrarás alguns
lugares que te clarão a conhecer, como talvez me
não é estranho o estylo simples... Pudera desculpar-
me dizendo que o gênio me fez propender mais para
o sublime; mas temendo que ainda n'este me con-
demnes o muito uso das metaphoras, bastará para
te satisfazer o lembrar-te que a maior parte d'estas
obras foram compostas ou em Coimbra ou pouco
depois nos meus primeiros annos; tempo em que
Portugal apenas principiava a melhorar de gosto nas
bellas letras. »
Por essa confissão estamos habilitados, dentro de
razoáveis limites, a distinguir as novas das antigas
32 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

composições do volume, collocando na classe das


primeiras as que se caracterisam pela simplicidade
da forma.
Entre as mais novas está de certo o soneto LXVII,
que é realmente o de um precursor e do mestre que
foi de Gonzaga :
Não te cases com Gil, bella serrana,
Que é um vil, um infame, um deseslrado.
Bem que elle tenha mais deveza e gado,
A minha condição é mais humana.

Que mais te pôde dar sua cabana


Que eu aqui te não tenha apparelhado?
0 leite, a fructa, o queijo, o mel dourado,
Tudo aqui acharás n'esta choupana.

Bem que elle tange o seu rabil grosseiro,


Bem que te louve assim, bem que te adore,
Eu sou mais extremoso e verdadeiro,

Eu tenho mais razão que te enamore :


E senão, diga o mesmo Gil vaqueiro.
Se é mais que elle te cante ou que eu te chore.

A forma e as expressões são inteiramente simples,


como cm Gonzaga ; mas a idea, tal se vê do ultimo
verso, é ainda complicada e subtil.
Em quanto prepara e aperfeiçoa o livro que entre-
gará á publicidade, a fama dos seus talentos, já no-
tória em toda a capitania, faz com que n'ella se eleve
a altos cargos da administração. No cargo de secre-
tario do Governo serviu o poeta de 1702 a 1765, no-
meado pelo Conde de Bobadella, eainda no tempo do
OBRAS POÉTICAS 33

governador Luiz Diogo Lobo da Silva, em cuja com-


panhia realisou dilatadas viagens pelo sul da capita-
nia (1). Parece que no cargo deu provas de excel-
lente funcionário, porque apenas alguns annos
depois, no governo seguinte, que foi o do Conde de
Valladares, foi chamado de novo a exercer o mesmo
cargo, que occupou de 1769 a 1773. D'ahi por diante
ainda que sua pessoa tenha crescido em considera-
ção (2), não quiz mais voltar ao funccionalismo, e de-
dicou-se exclusivamente aos seus trabalhos forenses,
tantas vezes interrompidos, menos pelo culto das
letras nelle sempre vivo do que pelos rigores e tra-
balhos das cousas do governo.
Por esse tempo foi que Cláudio Manoel da Costa
traduziu e commentou o Tratado da Riqueza das
Nações, de Adam Smith, se se deve crer o que dizem
alguns dos seus biographos. Mas deve haver n'isso
algumas inexactidões. A obra de Smith é de 1776 ;
seria conhecida no Brasil naturalmente alguns annos
depois e provavelmente na edição franceza, e se se
ajuntar a isso o trabalho da versão e do commenla-
rio, teriamos de collocar esse trabalho, não aqui
n'este período, mas na ultima década ou talvez no

(1) Affirma-o com rasão dr. Teixeira de Mello; outros biogra-


phos contestam essa excursão, mas sem fundamento algum. 0 poeta
dil-o claramente em uma das suas notas ao poema de Villa Rica.
A nota 66 resa : « Viagem dilatada e aspcrrima por mais de 400 lé-
guas em visita da capitania sobre a Costa de S. Paulo, que acompa-
nhou o auctor servindo de secretario do governo das Minas. »
(2) Principalmente dos governadores D. Antônio de Noronha
(1775) e D. Rodrigo José de Menezes (1780). Com egual affecto lhes
correspondia o poeta dedicando-lhes algumas das suas composições
(que estão entre os inéditos d'esta edição).
34 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

ultimo lustro da vida do poeta (1). Não ha todavia


vestígio, referencia ou prova por onde se conclua ou
se presuma se quer que o poeta effectivamente se
tenha preoccupado de vulgarisar o systema econô-
mico de Adam Smith. É plausível que como homem
de idéas adiantadas, fosse Cláudio, nos últimos tem-
pos de sua vida, um admirador dos economistas,
como já o era dos philosophos que prepararam a
grande revolução; vivia na terra do ouro, onde en-
tretanto a população não podia pagar a derrama e
debatia-se na miséria; no prólogo do Villa Rica
havia escripto com o entono de um physiocrata : « As
minas derramam as riquezas por toda a Europa e
em muito soccorrem com a fadiga dos seus habitan-
tes ao commercio de todas as Nações etc. » É de certo
uma phraze sem valor, para justificar a conjectura, e
é quasi a única em todos os seus escriptos, que ma-
nifesta tenuissimamente o pendor, se o houve, de
seu espirito para as questões econômicas. Seria fácil
achal-a acaso em qualquer auctor.
A edade, os trabalhos da administração e da vida
practica, e a mesma limitação do gênio, transforma-
ram de todo o poeta. Ainda e por todo o tempo con-
serva a aptidão technica do versejador; mas o estro,
o affecto e a inspiração não existem mais ; faltam-lhè
a frescura e a emoção do outro tempo; o verso, mes-
(1) Digo « provavelmente na edição franceza ,, porque auctores
france.es como hoje, e mais os italianos, eram o§ que se liam. 0
propno Claud.o Manoe da Costa cita o Milton em francez, em a
nota 81 do poema de Villa Rica.
Também o titulo da obra de A c;™;»!. AI
« wid ue A . bmith é Investigações sobre a
natureza e a causa da riqueza dai nnrA*, „ „ * < , . . .
,. . y«c-u aas nações e não o que dão os crí-
ticos, que se referem a este assumpto.
OBRAS POÉTICAS 35
mo, é quasi rigido e sem flexibilidade nos seus natu-
raes ryhtmos; a phraze é abstractasem ser profunda,
e o estylo é incolor sem ser fácil ou ameno. Ainda se
revelam por vezes algumas das qualidades antigas,
mas agora amortecidas pela reflexão, que lhes tira
todo o calor. Parece que o poeta escreveu o Villa Rica
como se tivesse de fazer um thema ou exercício poé-
tico. Por isso imaginou o longo Fundamento em prosa,
que é um argumento da acção, e depois reduziu-o a
versos em syntheses mal formuladas e em episódios
sem originalidade como o da fábula das Ires velhas.
Também parece que o Uraguay, sempre admirado
e lido, não o deixara dormir. Vindo á luz um anno
depois do seu livro, onde o poeta se lamenta da gros
saria da terra e de não poder aqui substabelecer as
nymphas d'além-mar, o Uraguay veiu mostrar-lhe
que comettia erro e injustiça ao mesmo tempo, senão
lhe arguiria a falta de engenho e de força creadora.
Cláudio Manoel vae emfim resgatar o erro e o pec-
cado ; é já talvez um sincero admirador da terra na-
tal, mas não possue mais o dom de amal-a com a
mesma emoção com que em outros tempos não dis-
tantes a malsinava.
Villa Rica é um producto do influxo originado
pelo Uraguay. Cláudio Manoel esforçou-se por pare-
cer original, não adoptou a oitava rima nem o verso
solto como os seus antecessores; talvez por admira-
ção a Voltaire preferiu approximarse da Henriade
empregando rimas emparelhadas (1).
(1) 0 poeta cita, não só versos da Henriade nas notas do poema,
para justificar-se de certos usos, mas também, no prólogo, o Essai
sur Ia poésie épique, que será naturalmente o seu evangelho.
36 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Segundo os primeiros editores e algumas copias


do poema, o Villa Rica é de 1773 (1) e foi dedicado
ao segundo Conde de Bobadella. Tudo confirma a
exactidão d'essa data, que temos por positiva e se-
gura (2).
É curioso notar que a decadência do poeta é assaz
rápida. Em 1768, ao publicar as suas obras tem já 39
annos, e ao compor o Villa Rica não tem mais de 44
annos de edade. Suas poesias inéditas são em parte
posteriores ao poema, mas resentem-se da esterili-
dade e da mesma algidez que toca freqüentes vezes
ao prosaismo.
Não é somente a monotonia e a pobreza de inspi-
ração que nos desinteressam no poema ; mas é o tom
laudatorio, o odor do incenso que se traem em ver-
sos, por ventura menos movidos do amor da pátria
que da lisonja.
Sem duvida alguma, não quiz o poeta dal-o a pu-
blicidade e tanto quanto podem attestar as varias
copias que restam, não procurou limar os versos im-
perfeitos que o afeiam e são em não pequeno nume-
ro. Provavelmente se convenceu ou foi convencido
do somenos valor da composição e guardou-a, pois,

(1) Igualmente o diz a edição (2.a) de Ouro Preto, 1897 ; offereei


mento do A. na folha de rosto.
(2) Na dedicatória o A. refere-se ao primeiro Conde de Bobadella.
dizendo que governou por quasi trinta annos a capitania das Minas,
Logo o poema é posterior ao anno de 1763, que é o ultimo anno de
governo e da vida d'aquelle governador. Além d'isto, em uma das
notas t A. exprime-se : « Por estes districtos onde hoje por benefi-
cio di Eim.*5 Conde de Valladares se acham domésticos muitos Ín-
dios. •» O Condo de Valladares governou de 1768 a 1773, e o poeta
registra o seu governo na lista dada no Fundamento histórico.
CBRAS POÉTICAS 37
inédita por 16 annos, até o tempo em que desappa-
receu d'esta vida.
O episódio do Ilacolomi, inspirado com pouca
originalidade no Adamastor dos Lusiados, não tem
magestade alguma e nem lembra, pelas imperfeições
d'agora, a severíssima musa dos Sonetos. Tudo alie
desconchavado e sem arte, sem espontaneidade, como
que esculpido, se é possivel, a martello. De certo, o
virtuose que elle era não deixaria sahir á luz da pu-
blicidade tão despidos esboços.
Não creio que a tentativa em versos soltos, espé-
cie que não lhe aprazia (1), tivesse êxito mais certo.
Os trechos melhores de Villa Rica não são os do
poeta épico, mas do lyrico, como este, bellissimo, do
Canto II :

Era ella em seus annos tão mimosa,


Que á vista sua desmaiava a rosa.
Seus olhos claros, as pupillas bellas,
0 quantas vezes cri que eram estrellas.
Não tinham nossos campos nem o prado
Planta mais tenra, flor de mais agrado.

Também no Canto VIII, falando das pedras pre-


ciosas (n'este canto narra a descoberta das esme-
raldas) que a natureza apenas revela aos seus gênios
familiares, diz :
(1) Estou de accordo com o dr. Teixeira de Mello quanto ao juizo
que em geral faz das Obras do poeta e do poema Villa Rica, ex-
cepto quando considera o poeta superior a Pelrarca, exagero sem
nome. Também deixa de ter razão quando assegura que Cláudio
nunca escrevera versos soltos e sim toantes. São versos soltos ou
brancos todos os que começam as estrophes da Ecloga II e também
os ha nas poesias inéditas, que, em verdade, o critico não conhecia.
i- 3
38 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

tão ricas como bellas


Muitas nymphas em roda a estão cercando
Nas lindas mãos nevadas sustentando
Os thesouros que occulta e guarda a terra
(Tristes causas do mal, causas da guerra!)

Taes bellezas são raras; mas por esse traço, que é


o do seu temperamento, vê-se que o poeta não é um
cantor de gestas do norte, mas um troubadour meri-
dional como os da Provença.
O resto do poema, e é assim quasi todo, compõe-
se de narrativas ou descripções de grande e insipida
vulgaridade. A baixa vulgaridade mesma tem ahi o
seu lugar como, para exemplo, são os últimos versos
da epopéa em que se descreve uma eleição :
Mas já lavado estava e já firmado
0 termo que escrevera o bom Pegado,
Quando mais que a eleição podendo o acaso,
Manda o heroe que se extraia d'entre um vaso
Os nomes do primeiro a quem toca
Reger a vara que a justiça invoca.

E quasi difficil crer que sejam de Cláudio taes


versos !
Como no poema de Lucano, agora um dos mode-
los do poeta, não se sabe qual o heroe, se César ou
Pompeu, aqui também duvida maior assoberba o
critico. O descobrimento das minas, a pacificação
das luctas dos forasteiros ou a apologia de Boba-
della, qualquer d'esses motivos pôde ser o principal
do livro, que por isso mesmo não tem verdadeira
unidade.
OBRAS POÉTICAS 39

O Canto I é uma amplificação da passagem do Ru-


bicon em Lucano.
Entretanto, sem os lugares communs da excusada
lisonja aos governadores de Minas, o assumpto das
bandeiras mais que todos os da historia pátria possue
ínáteria épica, em muito superior á do Uraguay de
Basilio da Gama. Difficilmente se encontraria outro
egual nas nossas chronicas, onde a realidade e o
maravilhoso quasi se confundem, e onde a grandeza
das acções toca ás vezes ao sublime.

D'essas considerações posso concluir (e creio que


V. não pensará muito differentemente de mim) que
o livro de Cláudio Manoel da Costa é o das suas
Obras, e d'estas são principalmente os Sonetos a sua
coroa eterna de gloria.
Por elles foi o precursor de Gonzaga que o cha-
mava de seu mestre. Mais tarde, Garret o faz rival
de Metastasio; a Academia de sciencias de Lisboa
recommenda-o como clássico. Camillo C. Branco
acha-o sob muitos aspectos superior a Bocage, outro
mestre dos sonetos; Bouttervveck, não sem exagero,
considera-o o primeiro que restarou o gosto, trans-
viado pela moda e pela decadência do seiscentismo.
E se me compete opinar também aqui, digo com sin-
ceridade que os sonetos de Cláudio em todas as lite-
raturas latinas só tem superiores nos de Petrarca e
nos de Camões. E, como diz Silvio Romero, os nos-
sos poetas jamais poderiam no gênero disputar-lhe a
palma.
40 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Estes os olhos são da minha amada,


Que bellos, que gentis e que formosos!
Não são para os mortaes tão preciosos
Os doces fructos da estação dourada.

Por elles a alegria derramada


Tornam-se os campos de prazer gostosos.
Em zephiros suaves e mimosos
Toda esta região se vê banhada.

Vinde olhos bellos, vinde, e emfim trazendo


Do rosto do meu bem as prendas bellas,
Dae allivios ao mal que estou gemendo :

Mas ah! delírio meu que me atropellas I


Os olhos que eu cuidei que estava vendo
Eram (quem crera tal!) duas estrellas.

Onde estou 1 este sitio desconheço


Quem fez tão differente aquelle prado I
Tudo outra natureza tem tornado,
E em contcmpal-o timido esmoreço.

Uma fonte aqui houve ; eu não me esqueço


De estar a e!la um dia reclinado.
AHi em valle um monte está mudado :
Quanto pode dos annos o progresso I

Arvores aqui vi tão florescentes


Que faziam perpetua a primavera :
Nem troncos vejo agora decadentes.

Eu me engano : a região esta não era:


Mas que venho a extranhar se estão presentes
OBRAS POÉTICAS 41

Meus males com que tudo degenera ?

Nize? Nize ? Onde estás? Aonde espera


Achar-te uma alma que por ti suspira,
Se quanto a vista se dilata e gyra,
Tanto mais de encontrar-te dosespera !

Ah ! se ao menos teu nome ouvir pudera


Entre esta aura suave que respira I
Nize, cuido que diz, mas é mentira.
Nize, cuidei que ouvia e tal não era.

Grutas, troncos, penhascos da espesura,


Se o meu bem, se a minha alma em vós se esconde
Mostrae, mostrae-me a sua formosura.

Nem ao menos o éco me responde !


Ah como é certa a minha desventura !
Nize ? Nize ? onde estás ? Aonde ? aonde ?

Destes penhascos fez a natureza


O berço em que nasci: oh ! quem cuidara
Que entre penhas tão duras se creára
Uma alma terna, um peito sem dureza!

Amor que vence os tigres, por empreza


Tomou logo render-me ; elle declara
Contra o meu coração guerra tão rara
Que não me foi bastante a fortaleza.

Por mais que eu mesmo conhecesse o damno


A que dava occasião minha brandura,
Nunca pude fugir ao cego engano :
42 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Vós que ostentaes a condição mais dura,


Tremei, penhas, tremei; que amor tyranno
Onde ha mais resistência mais se apura.

Nas Eclogas e Romances que são em geral de


grande belleza, o discípulo de Petrarca passa a ser o
de Virgílio mas com certa diminuição de brilho e da
perfeição da forma.
Em quasi todas ha paraphrases, que não copias,
das eclogas do poeta latino, e como Cláudio, assim
o faziam todos os Arcades, os quinhentistas e todos
os escriptores da renascença (1).
(1) Entre outras passagens, notamos estas :
« Duas rolas cantando
N'aquella sovereira, etc...
Nec tamen interea raucse, tua cura, palumbes
Nec genere aeria cessabit turtur ab ulmo.
E na Ecogla II:
» Os campos n'este dia
Se cobrem de verdura... »
E mais adiante :
Ja torna ao nosso mundo
Aquella edade de ouro...
Nunc frondent silvae..*

uc totó surget gens áurea mundo.


Estava no gosto de todas as escolas repetir os versos celebres de
todas as literaturas; na Ecloga XV ha por exemplo uma imitação
do famoso verso da Ulysséa (que quando ri no ceo nos campos
chora) e na mesma Ecloga outra remiscencia do flessun magyior
dolore de Dante. Essas reminiscencias eram como que a erudição
dos poetas e mostravam as suas leituras e predilecçòes. Em Cláudio
poder-se-iam notar as de Guarini, Metastasio, Quevedo, Camões,
Petrarca, Virgílio e Ovidio.
O Epicedio II que é muito bello é quasi todo paraphraseado no
rythmo na forma e na substancia, de Petrarca e Camões.
OBRAS POÉTICAS 43
E curioso todavia notar que, resalvando os
seus sonetos, parece que o cuidado de polir o verso
não opreoccupou coma mesma diligencia e esmero.
Uma vez ou outra deparam-se, ainda que raros,
descuidos e imperfeições e mais raramente ainda
um ou outro mau verso (1).
(1) São desuidos ou lapsos, as rimas Alcimedonte e destramente
na Ecloga I; falta de versos inteiros no Epic. I; alguns versos
maus :
« Como injuriando o obzequio da fineza. »
ECL. XII.
« Qualquer engenho a penna, em nada atina, »
EPIC. II.
Os seus bordões ou chavões são empenho, obséquio, desatar,
executivo, e ainda poucos outros, dos quaes nào me animo a tirar
illações psychologicas ; mas não me parecem bellos esses vocábulos.
Cláudio Monoel da Costa na versificação conserva de ordinário o
hiato quando as vogaes occorrem no interior das palavras. Assim,
escreve:
<> Tem do d'um peito também magoado. »
ECL. I.
•< Com que chega meu peito saudoso. »
_ EPIC. II.
E também:
« Que hoje é no campo a infeliz noticia. »
ECL. VI.
O Romance 1 é a composição mais defeituosa de todas que exis-
tem do poeta e também a mais desagradável pelo tom de exage-
rada lisonja que a perverte.
Nào me refiro aqui aos numerosos versos imperfeitos de Villa
Rica por ser este poema um manuscripto em quanto viveu o
poeta.
Também ha incorrecções grammaticaes nas Obras de Cláudio
mas são quasi raras e sem importância; a mais grave é de certo a
simultaneidade do uso de vos e tu no Romance I que repetimos, é
a mais imperfeita das suas composições de cuja authenticidade, se
não fora impressa, haveria motivo para duvidar.
44 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

VI
E dou aqui por terminada a minha tarefa. A morte
de Cláudio é assaz conhecida e anda em todas as
historias da nossa terra, na lista dos martyres que
se sacrificaram pela independeneia d'ella (1). E ura
fim glorioso sem duvida e digno de um grande
poeta. Envolvido na conspiração e homem conheee-
dor da lei e do destino que o esperava, talvez por
ser o mais culpado ou por ser o mais innocenle
desesperou da vida e se foi embora d'ella, aos ses-
senta annos de edade. Suicidou-se para evitar a
ignomínia do carrasco, o que é um tão santo modo
de morrer como o finar-se já sem amigos entre as
consolações da egreja. Na Roma antiga, os venci-
dos abandonavam a vida já não tendo nenhum de-
ver n'ella.
Ha quem pense que foi assassinado, hypothese
inútil, por que o governo tinha então o direito de
matal-o ; e ainda hoje, sem esse direito já, assas-
sina por vezes os seus inimigos.
Eis ahi o que pude dizer respeito do poeta sem o
prestigio e a clarividencia que V. poria n'estas
paginas.
Cláudio Manoel da Costa não tinha propriamente
gênio, e nada creou, que se podesse dizer, de si
próprio; foi um producto do tempo sem ser um
creador ou educador do seu tempo. É um arcade e
acadêmico quando todos da sua época e antes d'elle
(1) No lugar próprio inserimos n'esta edição os documentos que
se referem á vida e á morte do poeta.
OURAS POÉTICAS 45

também eram acadêmicos e arcades. Em raras cou-


sas é o mestre dos vindouros, em tudo é o discípulo
dos que passaram e, mais estreitamente ainda, é o
discípulo da sua escola. Não tem o sentimento da
natureza porque uma vez acabada a paisagem aca-
dêmica que era a do Mondego, não sabe inspirar-se
no grande scenario em que agora vive. É um taci-
turno e melancólico ; n'elle virtudes ou vícios sem
desabafo, se accumulam, se multiplicam e se ex-
tremam ; na amisade, toca á lisonja; no desgosto da
terra toca ao absenteismo; no horror da morte, toca
ao suicídio. A poesia foi n'elle como a beauté du
diabledas raparigas; morta a mocidade, continuou
a fazer versos, sem a poesia viva.
Sem duvida alguma, é digna do respeito e da dôr
universal a sua perda; mas já havia muito que ao
patriota precedera na morte o poeta.
Outubro 1901.
JOÃO R I B E I R O .
46 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

B1BLI0GRAPHIA

Munusculo métrico consagrado ao 111. e Rev. Sr.


D. Francisco da Annunciação. sendo segunda vez
confirmado na dignidade de Reitor da Universidade
de Coimbra. Romance heróico. — Coimbra, Luiz
Secco Ferreira. — 1751, in-4°.
Epicedio consagrado á saudosa memória do Rev.
Sr. Fr. Gaspar da Encarnação, Reformador dos Co-
negos Regulares de Saneio Agostinho da Congrega,
cão de Sancta Cruz de Coimbra. — Coimbra, nóRea]
Collegio das Artes da Companhia de Jesus. — 1753,
in-4°.
Labyrintho de Amor, poema. — Coimbra, Antônio
Simões, 1753, in-8°.
Números armonicos temperados em heróica e lyri
ca consonância. — 76/', idem. — 1753, in-8°.
Obras de Cláudio Manoel da Costa, Arcade Ultra-
marino, chamado Glauceste Saturnio. — Coimbra,
na officina de Luiz Secco Ferreira. — 1768, in-8°.
Villa Rica, poema. Dado a luz em obséquio ao
Instituto Histórico e Geographico Brasileiro por um
de seus Sócios Correspondentes. — Ouro Preto,
typ. do Universal. — In-4° de 8 pp. inn-XIX-80 pp.
num. (1839-1841).
O mesmo (2.a edição). — Ouro Preto, Typ. do Es-
tado de Minas. — 1897, in-8°.
OBRAS POÉTICAS 47

Além d'estas obras, as inéditas e até algumas das


primeiras, já separadamente, appareceramem peque
no numero em publicações geraes como a Collecção
de poesias inedit s (Lisboa, 1809-11), no Parnaso
(de Januário Barbosa), no Florilegio (de Varnaghen),
na Rev. do ínst. Hist. (t. 53) e na Revista Brasileira,
as ultimas publicadas pelo dr. Ramiz Galvão (1895)'
Todas são reimpressas n'esta edição. O Fundamento
histórico que acompanha as edições do poema Villa
Rica appareceu pela primeira vez em 1813, no Pa-
triota do Rio de Janeiro. A empreza do Estado de
Minas, que publicou em 1897 a 2.a edição do Villa
Rica, também editou separadamente os So?ielos,
extraídos das Obras do poeta.
48 CLÁUDIO MANOEL DA COSIA

CHRONOLOGIA

Datas quantas foi possivel apurar acerca da vida


e das obras do poeta.

(Os primeiros números de dou» algarismos indicam a edade do poeta).

1729.... — Nascimento de Cláudio (6 de junho?)


— Foi baptizado na Vargem do Itaco-
lomy, villa do Ribeirão do Carmo.
10-15 1740-45. — Tempo provável da partida para o
Rio e entrada no Collegio dos Je-
suítas.
20 1749.... — Partida para Coimbra.
oo 1751 — Publica o Munusculo poético em
Coimbra.
24 1753.... — Publica o Epicedio.
— Publica o Labyrintho de amor.
— Publica os Números harmônicos.
— É graduado em cânones.
25 1754 — Data provável do regresso ao Brasil.
29 1758. .. — Levanta a Carta topographica de
Villa Rica, pela qual recebe um
prêmio doado pela câmara da
mesma villa.
32 1761 — Primeira data em que se tem noti-
cia de que exerce a advocacia.
OBRAS POÉTICAS 49

33 1762 - É secretario do Governo da Capita


nia, nomeado pelo Conde de Bo-
badella e tendo servido nas admi-
nistrações do Conde de Cunha e
Lobo da Silva.
36 1765 — Deixa o cargo de secretario.
39 1768 — Publica as suas Obras, impressas
em Coimbra.
40 1769 —Volta a occupar o cargo de secre-
tario do Governo com o Conde de
Valladares, e n'elle permanece
cinco annos.
44 1773 — Deixa o cargo de secretario. Por
esse tempo conclue o seu poema
de Villa Rica.
46-51 1775-80. — Compõe varias das poesias inéditas
offerecidas aos governadores ou
sobre successos d'este período.
60 1789. — É preso como envolvido na Inconfi-
dência.
— (4 de julho). Suicida-se na prisão.
Três annos depois de sua morte
foi condemnado e foi a sua me-
mória infamada (1792).
50 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

DOCUMENTOS E PEÇAS HISTÓRICAS

I. _ Traslado dos sequestros feitos ao dr. Cláu-


dio Manoel da Costa.
II. — Auto de perguntas feitas ao mesmo.
III. — Auto de corpo de delictono seu cadáver.
IY. — Defeza do advogado José de Oliveira Fa-
gundes.
V. — Sentença da Alçada.
VI. — Dous documentos novos.

Estes documentos foram copiados dos do Archivo


Publico do Rio de Janeiro e publicados na forma em
que estão pela Revista do Instituto Histórico no
tomo LIII, l. a parte; Rio, 1890. (
O ultimo que encerra o registro de baptismo e a
inquisição de puritate sanguinis, foi mais tarde pu-
blicado na Gazeta de Noticias, abril de 1895, pelo dr.
B. F. Ramiz Galvão.

CÓPIA.

Treslado dos sequestros


feitos ao doutor Cláudio Manoel da Costa.
Anno do nascimento de Nosso Senhor Jezus Chris
to de mil sete centos e oitenta e nove, aos vinte e
cinco dias do mez de Junho do dito anno, nesta Villa
OBRAS POÉTICAS 51

Rica de nossa senhora do Pilar do ouro preto em


caza donde morava o Doutor Cláudio Manoel da Cos-
ta onde veio o Doutor Dezembargador Ouvidor Ge-
ral, e Corregedor atual desta villa e sua comarca
junto com o Doutor Jozé Caetano Cezar Manique Ou-
vider Geral, e Corregedor atual da Villa do Sabará
commigo tabelleão ao diante nomeado e o escrivão
da ouvedoria desta comarca Jozé Viricimo da Fonse-
ca, e logo pellos dittos menistros asima nomeados
me foi dito que por ordem que tinham do Illustrisimo
e Excelentíssimo Senhor Visconde de Barbacena Go-
vernador e Capitam general desta capitania me de-
terminaram a mim tabaleam e dito escrivam da ouve-
doria sequestracemos todos os bem que se achar nas
ditas cazas e pertecentes ao dito seqüestrado Doutor
Cláudio Manoel da Costa os quaes são os seguintes :
LIVROS. — Ordenaçoens do Reino em folha e seus
reportorios que são seis tomos. Ordenação filipina
hum tomo. Extraca de negocio hum tomo. Menoquio
de habetis hum tomo. Decionario de Moreri dez to-
mos. Calepinno dois tomos. Mateus de cauza crime
hum tomo. Vanesper sinco tomos. Pedro de marie
hum tomo. Quis instituta hum tomo. Gomes Varia-
ram dois tomos. Ailonau dito hum tomo. Olea desi-
zoenshum tomo. SanchaLiobservaçoenshum tomo.
Oliveira Eccleziastico hum tomo. Leitam de jure Lu-
zitano hum tomo. Vallasco elevaçoens hum tomo,
hum reportorio antigo das ordenaçoens hum tomo.
Zonega hum tomo. Silva as ordenaçoens quatro to-
mos, Cortuzo hum tomo. Neto hum tomo. Flores de
Espanha hum tomo. Prosódia de Bento Pereira hum
tomo. Moraes das execuçoens três tomos. Tarinocio
52 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

dezaceis tomos. Manual pratico hum tomo. Dom


Manoel Thezauro canonizar! aristotes hum tomo-
Lourenço gracianno dois tomos. Acioma jures hum
tomo. Paiva e ponna hum tomo. Dom Francisco de
quevedo quatro tomos. Luiz Voltoline hum tomo,
Sollano de Vale hum tomo. Concordância de todo o
direito de Sebastiam Ximenes toletano hum tomo.
Martins alcosta hum tomo. Constituição do arcebis-
pado da Bahya hum tomo. Observaçoens do Reino
hum tomo. Pratica Criminal de Fereira hum tomo.
Velasco dejure enfiteutico hum tomo. O mesmo nas
Consultas hum tomo. Monarquia Portugueza seis to-
mos. Van.guerbe hum tomo. Macedo de Elecoens
hum tomo. Epilogo jurídico hum tomo. Univercio
juridico do direito hum tomo. Misticicidade deDeos
sinco tomos. Ideya de hum príncipe político dois to-
mos. Ideya da agudeza hum tomo. Caldas pereira
hum tomo. Surdo dois tomos. Miguel de Caldero
hum tomo. Sivoline dois tomos. Cisternas dos regi-
mentos dois tomos. Gonçalo Telis sinco tomos. Di-
cionário eslorico quatro tomos. Manoel Rodrigues
questoens Regulares dois tomos. Silveira aos textos
evangélicos hum tomo. Merlino de pinhores hum
tomo. Corrado hum tomo. Caracioli de foro compe-
tente hum tomo. Vozino hum tomo. Júlio Claro hum
tomo. Alcratito ou abedario de langeo, João Cleri-
cato dois tomos. Gama hum tomo. Sevalino Siencia
Canonica dois tomos. Bering quatro tomos. Ance-
leta direito canonico seis tomos, tiraquelo sinco to-
mos. Barboza de direito Canonico ecleziastico vinte
tomos. Vinio a instituta dois tomos. Gabriel Pereira
hum tomo. Obras de Camocns hum tomo. Menoquio
OÍIRAS POÉTICAS 53

hum tomo. Observaçoens do Reino hum tomo. Jeo-


grafia estorica dois tomos. Pegas forenccs sete to-
mos. Sebo decizoens hum tomo. Remiçoens de Bar-
bosa hum tomo. Mendes e Castro hum tomo. bistoria
de Solis hum tomo. Brito de Eslerca de Sisler hum
tomo. Guerreiro quatro tomos. Pinheiro Ires tomos.
Coleção das Leis Jozefinas dois lomos. Cordeiro hum
tomo. Decionario novo da Lingoa espanhola e fran-
ceza dois tomos. Mencigeri a instituía. Na quarta
colluna da instante da parte direita quarenta tomos
de livros; na quinta da mesma quarenta c quatro to-
mos de livros, quarta colluna da instante da parte
esquerda quarenta e nove livros na mesma instante na
quinta colluna quarenta e seis. Ozorio de padruádo
Real e Secular hum tomo. Anacrior Safue hum tomo.
Meditação de Jezus Cristo hum tomo. Sonho poema
e erótico hum tomo. Lubas de Francisco Manoel Go-
mes hum tomo. Traduçam do doutor Francisco de
quivedo inmanoescrita savelo dois tomos. Pereira
de Mano Regio hum tomo. Pedro Barboza hum to-
mo. Primeira parte da istoiia de Santo antão hum
tomo. hum livro de Santo Ignacio de Loyóla em ma-
nuscrita, jornal da Legação hum tomo. tratado de
Univerçoens escrito em manuescrita.
ROUPA DE CÔR. — Um vestido cramezim de panno
forrado de amarelo e caziado de oiro, com vestia e
calção do mesmo, hum vestido inteiro de seda de
cabaya verde, com vestia e calçam também verde de
chuva de prata huma cazaca de veludo cor de sereja
huma vestia branca de matizes, huma de setim com
seu calção cramezim de dados hum calçam de ca-
baya verde hum manto de cavalleiro, metido em
54 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

huma bolça de damasco cramezim huma cabelleira


nova em uma boceta, huma burraxa com seu bucal
de prata, com secenta e huma oitava e meia de oiro
em pó, hum livro derrozão que está junto na mesma
gaveta aonde está a burraxa com o dito oiro, três li-
vros de traduçoens de tragédias, e mais outro dos
mesmos relatados e poemas, hum espadim de prata
hum bastam de abade com castam de prata, huma
cazaca e vestia de belbute amarello hum habito de
christo de pedras brancas e encarnadas que se acha
pregado; no mesmo vestido huma cazaca de ganga
com sua vestia e calção do mesmo bordado de preto^
e calçoens de panno verde, hum chapéo cuberto de
setim preto, huma cazaca vestia de sarga pretta de
seda e hum calçam de belbute preto, huma cazaca de
druguete castor preto e huma vestia de seda borda-
dura larga, outra de setim cor de roza derramos de
oiro e matizes, huma cazaca e vestia de xita abri.
lhantada, hum vestido de seda preta inteiro huma
capa de seda huma saraça de xita seis colherinhas de
xá de latão.
ROUPA BRANCA. — Trez camizas de bertanha
huma dellas com babados de renda trez pares de
meias de seda branca dois pescocinhos e huma volta,
huma tualha de meza de algudam e doze guardana-
pos do mesmo huma Toalha de bertanha de am-
burgo comrrenda, quatro lancois de panno de linho,
gum pentiador de bertanha com sua renda, oito ca-
mizas de bertanha com seus babados e duas sirou-
las de panno de linho, mais uma recortada por
baixo, oito fronhas com suas rendas sinco pares de
meias de linho duas dúzias e meia de pratos finos
OBRAS POÉTICAS 55
azues de guardanapo três pratos grandes de macau
quatro mais piquenos do mesmo sinco pratos trave-
ços sinco pratos traveços mais piquenos duas terri-
nas piqueaas da mesma fabrica azues huma terrina
grande com seu prato da fabrica do porto, huma
mostardeira com o seu prato da nossa fabrica um
prato de meia cuzinha da india um salleiro e huma
pimenteira da india três copos de vidro de água e
dois callis de vinho.
PRATA. — Humas esporas de prata com suas íive-
linhas hum par de fivelas de Pexisbece de sapatos,
hum habito de christo grande de crus cumprida com
seu broxe em sima de pedras brancas com sua fita
encarnada hum par de castiçaes de casquinha
üzados.
LIVROS. — Quinze livros de .oitavo, e hum de
quarto que é amarante hum enxergão e hum travi-
ceiro e hüa fronha dois lençóis de panno de linho
traviceiro e fronha de panno de linho huma colxa
velha hum cubertor de damasco de Iam cramezim
com cercadura amarela huma vestia de xita outra de
xita verde, hum xambre de xita uzado hum sobre-
tudo de barrigana alvadija hum leito com armação
branca de algudam com cercadura de xita, seis facas
de cabo de prata.
LOUÇA DA ÍNDIA. — Oito pires e oito xícaras da
india hum bule dito três pratos compridos ditos oito
pratos da india exmaltados hum terno de pratos
ridondos da- india exmaltados de azul doze pratos
brancos de inglaterra, seis Copos piquenos hum
talher de azeite e vinagre e pimenta e sal hum moi-
nho de fazer café hurn bule piqueno pardo huma
56 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

caneca de louça com a sua tampa azul hum copo de


louça pintado duas pipas piquenas de vidro huma
azul e outra branca duas garrafas brancas de vidro
branco e hum frasco do mesmo três supieras da ín-
dia com suas tampas três coposzinhos piquenos de
louça pintados com quatro pires e seis xícaras pi-
quininas ou tampos de xicaras sinco frascos três de
boca larga e dois dos ordinários oito garrafas gran-
des ehuma piquena.
ESCRAVOS. — Hum escravo por nome Lourenço
crioullo, outro por nome Joze angola outro Manoel
angolla, outro Matias e outro Pedro ambos angolla,
dois pratos grandes pintados de vários cores três
mais piquenos da mesma cor dois candieiros de
arame hum taxo piqueno e uma bacia de arame
hum caldeiram de cobre grande duas cortinas de
serafina com seus babados azues com suas varetas
de ferro três sellas duas comjareis e huma sem elles
três bancos grandes de dobradice e outro que se axa
no escritório hum espriguiceiro hum leito de pau
branco com uma colxa de algudam de Sam Paulo
huma dúzia de cadeiras mais quatro ditas com en-
costo de pau huma poltrona des moxos de couro, e
um forrado de carneira com enximento por dentro,
duas comudas que estão na caza debaixo com suas
gavetas doze cadeiras com asentos de damasco, duas
mezas cobertas de xita sem gavetas uma meza re-
donda huma meza grande com sua gaveta huma
marmola hum sacrino grande de pau duas retabulas
grandes redondas, quince lâminas rredondas de va-
rias qualidades duas imagens com suas redomas
grandes de vidro huma papeleira huma meza re-
OBRAS POÉTICAS 57

donda hum catre nove moxos hum bahu hum leito


hum pau de cabeça decabilleira duas estantes huma
maior outra mais piquena dois pares de botas qua-
torze lâminas piquenas com seus vidros na caza de
baixo quatro mapas com guarnição de pau com
suas cabeças torneadas postos na parede já uzados
huma rrede branca de algudão anilada duas cazacas
de pagens com duas vestias e dois calcoens a saber
de panno escuro forrado de amarelo as cazacas e as
vestias e calcoens amarelos hum xapeu piquenino
uzado com seu galam de oiro uzado huma camiza
de panno de linho de page hum ballandrau de seda
roxa uzado de irmandade do Senhor dos Passos três
livros de meias folhas e quatro de quarto e oito de
piquenos que estavam cozidos dentro em hum saco
de aniage entre os quaes livros piquenos erão humas
Oras Latinas com suas chapinhas de prata hum
xairel da pontas grande de baetam branco com seus
quadrados com guarniçamde esfolhado ou babado de
durante carmizim huma xiculateria de cobre e duas
trempes de ferro hum tear de tecer algudam já te-
cer algudam de madeira branca com um pouco de
algudam já tecido e outro por tecer dois moxos de
madeira branca cobertos de couro, huma morada de
cazas de sobrado cuberta de telha que partem de
sima com cazas de Joze Viricimo da Fonseca e pella
de baixo com a Capela da Sinhora das Dores com
o seu quintal cercado de pedra e dentro do mesmo
com suas arvores de espinhos uma catana velha com
guarniçõens piquenas punho cuberto de cabelo já
roto sem bainha, três caixoens de botar mantimento
dois sem tampa e hum delles piquenos, huma meza
58 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

sem gaveta, de pau branco hum espeto de ferro


grande e outro piqueno do mesmo huma colher de
ferro.
E por ora senão achou mais bens alguns mais
dos que aqui descrito e declarados e sendo presente
Francisco Xavier de Andrade depositário dos pre-
sentes bens seqüestrados dois quais se deu por en-
tregue deles se sujeitou ns leis de fiel depositário
para dos mesmos dar conta de tudo menos da bur-
raxa com bucal de prata com secenta e huma oita-
vas e meia de ouro em pó por esta se entregar neste,
ato ao Sixtente do cumer do prezo o doutor Cláudio
Manuel da Costa para. gastos a Adam Cardoso na
fôrma que foi ordenada pelo doutor dezembargador
ouvidor geral e corregedor desta comarca Pedro
Jozé Araújo de Saldanha em virtude das ordens.do
Illustrissimo e Excelentíssimo . Senhor * Visconde
General desta capitania ; e menos tãobem hum can-
dieiro de latam que se "acha Da prizão do dito prezo
e com dois colxoens .dos aqui declarados e de como
o mesmo depozitario se deu por entregue dos refe-
ridos bens e se sujeitou as Leis de fiel depozitario
aqui asigna commigo escrivão dito do- ouvedoria e
ministros,e eu Antônio Joaquim de Macedo tabeliam
que escrivi Saldanha. Franciseo'Xavier de Andrade '
Ferreira. José Viricimo da Fonseca. Maniti.
Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jezus
Christo de mil e setecentos e oitenta e nove annos
aos catorze dias do mez de Julho do dito anno nesta
fazenda xamada do fundam que he esta na diviza da
freguezia da Sé da cidade de Marianna do termo de
Villa Rica donde foi vindo o coronel Joz"é Pereira
OBRAS POÉTICAS 59

Lima de Velasco e Molina, juiz ordinário este pre-


zente anno na fôrma da lei por mandato do Doutor
Dezembargador juiz dos feitos da coroa e real fa-
zenda Ouvidor Geral e Corregedor desta comarca
Pedro Jozé Araújo de Saldanha em obcervancia das
ordens do Illustrissimo e Excellentissimo Senhor Vis-
conde de Barbacena Governador e Capitam General
desta capitania commigo tabeliam de seu cargo
ao deente nomeado, junto com o meirinho das exe-
cuçoens Francisco José Rego e sendo ahi pelo dito
coronel juiz ordinário foi mandado ao dito meirinho
fizece suquestro em todos os bens que facem do
prezo doutor Cláudio Manoel da Costa e logo o dito
meirinho fes suquestro em a metade da Rossa que
se compõem de cazas de vivenda asobradadas de
hum lado e do outro terrias com suas senzalas paiol
muinho engenho de fazer farinha com seu oratório
de dizer missa com uma imagem de nossa senhora
dos remédios com calix com o copo somente de
prata e o mais de estanho misal ornamento branco
de Durante com seus ramos encarnados e um fron-
tal de damasco branco e vermelho muito velho com
sua toalha de altar com sua renda, cuja a metade da
fazenda se compõem de mattos capoeiras e terras de
minerar que de huma parte confronta com o guarda-
mór Manoel da Mota de Andrade de outra com Ma-
noel Durais e de outra com Manoel Rodrigues Men-
des, e com Izidoria da Rocha. E também fez o dito
meirinhosuquestro em oito escravos a saber: Antô-
nio crioulo, Miguel angola, Antônio e outro Antônio
ambos congõ, Domingos congo, Jozé banguela, Jozé
crioulo, Caetano rebolo, e mais huma negra por
60 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

nome Jozefa de nasção mina muito velha e doente e


um cavallo lazão calzado do pé direito e mao es- _
querda huma silva na testa, hum dito castanho
outro dRo castanho com a frente aberta com a mão
direita e os pés calçados sinco bestas muares de
carga arreadas seis cabeças de porcos sinco cabeças
de gado vacum miúdos coatro catres de madeira
branca velhos uma dúzia de pratos de estanhos ra-
zos pequenos dois de meia cuzinha seis culheres
e sinco gafos de metal seis moxos coatro mezas de
madeira branca duas com suas gavetas e huma com
sua xave dois taxos hum grande outro mais piqueno
dois almarios de madeira branca velhos duas canas-
tras cubertas de couro cru e huma caixa piquena
'sinco machados des fouces em bom uzo onze euxa-
das muito velhas somente os olhos huma alabanca
boa hum almocofre dois bancos hum rozario de fe-
rage derroda de minerar muito uzado huma serra
braçal huma sella com seus estrivos e freio com
muito uzo, e o millo e feijão que se achava no paiol
o qual se vai gastando não só no sustento dos escra-
vos aqui suquestrados e cavalos e porcos além do
que vai para o sustento dos escravos que se acham
na lavra da Taquara queimada e para os mais que se
acham na villa e das bestas que costumam conduzir
o dito mantimento para as ditas paragens da Villa e
Lavra e por esta forma ouve ele dito Coronel Juiz
Ordinário este suquestro por bem feito e depozitou
os referidos bens em mão e puder de Manoel José
da Silva morador e sócio da mesma fazenda pesoa
leiga cham e abonada a quem o dito Coronel Juiz
Ordinário mandou entregar os referidos bens o
OBRAS POÉTICAS 61

qual os recebeu e deles tomou entrega de que dou fé


e se sugeitou as leis de fiel depozitario e asignou
com dito Coronel Juiz Ordinário meirinho e teste
munhas prezentes os abaixos asignados e eu Antô-
nio de Oliveira e Sá tabeliam que o escrevi e
rasignei. Velasco. Antônio de Oliveira Sá. Manoel
Jozé da Silva. Francisco Jozé Rego. Manoel da Mota
de Andrade. Ponciano Jozé Lopes.
ADIÇAODOSUQUESTRO. — Aos trinta e hum
dias do mes de Julho de mil setecentos e oitenta
nove annos nesta Villa Rica de nossa senhora do
pillar do ouro preto em cazas de morada do suques-
trado o doutor Cláudio Manoel da Costa onde eu
escrivão ao diante nomeado fui vindo e ahi sendo
prezentes o Doutor Dezembargador e Ouvidor geral
e corregedor atual desta comarca Pedro Jozé Araújo
de Saldanha e o Doutor Jozé Caetano Cezar manite
Ouvidor geral e Corregedor da comarca e villa
do Sabará ahi por mandado dos ditos minis-
tros e ordem que para isso tinham do Illustri-
ssimo e Excelentissimo Senhor Visconde de Bar-
bacena Governador e Capitan general desta capi-
tania foi por mim escrivão e o meirinho geral
João Xavier feito suquestre em mais bens que
aparecerão pertenecentes ao suquestrado o Doutor
Cláudio Manoel da Costa e são os seguintes huma
fivella de piscocinho de ouro com ou pezo de nove
oitavas e dois-vinténs dois pares de botoens de
punhos com pedras encarnadas que pezão três oita-
vas e coatro vinténs huma medalha de habito de
Christo muito piquinina cozida em um pedacinho de
fita encarnada já uzada dois pares de fivella de ligas
(j2 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

de calcam de metal amarelo dois ocullos piquenos


de nariz com sua caixa hum calçam de seda preta
roto huma cazaca e vestia de panno verde caziada
de prata já uzada humas calças e vestia de secescia
encarnado já uzado hum calzam de xitta amarella
uzado hum cazacam de baetam acamurçado pintado
já velho hum capote de baetam de riscos pintado já
uzado hum xapeu finno velho dois lençóis velhos um
velho e outro em bom uzo, com babados de panno
linho aberto, duas camizas de bertanha com seus
babados dois pares de seroullas de panno de linho
huma toalha de bertanha rota duas fronhas huma
grande e outra piquena huma toalha de panno de
linho rota e velha, dois pares de meias de linho
velhas e rotas dois lenços azues de tabaco hum
branco roto com sua cercadura hum par de meias
pretlas de laa dois pares de meias de seda prettas
belhas hum par de zapattos pretos velhos, com suas
fivelhas de luto huma cabelleira com sua bolça hu-
mas oras latinas uma coroa de Jeruzalem hum pes-
cocinho de cambraia velho hum copo de vidro
grande huma garra a hum cobertor de papa novo
branco, outro dito encarnado uzado hum colxam de
Iam acolxoado, com seu traviceiro e fronha de
panno de linho huma mezinha de pau piquénina já
velha e hum tamborete roto.
Cujos bens asim suquestrados forão entregues a
Francisco Xavier de Andrade que os recebeu e deles
se deu por entregue e se sugeitou as leis de fiel de-
pozitario a quem eu escrivão notifiquei para que dos
ditos bens não depuzece sem expreça ordem de jus-
tiça debaixo da penna da lei e para constar do refe-
OBRAS POÉTICAS 63

rido me mandaram os ditos ministros fazer este ter-


mo em que nelle asignarão com o dito depozitario
meirinho geral e eu Francisco Xavier da Fonseca
escrivão da ouvedoria o escrevi. Saldanha. Maniti.
Francisco Xavier de Andrade Ferreira. João Xavier.
Anno do nascimento de nosso senhor Jezuschristo
de mil setecentos e oitenta e nove annos ao primeiro
d a do mes de Agosto do dito anno, neste citio e la-
vra chamado o Canelas do thermo da cidade Ma-
riana donde foi vindo o coronel Joze Pereira de
Lima de Velasco e Mollina Juiz Ordinário do termo
de Villa Rica com Francisco Dias Ribeiro official de
justiça e commigo tabaleão ao diante nomeado por
mandado do Doutor Dezembargador Pedro José
Araújo de Saldanha Ouvidor geral e Corregedor ac-
tual desta comarca em observância das ordens do
Illustricimo e Excellenticimo Senhor Bisconde de
barbacena goveruador e capitam general desta Ca-
pitania, e sendo ahi fes o dito meirinho suquestro
em todos os bens escravos e lavras pertencentes ao
doutor Cláudio Manoel da Costa em cuja lavra são
sócios Antônio Domingues do Cabo Pinto e Do-
mingos Pires elogo o dito Meirinho fes suquestro na
pate da lavra que o dito seqüestrado tinha com os
ditos sócios e mais terras capoeiras e matos virgems
campos e seus logradouros e em humas cazas cuber-
tas de telha com se quintal e bananal e na parte do
muinho que he da suciedade e nos escravos seguin-
tes — João de nação angola — Manoel da mes-
ma nação — Estevão crioulo — Felipe crioulo
— Pio crioulo — Domingos angolla — Joaquin
crioulo — Manoel crioulo — Antônio de nação
(•4 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

angolla e Pedro da mesma nação - Manoel da


mesma naçáo - Francisco angola - Januário
angola - Manoel de nação angola - Francisco
angola - Antônio angola - que declarou estar
naDVilla - hum maxo velho de carga castanho
escuro asim mais fes suquestro nas ferramentas se-
guintes dezacate almucafres uzados huma enxada
velha sinco alabancas com bastante uzo dois mar-
rois com bastante uzo - cujos bens asima suques-
trados depozitei em mam e puder de Antônio Do-
mingues do Cabo Pinto o qual he admemstrador e
sócio da mesma lavra o qual de todos se deu por en-
tregue e se sugeitou as Leis de fiel depozitario como
também de dar conta de todo o oiro que se extrahir
da dita lavra da parte que tocar e pertencer ao dito
Doutor Cláudio Manoel da Costa suquestrado e em
tudo se obrigou as Leis de fiel depozitario e eu tabe-
liam o notifiquei para que dos ditos bens não despu-
zece sem ordem de justiça digo deste juizo penna da
mesma Lei o que asim prometeu fazer e de como
asim o dice aqui asignou com o dito Coronel Juiz
Ordinário, Meirinho, e eu Antônio de Oliveira e Sá
tabeleão o que escrevi. Vellasco. Antônio de Oliveira
e Sá. Antônio Domingues de Cabo Pinto. Francisco
Dias Ribeiro.
E nada mais continham os suquestros ffeitos ao
suquestrado Doutor Cláudio Manoel da Costa que
tudo em puder e cartório de mim escrevão ao diante
nomeado se achava com cujo theor bem effielmente
fis tresladar pois este confferi com outro official de
justiça commigo adiante asignado por ordem bocal
do Doutor Dezembargador geral e Corregedor ac-
OBRAS POÉTICAS 65

tual desta comarca Pedro José Araújo de Saldanha


por me dizer que asim lho havia determinado o
Illustricimo e Excellenticimo Senhor Visconde de
Barbacena Gobernador e Capitam General desta
capitania e este o sobescrevi confferi e asignei,
nesta Villa Rica de nossa senhora do Pillar do oiro
preto aos dezoitto dias do mes de Agosto de mil e
sette centos e oitenta e nove annos e eu Francisco
Xavier da Fonseca escrivão da Ouvedoria o sobes-
crevi asignei e conferi. Francico Xavier da Fonseca
e conferido commigo inquiridor Manoel Tgomé de
Sousa Coutinho.
Extrahida dos livros da incofidencia de Minas-Ge-
raes (vol. 7— sequestros). Archivo Publico do Im-
pério.
Confere. O official Francisco de Salles de Macedo.

Auto de perguntas feitas ao bacharel Cláudio


Manoel da Costa.

Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus-


Christo de mil setecentos e oitenta e nove annos,
aos dois dias do mez de Julho do dito anno, nesta
Villa-Rica de Nossa Senhora do Pilar do Ouro-Preto,
e casas do Real Contracto das Entradas, onde foi
vindo o doutor dezembargador Pedro José Araújo
de Saldanha, do desembargo de S. M. Fidelissima,
ouvidor geral e corregedor de esta comarca, junto
comigo o bacharel José Caetano Cezar Manitte, do
desembargo de S. Magestade, ouvidor e corregedor
da do Sabará, escrivão nomeado para esta diligencia
pelo III. e Exm. Senhor visconde de Barbacena, go-
66 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
vernador e capitão general desta capitania, para
effeito de se fazerem perguntas ao bacharel Cláudio
Manoel da Costa, que se acha preso em um dos se-
gredos que se mandaram praticar nas referidas
casas ; e sendo ahi conduzido a sua presença o dito
preso, pelo mesmo ministro lhe foram feitas as pei
guntas seguintes :
Foi perguntado como se chamava, donde é natu-
ral, de que vivia, onde residia e a sua idade. Res-
pondeu que se chamava Cláudio Manoel dã Costa,
que era natural da cidade da Marianna, que vivia da
sua advocacia, que era residente nesta Villa-Rica,
de idade de sessenta annos.
Foi mais perguntado de sabe ou suspeita a causa
da sua prisão. Respondeu que, desde o dia que foi
preso o desembargador Thomaz Antônio Gonzaga,
espalhando-se o rumor de que era preso por uma es-
pécie" de levantamento com idéas de republica, logo
na mesma occasião receou elle respondente ser
preso, a titulo de sócio consentidor ou approvador
de semelhantes idéas, e com effeito se encheu de
grande terror e entrou a deprecar os santos por mui-
tas orações, para se vêr livre deste ataque, de que o
não puderam salvar os seus pecados.
Foi mais perguntado, se, tendo este conhecimento
de que poderia ser também preso, sabe quem foram
os confederados de semelhante desordem, e que ra-
zão tinha para conceber este temor. Respondeu, que
elle respondente era amigo particular do dito doutor
Gonzaga, e que sempre estavam, familiarmente, um
em casa do outro, communicando-se com a lição dos
seos versos e do mais que occorria, e como o dito
OBRAS POÉTICAS 67

dezembargador Gonzaga tinha alguns inimigos bas


tante poderosos, e estes o eram também delle respon-
dente, por conseqüência da amizade, era infallivel-
mente certo tentarem para logo comprehendel-o por
sócio, approvador ou consenlidor daquelle attentado,
em qiie o imaginavam comprehendido.
Foi mas perguntado se houve na realidade desig-
nado o dito attentado, e se sabia quem eram os con-
federados para elle, e sócios. Respondeu que por
effeito da dita prisão, e das mais de que logo se teve
noticia pela do doutor Alvarenga e do padre Carlos*
vigário de S. José, como também do contractador
Abreu, se fez logo publico, que se meditava entre
élles alguma espécie de sublevação contra o estado,
sem embargo de que nada disto se manifestava por
algum signal exterior ou preparativo, e somente pelo
rumor que já havia excitado um alferes, por alcunha
o Tira-Dentes, andando por casa de varias pessoas a
fallar-lhes nessa matéria.
Foi mais perguntado se elle respondente não ouvio
fallar aos referidos, de cujas prisões está certo, em
semelhante matéria algumas vezes. Respondeu que
não ha duvida que, em casa do doutor Gonzaga,
ouviu por varias vezes conversar sobre a dita maté-
ria, formando o mesmo doutor hypotheticamente
uma idéa do seu- estabelecimento, que facilmente
abraçavam os outros dois, Alvarenga e Carlos; mas
elle respondente foi sempre do contrario parecer á
sua creação por causa de que faltando-lhe forças não
poderia subsistir.
.Foi mais perguntado se, além destes dois assis-
tentes, haviam mais sócios naquellas conferências, e
68 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

quem eram. Respondeu, que os dois assistentes eram


o coronel Ignacio José de Alvarenga e o vigário de
S. José, Carlos Corrêa de Toledo, e como estes ditos
dois homens pouco tempo se demoravam em casa do
dito doutor Gonzaga, e passavam as tardes e as vezes
as noites em differentes casas da villa, presume elle
respondente, pela facilidade com que fallavam, que
o mesmo divulgaram por outras casas, onde iam ter,
como era a de Domingos de Abreu, onde consta se
achava o dito Tira-Dentes e o padre José da Silva,
do Serro, que também se diz indiciado neste crime;
declara mais, que, pelo que varias vezes observou
em conversas com o doutor Gonzaga, no quintal
delle respondente, não deixavam os denunciados de
fallar com extensão nesta matéria com o tenente-co-
ronel Francisco de Paula, e seu cunhado José Alva-
res Maciel, que foi o primeiro que suscitou esta es-
pécie com a lembrança de Inglaterra, dizendo em
uma occasião que elle faria a pólvora, e que a pri-
meira cousa era tomar-se a caixa real, bem que isso
era também hypotheticamente, e não em acto delibe-
rativo e acção; e desta espécie presume elle respon-
dente se foram reforçando as tentativas entre os três
acima nomeados, Gonzaga, Alvarenga e vigário Car-
los ; que elle respondente presume serem os que pu-
zeram algum interesse na esperança desta acção, que
jamais teria effeito, por faltarem todos os meios de
se verificar.
Foi mais perguntado se soube ou teve noticia de
alguns capítulos, ou plano, para o referido levante.
Respondeu, que já tinha dito que não viu disposi-
ção, nem preparativo algum, pelo qual se deliberasse
OBRAS POÉTICAS 69

a conhecer a intenção e animo que tinham, de fazer


a execução do projecto, porquanto nunca assistiu
elle respondente ás conversas dos ditos nas referidas
casas de Abreu, e dito tenente-coronel Francisco de
Paulo, e só se resolve a tirar esta illação, perdões e
outros factos de que está lembrado.
Foi mais perguntado que declarasse, que factos
eram os de que fazia menção. Respondeu, que o pri-
meiro foi dito do padre Carlos, quando se ausentou
de casa do Gonzaga para o rio das Mortes; porque,
entrando em caza delle respondente a despedirse,
lhe disse, que logo voltava feito um homem grande,
porque tinha disposto os seus negócios e a senha
dada para o dia em que o avisasse o dito tenente-co-
ronel Francisco de Paula, era a seguinte : tal dia
faço o meu baptisado : — o segundo dito foi em
outra occasiào entrar em casa delle respondente o
doutor José Alvares Maciel, e dizer : — S. Ex. disse
hoje, que o Alvarenga lhe tallara assustado ; — e
vendo elle respondente ao dito Alvarenga, lhe contou
esta espécie sem maior penetração do que havia, por
nada ter presenciado nem sabido, ao que respondeu
o dito Alvarenga : — Queira Deus não ande por aqui
Francisco de Paula. — Declara elle respondente, que
quando o padre Carlos lhe disse o que acima fica re-
lendo, lhe tornou elle respondente — que não fosse
leso, porque isso não tinha pés nem cabeça ; —e tão
longe estava de que aquellas conversações produzis-
sem algum effeito, que, quando se rompeu, que
S. Ex. se tinha munido, por medo de algum levanta-
mento, disse elle respondente, que nada se podia te-
mer, porque as musas não eram capazes de o terem
70 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

no estado em que se achava, e então lhe perguntou


se aquelles dois loucos teriam feito algum movimen-
to, que produzisse essa desconfiança, ao que respon-
deu o doutor Gonzaga, a quem elle respondente
ouviu o referido, que quanto ao Alvarenga presumia,
que não, mas que o padre Carlos escrevera uma carta
ao dito tenente-coronel Francisco de Paula, como
este mesmo lhe dissera.
Foi mais perguntado pelo terceiro dito, como havia
referido. Respondeu, que não estava por otro lem-
brado.
Foi mais perguntado se sabe, que os confederados
tinham para esta acção corrompido a tropa. Respon-
deu, que elle não pôde saber especificadamente o
que se passou na tropa, porque não communicava
com algum destes, mas que de um dito seu contra a
dita tropa lhe tem resultado toda a sua infelicidade,
porque dizendo-se que o Tira-Dentes fallava a uns e
a outros da tropa, respondeu elle respondente, que a
tropa era a culpada em o não ter preso logo, e daqui
veio conspirar contra elle respondente, e não com-
municarem-se testemunhas para o seguirem no cri-
me com o Tira-Dentes, homem com quem só fallou
uma ou duas vezes, no seu escriptorio, vindo tomar
conselho em companhia de outros, e pessoa de tão
fraco talento, que nunca serviria para se tentar com
elle facção alguma, sendo mais verosimil que, a não
ser o ódio que conceberam a elle respondente, o qui-
zessem comprehender com o doutor Gonzaga, de
quem era amigo.
Foi mais perguntado se em algumas vezes em que
o douto* Gonzaga se achava em sua casa, delle res-
OBRAS POÉTICAS 71

pòndente, o tinha ahi ido procurar aquelle alferes


Tira-Dentes. Respondeu, que algumas vezes, em
casa delle Gonzaga lhe dava o seu mulato recado, de
que o mesmo alferes o procurava, e este dizia que o
mandasse embora, que lhe não queria fallar, que era
homem que lhe aborrecia, e que um homem daquel-
les podia fazer muito mal a gente, pelo seu fanatis-
mo, no que conveio elle respondente dizendo-lhe que
daquella natureza eram os Havalhaquis, os Jacques
e os Amicus.
Foi mais perguntado se ouviu a algum destes
chefes dizer a falia, que se havia de fazer ao povo no
dia da sublevação. Respondeu que nessa occasião,
que já tem referido, em que escutou ao dito vigário
Carlos, lhe disse este que o tenente-coronel Francis-
co de Paula havia de fallar á tropa, e o Tira-Dentes
estar ao seu lado para a convencer; o que tudo pa-
recia a elle respondente fábula e redicularia, por
aquelle tempo, e jamais receou, que merecesse maior
conceito, por cuja razão deixou de delatar o que
ouvira sobre esta matéria em que agora o fazem in-
nocentemente ter parte, sendo certo que não deu
ajuda, falia ou conselho para semelhante procedi-
mento, pois se não mostrará, que fallasse ou convo-
casse pessoa alguma, que desse artigos, que for-
masse planos ou ministrasse idéa alguma para seme-
lhante facto e esta é a pura verdade.
Foi mais perguntado se se lembra das palavras ou
substancia da dita falia, e quem a fez. Respondeu,
que o dito Carlos, continuando na dita exposição,
que acima se menciona, dissera, que o tenente-coro-
nel Francisco de Paula se dispunha a fazer á tropa
72 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

uma falia de missionário, mas que Tira-Dentes dizia


que não devia ser assim, e accrescentava estas pala-
vras : — Meus amigos, ou seguir-me ou morrer; —
e elle já prompto a cortar cabeças, ao que se rio o
respondente, dizendo-lhe : Tudo isto mostra que vo-
cês são uns loucos; e neste conceito viveu sempre
elle respondente, parecendo-lhe tudo aquillo uma
comedia ; mas a sua desgraça lhe faz hoje delicto das
causas mais insignificantes.
Foi mais perguntado que destino se tinha determi-
nado ao Exm. Sr. visconde general. Respondeu, que,
como já disse, não viu plano algum nem artigos, e
sempre suppoz que não passava de brinco de pala-
vras tudo o que diziam aquelles homens, se bem que
em certa occasião ouviu dizer ao doutor Gonzaga,
segundo sua lembrança, que o general o Exm. Sr.
Visconde sempre dizia ter o primeiro lugar no caso
de sublevação, e que elle respondente continuando
na mesma graça, disse, que fizera bem trazer mulher
e filho em tal caso.
Foi mais perguntado se sabe, ou ouviu dizer, que
haviam já leis para a nova republica, que se preten-
dia erigir. Respondeu, que persuade-se, que não,
porque não se tendo tentado a acção, mal poderia
cuidar-se nisso.
Foi mais perguntado se os confederados tinham já
tratado de levantar armas ou bandeira. Respondeu,*
que não havia duvida dizer o coronel Alvarenga, em
certa occasião, que se poria uma letra que dissesse
Libertas quse será tamen.
Perguntado mais se elle respondente quer decla-
rar a verdade, pois não é natural que, suppostos os
OBRAS POÉTICAS 73

seus talentos, deixasse de ser instado para ter grande


parte na facção, que se propunha. Respondeu, que
já tinha declarado o tom rediculo e de mofa que deve
a todas estas couzas, pois jamais pensou, que ellas
houvessem de sahir a luz produzir tão escandalosos
effeitos; do que elle, infeliz, vem a padecer a maior
parte, com injuria de sua innocente família e de seus
irmãos, em tudo innocentes e sustentados com hon-
ra; mas conhece bem por beneficio de Deus, que a
sua libertinagem, os seus mãos costumes, a sua per-
versa maledicencia, o conduzem finalmente a este
evidentissimo castigo de justiça divina, e apezar das
immensas intrigas e calumnias, com que se acha de-
negrido na presença do Exm. Sr. Visconde, protesta,
que nunca em seu animo procurou ou desejou levis-
simamente offender a sua respeitável pessoa, e que
só pelo gênio gracejador que tinha poderia deslisar-
se em algum dito menos decoroso, não desconfiando
daquelles mesmos que teriam já dito, em igual occa-
sião, outras iguaes gravidades; pelo que lhe pede o
perdão de tanto escândalo, e lhe roga que sendo elle
mau, como confessa, nem por isso reputa virtude
nos denunciantes destes ditos, e que talvez sejam
mais temíveis estes que os mesmos denunciados.
E por ora lhe não fez o dito ministro mais pergun-
tas, as quaes elle respondente leu todas e achou es-
tarem todas bem e fielmente escriptas, como elle
respondente as tinha dito, de que tudo mandou elle
dito ministro fazer este termo de encerramento, em
que assignou com elle respondente. Eu o bacharel
José Caetano Cezar Manite. — Cláudio Manoel da
Costa. — Saldanha.
3
74 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Auto de corpo de delicto e e x a m e feito no corpo


do doutor Cláudio Manoel da Costa.
Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Chris-
to de mil setecentes e oitenta enove, aos quatro dias
do mez de Julho do dito anno, nesta Villa Rica de
Nossa Senhora do Pilar do Ouro-Preto e casa do
Real Contrato das Entradas, onde foram vindos o
doutor desembargador Pedro José Araújo de Salda-
nha, ouvidor geral e corregedor desta comarca, e o
doutor José Caetano Cezar Manite, ouvidor e corre-
gedor da do Sabará, comigo tabellião adiante no-
meado e o escrivão desta ouvidoria José Veríssimo
da Fonseca, com os cirurgiões approvados Caetano
José Cardoso e Manoel Fernandes de São Thiago,
logo ahi e pelo dito ministro doutor desembargador
lhes foi deferido o juramento dos Santos Evange-
lhos, em um livro delles, em que cada um de per si,
pôz sua mão direita, sub cargo, do qual lhe encarre-
gou, que vissem bem e examinassem o corpo do
doutor Cláudio Manoel da Costa, que se achava den-
tro de um dos segredos, que nas sobreditas casas se
tinham mandado praticar por ordem do Exm. Sr.
Visconde de Barbacena, do conselho de S. M. Fide-
lissima, governador e capitão-general desta capitania
de Minas-Geraes declarando o estado em que o mes-
mo corpo existisse. — E recebido por elles ditos ci-
rurgiões o referido juramento, debaixo delle assim o
prometteram cumprir.
E logo, na presença dos ditos ministros e de mim
OBRAS POÉTICAS 75

tabellião, e mencionado escrivão desta ouvidoria e


cirurgiões, foi por Joaquim José Ferreira, alferes
pago do esquadrão de cavallaria da guarda do Illm.
e Exm. Sr. vice-rei do estado do Brazil, que se
achava nas mesmas casas de quartel com a sua com-
panhia, que faz guarda aos presos, que existem nos
sobreditos segredos, aberto com a chave que o mes-
mo alferes em seu poder tinha, e em que se achava
o dito doutor Cláudio Manoel da Costa, e entrando
nelle os ditos ministros, e officiaes, e cirurgiões,
estes examinaram o cadáver do mesmo doutor, o
qual todos bem conheceram pelo próprio, e disseram
achar-se o mesmo, como de facto se achou, de pé,
encostado a uma prateleira, com um joelho firme
em uma taboa delia, com o braço direito fazendo
força em outra taboa, na qual se achava passada em
torno uma liga de cadarço encarnado, atada á dita
taboa e a outra ponta com uma laçada, e no corre-
diço deitado o pescoço do dito cadáver, que o tinha
esganado e suffocado, por lhe haver inteiramente
impedido a respiração, por effeito do grande aperto
que le fez com a força e gravidade do corpo na parte
superior do larynge, onde se divisava do lado direito
uma pequena contusão, que mostrava ser feita com
o mesmo laço quando correu ; e examinado mais todo
o corpo pelos referidos cirurgiões, em todo elle não
se achou ferida, nodoa ou contusão alguma, assen-
tando uniformemente que a morte do referido dou-
tor Cláudio Manoel da Costa só fora procedida da-
quelle mesmo laço e suffocação, enforcando-se
voluntariamente por suas mãos, como denotava a
figura e posição em que o dito cadáver s« achava; e
76 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

de como assim o disseram e examinaram, eu tabel-


lião e dito escrivão damos nossas fés, e para constar,
de todo o referido mandou elle dito doutor desem.
bargador e ouvidor geral lavrar logo este auto, que
depois de ser lido, o assignaram os ditos ministros e
escrivão desta ouvidaria e cirurgiões, comigo Antô-
nio Joaquim de Macedo, tabellião publico do judicial
e notas, que o escrevi e assignei.
Antônio Joaquim de Macedo. Caetano José Cardo-
so. Manoel Fernandes São Thiago. José Veríssimo da
Fonseca. Saldanha. Manile.
Confere.
O official, Francisco de Salles de Macedo.

DEFEZA
apresentada pelo advogado
da casa da mesericordia, nomeado defensor
e curador dos três reos falescidos,
José de Oliveira Fagundes, em 31 de Outubro
de 1791.

Quanto ao réo fallecido Cláudio Manoel da Costa:


P . que a causa da prisão, e morte deste réo foi o
grande despreso com que sempre tratou as loucuras
do réo Xavier, como este confessou á fl. 14 do 1'
appenso desta cidade, onde declarou responder-lhe
este réo Cláudio Manoel da Costa, quando lhe fallou
na idea do levante, que elle Joaquim José da Silva
OBRAS POÉTICAS 77
Xavier andava procurando perder alguém; e igual
resposta a esta foi a que o mesmo réo Cláudio Ma
noel da Costa deu ao vigário Carlos Corrêa de Tole-
do, dizendo que todos eram uns loucos; sendo esta
a razão porque não denunciou o que tinha ouvido a
ambos, não se podendo presumir outra razão, pois
que este miserável réo não assistio ás loucas prati-
cas, que houverão, não prestou o seu consentimento
e conselho, e a lastimosa protestação, que fez á fl. 7
do appenso4°deVilla-Rica, prova bem os seus sin-
ceros e leaes sentimentos; lamentando vêr-se infa-
mado com a sua innocente família e irmãos, pedindo
perdão ao seu Exm. general daquelle publico escân-
dalo, para o qual não havia concorrido, e que nunca
pensava, que semelhantes leviandades e loucuras
sahissem á luz, e com esta intensa dôr se recolheu
ao segredo, e se matou na fôrma que foi achado, é
consta do corpo de delicto fis... do mesmo appenso
7o, devendo por isso merecer a piedade de Sua Ma-
gestade, e mandar-se relaxar o seqüestro, que se fez
no seu tênue patrimônio.

Sentença da Alçada (1).


Vistos estes autos, que em observância das ordens
da rainha nossa senhora se fizeram summarios aos
vinte e nove réos pronunciados conteúdos na relação
a fl. 14 v., devassas, perguntas appensas e defesa
allegada pelo procurador que lhes foi nomeado, etc.
Mostra-se, que na capitania de Minas alguns vas-
(1) Acha-se na sua integra impressa na Rev. trim. do Intt. Hist.
t. Vlll,pag. 311.
78 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

sallos da rainha, nossa senhora, animados do espirito


da pérfida ambição, formaram um infame plano para
se subtrahirem da sujeição e obediência devida &•
mesma senhora, pretendendo desmembrar e separar
do estado aquella capitania para formarem uma re-
publica independente por meio de uma formal rebel-
lião, da qual se eregiram em chefes e cabeças, sedu-
zindo a uns para ajudarem e concorrerem para
aquella pérfida acção e communicando a outros os
seus atrozes e abomináveis intentos, em que todos
guardavam maliciosamente o mais inviolável silen-
cio, para que a conjuração pudesse produzir o effei-
to que todos mostravam desejar, pelo segredo e cau-
tela com que se reservavam de que chegasse á noticia
do governo e ministros, porque esse era o meio de
levarem avante aquelle honrendo attentado, urdido
pela infidelidade e perfídia. Pelo que não só os che-
fes cabeças da conjuração e os ajudadores da rebel-
lião se constituíram réos do crime de leza magestade
da primeira cabeça, mas também os sabedores e con-
sentidores delia pelo silencio, sendo tal a maldade e
prevaricação desses réos, que sem remorso faltaram
á mais recommendada obrigação de vasallos e de ca-
tholicos, e sem horror contrahiram a infâmia de trai-
dores sempre inherente e annexa a tão enorme e de-
testável delicto.

Mostra-se quanto ao réo Cláudio Manoel da Costa,


que supposto nem assistisse nem figurasse nos con-
venticulos, que se fizessem em casa do réo Francisco
de Paula, e em casa do réo Domingos de Abreu,
comtudo soube e teve individual noticia e certeza de
OBRAS POÉTICAS 79
que estava ajustado entre os chefes da conjuração
fazer-se o motim e levante, estabelecer-se uma repu-
blica independente na capitania de Minas, proferindo
o seu voto nesta matéria nas torpes e execrandas
conferências que teve com o réo Alvarenga e o padre
Carlos Corrêa de Toledo, tanto na sua própria casa
como na casa de Thomaz Antônio Gonzaga : consta
a fl. 7 Ap. n. 5 e fl. 11 Ap. n. 4 da devassa desta ci-
dade, e confessa o réo no Ap. n. 4 de Minas, em cujas
conferências se tratava do modo de executar a sedi-
ção e levante, e dos meios do estabelecimento da re-
publica, chegando a ponto do réo votar sobre a ban-
deira e armas de que se devia usar, como consta do
Ap. n. 4 a fl. 11 Ap. n. 5 a fl. 7 da devassa de Minas,
constituindo-se pelas ditas infames conferências
também chefe da conjuração, para quem os mais
chefes conjurados destinavam a factura das leis para
a nova republica, o que consta a fl. 2 do Ap. n. 23
e testemunhas a fl. 98 v., da devassa de Minas, e
tanto se conheceu este réo criminoso de leza mages-
tade da primeira cabeça, que horrorisado com o te-
mor do castigo que merecia pela qualidade do delic-
io, que, logo depois das primeiras perguntas que lhe
foram feitas, foi achado morto no cárcere, em que
estava, afogado com uma liga ; consta do Ap. n. 4 da
devassa de Minas.

Ao réo Cláudio Manoel da Costa, que se matou no


cárcere, declaram infame a sua memória e infames
seus filhos e netos, tendo-os e os seus bens confisca-
dos para o fisco e câmara real.
80 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Rio de Janeiro de 18 de Abril de 1792. - N'est 9


acórdão estavam as rubricas do Conde de Rezende,
vice-rei. Sebastião Xavier de Vasconcellos Çoutmho,
conselheiro chanceller. Jozé Antônio da Veiga, de-
zembargador. Antônio Gomes Ribeiro, dezembarga-
dor aggravista. Antônio Diniz da Cruz Silva, dezem-
bargador. Dr. João de Figueiredo, dezembargador.
José Feliciano da Rocha Guerreiro, dezembargador.
Tristão Jozé Monteiro da Fonseca, dezembargador.
Antônio Rodrigues Gayoso, dezembargador.

Pelo decreto de 24 de Outubro de 1832, art. 97


mandou a Assembléa Geral, Legislativa do Império,
que o governo entregasse, desde logo a quem per-
tencesse, os bens confiscados na província de Minas-
Geraes por occasião da rebellião de 1790, e que
ainda existissem encorporados aos próprios nacio-
naes.
OBRAS POÉTICAS 81

DOUS NOVOS DOCUMENTOS


SOBRE

CLÁUDIO MANOEL DA COSTA


(Artigo do Dr. B. F. Ramiz Galvão)

t Dos papeis velhos, que dormem nos archivos, ha


sempre alguma lição a receber.
O cartório ecclesiastico da Mariana, á cuja frente
se acha um sacerdote exímio por talentos e virtudes,
monsenhor Júlio Bicalho, secretario do bispado,
acaba de revelamos um documento biographico de
valor :
O processo de genere ou de puritate sanguinis do
celebre poeta Cláudio Manuel da Costa, a cujos bio-
graphos não constara até hoje que o cantor de Nize
pretendesse algum dia fazer-se ministro do Senhor.
Por sua parte, o Revd. padre Tobias José da Sil-
va, caridoso e infatigavel cura da Sé de Mariana,
ministrou-nos com summa gentileza o registro au-
thentico do baptismo do mesmo poeta mineiro.
São esses dous documentos, que hoje offerecemos
em parte aos cultores da nossa historia litteraria. A
reproducção integral do processo de genere não só
82 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

seria imprópria d'este logar, como sem proveito real


para o nosso intuito, que é tão somente accrescentar
um pequeno dado biographico ás noticias que cor-
rem mundo sobre o Dr. Cláudio Manuel da Costa.
l.° Dando de mão á descripção technica do ma-
nuscripto, baste-nos dizer que elle consta de 28 fls.
innumeradas de papel almaço e contem de mais im-
portante o seguinte :

a) Requerimento.

Exmo e Rmo g n r

Diz Cláudio Manuel da Costa filho legitimo de


João Gonçalves da Costa e de Thereza Ribeyra de
Alvarenga da Vargem do Stacolomi freguezia da
S a Se de Marianna e do mesmo Bispado, que elle
tem exercitado os estudos com disvello e aproveita-
mento athe o presente com procedimento p a sacer-
dote, que sempre desejou ser, assim p a agradar a D.
e servir a Ygreja, como p a amparo de huma may v.a
e suas irmans orphans p'° que P. a V. Exc a RWí seja
servido admitir o Supp e a fazer as deligencias neces-
sárias para sacerdote e rogará a D. pela vida, e saú-
de de V. Ex. Rma.
E. R. Mce
(Não traz data, mas o despacho que se lê no alto
reza assim :
Admitt. 0 e Remett. 0 ao nosso R Dr Prov or Mna., de
Mayo 12 de 1751)
OBRAS POÉTICAS 83

b) Instrumentos de genere.
Vem primeiro o remettido de Coimbra pelo Dr. Ma-
nuel Rodrigues Teixeira, alli Provisor do Bispado,
com data de 13 de novembro de 1755. — e depois o
remettido de S. Paulo pelo Dr. Manuel José Vaz, vi-
gário geral d'aquella diocese, com data de 13 de de-
zembro de 1757, — ambos em resposta á carta Re
quisitoria mandada de Mariana.
Comprehende se facilmente o processo. Tratando-
se de indagar da pureza de sangue dos avós do sup-
plicante, fez-se requisição de taes informações para
Coimbra, porque os avós paternos de Cláudio eram
portuguézes, e mais tarde para S. Paulo, porque os
seus ascendentes pelo lado materno d'alli procediam.
Da longa Requisitoria remettida para a visinha
diocese brasileira extractamos o trecho final, que
nos dá idéa clara das exigências feitas n'aquella épo-
ca para semelhantes habilitações :
Requisitoria do Dr. Amaro Gomes de Oliveira,
piovisor do bispado de Marianna, ao Dr. Provisor e
Juiz das justificações de genere do bispado de S.
Paulo, etc.

« Será V. Mce. servido mandar passar ordem se-


creta ao reverendo Parocho da dita freguezia da ci-
dade de S. Paulo, para que por si, ex-officio, com
todo o segredo, sem a parte n'isso interior, nem ou-
trem que por ella o faça no que gravemente lhe en-
carregará sua consciência, se informe em sua Paro-
chia e fora d'ella, -sendo necessário, pelas pessoas
mais antigas, fidedignas, desinteressadas, e Chris-
84 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

ans velhas que n*ella houver e que bem possam e


que razão de saber tenham, acerca da naturalidade,
qualidade, limpeza ou impureza do sangue e geração
do habilitando Cláudio Manoel da Costa, e do que
achar e souber de própria sciencia enviará a vossa
mercê sua particular informação por carta fechada,
e jurada in verbo sacerdotis, dentro da qual nomeará
a Vossa mercê outo ou dez testemunhas que sejam
da qualidade referida, que do sobredito possam tes-
temunhar, e que bem bastem para prova legitima do
que dito h e ; e sendo assim nomeadas, será vossa
mercê servido mandar venham a sua presença, e as
inquirirá com o Escrivão de seu cargo, ex-officio se-
cretamente ; e dando a cada uma de per si o jura-
mento dos Santos Evangelhos, sob cargo do qual
lhe encarregará diga verdade do que souber, lhe
perguntará : como se chamava, que officio é o seu,
donde he natural e morador, e de que edade he; e
depois de dizer ao costume e cousas delle, lhe fará
rossa mercê as perguntas pelos interrogatórios se-
guintes :
1.° — se lhe fallou alguma pessoa ou pessoas, para
que vindo a este juramento, nelle dissesse mais ou
menos da verdade que soubesse, ou lhe fosse per-
guntado, e que pessoas foram ;
2.° — se conhece, ou conheceo ao habilitando
Cláudio Manoel da Costa, de quem he filho, donde
he natural, baptisado e morador, que trato ou officio
tem, qme annos ha que o conhesse, ou conheceu,
com que occupação, e que razão tem de seu conhe-
cimento e noticia ;
3.° — se conhesse ou conheceu a João Gonçalves
OBRAS POÉTICAS 85

da Costa e Thereza Ribeyro de Alvarenga, Paes do


dito, d'onde he natural, baptisado e morador, e que
annos ha que os conhesse, com que trato ou occu-
pação, e que razão tem de seu conhecimento e no-
ticia ;
4.0 _ s e conhesse ou conheceu, e por quantos
annos a Antônio Gonçalves da Costa e Antonia Fer-
nandes, Avós Paternos do habilitando, que trato ou
officio tem ou teve, e que qualidade, e que razão tem
de seu conhecimento e noticia;
5,0 _ s e conhesse ou conheceu e por quantos
annos a Francisco de Barros Freyre e Ysabel Rodri-
gues de Alvarenga, que trato ou officio tem ou teve
e que qualidade e que razão do seu conhecimento e
noticia ;
6.° — se o dito habilitando he filho legitimo e neto
das mesmas pessoas acima declaradas, e se per tal
está tido, havido e reputado e que razão tem de o
saber;
7.» - - se tem alguma razão particular de amizade,
ódio ou parentesco com o dito habilitando, ou com
seus progenitores, e se tem cousa que declarar ao
costume e cousas delles ;
8.° — se o dito habilitando pela parle dos ditos seus
pays e avós Paternos e Maternos, e por si he legitimo
e inteyro Christão velho, sem raça alguma de Judeo,
Mouro, Mourisco, Mulato, Christão novo, Herege ou
de outra infecta nação das reprovadas em direyto
contra nossa Santa fé Catholica, ou descendente de
pessoas a ella novamente convertidas; e se por in-
teyro e legitimo Christão velho, limpo e de limpo
sangue e geração está tido, havido, e reputado, sem
86 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
haver fama, rumor ou suspeita em contrario, e que
razão tem de o saber ;
9.° — se o dito habilitando, ou algum de seus pro-
genitores, foram prezos, punidos, ou penitenciados
pelo Santo Officio, ou se incorreram em pena vil,
infâmia publica de facto, ou de direito, ou que pa-
gassem finta dançada a gente de nasção Hebrea, ou
disso foram infamados, e que razão tem de o saber;
10.°— se tudo o que tem deposto he e foy sempre
publica voz, e fausa, e sendo assim perguntadas as
testemunhas, assignarão com vossamercè, e no caso
que se ache impedido para por si fazer esta deligen-
cia de genere, será vossamercè servido commeter
suas vezes a pessoa Ecclesiastica, e de confiança que
lhe parecer, a qual em tudo guardará a forma desta
requisitoria e remeterá a vossamercè os próprios
autos, que se processarem, com sua extrajudicial
informação, assim acerca de fé, e credito que se deve
dar as testemunhas, como sobre a limpeza do sangue
das pessoas referidas, com o theor dos quaes, desta,
e juntando certidões de Baptismos e Casamentos,
será vossamercè servido mandar passar um instru-
mento autentico, em modo que faça fé; o qual em
maço fechado, cozido e lacrado na forma do estillo
fará vossamercè remetter a esta Cidade, onde será
entregue ao Reverendo Escrivão da Câmara que esta
sob escreveo. E em vossa mercê assim a mandar
cumprir e guardar, fará a Justiça que costuma ; e eu
farei o mesmo por suas semelhantes, sendo-me da
sua parte deprecadas.
Dada nesta cidade de Mariana sob o sello das
Armas de Sua Excellencia Reverendissima, e meu
OBRAS POÉTICAS 87

sinal, aos vinte e cinco de Mayo de mil sette centos


sincoenta e sette.
E eu Antônio Monteyro de Noronha, Escrivão aju-
dante da Câmara Episcopal que a sobscrevy. — Ama-
ro Gomes de Oliveyra.

Seria longo e fastidioso transcrever algum ou al-


guns dos depoimentos das testemunhas que em uma
e outra parte foram chamadas a prestar informação.
Apuremos simplesmente o que serve :
Das duas justificações conclue-se que Cláudio Ma-
nuel da Costa, filho de João Goçalves da Costa e
Thereza Ribeira de Alvarenga, teve por avós pa-
ternos :
Antônio Gonçalves da Costa, natural de Souto-
Mayor, freguezia de Ribeiradio (bispado de Vizeu),
alfaiate, depois lavrador e commerciante de azeite; e
Antonia Fernandes, natural do logar das Arcas, fre-
guezia de S. Mamede das Talhadas (bispado de
Coimbra), a qual falleceu primeiro que seu marido,
deixando trez filhos, dos quaes o de nome João veio
para o Brasil na idade de 20 annos, e foi o progeni-
tor do nosso poeta.
Por avós maternos teve o mesmo Cláudio :
Francisco de Barros Freire e Ysabel Rodrigues de
Alvarenga, naturaes ambos da cidade de S. Paulo, e
moradores no Pissarrão, freguezia da Conceição do
Guarapiranga (bispado de Minas).
Conclue-se mais da informação do cura da Sé de
S. Paulo, que o avô materno Francisco de Barros
Freire era irmão legitimo de Antônio de Barros, pai
do padre Manuel de Barros, — todos naturaes de S.
88 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Paulo e « christãos velhos e de limpo sangue, sem


rumor em contrario ».
Por sua parte, Isabel Rodrigues de Alvarenga era
irmã de uma certa Anna de Chaves, vulgarmente
chamada « a freira ».

c) Conclusão.

A fl. final occorre a conclusão dos Autos aos 22 de


maio de 1758, com a seguinte nota :
« Falta inquisição por parte do avô paterno An-
tônio Gonçalves da Costa, que he natural do logar
de Souto-Mayor de Ribeiradio do Bispado de Vizeu,
e não do logar das Arcas, freguezia de S. Mamede
áas Talhadas do Bispado de Coimbra como errada-
mente se diz na petição do habilitando, e faltam tam-
bém inquirições da naturalidade da mãe e do mesmo
habilitando com todas as certidões que são necessá-
rias. — (Assignado :) Oliv* »

2.° O segundo documento biographico é o seguin-


te registro, que se encontra a fls. 110 do < 2.° Livro
dos assentos dos Baptisados d'esta Freguezia do Ri-
beyrâo do Carmo » :

« A vinte e nove de Junho de mil e setecentos e


vinte e nove, na Capella de N Sfia da Conceição do
Sitio da Varge de Ytacolomy d'esta frga de N Sfia da
Conceição Matriz da Villa do Carmo, de licença rai-
afca baptisou o P* Mel da Silva Lemos Capelão da
Capella do Morro de Matacavallos desta frga a Clau-
OBRAS POÉTICAS 89

dio filho de João Gonçalves da Costa, e de sua mu-


lher Tereza Ribr» desta frga : foram padrinhos João
Frz' de Oliveyra e Anna Ribr a da Luz mulher de Vic-
torino de Barros da frga de Guarapiranga, de q' fls o
assento.
(Assignados : )
0 Vigr0 Joseph Simoens.
Manoel da Sylva Leemos. »

Conclusões.

Cláudio Manuel da Costa não nasceu nas « pitto-


rescas margens do Ribeirão do Carmo », como diz
Fernandes Pinheiro, nem propriamente na cidade de
Mariana, como ;asseveram quasi todos os seus bio-
graphos, e entre elles Joaquim Norberto, que foi
quem com mais cuidado investigou as circumstan-
cias relativas á vida d'este illustre mineiro.
Elle próprio disse no requerimento inicial da habi-
litação, e o registo do baptisado o confirma : nasceu
no Sitio da Vargem de Ytacolomy, freguezia de Ma-
riana sim, mas a uns 12 kilometros da cidade : bem
longe portanto das margens do Ribeirão do Carmo,
lá no meio de uma natureza alpestre, a que elle pró-
prio alludiu n'aquelle bello soneto :

D'estes penhascos fez a natureza


0 berço em que nasci : oh 1 quem cuidara
Que entre penhas tão duras se creára
Uma alma terna, um peito sem dureza!
90 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Filho de João Gonçalves da Costa e de Thereza


Ribeira de Alvarenga, teve por avós paternos Antô-
nio Gonçalves da Costa e Antonia Fernandes, lavra-
dores portuguezes, —e por avós maternos Francisco
de Barros Freire e Isabel Rodrigues de Alvarenga,
paulistanos e moradores no Pissarrão de Guarapi-
ranga, em Minas Geraes.
Quando cursava as aulas da universidade de Coim-
bra, com o intuito de formar-se em cânones em 1751,
e portanto aos 22 annos de idade, teve idéa de abra-
çar o estado ecclesiastico e chegou a iniciar o res-
pectivo processo : circumstancia até aqui não refe-
rida pelos biographos.
É licito suppor á vista das obras do poeta do amor
inditoso, como acertadamente o chama alguém, que
nenhuma vocação legitima convidasse o apaixonado
cantor de Nize a apartar-se do mundo e a procurar
as aras do Senhor.
Foi talvez a dôr dessa mesma ferida, com que lhe
sangrou sempre o coração, e que o fez pedir ás
brandas ribeiras do pátrio ninho :
Recebei eu vos peço um desgraçado
Que andou té agora por incerto gyro
Correndo sempre atraz do seu cuidado.
(Son. VI.)

Foi talvez o amor infeliz, que cobria de profunda


melancolia todos os seus carmes, e que inspirou
aquelles conhecidos versos :
Este é o rio, a montanha é esta ;
Estes os troncos, estes os rochedos ;
OBRAS POÉTICAS 91

São estes indos os mesmos arvoredos,


Esta é a mesma rústica floresta.

Tudo cheio de horror se manifesta,


Rio, montanha, troncos e penedos;
Que de a por nos suavíssimos enredos
Foi scena alegre e urna é já funesta.
(Son. Vil.)
O que parece induvitavel é que o intento manifes-
tado em 1751 não persistiu.
O processo correu como á revelia, e parou por
deficiência de informações e documentos, que Cláu-
dio Manuel pudera aliás facilmente exhibir, se qui-
zesse de facto alistar-se no exercito evangélico da
cruz.
O inditoso amante de Nize, que escreveu este
adeus de magua profundíssima e terna :
Adeus, idolo bello, adeus querido,
Ingrato bem ; adeus ! em paz te fica,
E essa victoria mísera publica
Que tens barbaramente conseguido.
Eu parto, eu sigo o norte aborrecido
De meu fado infeliz ; agora rica
De despojos a teu desdém applíca
0 rouco accento de um mortal gemido.
E se acaso alguma hora menos dura,
Lembrando-te de um triste, consultares
A serie vil da sua desventura,
Na immensa confusão de seus pezares
Acharás que ardeu simples, ardeu pura
A victima de uma alma em teus altares.
92 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

o infeliz amante de Nize cedeu então talvez a um


impulso passageiro de despeito mundano ; não era
um eleito de Deus para seus altares. De regresso ás
suas Minas tão amadas em 1754 (se é que partira em
1749 para Coimbra), abriu a banca da advocacia,
em que trabalhou com pequena interrupção até o
calamitoso anno de 1789, que assistiu á barbara re-
pressão da Inconfidência.
E conhecido o triste incidente, com que na prisão
poz termo aos seus dias, para escapar á ignomínia
da forca em que expirou glorioso o Tiradeutes, ou
ás penas do degredo em que gemeram Gonzaga e
tantos outros beneméritos sonhadores de Villa Rica.
Por ultimo só resta dizer que, além dos argumen-
tos produzidos habilmente por Joaquin Norberto
(Notas biographicas, 1889) para provar que Cláudio
Manuel não voltara ao Brasil em 1765, como asse-
vera o Sr. conselheiro Pereira da Silva, podemos
offerecer mais este: existe no cartório ecclesiastico
de Marianna uma carta autographa do poeta, es-
cripta em Minas e datada de 1761.

Taes são as notas que por hoje é licito accrescen-


tar á biographia do dr. Cláudio Manuel da Costa, o
suavíssimo « poeta da raça dos Lamartines », um
dos fundadores do lyrismo brasileiro, e talvez no
soneto «o primeiro escriptor da nossa lingua», como
affirma o Sr. Silvio Romero » .
OBRAS
DE

CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Primus ego inpatriam mecum, modo vila supersit,


Aonio rediens deducam vértice Musas.
YIRG. GEORG.

1768
CARTA

DEDICATÓRIA
Ao Exm.0 Snr.
D. José Luiz de Menezes Abranches Castello
Branco.

Não é a vaidade de honrar os meus escritos, o que


me obriga a escrever na frente d'elles o grande
nome de V. Excellencia; nem é o empenho de
prevenir a mordacidade dos criticos, o que me ani-
ma a buscar tão superior Mecenas. Persuado-me,
com o parecer do Sulmonense, que, se a causa por
sua natureza não é boa se faz peior com o patrocínio:
e pouco me devem as produções inúteis da minha
ociosidade, na qual perdi apenas as breves horas
que pude respirar de uma vida seria. A obrigação,
Senhor, e o aífecto são os dous fortíssimos, e únicos
estímulos, que promovem á presença de V. Excel-
lencia o meu estéril obzequio. Produzir ao publico
esta confissão é toda a minha gloria.
Não se engane o mundo, se para formar o elogio
de V. Excellencia, espera que eu entre a desenvol-
ver a dilatada serie da sua Genealogia. Eu sei, que
largo campo me pudera offerecer uma Ascendência,
que honrando a duas Monarquias, interessou no seu
sangue os Senhores Reis, D. Fernando em Por-
96 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

tugal e D. Henrique Segundo em Castella. Depois


desta'ponderação pouco importara o dizer se que
ella se tem enlaçado com as primeiras casas do Remo
Pouco importara o contar na sua Varonia os Títulos,
e Brazões de Noronha, Cascaes, Villa Real, Linha-
res, Bragança, Monsanto, Portalegre, Caminha,
Alvito, Povolide, Abranches, Ilha do Príncipe, Óbi-
dos, Angeja e Alegrete. Bafaria apontar que a me-
mória de tão>sclarecidos Progenitores foi condeco-
rada, em dous de Junho de mil setecentos e dousi
na Pessoa [do Senhor D. Miguel Luiz de Menezes,
com o Titulo de Conde de Valladares ; Titulo, de que
V. Excellencia, parahonra de Portugal, é o quinto,
felicíssimo e legitimo successor.
Eu rendo uma profunda veneração a tão illustre
Família: mas deixo esta lembrança: porqueV. Excel-
lencia tão bem a deixa. Estimando por casualidade a
fortuna do berço, nós o vemos fundar a maior no-
breza nas vantagens do seu espirito. Virtuoso, libe-
ral, «abio, e magnífico, maior pelos merecimentos
pessoaes, do que pelos Títulos, que tem, nós vemos
que os Pobres o amam, como seu Pai; os Políticos
o attendem, como seu Mestre, e os Grandes o res-
peitam como seu Modelo. Lisboa, em fim, e todo o
Portugal publicão as suas virtudes.
Quem não admira o perfeito zelo, com que V.
Excellencia busca em todas as cousas a honra de
Deos, a gloria do Rei, e o bem dos vassallos ! Quem
não louva aquella generoza piedade, com que edifica
os Povos, aquella prudência illustrada, com que re-
gula as acções, e aquella bondade natural, com que
se faz universalmente amável! A quem não arrebata
OBRAS POÉTICAS 97

o gênio vasto que brilha em V. Excellencia, a pene-


tração viva, e delicada, com que tudo compre-
hende, e a sciencia dilatada, com que profundou os
systemas da moral mais sã, e da melhor política !
Estas são as qualidades que formão o caracter de
uma alma grande; e estas são as que distinguem um
^leróe do resto dos mais homens.
0 SENHOR D. JOSÉ, O PRIMEIRO, digno deste
nome, e digno de reinar pelos séculos, querendo
mostrar a estimação que faz de um Vassallo tão
distincto, confiou de V. Excellencia o governo das
Minas Geraes, da minha pátria, da Capitania mais
importante : pois em fim é a mais rica.
Oh ! E quantas lagrimas não alropellou V. Excel-
lencia na occasião de deixar a Europa! Que suspiros
não custou a Lisboa a inveja nobre de ver transpor-
tar-se para o Brazil o objecto maior das suas espe-
ranças ! O espaço breve de vinte e dous annos, que
V. Excellencia apenas contava, tinha enchido as
gentes de tanta expectação, como pudera fazer re-
commendaveis os últimos dias de qualquer Grande.
A benevolência, a piedade, e a inteireza qualificavam
a preciosa indole de V. Excellencia, não menos no
serviço do Rei, que no zelo da Religião.
Ainda, Senhor, ainda se ouvem os suspiros do
Hospital, onde V. Excellencia, com o emprego de
Mordomo-Mór, eternizou a sua virtude. As provas
da caridade, que acabou alli de exercitar, foram tão
dignas de admiração, quanto maiores de todo o cre-
dito, e próprias só do seu grandioso animo. Eu
mesmo, eu mesmo estou vendo ainda o desordenado
tropel de pobres, de doentes e de afflictos, que for-
i. 6
98 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

cejavam por demorar os passos ao seu Bemfeitor.


Qual se desfazia em prantos ! Qual com os ais em-
baraçava a despedida ! Qual mostrando as chagas a
aquella mão, que as costumava curar queria com
esta lembrança attrair a compaixão ! E V. Excel
lencia cheio de bondade, e cheio de espirito, con-
solando a uns, beneficiando a outros, abraçando a
todos, com amor, com zelo, com piedade, despe-
dindo-se, partindo, voltando... Que é o que faço!
Insensivelmente cheguei a enternecer o coração do
meu Heróe. Bastou uma leve imagem de ternura,
para abalar as suas entranhas. Eu cedo já, Senhor,
eu cedo. Reserve-se áposteridade o estender o nome
de V. Excellencia, e o eco das suas acções. Eu teria
uma grande satisfação de ajuntar a minha penna a
esta fama.
Felizes os habitadores das Minas ! Felizes os vas-
sallos d'El-Rey Fidelissimo ! Feliz a minha pátria, e
feliz eu, que da prudente conducta de um tão grande
General devemos auspicaranós mesmos um governo
suavissimo ! Feliz eu mil vezes, que devendo a V.
Excellencia a honra de consentir, que passem as
minhas obras debaixo da sua protecção, tenho a
gloria de confessar com o mais profundo respeito,
que sou
De V. Excellencia
Subdito obrigadissimo
CLÁUDIO MANOEL DA COSTA.
PRÓLOGO AO LEITOR

Senão for muita a ^tua maldade, sempre has de


confessar,^que algum agradecimento se deve a um
Engenho, que desde os sertões da Capitania das
Minas Geraes aspira a brindar-te com o pequeno ob-
zequio deslas Obras. Conheço, que só entre as deli-
cias do Pindo se podem nutrir aquelles espiritos.
que desde o berço se destinaram a tratar as Musas:
« talvez nesta certeza imaginou o Poeta desterrado,
que as Cycladas do mar Egeo se tinham admirado
de que elle pudesse compor entre os horrores das
embravescidas ondas.
Não permittio o Ceo, que alguns influxos, que
devi ás agoas do Mondego, se prosperassem por
muito tempo : e destinado a buscar a Pátria, que
por espaço de cinco annos havia deixado, aqui
entre a grossaria dos seus gênios, que menos pu-
dera eu fazer, que entregarme ao ócio, e sepultar-me
na ignorância ! Que menos, do que abandonar as
fingidas Ninfas destes rios ; e no centro delles ado-
rar a preciozidade daquelles metaes,que tem attra-
hido a este clima os corações de toda a Europa!
Não são estas as venturozas praias da Arcadia ;
onde o som das agoas inspirava a harmonia dos
ersos. Turva, e feia a .corrente destes ribeiros pri-
100 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

meiro que arrebate as idéas de um Poeta, deixa


ponderar a ambicioza fadiga de minerar a terra que
lhes tem pervertido as cores.
A desconsolação de não poder substabelecer aqui
as delicias do Tejo, do Lima e do Mondego, me fez
entorpecer o engenho dentro do meu berço: mas nada
bastou para deixar de confessar a seu respeito a
maior paixão. Esta me persuadiu a invocar muitas
vezes, e a escrevera Fábula do Ribeirão do]Carmo,
rio o mais rico desta Capitania que corre, e dava o
nome á Cidade Mariana, minha Pátria, quando era
Villa.
Bem creio, que te não faltará que censurar nas
minhas Obras, principalmente nas Pastoris; onde
preoccupado da commua opinião te não ha de agra-
dar a elegância de que são ornadas. Sem te apar-
tares deste mesmo volume, encontrarás alguns luga-
res que te darão a conhecer ; como talvez me não é
estranho o estilo simples; e que sei avaliar as me-
lhores passagens de Theocrito, Virgílio, Sanazaro, e
dos nossos Miranda, Bernardes, Lobo, Camoens,
etc. Pudera desculpar-me, dizendo que o gênio me
fez propender mais para o sublime: mas temendo,
que ainda neste me condemnes o muito uso das
metáforas, bastará, para te satisfazer, o lembrar-te,
que a maior parte destas Obras forão compostas ou
em Coimbra, ou pouco depois, nos meus Iprimeiros
annos; tempo em que Portugal apenas principiava
a melhorar de gosto nas bellas letras. A lição dos
Gregos, Francezes e Italianos, sim, me fizeram co-
nhecer a differença sensível dos nossos estudos, e
dos primeiros Mestres da Poesia. É infelicidade,
OBRAS POÉTICAS 10]

que haja de confessar; que vejo, e approvo o me-


lhor; mas sigo o contrario na execução
Contra esta obstinação não ha argumento: e sendo
empreza difficultosa accommodar semelhante gênero
de iguaria ao paladar de todos (porque uns o tem
muito entorpecido, e outros demasiadamente deli-
cado) contentarme-hei, com que nestas Obras haja
alguma couza, que te agrade ; ainda que uma grande
parte te desgoste. A experiência do contrario me fará
condemnar o teu gênio, ou de indiscreto, se tudo
approvas, ou de invejoso, se nada louvas.
AD LEGTOREM

EPIGR.

Ipse sibi plaudat Naso, plaudique peroptet;


Dum videt in formas corpora versa novas :
Exige, fronde virens cingat tua têmpora laurus,
Dum blandis resonas, culte Tibulle, modis :
Mseonides longum, sibi spondeat aevum,
Qui cecinit segetes, Arma, virumque, Maro:
Non eadem nobis repetuntur munera, Lector;
Cum tibi sim gratus, prsemia digna feram.
SONETOS
i
Para cantar de Amor tenros cuidados,
Tomo entre vos, ó montes, o instrumento,
Ouvi pois o meu fúnebre lamento;
Se é, que dè compaixão sois animados :
Já vós vistes, que aos eccos magoados
Do Thracio Orfêo parava o mesmo vento ;
Da lira de Anfião ao doce accento
Se viram os rochedos abalados.
Bem sei, que de outros Gênios o destino.
Para cingir de Apollo a verde rama,
Lhes influio na lira estro divino ;
0 canto, pois, que a minha voz derrama,
Porque ao menos o entoa um Peregrino,
Se faz digno entre vós também de fama.
11
Leia a posteridade, ó pátrio Rio,
Em meus versos teu nome celebrado,
Porque vejas uma hora despertado
O somno vil do esquecimento frio :
Não vês nas tuas margens o sombrio,
Fresco assento de um álamo copado;
Não vês Ninfa cantar, pastar o gado
Na tarde clara do calmoso estio.
Turvo banhando as pallidas arêas
Nas porções do riquissimo thezouro
O vasto campo da ambição recrêas.
104 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Que de seus raios o Planeta louro,


Enriquecendo o influxo em tuas vêas,
Quanto em chamas fecunda, brota em ouro.
III
Pastores, que levais ao monte o gado,
Vede Ia como andais por essa serra;
Que para dar contagio a toda a terra,
Basta ver-se o meu rosto magoado :
Eu ando (vós me vedes) tão pezado ;
É a Pastora infiel, que me faz guerra,
E' a mesma, que em seu semblante encerra
A causa de um martírio tão cansado.
Se a quereis conhecer, vinde commigo,
Vereis a formozura, que eu adoro ;
Mas não; tanto não sou vosso inimigo :
Deixai, não a vejais; eu volo imploro;
Que se seguir quizerdes o que eu sigo,
Chorareis, ó Pastores, o que eu choro.
IV
Sou Pastor; não te nego; os meus montados
São esses, que ahi vês; vivo contente
Ao trazer entre a relva florescente
A doce companhia dos meus gados ;
AUi me ouvem os troncos namorados,
Em que se transformou a antiga gente;
Qualquer delles o seu estrago sente ;
Como eu sinto também os meus cuidados.
Vós, ó troncos (lhes digo), que algum dia
Firmes vos contemplastes, e seguros
Nos braços de uma bella companhia;
Consolai-vos comigo, ó troncos duros;
OBRAS POÉTICAS 105
Que eu alegre algum tempo assim me via;
E hoje os tratos de Amor choro perjuros.

Se sou pobre Pastor, se não governo


Reinos, nações, províncias, mundo, e gentes;
Se em frio, calma, e chuvas inclementes
Passo o verão, outono, estio, inverno;
Nem por isso trocara o abrigo terno
Desta chossa, em que vivo, co' as enchentes
Dessa grande fortuna : assaz presentes
Tenho as paixões desse tormento eterno.
Adorar as traições, amar o engano,
Ouvir dos lastimosos o gemido,
Passar afflicto o dia, o mez, e o anno ;
Seja embora prazer; que a meu ouvido
Sòa melhor a voz do desengano,
Que da torpe lisonja o infame ruido.
VI
Brandas ribeiras, quanto estou contente
De ver-vos outra vez, se isto é verdade
Quanto me alegra ouvir a suavidade,
Com que Filis entoa a voz cadente !
Os rebanhos, o gado, o campo, a gente,
Tudo me está causando novidade :
Oh como é certo, que a cruel saudade
Faz tudo, do que foi, mui differente !
Recebei (eu vos peço) um desgraçado,
Que andou té agora por incerto giro
Correndo sempre atrás do seu cuidado :
Este pranto, estes ais, com que respiro,
Podendo commover o vosso agrado,
106 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Façam digno de vós o meu suspiro.


VII
Onde estou ! Este sitio desconheço :
Quem fez tão differente aquelle prado !
Tudo outra natureza tem tomado ;
E em contemplal-o timido esmoreço.
Uma fonte aqui houve; eu não me esqueço
D^ estar a ella um dia reclinado :
AUi em valle um monte está mudado :
Quanto pôde dos annos o progresso !
Arvores aqui vi tão florescentes,
Que fazião perpetua a primavera :
Nem troncos vejo agora decadentes.
Eu me engano : a região esta não era :
Mas que venho a estranhar, se estão prezentes,
Meus males, com que tudo degenera!
VIII
Este é o rio, a montanha é esta,
Estes os troncos, estes os rochedos;
São estes inda os mesmos arvoredos;
Esta é a mesma rústica floresta.
Tudo cheio de horror se manifesta,
Rio, montanha, troncos, e penedos;
Que de amor nos suavíssimos enredos
Foi scena alegre, e urna é já funesta.
Oh quam lembrado estou de haver subido
Aquelle monte, e as vezes, que baixando
Deixei do pranto o valle humedecido !
Tudo me está a memória retratando ;
Que da mesma saudade o infame ruido
Vem as mortas espécies despertando.
OBRAS POÉTICAS ]Q7

IX
Pouco importa, formoza Daliana,
Que fugindo de ouvir-me, o fuzo tomes ,
Se quanto mais me affliges, e consomes,
Tanto te adoro mais, bella serrana.
Ou já fujas do abrigo da cabana,
Ou sobre os altos montes mais te assomes,
Faremos immortaes os nossos nomes,
Eu por ser firme, tu por ser tiranna.
Um obzequio, que foi de amor rendido,
Bem pôde ser, Pastora, desprezado ;
Mas nunca se verá desvanescido :
Sim, que para lizonja do cuidado,
Testemunhas serão de meu gemido
Este monte, este valle, aquelle prado.

X
Eu ponho esta sanfona, tu, Palemo,
Porás a ovelha branca, e o cajado ;
E ambos ao som da flauta magoado
Podemos competir de extremo a extremo.
Principia, Pastor; que eu te não temo;
Inda que sejas tão avantejado
No cântico Amabêo : para louvado
Escolhamos embora o velho Alcemo.
Que esperas ? toma a flauta, principia ;
Eu quero acompanhar-te; os orizontes
Já se enchem de prazer, e de alegria :
Parece, que estes prados, e estas fontes
Já sabem, que é o assumpto da porfia
Nize, a melhor Pastora destes montes.
108 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

XI
Formoza é Daliana; o seu cabello,
A testa, a sobrancelha é peregrina ;
Mas nada tem, que ver co' a bella Eulina,
Que é todo o meu amor, o meu desvelo :
Parece escura a neve em parallelo
Da sua branca face ; onde a bonina
As «ores misturou na côr mais fina,
Que faz sobresahir seu rosto bello.
Tanto os seus lindos olhos enamoram,
Que arrebatados, como em doce encanto,
Os que a chegão a ver, todos a adoram.
Se alguém disser, que a engrandeço lanto
Veja, para desculpa dos que choram,
Veja á Eulina; e então suspenda o pranlo.

XII
Faligado da calma se acolhia
Junto o rebanho á sombra dos salgueiros ;
E o Sol, queimando os ásperos oiteiros,
Com violência maior no campo ardia.
Suffocava-se o vento, que gemia
Entre o verde matiz dos sovereiros;
E tanto ao gado, como aos Pegureiros
Desmaiava o calor do intenso dia.
Nesta ardente estação, de fino amante
Dando mostras Dalizo atravessava
O campo todo em busca de Violante.
Seu descuido em seu fogo desculpava ;
Que mal feria o Sol tão penetrante,
Onde maior incêndio a alma abrazava.
OBRAS POÉTICAS JQ9

XIII
Nize ? Nize ? onde estás ? Aonde espera
Achar-te uma alma, que por ti suspira ;
Se quanto a vista se dilata, e gira,
Tanto mais de encontrar-te desespera !
Ah se ao menos teu nome ouvir pudera
Entre esta aura suave, que respira !
Nize, cuido, que diz; mas é mentira.
Nize, cuidei que ouvia; e tal não era.
Grutas, troncos, penhascos da espessura,
Se o meu bem, se a minha alma em vós se esconde'
Mostrai, mostrai.me a sua formozura.
Nem ao menos o ecco me responde !
Ah eomo é certa a minha desventura!
Nize ? Nize ? onde estás ? aonde ? aonde ?

XIV
Quem deixa o trato pastoril, amado
Pela ingrata, civil correspondência,
Ou desconhecce o rosto da violência,
Ou do retiro a paz não tem provado.
Que bem é ver nos campos trasladado
No gênio do Pastor, o da innocencia !
E que mal é no trato, e na apparencia
Ver sempre o cortezão dissimulado !
Alli respira Amor sinceridade;
Aqui sempre a traição seu rosto encobre ;
Um só trata a mentira, outro a verdade.
Alli não ha fortuna, que soçobre ;
Aqui quanto se observa, é variedade :
Oh ventura do rico ! Oh bem do pobre ! •
HO CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

W
Formozo, e manso gado, que pascendo
A relva andais por entre o verde prado,
Venturozo rebanho, feliz gado,
Que á bella Antandra estais obedecendo;
Jâ de Corino os eccos percebendo
A frente levantais, ouvis parado ;
Ou já de Alcino ao canto levantado
Pouco, e pouco vos ides recolhendo ;
Eu o misero Alfêo, que em meu destino
Lamento as semrazões da desventura,
A seguir-vos também hoje me inclino :
Medi meu rosto : ouvi minha ternura;
Porque o aspecto, e voz de um Peregrino
Sempre faz novidade na espessura.

XVI
Toda a mortal fadiga adormecia
No silencio, que a noite convidava;
Nada o somno suavíssimo alterava
Na muda confuzão da sombra fria :
Só Fido, que de Amor por Lize ardia,
No socego maior não repouzava;
Sentindo o mal, com lagrimas culpava
A sorte; porque delia se partia.
Vê Fido, que o seu bem lhe nega a sorte;
Querer enternecel-a é inútil arte;
Fazer o que ella quer, é rigor forte :
Mas de modo entre as penas se reparte ;
Que á Lize rende a alma, a vida á morte :
Porque uma parte alente a outra parte.
OBRAS POÉTICAS 111

XVII
Deixa, que por um pouco aquelle monte
Escute a gloria, que a meu peito assiste :
Porque nem sempre lastimozo e triste
Hei de chorar á margem desta fonte.
Agora, que nem sombra há no orizonte,
Nem o alamo ao Zefiro resiste,
Aquella hora ditoza, em que me viste
Na posse de meu bem, deixa, que conte.
Mas que modo, que accento, que harmonia
Bastante pode ser, gentil Pastora,
Para explicar affectos de alegria!
Que hei de dizer, se esta alma, que te adora,
Só costumada às vozes da agonia,
A fraze do prazer ainda ignora !

XVIII
Aquella cinta azul, que o Ceo estende
A' nossa mão esquerda, aquelle grito,
Com que está toda a noite o corvo afflicto
Dizendo um não sei que, que não se entende ;
Levantar-me de um sonho, quando attende
O meu ouvido um misero conflicto,
A tempo, que o voraz, lobo maldito
A minha ovelha mais mimoza oftende ;
Encontrar á dormir tão preguiçozo
Melampo, o meu fiel, que na manada
Sempre desperto está, sempre anciozo ;
Ah ! queira Deos, que minta a sorte irada :
Mas de tão triste agouro cuidadozo
Só me lembro de Nize, e de mais nada.
112 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

XIX
Corino, vai buscar aquella ovelha,
Que grita lá no campo, e dormiu fora;
Anda ; acorda, Pastor ; que sae a Aurora ;
Como vem tão rizonha, e tão vermelha !
Já perdi n'outro tempo uma parelha
Por teu respeito; queira Deos, que agora
Não se me vá também esfoutra embora;
Pois não queres ouvir, quem te aconselha.
Que somno será este tão pezado!
Nada responde, nada diz Corino :
Ora em que mãos está meu pobre gado !
Mas ai de mim ! que cego desatino.
Como te hei de accusar de descuidado
Se toda a culpa tua é meu destino!

XX
Ai de mim! corno estou tão descuidado I
Como do meu rebanho assim me esqueço,
Que vendo-o trasmalhar no mato espesso,
Em lugar de o tornar, fico pasmado!
Ouço o rumor, que faz desaforado
0 lobo nos redis; ouço o successo
Da ovelha, do Pastor; e desconheço
Não menos, do que ao dono, o mesmo gado;
Da fonte dos meus olhos nunca enxuta
A corrente fatal, fico indecizo,
Ao ver, quanto em meu damno se executa.
Um pouco apenas meu pezar suavizo,
Quando nas serras o meu mal se escuta
Que triste allivio ! ah infeliz Dalizo !
OBRAS POÉTICAS 113

XXI
De um ramo desta faia pendurado
Vejo o instrumento estar do Pastor Fido;
D'aquelle, que entre os mais era applaudido,
Se alguma vez nas selvas escutado.
Ser-lhe-há eternamente consagrado
Um ai saudozo, um fúnebre gemido;
Em quanto for no monte repetido
0 seu nome, o seu canto levantado.
Se chegas a este sitio, e te persuade
A' algum pezar a sua desventura,
Corresponde em affectos de piedade;
Lembra-te, caminhante, da ternura
De seu canto suave; e uma saudade
Por obzequio dedica á sepultura.

XXII
Neste àlamo sombrio, aonde a escura
Noite produz a imagem do segredo;
Em que apenas distingue o próprio medo
. Do feio assombro a horrida figura;
Aqui, onde não geme, nem murmura
Zefiro brando em fúnebre arvoredo,
Sentado sobre o tosco de um penedo
Chorava Fido a sua desventura.
A's lagrimas a penha enternecida
Um rio fecundou, donde manava
D'ancia mortal a copia derretida:
A natureza em ambos se mudava;
Abalava-se a penha commovida ;
Fido estatua da dor, se congelava.
114 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

XXIII
Tu sonora corrente, fonte pura,
Testemunha fiel da minha pena,
Sabe, que a sempre dura e ingrata Almena
Contra o meu rendimento se conjura :
Aqui me manda estar nesta espessura,
Ouvindo a triste voz da Filomena,
E bem que este martírio hoje me ordena,
Já mais espero ter melhor ventura.
Veio a dar-me somente uma esperança
Nova idca do ódio ; pois sabia,
Que o rigor não me assusta, nem me cansa:
Vendo a tanto crescer minha porfia,
Quiz mudar de tormento; e por vingança
Foi buscar no favor a tirannia.

XXIV
Sonha em torrentes d'agoa, o que abrazado
Na sede ardente está; sonha em riqueza
Aquelle, que no horror de uma pobreza
Anda sempre infeliz, sempre vexado :
Assim na agitação de meu cuidado
De um continuo delírio esta alma preza,
Quando é tudo rigor, tudo aspereza,
Me finjo no prazer de um doce estado.
Ao despertar a louca fantazia
Do enfermo, do mendigo, se descobre
Do torpe engano seu a imagem fria:
Que importa pois, que a idea allivios cobre,
Se a pezar desta ingrata aleivozia,
Quanto mais rico estou, estou mais pobre.
OBRAS POÉTICAS 115

XXV
Não de Tigres as testas descarnadas,
Não de Hircanos leões a pelle dura,
Por sacrifício á tua formozura,
Aqui te deixo, ó Lize, penduradas :
rincias ardentes, lagrimas cansadas,
Com que meu rosto em fim se desfigura,
São, bella Ninfa, a victima mais pura,
Que as tuas aras guardarão sagradas.
Outro as flores, e fructos, que te envia,
Corte nos montes, corte nas florestas;
Que eu rendo as magoas, que por ti sentia.
Mas entre flores, fructos, pelles, testas,
Para adornar o altar da tirannia,
Que outra victima queres mais, do que estas?

XXVI
Não ves, Nize, este vento desabrido,
Que arranca os duros troncos ? Não ves esta,
Que vem cobrindo o Ceo, sombra funesta,
Entre o horror de um relâmpago incendido.
Não ves a cada instante o ar partido
Dessas linhas de fogo ? Tudo cresta,
Tudo consome, tudo arraza, e infesta
0 raio a cada instante despedido.
Ah ! não temas o estrago, que ameaça
A tormenta fatal; que o Ceo destina
Vejas mais fêa, mais cruel desgraça:
Rasga o meu peito, já que és tão ferina;
Verás a tempestade, que em mim passa;
Conhecerás então, o que é ruina.
116 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

XXVII
Appressa-se a tocar o caminhante
O pouzo, que lhe marca a luz do dia ;
E da sua esperança se confia,
Que chegue a entrar no porto o navegante;
Nem aquelle sem termo passa avante
Na longa, duvidoza, e incerta via ;
Nem este atravessando a região fria
Vae levando sem rumo o curso errante:
Depois que um breve tempo houver passado,
Um se verá sobre a segura arêa,
Chegará o outro ao sitio desejado :
Eu só, tendo de penas a alma chêa,
Não tenho que esperar; que o meu cuidado
Faz, que gire sem norte a minha idéa.

XXVIII
Faz a imaginação de um bem amado,
Que nelle se transforme o peito amante;
Daqui vem, que a minha alma delirante
Se não distingue já do mgu cuidado.
Nesta doce loucura arrebatado
Anarda cuido ver bem que distante;
Mas ao passo, que a busco, neste instante
Me vejo no meu mal desenganado.
Pois se Anarda em mim vive, e eu nella vivo,
E por força da idea me converto
Na bella cauza de meu fogo activo;
Como nas tristes lagrimas que verto,
Ao querer contrastar seu gênio esquivo,
Tão longe delia estou, e estou tão perto.
OBRAS POÉTICAS 117

XXIX
Ai Nize amada! se este meu tormenlo,
Se estes meus sentidissimos gemidos
Lá no teu peito, lã nos teus ouvidos
Achar pudessem brando acolhimento ;
Como alegre em servir-te, como attento
Meus votos tributara agradecidos!
Por séculos de males bem soffridos
Trocara todo o meu contentamento.
Mas se na incontrastavel pedra dura
De teu rigor não há correspondência
Para os doces affectos de ternura ;
Cesse de meus suspiros a vehemencia ;
Que é fazer mais soberba a formozura
Adorar o rigor da resistência.

XXX
Não se passa, meu bem, na noite, e dia
Uma hora só, que a mizera lembrança
Te não tenha presente na mudança,
Que fez, para meu mal, minha alegria.
Mil imagens debuxa a fantazia,
Com que mais me atormenta e mais me cansa:
Pois se tão longe estou de üa esperança,
Que allivio pôde dar-me esta porfia!
Tiranno foi commigo o fado ingrato;
Que crendo, em te roubar, pouca victoria.
Me deixou para sempre o teu retrato :
Eu me alegrara da passada gloria,
Se quando me faltou teu doce trato,
Me faltara também delle a memória.
118 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

XXXI
Estes os olhos são da minha amada:
Que bellos, que gentis, e que formozos!
Não tão para os mortaes tão preciozos
Os doces fructos da estação dourada.
Por elles a alegria derramada,
Tornão-se os campos de prazer gostozos,
Em Zefiros suaves, e mimozos
Toda esta região se vê banhada ;
Vinde, olhos bellos, vinde; e em fim trazendo
Do rosto de meu bem as prendas bellas,
Dai allivios ao mal, que estou gemendo :
Mas ah delírio meu, que me atropellas!
Os olhos, que eu cuidei, que estava vendo,
Erão (quem crera tal!) duas estrellas.

XXXII
Se os poucos dias, que vivi contente,
Forão bastantes para o meu cuidado,
Que pôde vir a um pobre desgraçado,
Que a idéa de seu mal não accrescente !
Aquelle mesmo bem, que me consente,
Tal vez propicio, meu tiranno fado,
Esse mesmo me diz, que o meu estado
Se ha de mudar em outro differente
Leve pois a fortuna os seus favores;
Eu os desprezo j á ; porque é loucura
Comprar a tanto preço as minhas dores:
Se quer, que me não queixe, a sorte escura,
Ou saiba ser mais firme nos rigores,
Ou saiba ser constante na brandura.
OBRAS POÉTICAS 119

XXXIII
Aqui sobre esta pedra, áspera, e dura,
Teu nbme heide estampar, ó Franceliza,
A vèr, se o bruto mármore eterniza
A tua, mais que ingrata, formozura.
Já scintillão teus olhos : a figura
Avultando já vai; quanto indeciza
Pasmou na effigie a idéa, se diviza
No engraçado relevo da escultura.
Teu rosto aqui se mostra; eu não duvido
Accuzes meu delírio, quando trato
De deixar nesta pedra o vulto erguido;
E' losca a prata, o ouro é menos grato;
Contemplo o teu rigor: oh que advertido l
Só me dá esta penha o teu retrato !

XXXIV
Que feliz fora o mundo, se perdida
A lembrança de Amor, de Amor a gloria,
Igualmente dos gostos a memória
Ficasse para sempre consumida!
Mas a pena mais triste, e mais crescida
He vêr, que em nenhum tempo é transitória
Esta de Amor fantástica victoria,
Que sempre na lembrança é repetida.
Amantes, os que ardeis nesse cuidado,
Fugi de Amor ao venenozo intento,
Que lá para o depois vos tem guardado.
Não vos engane o infiel contentamento ;
Que esse presente bem, quando passado,
Sobrará para idéa do tormento.
120 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

XXXV
Aquelle, que enfermou de desgraçado,
Não espere encontrar ventura alguma:
Que o Ceo ninguém consente, que presuma,
Que possa dominar seu duro fado.
Por mais, que gire o espirito cançado
A traz de algum prazer, por mais em Su.-nma
Que porfie, trabalhe, e se consuma,
Mudança não verá do triste estado.
Não basta algum valor, arte, ou engenho
A suspender o ardor, com que se move
A infausta roda do fatal despenho :
E bem que o peito humano as forças prove,
Que hade fazer o temerário empenho,
Onde o raio é do Ceo, a mão de Jove.

XXXVI
Estes braços, Amor, com quanta gloria
Forão throno feliz da formozura !
Mas este coração com que ternura
Hoje chora infeliz esta memória !
Quanto vês, é trofeo de uma victoria,
Que o destino em seu templo dependura:
De uma dor esta estampa é só figura,
Na fé occulta, no pezar notória.
Saiba o mundo de teu funesto enredo;
Porque desde hoje um coração amante
De adorar teus altares tenha medo :
Mas que emprendo, se ao passo, que constante
Vou a romper a fé do meu segredo,
Não há, quem acredite um delirante !
OBRAS POÉTICAS 121

XXXVII
Continuamente estou imaginando,
Se esta vida, que logro, tão pezada
Hade ser sempre afflicta, e magoada,
Se com o tempo em fim se hade ir mudando
Em golfos de esperança fluctuando
Mil vezes busco a praia desejada;
E a tormenta outra vez não esperada
Aopelago infeliz me vai levando.
Tenho já o meu mal tão descuberto,
Que eu mesmo busco a minha desventura;
Pois não pôde ser mais seu desconcerto.
Que me pôde fazer a sorte dura,
Se para não sentir seu golpe incerto,
Tudo o que foi paixão, é já loucura!

XXXVIII
Quando, formoza Nize, dividido
De teus olhos estou nesta distancia,
Pinta a saudade, á força de minha anciã.
Toda a memória do prazer perdido.
Lamenta o pensamento amortecido
A tua ingrata, pérfida inconstância;
E quanto observa, é só a vil jactancia
Do fado, que os troféos tem conseguido.
Aonde a dita está ? aonde o gosto ?
Onde o contentamento ? onde a alegria,
Que fecundava esse teu lindo rosto ?
Tudo deixei, ó Nize, aquelle dia,
Em que deixando tudo, o meu desgosto
Somente me seguio por companhia.
122 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

XXXIX
Breves horas, Amor, há, que eu gozava
A gloria, que minha alma appetecia;
E sem desconfiar da aleivozia,
Teu lizonjeiro obzequio acreditava.
Eu só á minha dita me igualava;
Pois assim avultava, assim crescia,
Que nas scenas, que então me offerecia,
0 maior gosto, o maior bem lograva;
Fugio, faltou-me o bem : já descomposta
Da vaidade a brilhante arquitectura,
Vê-se a ruina ao desengano exposta:
Que ligeira acabou, que mal segura!
Mas que venho a estranhar, se estava posta
Minha esperança em mãos da formozura!

XL
Quem chora auzente aquella formozura,
Em que seu maior gosto depozita,
Que bem pôde gozar, que sorte, ou dita,
Que não seja funesta, triste, e escura !
A apagar os incêndios da loucura
Nos braços da esperança Amor me incita :
Mas se era a que perdi, gloria infinita,
Outra igual que esperança me assegra !
Já de tanto delírio me despeço;
Porque o meu precipício encaminhado
Pela mão deste engano reconheço.
Triste 1 A quanto chegou meu duro fado !
Se de um fingido bem não faço apreço,
Que allivio posso dar a meu cuidado!
OBRAS POÉTICAS 123

XLI
Injusto Amor, se de teu jugo izento
Eu vira respirar a liberdade,
Se eu pudesse da tua Divindade
Cantar um dia alegre o vencimento;
Não lográras, Amor, que o meu tormento,
Victima ardesse a tanta crueldade ;
Nem se cobrira o campo da vaidade
Desses troféos, que paga o rendimento :
Mas se fugir não pude ao golpe activo,
Buscando por meu gosto tanto estrago,
Porque te encontro, Amor, tão vingativo ?
Se um tal despojo ateus altares trago,
Siga a quem te despreza, o rayo esquivo;
Alente a quem te busca, o doce affago.

XLII
Morfeo doces cadèas estendia,
Com que os cançados membros me enlaçava ;
E quanto mal o coração passava,
Em sonhos me debuxa a fantazia.
Lize prezente vi, Lize, que um dia
Todo o meu pensamento arrebatava,
Lize, que na minha alma impressa estava,
Bem a pezar da sua tirannia.
Corro a prendêl-a em amorozos laços
Buscando a sombra, que apertar intento ;
Nada vejo (ai de mim!) perco os meus passos.
Então mais acredito o fingimento :
Que ao vêr, que Lize foge de meus braços,
A crê pelo costume o pensamento.
124 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

XL1II
Quem es tu? (ai de mim!) eu reclinado
No seio de uma vibora! Ah tiranna!
Como entre as garras de uma tigre hircana
Me encontro de repente suffocado!
Não era essa, que eu tinha posto ao lado,
Da minha Nize a imagem soberana?
Não era... ? mas que digo 1 ella me engana :
Sim, que eu a vejo inda no mesmo estado ;
Pois como no letargo a fantazia
Tão cruel ma pintou, tão inconstante,
Que a vi... ? mas nada vi; que eu nada cria.
Foi sonho ; foi quimera; a um peito amante
Amor não deo favores um só dia,
Que a sombra de um tormento os não quebrante.

XLIV
Há quem confie, Amor, na segurança
De um falsissimo bem, com que dourando
0 veneno mortal, vais enganando
Os tristes corações n'uma esperança !
Há quem ponha inda cego a confiança
Em teu fingido obzequio, que tomando
Lições do desengano, não vá dando
Pelo mundo certeza da mudança!
Há quem crêa, que pôde haver firmeza
Em peito feminil, quem advertido
Os cultos não profane da belleza !
Há inda, e hade haver, eu não duvido,
Em quanto não mudar a Natureza
Em Nize a formozura, o amor em Fido.
CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

II

Cláudio Manoel da Costa nasceu nas cercanias da


villa do Ribeirão do Carmo, hoje e desde 1745 cidade
episcopal de Mariana.
Nasceu em 1729 como o provam as suas próprias
palavras sessenta anndS"4epois no Auto de perguntas
que lhe foram feitas no processo da conspiração e
prova-o de qualquer modo o registro de baptismos
do lugar pois foi ao certo baptizado no dia de são
Pedro 29 de junho d'aquelle anno.
O seu dia natalicio, porem, não é estremada-
mente sabido. É verdade que seus biographos,
n'este ponto todos ajustam em dar o dia 6 de
junho como o do nascimento do poeta, movidos uns,
ao que penso, pelo prestigio dos outros ou pela
carência de provas. A certidão de baptismo, que a
possuímos, nada esclarece a respeito e é provável
que aquella data seja de pura fantasia (1).
Não é esta, porem, a única duvida que lhe cerca
o berço. Não se pode com extrema precisão determi-
nar o lugar em que nasceu, dentro de rigorosos
limites ; porque, palavras aqui ou alli apanhadas,
entre os seus versos, parecem indicar lugares con-
tradictorios , mas é tal vez a insuffiencia dos críticos

(1) Em outro lugar in fine com os documentos da biographia do


poeta daremos o texto do registro baptismal. Foi este publicado na
Gazeta de Noticias (abril 1893) pelo dr. Ramiz Galvao, e também
se acha nas Ephemerides Mineiras de J. P. Xavier da Veiga,
Vol. III, pg. 30.
OBRAS POÉTICAS 5

e a irreflexão dos commentadores a causa precipua


d'essas obscuridades e hesitações. Por aquelle
tempo nas terras da mineração não havia propria-
mente cidades (1) eram sítios, acampamentos ou
arraiaes como então e ainda hoje se dizem, e o
Ribeirão do Carmo, terra de mineração, compunha-
se de vários núcleos semelhantes. N'um d'esses
sítios a Vargea de Itacolomi, não longe do arraial
que havia de senhorear os outros, nasceu o poeta;
mas a freguezia era a mesma e devia ser a de
N. S. do Carmo « por ser a mais capaz » diz um
documento do tempo quando se tratou de escolher o
local da villa (2).
Agora examinemos os germens de vacillação dos
críticos.
O próprio poeta diz-nos nos últimos versos do
seu poema de Villa Rica:
Em fim serás cantada, Villa Rica,
Teu nome impresso nas memórias fica,
Terás a gloria de ter dado o berço
A quem te faz girar pelo Universo.
Na verdade, este passo nada tem de obscuro; mas
não se ha de deferil-o como decisorio. Podia o poeta
querer significar que foi o sentimento de amor da

(1) A primeira e única cidade data de 1745 e é a mesma de Ma-


riana (Ribeirão do Carmo) e é cidade simplesmente por uma distinc-
çâo imprescindível por ser, e desde que é, a sede episcopal. A pró-
pria capital da capitania, Villa Rica, nunca foi elevada a cidade no
período colonial. É D. Pedro 1 que vae fazel-a « cidade imperial de
Ouro Preto » em 1823.
(2) O termo de uma junta que erigiu o arraial em villa (8 de
abril de 1711) e está no Archivo publico mineiro.
OBRAS POÉTICAS 125

XLV
A cada instante, Amor, a cada instante
No duvidozo mar de meu cuidado
Sinto de novo um mal, e desmaiado
Entrego aos ventos a esperança errante,
Por entre a sombra fúnebre, e distante
Rompe o vulto do allivio mal formado ;
Ora mais claramente debuxado,
Ora mais frágil, ora mais constante.
Corre o desejo ao vêllo descuberto;
Logo aos olhos mais longe se affigura,
0 que se imaginava muito perto.
Faz-se parcial da dita a desventura ;
Porque nem permanece o damno certo,
Nem a gloria tão pouco está segura.

XLVI
Não vês, Lize, brincar esse menino
Com aquella avezinha? Estende o braço ;
Deixa a fugir; mas apertando o laço,
A condemna outra vez ao seu destino ?
Nessa mesma figura, eu imagino,
Tens minha liberdade; pois ao passo,
Que cuido, que estou livre do embaraço,
Então me prende mais meu desatino.
Em um continuo giro o pensamento
Tanto a precipitar-me se encaminha,
Que não vejo onde pare o meu tormento.
Mas fora menos mal esta anciã minha,
Se me faltasse a mim o entendimento,
Como falta a razão a esta avezinha.
126 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

XLVII
Que inflexível se mostra, que constante
Se vê este penhasco ! já ferido
Do procellozo vento, e já batido
Do mar, que nelle quebra a cada instante !
Não vi; nem heide vêr mais similhante
Retrato dessa ingrata, a que o gemido
Já mais pôde fazer, que enternecido
Seu peito attenda ás queixas de um amante.
Tal es, ingrata Nize : a rebeldia,
Que vês nesse penhasco, essa dureza
Hade ceder aos golpes algum dia :
Mas que diversa é tua natureza !
Dos contínuos excessos da porfia,
Recobras novo estimulo á fereza.

XLVIII
Traidoras horas do enganozo gosto,
Que nunca imaginei, que o possuía,
Que ligeiras passastes! mal podia
Deixar aquelle bem de ser supposto.
Já de parte o tormento estava posto ;
E meu peito saudozo, que isto via,
As imagens da pena desmentia,
Pintando da ventura alegre o rosto.
Desanda então a fabrica elevada,
Que o plácido Morfêo tinha erigido,
Das espécies do somno fabricada ;
Então é, que desperta o meu sentido,
Para observar na pompa destroçada,
Verdadeira a ruina, o bem fingido.
OBRAS POÉTICAS 127

XLIX
Os olhos tendo posto, e o pensamento
No rumo, que demanda, mais distante ;
As ondas bate o Grego navegante,
Entregue o leme ao mar, a vela ao vento :
Em vão se esforça o harmoniozo accento
Da Serêa, que habita o golfo errante;
Que resistindo o espirito constante
Vence as lizonjas do enganozo intento.
Se pois, Ninfas gentis, rompe a Cupido
0 arco, a flexa. o dardo, a chama acceza
De um peito entre os Heróes esclarecido;
Que vem buscar commigo a néscia empreza,
Se inda mais, do que Ulisses atrevido,
Sei vencer os encantos da belleza!

Memórias do presente, e do passado


Fazem guerra cruel dentro em meu peito ;
E bem que ao sofrimento ando já feito,
Mais que nunca desperta hoje o cuidado.
Que differente, que diverso estado
E' este, em que somente o triste effeito
Da pena, a que meu mal me tem sujeito,
Me acompanha entre afflicto, e magoado !
Tristes lembranças I e que em vão componho
A memória da vossa sombra escura!
Que néscio em vós a ponderar me ponho !
Ide-vos; que em tão misera loucura
Todo o passado bem tenho por sonho;
Só é certa a presente desventura.
128 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

LI
Adeos, ídolo bello, adeos, querido,
Ingrato bem ; adeos : em paz te fica ;
E essa victoria misera publica,
Que tens barbaramente conseguido.
Eu parto, eu sigo o norte aborrecido
De meu fado infeliz: agora rica
De despojos, a teu desdém applica
0 rouco accento de um mortal gemido.
E se acazo alguma hora menos dura
Lembrando-te de um triste, consultares
A serie vil da sua desventura;
Na immensa confuzão de seus pezares
Acharâs, que ardeu simpleu, ardeu pura
A victima de uma alma em teus altares.

LU
Que molesta lembrança, que cançada
Fadigaé esta! vejo-me opprimido,
Medindo pela magoa do perdido
A grandeza da gloria já passada.
Foi grande a dita, sim; porém lembrada,
Inda a pena é maior de a haver perdido ;
Quem não fora feliz, se o haver sido
Faz, que seja a paixão mais avultada !
Propicio imaginei (é bem verdade)
O malévolo fado : oh quem pudera
Conhecer logo a hypocrita piedade !
Mas que em vão esta dòr me desespera,
Se já entorpecida a enfermidade,
Inda agora o remédio se pondera !
OBRAS POÉTICAS 129

LIII
Ou já sobre o cajado te reclines,
Venturozo Pastor, ou já tomando
Para a serra, onde as cabras vais chamando,
A fugir os meus ais te determines.
Lá te quero seguir, onde examines
Mais vivamente um coração tão brando;
Que gosta só de ouvir-te, ainda quando
Mais sem razão me accuzes, mais crimines.
Que te fiz eu, Pastor? em que condemnas
Minha sincera fé, meu amor puro ?
As provas, que te dei, serão pequenas ?
Queres vêr, que esse monte áspero, e duro
Sabe, que és cauza tu das minhas penas ?
Pergunta-lhe; ouvirás, o que te juro.

LIV
Ninfas gentis, eu sou, o que abrazado
Nos incêndios de Amor, pude alguma hora,
Ao som da minha cithara sonora,
Deixar o vosso império acreditado.
Se vós, glorias de Amor, de Amor cuidado,
Ninfas gentis, a quem o mundo adora,
Não ouvis os suspiros, de quem chora,
Ficai-vos; eu me vou; sigo o meu fado.
Ficai-vos; e sabei, que o pensamento
Vai tão livre de vós, que da saudade
Não recêa abrazar-se no tormento.
Sim; que solta dos laços a vontade,
Pelo rio heide ter do esquecimento
Este, aonde já mais achei piedade.
130 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

LV
Em profundo silencio já descança
Todo o mortal; e a minha triste idéa
Se estende, se dilata, se recrèa
Pelo espaçozo campo da lembrança.
Fatiga-se, prosegue, em vão se cança;
E neste vario giro, em que se enlêa,
Ao duvidozo passo já recèa,
Que lhe possa faltar a segurança.
Que differente tudo está notando !
Que perplexo as imagens do perdido
N'um, e n'outro despojo vem achando !
Este não é o templo (eu o duvido)
Assim o affirma, assim o está mostrando:
Ou morreo Nize, ou este não é Fido.

LVI
Tu, Ninfa, quando eu menos penetrado
Das violências de Amor vivia izento,
Propondo-te então bella a meu tormento,
Foste doce occazião de meu cuidado.
Roubaste o meu focêgo, um doce agrado,
Um gesto lindo, um brando acolhimento
Forão somente o único instrumento,
Com que deixaste o triunfo assegurado.
Já não espero ter felicidade,
Salvo se for aquella, que confio,
Por amar-te, a pezar dessa impiedade.
Em prêmio dos suspiros, que te envio,
Ou modera o rigor da crueldade,
Ou torna-me outra vez meu aivedrio.
OBRAS POÉTICAS 131

LV1I
Bella imagem, emprego idolatrado,
Que sempre na memória repetido,
Estás, doce occazião de meu gemido.
Assegurando a fé de meu cuidado.
Tem-te a minha saudade retratado;
Não para dar allivio a meu sentido ;
Antes cuido ; que a magoa do perdido
Quer augmentar co' a pena de lembrado.
Não julgues, que me alento com trazer-te
Sempre viva na idéa ; que a vingança
De minha sorte todo o bem perverte.
Que allivio em te lembrar minha alma alcança;
Se do mesmo tormento de não vêr-te,
Se fôrma o desafogo da lembrança ?

LVIII
Altas serras, que ao Ceo estais servindo
De muralhas, que o tempo não profana,
Se Gigantes não sois, que a fôrma humana
Em duras penhas forão confundindo ;
Já sobre o vosso cume se está rindo
O Monarca da luz, que esta alma engana .
Pois na face, que ostenta, soberana,
0 rosto de meu bem me vai fingindo.
Que alegre, que mimozo, que brilhante
Elle se me affigura 1 Ah qual affeito
Em minha alma se sente neste instante !
Mas ai! a que delírios me sujeito !
Se quando no Sol vejo o seu semblante,
Em vós descubro ó penhas o seu peito ?
132 CÍ.AU:>IO MANOEL DA COSTA

LIX
Lembrado estou, ó penhas, que algum dia,
Na muda solidão deste arvoredo,
Communiquei com vosco o meu segredo,
E apenas brando o Zefiro me ouvia.
Com lagrimas meu peito enternecia
A dureza fatal deste rochedo,
E sobre elle uma tarde triste, e quedo
A cauza de meu mal eu escrevia.
Agora torno a vèr, se a pedra dura
Conserva ainda intacta essa memória,
Que debuxou então minha escultura.
Que vejo ! esta é a cifra: triste gloria
Para ser mais cruel a desventura,
Se fará immortal a minha historia.

LX
Valha-te Deos, cançada fantazia !
Que mais queres de mim? que mais pertendes?
Se quando na esperança mais te accendes,
Se desengana mais tua porfia !
Vagando regiões de dia em dia,
Novas conquistas, e troféos emprendes :
Ah que conheces mal, que mal entendes,
Onde chega do fado a tirannia !
Trata de accomodar-te ao movimento
Dessa roda volúvel, e descança
Sobre tão fatigado pensamento.
E se inda crês no rosto da esperança,
Examina por dentro o fingimento ;
E verás tempestade o que é bonança.
OBRAS POÉTICAS 133

LXI
Deixemos-nos, Algano, de porfia;
Que eu sei o que tu es, contra a verdade
Sempre hasde sustentar, que a Divindade
Destes campos é Brites, não Maria :
Ora eu te mostrarei inda algum dia,
Em que está teu engano : a novidade,
Que agora te direi, é, que a Cidade
Por melhor, do que todas a avalia.
Há pouco, que encontrei lá junto ao monte
Dous Pastores, que estavão conversando,
Quando paffárão ambas para a fonte ;
Nem falarão em Brites : mas tomando
Para um cedro, que fica bem defronte,
0 nome de Maria vão gravando.

LXII
Torno a ver-vos, ó montes ; o destino
Aqui me torna a por nestes oiteiros ;
Onde um tempo os gabões deixei grosseiros
Pelo trage da Corte rico. e fino.
Aqui estou entre Almendro, entre Corino,
Os meus fieis, meus doces companheiros,
Vendo correr os míseros vaqueiros
Atraz de seu cançado desatino.
Se o bem desta choupana pôde tanto,
Que chega a ter mais preço, e mais valia,
Que da cidade o lisongeiro encanto ;
Aqui descance a louca fantazia ;
E o que té agora se tornava em pranto,
Se converta em affectos de alegria,
i.
]34 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

LX1II
Já me enfado de ouvir este alarido,
Com que se engana o mundo em seu cuidado ;
Quero vêr entre as pelles, e o cajado,
Se melhora a fortuna de partido.
Cance embora a lisonja ao que ferido
Da enganoza esperança anda magoado ;
Que eu tenho de acolher-me sempre ao lado
Do velho desengano apercebido.
Aquelle adore as roupas de alto preço,
Um siga a ostentação, outro a vaidade;
Todos se enganão com igual excesso.
Não chamo a isto já felicidade :
Ao campo me recolho, e reconheço,
Que não há maior bem, que a soledade.

LXIV
Que tarde nasce o Sol, que vagarozo I
Parece, que se cança, de que a um triste
Haja de apparecer : quanto resiste
A seu rayo este sitio tenebrozo!
Não pôde ser, que o giro luminozo
Tanto tempo detenha : se persiste
Acazo o meu delírio I se me assiste
Ainda aquelle humor tão venenozo !
Aquella porta alli se está cerrando ;
Delia sahe um Pastor : outro assobia,
E o gado para o monte vai chamando.
Ora não ha mais louca fantazia I
Mas quem anda, como eu, assim penando,
Não sabe quando é noite, ou quando é dia.
OBRAS POÉTICAS 135

LVX
Ingrata foste, Eliza ; eu te condemno
A injusta semrazão ; foste tyranna,
Em renderes, bellissima Serrana,
Atua liberdade ao néscio Almeno.
Que achaste no seu rosto de sereno,
De bello, ou de gentil, para inhumana
Trocares pela delle esta choupana,
Em que tinhas o abrigo mais ameno ?
Que canto em teu louvor entoaria ?
Que te podia dar o Pastor pobre ?
Que extremos, mais do que eu, por ti faria ?
0 meu rebanho estas montanhas cobre :
Eu os excedo a todos na harmonia ;
Mas ah que elle é feliz! Isto lhe sobre.

LXVI
Não te assuste o prodígio : eu, Caminhante,
Sou uma voz, que nesta selva habito;
Chamei-me o Pastor Fido; de um delicto
Me veio o meu estrago; eu fui amante.
UmaNinfa perjura, uma inconstante
Neste estado me poz : do peito afflicto,
Por eterno castigo, arranco um grito;
Que dezengane o peregrino errante.
Se em ti se dá piedade, ó passageiro,
(Que assim o pede a minha sorte escura)
Altende ao meu avizo derradeiro :
Lagrimas não te peço, nem ternura :
Por voto um desengano, te requeiro,
Que consagres á minha sepultura.
136 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

LXV1I
Não te cazes com Gil, bella Serranna,
Que é um vil, um infame, um desestrado ;
Bem que elle tenha mais devêza, e gado,
A minha condição é mais humana.
Que mais te pôde dar sua cabana,
Que eu aqui te não tenha aparelhado ?
0 leite, a fructa, o queijo, o mel dourado ;
Tudo aqui acharás nesta choupana.
Bem que elle tange o seu rabil grosseiro,
Bem que te louve assim, bem que te adore,
Eu sou mais extremozo, e verdadeiro.
Eu tenho mais razão, que te enamore :
E se não, diga o mesmo Gil vaqueiro :
Se é mais, que elle te cante, ou que eu te chore.

LXVIII
Apenas rebentava no Oriente
A clara luz da Aurora, quando Fido,
0 repouzo deixando aborrecido,
Se punha a contemplar no mal, que sente.
Vê a nuvem, que foge ao transparente
Annuncio do crepúsculo luzido ;
E vê de todo em rizo convertido
O horror, que dissipara o raio ardente.
Porque (diz) esta sorte, que se alcança
Entre a sombra, e a luz, não sinto agora
No mal, que me atormenta, e que me cança t
Aqui toda a tristeza se melhora :
Mas eu sem o prazer de uma esperança
Passo o anno, e o mez, o dia, a hora.
OBRAS POÉTICAS 137

LXIX
Se á memória trouxeres algum dia,
Bellissima tiranna, Ídolo amado,
Os ternos ais, o pranto magoado,
Com que por ti de amor Alfêo gemia,
Confunda-te a soberba tirannia,
0 ódio injusto, o violento desagrado,
Com que atraz de teus olhos arrastado
Teu ingrato rigor o conduzia.
E já que em fim tão misero o fizeste,
Vêl-o-has, cruel, em prêmio de adorar-te,
Vêl-o-has, cruel, morrer; que assim quizeste.
Dirás, lizongeando a dôr em parte :
Fui-teingrata, Pastor; por mim morreste ;
Triste remédio a quem não pôde amar-te !

LXX
Breves horas, que em rápida porfia
Ides seguindo o infausto movimento,
Oh como o vosso curso foi violento,
Quando soubestes, que eu vos possuía !
Já credito vos dava; porque via
Avultar meu feliz contentamento :
Que é mui fácil n'um triste estar attento
Aos enganos, que pinta a fantazia.
Logrou-se o vosso fim; que foi levar-me
Da falsa gloria, do fingido gosto
Ao cume, donde venho a despenhar-me :
Assim a lei do fado tem disposto,
Que haja o instantâneo bem de lizongear-me;
Porque o estrago, me diga, que é supposto.
8
138 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

LXXI
Eu cantei, não o nego, eu algumdia
Cantei do injusto Amor o vencimento ;
Sem saber, que o veneno mais violento-
Nas doces expressões falso encobria.
Que Amor era benigno, eu persuadia
A qualquer coração de Amor izento ;
Inda agora de Amor cantara attento,
Se lhe não conhecera a aleivozia.
Ninguém de Amor se fie : agora canto
Somente os seus enganos ; porque sinto,
Que me tem destinado estrago tanto.
De seu favor hoje as quimeras pinto :
Amor de uma alma é pezarozo encanto ;
Amor de um coração é labirinto.

LXXII
Já rompe, Nize, a matutina Aurora
0 negro manto, com que a noite escura,
Suffocando do Sol a face pura,
Tinha escondido a chama brilhadora.
Que alegre, que suave, que sonora,
Aquella fontezinha aqui murmura !
E nestes campos cheios de verdura
Que avultado o prazer tanto melhora f
Só minha alma em fatal melancolia,
Por te não poder vêr, Nize adorada,
Não sabe inda, que coiza é alegria ;
E a suavidade do prazer trocada,
Tanto mais aborrece a luz do dia,
Quanto a sombra da noite mais lhe agrada.
OBRAS POÉTICAS 139

LXXIII
Quem se fia de Amor, quem se assegura
Na fantástica fé de uma belleza,
Mostra bem, que não sabe, o que é firmeza,
Que protesta de amante a formozura.
Anexa a qualidade de perjura
Ao brilhante explendor da gentileza,
Mudavel é por lei da natureza,
A que por lei de Amor é menos dura.
Deste, ó Fábio, que vês, desordenado,
Ingrato proceder se é que examinas
A razão, eu a tenho decifrado :
São as settas de Amor tão peregrinas,
Que esconde no gentil o golpe irado ;
Para lograr pacifico as ruinas.

LXX1V
Sombrio bosque, sitio destinado
A' habitação de um infeliz amante,
Onde chorando a magoa penetrante
Possa desafogar o seu cuidado ;
Tudo quieto está, tudo calado ;
Não ha fera, que grite, ave, que cante ;
Se acazo saberás, que tens diante
Fido, aquelle Pastor dezesperado !
Escuta o cazo seu : mas não se atreve
A erguer a voz ; aqui te deixa escrito
No tronco desta faia em cifra breve :
Mudou-se aquelle bem : hoje é delito
Lembrar-me de Masirza: era mui leve :
Não ha mais, que attender; tudo está dito.
140 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

LXXV
Clara fonte, teu passo lisongeiro
Pára, e ouve-me agora um breve instante ;
Que em paga de piedade o peito amante
Te será no teu curso companheiro.
Eu o primeiro fui, fui o primeiro,
Que nos braços da Ninfa mais constante
Pude vèr da fortuna a face errante
Jazer por gloria de um triunfo inteiro.
Dura mão, inflexível crueldade
Divide o laço, com que a gloria, a dita
Atara o gosto ao carro da vaidade :
E para sempre a dòr ter n'alma escrita,
De um breve bem nasce immortal saudade,
De um caduco prazer magoa infinita.

LXXV1
Em fim te hei-de deixar, doce corrente
Do claro, do suavíssimo Mondego ;
Hei-de deixar-te em fim ; e um novo pego
Formará de meu pranto a copia ardente.
De ti me apartarei; mas bem que auzente,
Desta lira serás eterno emprego ;
E quanto influxo hoje a dever-te chego,
Pagará de meu peito a voz cadente.
Das Ninfas, que na fresca, amena estância
Das tuas margens humidas ouvia,
Eu terei sempre n'alma a consonância ;
Desde o prazo funesto deste dia
Serão fiscais eternos da minha anciã
As memórias da tua companhia.
OBRAS POÉTICAS 141

LXXVII
Não há no mundo fé, não ha lealdade ;
Tudo é, ó Fábio, torpe hypocrizia ;
Fingido trato, infame aleivozia
Rodêão sempre a cândida amizade.
Veste o engano o aspecto da verdade ;
Porque melhor o vicio se avalia :
Porém do tempo a misera porfia,
Duro fiscal, lhe mostra a falsidade.
Se talvez descobrir-se se procura
Esta de Amor fantástica apparencia,
E como á luz do Sol a sombra escura :
Mas que muito, se mostra a experiência,
Que da amizade a torre mais segura
Tem a baze maior na dependência !

LXXVII1
Campos, que ao respirar meu triste peito
Murcha, e sêcca tornais vossa verdura,
Não vos assuste a pallida figura,
Com que o meu rosto vedes tão desfeito.
Vós me vistes um dia o doce effeito
Cantar do Deos de Amor, e da ventura ;
Isso já se acabou; nada já dura;
Que tudo á vil desgraça está sujeito.
Tudo se muda em fim : nada ha, que seja
De tão nobre, tão firme segurança,
Que não encontre o fado, o tempo, a inveja.
Esta ordem natural a tudo alcança ;
E se alguém um prodígio vèr deseja,
Veja meu mal, que só não tem mudança.
142 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

LXXIX
Entre este álamo, ó Lize, e essa corrente,
Que agora estão meus olhos contemplando,
Parece, que hoje o Ceo me vem pintando
A magoa triste, que meu peito sente.
Firmeza a nenhum deli es se consente
Ao doce respirar do vento brando ;
0 tronco a cada instante meneando,
A fonte nunca firme, ou permanente.
Na liquida porção, na vegetante
Copia daquellas ramas se figura
Odiro rosto, outra imagem similhante :
Quem não sabe, que a tua formozura
Sempre immovel está, sempre inconstante,.
Nunca fixa se vio, nunca segura ?

LXXX
Quando cheios de gosto, e de alegria
Estes campos diviso florecentes,
Então me vem as lagrimas ardentes
Com mais anciã, mais dòr, mais agonia.
Aquelle mesmo objecto, que desvia
Do humano peito as magoas inclementes.
Esse mesmo em imagens differentes
Toda a minha tristeza desafia.
Se das flores a bella contextura
Esmalta o campo na melhor fragancia,
Para dar uma idéa da ventura ;
Como, ó Ceos, para os ver terei constância,
Se cada flor me lembra a formozura
Da bella causadora de minha anciã ?
OBRAS POÉTICAS ]43

LXXXI
Junto desta corrente contemplando
Na triste falta estou de um bem, que adoro ;
Aqui entre estas lagrimas, que choro,
Vou a minha saudade alimentando.
Do fundo para ouvir-me vem chegando
Das claras Hamadriades o coro ;
E desta fonte ao murmurar sonoro,
Parece, que o meu mal estão chorando.
Mas que peito hade haver tão desabrido,
Que fuja á minha dôr! que serra, ou monte
Deixará de abalar-se a meu gemido !
Igual cazo não temo que se conte ;
Se até deste penhasco endurecido
O meu pranto brotar fez uma fonte.

LXXXII
Piedozos troncos, que a meu terno pranto
Commovidos estais, uma inimiga
E' quem fere o meu peito, é quem me obriga
A tanto suspirar, a gemer tanto.
Amei a Lize; é Lize o doce encanto,
A bella occazião desta fadiga;
Deixou-me; que quereis, troncos, que eu diga
Em um tormento, em um fatal quebranto ?
Deixou-me a ingrata Lize : se alguma hora
Vós a vedes talvez, dizei, que eu cego
Vos contei... mas calai, calai embora.
Se tanto a minha dôr a elevar chego,
Em fé de um peito, que tão fino adora,
Ao meu silencio o meu martírio entrego.
144 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

LXXXIll
Polir na guerra o bárbaro Gentio,
Que as leis quazi ignorou da natureza,
Romper de altos penhascos a rudeza,
Desentranhar o monte, abrir o rio ;
Esta a virtude, a gloria, o esforço, o brio
Do russiano Heróe, esta a grandeza,
Que igualou de Alexandre a fortaleza,
Que venceo as desgraças de Dario :
Mas se a lei do heroismo se procura,
Se da virtude o espirito se altende,
Outra idéa, outra máxima o segura :
Lá vive, onde no ferro não se accende ;
Vive na paz dos povos, na brandura :
Vós a ensinais, ó Rei; em vós se aprende.

LXXXIV
Apre Giano il gran Tempio; orrido, e nero,
-Tutto scomposto '1 crin, Marte s' adira;
Ecco F armi, 1' infegne; ecco s' aggira
Con torbidi rugitti '1 Leon Ibero:
Lasciai freddi Trioni '1 Duce altero ;
Viene sopra di noi Ia strage, e V ira ;
Altro, fuor che vendetta, non respira
1 Ebro audace, il Rhodano guerriero :
Par, che giá d'Acheronte in sulla spuma,
Del Dio feroce lampeggiando il volto,
Vaghe schiere d' Eroi varcano il fiume ;
Oh Dei! tutto é in terrore il mondo accolto :
Ma che auspizio é mai questo ! contro il Nume,
D' Andrada sol, d'Andrada il nome ascolto.
OBRAS POÉTICAS 145

LXXXV
Sposi felici, per Ia vostra face
Splenda di Portugal provido il Nume.
Portando a noi Ia sospirata pace,
Delia Madre d' Amor fra 1' auree piume.
Fatte, che a pró di noi Ia Diva audace
L' empia ruota suspenda : entro il suo fiume
Spirar non vegga il vostro amor verace
II Domator delle Tartaree spume.
Vivete in dolce nodo : altre faville
II ciei non fecondó cosi giocondo ;
Amor, che 1' inspiro, Amor nutrille.
Sorger vegg' io dal thalamo fecondo
Fra mille gioje, fra trionfi mille
E gloria a Portugal, e gloria ai mondo.

LXXXVI
De cosi degno Eróe ia Regia fronte
Cinga d'eterno allor, chi virtude ama :
Che il ciei Ia gloria sua per altro chiama :
Sentier, che guida a piú sicuro monte.
Non di Parnaso, non d' audace fonte
Ifiori, ed i cristalli alia sua fama
Omaggio esser potran ; ciascun, che brama
I suoimerti Iodar, lodi à piú pronte.
Voto faccia di voglia assai sincera,
Dell' anima tributa sia Ia fede ;
Questa victima ei solo ama, ei Ia spera.
Non piú 1' Eróe, mortali, da voi chiede ;
II non sprezar Ia vostra fé si vera,
E' de tributi vostri ampia mercedc.
i.
146 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

LXXXVII
Sorprezo de cosi sonori accenti,
Non ho ragion, che basti, ó Vate degno,
A consecrare ai tuo discreto ingegno
Questi voti, non só, se assai cadenti.
Udir credei aintempestivi eventi
Tutto il Pindo sonar, si che á tal segno
Forse non dubitai dei crudo regno
Frenasse Orpheo gli spiriti inclementi.
Questa dal mondo poi giammaí probata
Beltá da labri tuoi abbia 1' ardore
D' en si rozzo paese essere amata.
Ed io pur non avró culto maggiore,
Che render vada a Ia tua Musa grata,
Fuor di quel dei silenzio fido onore.

LXXXVII1
Non ho valor, che basti; io corro in vano
A ricoprirmi dei pesante scudo ;
Senza armi'l sen, senza armi'l cor ignudo
S'abbandona ai tuo strale, Amor insano.
L'idolo mio, che m'offre in volto umano
Bellâ quasi divina, ai petto rudo
Si suave gli porge il velen crudo,
Che orror non ho nel venerar Ia mano.
Reggi'l colpo ; Ia strage io non pavento ;
Ti daranno, crudel, poça victoria
La mia ruína, il mio duol, il mio tormento.
Saremmo entrambi esempi a grata istoria,
Tu mostrando il tuo tardo pentimento,
ljeuo mártir trovando Ia mia gloria.
OBRAS POÉTICAS ]47

LXXXIX
Mísera rimembranza, che mai tenti!
Perché venirmi tormentando ancora I
Non m' accordar, ti chiedo, Ia dolce ora
De' primi miei suavissirai contenti.
Fuorono brevi; e sono cosi lenti
I passi tuoi, che nella grata Aurora
Del mio piacer, io ritrovai tallora,
In sembianza digioja 1 miei tormenti.
Ah non lasciassi mai laspiaggia aprica,
Per girne in grembo ai procelloso flutto,
Allor che si mostro ia sorte amica.
Non sarebbe il mio ben per lei distrutto;
Nè havrei nel alma una crudel fatica,
Che tutto afflige, e che scónsola tutto.

XC
Esci d'ingano, ó Nice ; io non fadoro ;
Chi ti parla cosi, parla sincero;
Mi piace'l volto tuo ; mi piace, é vero;
Ma non mi punse Amor col' strale d'ôro,
Piangon gl' amanti ovunque; i voti loro
Sono tributi d'immortal pensiero :
Or vedi; io son tranquillo, io sono altero,
Io non sento fatica, ed ho ristoro.
O non é amore, o pur, s' amor si chiama,
D' ogni d'amor martiro l'ordin.muta,
Ch' in tanti euori '1 suo trionfo acclama ;
Ma che mai vanta 1' alma d' assoluta 1
Rícanteró : Questa alma altro non brama,
Che nel incêndio tuo restar perduta.
148 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

XCI
Non parlarmi d' amor, ingrata Nice ;
- Ch'io non ho giá per te questi pensieri :
Crédulo a tanti affetti lusinghieri
T'adorai, non te T nego ; era infelice :
II vechio disinganno or odo; ei dice :
Folie che sei! come adorar gl'alteri
Transporti puoi d'affanni cosi fieri ?
Ei parla; ed i suoi detti ascoltar lice.
Saggio dunque '1 rimprovero dei cuore
Nel piú vivo Io stampo, ed il coneiglio
Per seguitar, ó Nice, ho gran valore :
Augel saro, che fuor dei cauto artiglio
Per fuggire a tuoi lacei andró, Amore,
Portando in fronte il volto dei periglio.

XC1I
Dolci compagni miei, dolce mia cura,
Consolate '1 mio duol ; se pur vi piace
Rendermi quella sospirata pace,
Che mi tõglie crudel Ia mia sventura.
Senza Ia vostra compagnia oscura
Parmi dei Sol Ia scintillante face ;
Sul' orme vostre'l mio pensier seguace
Tutto ció, ch'e diletto, odia, e scongiura.
Altro ciei, altre genti astri infelici
Mi sforzano á veder : mi fu ribelle
La mia sorte ; e son tutti miei nemici.
Ma se vedervi piú negan Ie stelle,
Vi priego almen pe' suoi bei lumi, Amici,
Curate Ia mia Nice, e le sue agnelle.
OBRAS POÉTICAS 149

XCIII
Dolci parole, or piú non siete quelle :
Nice, a cui piacqui un giorno, or me deride ;
E le pupille sue, un tempo fide,
OF sono a danni miei barbare stelle.
Piú costante, che incontro alie procelle
Scoglio, che ürtano i venti, e le onde infide,
Quanto piú col rigor crudel m' uccide,
Tanto ardo piú per le sue luci belle.
Quell' ira sua, cred' io, dei amor mio
Alimento é tal volta, e deli' imparo,
Per strugermi a suoi rai, nov' arti anch' io.
Pur non veggo '1 Destin, con mé si avaro,
Se dei suo sdegno a stimol cosi rio
Sento 1' incêndio, Amor, esser piú chiaro.

XC1V
Non lasciarmi, crudel; quella, ch< io rendo,
Victima voluntária dal mio cuore
E ben degna di te, se pur 1' amore,
Se pur il prêmio tuo non ti contendo.
Io senza speme a Ia tua luce attendo,
Come Clicie tallor : se dei maggiore
Pianeta ogn' un' adora lo splendore,
Senza ch' il raggio I' urte, '1 va sieguendo.
Ma tu fuggi, crudel! Ah ! non son io
Inteso a divorarti, ó mostro, ó fiera;
Placarti voglio con il pianto mio.
Se pur muoverti ancor 1' alma non spera,
Questo, barbara, (oime !) questo desio
Pera, ma innanzi a tuoi bell' ochi pera.
150 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

XCV
Del tuo Fileno alia incerata avena
Ferma, Nice crudel, ferma le piante ;
Mentre in tua Iode '1 Pastorello amante
Dolce fa risona Ia selva amena.
Vedi, come di gioja in questa arena
Tutto par ch' innamore '1 tuo sembiante,
11 feroce Leon, Ia Tigre errante,
11 mar, che freme, il ciei, che ne balena.
Di sopra questo sasso ah ben vegg' io
Giungersi intorno a me dei tuo bel nome
Al ecco amato di Protheo Ia gregge :
Tutto vien' ad udirmi ; é pieno il rio
De gl' umidi abitanti; e (non so come)
Altra legge non han, che Ia tua legge.

XCVI
Erra d' intorno a me 1' ombra onorata
Di quella dolce, incantatrice Donna,
Che cinta or de piú lúcida corona
Splende fra gl' Astri alia mia fede ingrata.
Io Ia riveggo in torvo aspetto irata;
Or m' accusa, or mi siegue, or mi abbandona;
L'orribil você mi spaventa, e sona,
Comme fiamma di Giove in ciei vibrata.
Qual misero destin (oh Dei! qual forte
Amor mi dié 1 veggo Ia face mia,
Fuggo, tremo, m' aghiaccío, e non son forte :
M' accordo allor, che ai flanco in ogni via
La seguitai: oh quanto, Amor, Ia morte
Quanto fá, quanto mutta, quanto oblia !
OBRAS POÉTICAS 151

XCV1I
Questo, che Ia mia Musa oggi a te rende,
Indegno omaggio di beltà si rara,
Non Io sdegnar, ti chiedo, ó Nice cara,
Nice, di ch' il bel volto il cor m' accende.
Di merti tuoi quel, ch' il mio canto prende,
Onorato argumento (ó legge amara !)
D' umili voei alia cadenza avara
Non si concede, fugge, e se difende :
Desti nel alme poi Ia meraviglia
Del nome tuo quel dissonante accento,
Che preziasi i mei voti mi consiglia :
A cosi dolce indulto andró contento,
Se tu di Citheréa, di Giove figlia,
Non disapprovi, ó Nice, '1 mio concento.

XCVIII
Destes penhascos fez a natureza
0 berço, em que nasci : oh quem cuidara,
Que entre penhas tão duras se creara
Uma alma terna, um peito sem dureza !
Amor, que vence os Tigres, por empr za
Tomou logo render-me; elle declara
Contra o meu coração guerra tão rara,
Que não me foi bastante a fortaleza.
Por mais que eu mesmo conhecesse o damno,
A que dava occazião minha brandura,
Nunca pude fugir ao cego engaao:
Vós, que ostentais a condição m a s durr>,
Temei, penhas, temei; que Amor franno,
Onde há mais rezistencia, mais se apura.
152 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

XCIX
Parece, ou eu me engano, que esta fonte
De repente o licor deixou turvado ;
O Ceo, que estava limpo, e azulado,
Se vai escurecendo no Orizonte :
Porque não haja horror, que não aponte
O agouro funestissimo, e pezado,
Até de susto já não pasta o gado ;
Nem uma voz se escuta em todo o monte.
Um raio de improvizo na celeste
Região rebentou : um branco lirio
Da còr das violetas se reveste;
Será delírio ! não, não é delírio.
Que é isto, Pastor meu? que anuncio é este ?
Morreo Nize (ai de mim !) tudo he martírio.

Musas, canoras Musas, este canto


Vós me inspirastes, vós meu tenro alento
Erguestes brandamente aquelle assento,
Que tanto, ó Musas, prezo, adoro tanto.
Lagrimas tristes são, magoas, e pranto,
Tudo o que entoa o muzico instrumento ;
Mas se o favor me dais, ao mundo attento
Em assumpto maior farei espanto.
Se em campos não pizados algum dia
Entra a Ninfa, o Pastor, a ovelha, o touro,
Effeitos são da vossa melodia;
Que muito, ó Musas, pois, que em fausto agouro
Cresção do pátrio rio á margem fria
A immarcescivel hera, o verde louro !
OBRAS POÉTICAS 153

EPIGEDIOS
EPICEDIO I

A morte do Illustrissimo, e Excellentissimo Senhor


Gomes Freire de Andrada, Conde da Bobadella,
Governador e Capitão General do
Rio de Janeiro e Minas,
Etc. Etc. Etc.

A ti me chego, ó Mauzoléo sagrado,


De um alto Heróe depozito adorado;
Permitte, que aos impulsos do gemido,
Das lagrimas, dos ais, corra advertido
A venerar as cinzas, que sepultas.
Sei, que ambiciozo uma relíquia occultas
Do mais raro Varão, que aponta a historia
Nos eternos volumes da memória.
Daquelle, que proposto, como espelho
De huma inteira virtude, no conselho,
Na execução mostrou, que unir sabia
As leis de temperança, e da valia,
Sustentando por modo estranho, e raro
Do Monarca o amor, do povo o amparo.
Sei, que guardas (eu digo) nas entranhas
0 generozo braço, que ás campanhas
Deu assombro, e terror; sei (porque tudo
Explique de uma vez) que no horror mudo
Desse cofre soberbo a estranha dita
De um Andrada immortal se depozita;
Que no busto fatal a estampa grata
Do mais distincto Freire se retrata ;
9
154 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Que se guarda, e se adora a imagaem bella


Desse Conde feliz de Bobadella.
Ao romper o clamor das tristes vozes,
AO soltar estas clauzulas velozes,
Oh qual eeco de dôr, de pena, e pranto
Se vá corresponder a impulso tanto I
Em lagrimas se rompe o peito afílicto :
De sombras veste o Ceo; ao triste grito
Soluça o ar, os elementos gemem;
Todos da terra os fundamentos tremem ;
E parece, que a fúnebre saudade
Não encontra na vasta immensidade
De um mundo, que comprende, aquella esfera,.
Que para o dezafogo achar quizera.
Mas que muito, que ao lugubre gemido
Se altere, e cresça o universal ruido,
Se perde Portugal, se o mundo perde
Aquella sempre firme, sempre verde
Rama da heroicidade Transtagana!
Se em fim de toda a gloria Luzitana
Um só Herôe, que enehera o fasto inteiro,
Hoje vem a jazer por derradeiro
Deste calado horror no ahrigo triste !
Aqui todo o valor de Marte assiste ;
Aqui jaz todo o alento da piedade ;
Aqui o dezempenho da lealdade,
O magnífico, o sábio, o recto, o activo,
O liberal, constante, discursivo,
Prudente, valerozo : ah que a tal brado
Confunde-se a razão, pasma o cuidado t
Amplificar a explendida figura
De seus dotes quizera : abra a escultura
Dos pórticos a Fama : os olhos entrem;
Registem as estampas; reconcentrem
OBRAS POÉTICAS 155

A longa admiração : desde a corrente


Do cristalino Tejo oh que valente
Neste quadro respira ! Aqui tingindo
Do sangue Ibero as preciosas vêas,
Roxas tornando as pallidas arêas,
Une de Portugal ao sceptro egrégio
Tantos novos trofeos; o privilegio
De seu braço immortal quanto se acclama,
Quando em Campo Maior o cinge a rama;
Por triunfar co' as Luzitanas Quinas !
Tu, soberba Castella, entre as ruínas
De teus muros o choras, o teu susto
Lá lhe soube tecer o louro augusto,
Com que apezar de tanto pranto, e magoas
Ennobreceo do Guadiana as agoas.
Esse ferro, que agora dependura
Tinto de sangue a fama, te assegura,
Afílicto Portugal, as leis, e o throno.
Da tua permanência o eterno abono
Deves á aquella espada; ella se ensaia
Nos illustres Avós : qual em Cambaia
0 seu nome deixou ! qual em Quilòa
Debuxa o seu brazão ! lá vive em Gôa
A memória do sangue: honrado emblema
São de tanta virtude em nobre lema,
Entre as chamas dos bellicos alfanges,
As ancias do Indo, as lagrimas do Ganges.
Feliz ó Portugal, feliz mil vezes
Tu, que para esplendor dos Portuguezes
Deste ferro a memória tens guardado !
Se queres ser no mundo respeitado
Pela virtude, outro brazão não tomes,
Que ser Pátria dos Freires, e dos Gomes.
Quem haverá, que a competir se atreva,
156 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Quando (porque immortal ouvir se deva)


Desde o teu berço este pregão respire !
Eu le prometto, que por mais que gire
O Planeta da luz, outro portento,
Outra estirpe maior em todo o alento
Da fama se não logre : aqui se estende,
Aqui se alcança, aqui se comprehende,
Tudo, quanto por gloria, e por vaidade,
Engrandece e esplendor da heroicidade.
Mil séculos, e mil se tem passado,
Desde que o Ceo com provido cuidado
Vem lavrando a feliz genealogia
De Varões tão fieis: a Monarquia
Os honra no solar de Bobadella
Em um Nuno, um Bermudes, um Fruella,
Um Rodrigo, um Forjáz, Peres, Fernandes,
Um Mendes, um Pauzona, e outros Grandes,
Que apontão com espíritos sublimes
A Desiderio, Rei dos LongobarJos.
Estes os immortais progenitores,
Que intimando no exemplo dos suores
A imitação de um Freire, em gloria estranha
Enchem a Portugal, a Itália, e Hespanha,
As Barras inculcando por diviza
No brazão, que o seu nome solemniza.

Mas como em um só quadro me detenho


Admirando o valor ! se o desempenho
De outras tantas virtudes tem chegado
A encher da fama o generozo brado !
Falle a acorde harmonia, com que o vejo
Temperando o governo: Aqui do Tejo
A Nau soberba se desata; aonde
0 valerozo espirito se esconde;
Que ao Antártico clima foi mandado
OBRAS POÉTICAS 157

A governar todo o Paiz dourado.


Este das Minas, este o áureo hemisfério,
Nobre porção do Luzitano Império :
Aqui, ó Rei, ao meu Heróe confias
As rédeas do governo. De teus dias
A dilatar o esplendido progresso
Terias outro abono! Eu não conheço.
Vê, qual desinteresse o acredita
Digno de teu favor : entre a exquizita
Copia de tanto Ofir, a prata, o ouro,
0 topazio, as safiras, o thezouro
Dos diamantes, que a terra desentranha,
Não sabem conceber a empreza estranha
De attrahir-lhe a ambição: ao seu desprezo
Serve apenas de objecto o raio accezo
Do preciozo metal: a alma se cria
Com tão nobre, louvável rebeldia,
Que nada menos a molesta, e cança,
Que sustentar a solida aliança,
Que fez com a justiça: este progresso
Ganha em teu peito o luminozo apreço
De um vassallo fiel, nelle guardando
De três governos repartido o mando.
0 Rio de Janeiro lhe obedece;
De São Paulo o empório reconhece
A alta moderação; e as Minas d'ouro
Se esclarecem, tecendo o fausto agouro.
Mas oh, e com que inteiro movimento
A propagar do sceptro o Regio augmenlo,
Apezar do trabalho, a mão se applica,
Quando o pezo se dobra, ou se triplica !
Como a sagrada lei primeiro objecto
De encher a obrigação do cargo illustre
Quanto na execução lhe esforça o lustre!
158 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

DeNémesis, parece, que a balança


Nunca teve outro ponto; a segurança
Do fiel observou tão finamente,
Que se o digno se alegra, o delinqüente
Não accuza o castigo : a pena, o prêmio,
Achando na justiça igual o grêmio,
Sahião d'entre as mãos também pezados;
Que se virão talvez equivocados
O prazer, e a dôr : louva o afflicto
A justa punição do seu delicto :
E chora o benemérito, no susto
De não ser immortal Heróe tão justo.
Prompta o despacho, a supplica attendida,
Castigada a maldade, agradecida
A rectidâo, a idéa vigilante
Não conhece repouzo um só instante :
Em fim o seu descanço, o seu socego
E só a instância do zelozo emprego.
Oh ! que estranha se inculca a nobre idéa
Deste saudozo Heróe ! Tanto de Astréa
0 espirito igualou, que ao Rei, ao povo
Soube conciliar por modo novo.
0 vasto empório das douradas Minas
Por mim o falará : quando mais finas
Se derramão as lagrimas no imposto
De uma capitação, clama o desgosto
De um Paíz decadente; e ao seu gemido
Se enternece piedozo o esclarecido,
0 generozo Heróe : ao Soberano
Conduz a queixa, reprezenta o damno.
Chega o remédio pela mão piedoza,
Ministra do favor; menos penoza
Já se modera a impoziçâo : contente
Já ri o povo, já se alegra a gente.
OBRAS POÉTICAS 159
Lizongeiro o prazer cada um descobre,
Os pequenos, o grande, o rico, o pobre.
Oh alma grande ! oh alma esclarecida !
Digna de ser guardada, ser nutrida
Na pompa dos Elizios, entre os bellos
Espíritos dos Elios, dos Metellos,
Dos Scipiões, Themistocles, Zopiros,
E outros, que em felicíssimos retiros
Gozando estão as auras lizongeiras,
Em prêmio desse amor, com que as primeiras
Fadigas de um solicito cuidado
Pelo Rei, pela Pátria hão consagrado.
Estes os fructos são dessa doutrina,
Que bebeste na cândida officina
De uma ethica innata : alli se alcança
Aquella inalterável confiança,
Que em ti sabes firmar, mostrando ao mundo,
Com desprezo da inveja, o mais profundo,
Positivo esplendor, que te rezerva,
Superior á emulação proterva.
Que importa, que de estrada dissonante
Seguindo outros talvez o curso errante,
Assegurar pretendão sobre o throno
De um alto valimento o Regio abono ;
Se essa idéa injustíssima, que os guia,
Estragando os designios, algum dia
Fará gemer com lastima importuna
0 mal seguro alento da fortuna!
A idéa mais feliz de ser aceito
A' vontade de um Rei, éter o peito
Sempre animado de um constante impulso
De amar o que for justo : este acredita
Ao servo, que obedece ; felicita
Ao Rei, que manda; este assegura a fama;
160 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Este extingue a calumnia, e apaga a chama,


De um animo perverso, que atropella
0 preciozo ardor de uma alma bella.
Pelos degraos desta feliz escada,
Subiste, ó Freire excelso : ao braço, á espada,
Ou na civil Minerva, ou na Castrense,
Há um Rei, que as fadigas te compense.
Triplica-te o governo; honra-te o cargo :
Teus méritos confessa; um campo largo
Aos prêmios abre ; a General te chama;
Te fia os seus exércitos ; te acclama
Na Regia commissão seu substituto.
De tão alta virtude o egrégio fructo
Respira em fim no esplendido appellido,
Titulo grande sim; mas tão devido,
Que inda, que teus serviços ornar venha,
Cuido, que a Regia mão não desempenha.
Não te faz grande o Rei: a ti te deves
A gloria de ser grande : tu te atreves
Somente a te exceder: outro ao Monarca
Deva o titulo egrégio, que o demarca
Entre os Grandes por Grande ; em ti louvado
Só pôde ser o haver-te declarado.
Mas que muito, que a tanto Heróe assista
Este influxo feliz, se elle conquista
Com seus braços o Ceo ! elle dezata
Com a mão liberal a copia grata
De tantos cabedais : confiado
Menos o soldo, para o nobre estado,
Que para sustentar com Regio empenho
Do coração devoto o desempenho.
A dispendios do ardor, que a alma respira;
Alli aquelle pórtico se admira;
Por onde se abre ao mundo a excelsa entrada
OBRAS POÉTICAS 161

De uma caza, que a Deos é consagrada.


Tem de Thereza as religiozas filhas
Alli um santo abrigo : as maravilhas
De um zelo nunca visto alii se inculclo.
Buscas o Autor da nobre arquitectura !
Queres saber, quem ergue essa estructura,
0 Dorico, o Corinthio frontispicio ?
Esse mármore o diga: mas o indicio
Na pedra se não grava: oh que a piedade
Lhe encortou esse alento na vaidade !
Foi providencia; não foi erro : ignora
Esse mármore egrégio a mão, que o fora
Desentranhando desde a terra dura,
Que o erguera, e polira. O Heróe procura,
Que se esconda o seu nome. Em gloria tanta
0 seu mesmo silencio é quem o canta.
Vê, que o dogma Evangélico encommenda ;
Que a direita co' a esquerda não se entenda:
E esta máxima tanto a Freire agrada,
Que até com Deos a deixa praticada.
Deu a Dees só por Deos: ao padrão sobra
Saber que a Dees é consagrada a obra.
E quem (ó Ceos !) quem há, que não presuma
Educado este espirito na summa,
Penitente fadiga dos dezertos!
Quem há, que estes estímulos despertos
Não julgue ne Thebaida mais austera !
Mas oh quanto a virtude mais se esmera
Lá cultivada desde a tenra idade
Entre a perversa, misera vaidade
Da militar licença; onde se apura
Toda a relaxação, toda á soltura!
Outro talvez de escola, que é tão fera,
Razão de seus escândalos trouxera :
162 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Só acha Gomes da virtude a chama


No Mavorcio exercício : alli se inflamma
Na alta meditação de um pensamento,
Que só em Deos contempla o fundamento
De toda a humana gloria: na vigia,
Nos sitios, nos ataques, na porfia
Dos choques, dos assédios, lá protesta;
Que a mão é só de Deos: nada lhe resta,
Que esperar de si mesmo : neste estudo
Tudo se logra, se prospera tudo.
Não me suspenda deste templo o objecto;
Discorra a admiração : o ardente affecto,
Com que se entrega ao Ceo, que bem se explica
Nessas cazas de Deos! elle se applica
A Protector da caridade sancta.
Com seu fervor congregações levanta;
Onde aos pobres assista. O Pão Sagrado
Se ministra aos enfermos : acha o afflicto
No cárcere o favor; para o delicto
Se deputa Advogado : ao morto açode
Com o supremo officio a mão piedoza.
Tu, Villa Rica, tu, a mais saudoza,
Nessa caza de Deos, que hoje sustentas,
O choras, o suspiras, o lamentas.

Tu o choras, ó mundo : mas que digo !


O Ceo o chora, o Ceo; que o braço amigo
Não fez mais grato o mundo, que fizera '
Agradecido o Ceo : elle quizera
Este Heróe immortal; a lei sagrada
Da Providencia, a lei sempre adorada
E', quem o rouba da ventura nossa,
Quem de nós o separa; sem que possa
Suspender-se a si mesma : é Providencia:
Mas que digo! é decreto; é obediência.
OBRAS POÉTICAS 163
E quem sabe, se lá no eterno seio
Das idades futuras (não o creio)
Quem sabe, se apezar da estranha inveja,
Outra alma tornará, onde se veja,
Para consolação desta anciã aguda,
A virtude exemplar, que aqui se estuda !
Em que tão largos séculos prepara
0 Ceo uma alma grande! o Tejo o diga;
Se de Heróes Luzitanos na fadiga
Deu á Fama, em idade dilatada,
Outro Freire, outro Gomes, outro Andrada.
Consolação pezada eu te proponho,
0' Reino, em tal memória: sei, que choras
Os breves dias, as ligeiras horas,
Que lhe cortou o provido destino.
Ah ! se o viras no susto intercadente
Do mortal desalento ! o pranto infausto
Se convertera em júbilo. O holocausto
De uma alma pura elle feliz votava
Ao Creador eterno; e se abraçava
Com a celeste imagem de Thereza.
Dos amigos, dos servos a tristeza
Em melhor sorte converter queria.
0 alento pouco e pouco se extinguia;
E seguro da empreza... ah que emudeço !
Eu pasmo ; eu tremo ; eu choro; eu desfaleço.
Já roto, já quebrado o nobre escudo,
Guarda o Gênio o Brazão : entre o horror mudo
0 Templo de Thereza já demanda
Conduzido o cadáver; surda, e branda
Se ouve a harmonia do tambor guerreiro :
Arrastâo-se as bandeiras : pregoeiro
E' o rouco metal: o pó sulfureo
Em salvas se dispende : uma anciã interna
164 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

A pompa funeral rege, e governa.


Cingido dos brandões, que a magoa sofre,
Prosegue logo em um dourado cofre
0 illustre coração. Oh quanto é digno
De respirar eterno o ardor benigno,
Que o nutrio, que o gerou ! penhor sagrado,
Do caracter de um Freire fiel traslado.
Deva ao balsamo, deva o beneficio
De triunfar do infausto precipício
Dos annos ; nelle achando a actividade,
Que não pôde encontrar na humanidade.
Não pôde, excelso Heróe, não pôde esta anciã
Permittir mais esforços á constância.
A registar de todo não me atrevo
O Templo, que busquei: a cifra escrevo ;
Porque o mundo já mais de ti se esqueça.
Aqui jaz... mas que digo ! aqui começa
A nascer a virtude : não se apaga
Uma illustre memória: não se estraga
Uma excelsa relíquia; antes mais templos
Se produzem da vida dos exemplos.
Oh! que enganadamente solicito
Achar letra, que explique aquelle invicto
Espirito, que choro: em vão se attenda
O risco, que lavrei. Tudo se emenda,
Tudo já se desfaz. Se o néscio intento
Eternizar procura o monumento,
Seja túmulo o mundo. A cobertura
Seja o Ceo: honre a explendida figura
Das faxas toda a luz, a impulso tanto,
Suspiro o fogo, e Oceano o pranto.
Seu potius
Pro túmulo ponas orbem, pro tegmine ccelum,
Sidera pro facibus, pro lacrimis maria.
OBRAS POÉTICA '•> 165

A* MORTE
DE

SALICIO
EPICEDIO II
Espirito immortal, tu que rasgando
Essa esfera de luzes, vaes pizando
Do fresco Elizio a região bemdita,
Se nesses campos, onde a gloria habita,
Centro do gosto, do prazer estância,
Entrada se permitte á mortal anciã
De uma dôr, de um suspiro descontente,
Se lá relíquia alguma se consente
Desta cançada, humana desventura,
Não te offendas, que a victima tão pura,
Que em meus ternos soluços te offereço,
Busque seguirte, por lograr o preço
Daquella fé, que ha muito consagrada
Nas aras da amizade foi jurada.
Bem sabes, que o suavíssimo perfume,
Que arder pôde do amor no casto lume,
Os suores não são deste terreno,
Que odorifero sempre, e sempre ameno,
Em qualhadas porções Chypre desata:
Mais que os thesouros, que feliz recata
A Arábica região, amor estima
Osincensos, que a fé, que a dôr anima,
Abrazados no fogo da lembrança.
Esta pois a discreta segurança,
166 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Com que chega meu peito saudozo,


A acompanhar teu passo venturozo,
Oh sempre suspirado, sempre bello,
Espirito feliz : a meu desvello
Não negues, eu te rogo, que constante
Viva a teu lado sombra vigilante.
Inda que estejas de esplendor cercada,
Alma feliz, na lúcida morada,
Que na pompa dos raios luminoza
Pizes aquella esfera venturoza,
Que a teu merecimento o Ceo destina;
Nada impede, que a chama peregrina
De uma saudade afflicta, e descontente,
Te assista acompanhando juntamente.
Antes razão será, que debuxada
Em meu tormento aquella flor prostrada,
Sol em teus resplendores te eternizes,
E Clycie em minha magoa me divizes;
Entre raios crescendo, entre lamentos,
Em mim a dôr, em ti os luzimentos.
Se porém a infestar da Elizia esfera
A continua, brilhante primavera
Chegar só pôde o lastímozo rosto
Deste meu triste, fúnebre desgosto,
Eu desisto do empenho, em que deliro;
E as azas encurtando a meu suspiro,
Já não consinto, que seu vôo ardente
A acompanhar-te suba diligente :
Antes no mesmo horror, na sombra escura
Da minha inconsolavel desventura
Eu quero lastimar meu fado tanto,
Que suffocado em urnas de meu pranto,
A tão funesto, liquido dispendio,
A chama apague deste ardente incêndio.
OBRAS POÉTICAS 167
Indigno sacrifício de uma pena,
Que chega a perturbar a paz serena
De umas almas, que em campos de alegria
Gozão perpetua luz, perpetuo dia ;
Que adorando a concórdia, desconhecem
Os sustos, que da inveja os braços tecem ;
Que ignorão o rigor do frio inverno;
E que em brando concerto, em jogo alterno
Gozão toda a suavíssima carreira
De uma sorte risonha, e lisongeira.
Alli, entre os favonios mais suaves,
A consonância offenderei das aves,
Que arrebatando alegres os ouvidos,
Discorrem entre os círculos luzidos
De toda a vegetante, amena estância.
Alli pois as memórias de minha anciã
Não entrarão, Salicio : que não quero
Ser comtigo tão bárbaro, e tão fero,
Que um bem, em cuja posse estás ditozo,
Triste magoe, infeste lastimozo.
Cá viverá commigo a minha pena,
Penhor inextinguivel, que me ordena
A sempre viva, e immortal lembrança.
Ella me está propondo na vingança
De meu fado inflexível, ó Salicio,
Aquelle infausto, trágico exercício,
Que os humanos progressos acompanha.
Quem cuidara, que fosse tão estranha,
Tão pérfida, tão ímpia a força sua,
Que maltratar pudesse a idade tua,
Adornada não só daquelle raio,
Que anima a flor, que se produz em Maio;
Mas inda de fructiferos abonos,
Que antecipa a cultura dos outonos !
Cinco lustros o Sol tinha dourado
16S CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
(Breves lustros em fim, Salicio amado),
Quando o fio dos annos encolhendo,
Foi Atropos a tèa desfazendo:
Um golpe, e outro golpe preparava :
Para empregallo a força lhe faltava ;
Que mil vezes a mão, ou de respeito,
De magoa, ou de temor, não pòz o effeito.
Desatou finalmente o peregrino
Fio, que já tecera. Ah se ao destino
Pudera embaraçar nossa piedade !
Não te glorêes, trágica Deidade,
De um triunfo, que levas tão preciozo :
Dezar é de teu braço indecorozo;
Que inda que a fúria tua o tem roubado,
A nossa dòr o guarda restaurado.

Vive entre nós ainda ná memória,


A que elle nos deixou, eterna gloria;
Dispendios preciozos de um engenho,
Ou já da natureza desempenho,
Ou para a nossa dôr só concedido.
Salicio, o Pastor nosso, tão querido,
Prodigio foi no raro do talento,
Sobre todo o mortal merecimento ;
E prodigio também com elle agora
Se faz a magoa, que o lastima e chora.

A lucluoza victima do pranto


Melhor, que o immarcessivel amaranto,
Te cerca, ó alma grande, a urna triste;
O nosso sentimento aqui te assiste,
Em nenias entoando magoadas
Hymnos saudozos, e canções pezadas.
Quizeramos na campa, que te cobre,
Bem que o tormento ainda mais se do' :"
OBRAS POÉTICAS IgQ,
Gravar um epitafio, que declare,
Quem o túmulo esconde; e bem que apare
Qualquer engenho a penna, em nada atina.
Vive outra vez : das cinzas da ruína
Resuscita, o Salicio; dieta; escreve :
Seja o epitafio teu : A cifra breve
Mostrará no discreto, e no polido,
Que é Salicio, o que aqui vive escondido.

10
170 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

A' MORTE
APRESSADA
DE

UM AMIGO
EPICEDIO III
Commigo falas; eu te escuto ; eu vejo,
Quanto apezar de meu lethargo, e pejo,
Me intentas persuadir, ó sombra muda,
Que tudo ignora, quem te não estuda.
Ha poucas horas, que um activo alento
Te dirigia o ardente movimento ;
E em breve instante (oh dor I) em breve instante
Se torna em luto o resplendor brilhante.
Arrebatado em vão te solicito
Por qualquer parte, que se estenda o grito ;
E aos eccos, ao clamor, que aos troncos passa,
(Funestissimo avizo da desgraça)
Apenas fala, apenas me responde
O desengano, que efla penha esconde :
Mas como em te encontrar minha anciã tarda,
Se só este penhasco é, quem te guarda!
Elle a saudade tua recommenda;
Elle me escute pois, elle me attenda.
Mármore bruto, que em teu seio encobres
Triste despojo de relíquias pobres,
OBRAS POÉTICAS* 171

Eu me chego a escutar-te: a ouvir-te venho,


Talvez de tanto ardor no heróico empenho.
Ao credito maior esta alma aspira.
Se enlaçado nas redes da mentira
Amei té agora o meu profundo somno,
De tanto annuncio ao peregrino abono,
E quero despertar: volta a falar-me,
0'dura penha: eu quero aconselhar-me.
Comtigo mesmo. Que lições prudentes
Hoje me estás dictando ! Oh que eloqüentes
Falão as sombras, os horrores fallâo,
Quando os alentos, quando as vozes calão !
Dentro sepultas desse cofre infausto
De Aonio o resplendor, o lustre, o fausto.
Debaixo jaz dessa fatal dureza
Aquelle activo empenho, que a destreza
De Minerva polio; o que esgotara
D'alta Jurisprudência a luz mais rara.
Aqui sepultas, oh penhasco duro,
(Tudo te digo) aquelle Amigo puro ;
Que ausente de minha alma hoje me ordena
A companhia só da minha pena.
No teu silencio eneontro o desengano
Do caduco esplendor do alento humano.
Tu me dizes, quam pouco ao mundo importa
Esta cançada vida, que supporta
Das fadigas o pezo intolerável.
Venturozo Baixei em golfo instável
Me finges, me figuras; brando o vento
Ordenava a carreira; solto o alento
Das vellas, respirava a Nau segura;
Tranquillo o mar com prospera brandura
Sustentava o seu pezo : no accidente
De ingrata tempestade de repente
172 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Se escandeliza o Ceo; o mar se altera ;


Rompem-se as vellas; pela crespa esfera
Vaga perplexo o lenho ; absorto vaga;
Já perde o rumo, e infeliz naufraga.
E que se espera entre a fatal ruina ?
Que mais se espera? se da luz benigna
Se desperdiça o breve auxilio, ao menos
Em quanto a nós os Zefiros serenos
Nos influem propícios, indecizo
Não vacille o discurso; o obzequio, o rizo
Deste mísero golfo se aproveite,
Abominando os vicios, e o deleite
De tanto ardor profano: a razão venha;
E vendo, que no abismo se despenba,
De seus mesmos horrores triunfante
Sobre tanto desmaio o ardor constante
Da antiga Babilônia, que se estraga,
Novos alentos das ruinas traga.
Tudo, oh bruto penhasco, me insinua
0 teu mesmo silencio, a sombra tua.
E pois te encontro agora tão propicio,
Só te quero rogar o beneficio
De que ao triste cadáver alguma hora
A anciã ardente, com que esta alma o chora,
Por ultimo favor lhe communiques.
Peço-te, que de todo o certifiques
Do muito, que o lastimo; e se ha piedade
Nessa estranha região, chegue a saudade,
Que te consagro, ó extremozo Amigo,
Sempre a viver, sempre a morrer comtigo.
OBRAS POÉTICAS 173

Ao Senhor José Gomes de Araújo, Dezembargador


do Porto, Provedor da Real Fazenda, e Védor
Geral da Gente de Guerra na Capitania
das Minas Geraes,
etc, etc, etc.

ROMANCE

Sábio, e recto Ministro, aquella idéa,


Que eu formo desse espirito, alguma hora
Hade chegar a dispensar-se ao mundo,
Inda que em sombras de uma imagem tosca.
Ver-se-há, que quanto a mão do Rey Augusto.
Mais liberal, mais pródiga vos honra,
Tanto o mérito vosso os mesmos prêmios
Acredita, ennobrece, e condecora.
Entregue á vossa direcção prudente
Foi o Erário Real; e apenas louva
A fortuna este bem, já vos admira
Cingir no Porto a Senatoria Toga.
Estes os louros são, que vos prepara
Vossa egrégia virtude : que se de outra.
Estranha mão brotassem produzidos ;
Não seria a ventagem tão precioza.
Do Real Decreto as cláusulas, que attendo,
Desta mesma verdade hoje me informão :
Elle nos insinua, que os serviços
Com este novo ascenso se coroão.
174 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
Outro, que aos cargos do Concelho assiste,
Vigilante Ministro, assim o abona;
Quando nos diz; que do interesse Regio
Vossa attençâo se preoccupa toda.
Mas que muito, que o credito daquelles
Assim vos busque, assim vos corresponda,
Se por vós, ó Ministro esclarecido,
Falão cheias de alento as mesmas obras!
Seguindo os vossos passos, desde quando
Pizais das Minas as montanhas toscas,
Que couza ha, que não seja testemunho
Do zelo, que distingue as acções vossas ?
Diga-o do Sabará na Regia caza,
Onde do Erário se regula a soma,
Aquella perspicácia nunca vista,
Aquella sempre vigilância prompta.
Velando pelo Rei que segurança
Não tem os seus Direitos I menor sombra
Não pôde subsistir no engano indigno,
Da maldade uma vez cerrada a porta.
Este o theatro foi, onde a virtude
Mil padrões erigio a vossa gloria,
Acreditando em diligencias graves
Do serviço Real vossa pessoa.
Sem temer as distancias, e os perigos
Por ásperos sertõens, empreza heróica,
Desde lá vos conduz a ver os matos,
Onde o Paracatú seu termo logra.
Alli provendo em equilíbrio tudo,
Quanto acredita da Justiça as normas,
Desprezaste as calumnias ; e somente
Deste á verdade a subsistência própria.

OBRAS POÉTICAS 175

Vencidas neste giro (quem tal crera !)


Mais de trezentas legoas, a derrota
Terminais, respirando sem fadiga,
Ao ver, que pelo Rei ella se abona.
Não bem cerraste os destinados dias
Do cargo de Intendente, já sem nota,
Que infame a residência, o Rei vos chama,
Já da Fazenda o Tribunal vos goza.
E para serdés com maior ornato
Exposto a nossos olhos, vos colloca
Na Junta da Bahia, entre os que a Beca
Distingue, illustra, qualifica, approva.
Agora se outro alento me assistira,
Eu descrevera as peregrinas provas,
Que fizeste avultar, juntando á aquellas,
Que a Fama em tanto giro admira absorta.
Eu dera a conhecer, que neste emprego
Resplendeceo vossa virtude, posta
No mais distincto gráo : dissera ao mundo,
Que em vós do Erário se duplica a força.
A força se duplica : pois se aquelle
Sustenta o Reino dispendido, a nova,
Interessante economia quanto
0 zela mais, é certo, o augmenta, e dobra.
A practica piedoza, bem que inteira,
De uma exacção ceder faz a demora
Dos devedores; e arrecada o Cofre,
Quanto a avareza em subterfúgios forra.
0 excesso das despezas se refrêa,
0 menos útil se modera, e poupa ;
0 mesmo, que faltava, agora cuido,
Não só não falta já, antes já sobra.
176 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Revolvem-se esquecidos monumentos,


Que o tempo sepultava em cinza morta
E porque tudo ao Regio Erário sirva,
Por elles se entra em recenceio ás contas,
Oh ! e que fructos deste exame tira
A Fazenda do Rei! quantos se encontrão
Erros, e vícios, da maldade effeitos !
Se este se averigua, este se nota.
Nunca das Minas o Paiz dourado
Com tão crescidas, avultadas formas,
Honrando o Real sello os cofres, pôde
Ver tão soberba a Luzitanía Frota.
Não só do Tribunal junto á fadiga,
Vos applicais, Senhor; mas vos remonta
Novo cuidado a investigar os passos,
Que abre o extravio por estranhas bocas.
Pela Comarca, aonde os verdes campos
Tem do Sapucahi banhado as ondas,
Atravessais, entregue ao Real serviço,
Os sertões, que inda as feras mal povoão,
Os caminhos do engano só trilhados,
Por vós pizados são, por vós se cortão.
Servem ao vosso zelo, ao vosso exame
0 fundo rio, a serra mais medonda.
Nada vos horroriza, nada embarga
A illustre diligencia ; bem que aborta
Fúrias o Inverno, cóleras o tempo,
Rotos os Ceos em tempestades grossas.
Védor Geral, fiada a vosso arbítrio
A commissão da empreza mais custoza,
Com quanta reflexão vos encontramos
Regulando as reclutas para as Tropas !
OBRAS POÉTICAS 177

Attende-se á pobreza, ao desamparo ;


Com a clemência a rectidão se informa;
A tudo consulais dando os ouvidos
A' Viuva, ao Irmão, ao Pai, á Espoza.
Mas que muito, Ministro inimitável,
Que muito obreis assim, se a vossa própria
Lingua confessa, que ao serviço Regio,
Não o interesse, só vos chama a honra !
O amor só da virtude é, que dirige,
Iguais á vossa idéa as vossas obras:
Conhecendo, que é ella de si mesma
0 prêmio, que mais vai, que mais importa.
Por isso inda que ao mérito distincto
Falte a retribuição, só vos consola
Aquella sempre máxima adorável,
Que o Pai da liberdade amava em Roma.
Contenta-se Catão, que a estatua sua
No Capitólio entre outras se não ponha,
Porque pergunte absorto o passageiro :
Quem é o que a Catão nega esta gloria?
Tendes na fantazia sempre impressas
As imagens do sonho, que ainda aponta
De Masinissa a Corte, quando ao Filho
De Scipião se mostra a esfera toda.
Alli se vos descobre, que a primeira
Obrigação de um animo, que adora
0 esplendor da virtude, é, que somente
Se ame o seu Rei, a Pátria se soccorra.
Daqui vem, que é acerto tudo, quanto
Imaginais, ou emprendeis: suffoca
A desgraça por vós o seu partido :
Tudo serve ao prazer, tudo á lisonja.
178 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Oh mil vezes feliz aquelle exemplo,


Que de vós se deriva ! se estudioza
A virtude pudera retratarvos,
Quantas ao mundo repartira copias I
Nellas ensayaria para as Becas
Illustres Magistrados ; menos pompa
Trajarão sobre a Fama outros Consultos,
De que o corpo juridieo blazona.
Os Flavios, os Hermogenes, os Elios,
Os Pérsios, os Papyrios, os Mendonças,
Os, Pegas, os Macedos, os Pereiras,
Perderão junto a vós a gloria toda.
Vós com justiça igual desempenhando
De sábio o nome, entre virtudes outras,
Sois affavel, pacifico, prudente,
Sois liberal, benevolo ; isto sobra.
Assim dais a saber que o vosso peito
Alenta aquelle sangue, que se adora,
De hum Pai, de quem no emprego, que occupara,
Ha de ser immortal sempre a memória.
Assim mostrais, que ramo florescente
Sois de um Irmão, que em dotes, em pessoa,
Ennobrece do Reino Luzitano
Tudo, o que o scetro em seus domínios doura.
Porque entre as perfeições, que vos illustrão
Ainda a mais accidental concorra,
Até mostrais, o quanto a natureza
Se desempenha em vós, quando vos fôrma.
Cheios de actividade os olhos, dentro
Dos corações, nos dão, não sei, que mostras
De uma alma dominante : o que vos busca,
Ao respeito, ao agrado igual se dobra.
OBRAS POÉTICAS 17g
Mas que debalde a examinr me empenho
Os vossos attributos! Se se agoura
Pelos princípios o progresso, quanto,
Quanto o destino na esperança aponta !
Que commissões, que emprezas vos auspica
0 fausto Luzitano! Ah! Cerre embora,
Cerre a porta o futuro; porque a tanto
Não sobe a inculta lira, a Muza rouca,
180 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

FÁBULA
DO RIBEIRÃO
DO CARMO

SONETO

A vos, canoras Ninfas, que no amado


Berço viveis do plácido Mondego,
Que sóis da minha lira doce emprego,
Inda quando de vós mais apartado ;
A vós do pátrio Rio em vão cantado
0 successo infeliz eu vos entrego;
E a victima estrangeira, com que chego,
Em seus braços acolha o vosso agrado.
Vede a historia infeliz, que Amor ordena,
Jamais de Fauno, ou de Pastor ouvida,
Jamais cantada na silvestre avena.
Se ella vos desagrada, por sentida,
Sabei, que outra mais feia em minha pena
Se vê entre estas serras escondida.
Aonde levantado
Gigante, a quem tocara,
Por decreto fatal de Jove irado,
A parte extrema, e rara
OBRAS POÉTICAS 181

Desta inculta região, vive Itamonte,


Parto da terra, transformado em monte ;
De uma penha, que espoza
Foi do invicto Gigante,
Apagando Lucina a luminoza,
Alampada brilhante,
Nasci; tendo em meu mal logo tão dura,
Como em meu nascimento, a desventura.
Fui da florente idade
Pela cândida estrada
Os pés movendo com gentil vaidade,
E a pompa imaginada
De toda a minha gloria n' um só dia
Trocou de meu destino a aleivozia.
Pela floresta, e prado
Bem polido mancebo,
Girava em meu poder tão confiado,
Que até do mesmo Febo
Imaginava o throno peregrino
Ajoelhado aos pés do meu destino.
Nãoficoutronco, ou penha,
Que não desse tributo
A meu braço feliz; que já desdenha,
Dispotico, absoluto,
As tenras flores, as mimozas plantas
Em rendimentos mil, em glorias tantas,
Mas ah ! Que Amor tiranno
No tempo, em que a alegria
Se aproveitava mais do meu engano ;
Por aleivoza via
Introduzio cruel a desventura,
Que houve de ser mortal, por não ter cura.
1
U
132 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Vizinho ao berço caro,


Aonde a Pátria tive,
Vivia Eulina, esse prodigio raro,
Que não sei, se inda vive,
Para brazão eterno da belleza,
Para injuria fatal da natureza.
Era Eulina de Aucollo
A mais prezada filha;
Aucollo tão feliz, que o mesmo Apollo
Se lhe prostra, se humilha
Na copia da riqueza florecente,
Destro na lira, no cantar sciente.
De seus primeiros annos
Na belleza nativa,
Humilde Aucollo, em ritos não profanos,
A bella Ninfa esquiva
Em voto ao sacro Apollo consagrara;
E delle em prêmio tantos dons herdara.
Trezlustros, todos d' ouro,
A gentil formozura,
Vinha tocando apenas, quando o louro,
Brilhante Deos procura
Acreditar do Pai o culto attento,
Na grata aceitação do rendimento.
Mais formoza de Eulina
Respirava a belleza;
De ouro a madeixa rica, e peregrina
Dos corações faz preza;
A cândida porção da neve bella
Entre as rozadas faces se congela.
Mas inda, que a ventura
Lhe foi tão generoza,
Permitte o meu destino, que uma durs,
OBRAS POÉTICAS Jg3
Condição rigoroza
Ou mais augmente em fim, ou mais atêe
Tanto esplendor, para que mais me enlêe.
Não sabe o culto ardente
De tantos sacrifícios
Abrandar o seu Nume : a dôr veheraente,
Tecendo precipícios,
Já quaze me chegava a extremo tanto,
Que o menor mal era o mortal quebranto.
Vendo inútil o empenho
De render-lhe a fereza,
Busquei na minha industria o meu despenho :
Com ingrata destreza
Fiei de um roubo (oh misero delido !)
A ventura de um bem, que era infinito.
Sabia eu, como tinha
Eulina por costume,
(Quando o maior Planeta quazi vinha
Já desmaiando o lume,
Para dourar de luz outro horizonte)
Banhar-se nas correntes de uma fonte.
A fugir destinado
Com o furto preciozo,
Desde a Pátria, onde tive o berço amado;
Recolhi numerozo
Thesouro, que roubara deligente
A meu Pai, que de nada era sciente,
Assim pois prevenido
De um bosque á fonte perto,
Esperava o portento appetecido
DaNinfa; e descoberto
Me foi apenas, quando (oh dura empreza!)
Chego; abraço a mais rara gentileza.
184 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Quiz gritar; opprimida


A voz entre a garganta
Apollo ? diz, Apoll... a voz partida
Lhe nega força tanta
Mas ah! Eu não sei como, de repente .
Densa nuvem me põe do bem ausente.
Inutilmente ao vento
Vou estendendo os braços:
Buscar nas sombras o meu bem intento :
Onde a meus ternos laços... !
Onde te escondes, digo, amada Eulina?
Quem tanto estrago contra mim fulmina'
Mais ia por diante;
Quando entre a nuvem densa
Apparecendo o corpo mais brilhante,
Eu vejo (oh dôr immensa!)
Passar a bella Ninfa, já roubada
Do Numen, a quem fora consagrada.
Em seus braços a tinha
0 louro Apollo preza;
E já ludibrio da fadiga minha,
Por amoroza empreza,
Era despojo da Deidade ingrata
0 bem, que de meus olhos me arrebata,
Então já da paciência
Às rédeas desatadas,
Toco de meus delírios a inclemencia ;
E de todo apagadas
Do acerto as luzes, busco a morte impia,
De um agudo punhal na ponta fria.
As entranhas rasgando,
E sobre mim cahindo,
Na funesta lembrança soluçando,
OBRAS POÉTICAS 185
De todo confundindo
Vou a verde campina ; e quaze exangue
Entro a banhar as flores de meu sangue.
Inda não satisfeito
0 Numen soberano,
Quer vingar ultrajado o seu respeito ;
Permittindo em meu damno,
Que em pequena corrente convertido
Corra por estes campos estendido.
E para que a lembrança
De minha desventura
Triunfe sobre a trágica mudança
Dos annos, sempre pura,
Do sangue, que exhalei, ó bella Eulina,
A côr inda conservo peregrina.
Porém o ódio triste
De Apollo mais se accende ;
E sobre o mesmo estrago, que me assiste,
Maior ruina emprende :
Que chegando a ser impia uma Deidade,
Excede toda a humana crueldade.
Por mais desgraça minha,
Dos thesouros preciozos
Chegou noticia, que eu roubado tinha
Aos homens ambiciozos;
E crendo em mim riquezas tão estranhas,
Me estão rasgando as míseras entranhas.
Polido o ferro duro
Na abrazadora chama
Sobre os meus hombros bate tão seguro,
Que nem a dôr, que clama,
Nem o estéril desvello da porfia
Desengana a ambicioza tyrannia.
186 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Ah Mortais! Até quando


Vos cega o pensamento !
Que maquinas estais edificando
Sobre tão louco intento ?
Como nem inda no seu Reino immundo
Vive seguro o Bárathro profundo !
Idolatrando a ruina
Lá penetrais o centro,
Que Apollo não banhou, nem vio Lucina ;
E das entranhas dentro
Da profanada terra,
Buscais o desconcerto, a fúria, a guerra.
Que exemplos vos não dieta
Do ambiciozo empenho
De Polidoro a misera desdita 1
Que perigos o lenho,
Que entregastes primeiro ao mar salgado,
Que desenganos vos não tem custado !
Em fim sem esperança,
Que allivios me permitta,
Aqui chorando estou minha mudança;
E a enganadora dita,
Para que eu viva sempre descontente,
Na muda fantazia está prezente.
Hum murmurar sonoro
Apenas se me escuta;
Que até das mesmas lagrimas, que choro,
A Deidade absoluta
Não consente ao clamor, se esforce tanto,
Que mova á compaixão meu terno pranto.
Daqui vou descobrindo
A fabrica eminente
De uma grande Cidade; aqui polindo
OBRAS POETiCAS 187

A desgrenhada frente,
Maior espaço occupo dilatado,
Por dar mais desafogo a meu cuidado.
Competir não pertendo
Comtigo, ó cristallino
Tejo, que mansamente vas correndo :
Meu ingrato destino
Me nega a prateada magestade,
Que os muros banha da maior Cidade.
Às Ninfas generozas,
Que em tuas praias girão,
0' plácido Mondego, rigorozas
De ouvir-me se retirão ;
Que de sangue a corrente turva, e feia
Teme Ericina, Aglaura, e Deyopéa.
Não se escuta a harmonia
Da temperada avena
Nas margens minhas; que a fatal porfia
Da humana sede ordena,
Se attenda apenas o ruido horrendo
Do tosco ferro, que me vai rompendo.
Porém se Apollo ingrato
Foi causa deste enleyo,
Que muito, que da Musa o bello trato
Se auzente de meu seio,
Se o Deos, que o temperado coro tece,
Me foge, me castiga, e me aborrece !
Em fim sou, qual te digo,
O Ribeirão prezado,
De meus Engenhos a fortuna sigo ;
Commigo sepultado
Eu choro o meu despenho; elles sem cura
Chorão também a sua desventura.
188 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

ECLOGAS

OS MAMÃES DO TEJO
ECLOGA I

Montano, Corebo, Lize, e Laura

Eu canto os dous Pastores,


Que o Tejo cristallino
Na bella margem vio : canto o divino
Assumpto dos amores,
Que de inveja, e de agrado
O Ceo, a terra, o mar tem namorado.
Também das Ninfas bellas,
Que Amor vio abrazadas,
Os números entôo : se entre aquellas
Cadências delicadas,
Rude o som de meu canto
Se faz digno, Senhor, de obzequio tanto.
Tu do semblante augusto.
Tu da frente serena,
Infante generozo, invicto, e justo,
Em quanto sôa a avena,
Teu magnânimo alento
Communica a meu débil, rouco accento.
OBRAS POÉTICAS 189

E Tu, que os Teus altares,


Princeza soberana,
Dilatas na extensão de ambos os mares ;
Que Thetis, mais que humana,
Em melhor hemisfério,
Te adoptas do Brazil o grande Império.
Em quanto montes d'ouro,
Brilhante pedraria,
Desde o Rio da Prata ao Tejo louro
A America te envia,
Lá dessa gloria summa,
A ouvir os meus votos te acostuma.
Aonde o Tejo claro
Seus braços mais estende,
Grande a corrente, em circulo mais raro,
Grande parte comprende
Daquella alta Cidade.
Regio solar da Luza Magestade.
D'um lado, e d'outro lado
Se estende uma campina,
Em que traz a pascer o manso gado
Tanto a formoza Eulina,
A filha de Silvano,
Como o destro Corebo, o fiel Montano.
Em uma tarde, quando
Os músicos Pastores
Ao som da acorde flauta recitando
Estavão seus amores,
Nas vozes, que afinavão,
Deste modo a cantar se preparavão.
Cor. Já que estamos, Montano, neste monte,
Sem outra companhia, em quanto o gado
Buscando as doces águas dessa fonte,
11
190 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
Vem concorrendo d'um, e d'outro lado,
Aqui deste salgueiro
Sentados junto á sombra, eu te requeiro,
Torna-me a repetir aquella historia,
Que toda esta minha alma encheo de gloria.
Mon. Dos nossos Maioraes a grande festa,
Corebo, quem a vio, já mais se farta
De a contar: mas em quanto a fresca sésta
A nós se chega, em quanto o Sol se aparta,
Tomando a flauta doce,
O cazo contarei; mas ah ! se fosse
Minha voz tão suave, e tão divina,
Como aquella, que pede acção tão digna!
Cor. Toma o teu instrumento; elle é tão brando,
Que se inda agora Titiro vivera,
Porque melhor pudesse ir entoando,
No canto de Amarillis o quizera.
Parece, que os rochedos
Se abalão já do centro : os arvoredos
A habitação deixando da espessura,
Vem promptos a escutar tanta brandura.
Mon. Effeitos são daquelle heróico objecto,
Que eu tomo nos meus versos : maravilha
Não é, que possa tanto o grande affecto,
Com que o meu rendimento o voto humilha,
A historia prodigioza
Escuta, Pastor meu; ouve a ditoza
União dessas almas, que tem dado
A' memória do mundo um tal cuidado.
0 dia venturozo
Para nós se chegava,
0 dia, em que no carro lumínozo
0 Sol mais abrazava:
OBRAS POÉTICAS 191

De rizo, e de alegria
0 Ceo, a terra, o mundo se cobria.
Mais que nunca suaves,
Ao despertar da Aurora,
De ramo em ramo as sonorozas aves,
Sobre os campos de Flora,
Alegres vem saudando
Da fresca manhã bella o rosto brando.
As arvores copadas
Orvalho cristallino
Derramão sobre a relva : restauradas
Ainfluxo peregrino,
Do inverno, que as rendera,
Formão as flores nova primavera.
Os Gênios da espessura
Então mais concertados
Andão mostrando annuncios da ventura.
Vem-se os campos cercados
De avizos superiores,
Mandados desde o Ceo para os Pastores.
Um salgueiro, que havia
Deixado a pompa verde,
De repente (oh assombro!) se vestia
Das folhas, que em vão perde;
E em prodígios maiores
As mesmas folhas derão logo flores.
Duas rolas, cantando
Naquella sovereira,
Docemente se estavão namorando ;
Uma, e outra ligeira
Com suave reclamo,
De folha em folha vão, de ramo em ramo.
192 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Por entre o trigo louro


Discorre um vento brando,
Qual nunca se sentio : um branco touro,
Entre os outros brincando,
Trez vezes nessa praia,
A correr á porfia os mais ensaia.
Até dessa ribeira,
Que nos fica vizinha,
Se vio chegar á praia derradeira
Um Delfim; o qual tinha
Sobre a escama enlaçadas
As ramas de coral, ao Sol qualhadas.
0 mar vinha trazendo
De conchas exquizitas
Uma grande abundância: estão-se vendo
Pérolas infinitas,
Que no centro occultava ;
Que de gosto talvez o mar as dava.
De Pan, e de Himeneo,
Deidades soberanas,
Se escuta publicar o alto trofeo.
As glorias mais, que humanas,
Os Pastores entoão,
As sacras Divindades apregoão.
Estão por toda a parte
As tochas incendidas,
De Himeneo : o festejo se reparte
Entre as Ninfas luzidas,
Cercando em rodo as têas
Naiades, Hamadriades, Napéas.
Podem ver-se os Silvanos,
Os Sátiros das covas
Deixar o triste abrigo : mais que ufanos,
OBRAS POÉTICAS 193
Em seus himnos, e trovas,
Com tal contentamento,
Que enchião de alegria o mesmo vento.
Qual fiando a memória
Ao corpolento cedro,
Por triunfo da nunca vista gloria,
Lavra o nome de PEDRO:
Qual compete á porfia,
Nas faias entalhando o de MARIA.
Os nomes venturozos
Se lêm por toda a parte :
Trabalhão por fazellos mais ditozos
A natureza, e arte;
Porque nos troncos cresção ;
Porque nos mesmos troncos reverdeção.
Dametas, e Corino,
Osmuzicos Pastores,
Que entre nós tem louvor quaze divino,
Entoando os amores
Da Ninfa, e caro Espozo,
Um cântico disserâo portentozo.
Aqui sobre estes troncos
Uma letra se attende,
Composta por Alcino : inda entre os broncos
Debuxos se comprende,
E diz... chega-te, Amigo ;
Mas não : escuta t u ; porque eu a digo;
Cor. Ao longe eu vejo ; espera, meu Montano,
Eu vejo apparecer, ao que imagino,
0 meu bem, se talvez me não engano :
Sim a bella Pastora, o peregrino
Encanto desta vida.
Ella é : oh que júbilo convida
194 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

A face alegre, a vista delicioza


De Ninfa tão gentil, e tão formoza!
Mon. Qual vem com ella, attende, a branca Laura,
Do coro em fim das Naiades o mimo!
Formoza é Lize sim, formoza Aglaura;
Mais que todas formoza a Laura estimo.
Cantando vem as bellas,
Arrastando a seu cântico as estrellas :
Ouçamos, o que dizem : mas eu creio,
Que de chegar aqui terão receio.

Esta mata frondoza, esta espessura


Commodidade dão; onde escondidos
As podemos ouvir; e tu procura,
Que Lize não perceba os teus gemidos.
Em quanto ellas cantando
Para nós descuidadas vem chegando,
Ao numero Amabeo nos ajustemos ;
E juntos os seus himnos alternemos.
Entenderão, que os Sátiros das covas
Sua voz acompahão, ou que as penhas
Repetem desde longe aquellas trovas,
Que ellas entoão lá: não te detenhas ;
Entra nesta espessura;
Que as Ninfas vem já perto: ah que ventura !
Que gloria para nós não esperada
Trouxe a sorte esta vez menos pezada !
Cor. Já não tardo a seguir-te; porém temo
Que fossemos já vistos : é mui alto
Aquelle oiteiro. Desgraçado extremo
De um infeliz; pois tudo é sobresalto !
Não sei, se dessa gruta
Seja melhor buscar a estância bruta,
Ou se melhor apparecer-lhes seja.
OBRAS POÉTICAS 195

Mon. A quem não matará da sorte a inveja!


Já Laura me diviza: o seu aceno
Me deu já a entender, que me descobre.
Cor. Lize me vio com rosto mais sereno
E' acertado, que me não soçobre.
Cheguemos desde agora,
Cheguemos a encontradas : erro fora
Tão rústica mostrar a natureza,
Que se negue um Pastor a uma belleza.
Mon. Se vens, Ninfa, buscando o verde prado,
Para lhe dar prazeres, e alegria,
Tem dó também de um peito magoado,
Que vive só da pena, e da agonia.
Cor. Se o pensamento teu vem conduzido,
Divina Lize, a rogos de minha anciã,
Eu te quero seguir; que o meu gemido
Te busca sempre com maior constância.
Laur. Montano, o digno assumpto de meu canto
Lugar me não consente, para ouvir-te ;
Deixa, Pastor amado, deixa o pranto ;
Prompta me hasde encontrar, prompta a servirte.
Liz. Agora é lei forçoza de meu gosto,
Corebo meu, que tomes o instrumento ;
Deixa as magoas, Pastor, deixa o desgosto ;
E vem acompanhando o nosso accento.
Mon. Não es tu a cruel, que em tanta idade
Já mais ouviste um dia os meus gemidos ?
Cor. De tua, mais que barbara, impiedade
Como abrandou meu rogo esses ouvidos ?
Laur. Montano, não porfies : em meus ecos
Attende o peregrino, objecto amado;
A cujo doce accento os troncos seccos,
Os mármores talvez tenho abalado.
196 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Eu trago de memória a cantilena,


Que Corino compôs, quando o seguia
Dametas, o Pastor, que a doce avena
No cântico amabeo soar fazia.
Lize, e mais eu a vínhamos agora
Repetindo ; e tão bella se mostrava,
Que no acorde trinar da voz sonora
A alma atraz do canto arrebatava.
Liz. Corebo a pôde ouvir; pois que presente
Não esteve á função do Himeneo sancto :
Elle nos acompanhe juntamente;
Pois tanta suavidade tem no canto.
Mon. O Ceo essa fortuna lhe guardava :
Porque ha pouco a Corebo eu repetia
A grande historia; e quaze se apressava
A lêlla nesse tronco, aonde a via.
Agora folgarei de acompanhar-te;
E para que de ti mais o mereça,
Este cajado toma; aonde em parte
Reconhecer teu mérito pareça.
Obra foido divino Alcimedonte ;
De flores o engastou : onde a mão dobra,
Vê, como as pedras une destramente,
Variando a côr : tu viste melhor obra ?
Cor. Pois eu, Lize gentil, inda que ponha
Quantos gados, e campos eu possua,
Nada te venho a dar; porque é vergonha,
Que outra couza te dê, quando a alma é tua.
A parelha melhor do meu rebanho,
Aquella, que é de pelle remendada,
A flauta, com que agora te acompanho,
Tudo em fim te darei, se tudo agrada.
tf
OBRAS POÉTICAS 197

Laur. Arvores (eu começo) deste oiteiro,


Que enverdecendo estais na primavera,
Chegai a ouvir meu canto lisongeiro.
Liz. Eu canto aquella Ninfa, que pudera
Dar vida ás tenras flores, alma ás plantas,
Como Venus ás rozas já fizera.
Mon. Branda corrente, tu, que o gosto encantas,
Um retrato me pintas nessa fonte
Do primorozo Ceo de graças tantas.
Cor. Eu vi, quando descião desse monte
As Ninfas na formoza companhia
Como canto alegrando este horizonte.
Laur. De gosto os cabritinhos nesse dia
Deixarão de buscar o sueco amado,
Esquecidos das mães na relva fria.
Liz. 0 trovão, que soava deste lado,
Agouro era somente da ventura ;
Uivar se não ouvia o lobo irado.
Mon. O Môcho não grasnava na segura
Rama daquelle choupo ; onde outras vezes
Grasnar se ouvira pela noite escura.
Cor. A ti se ha de cortar das nossas rezes
A victima perpetua : o sacrifício
De nosso humilde voto não desprezes.
Laur. Do culto de um Pastor pequeno indicio,
Eu tenho de trazer-te o mel dourado,
Se tanto á minha supplica és propicio.
Liz. De própria mão o frueto sazonado
Eu colherei, levando juntamente
Dous recentais, que tenho aparelhado.
Mon. Se estou ao som da flauta mal cadente
198 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
Ensaiando esta voz desconcertada,
É para a dedicar a ti somente.
Cor. Se apascento esta rústica manada,
É por ver, se entre a misera pobreza
De um Pastor inda ha couza, que te agrada.
Laur. Não foi Glauce formoza : a gentileza
Da linda Galatéa já não deve
Da nossa acorde flauta ser empreza.
Liz. Por ti já me parce escura a neve :
Não é tão encarnada a fresca roza ;
A comparar-se a ti nada se atreve.
Mon. Derivada do Ceo prole formoza
De Jove, que respiras do semblante,
Sobre a vida mortal, luz mais preciosa.
Cor. Ah quanta gloria deste laço amante
Se espera conseguir! A paz do mundo,
A ditados mortaes por ti se cante.
Laur. Para apertar o vinculo jucundo,
O sangue traz o fio, Amor o tece;
Assim se lavra o thalamo fecundo.
Lis. Nesta amena campina reverdece
A memória dos Reis, segredo raro
Que de Mantua o Pastor saber merece.
Mon. Logra Amor o triunfo mais preclaro ;
Que junta a Magestade á formozura,
Não precisa a virtude de outro amparo.
Cor. Tu es do nosso Jove imagem pura;
Ao grande Deos do Ceo bem te pareces
Nesta alma toda afagos, e ternura.
Laur. Tu, Ninfa, entre as mais Deozas só mereces
Este obzequio, que agora satisfaço,
Que entre ellas sobre todas resplendeces.
OBRAS POÉTICAS 199

Liz. Será sempre immortal o terno laço,


Que o não pôde cortar a morte feia,
Nem da fortuna o movimento escaço.
Mon. Feliz foi o agouro; nem se creia,
Que me engana de louca a fantazia,
Ou que o meu pensamento me recreia.
Cor. Eu o vi nessa estampa, que luzia
Na outra parte do Ceo sobre a direita;
E nalma trago impressa a profecia.
Laur. A memória feliz nesta alma aceita
Fixa sempre se guarda, sempre pura,
Qual não pôde acabar a sorte estreita.
Liz. Uma palma triumfal ao Ceo fegura
Se via remontar, que se enlaçava
Das ramas de uma vide : uma escritura
Desta sorte o segredo declarava :

SONETO
Se este Tronco adorado dos Pastores
Do tempo está zombando tão robusto,
Esta vide enlaçada ao Tronco augusto,
Fará que os seus brazões sejão maiores.
Brotando fructos, sazonando flores
Se verá triunfar do fado injusto;
Sem que da lei mortal se atreva o susto
A profanar seus claros resplendores.
Feliz do pátrio Tejo o áureo terreno,
Que Amor quiz, que dispôs a sorte avara,
Fosse de arvores taes o sitio ameno.
Quanta ventura, quanto bem declara
Este final, que pinta o Ceo sereno !
Oh Tronco generozo ! Oh Planta rara i
200 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
Cor. Depois que abraza o Sol a secca terra,
Não é tão agradável para as plantas
0 chuveiro do Ceo, que os ares cerra,
Qual foi para a minha alma, quando cantas,
Ouvir na tua flauta a doce historia,
Com que tu me arrebatas, e me encantas.
Na bella competência desta gloria
Quem me dera passar a noite, e dia,
Sem trazer outra couza na memória !
Mon. Comtigo, caro Amigo, eu gostaria
De consumir o tempo ; mas o gado
Anda correndo solta a relva fria.
Algum se acolhe ao mato emmaranhado ;
Fugio-me o meu Barozo; já não vejo
Onde se foi meter o meu Bargado.
Cor. Eu vou juntar as cabras; que desejo
Não trepem sobre aquella penha dura,
Que fica lá fronteira ao manso Tejo.
Adeos, Montano, adeos ; que é noite escura,
Aqui cessava o canto
Dos músicos Pastores:
E se do teu influxo a esforço tanto
Imito estes Cantores,
Tu, generozo Infante,
Faze que as Tuas glorias sempre cante.
Verás, que ao nosso rio,
Verás, que ao campo nosso,
Sentado junto ao alamo sombrio,
Se tanto acazo posso,
Em suave harmonia,
O teu nome repito noite, e dia.
OBRAS POÉTICAS -01

FILENO
ECLOGA II

Na margem deleitoza
Do cristallino Tejo
Sentado um Pescador, a pobre rede
Em quanto tem nas praias estendida,
Ao longe uma harmonia,
Nunca ouvida já mais, ao longe escuta
Um canto tão sonoro,
Que nem Glauco suave, nem o cego
Amante da formoza Galatéa,
De Sicilia entoou na branca arèa.
Corino era, que vinha
Da aldêa já voltando; onde o pescado
A vender estivera: alli no povo
Uma noticia achou, a qual em trovas,
Por um Pastor discreto
Ordenadas ao som da acorde avena,
Trazia para o mar; quando aos ouvidos
Foi mais próximo o som. Eu, que attendia,
Estas doces cadências percebia.
Que alegria, que gosto
Ao mundo communica
0 nosso Maioral! O grato rosto
Do júbilo se explica
202 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Pela voz'dos Pastores,


Titiro, e Alcimedon, grandes cantores.
Os campos neste dia
Se cobrem de verdura :
Pasta o gado contente a relva fria;
E na verde espessura
Novo contentamento
Desterra toda a sombra do tormento.
Os Sátiros das covas,
Deixando o caro abrigo,
Do seu rendido amor vem a dar provas:
Elles trazem comsigo
De Ninfas delicadas
Igualmente as mais bellas, e engraçadas.
Em concertados himnos
Sòa toda a floresta :
Pastores mais gentis, mais peregrinos
Concorrendo na sesta
Do Maioral. oh quanto
AgTadavel se faz seu doce canto!

Um louva a providencia
Com que a tudo consulta ;
Outro applaude entre todos a excellencia,
Com que o seu gênio avulta;
Tornando venturozos
Deste campo os Pastores mais ditozos.
Já torna ao nosso mundo
Aquella idade de ouro:
O campo sem cultura já fecundo
Produz o trigo louro.
Tudo está melhorado
A montanha, a campina, o valle, o prado.
OBRAS POÉTICAS 203
A nós torna a innocencia
Do século primeiro:
Torna a Justiça, as Graças, a Clemência,
Que do tempo grosseiro
Desterrara a maldade.
Oh feliz estação'! Oh doce idade !
Assim cantava, quando
Ao chegar o seu barco
Junto á margem frondoza
Um pouco se calou : eis entre tanto
Dos versos, que lhe ouvia,
Applicando uma parte ao tosco alento
Da flauta piscatoria, desta sorte
A seu modo dispunha,
Das praias, onde estava,
Fileno, o Pescador, que o escutava :

SONETO
Assim como o Pastor, também o pobre,
O rude Pescador lá desde a praia,
Onde primeiro o Sol nas ondas raia,
Do seu voto a innocencia não encobre.
Se elle cantando alegre se descobre
Talvez á sombra da copada faia,
Igual o nosso canto aqui se ensaia
Ao susurro domar, que a penha cobre.
Pôde render ao Rei talvez Corino
Desde a rústica choça o brané"o leite,
0 mel dourado, o pomo peregrino;
Mas espero eu também, que elle me aceite
A rama de coral, que por tão fino
A coroa lhe esmalte, o scetro enfeite.
ALBANO
ECLOGA III
Louva-se a pacificação da guerra, mediante a direcçâo do
Illustrissimo, e Excellentissimo Senhor Sebastião Joze
de Carvalho e Mello, Conde de Oeyras, Primeiro Mi-
nistro, de Portugal, etc
Offerecida ao mesmo Senhcr
ILL. MO E EX. MO SNR.
Entrou em Roma o Pastor de Mantua : e dos benefícios
que lá recebera, tirou a conseqüência de que devia adoraj
por Deos ao seu Augusto. Continuou com o gênio dos mon-
tes a fazer estimavel a flauta; e não tardou a equivocar
entre os louvores de Augusto as glorias de Pollião. Trans-
portado aos agouros da felicidade promettida, levou o
pensamento á dureza dos carvalhos: delles disse: viria
tempo, em que das suas vèas nasceria a torrente do
mel suave.
Estes dous lugares do Poeta Latino são, Excellentissimo
Senhor, os que derão alento á minha Musa; para fazer
chegar á presença de V. Excellencia a Ecloga de Albano.
Eu não distingo, se canto de Augusto, se de Pollião:
sei, que é constante ao mundo, deveo Portugal na presente
guerra todos os princípios da sua inexplicável felicidade
á direcçâo prudentíssima de V. Excellencia.
Não é este o único argumento, que se nos tem dado do
zelo, da vigilância, da actividade, que a nosso beneficio
respira em todas as distinctas acções de V. Excellencia. 0
seu Ministério felicíssimo foi para nós uma nova idade de
ouro; que fez produzir a terra sem fadiga; tornou inno
centes os gênios, restituio ao mundo a Justiça. Estes sã-
OBRAS POÉTICAS 205

os fructos, que se comparão ao me!; onde tudo é delicia,


e tudo suavidade.
Reflectindo no preciozo sobrenome de V. Excellencia, do
que noto, e do que admiro, tomo, Senhor, a certeza de
estar em tudo comprida a profecia do Mantuano. E men-
digando do Poeta Portuguez as expressões, com que disse:
Em quanto do seguro Azambugeiro
Nos Pastores de Luzo houver cajado,
Passo, com as mais ajustadas circunstancias, a cantar a
segurança da Monarquia Portugueza; em quanto do seio de
um carvalho fructificar o mel, que fertiliza os campos.
Oh ! e que matéria de agouros felicíssimos me não pro-
metem as inescrutaveis máximas da alta enciclopédia de
V. Excellencia! Que glorias, que benefícios não assegura a
Portugal o seu adorável Ministério! Falem calcados de fro-
tas os mares : diga-o cheia de fabricas a terra Até aqui se
adorava o estranho: agora já se faz desperdício do pró-
prio: amou-se a esterilidade ; já se não estima a abundân-
cia. Época mil vezes glorioza aquella, que do nome de V.
Excellencia poder ostentar a vaidade !
Este argumento, Excellentissimo Senhor, era mais digno
da cithara dos Homeros, que da rudeza da minha flauta.
Têção outros as Epopéas dos preciozos louvores, que a V.
Excellencia se devem: eu pedirei ás Musas, que por mim-
o digão; já que eu não posso.
Saio dos montes; vivo na incultura; communico a rusti-
cidade: não é muito, que tudo o que concebo seja dissonân-
cia, e seja barbarismo tudo o que pronuncio. V. Excellen-
cia attenda ao meu animo, e não se offenda do obzequio.
Talvez que não sem acordo buscasse o gênio do campo,
quem pertende na simplicidade do estilo acreditara inno-
cencia do voto. Deos guarde a V. Excellencia, etc.
De V. Excellencia
O mais humilde servo;
CLÁUDIO MANOEL DA COSTA,
i- 12
206 CLÁUDIO MANOEL DA COSIA

ALBANO
ECLOGA III
Salicio, Alcino, Melibeo

De Alcino, e de Salicio,
Áquelles dous cantores,
Que da voz, e da flauta no exercício,
Dão assumpto aos Pastores,
Benigno Apollo ordena,
Que eu repita, o que ouvi, na doce avena.
Tu, Muza, que ensaiada
A' sombra dos salgueiros,
Esta inculta região viste animada
Dos eccos lisongeiros,
Um novo empenho agora
Commigo entoe a lira mais sonora.
As iras de Amarillis,
De Licida os extremos
Basta já de cantar, basta de Filis;
Couzas dignas cantemos,
Dignas pela grandeza
De estampar-se dos cedros na dureza.
Para estender meu brado,
Igual á aquelle empenho,
Que eu concebo no assumpto levantado,
OBRAS POÉTICAS }QJ

Não basta ao tosco engenho


Nem esforço, nem arte,
Se Vós no canto meu não tendes parte.
Vós, Conde, que cingido
De verdes resplendores,
Sobre a fama levais o vôo erguido,
Que do peito em ardores
A virtude alentando,
0 nome á eternidade ides mandando.
Vós, que de alta grandeza
Brotando ramo illustre,
Devendo tanto esmalte á natureza,
Maior augmento, e lustre
Buscais ao sangue egrégio
De cada acção, que obrais, no fasto regio;
Se as fortunadas horas,
Que á minha flauta entrego,
De vós, Senhor, são dignas, as sonoras
Driadas do Mondego,
Vos prometto, que eu veja,
Cheias por mim d'uma amoroza inveja.
De Meandro, e Caistro
Cessarão as memórias;
Do Douro aos Ganges, e do Tejo ao Istro,
As Luzitanas glorias
Levará o meu canto,
Se o pátrio Ribeirão me inspira tanto :
Ouvi do grande Albano
Que bem o nome sòa :
Ouvi, que se no exemplo não me engano,
Alcino vos pregôa :
De vós, Heroe distincto,
As cores tiro, com que a Albano pinto.
208 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

A tarde já cahia;
E o Sol mais temperado
Seu rosto dentro da água recolhia,
Quando n'um verde prado
Salicio se avistava
Com Alcino, que acazo alli chegava.
Distante está do Tejo
O sitio peregrino;
E bem, que a Alcino alraz do seu dezejo
Conduzira o destino
A ver da Corte o estado,
Para o campo outra vez tinha voltado.
Largas horas havia,
Que estavão praticando
Em Laura, e Dinamene : na porfia
De conversa mudando
Salicio assim se avança :
E Alcino de escutallo se não cança.
Sal. Conta-nos, o que ouviste, o que notaste,
Alcino meu, naquella grande Corte
Para onde ha tanto tempo te apartaste.
Explica-nos, Pastor, o como a sorte
Assim se melhorou ; que jà se ausenta
Do nosso campo a guerra, a fome, a morte.
Deos sabe, quanto susto esta tormenta
Fez aqui entre nós, ao ver, que vinha
O inimigo com mão dura, e violenta.
Esses campos d'alcm, dizem, que tinha
Destruído, e arrazado ; sem que nada
Lhe contivesse fúria tão damninha.
Todos se forão pondo em retirada,
Salvando cada qual por modo estranho,
OBRAS POÉTICAS 209

Aquelle o fato seu, este a manada.


Eu, que estava esperando mal tamanho,
Não quiz daqui fugir; porque a pobreza
Me não dá, que perder, choça, ou rebanho.
Tu sabes, que não sei, o que é riqueza;
Que passo aqui contente noite, e dia,
Zombando da ambição, e da avareza.
Nisto agora conheço a primazia,
Que levo aos meus Serranos : elles tremem ;
Eu faço do inimigo zombaria.
Ale. No mal commum, Salicio, todos gomem :
E se tu de fortuna hoje melhoras,
Não escarneças tanto dos que temem :
De melhor condição acazo foras.
Se o lobo matador aqui chegasse
A tingir no teu sangue as mãos traidoras ?
Imaginas, que só se contentasse
Co' a pobreza do fato ? Que somente
Os cabritos comesse, ou os roubasse ?
Disgraçado de ti, que es innocente !
Foras tu, por onde eu andei girando,
Tu viras, o que vai por essa gente.
Tu viras um filhinho soluçando
Pelo Pai, que lhe morre ; o outro vira
Por falta de sustento andar chorando.
Lá vão as sementeiras : que te admiras
Tudo levou o fogo : o campo verde
Foi posto do inimigo á cruéis iras.
Que importa, que este mais devêzas herde !
Que aquelle, mais possua, se no estrago
Cada um á proporção seu tanto perde!
12
210 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
Eu perco mais que todos : porque trago
Apenas o meu fato a salvamento;
Que a mudança me deu este bom pago.
Cuidei achar melhor acolhimento
Nos Pastores da serra ; andei errado
Em deixar deste campo o doce assento.
Depois passei-me á Corte, a ver o estado
Das couzas, como lá se governavão :
Ah ! Que de quanto vi, fiquei pasmado.
Sal. Não te falo no tempo, em que pastavão
Teus gados sobre a serra; eu sei, que tudo
Perdeste, como os mais, que lá se achavão.
Mas depois que passou teu gênio rudo
A amparar-se da Corte é, que eu quizera
Saber, o que lucraste nesse estudo
Ale. Inda que outra ventagem não tivera,
Muitas vezes feliz a minha dita
Em ver o meu Albano conhecera.
Sal. Quem é o teu Albano ? Aonde habita?
Que gênio, condição, ou qualidade
Tanto assim entre os nossos o acredita ?
Não sahe Pastor daqui para a Cidade,
Que em voltando de lá, delle rião conte
Couzas dignas de grande novidade.
Ale. E crês tu, que no valle, bosque, ou monte
Vivirá tronco, ou penha, que algum dia
As memórias de Albano não aponte !
Qual de nós escapara á morte fria ?
Quem tornara a ver mais sua deveza ?
Quem seu gado, ou currais inda acharia?
Se este Pai dos Serranos com presteza
OBRAS POÉTICAS '211

Não acodira a bem do nosso amparo,


A vencer do inimigo a fortaleza ?
Corria ensangüentado o Tejo claro :
Ia levando a espada cortadòra
Tudo, o que se encontrava sem reparo.
Não houve noite, ou dia, instante, ou hora,
Que algum grande successo senão visse,
Ou no ferro, ou na chama abrazadôra.
Miseráveis vaqueiros ! Quem subisse
Sobre aquella alta serra, ah como creio,
Que o coração em lagrimas partisse !
Oh como nada farta o sangue alheio
A aquelle a quem conduz sua maldade,
A que obre sem vergonha, honra, nem freio!
Como se quebra a fé, ou lealdade
Só pela vil cobiça ! Da virtude
Não se faz cazo já, nem da verdade.
Sal. Bem que o teu pensamento nisso estude,
Sempre verás, Alcino, como é certo
Só vive co' a justiça um gênio rude.
Um coração lavado, um peito aberto
Não s be, o que é traição; contente gira
Trazendo sempre o rosto descoberto.
No cortezão somente anda a mentira
Fazendo o seu partido : envergonhada
A honra se acobarda, e se retira.
Ale. Já vejo, que na fraze disfarçada
Caminhas á aceuzar, Salicio amigo,
A tenção dessa gente tão damnada;
Dessa, a quem dão amparo, dão abrigo
Os altos Perinêos, que em nosso damno
212 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Trouxe comsigo o Rhódano inimigo.


Sal. E não tenho razão, para do engano
Queixar-me, quando vejo, descarrega
Sobre nós este golpe deshumano ?
Ale. A razão, com que falas, não a nega,
Salicio meu, quem sabe da amizade
Aonde chega o ponto, onde a lei chega.
Quem approvou já mais a falsidade
Daquelle, que fingindo alegre o rosto
Descobre para o fim a crueldade 1
Mas eu ponho de parte este desgosto;
E só quero louvar aquelle braço,
Que o nosso Portugal em paz tem posto.
Esse, que nos livrou deste fracasso
Com sabia providencia, e zelo pio;
Que eu nunca de o cantar me satisfaço.
Debaixo deste Plátano sombrio
Seu nome entoarei por esta praia,
Até onde se estende o largo rio.
A minha tosca flauta aqui se ensaia
Para com melhor som, melhor cadência,
A Titiro imitar junto da Faia.
Sal. Eu te sigo Pastor; canta a excellencia
Do grande Albano teu; aqui sentado
Inspira-me também essa influencia.
O numero amabeo é concertado;
Quero-te acompanhar; vá de certame :
Tuporás a sanfona, eu o cajado.
Mas lá vem, Melibeo ; justo é, que o chame,
Para louvado ser desta porfia;
Elle do nosso canto faça exame.
OBRAS POÉTICAS 213

Mel. A tempo chego em fim, que não queria;


Pois já mais foi meu gosto em arte, ou prenda
Mostrar, que entre vós outros mais sabia;
• Mas se não decidir esta contenda,
Ao menos prompto estou, para escutar-vos;
Cantai, que tendes já, quem vos atlenda.
Ale. Não tenho medo algum de disputar-vos
A palma entre vós outros; porque venho.
Da Corte, e trago um canto que ensinar-vos.
Nelle se conta o mal, a guerra, o empenho,
Que infestou toda a terra : o estilo é novo,
Mui diverso do nosso, obra de engenho.
Não o sabe cantar qualquer do povo ;
Algum somente cortezão polido
É, que o canta por lá...
Sal. Pois eu o approvo.
Mel. Não eu; que não me entendo co' ruido
De vozes estrangeiras : mas vá feito;
Sempre para escutar applico o ouvido.
Ale. Aqui nesta cortiça ao modo, e geito
Do nosso campo eu a cortei : em tanto
Que eu digo o meu, tu lê o teu conceito;
E acompanha, Salicio, o novo canto.
Ale. Muzas do monte Ménalo, que um dia
Com suave harmonia
Cantastes brando o peito
De Daphne, o Pastor claro,
Melhorando o conceito
Fazei, que o tempo avaro
Só traga na memória
0 nome soberano,
A nunca vista gloria
214 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
Do meu sublime, do meu grande Albano.
Sal. Do meu sublime, do meu grande Albano,
Vereis se não me engano,
Que este monte repete
0 esforço mais que humano;
Aquelle, que compete
Na pompa, e na grandeza,
Ao tronco mais luzido,
Que alenta a natureza,
Que o Ceo tem produzido;
Para ser nestes montes adorado.
Ale. Para ser nestes montes adorado,
Por elle é renovado
Da selva Dodonea
0 oráculo sagrado :
De Némesis, e Astréa
Com tanta segurança
Oh como elle sustenta
A espada, e a balança !
Com providencia attenta
Oh como ampara ao bom, ao mào castiga!
Sal. Oh como ampara ao bom, ao máo castiga
Por elle é bem se diga,
Que torna a idade d'ouro.
A terra sem fadiga
Produz o trigo louro ;
Prodigio, que invejava
De Mantua o Pastor bello,
Quando vio, que brotava
Com provido desvello
O mel dourado dos carvalhos duros.
Àlc. O mel dourado dos carvalhos duros,
Os campos mal seguros,
A nosso beneficio,
OBRAS POÉTICAS 215
Faz, que brotem maduros
Seus fructos já sem vicio :
Elle as fúrias quebranta
Do bárbaro, que vinha
Com avareza tanta,
Que já pízado tinha,
Quanto erguera a fadiga, e o trabalho.
Sal. Quanto erguera a fadiga, e o trabalho,
O abrigo, o agazalho,
Tudo a nós restitue.
A fecundar o orvalho
Os campos continue;
Saia a cortar a terra
0 lavrador afflicto;
Que já fugio a guerra ;
Já se não ouve o grito
Da mizeria, da fome, da penúria.
Ale. Da miséria, da fome, da penúria
Já se desterra a injuria.
O serro, que aos arados
Servira, o troca a fúria
Em dardos aguçados ;
Mas já com melhor sorte
São da vida instrumentos
Instrumentos da morte.
Oh que grandes portentos !
Que arte feliz do nosso grande Albano t
Sal. Que arte Jeliz do nosso grande Albano !
Armada em nosso damno
A gente, que costuma
Uzar do torpe engano,
Porque tudo consuma,
Entrava a ferro, e fogo,
Quanto banhara o Tejo;
216 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Mas desmaiando logo


0 malvado desejo,
Tudo foi confuzão, tudo foi susto.
Ale. Tudo foi confuzão, tudo foi susto ;
Quando no assalto injusto
Se vio pela campanha
O espirito robusto,
Que lá da Pátria estranha
Em nosso auxilio veio;
E mais que a armada gente,
Vence o damno, e o receio,
0 avizo providente
Daquelle Heróe, que o Reino governava.
Sal. Daquelle Heroe, que o Reino governava,
A nós se dispensava
A direcçâo, o acerto :
A tudo consultava,
Vendo crescer o aperto.
Não ha futil empenho,
A que não sirva a idéa,
A que não sirva o engenho :
0 seu conselho enfrèa
Do inimigo o furor, do ferro a ira.

Ale. Do inimigo o furor, do ferro a ira.


Por elle em fim respira
Da Paz no doce laço
0 Reino, que se vira
No fúnebre ameaço :
Ao som do bronze rudo
Jú foge o inimigo :
Tudo se aplaca, tudo
Torna ao socego antigo.
Oh doce Paz! Oh íris da tormenta !
OBRAS POÉTICAS 217
Sal. Oh doce Paz...!
*
Mel. Tem mão, Salicio : attenta
Bem que se escute, ha uma hora, não me agrada
Essa vossa cantiga, tão violenta.
Alguém ha de cuidar, que é fraze inchada
Daquella, que lá se usa entre essa gente,
Que julga, que diz muito, e não diz nada.
0 nosso humilde gênio não consente,
Que outra couza se diga mais, que aquillo,
Que só convém ao espirito innocente.
A fraze Pastoril, o fraco estilo
Da flauta, e da sanfona, antes que tudo,
Será digno, que Albano chegue a ouvillo.
Se Alcino tem lá feito o seu estudo
Nesses versos, que traz, nós cá cantemos
Ao nosso modo; inda que seja rudo.
Sal. Vá feito, Melibeo; é bem pensemos
Em que não desmereça o nosso canto
A pobre condição, com que nascemos.
Ale. Nada, Amigos, me pôde agradar tanto,
Como os versos, que trago de memória,
De que se faz na Corte um grande espanto.
Deos sabe, o que custou, que eu toda a historia
Conservasse de cór : outro não teve
Dentro em tão pouco tempo tanta gloria.
Laurenio quantos dias não esteve
A aprendellos commigo! A bella Anarda
Que empenho por sabêllos me não deve !
Mel. Pois olha tu, Alcino, se não tarda
De acordar-se a lembrança, eu te asseguro,
Vejas couza melhor, que um tronco guarda.
'• 13
218 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Sal. Queres talvez mostrar-lhe aquelle duro


Salgueiro, onde outro dia descreveste
De Amarillis o nome, sempre puro ?
Mel. Não é este o meu verso, não é este.
Ale. Pois é acazo a letra decantada,
Que fizeste ao teu bem, e hontem a leste ?
Mel. Tão pouco.
Sal. É a de Angélica adorada,
Aquella cantilena, que começa :
Onde te esconderás... ?
Mel. Não. É errada
A vossa presumpção : não se arremeça
Tão longe da razão meu desatino,
Que assumpto tão diverso agora peça.
0 verso, que mostrar-vos determino,
É um, que ha poucos dias a esta parle,
Cortou sobre um carvalho o velho Albino.
Cheios d'engenho são, d'idéa, e d'arte :
Inda bem se não sabe o seu assumpto ;
Ou fala com Apollo, ou co' Deos Marte.
Sal. Pois anda, Melibeo ; comtigo junto
Vou ver esse carvalho : anda, caminha ;
Vamos; que já mais nada te pergunto.
Ale Quaze que de seguir-vos eu não tinha :
Pois cá no coração me está batendo,
Que a cantiga não é melhor que a minha.
Mel. Pastores, os que andais lá sobre a serra
Apascentando as pobres ovelhinhas,
A quem vem perseguindo a dura guerra,
Desde a gente distante ás mais vizinhas ;
Se abraza o fogo, se não guarda a terra
OBRAS POÉTICAS 219

Iguais vossas herdades, como as minhas,


Commigo consolai o vosso pranto;
Que eu perco mais que vós, ou perco tanto.
Eu também fui senhor de uma manada,
Que enchia estes currais : o campo amigo
Também me dava a fruta sazonada,
As castanhas, a uva, a pêra, o figo :
Veio (quem crera tal!) com mão armada
Sobre nós o faminto do inimigo;
Tudo a fogo levou; pôz tudo a ferro ;
A mim me coube apenas um desterro.

Desde o Douro ao Mondego não havia


Nem gado, nem curral, que não gemesse.
Tudo vinha arrazando a tirannia
Encoberta na forma de interesse.
Quem de tamanho mal escaparia,
Se o grande Deos do Ceo não protegesse
A gente Luzitana, a gente sancta.
Que para o seu brazão a cruz levanta !

Elle nos concedeo com mão piedoza


Uma alta divindade em nosso amparo,
Que fez segura a sorte duvidoza,
E a todo o nosso damno pôz reparo.
Já fugio a tormenta tenebroza ;
Já resplendece o Ceo sereno, e claro,
Feliz, ó Portugal, feliz mil vezes
0 destino dos povos Portuguezes !
Por esta Divindade entrou a cura
Do contagio fatal, que o Reino via :
A sua actividade é, que segura
Toda a conservação da Monarquia.
Assim como o Piloto em noite escura
Vence com arte, e modo a névoa fria,
220 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Seguindo sempre o rumo; assim se assenta,


Que elle soube guiar-nos na tormenta.
Não sei, como chamar-lhe deva agora;
Sei, que o Deos ha de ser dos Portuguezes:
A quem co' a machadinha cortadôra
Se hão de sacrificar as nossas rezes.
Dia não haverá, instante, ou hora,
Que seu nome não cantem nossos mezes.
Digão uns, que é Apollo, outros que é Marte,
No engenho, no valor, no esforço, e n'arte.
Quem faz fugir a gente Castelhana,
Quem a França também põe duro freio,
Ha de estender a terra Luzitana,
Até chegar além do berço alheio.
O meu gado, se a idéa não me engana,
Ku pertendo levallo sem receio,
Por campos nunca vistos, nem pizados,
Qae estão da verde relva carregados.
Plantarei novas vinhas, onde tenha
0 grosso cabedal, que a Corte estima :
Terei mil sementeiras, com que venha,
A ser maior, que todos os do Lima.
Esta gralha, que canta, é, que me empenha;
Este sinal do Ceo é que me anima :
Tudo serve de agouro; porque em tudo
Anda a minha razão fazendo estudo.
Eu vejo, que por esta Divindade
O mar se vê de frotas opprimido;
Que, sem que do estrangeiro a droga agrade,
Nos dá o Reino pão, dá o vestido :
Tudo fica entre nós; sem que a vaidade
O tenha de outras gentes recebido.
Já não vem a roubar-nos o pirata,
Que daqui nos levava o ouro, a prata.
OBRAS POÉTICAS 221
Não só gira o commercio, que a firmeza
Dos Reinos assegura : premiado
Se levanta com brio, e fortaleza
Do somno, e da preguiça o vil Soldado.
Tudo já é valor, tudo é destreza
No cobarde igualmente, e no esforçado.
Oh quanto pode a direcçâo prudente I
Um forte Rei faz forte a toda a gente.
Ale. Por certo, Melibeo, não me atrevera
A cantar junto a ti, se essa cantiga,
Antes de t'a escutar, ouvido houvera.
Justo parece, Amigos, que se diga :
Não pode competir co'a flauta agreste
Tudo, o que desconhece a idade antiga.
Sal. O canto é tão divino, tão celeste,
Que eu nunca de escutado me fartara.
Oh que couzas tão bellas, que diceste !
De Titiro a harmonia doce, e rara
Assim se imita bem, quando sentado
Ao Deos, que vira em Roma, lá cantara.
Ale. Seja sempre do tempo venerado
0 tronco, onde se imprime esta escritura ;
Para guardar um verso tão sagrado.
Sua rama se estenda sempre pura,
Dando sombra ao cançado caminhante,
Que amparar-se solicito procura.
Mel. Primeiro se hade ver o gado errante
Pastar lá sobre o Ceo ; primeiro a terra
Será de mil estrellas abundante ;
Ale. Primeiro os cabritinhos pela serra
Deixarão de saltar; entre os vaqueiros
0 lobo deixará de fazer guerra;
222 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Sal. Os alamos ao rio sobranceiros


Primeiro deixarão de estar bolindo
Ao susurro dos ventos lisongeiros ;
Mel. Que eu deixe de estar sempre repetindo
Ao som da minha flauta o louvor sancto,
Que de ti, sacro tronco, estou ouvindo.
Sal. Eu sou também contente.
Ale. Eu outro tanto.
Ao ver, que a sombra escura
Os montes já cobria,
A sua choça cada qual procura :
li cheia a fantazia
l>o canto soberano,
Todos cantando vão do grande Albano.
OBRAS POÉTICAS 223

LYSIA
ECLOGA IV

Se é certo, que inda vive a doce avena,


Que chorou Coridon, chorou Amintas,
Tu me tens de escutar, ó Selva amena.
Eu por entre estas sombras mal distinctas,
Ao resplendor da Lua, que apparece,
Quero, que tu commigo o meu mal sintas.
Agora pois que o vento se enfraquece,
Que o susurro do mar está mais brando,
Que o ar se acalma, o campo se entristece;
Inclina o teu ouvido : eu entoando
A minha íraca voz, agreste, e triste,
Estarei minhas magoas recitando.
Dura consolação ! A quem assiste
Um fado tão cruel, outra esperança
Não tem mais, do que a queixa, em que persiste.
Como posso apagar esta lembrança
Daquelle grande bem, que eu discorria,
Que já mais poderia ter mudança!
Quem, fortuna, (ai de mim!) quem me diria,
Que havia de vir tempo, em que faltasse
Aquella doce união, em que eu vivia l
224 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Quando Lisia cuidou, que lhe roubasse


A sorte desigual a Silvio amado,
Silvio, que outro não ha, que mais amasse!
Que ditozo não via o meu cuidado
Na posse de um thesouro, onde segura
Tinha a sorte o meu bem depositado I
Aqui sobre esta penha, onde murmura
A onda mais quebrada, quantas vezes
Me não puz a cantar minha ventura !
Sacrifício lhe fiz das minhas rezes ;
Para elle colhi somente o fructo,
Que o Sol sazona nos dourados mezes.
Tudo, o que leva o campo, eu em tributo
Mil vezes lhe rendi : ah como agora
0 meu rosto não posso ver enxuto !
Deixou-me Silvio; sim Silvio, que fora
Distincto Maioral destas campinas,
Gloria de Lisia, por quem Lisia chora.
Deixou-me : mas por quem ! Se é que inda atinas,
Saudozo coração, nesta tormenta,
Explica de meu pranto as ancias finas.
Deixou-me por aquella, que se ostenta
Como nome de Rica; a que sepulta
Em seu seio os thesouros, que sustenta.
Deixou-me por aquella, que se occulta
Na parte mais distante; porque eu tenha
Inda mais, que sentir na dôr, que avulta.
Ah! E como é possivel, que me venha
Uma constância tal, que, instando a magoa,
A formar minhas queixas me detenha!
Os olhos de saudade razos d'agoa
OBRAS POÉTICAS 225

Que mais hão de fazer, que estar chorando


A semrazão de tão penoza fragoa I
Vós, campos, que me vistes já gozando
A delicia do meu contentamento,
Ide-vos pouco a pouco desmaiando.
Não espcrcis já mais o lnzimento,
Que Silvio aqui vos deu : Silvio vos falta :
De Silvio não ha mais que o sentimento.
Buscou outra campina : outra se exalta
Na gloria de o gozar : ah que em vão geme
Dentro em meu coração magoa tão alta !
Mas que debalde agora a boca treme !
Que debalde se aggrava a anciã minha !
De que contra o meu fado a voz blasfema !
Se a gloria me roubarão, que eu mantinha :
Contra o fado, contra essa, que hoje invejo.
A queixa, a accusação só me convinha.
Infeliz seja sempre o teu desejo,
Oh ingrata inimiga; e a aventura
Não encontres já mais sem magoa, ou pejo.
Teus campos não se cubrão de verdura :
0 dia te amanheça carregado,
A noite sempre feia, sempre escura 1
Consuma a peste vil leu nedio gado ;
Nunca tenhas Pastor, que o guarde, ou zelo
Do lobo, que o procura esfamiado.
Pize o chuvozo inverno, e atropelle
As tuas sementeiras ; leve o rio,
Quantas herdades tens á margem delle.
Nunca te ampare o álamo sombrio
Com suas verdes folhas: tudo seja
Contagio na Pastora, e no armentio.
13
226 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Caia... porém que digo ! A minha inveja


Aonde me arrebata ! E não conheço,
Que ha ma salto preceito, que me reja!
Acazo, quando Silvio não mereço,
Não sei, que elle se ausenta: porque manda
Sobre a vontade sua um alto excesso!
A cazo outra rival elle demanda,
Sem que o destine a lei da obediência,
A lei que o dividio de Lisia branda ?
Pois Silvio falte em fim : ache a influencia
Da estrella mais propicia essa, que agora
Se alenta de meu bem na dura ausência.
Risonhalhe amanheça sempre a aurora,
Serena a noite, o gado não lamente
Sem cura o mal, o damno sem melhora.
Já mais chegue a levar a grossa enchente
Seus fructos carregados; noite, e dia
Vele o cão sobre a ovelha : ande contente.
No monte se oução bailes de alegria;
Não perturbe o socego dos Pastores
Algum agouro mau deave sombria.
Tudo, Silvio, será : que entre os horrores
Da pena, do martírio, da tristeza,
Perdidos chorarei teus resplendores.
Que será de meus campos na pobreza,
Em que me deixas, Silvio ? Tu me davas
Todos os meus haveres, e riqueza.
Tu só os mais Pastores consolavas,
Distincto Maioral com arte, e modo
Tudo compunhas, tudo moderavas.
Por ti vivia alegre o campo todo.
OBRAS POÉTICAS '2'2'i

Ah ! E com quanta dôr nesta lembrança


A calar minhas penas me accommodo !
Esperar já não posso outra bonança;
Que tudo já me falta, ó Silvio amado;
Pois que me faltas tu nesta mudança.
De meu pranto no misero traslado
Vive, Silvio, meu bem : minha saudade
Te dá um testemunho do cuidado
Nesta inscrição, que deixa á eternidade :

SONETO
Guarda, ó tronco, este fúnebre lelreiro,
Que em ti descreve Lisia: saiba a idade,
Que todo o coração, toda a vontade
Dei a Silvio em affecto verdadeiro.
Oh nunca se te atreva o horror grosseiro
De raio algum ! Mas com feliz vaidade
Ostenta sempre a fresca amenidade ;
E em todo o tempo, ó tronco, vive inteiro.
Crescer em tuas ramas veja um dia
De Silvio o nome : Silvio se remonte
Dos Cantores na doce melodia.
Assim dizia Lisia: eis que uma fonte,
Que no seio do tronco se escondia,
De repente saltou, banhando o monte.
228 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

A11UNCI0
ECLOGA V
Frondozo e Alcino.

Fron. Em vão te estás cançando o dia inteiro,


Alcino, em perguntar, que significa
Este, que vês cortar, triste letreiro :
Elle não é debalde: aqui se explica
Tudo, quanto ha de grande, novo, e raro,
Na pobre aldèa, e na cidade rica.
Nada pôde escapar do golpe avaro...
(Diz esta cifra breve) agora entende ;
Que deste dito o assumpto eu não declaro.
Ale. Se o meu juizo o cazo comprehende,
Essa letra, que entalhas, e que admiro,
Com a morte de Aruncio fala, ou prende.
Fron. Ah! Que arrancas um misero suspiro
Do centro de minha alma; o nome amado
Me faz deixar a vida, que respiro.
Ale. Eu bem via, que estava o teu cuidado,
Frondozo meu, lembrando a triste morte
Desse caro Pastor, tão estimado.
Fron. E quando esperas tu, que o fatal corte,
Que de mim separou tão doce Amigo,
Possa romper de amor o laço forte !
OBRAS POÉTICAS 229
Primeiro se verá nascer o trigo
No Ceo; dará primeiro a terra estrellas,
Que tenha esta lembrança algum perigo.
Ale. Triste, e funesto cazo ! As Ninfas bellas
Do pátrio Ribeirão tanto chorarão,
Que inda allivio não ha, nem gosto entre cilas.
Os gados largos dias não pastarão.
E mugindo á maneira de sentidos,
A pelle sobre os ossos encostarão.
Os Mòchos pelas faias estendidos
Enchendo a terra, e Ceo de mil agouros,
Espalharão tristíssimos grasnidos.
Os campos, que té alli se vião louros
Com o matiz vistozo das searas,
Perderão de repente seus thesouros:
Fron. Esses sinais, Alcino, se reparas.
Dizem couza maior, que sentimentos
Consagrados da morte sobre as aras.
Quando ha mostras no Ceo, quando ha portentos
Na terra, algum segredo ha, não sei onde,
Que não é para humanos pensamentos.
Ao meu conhecimento não se esconde
A grandeza do golpe : mas alcanço,
Que a tanta perda a dôr não corresponde.
De te buscar exemplos me não canço;
Só te lembro porém, que o tronco duro
Faz mais estrago do que o arbusto manso.
Ale. 0 que queres dizer, eu conjecturo :
No vime, e no carvalho ha igual ruína ;
Igual a conseqüência eu não seguro.
Aquelle cahe sem damno, este destina
230 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
Fatal estrago a tudo, o que esta posto
Debaixo delle. É isto ? Ora imagina.
Fron. Jove aparte de nós tanto desgosto :
Baste, para avivar nossa saudade,
O ser cortado em flor aquelle rosto,
Contente-se da morte a crueldade
Em nos levar com passo tão ligeiro
Uma tão bella, tão mimoza idade,
Roubou-nos um Pastor, que era o primeiro
Entre os nossos do monte; elle nos dava
As justas leis no campo, e no terreiro.
Elle as duvidas nossas concertava;
E sendo Maioral, por arte nova,
Com respeito o agrado temperava.
De mil virtudes suas nos deu prova ;
Sempre a bem dirigindo os nossos passos.
Oh quanto esta lembrança a dor renova!
Ale Ai! E com quanta magoa nos teus braços
Eu vi, Frondozo meu, que Aruncio esteve
Desatando da vida os doces laços !
Fron. Meu pensamento, Amigo não se atreve
A lembrar-se (ai de mim 1) da mortal hora,
Em que vi acabar vida tão breve.
Quem fora duro seixo, ou bronze fora.
Para animar agora na lembrança
Iquella imagem, com que esta alma chora!
Eu vi, Alcino, eu vi, que na mudança;
Que do caduco a Eterno bem fazia,
A alma tinha cheia de esperança.
Tudo, o que era mortal, aborrecia:
A copia dos seus gados, o cajado,
(Bem que era de ouro fino) em nada havia.
OBRAS POÉTICAS 231
Em vão o molestava o doce estado
Da honra, e da grandeza: a Jove entregue
O espirito seguia outro cuidado.
Mas ai, Alcino ! A voz já não prosegue;
Que tudo, o que a memória vem trazendo;
Receio, Amigo, que a matar-me chegue.
Ale. As Ninfas do Mondego estou já vendo
Descerem para nós com triste pranto.
Ou eu me engano, ou ellas vem dizendo :
Se do lirio, da murta, e do amaranto
Cercada deve ser a sepultura
De Aruncio, a nós nos loca officio tanto.
Nós o creâmos, com feliz ternura.
Dando-lhe o mel, e o leite : a nós nos toca
Mandar o corpo bello á terra dura.
Fron. De outro lado igualmente se provoca
O Tejo (onde elle vio a luz primeira:)
E as Ninfas do centro humido convoca.
A mim só se me deve a gloria inteira
(Falia o soberbo Tejo) eu o demando:
Minha hade ser esta honra derradeira.
Aqui lhe estou uma urna preparando,
Coberta de um cipreste; onde a memória
Seu nome vivirá sempre guardando.
Por mais que vòe a idade transitória.
Nunca se hade apagar aquelle affecto,
Que de Aruncio consagro à triste historia.
Durarás entre nós, Pastor discreto,
Renovando a lembrança de Corino,
Que da nossa saudade é inda objecto :
Elle te deu o ser; tu peregrino
232 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Retrato de seus dotes, consolavas


Nosso desejo, tão constante, e fino.
Aquelle caro Irmão, que tanto amavas,
Aonio, digo, aquelle, a quem devias
Toda a felicidade, que gozavas,
Hoje lamenta teus saudozos dias ;
Hoje chora commigo : eu lhe dezejo
Allivio á tão cançadas agonias.
Ale. Oh! Contente-se embora o claro Tejo
De haver ao mundo dado, quem lhe ganha
Fama, e nome a seu Reino assaz sobejo.
Contente-se o Mondego, que na estranha
Ventura de educallo, deu ao mundo,
Quem lhe soube adquirir gloria tamanha.
O fado, que conhece inda o mais fundo,
Quer, que guarde seu corpo a turva arêa
De outro Rio, mais triste, e mais profundo.
Do Rio, que seu curso não refrêa
Até chegar, onde entra a grande costa,
Que banha do Brazil salgada veia.
Rio das Velhas se chama (se reposta
Buscamos nos antigos, a pintura
Das Dorcades na historia se vê posta.)
Os primeiros, que entrarão na espessura
Dos ásperos sertões, dizem, que acharão
Três barbaras, já velhas, nesta altura.
Fron. Das três Parcas melhor elles tomarão
O nome desse Rio ; se é verdade,
Que ellas a vida humana governarão.
Triste sejas, ó Rio: a Divindade
De Apollo, que em ti cria o amável ouro,
Se aparte do teu seio em toda a idade.
OBRAS POÉTICAS 233
Não sejas da ambição rico thesouro:
Girar se vejão sobre as praias tuas
Os brancos cisnes não, aves d'agouro.
Do inverno as enxurradas levem cruas
As sementeiras, que teus campos crião :
Deixem só sobre a terra as pedras nuas.
Os pobres navegantes, que se fião
Dessas funestas agoas, desde agora
Conheção a traição, que não temião.
Ale. E contra quem, Frondozo, inda em tal hora
Se armão as pragas tuas ! Um delírio
Sc para extremo tal desculpa fora.
Se Jove é quem nos manda este martirio.
Sofframos o seu golpe : ao Pastor bello
Derramemos em cima o goivo, o lírio.
O nosso Ribeirão traz o modello
Do enterro, que dispõe : nós entre tanto
Dêmos a conhecer nosso desvelo.
Envolto o corpo em um cândido manto,
Que distingue de Deos o brazão nobre,
Aqui se oftVece para o nosso pranto,
Em quanto pois o corpo a terra cobre,
Seguindo o teu principio deixa, Amigo,
Que hum voto lhe consagre um Pastor pobre,
Um voto, que se escreva em seu jazigo :

SONETO

Nada pôde escapar do golpe avaro,


Alcino meu: que a Parca endurecida
Corta igualmente os fios de uma vida
Ao pastor pobre, ao cortezão preclaro.
234 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Cresça embora esse tronco altivo, e raro,


Ostentação fazendo mais luzida;
Viva embora entre humilde, entre abatida.
Essa planta, a que o nome em vão declaro.
Tudo hade achar o fim : bem que a vaidade
Em uma, e outra gloria faça estudo,
Nada escapa á fatal voracidade.
Eu, que chego á pensallo, fico mudo;
E só tiro por certa esta verdade :
uc, se Aruncio acabou, acaba tudo.
OBRAS POÉTICAS 235

EULINO
ECLOGA VI

Ao campo alegremente concorria


Da parte mais vizinha, e mais distante,
Dos Pastores do Ebro a companhia ;
A's portas dos currais o vigilante
Perro guardava o bem seguro gado,
Latindo ao resplendor da Lua errante.
Em fogos todo o sitio illuminado,
Tornava clara luz a sombra feia
Do gesto melancólico, e pezado.
Vinhão chegando de uma, e outra aldèa
As flautas sonorozas ; cujo accento
0 campo todo em júbilos recrêa.
Trazia ao mundo o Sol com passo lento
0 dia, em que do Ebro os moradores
Celebravão de Tirce o nascimento.
Tirce, que gloria fora dos Pastores ;
Que naquella amenissima ribeira
Assumpto foi de todos os cantores.
Ninfa, de cuja graça lisongeíra
No venturozo engano Alcemo prezo,
De Pastor se tornou penha grosseira.
Que de um desdém no ingrato fogo accezo
Por mercê foi dos Deozes transformado,
Depois de ser de Tirce vil desprezo.
236 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Este penedo alli assignalado


Era do Ebro a trágica memória,
Da devoção silvestre respeitado.
E da Ninfa cruel aviva historia
Celebravão Pastores, que aprendião
A ter de um peito bárbaro a vangloria.
Um templo para culto lhe erigião;
E ornavão delle a fabrica elegante
Ingratos monumentos, que esculpião.
De Alfêo mostra a parede o curso amante.
Que de Aretuza o cândido thezouro
Segue no cristallino passo errante.
Negando a mâoaFebo, á seu desdouro,
Vê-se em rama o cabello enverdecendo,
De Anfrizo a Ninfa transformada em louro.
Tremolamente ao ar se está movendo
A Semideoza convertida em cana,
Atraz de si o hirsuto amante vendo.
Em fim outras memórias de inhumana
Condição um Pastor destro, e polido
Na' fabrica esculpira soberana.
Já se escutava o musico ruido
Das sanfonas, das flautas, dos cantores,
Em que está todo o campo repartido :
Dispunhão vários jogos os Pastores,
Por prêmio consentindo ao que ganhasse,
Cajados de destrissimos lavores.
Porque melhor o baile concertasse,
Na bella chusma das Pastoras vinha
Antandra, que por guia as governasse.
Era Antandra amais bella; e como tinha,
Mas do que as outras, coração ingrato,
Só em matar de amores se enlretinha.
OBRAS POÉTICAS 237

Soava o canto harmoniozo, e grato,


Entoando em o numero cadente
Memórias do Pastor, desprezo, e trato.
0 baile percebendo tristemente,
Ao longe estava Eulino recostado
Sobre uma penha afflicto, e descontente.
A Antandra amava; e seu maior cuidado
Era Antandra, Pastora, que distante
Vive do campo seu, do seu montado.
Vendo-a presente o desprezado amante,
E não podendo achar benigno effeito
No esquivo coração, chora constante.
Desde o penhasco, em lagrimas desfeito,
Vendo bailar a cândida Pastora,
Que amor atêa em seu rendido peito;
Ingrata Ninfa, diz, se a quem te adora,
Fazes vaidade de ser impia, e dura,
Que vai a uma alma, quanto geme, e chora ?
A tanto chega já minha loucura,
Que hoje é no campo a infeliz noticia
A qualquer, que de mim saber procura.
Só por tornar-te a condição propicia,
É desprezo suave de meu gosto,
Quanto é do campo mimo, ou é delicia.
Entregue sempre a meu fatal desgosto
Vejo vagar (sem nelle ter cuidado)
0 meu rebanho, ao voraz lobo exposto.
Que mais queres, cruel, de um desgraçado,
Que uma alma tendo só, para render-te,
Uma alma a teu rigor tem consagrado !
De meus ais eu pudera aqui trazer-te
Por testemunha toda esta montanha,
Se esperara a ventura de mover-te.
238 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
Mas o teu gênio, que a piedade estranha,
Só prezaria ter esta certeza,
Por dar a teu rigor gloria tamanha.
Conta porém por mais distincta empreza
Um coração, que tem maior vaidade,
Quando mais nobre victima despreza.
Eu clamarei, ó Ninfa, aos Ceos piedade ;
Que pois de Alcemo hoje a memória existe,
Sendo motivo á misera saudade;
Tempo virá, que de meu fado triste
Emendado se veja o influxo escuro;
Que a um fino amor nem inda o Ceo resiste.
Algum penhasco, ou algum tronco duro
Amor fará, que só conserve o nome
De Eulino: porque a Antandra amou tão puro.
Por mais, que a sombra vença, o somno dome
O ardor de uma lembrança, eu te prometto,
Que ouvindo Antandra, o mundo injuria tome.
Não serás tu, idolatrado objecto,
Como já n'outra idade Tirce fora;
Por não pagar de Alcemo o amante affecto.
Entre nós hoje amor se não ignora,
Como naquella mais ingrata idade;
Que a mais tiranna era a melhor Pastora.
Pintava-se modéstia a crueldade,
E se attendia com maior decência,
A que não se inclinava a ter piedade.
Então o ser ingrata era innocencia ;
E ao laço de Himeneo se sujeitava
Uma alma, sem de amor sentir violência.
Hoje mais gloria é ter uma alma escrava;
OBRAS POÉTICAS 239

Hoje o trazer um coração sujeito


É bem, que aquelle século ignorava.
Só de um Pastor se vê o nobre effeito
Em tributar á sua amada bella
Doces obzequios de seu fino peito:
Render-lhe o cordeirinho, que mais zela,
Entre os seus recentais; ter-lhe guardado
0 mimo, em que mais gosto empregasse ella;
Offerecer o leite, o mel dourado,
A fruta saboroza, e a cestinha
De rozas, que colheo no verde prado;
Da sua amada (ai bella Antandra minha!)
Gostoza obrigação he a coroa
Tecer-lhe de uma, e outra rama-zinha ;
Deve ornar-lhe o cajado; e se elle entoa
Entre as Pastoras algum himno, em quanto
Erra o seu gado, o seu amor pregoa.
Mas eu que néscio advirto obzequio tanto,
A quem nada ignorando, do que eu sinto,
Desprezo faz de meu faudozo pranto!
Se só na idéa minhas glorias pinto,
Que é, o que estou sonhando, ou o que pertendo ;
Se a tudo, o que te digo, te estás rindo ?
Oh! Não me vejas sempre estar gemendo.
Ampare-me este alento que a constância
Nos longes da esperança vem trazendo.
Suffoque-se o tumulto de minha anciã;
Se pôde haver em tão fatal tormento,
Quem me encaminhe, Amor, á tolerância.
Não dê mais meu cançado pensamento
Tanto esforço ao pezar : essa inimiga
Veja-te, Amor, cantar o vencimento ;
E os teus triunfos por despojo siga.
240 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

FIDO
ECLOGA VII

Aonde um verde monte


De sombra está servindo á cristallina,
Sonora, e clara fonte
Do Mondego suavíssimo, a divina
Cauza de seu gemido
Misero conduzia ao Pastor Fido.
Depois que o alto cume
Pizara já suspenso, e fatigado,
Porque respire o lume,
Que dentro tem no peito recatado,
Sobre um duro rochedo
Imagem se sentou do horror, do medo.
A'parte logo pondo
O encurvado arrimo, descançando
Na mão a testa, o estrondo
Do vento, que socegue, então rogando,
Ergueo a voz: attento
A ouvillo parou mais brando o vento.
A ouvir seus clamores
Correi, ó penhas, suspendei-vos, agoas;
Que os fúnebres rumores,
Que vão formando de seu peito as magoas,
Neste sitio ferindo,
Em terno som, piedade estão pedindo.
OBRAS POÉTICAS 241
Ouvi; que já começa
Do afflicto peito a ir desentranhando
As justas queixas dessa
Perjura Ninfa; em cujo rosto brando,
Em cujo doce agrado
Amor os seus venenos tem guardado.
Fido. Formosíssima Almena, e não duvido,
Que o ser cruel somente hoje te agrade;
Este cançado, e ultimo gemido
Ouve, e modera um pouco a crueldade,
Daqui donde diviza o triste Fido
0 templo dessa ingrata Divindade,
Te vem a consagrar, pérfida Almena,
Puras victimas não, sim mortal pena.
Aquelle rosto affavel de alegria,
Que invejarão mil vezes as estrellas,
De mudo horror se cobre, e de agonia;
Que tu de todo o enlutas, e atropellas.
A fé, que me juravas algum dia,
Tudo estragado está porque daquellas,
Promettidas um tempo, firmes glorias,
Só vivem (ai de mim !) tristes memórias.
Aquella branca mão, em que apertando
Tomavas minha mão, se não te esquece,
Que ditas não me esteve assegurando,
Que agora tudo, infiel, se desvanece!
Ora o Ceo, ora a terra provocando,
Costumavas jurar; e te parece,
Que tudo na memória inda não dura ?
Ah Pastora inimiga! Ah vil, perjura !
Dizias-me : verás, ó Fido amado,
Primeiro produzir esta montanha
Estrellas, e piscer o manso gado
14
242 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Sobre estas agoas, onde o Sol se banha:


Verás esse alto monte levantado
Tornar-se em valle humilde ; e mais estranha
Couza ainda verás, eu não duvido,
Primeiro, do que Almena ingrata a Fido.

Nada se tem mudado : o ser inteiro


No Ceo, na terra, e monte inda se adverte :
Só teu peito infiel ao lisongeiro
Influxo de meu damno se perverte.
Estranha couza é só ver, que o primeiro
Antigo amor em ódio se converte ;
Que se trocarão, pérfida, os amores
Em iras, em violências, em rigoivs.

Oh quem esta traição imaginara,


Que as promessas falsissimas não crera !
Mas se o immenso amor me não cegara,
Certamente, perjura, eu o fizera.
Que dor não é o ver, que a Ninfa cara
Aos braços de outro amante se rendera !
Que dor não é, que magoa, que tormento I
Ahi Que falta valor ao soffrimento.
Com que impaciência (oh Ceos!) estou notando.
A' torpe laço ingratamente unida
Aquella gentil face, aquelle brando
Gesto alegre de Ninfa tão fingida.
Eu a vi nos meus braços respirando
0 alento, que animava a minha vida ;
Fabrica hoje cruel da alheia sorte
0 instrumento fatal da minha morte.

Que bem por mais horror da pena minha


Parece, que me falia aquelle monte 1
Que bem esta corrente aqui vizinha
OBRAS POÉTICAS 243

Me está pedindo, que meus males conte !


Mas se ella a gloria vio, que então eu tinha,
E se tu me invejaste, ó clara fonte,
Medi por ella a magoa de perdella :
Vereis, qual é maior, se a pena, ou ella.

Ah Pastora! Um tão puro sacrifício


Tu desprezas assim ! Quem te assegura,
Que não sabe emendar um precipício
0 horror de minha grande desventura ?
Se tem a sorte misero exercício
N'uma vida infeliz, que pouco dura,
Eu lhe quero roubar tanta victoria :
Seja de Fido a lastimoza gloria.

Disse, e sobre a alta penha


Erguendo-se, da fúria arrebatado,
No rio se despenha,
Que de horror, ou de susto então parado,
Vê o pallido amante,
Entre as ancias da morte agonizante.

Ao successo acodia
Algano, que de longe o divizara :
Apressado corria;
Mas a cega ambição da Parca avara
De seu golpe violento
Já fazia despojo o doce alento.

0 Pescador Algano,
Que a cauza deste mal não ignorava,
Alli de tanto damno
Um funesto padrão em letras grava;
E nellas deixa impresso
0 triste cazo, o infeliz successo :
244 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

SONETO
Ninfas, que sobre a espuma prateada
Do Mondego suavíssimo cantando,
Brandas queixas ao Zefiro estais dando,
Com que fica a campina magoada;

Esta pira, que vedes levantada


A'memoria daquelle Pastor brando,
De fúnebres ciprestes coroando
Deixai eternamente venerada.

É de Fido, ó Deidades : bem notória


A'troncos, plantas, mármores, e flores
Tem sido neste campo a sua historia.

Vós, que as iras gemeis, sentis rigores,


Fazei somente assumptos da memória
De Fido as tristes lagrimas, e amores.
OBRAS POÉTICAS 245

POLIFEMO
ECLOGA VIII

O' linda Galatéa,


Que tantas vezes, quantas
Essa humida morada busca Febo,
Fazes por esta arêa,
Que adore as tuas plantas
O meu fiel cuidado : já que Erebo
As sombras descarrega sobre o mund'.
Deixa o Reino profundo :
Vem, ó Ninfa, a meus braços ;
Que nelles tece Amor mais ternos laçi..-.

Vem, ó Ninfa adorada,


Que Acis enamorado,
Para lograr teu rosto preciozo,
Bem que tanto te agrada,
Tem menos o cuidado,
Menos sente a fadiga, e o rigorozo,
Implacável rumor, que eu n'alma alento.
Nelle o merecimento
Minha dita assegura;
Mas ah! que elle de mais tem a ventura.
Esta frondoza faia
A qualquer hora (ai triste !)
Me observa neste sitio vigilante :
14
246 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Vizinho a esta praia


Em uma gruta assiste,
Quem não pôde viver de ti distante.
Pois de noite, e de dia
Ao mar, ao vento, as feras desafia
A voz do meu lamento:
Ouvem-me as feras, ouve o mar, e o vento.

Não sei, que mais pertendes.


Desprezas meu desvelo;
E excedendo o rigor da crueldade,
Com a chama do zelo
O coração me accendes :
Não é assim cruel a Divindade.
Abranda extremo tanto;
Vem a viver nos mares do meu pranto :
Talvez sua ternura
Te faça a natureza menos dura.

E se não basta o excesso


De amor para abrandar-te,
Quanto rebanho vês cobrir o monte,
Tudo, tudo offereço ;
Esta obra do divino Alcimedonte,
Este branco novilho,
Daquella parda ovelha tenro filho,
De dar-te se contenta,
Quem guarda amor, e zelos apascenta.
OBRAS POÉTICAS 247

LAURA
ECLOGA IX

Em fim, bellos amores,


Doce consolação dos meus sentidos,
Trocarão-se em rigores
As finezas de Laura: ancias, gemidos
Occupão hoje a parte, que algum dia
A imagem alentava da alegria.

Sem gloria o peito amante


Se vai rendendo a um fúnebre delírio,
Sentindo a cada instante
Afflicta a idéa do fatal martírio.
Oh quanto afflige, Amor, oh quanto cança
De um bem perdido a mizera lembrança !

Buscando o dezafogo
Ao mal vehemente, subo a um alto monte;
Do qual divizo logo
As bellas margens dessa clara fonte,
Que em pródiga corrente, em fértil vèa,
Anima os verdes campos de Amalthéa.

Alli sobre um rochedo,


Próprio sitio da minha desventura,
Que de horror, e de medo
0 tempo veste, a sombra desfigura ;
248 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Cujo eterno segredo não altera


Racional creatura, ou bruta fera ;
Sentado tristemente,
Muda estatua da dòr, em vivos eccos
Convoco ternamente,
Ao som de meu suspiro, os troncos seccos
As mudas penhas, as mimozas plantas,
Que me venhão ouvir em magoas tantas:

Vós, lhes digo, sonoras,


Doces agoas do plácido Mondego,
Que vedes as t-aidotas
Faces gentis do meu amado emprego;
Que vendo estais meu terno rendimento :
Pois vos duplica as agoas meu lamento ;
Vós, troncos generozos,
Imagens insensíveis de meu damno,
Que a laços enganozos
Talvez fostes arrimo, em vosso engano
Podeis, ó troncos, já ter alegria;
Que a um infeliz alenta a companhia.
Vós, mudas penhas, triste
Figura da constância de meu peito,
Onde o retrato existe
Daquelle objecto, por quem já desfeito
Meu fino pranto desperdiço agora,
Mármore duro, penha vividòra;
Ouvi-me vós, vós me escutai ; que eu louco
Busco attenção nos brutos insensíveis.
Não é meu mal tão pouco,
Que não possa fazer em vós possiveis
A compaixão, a magoa, e a piedade,
Tanto pôde da dòr a actividade.
OBRAS POÉTICAS 249
Comvosco, ó penhas duras.
.Mil vezes o meu bem communicava.
Tu, Rio, inda o murmuras :
Seu nome nesta penha se gravava :
Alli conserva ainda no horror bronco
o nome de meu bem aquelle tronco.
Eu mesmo venturozo
Neste retiro á muda soledade
Gommuniquei gostozo
Aquella singular felicidade,
Que, para dilatar minha anciã fina,
Só no fim me mostrou, o que é ruína.
Dizia-vos : eu amo
A mais bella, a mais rara gentileza;
Por quem tanto me inflamino,
Uue todo o bem o coração despreza :
Corresponde-se prata n meus ardores :
Feliz sou eu, felizes meus amores,
Inveja eu de Cupido,
Emulação gentil dos Astros ella:
Em zelos incendido
Gemia Amor; chorava cada estrella
0 seu desprezo : mas oh triste fado !
Vingou-se Amor ; o Ceo se tem vingado.
De victima profana
Manchou-se o altar sagrado : da firmeza
Cedeo a deshumana,
A perjura, a inconstante gentileza:
E forão suas vozes (oh tormento !)
Fáceis lisonjas do ligeiro vento.
Affavel, carinhoza,
(Mas que digo !) infiel, falsa, fingida,
250 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Já procura enganoza
Outro Pastor : e a seu favor convida
Um néscio amante, a quem talvez espera
Na gloria, que hoje goza, a ruina fera.

Para desvanecer-te,
0 enganado amante, bem discorro,
Que se chego a deverte
Inteira fé das penas, em que morro,
Verás dessa inimiga a vil mudança :
E inda eu de ser feliz tenho esperança!
Eu me vi levantado
Ao mais soberbo cume dessa dita;
E medi despenhado
A distancia, (ai de mim !) que era infinita;
Como podes julgar, que advirto louco
Na mesma gloria, que perdi ha pouco.
Essa mesma, que agora
Branda te acolhe, te recebe affavel,
Já me entregou uma hora
A bella mão, dizendo : nunca instável
Tu me verás, Pastor: a experiência
Mostrou bem desigual correspondência.
Mais feliz te contemplo,
Do que fui; porque tens a minha sorte ;
Onde seguro exemplo
Tema a tua ventura: o peito forte
Oh não a creia não; que eu quando a cria,
Mil vezes cada hora me mentia.
Quem emendar pudera
Osacrilego impulso da vontade,
Quando rompi a austera,
Segura condição da liberdade,
OBRAS POÉTICAS 251

Sempre izenta de amor! Mas que resisto


Só o fizera, não te havendo visto.
Goza, goza esse emprego,
Que tanto o teu cuidado te desvela ;
É digno, não o nego;
Desempenha o teu gosto : mas, ó bella,
Ve, lhe não guies a fortuna escura
Pelos passos da minha desventura.
Ah barbara belleza,
Produzida nos montes de Ampeluza !
Nasceste entre a fereza
Da Mágica Medéa, ou de Meduza?
Bebeste, dize, a natureza insana
Da Libica serpente, ou tigre Uircana ?
Mas que exemplares trago
De injusta tirannia ? O tigre fero
Talvez o brando affago
Humilde reconhece : eu desespero,
Ingrata, que, por ser mais feia a culpa,
Um exemplo se quer te não desculpa.
Repara convencida
Naquella amante vide que enlaçada
Este tronco convida
A" mais suave união : vê apertada
A débil planta, como se fizesse
Em cada folha uma prizão, que tece.
Nada verás, perjura,
Que imagens da constância, e da firmeza
Te não proponha : oh dura,
Vil condição da femenil belleza !
Tu só, tu só estragas com jactancia
0 natural dictame da constância.
252 CLÁUDIO .MANOEL DA COSIA

Tudo tem destroçado


Da vil mudança a semrazão injusta :
E eu triste, cançado
Da violenta paixão, quanto me custa,
Quanto, quanto a lembrança faligada
De uma dôr tão profunda, e tão pezada !

Quizera (ai doce emprego !)


Que nunca despertara o estrondo infame ;
E a pena, a que me entrego,
Já mais te aceuze, ingrata, já mais clame ;
Porque no esquecimento da mudança
Conheças, que inda é minha esta vingam a.
E vós, as que me ouvisles.
Mudas penhas, em vosso escuro seio
Sepultai estes tristes
Eccos, que a minha dòr expulsar veio :
Não deis sinal algum de minhas magoas,
Caducos troncos, e mimozas agoas.
OBRAS POÉTICAS 253

ANGÉLICA
ECLOGA X
Frondelio, e Umbrano.
Fron. Valha-me o Ceo; e como estou pasmado
De ver quam brevemente
Um Pastor, que mostrava tanto avizo,
Que era aqui respeitado
Da nossa pastoril, sincera gente
Pelo mancebo de melhor juizo,
Em louco transformado, o campo todo
Admira, de tal modo,
Que já fogem de ouvir seu triste enredo
Alguns de compaixão, outros de medo !
Ah grande Umbrano ! E quem entenderia,
Que a desatino tanto
Uma alma conduzia Amor injusto !
Quem eu golpe creria
De tal vigor, de tal esforço, quanto
Neste Pastor se emprega a tanto custo !
A' margem desse lago macilento,
Pallido, e sem alento
Anda girando este infeliz amante,
Absorto sempre, e sempre delirante.
Que loucuras, a idéa fatigada
Não persuade a um triste
Na saudoza lembrança do perdido !
A alma, que estampada
Traz a imagem do bem, que mal resiste
Da infausta pena ao fúnebre ruido !
Deste Pastor tão bello bem sabemos,
Com que finos extremos
*• 15.
254 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

De Angélica adorava o doce encanto :


A sua ausência é cauza de seu pranto.
Mas bem que ouvir ingratos desatinos
Mais parece impiedade,
Que compaixão, que alente humano peito,
A ouvir os peregrinos
Desconcertos me chego, que a saudade
Dieta em seu coração, de amor desfeito.
Agora que tem posto
Dentro do lago os olhos, e o, desgost.0
No semblante se veniais declarado,
Chegar-me quero a. ouvir, o seu cuidado.
Umbr. Não são agoas uainiozas
Estas correntes, não : eu nellas vejo
As desfolhadas cozas
Das faces demeubam: o meu desejo
Com enganoza tinta
Esta gloria nas agoas me não pinta.
Vós, olhos, que serenos,
Representais as lúcidas estrellas,
Que suaves venenos
Alimentando estais nas faces bellas;
Venenos, que bebidos
Sempre hidropicos tem os meus sentidos;
Enredados cabellos,
De donde Amor me despedio as seitas,
Fostes a meus desvelos
As correntes mais doces, c inquietas;
Que em mãos de suavidade
Me prendem para sempre a liberdade.
Choras ? Ou te estás rindo ?
Se choras, a saudade te agradeço;
Se te ris, eu sentindo
Fico o mal desta auzencia, que padeço.
OBRAS POÉTICAS

Quem fora premiado


Em tão illustre fé, em tal cuidado!
Aqui vagando vivo
A' margem deste lago ; aqui discorro
Confuzo, e pensativo,
Buscando sempre a cauza, porque morro :
0 seu divino rosto
0 Ceo, por consolar-me, aqui tem posto.
Dentro desta corrente
Habita a minha Angélica; o semblante
Rico, e resplendecente,
Aqui vejo nesta agoa a cada instante.
Em Ninfa transformada
Aqui quiz eleger sua morada.
Mil vezes no despenho
Me lembra Alfèo rendido, e namorado ;
A seguillo me empenho ;
E me impede, não sei, se Amor, se o Fado :
Buscara a sua sorte;
Mas delle não invejo mais que a morte.
Consolação pezada
É seguir este allivio; senão gozo
A face delicada,
Termo de meu destino venturozo :
Quanto o ver me atormenta,
Que o mesmo, que possuo, se me auzenta!
Nesse lago do Averno
É bem sabido, como um desgraçado
Vive em tormento eterno,
Só por lhe ser (oh dura lei!) negado
0 licor da corrente,
E o pomo, que se mostra flore cento.
Retrata o meu martírio
De Tantalo infeliz a desventura:
256 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Qual lhe chama delírio,


Qual excesso da dor 1 Mas se a loucura
Vem tão discretamente,
Louco me espere sempre toda a gente.
Fron. Não ha, nem pôde haver mais desconcerto,
Que o deste infausto amante:
Quam grande é o poder da fantazia!
Julgar, que tem tão perto
Aquelle bem, que vive tão distante,
Delírio é só da misera porfia.
Imagina presente o bem amado
0 triste desgraçado.
Ah ditoza loucura! Pois na idéa
Trazes aquelle alento, que recrêa.
Porém oh que delírio a alma alcança!
Como nunca o destino
Nos conduz para o bem de uma ventura !
Pacifica bonança
Encontrara este amante peregrino,
Se obrasse uma hora igual a sorte escura :
Mas para mais desgosto
Todo o prazer na idéa está disposto:
E seu tormento infiel por derradeiro
Tanto é mais duro, quanto verdadeiro.
A noite vem cahindo : eu me retiro :
Pois querer dar socego
A quem tem no seu erro o seu descanço,
Que é tirania, infiro,
Só natural a um coração tão cego,
Que ignora o desconcerto, que eu alcanço.
Que triste anda um amante,
A quem traz seu cuidado delirante !
Pois para ser maior sua agonia,
Tem todo o seu prazer na fantazia !
OBRAS P O E T I C S 257

DALIZO
ECLOGA XI

Dalizo, Algano, Agrário e Eulina.

Dal. Deixa-me : não admitto, Algano amado,


Socego algum no mísero accidente
De tão profunda dor, mal tão pezado.
Como queres, que chegue a estar contente.
Vendo tão mallograda aquella idade
Do meu Pastor, do meu Salicio ausente !
Tu sabes, que nos laços da amizade
Mais estreita, mais fina, e mais segura,
Única em nós havia uma vontade :
Do gênio á suavidade, e a brandura
Me conformava eu tanto, que violência
Me faz em não levar-me a morte dura.
Que fico eu cá fazendo nesta ausência,
Se haver não pôde allivio, que conforte
A grave dor da minha impaciência!
Errou o golpe bárbaro da morte:
A inveja bem mostrou no desacerto,
Podendo em duas vidas ser mais forte.
Ai doce Algano meu ! E que concerto
Pôde achar o discurso naufragante
Deste damno fatal no golfo incerto !
258 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
Roubou-me a Parca de meu peito amante
Um bem tão predozo, que na terra
Não espero ver outro similhante.
Sabes, que entre os Pastores desta serra
Era o meu bom Salicio o mais amado
De todos, quantos a montanha encerra.
Era do velho Alfemo respeitado;
Elle nos recordava cada dia
De Salicio as acções, gênio, e agrado.
Quando entre nós algum certame havia.
Este sábio Pastor com arte, e modo,
Os duvidozos cazos rezolvia
Em concorrendo o nosso campo todo,
Era Salicio a flor: nesta lembrança
A soffrer tanto mal não me accomodo.
Em todo o baile, em todo o jogo, ou dança.
Que convidasse o gênio da floresta,
Elle excedia sempre a esperança.
Alg. Não sei, Dalizo meu, que lei é esta,
Tão dura, tão cruel, que em nosso damno,
Na parte mais mimoza é mais molesta.
lia poucos dias, que ao Pastor Montano-
Lhe morreu uma ovelha, a mais formoza,
De quantas lhe tragara o lobo Hircano.
Bem sabes, que entre todas mais vistoza
Era dos dous novilhos a parelha,
Que eu tinha; e deu-lhe a peste venenoza.
Esta de cor dourada desde a orelha
De inveja aqui trazia os mais Pastores:
Morreu uma ; e ficou outra mais velha.
Bem vemos nós do campo os moradores.
OBRAS iPOEUCAíS 259

Que ao anno, em que é Ceres amais fecunda,,


Dando mais abundância aos lavradores,;
Quando o terreno fertílmente inunda
Na copia das searas carregadas,
Onde o agricultor seus dotes fuitda ;
Então, ou vem as agoas mais pezadas,
Ou vem o Sol ardente, e .tudo-morre,
Ficando as plantas pelo chão proBiraslíis.
Esta disposição, se se discorre,
Dalizo, com acerto,«com prudeneia,
Que é só mistério oeculto, á idéa occorpe ;
Mistério, que não vê mortal sciencia,
Que não alcança humana conjectura.
Por lei da inescrutavel providencia.
Dal. Algano, assim será : porém que cura
Queres, que tenha um golpe tão^iolento,
Que me roubou tão breve uma ventura !
Se alheio de si mesmo o entendimento,
0 que vê, não compréhende, nena alcança.
Como hade agora discorrer attento !
Eu vejo, Amigo, a mísera lembrança,
Da que eu imaginava, gloria minha,
Prostrada a baze infiel da segurança.
Que fosse eterno tanto bem conviaha:
Ou que durar pudesse mais idade,
Segundo os raros dotes, que em si tinha.
Para que nos vem dar felicidade
Jove, o grande senhor da humana vida,
Se hade acabar com tanta brevidade!
Entregar-nos uma alma enriquecida
De prendas tão gentis, só para effeito
Pôde ser de lograda, e possuída.
260 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Alg. Quanto nesse discurso erra o conceito


E sempre nessa crédula ignorância
O desengano achamos mais estreito.
Chamarmos nosso bem é vã jactancia;
Que entre nós os mortais só é preciozo
O inestimável dote da constância.
Tudo é de Jove : em throno luminozo
Elle as maiores graças nos dispensa;
Se a nós se inclina o rosto seu piedozo.
Dos seus raios despede a chama intensa ;
E quando nos parece, que é castigo,
0 faz por nosso bem, não por offensa.
Bem lhe podemos crer o rosto amigo;
Inda quando em vingança do innocente
O imaginamos nós mais inimigo.
Este segredo a nós não é patente :
E se o fora, faltara a Divindade,
E o privilegio a Jove Omnipotente.
Não cabe na mortal calamidade
Exceder tanta mísera fraqueza,
E menos nesta vil rusticidade.
Aqui notamos só, como a fereza
Do lobo, animal feio, monstro indigno,
Offende a ovelha, que a innocencia preza.
Vemos aquelle gênio, mais maligno,
Que está cheio de fructos abundantes,
Entre todos havido por mais digno:
Não são as suas prendas tão brilhantes,
Que offusquem o maior merecimento
De outros, que vimos abatidos antes.
Jove, rme lá criou o Armamento.
OBRAS POÉTICAS 261

A certos Astros deu mais resplendores,


Deixando a outros menos luzimento.
Dal. Discorres muito livre : as tuas dores :
0 teu pezar, a tua pena, e magoa,
Desconhece estes mizeros horrores.
A pena inconsolavel, que na fragoa
Da memória me augmenta a desventura,
Mal se suffoca em dous dilúvios d'agoa.
Ai Salicio infeliz! Ai morte dura !
Como pôde esquecer tua lembrança,
A quem te consagrava fé tão pura !
Minha saudade tomará vingança
Dessa pérfida, infame tirannia,
Que de affligir os homens não se cança.
Aqui entre estas penhas á poríia
Hei de chorar, Amigo, a tua morte,
Thé se abalar a mesma serrania.
Será de minha dor, será tão forte
Aquelle impulso, com que eu fira as brenhas,
Que as mesmas feras á piedade exhorte.
Os Faunos nesses concavos das penhas
Hãode escutar meu fúnebre gemido,
Clamando em vão por ti, que ouvir me venhas;
Que deixes esse throno appetecido,
Aonde estás sentado em teu descanço ;
E me seja teu rosto concedido ;
Que venhas escutar com gesto manso
Aquella minha lira descontente,
Que tanto em affinalla hoje me canso;
Confessavas um tempo, Amigo auzente,
Que o meu canto sonoro, c lizongeiro
Só abrandava a tua magoa ardente.
15
262 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Mas ah 1 que nesse throno derradeiro,


Neste centro de luzes mal ouvido
0 meu canto será tosco, e grosseiro.
Quebrar te quero, em vão de mim possuído,
Instrumento infeliz : que me aproveita
Da torpe voz o dissonante ruido !
Ah ! Se foras aquella voz eleita,
Para trazer do Tartaro a formoza
Deidade, cujo pacto Jove aceitai
Se foras tão feliz, tão poderoza,
Que outra vez repuzesses nesta esfera
Do meu Salicio a alma venturoza!
Não acabara a verde primavera
Destes campos : nas arvores, nas flores
Senão vira a campina tão austera.
Ao domínio dos rústicos Pastores
Obedecendo a cabra, a ovelha, o touro,
Pastarão, dando gosto aos guardadores :
Não mostraria tudo infausto agouro ;
Os Gênios não andarão todos tristes ;
Febo não escondera os raios d'ouro.
Alg. No teu lamento, Amigo, em vão persistes:
Porque não é Salicio inda o primeiro,
Que do Lethe ás ribeiras baixar vistes.
Em cada faia em fim, cada salgueiro
So lê um epitafio a qualquer morto :
Discorre, e assim verás o campo inteiro.
No commum sentimento ache conforto
0 mal communicado ; o teu gemido
Assim do allivio se recolha ao porto !
OBRAS POÉTICAS ^53

Dal. Ai Algano... ! porém se o meu ouvido


Senão engana, eu ouço d'esta parte
Um canto harmoniozo, e mui sentido.
Alg. Eu estava também para avizar4e
Da minha suspensão : daqui mais alto
Podemos ver, se queres levantar-te.
Dal Ai que divizo já de alentos falto
0 velho Agrário, e a consorte amada,
Eulina, a quem rendera o sobresalto !
São de Salicio os Pais: oh lei pezada
Da morte crua ! Que fatal desgosto
Se vê na face de ambos magoada!
Elle no Ceo os olhos tem já posto ;
Ella de grave magoa combatida
Abaixa á terra o peregrino rosto.
Alg. 0 funesto espectaculo convida
A romper, caro Amigo, orpeito em pranto,
E a consumir em seu tormento a vida.
Não ha pena maior, nem dor, quett\nti
Possa aggravar a humana desventura.
Quem vio golpe maior, maior qucbrartto !
Affogão-se meus olhosdeternura,
Meu coração em mil pedaços feito
Chora o golpe cruel da sorte dura.
Ouçamos o seu canto : mas que peito
Pôde haver tão constante, e endurecido !
Eu não me exponho alance tão estreito.
Adeos, Dalizo : em vão compadecido
Me atrevo a coBsolar-te ;;antes discorro,
Que vim buscar mais cauza a meu gemido.
264 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Dal. Também, Amigo, eu a seguir-te corro :


Mas que faço infeliz! Onde pertendo
Esconder esta magoa, com que morro !
Já os amados Pais a voz erguendo,
Vão consolando a pena : os seus pezares
Também co' a minha dor irão tecendo.
Que bem de compaixão ferindo os ares,
Acompanhar o espirito saudozo
Sabem do pranto seu nos ternos mares!
Que fado tão cruel, tão rigorozo !
Agrar. A mizera fortuna
Não maldigas, Espoza ; que a suprema
Sagrada mão não sofre a dor blasfema :
Ignorante, e importuna
Accuzas de impiedade,
Dispoziçõesda eterna Divindade.
Vive a humana fraqueza,
De Júpiter sugeila ao raio activo :
E de seu braço o golpe executivo
Empregando a fereza,
Bem que o effeito descobre,
A providencia summa nos encobre.
Salicio, o nosso amado,
Penhor da casta fé, querida Eulina.
Eu bem vejo, consorte peregrina,
Que era do nosso agrado
Digno objecto : mas este,
Que o Ceo nos rouba, foi penhor celeste.
É livre aos lavradores
Recolherem do campo a sua planta:
Ninguém disso se admira; nem se espanta ;
E só nas nossas dores
OBRAS POÉTICAS 265
Nos confunde, que leve
Jove, o que é seu, e em nós guardado teve.
De Jove era creatura
Salicio, o nosso filho ; Jove o guia
A' eterna luz, á eterna Monarquia;
Aonde em paz segura
Aquella alma ditoza
Zombe da nossa sorte lastimoza.
Eulin. Jamais contentamento,
Alegria, ou prazer será loucura,
Que eu espere na minha desventura ;
Porque perdido o alento,
Na falta de Salicio,
Só lhe faço da pena sacrifício.
Sacrifício violento,
Se bem que enternecido; pois de todo
A chorar esta perda me accommodo :
Sem que do meu tormento
Outro allivio pertenda,
Mais que o termo fatal desta contenda.
Que vença o meu marlyrio,
Só espero; e lhe cedo voluntária
Qualquer constância, ou farça temerária,
Que em meu néscio delírio
Me persuada alento,
Sobre tão porfiado sentimento.
Agrar. Que debalde procuro
Consolarte, querida, se conheço,
Que delira também no mesmo excesso
0 meu tormento duro !
Ah Salicio ! Ah memória !
Faltaste-me ; faltou-me toda a gloria.
266 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Eulin. Em quanto na floresta


Der alma a primavera ás tenras flores ;
Em quanto o secco outono aos lavradores
Com mão nunca molesta
Conceder carregadas
As searas, que o Sol deixou douradas.
Agrar. Em quanto na montanha
Pela fresca manhã a aurora bella
Espalhar os orvalhos, que congela ;
E na verde campanha
Brotarem soccorridas
As plantas do calor amortecidas.
Eulin. Em quanto neste monte
Se ouvirem os balidos saudozos
Dos tenros cabritinhos, e sequiozos
Buscando a pura fonte
Deste sitio sombrio
As' ribeiras descerem desse rio ;
Agrar. Não verás, filho amado,
Adorado meu bem, caro Salicio,
Não verás este amante sacrifício
Torpemente apagado,
Por despojo violento,
Com que se orne o altar do esquecimento.
Eulin. Verás a minha pena,
0' sempre inestimável, filho amado,
Agitando o rumor do meu cuidado :
Até que em paz serena
Presente á tua vista
Na tua amada companhia assista.
OBRAS POÉTICAS 267

AMARILLIS
ECLOGA XII

Salicio, Frondelio, Amarillis e Feliza

A fúnebre harmonia,
Dissonante lamento
Dos estragos de Amor, escuta um dia,
Adorada occazião de meu tormento ;
E em mísera figura
Verás do teu Pastor a desventura.
Dalizo sou, que canto
De Salicio a desdita ;
A ver, se deixo pela voz do pranto,
A minha magoa duramente escrita,
Tomando a sombra alheia;
Por não fazer a magoa inda mais feia.
Em um bosque sombrio,
Funesto sitio, escuro,
Levado do seu louco desvario
Salicio, a quem o duro,
Ingrato fado havia
Roubado em Amarillis a alegria ;
Apascentava o gado
De si tão esquecido,
Que todo pelas serras espalhado,
Qual ficava perdido,
268 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Qual entre as garras era


Despojo triste de maligna fera.
Em quanto o Sol guiando
Para o berço das agoas
0 luminozo carro vai girando,
Coberto o rosto, e cheio em fim de magoas,
Em si mesmo attendendo,
Assim falando vai, assim dizendo.
Sal. Aonde vou guiando o meu rebanho
Pobre de mim sem tino, e sem cautela,
Por tão escuro bosque, sitio estranho !
Como perdida a minha amada bella,
Me conduz meu tormento á esta estância,
Se apenas o segredo habita nella !
Acazo o desafogo de minha anciã
Acharei entre os troncos, e penedos,
Que são imagens da maior constância!
Acazo estes sombrios arvoredos
Poderão divertir a infausta historia,
Dos, que Amor me teceu, tristes enredos !
Mal feito, que o tumulto da memória
Recobre algum socego, quando lida
Com as lembranças da passada gloria.
Tão viva n'alma a dôr deáta ferida
Está, que hade igualar da eternidade
A larga serie, a duração comprida :
E o pensamento meu, que se persuade
De querer apagar da idéa a chama,
Cada vez mais se cobre de saudade.
Não se desmaia assim, de quem bem ama,
O extremoso affecto; o fogo activo
Com immortal ardor o peito inflamma.
OBRAS POÉTICAS 269

Leva da morte o golpe executivo


Para os campos do Elizio a luz inteira
Do fino amor, que n'alma arde tão vivo :
Lá dizem, que se estende uma ribeira;
Por onde andão as almas vagabundas,
Seguindo a sorte ingrata, ou lisongeira :
Tu, brando Rio, mansamente inundas
Os férteis campos, onde a opposta via
0 passo inclina ás regiões profundas.
Neste Paiz saudozo a luz do dia
Perpetua sempre, sempre vigilante,
Põe em desterro as sombras da agonia.
Se pois só lá desçança um triste amante,
Se nem ainda a mesma morte apaga
0 voto fiel de um coração constante ;
Como é possivel, que eu á idéa traga
0 delírio infeliz, de que alguma hora
Allivio tenha minha infausta chaga !
Morra minha loucura : que eu já agora
Seguir-te espero, ó peregrino enleio
De um coração, de uma alma, que te adora.
Perdido o tino, e da razão o freio
Torpemente estragado, me disponho
A viver sempre de pezares cheio.
Toda a gloria, e prazer terei por sonho ;
E crendo só na minha desventura,
Já no meu damno a ponderar me ponho.
Dar não quero a meu mal outra mais cura,
Que trazer sempre impresso na lembrança
Todo o passado bem, toda aventura.
Vamos pois recordando esta mudança ;
270 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

E não me esqueça do suave alento,


Que achei de amor na plácida bonança.
Quero esse bem lembrar ao pensamento.
Em cujo ser depositado eu via,
Cruel Amor, o teu contentamento.
Vamos desentranhar da cinza fria
As imagens do gosto, que apagadas
Tem do destino a dura aleivozia.
Que peregrina em tudo...! Ah ! que embargadas
São minhas vozes de um Pastor, que chega,
E vem talvez seguindo-me as pizadas.
Quanto commigo é a fortuna cega !
Pois até este bem da soledade,
Somente porque é bem, gozar me nega.
Debalde é esperar, que haja piedade;
Que vai da sorte o mizero progresso
Abrindo sempre o seio da crueldade.
Quem será ! É Frondelio : eu o conheço ;
Importuno Pastor, inda que amigo :
Já não posso esconder-me : eu lhe appareço.
Fron. Valha-me o Ceo, Salicio ! que inimigo,
Que ingrato, que maligno influxo é este,
Guetanto é contumaz em teu castigo !
Não é precizo, que eu te manifeste
A forçoza razão, que me acompanha,
Para o sentir : ha muito, que a soubeste.
Tem assombrado a toda esta montanha
Este semblante teu tão carregado,
Coberto de uma dòr, e magoa estranha.
Vaga sem guarda o teu faminto gado,
OBRAS POÉTICAS 271
Feito dos lobos innocente preza,
Pelos agrestes matos espalhado.
Foges de todo o trato ; e até te peza,
Que um amigo os teus passos vá seguindo ;
Por saber a razão dessa tristeza.
Fala, dize; que tens ? Que estás sentindo ?
Mas tu dás um suspiro, e emudecendo
Co'a face sobre o peito vás cahindo !
Explica-te commigo ; eu estou vendo,
Que esperas, que os teus males nos declare
De alguma grande dòr estrago horrendo.
Sal. Primeiro a doce vida dezampare
Este fraco despejo, que hoje anima,
Que eu de outro algum, senão de ti, me ampare
Se o ver-me, caro Amigo, te lastima,
Arranca-me esta vida; que eu não quero
Um bem, que sem ventura não se estima.
Eu morro ; eu enlouqueço ; eu dezespero :
E só da morte dura o horror maligno
É. Frondelio, a piedade, que hoje espero.
Já me entrego de todo ao desatino :
Pois a tanto pezar, a tanto susto
Allivio algum não ha, bem que imagino.
Nada faço em penar : a tanto custo
Quero morrer, Amigo ; arranca, arranca
Este meu coração : é justo, é justo.
Frond. Se a corrente da magoa não se estanea.
Pela falta talvez do desafogo,
Por negar-te a piedade a porta franca ;
Commigo estale embora o ardente fogo,
272 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Que recatas zelozo : ao doce affeito


Menos activa a magoa verás logo.
Sal. Quero fallar, Frondelio; mas desfeito
O coração em lagrimas, desmaia
Balbuciante a língua, a voz no peito.
Fron. Cobra socego um pouco; e em quanto raia
0 Sol já menos quente nessa esfera,
Para fallar-me o teu valor ensaia.
Sal. Custozo me será ; mas ouve, espera,
Escuta, meu Frondelio : ah quanto é duro
Sentir de uma lembrança a lei severa!
Perdoa-me, Amarillis : eu te juro,
Que amor sim, não a falta de decoro
Rompe de meu silencio o voto puro:
Eu te respeito em fim, te amo, e te adoro,
Conheces a Amarillis,
A Pastora mimoza,
Mais bella do que Almena, e mais que Filis,
Amarillis formoza,
Meu ídolo adorado,
Filha de Alfemo, gloria deste prado ?
Lembras-te, quantas vezes
Convidando a floresta
As bellas noites dos dourados mezes,
A pompa manifesta
De seus dotes se via,
E cada vez mais bella parecia ?
Acordas-te de quando
N'uma noite daquellas
Uma flor para o jogo ella tomando,
Colhida entre as mais bellas,
Fingindo, que eu ganhara,
Risonhame entregou a Ninfa clara ?
OBRAS POÉTICAS 273

Aqui, Frondelio amado,


0 giro principia
De meu ingrato, meu injusto fado :
Tomou naquelle dia
Por sua empreza a sorte
Lavrar na minha gloria a minha morte.
A inveja macilenta,
Filha do monstro indigno,
Começou a espalhar com mão violenta
0 bárbaro, o maligno
Contagiozo veneno,
Que hoje é cauza das magoas, em que peno.
No bosque prado, e valle,
Não ha, quem de Salicio
Depois daquelle dia já não falle :
Daquella flor no indicio
Já conhecido o engano
Se faz universal para meu damno.
A romper-se começa
Pouco e pouco o segredo,
Em quanto a bella Ninfa, que travessa
De nada tinha medo,
Nutria os meus amores
Com o doce alimento dos favores.
Ah quem, Frondelio, agora
Lembrar-se não pudera
Daquella dita, aquella enganadora
Gloria, que detivera
Toda a minha ventura
Sobre a baze gentil da formozura!
Mas se está meu tormento
Tam patente, e tam claro,
Quero lembrar o meu contentamento.
'274 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
Cegamente reparo
Em dar maior valia
No decoro ao pezar, do que á alegria.
Rocolhião-se os raios
Ao centro caistallino
Desse eterno Planeta ; a seus desmaios
Succedia o benigno
Influxo de Diana,
Emula de Amarillis soberana.
A estas horas, quando
Ao somno se rendia
0 velho Alsemo, a Ninfa o véo tomando,
A um jardim descia ;
Aonde alegre Flora
Espalha as agoas, que uma fonte chora.
Tu, dize, tu mimoza,
Sonora fontezinha,
Que regas a campina delicioza,
Que píza a Ninfa minha,
Tu dize aquella gloria ;
Se inda a guardas impressa na memória.
Dizei-o vós, ó plantas,
Vós o dizei, ó flores ;
Que vós testemunhastes vezes quantas
Propicia á meus amores
Amarillis, a bella,
No vosso campo pareceo estrella.
Mas não digais ; e antes
Discretamente attentas
Observai sempre os votos vigilantes;
Que as leis da dôr violentas
Tem de todo estragado
No recato infeliz de meu cuidado.
OBRAS POÉTICAS

Pois que a dita alcançaste,


Ouve, Frondelio, a pena;
Tu mesmo o meu pezar desafiaste ;
Teu respeito me ordena,
Ou a amizade tua,
A que te faça narração tão crua.
Esta gloria gozava,
Amigo, quando a inveja
Aos ouvidos de Alfemo se avançava :
E como ver deseja
Vivamente o seu damno,
No descuido da Ninfa tece o engano.
Comprehende o delicio;
Accuza a ligeireza;
E com impio rigor lhe tem perscrito,
Que em um cárcere preza
Pague a culpa, que eu tenho
De a ter rendido ao amorozo empenho.
Vè ; considera, e dize,
Com quanta dòr, com quanta
Sopportará minha alma este castigo !
Lembrar-me gloria tanta
Perdida em um instante!
Ah que dòr tão cruel a um peito amante 1
Estar na minha idéa
Pintando a tirannia,
Que opprime a bella Ninfa 1 A alma cheia
De angustia, e de agonia
Em tanto sentimento
Suffoca-se no horror do pensamento.
Como hade estar aquella,
Formoza como o dia,
Cerrada em sombra escura ? Como a bella
276 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Imagem da alegria,
No fúnebre apozento,
Dormirá entre os sustos do tormento t
Ora a fineza minha
De cobarde accuzando,
Ora a piedade, que em minha alma tinha,
De ingrata condemnando ;
Tudo opposto em meu damno,
Convertida a esperança em desengano !
Ah! Quando em tal discorro,
Frondelio meu, a vida
Me enfada, e me aborrece; expiro, e morro
Entre a confuza lida
De tão profunda pena,
Que injusto Amar em meu marlirio ordena.
Vê tu, quanto hei perdido,
E quanto em fim me resta !
De Amarillis o encanto appetecido,
A minha dôr funesta,
A gloria, a dita, o gosto,
A desventura, a magoa, e o desgosto.
Fron. Na verdade, Salicio, o teu successo
Notável compaixão me tem devido.
Sei, onde chega o bárbaro progresso
De uma dôr na lembrança do perdido :
Porém não devo desculpar o excesso
A tempo que parece o teu gemido
Algum remédio tem : vê, discorramos;
Podemo-lo applicar, se acazo o achamos.
Sal. Pertendes, que nos laços da esperança
Outra vez, caro Amigo, a vida ponha !
Queres, que entre as ruinas da mudança
Para novo tormento me disponha !
OBRAS POÉTICAS 277

Hcide ser, como aquelle, que a bonança


No meio da tormenta acazo sonha,
E os olhos desatando o somno amigo,
Se acha infeliz no centro do perigo ?
Já não creio, que pôde haver ventura
Para o pobre Salicio decretada ;
Salvo se vém com mascara perjura
A desgraça impiamente disfarçada:
Eu, que em tantos triunfos vi segura
A gloria, que hoje é sombra, é fumo, é nada,
Posso esperar, que torne a minha dita?
Quem tão grande loucura inda acredita !
Fron. Se em laço de Himeneo o velho Alfemo
Te une á bella Amarillis, eu confio,
Que passando um extremo á outro extremo,
Não terás de culpar teu fado impio.
Sal. Ah ! Que nessa lembrança, Amigo, gemo ;
Pois é néscia loucura, é desvario
Aspirar um Pastor humilde, e pobre,
A' ventura de um bem tão rico, e nobre.
0 que faz o tormento mais dobrado,
E ver a lei sagrada do decoro,
Impondo-me um silencio tão pezado
No que soffro, suspiro, peno, e choro :
Eu um triste Pastor, triste o meu gado ;
Ella Pastora de um divino coro;
Não pôde haver igual correspondência;
Sempre temo os excessos da violência.
Mas se Amor é das almas harmonia,
Que o peito escuta, o ouvido não entende,
Esperar posso ainda, que algum dia
Seja pago este amor, que assim me accende,
Mas em quanto a soberba tirannia
i. 16
278 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

De Alfemo os meus gemidos não attende,


Como allivio terei, como descanço ?
Como andarei com gesto alegre, e manso .
Fron. Sitio sei eu, de donde me parece,
Que supposto Amarillis preza esteja
Pôde ser, se de ti se não esquece,
Que inda chegue á escutar-te, e que te veja.

Sal. Guia-me tu, Frondelio : qual é esse


Venturozo retiro, oculto á inveja?
Eu quero vèllo : vamos, vai diante.
Fron. Vem ; e não te demores um instante.
Vês este valle? Para aquelle assento
Fica um pequeno oiteiro ; e se diviza
Vizinha a elle a choça, o apozento
De Alfêmo, de Amarillis, e Feliza.
Sal. Sagrado sitio, a meu gemido attento,
Se é, que amparas propicio, a quem te piza,
Mostra a minha Amarillis: dize aonde
Amarillis, meu bem, em ti se esconde.
Fron. Que mais queres ? Aquella é a belleza
Da tua amada Ninfa : o seu semblante
Coberto está de fúnebre tristeza.
Sal. Triste vem que pesar a um pobre amanl
Alguém vio, como eu vi, a gentileza
Daquelle rosto, mais que a luz, brilhante,
Mais bella, do que a roza matutina,
Engraçada, gentil, e peregrina!
Fron. A seu lado Feliza está sentada ;
Ambas na historia triste discorrendo :
Talvez de teus amores magoada
A formoza Amarillis vai dizendo.
O LI AS TO ÉTICAS 279
Sal. Escuta: nesta estância retirada
Irei, o que ambas dizem, percebendo;
Ah ! Que um ai Amarillis deu sentida !
Triste fadiga 1 Lastimoza vida !
Amar. Mal haja a feminil loucura minha.
Que de um homem na falsa ligeireza
Imaginou firmeza.
Mal haja o cego monstro, que me tinha
Na louca fantazia debuxado
Tão bello o meu cuidado ;
Para comprar meu desengano agora
Nas mãos da experiência roubadora.
Habitar esta sombra, ver o dia,
Cheia a alma de horror, de assombro o peito,
Trazer sempre sujeito
0 coração á vil melancolia,
' Oh quanto me atormenta, Amor, oh quanto !
Ah misero quebranto,
Fiscal; de meu amante rendimento !
S•') porque soube amar, sinto o tormento.
Estas erão, Salicio fementido,
As lagrimas, que eu vi banhar teu rosto !
Artificio disposto,
A contrastar o Nume desabrido
De minha condição ! Ah ! se eu não fora
Tão crédula á traidora,
Lisongeira efficacia de teu pranto,
Engenhoza em meu mal não fora tanto.
Quantas vezes, ingrato, esta montanha
Girando por buscar-me á calma, ao frio
Com generozo brio,
Vieste, para empreza tão estranha !
Quantas a noite te deixou no prado !
280 CLÁUDIO MAMOEL DA COSTA

Quantas o rosto amado


Da Aurora te encontrou, pérfido amante,
A's portas desta choça vigilante!
Que inventos não achaste peregrinos,
Para me contrastar! Que cedro, ou faia,
Que ao tempo não desmaia,
Não guarda ainda os sonorozos himnos,
Que na bem temperada, acorde avena,
Para tecer-me a pena,
Entoaste depois em meu tormento,
O veneno occultando no instrumento !
Fel. Amarillis, o tempo tem mostrado,
Que a palavra do amante apenas dura,
Em quanto da ventura
Corre propicio o giro accelerado.
Verás, Irmaâ, mudar-se aquelle outeiro
De seu lugar primeiro,
Que se veja nos homens algum dia
Segura á fé, que um delles prometia.
Sal. Onde, Frondelio meu, me lias conduzido '
Que ao escutar da minha amada a queixa,
Tão magoado me deixa
A constante razão de seu gemido,
Que ao passo, que igualando o seu estrago
Lhe recompenso, e pago
O martírio, que o fado lhe destina,
E' maior, que o seu mal minha ruina.
Quero, que ella me veja : eu lhe appareço.
Que importa aventurar-me a seus rigores,
Se chegão minhas dores
Do ultimo golpe ao lastimozo excesso 1
Se hei de morrer distante á sua vista,
Onde é força resista,
OBRAS POÉTICAS 281

Por lograr este bem, da morte ao laço ;


Vá-se o temor, o susto, o embaraço.
Frond. Chega-te muito embora : arrependido
Já de minha piedade bem me peza,
De que a tua tristeza
Encontre aqui motivo mais crescido.
Mal haja compaixão, que enganadora
Me persuadio, que uma hora
Quartada a tua pena, quebraria
(Presente o bem, que adoras) a porfia.
Amar. Se a fantazia acazo não me engana,
E a luz já menos firme no Orizonte,
Vizinho a este monte
Vejo um vulto chegar de fôrma humana.
Fel. Se de meu triste horror não é pintura,
Nelle se me figura,
Amarillis, prezente o teu Salicio.
Amar. Será: oh que funesto precipício !
Sal. Silício fou, querida; não te espantes;
Se 'bem,, que de meus males a aspereza,
Qual nunca a vil fereza
Igualou da fortuna nos amantes,
Mudado tem de todo a humana fôrma :
E este corpo se informa
Da magoa, dos pezares, da amargura,
Das sombras, da afflição, da desventura.
Tão outro em fim me vejo, do que fora,
Que uma estatua da pena me contemplo,
Dos martírios exemplo
Me proponho á vingança; esta alma ignora
0 uzo de razão ; se bem, querida,
Ao passo, que duvida
13
28'2 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Minha alma, se do corpo o moto ordena,


Conheço, que só vivo para a pena.
Vivo só para a;pena; e também vivo
Para sempre te amar, Ninfa formoza.
Consulta esta amoroza,
Alva estampa de Amor; no fogo activo
Verás a tua imagem, que respeita
Tão pura, e tão perfeita
A minha adoração, verás prostrado
Ateu desprezo duro o meu cuidado.
Amar. Inda a meus olhos vens, pérfido amante,
As traiçoens escondendo em teu gemido?
Tu, mostro fementido,
Tu, coração mais duro que diamante,
Escândalo, e horror destas montanhas !
Nas ásperas entranhas
Da Hyrcania o humor primeiro achar pudeste,
Onde a fereza indomita bebeste.
Crês, que inda, ingrato, o cego dezatino
De meu primeiro amor me tem cerrada
Na illuzão adorada
De acreditar-te verdadeiro, e fino?
Vens privar-me do allivio, que ainda gozo
No desterro penozo, '
Sendo força, que allivio considere,
Quando ver-te, cruel, já mais espere !
Vens protestar finezas ? Que esperança
Tão delirante, e louca desordena
A face tão serena
Dessa tibieza tua ? Vai, descança,
Segue o socego teu; deixa, que eu triste
Na magoa, que me assiste,
Deva á piedade tua o grande excesso
De escuzar-me este horror, com que faleço.
OBRAS POÉTICAS '283

Sal. Não venho, amada, não ; porque tyranno


Fiscal de teu martírio me imagines ;
Só para que me ensines,
A vencer de meu fado o deshumano,
Ingrato giro, venho; da firmeza,
Da fé, que guardo illeza,
Eu venho assegurar-te a chama activa,
Mais fina, cada vez, mais pura, e viva.
Amar. Vai-te, inimigo, vai : o dezemparo.
Em que viva me tens, morta me deixa :
Verás, que a minha queixa
Fora de mim não busca outro reparo.
0 desengano meu, que me acompanha,
Será de tão estranha,
Tão inflexível sorte ultima cura.
Fora de mim não quero outra ventura.
Desta só breve luz, que me permitte
(Por melhor ver a sombra macilenta)
Um Pai, que me atormenta,
Afflicta gozarei, pondo limite
Neste occulto retiro ao meu cuidado.
Memórias do passado
Entrada não terão neste apozento,
Habitação da sombra, e do tormento.
Fel. Ausentou-se Amarillis : ah! Que errado
A contrastar, Salicio, se aventura
De uma paixão tão dura
A posse, que em seu peito tem tomado !
Mal haja o monstro cego; que mantinha.
Irmã querida minha,
Teu enganozo passo; onde tão crua
Vejas a face da desgraça tua.
Mas em quanto o volúvel movimento
Dessa Deuza inconstante não descança.
284 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

A' rápida mudança


Me conformo do giro seu violento.
Já agora seguir quero o curso ingrato
De seu ligeiro trato ;
Se pôde ainda o fado pór baliza
Aos cazos de Amarillis, e Feliza.
Sal. Onde foges, cruel? Onde, adorada,
Bellissima occazião de meu gemido,
Occultasessa face delicada?
Em que tenho, Amarillis, delinquido?
Porque fazendo aggravo da fineza
Me ordenas um rigor tão desabrido ?
Foi crime o adorar tua belleza?
Seria : mas o Ceo só é culpado
N'um delicto. (ai de mim!), que não me peza
Elle deixou em ti recopilado
De seus astros a face peregrina;
A pompa de seu rosto prateado.
Elle por influencia nos destina
A adoração de um bem, cuja luz pura
A liberdade em cárceres domina
Se a minha estrella pois infausta, e escura
Me conduz a teus olhos, destinada
Victima de tão rara formozura;
Aos Ceos hade chamar minha anciã irada;
Porque dando-me amor tão peregino,
Me ordenarão fortuna tão pezada.
Injusto, ó Ceo, commigo te imagino :
Ou não fora Amarillis tão querida,
Ou fora mais feliz o meu destino:

Mas se era todo o bem da minha vida


OBRAS POÉTICAS 285

Aquella rara idéa da belleza,


Aquella formozura tão crescida;
Como injuriando o obzequio da fineza;
Inda resiste meu cançado alento
Aos assaltos da pérfida fereza!
Quero encurtar da vida o passo lento,
desgraça igualando, que Anaxarte
Testemunhou no fúnebre instrumento.
Terás, bella Amarillis, terás parte
Na minha ingrata sorte : eu o consinto
Pela gloria, quejenho de adorar-te.
Frondelio meu, do triste labyrinto,
Em que já suffocada está minha alma,
Besgata este despojo tão distincto.
Nesta, que os membros gira, mortal calma,
Já nada me consola; nada quero,
Mais que em fé deste Amor render-lhe a palma.
Fron. Socega, meu Salicio; eu ainda erepos,
Que daquella que ves, ingrata, e dura,
Possas ver o semblante menos fero.
Do tempo a direcçâo branda, e madura
Tudo sabe mudar: a natureza
É varia; e em variar sempre é segura.
Amarillis, que barbara despreza
0 teu suspiro agora (eu o discorro),
Hade um dia ceder dessa aspereza.
Sal. Ah! Que pede meu mal outro soccorro
Mais prompto, mais ligeiro : eu imagino,
Que te contenta, Amigo, o ver, que eu morro.
Sim, meu Frondelio, sim: que onde tão fino
De Amor se atêa o fogo, outro concerto
Não ha mais, do que um cego desatino.
286 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Quando não foi de Amor no golfo incerto


A caixão, o delírio, e a loucura,
O norte, que conduz ao desacerto !
Apenas escapou da força dura
De Amor a liberdade que anda atada
A direcçâo de uma prudência pura.
Jove, o senhor da esplendida morada,
Deixa do eterno Olympo a estância amena.
E deixa a Divindade abandonada;
De Europa, Danae, Leda, e mais Almena
Vê, como foi despojo aquelle raio,
Que a soberba de Encelado condemna.
Em quantos desatinos faz ensaio
Aquelle activo iucendio, que nos peitos
Imprime Amor com um mortal desmaio.
Gira esses campos; vê os seus effeitos
Tão raros, que estampados na memória
Nunca do tempo se verão desfeitos.
Mas esta"de Amor barbara victoria
Hade crescer mais peregrina, e rara
Na que pertendo dar-lhe, immortal gloria.
Tudo já me roubou a sorte avara:
Nenhum bem eu espero já, perdida
A melhor gloria, que o meu peito amara.
Aqui quero acabar, Frondelio, a vida,
Dando novas memórias, que este monte
Respeitará na idade mais crescida.
Girando Ecco saudoza este Orizonte,
Eu espero, que ainda em rouco accento
A minha infausta historia ao mundo conte.
Horrorizando a todo o pensamento
OBRAS POÉTICAS 287
Vivirei; aos amantes desatinos
Mil desenganos dando cm meu tormento.
E trazendo em lembrança os peregrinos
Excessos de um amor, no bosque inculto
Serei assumpto a números divinos.
De hirsulos Faunos no retiro occulto
Permittida a saudoza canlilena.
Logrará meu amor perenne culto.
E tu, por desafogo á minha pena,
Em quanto meu espirito tornado
Em cysne vòa á região serena;
Ao triste caminhante encommendado
Um padrão erguerás compadecido,
Naquelle monte agreste, e descalvado.
Nelle fique por ultimo esculpido :
Aqui jaz... (diga assm a cifra breve)
Salicio, por amante perseguido :
Foi infeliz: seja-lhe a terra leve.
Isto dizia, quando
Já desmaiado o alento,
Nos braços de Frondelio descançando
0 pezo triste, em fé do sentimento,
Apenas um gemido
Despedio na lembrança do perdido.
Então o Sol ausente
Aos pouzos convidava;
Já de pastar a relva florescente
O seu rebanho cada qual chamava ;
Frondelio era um penedo,
Triste, mudo, pasmado, absorto, e quedo.
288 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

SYLV10
EGLOGA XIII

Silvio e Algano.

Ag. Que é isto, Silvio? Aqui tão solitário


A sombra deste freixo! Já não vejo
Na tua companhia o amado Agrário,
Pastor tão bello, que no fresco Tejo
O repete a saudade a cada instante,
Por onde quer, que gire a vista errante,
Valles correndo, atravessando serras !
Como também da nossa companhia
Tu, a quem tanto amamos, te desterras,
Com tão triste, e fatal melancolia,
Que tudo já teu mal tem estranhado,
Os Pastores, o monte, e o mesmo gado!
Tão differente estás, tão outro admiro
O teu gênio, Pastor, e o teu aspecto,
Que cuido, neste fúnebre retiro
Do fado injusto o bárbaro decreto
Te hade usurpar a vida, se entregando
Toda a alma ao sentimento, em ocio^brando
Não divertes a magoa: e se allivia
Qualquer pena, que a um misero atormenía,
Do amigo, que lhe assiste, a companhia;
Aqui me tens, Pastor, commigo alenta
Essa dòr; bem que a vejo tão profunda,
Que temo que este allivio mais confunda.
OBRAS POÉTICAS 280
Que mal, ó Silvio, foi tão penetrante,
Que este penhasco immovel da constância
Pôde abalar? Que dòr ha, que quebrante
Um peito, aonde nunca a mortal anciã,
O cuidado impaciente, a magoa afflictu.
Entrar puderão ? cuido, que exquisita
Causa tens para tal : se é que a funesta.
Dura ausência daquelle Pastor caro
Teu coração amante assim molesta,
Não chores, não, ó Silvio: pois reparo,
Que em todos nós geral é a saudade:
E o mal commum allivio persuade.
Não eras aquelle, que occupando
Entre os Pastores o logar primeiro,
Em doce estilo os versos entonando,
Te fazias ao monte lisongeiro!
Que de vezes as arvores, e os montes,
As duras penhas, as sonoras fontes,
Correndo atraz do canto, que entoavus,
Te vimos attrahir, sendo verdade
Então, o que tu mesmo nos contavas
Da harmoniosa, e cadente suavidade
Do Musico feliz, que já houvera;
Cuja voz os Delfins render soubera!
Agora já dos versos esquecido,
Que alternaste contente, só lembrado
Da insopportavel magoa do sentido,
Tão entregue te vejo a teu cuidado,
Que já não sôa o lírico instrumento :
Antes alli de um choupo corpulento,
Como se elle de tédio te servira
Na tosca rama o vejo estar pendente.
É tu (ai triste ! ) como se ferira
Teu coração um intimo accidente,
I. 17
290 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Confuso estás, pasmado, mudo, absorto,


E menos vivo ainda, do que morto!
Que tens, Pastor ? A causa me declara.
Se da minha amizade emfim te fias ;
De tão grande tristeza eu desejara
Dar-te todo o prazer; e se porfias
Em ir dobrando a dòr, maior excesso
Tens na imaginação ; eu te confesso,
Que daqui não me aparto, em quanto a dura
Paixão, que te maltrata, e te exaspera,
Me não matar também. Ouve; procura
Suavizar, Amigo, a pena fera;
Ou conta-me se quer: na mesma historia,
Que aviva a dòr, diverte-se a memória.
Sil. Quem se não tu, Algano,, quem pudera,
Se não tu, que os meus passos sempre alcanças,
Achar-me nesta soledade austera,
Onde me conduzio entre esperanças
De allivio não, mas sim de cruel morte,
Do incerto fado o duvidoso norte!
Aqui estava eu só; e se podia
Haver algum prazer, que ainda lograsse
Na desigual fortuna, eu te diria,
Sem que nisso o teu trato desprezasse,
Que nenhum outro fora; mas somente
Seria o estar só, e não ver gente.
Mas já que tuvieste, e pôde tanto
Commigo a tua supplica, a corrente
Suspenderei um pouco ao largo pranto ;
Em quanto rompo a dòr. que o peito sente.
Sabe, Pastor Amigo, que me custa
Dizer-te a minha queixa : mas se é justa
Esta expressão, escuta o desafogo,
Que entre os largos espaços da saudade
OBRAS POÉTICAS 21*1

Dcscobrio o marlyrio ; e só te rogo,


Se alguma compaixão te persuade
Este horroroso, mísero progresso,
Culpa a causa, desculpa-me o excesso.
Querendo lisongear-me por taes modos,
Tu mesmo á aggravar vens a ferida.
Que importa ser geral a magoa em todos,
Se em quem mais ama, a pena é mais crescida!
Agrário sim de todos era amado ;
Porém de mim foi quasi idolatrado :
A qualquer hora, ou fosse noite, ou dia,
Nos vias sempre juntos: a freqüência,
0 cuidado, o desvelo, e a porfia
De um grande amor é certa conseqüência.
Se Agrário ao monte alguma vez faltava,
Também de Silvio a ausência se notava.
Fosse de amor segredo, ou sympathia,
Que influe cada estrella na creatura,
Vi-o uma vez ; e desde aquelle dia
Larga amizade em nós se fez segura.
Podes de seu amor ter por certeza,
Que em mim quasi venceo a natureza.
Um gçnio me assistia solitário
Até então de sorte, que somente
0 doce trato do fiel Agrário
Me fez communicavel entre a gente.
Entre todos vivi; mas occupado
De Agrário era somente o meu cuidado.
Como não pôde haver bem tão seguro,
Que o não estrague a barbara mudança,
No mar incerto do destino escuro,
Tornou-se horror a plácida bonança.
Interpôz-se uma ausência, com que abrindo
Oc aminho á saudade, consumindo
292 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Esta constância foi, que me animava;


Que tu me louvas tanto : já de todo
Eu, que do fado nada receava,
A arrastar o seu carro me accommodo,
Prostrado já, desfeito, e destruído,
0 templo, que á vaidade tinha erguido.
Alg. Bem vejo, Silvio, a causa do tormento
É justa : eu sei, Amigo, que a amizade
Não se atreve a abrandar-te o sentimento!
E é offensa o allivio, que persuade.
Mas se nos longes vês de uma esperança
O bem, que choras, ó Pastor, descança;
Que se a dita não pôde estar segura,
O mesmo é a desgraça: igual Astréa
Ao peso da balança mede, e apura
Tanto, o que afflige, como o que recrêa.
Aqui tens o instrumento; da-me o gosto
De ouvir os versos, que ahi tens composto.
Sil. Na casca deste tronco, onde feria
Mais livremente a ponta deste estilo,
Ao meu Agrário uns versos escrevia ;
Duro tormento; e tu queres ouvillo !
Mui differentes são do antigo estado;
É triste o estro; o gênio é magoado.
Não são, os que Fileno me ensinava,
A louvar de Amarillis a divina
Belleza, que outro tempo me arrastava;
São porém os que a magoa hoje me ensiuu
A lisongear meu mal: mas se tu quere;;,
Ouve; que eu leio os tristes caracteres.
Caro Pastor ausente,
Que o teu retrato deixas na lembrança,
Por lograr-te presente,
Quem na memória mais tormento alcança;
OBRAS POÉTICAS 2!)3

Com que contentamento eu te asseguro


No centro d'alma o meu affecto puro!
Tão louca é, e tão cega
De a-nor a natureza, que sabendo,
Que o allivio, a que se entrega,
0 seu maior martírio está tecendo,
Gostoso o segue, e adorando o estrago
De ver, que o logra, vive muito pago.
Qual aspide se affigura
A lembrança do ausente, que lhe assiste;
Pois entre a pompa escura,
Como entre a flor, o seu veneno triste
Se forja, se alimenta, se fabrica;
E em vez de allivio, morte communica.
A morte, digo : oh antes
0 encurvado ferro separara
O alento ; mas constantes
Os espíritos (pena inda mais rara!)
Como alegres, do mal atormentados,
Na mesma pena vivem obstinados.
Estes discursos fôrma,
Não a razão (que toda está perdida);
A dòr, que se conforma
Com a causa, trazendo repelida
A lembrança do bem, é, que discorre ;
E a idéa de outro bem lhe não oceorre.
Contempla as prendas raras
De um Pastor, que na rústica palestra
Tu, monte, assinaláras
Entre todos dictineto, quando a destra
Barra jogava, ou quando mais activo
Corria atraz de um Tigre fugitivo.
Adverte o gênio bello,
Com que o geral agrado concilia,
294 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Podendo ser modello


De quantos dons a natureza cria:
Lembra-te do sonoro, acorde accento,
Com que entoava o métrico instrumento.
Porém onde me guia
A cançada memória, se conheço,
Que esta minha agonia
Na mesma fragoa, onde os allivios peço!
Destrua-se a memória: acabe embora
Lembrança, que me afílige a toda hora.
Alg. De teu canto foi tal a suavidade,
Que enchendo de prazer este arvoredo,
Tornou alegre a mesma soledade,
Que estava de horror cheia, e mais de medo.
Moveo-se aquelle tronco de piedade;
Abalou-se este rústico penedo;
Não será de teu mal o rigor tanio,
Que o não mova também teu doce canto.
Sil. Para lisonja de meu triste damno
Esta expressão, bem vejo, que retrata,
Não teu conhecimento, amado Algano,
Mas teu amor, que tão fiel me trata,
Se as duras queixas de meu mal tiranno
Ouvir tuaattenção, cousa é tão grata,
O coração, que cheio está de pena,
Repetir outras mais ainda me ordena.
Alg. Bem te quizera ouvir: mas estou vendo,
Que já o pardo crepúsculo do dia
Por entre as serras ásperas rompendo,
A luz espalha pela sombra fria.
Já o ferro do arado vem gemendo;
Os bois tornão á misera porfia;
E todos os Pastores despertando,
Da pobre choça as portas vão cerrando.
OBRAS POÉTICAS 295
Sil. Bem sinto, que me dês tal novidade;
Porque eu vivo de sorte em meu tormento;
Que inda que despertasse a claridade,
Distinguir não pudera o luzimento.
Mas já que este successo te persuade,
Que a sorte até me quarta o sentimento;
Por não lograr um bem, vamos: mas onde
0 meu rebanho (ai misero!) se esconde.
Não sei, por onde pasta o triste gado,
Que eu hontem neste monte apascentava:
Tanto me arrebatou o meu cuidado,
Que nem de mim, nem delle me lembrava;
Vai tu, Algano ; cerca deste lado;
Que eu vou bater aquella mata brava,
Onde o trilho é talvez mais perigoso.
Anda, busca o Bargado, e o Baroso.
296 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

ALCINO
ECLOGA XIV

Em região distante,
Aonde o Sol dourado
Mal os raios estende sobre os mon
Em um sitio funesto, e carregado,
Alcino que de Thisbe foi amante.
Dos olhos duas fontes
Derramava em seu liquido lamento
Dura, e precisa lei do seu tormento.
A rústica floresta
Apenas habitada
Era do rude gênio dos Pastores;
A quem a doce flauta desagrada,
A quem o baile, o jogo mais molesta.
Os suaves Amores
Não parão á escutar Ninfas mimosas,
De adorno inculto, sem louvor, formosas.
Turvo e feio um ribeiro
0 campo dividia
Por entre as penhas com medonho estrondo.
A vista se assustava, quando via
Baixar seu curso de um soberbo oiteiro,
Os troncos descompondo,
As profundas raízes arrancando,
Por onde a crespa enchente o vai levando.
OBRAS POÉTICAS 297

Se os olhos levantava
As altas serranias,
0 peito de uma nuvem de tristeza,
(Qual se vira da noite as sombras frias),
Ancioso em triste luto se occupava:
E sempre a chama acceza
Da memória propunha o bem perdido,
Para maior verdugo do sentido.

Nesta cançada vida


Se achava aquelle amante
Pastor, que já nas margens florescentes
Do Mondego guiara o gado errante,
Trocado o antigo bem na infausta lida
De fadigas vehementes,
Transformando-se em pena aquelle gosto,
Que em braços da ventura o teve posto.

A um penhasco, que os ares


Igualava na altura,
Uma tarde subia o pobre Alcino,
Alli depois, que a sua desventura
Chorando esteve em dous amargos mares,
Seu loco desatino
Rompe o silencio gravemente mudo;
E para ouvillo suspendeo-se tudo.

Alegres praias, humidas ribeiras


Do Mondego, que plácido discorre,
Que do olmo a copa em ramas lisongeiras
Com a sombra suavíssima socorre;
Vós, que pelas campinas mais grosseiras,
Que hoje o meu gado sem ventura corre,
Trocadas fostes, quando a inveja tinha
Postos os olhos na fortuna minha;
17
298 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Mimozas agoas, deliciozo hospício


De Ninfas, que na espuma prateada
Fazendo estão gostoso desperdício
De uma belleza docemente amada;
Vós, que ouvis de Palemo, e de Salicio
A flauta brandamente temperada,
Quando um a rede estende, o outro colhe
Em seus currais o gado, que recolhe;
Dizei-me vós ; se acazo aquelle pranto,
Com que estou a chorar esta saudade,
Tem tanto impulso, tem esforço tanto,
Que vos empenhe a conceber piedade.
Dizei-me vós; se aquelle amado encanto.
Que laço foi de minha fiel vontade,
Vive alegrando essamimoza esfera;
Como no campo faz na primavera.
Dizei-me ; se entre os rústicos Pastores
Na floresta o rebanho inda apascenta:
Se ainda ornada de vistozas flores
Ella entre todas mais gentil se ostenta;
Qual foi o emprego em fim de seus amores;
Quando o mísero Alcino se lamenta;
Alcino, que da sua formozura
Desterrado suspira sem ventura.
Dizei-me, se inda cresce na belleza :
Porque, segundo meu cuidado via,
Cheguei a imaginar, que a natureza
Mil perfeições lhe dava cada dia:
Vendo-a eu muitas vezes, a alma preza
Em tanta gentileza se sentia;
Crescendo a admiração, logo encontrava
Belleza, que de novo se admirava.
Dizei-me, se ao c;;hir da fresca tarde
OBRAS POÉTICAS 299

Salie a gozar do vento, que respira;


Quando o maior Planeta menos arde,
Quando aos currais o gado se retira.
Se do seu bello encanto faz alarde,
Sentada á sombra do álamo, onde ouvira
Muitas vezes os éccos de meu pranto,
Nas vozes sentidissimas do canto.

Dizei-me; se inclinando suavemente


Os ouvidos ao toque lisongeiro,
De algum Pastor escuta a voz cadente,
Que o gado guia desde o crespo oiteiro.
Se alguma compaixão se lhe persente,
Girando os olhos, como no primeiro
Movimento do nosso amor ouvia,
Ou quando olhava, ou quando me attendia.
Porém vós vos calais: ah! Que a distancia,
Ninfas do brando Rio, vos impede
Ouvir os tristes éccos de minha anciã,
Que a mortal agonia tanto excede.
Sem duvida a ruína da constância,
Que a mim me prometteo, Ninfas, vos pede
Este silencio. Ah! quanto em uma ausência
Periga a mais segura perzistencia!

Mas se tanto em vós pode a lei sagrada


Do modesto decoro, e á singileza
De vossos corações somente agrada
Encobrir as traições dessa belleza;
Minha alma, que nas fragoas abrazada
De tanto ardente amor suspira acceza,
Vingança clamará, dando o segredo
Ao bosque escuro, ao fúnebre arvoredo.
Aqui me escutará esta corrente,
Que despenhada os duros troncos banha:
300 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Ouça-me este penhasco; aonde ausente,


Me vejo a lamentar traição tamanha.
Tenha este Rio em fim sempre presente,
Presente sempre tenha esta montanha
De Thisbe ingrata a pérfida memória,
De Alcino amante a lastimoza historia.
E aqui desta alta penha,
(Que se remonta aos ares), de um amante
Sempre firme, e constante,
A quem seu mal despenha,
Da mais infiel Pastora na mudança,
Se recommende a misera lembrança ;
Sabei, ó rochas duras;
Que de quantas o Ceo alenta, e cria,
Tão bellas, como o dia,
Perfeitas creaturas,
Nenhuma é, do que Thisbe, mais formoza,
E nenhuma também mais aleivoza.
OBRAS POÉTICAS 301

BELTZA E AMARILLIS
ECLOGA XV

Corebo e Palemo

Cor. Agora, que do alto vem cahindo


A noite aborrecida, e só gostoza
Para quem o seu mal está sentindo.
Repitamos um pouco a trabalhoza
Fadiga do passado; e neste assento
Gozemos desta sombra deleitoza.
0 brando respirar do manso vento
Por entre as frescas ramas, a doçura
Dessa fonte, que move o passo lento;
A doce quietação dessa espessura,
0 silencio das aves, tudo, Amigo,
Ouvir a nossa magoa hoje procura.
Principia, Palemo ; que eu comtigo
A memória trarei, quanto deixamos
\o socego feliz do estado antigo.
Que esperas, caro Amigo ? Sós estamos:
Bem podemos falar: porque os extremos
De nossa dòr só nós testemunhamos.
Pai. Não vi depois, que o monte discorremos,
Ha tantos annos, sempre atraz do gado,
Noite tão clara, como a que hoje temos :
302 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Mas muito estranho ser de teu agrado.


Que despertemos inda a cinza fria
Da lembrança do tempo já passado.
Oh ! não sei, o que pedes : bom seria,
Que desse qualquer bem não cobre alento
O estrondo, que talvez adormecia.
Loucura é despertar no pensamento
O fogo extincto já de uma memória :
Não sabes, quanto é bárbaro o tormento.
Em nos lembarmos da perdida gloria
Nada mais conseguimos, que ao gemido
Dar novo impulso na passada historia.
Não se desperte o mísero ruído;
Que veremos, Amigo, o desengano
De um bem caduco, de um prazer fingido.
Cor. Debalde é a cautela ; que o tiranno,
Continuo atormentar de uma lembrança
Não o pôde abrandar o esforço humano,
Vê, como o teu ardor em vão se cança ;
E quanto mais te negas a meu rogo,
Despertas mais dos fados a mudança.
Buscar no esquecimento o desafogo
E' não saber, que neste infausto empenho
Se atêa da memória mais o fogo
Pai. Diga-o minha alma: porque nella tenho
Impressa sempre a imagem de uma dieta.
Em que firmava o gosto o desempenho.
Recompensa uma dor quazi infinita.
A grandeza do bem; a minha historia
Deixando em vivo sangue n'alma escrita.
Quero estragar mil vezes a memória,
OBRAS POÉTICAS 303
Meu amado Corebo, e a cada instante
Torna mais viva a imagem de uma gloria.
Oh tiranna pensão de um peito amante!
Que só fora feliz, se a agoa bebera,
(Quando perde o seu bem) do Lelhe errante ;
Se na idéa pintada não trouxera
A continua lembrança de um veneno,
Que Amor dissimulado offerecera.
Ah ! Que soluço, Amigo, estalo, e peno ;
Quando me lembra a hora, em que o tiranno
Fado roubou-me estado tão sereno.
Cor. Caminhas, ó Palemo, de teu damno
Como insensível: vês, que não tem modo
Da funesta lembrança o golpe insano.
Pai. Bem me advertes, Corebo: eu me accommodo
Ao pensamento teu; e divertida
Fique a memória minha já de todo.
Cor. Ao cântico sonoro te convida
Esta flauta, que é fama em nós guardada,
Que foi de Alfeo um tempo possuída.
Pai. Eu a tomo, e com ella se te agrada,
Alterno o verso; e seja aquelle, que antes
Cantamos lá na nossa retirada.
Cor. Se me lembra, assim era: Vinde, errantes
Sombras, a suffocar-nos: porque a inveja
E' só fiscal dos míseros amantes.
Pai. Ficai, bellas ovelhas: assim seja
Comvosco mais propicio o duro fado;
Que Pastor mais feliz vos guie, e reja.
Cor. Aqui te deixo, rústico cajado;
Que algum tempo, a pezar do empenho cego,
De ninguém, só de mim, foste logrado.
304 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
Pai. Tu .Amarillis, adorado emprego,
Toma conta de duas ovelhinhas,
Que mais que todas amo: eu t'as entrego.
Cor. Verás, Beliza, entre essas prendas minhas,
Que eu teci junto ás margens dessa fonte,
De vime desigual duas cestinhas.
Pai. De ti, que ficas pois, saudozo monte,
Me despeço; e talvez sem esperança
De tornar a ver mais este Orizonte.
Cor. Ficai-vos em pacifica bonança,
0'Ninfas; que perdido o vosso agrado,
Me ausento a lamentar tanta mudança.
Pai. Adeos, Pastores; vós. que em doce estado
Tantas vezes nos bailes, na floresta
Me vistes sempre alegre, e socegado ;
Cor. De vós me aparta agora a lei funesta ;
E o tormento, a que esta alma está rendida,
Bem o meu sentimento manifesta.
Pai. Heide trazer na idéa sempre unida
A imagem de Amarillis, que venero,
E que estimo inda mais, que a própria vida.
Cor. Alegria jamais nenhuma espero ;
Antes nesta saudoza soledade.
Por ultimo remédio, a morte quero.
Pai. Adeos bella Amarillis ; a vontade,
Por ser único bem, levo abrazada
Na chama inextinguivel da saudade.
Cor. Adeos, Beliza, adeos, Ninfa adorada :
Veja-se neste campo eternamente
A tua formozura celebrada.
Pai. Basta já de cantar • que do Oriente
OBRAS POÉTICAS •M:
Já rompe o Sol vermelho, e o manso gado
Os balidos esforça de impaciente.
As nuvens vão correndo, e a este lado
0 resplendor se vê com que a Aurora
Vai escondendo o rosto magoado.
Das lagrimas saudozas com que chora,
Se derrama o or valho; aves e plantas
Despertão, levantando a voz sonora.
Cor. Eu guiarei o gado se tu cantas;
Que proseguindo tu, de meu tormento
0 excesso ao menos, e o rigor quebrantas.
Não me negues, si podes, esse alento.
306 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

PESCADORES
ECLOGA XVI

Alicuto e Marino.

Já vinha a manhã clara


Dourando os Orizontes,
E os empinados montes
Com a rozada luz, que os prateara;
Mostravâo na campina
O lírio, o goivo, a roza, e a bonina.
Nas ondas scintilava
0 rosto luminozo,
Com que de Cinthia o Espozo
A' pobre terra a clara luz mandava,
Formando um transparente,
Na verde relva, resplendor luzente.
Ambos os Pescadores,
Alicuto, e Marino,
A quem o Deos Menino
Ateou na agoa o fogo dos amores;
As redes recolhião;
E de bastante peixe o barco enchião.
A praia procurando
Vinhão tão mansamente,
Que nem o mar se sente
OBRAS POÉTICAS 307

Ferido de um, e outro remo brando,


Quando do seu destino
Começou a queixar-se assim Marino.
Alicuto o acompanha
Co'a sonora harmonia,
Que, ha tempos, aprendia
De um Pastor, que viera da montanha;
E a seu modo vertendo
Para a Ninfa do mar, ia dizendo.
Mar. Se assim como a manhã clara e brilhante
É da minha adorada o bello rosto,
Como naufraga o peito vacilante,
No incerto mar de um fúnebre desgosto !
Eu vejo, que se alegrão neste instante
Cheios de gloria, de prazer e gosto,
Este mar, esta praia, esta ribeira :
Só não ha couza, que alegrar me queira.
Ale. Deiopéa adorada, a luz do dia,
Como funesta nasce a um desgraçado !
Quanto me foi suave a noite fria,
Tanto o rosto da Aurora me é pezado :
O silencio da noite dirigia
0 socego também de meu cuidado;
E apenas foge o horror da sombra escura,
Quando mais viva toco a desventura.
Mar. Que importa, qu'em continua sentinella
Eu ande os crespos mares descobrindo,
Se ingrata sempre a luz da minha eslrella
Me vai desses teus olhos dividindo !
0 vento, que suave entéza a vella,
A meu ligeiro barco a estrada abrindo,
Solicito me guia a esta praia;
Onde sem vêr-te o coração desmaia.
308 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
Alie. Três dias ha, que giro, amada minha,
Desesperado nestajnortal anciã
De ver o prêmio, que guardado tinha
A meu peito fiel tua inconstância.
Outra ventura, outra mercê convinha,
De tanto amor á fatigada instância
E quando o não mereça na verdade,
Quem ha, que não te estranhe a falsidade!
Mar. Abrazadas as ondas deste pego
Tenho já com meus ais, com meus suspiros:
Elle me escuta; eu cada vez mais cego
Accuzo a semrazão de teus retiros.
De meus males ao passo, que o navego,
O pezo sente, e se revolve em giros;
E até as brutas penhas mais pezadas
Estão de meu tormento magoadas.
Alie. Qual o peixe innocente, que enganado
Bebe no curvo anzol a morte feia,
Sem ver, que o Pescador lhe tem armado
Escondida prizão, em que se enlèa;
Ou qual o navegante, que elevado
No canto está da pérfida Serêa;
E prova sem cautella a morte dura
Entre os penhascos, onde o mar murmura.
Mar. Qual foge o grande monstro, qu'o mar cria,
Do arpão ferido, em sangue o mar banhando;
Quando cuida, que escapa á morte fria,
O alento pouco e pouco vai deixando;
O destro Pescador, que a preza fia
Do agudo ferro, a linha então largando,
Quando de todo já exangue o sente,
O barco chega, e o colhe mais contente.
Alie. Tal eu, doce inimiga, sem cautella
Adorava a traição de um falso engano,
OBRAS POÉTICAS ">09

Que no teu rosto, ó sempre ingrata, e bella,


Soube dissimular Amor tyranno;
Acreditando aquella industria, aquella
Mal escondida imagem de meu damno,
Imaginei, que o que era aleivozia,
De um fino e puro coração nascia.
Mar. Não de outra sorte a barbara destreza
Dessa homicida mão, dessa alma ingrata,
Depois de assegurar minha firmeza,
De mim se ausenta e com rigor me inala :
Ah! quanto temo, Ninfa, que a fereza
De tua condição, que assim me trata,
Nestas ondas em penha convertida,
Pague o delicto de roubar-me a vida !
Alie. De que serve, que eu traga do mar fundo.
A preço de fadiga tão pezada,
Esta, que em tal excesso estima o mundo,
Rama, que fora d'agoa é encarnada ?
De que serve; que lá do mais profundo
Venha offrecer-te a pérola engraçada,
Se encontro semrazeos, iras, rigores ?
Se os teus desprezos sempre são maiores '.
Mar. Para trazer-te o peixe delicado,
No rio escondo as naças, Ninfa minha ;
E ao levantar seu pezo desejado,
Vejo saltar a truta e a tahinha :
Não me fica também no mar salgado
0 retorcido búzio e a conchinha;
Que suppondo ser couza que te agrade,
Tudo te vem render minha vontade.
Alie. Em pensamentos mil eu me desfaço,
Ao ver traição tão barbara e tão crua;
Rompo o vestido, o corpo despedaço,
Ouando me lembra a falsidade tua :
310 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
Loucuras mil, mil desatinos faço,
Sem pejo e sem vergonha; em pelle nua
Corro esta praia, giro esta ribeira;
E ninguém ha que soccorrer me queira.
Mar. Mas que é isto, Alicuto ? 0 nosso eanlo
Quazi que vai passando a impaciência.
Lie. Que ha de ser, se o meu mísero quebranl,
Se apodera de mim com tal violência?
Mar. Mal haja o ter amor, que pôde tanto.
Alie. Mal haja o conhecer uma inclemencia.
Mar. Que intentar-lhe fugir é desatino.
Alie Que assim o sinto eu, e tu, Marino.
Mar. Temos chegado ao porto : larga o remo;
Salta na praia t u ; que eu aqui fico;
A ver, se vejo a Ninfa, por quem gemo,
E a quem as minhas lagrimas dedico.
Alie. Não fiques não, Marino : porque temo
Maior magoa; que a dòr, que sacrifico.
Carreguemos o peixe; que na Aldèa
Talvez estejâo Glauce e Deiopéa.
Assim se acommodavão;
E o peixe dividindo
Entre ambos, vão subindo
Um levantado oiteiro, a que che-aváo,
Deixando em tanto posta
No barco a vara, a rede ao Sol exposta.
OBRAS POÉTICAS 311

LIZE
ECLOGA XVII

Laurenio e Lize.

Laur. Aqui tens, minha Lize, o teu vaqueiro,


Que vem pelo calor do Sol ardente,
A suspirar por ti o dia inteiro.
Com a gloria, meu bem, de ter presente
A meus olhos a tua formozura,
Passo de pezarozo a estar contente.
Toda esta noite vi tua figura
Em uma sombra vã, que me fingia
A minha inconsolavel desventura.
Só nisto fui feliz : porque te via
Tão branda, tão suave, como aquella,
Que a natureza em outra convertia.
Abracei-te, Pastora; e tu mais bella,
Mais compassiva ouviste o meu lamento,
Tornando venturoza a minha estrella.
Liz. Bem puderas, Laurenio, desse intento
Desvanecer-te já : pois é sabido,
Que não posso attender a teu tormento.
Tu conheces mui bem, que em meu sentido
Só vive aquella lei, que me sujeita
A não ser livre, como tenho sido.
312 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
Laur. Eu conheço : mas sei, que n'alma aceita
Pôde ser a fineza de um serrano,
Que adora uma Pastora tão perfeita.
Se entre os amantes teus é só Montano
O ditozo Senhor de um tal thesouro;
De que anda entre nós outros tão ufano :
Soprou-lhe a sorte com melhor agouro :
Que o seu gado não foi de mais estima,
Nem o cajado seu de prata, ou ouro.
É um tosco vaqueiro, que de cima
Da serra aqui desceo : nós o alcançámos
Em tempo de Natercia, tua prima.
De bois uma só junta lhe contámos,
Quando entrou neste campo : triste e pobre
Aqui fez uma choça entre estes ramos.
Agora o seu rebanho os valles cobre :
Talvez, que o fazer mal isso lhe desse,
E que co'alheio bem hoje os seus dobre.
Miserável daquelle, que os perdesse !
Que elle só, porque é rico, teve a dita,
De que tão bella mão teu Pai lhe desse.
, Oh muitas vezes condição maldita
Esta, que fez no mundo differença
Entre aquelle, que tem, ou necessita !
Liz. Laurenio, o meu decoro não dispensa
Nessa practica tua : a honestidade
Tem a mais leve sombra por offensa.
Inda que o meu Pastor te não agrade,
Ou seja murmurada a minha sorte ;
íí sua esta minha alma, esta vontade.
A lei, que me prendeo, somente a morte
OBRAS POÉTICAS 313
A pôde desatar : culpa o destino:
Que eu tenho sobre mim poder mais forte.
Laur. Pois nem se quer, meu bem, meu dj -itioi
Te chega a merecer uin i esperança,
De ser pago algum dia amor tão fino ?
Liz. Não emprcndas de mim mais segurança.
)ue aquella, que te dou : ao Ceo protesto,
Que em meu obrar não hade haver mudança.
E tu, se me não queres ser molesto,
!)eixade repetir-me essa loucura :
.Jois viste o meu desgosto manifesto.
Laur. 0' barbara, ó cruel, ó impia, ó dura!
Que em vez de agradecer-me, te conspiras
Contra uma alma, que amar-te só procura.
Se quem te ama, merece as tuas iras,
Quem pôde estar seguro desses raios,
Que contra tantos mil, cruel, atiras?
Só quem não vê, nem morre nos ensaios
Do cego Deos de amor. Tudo te adora :
Que em tudo influe Amor os seus desmaios.
Eu só (triste de mim !) eu só, Pastora,
Te adoro mais que todos : que Amor cego
Quiz, que eu dos tiros seus victima fora.
Lá desde as verdes margens do Mondego
•?ezAmor, que na lira eu me ensaiasse,
•ara cantar de ti, meu bello emprego.
M-is ah tyranno Amor! Quem te arrancasse
ssas azas, com que teu vôo elevas?
Quem arco, aijava, e ílexas te quebrasse!

Como é possivel. Monstro, que te atrevas


I. 18
'S-'

311 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

A pòr teu pensamento em tanta altura,


Para cahir depois no horror das trevas ?
Que bem se diz; que vens da massa dura
Do Rhodope, ou do Mauro! Que bem creio,
Ignoras, cego Amor, nossa brandura!
Tu me condemnas a chorar sem freio
Por aquella, que zomba do meu pranto;
Que farta o seu rigor do sangue alheio.
Liz. Ah! Não, Laurenio, não : não passe a tanto
Esse ingrato delírio : eu inda espero,
Que tenha a tua dòr algum quebranto.
A pouco a pouco me entra o golpe fero
A traspassar esta alma; bem que 'gnoro,
Se é piedade, se amor, o que pondero.
Verei, se sem offensa do decoro,
Posso achar algum modo de pagar-te
Esse suspiro teu, esse teu choro.
Em todo aquelle alento, aquella parte,
Que da casta prizão se julgue izenta,
Eu prometto, Laurenio, de estimar-te ;
Vai : leva esta esperança: e te contenta.
OBRAS POÉTICAS

FRANGELIZA
ECLOGA XVIII

Menalca e Licida.

Lie. Queres, Menalca amigo, que sentados


Debaixo destes alamos um pouco
Entremos a cantar nossos cuidados ?
Men. E crês, Licida meu, que sou tão louco.
Que me anime a fazer-te companhia
Ao som da minha flauta, que é tão rouco ?
Se em outra idade, amigo, eu o fazia,
Ou Franceliza a flauta me animava,
Ou desculpa nos annos merecia.
Lie. Enfada-me o teu modo : eu esperava
Achar-te, amigo, menos enfadonho,
Lembrado do que um tempo em nós passava.
Men. Queres que torne a entrar naquelle sonho
Da néscia mocidade? Ah! que do inverno
Já um novo retrato em mim componho.
Imito já no branco ao cysne terno :
E daquellas vaidades longe o engano,
Com estas cãs maduras me governo.
Já fiz galla, já fiz alegre e ufano
Gosto de jogo e bailes : mas agora
Vivo só de escutar o desengano.
.''.li) CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Lie. Estou prompto a ouvir-te; inda que fora


Importuno a meus annos, bem quizera
Ouvir de um velho a musica sonora.
Canta, o que te agradar; mas considera,
Que me alegrara muito, se os amores
Da tua Franceliza ouvir pudera.
Men. Eu tomo a flauta; e tu canta os louvores
Também da tua Nize; que algum dia
Foi adorado emprego dos Pastores.
Lie. Já esta alma os suspiros desafia:
Já entro a perguntar, onde encontrar-te
Pôde de meus clamores a porfia.
Nize? Nize? Meu bem? Ah! De qual arte
A flauta se afinava, que o lamento
[favel a meu rogo soubs achar-te !
Este mesmo suavíssimo instrumento,
Este mesmo entoou aquelle canlo,
Que tanto foi de teu contentamento.
Na montanha se ouvio, com grande espanto,
A vez primeira, que soou, nascida
Abranda voz das fragoas de meu pranto.
Men. Que direi eu também da despedida,
Que fiz da minha cithara! Ao desprezo
Lançando-a já de todo aborrecida.
O peito, que de amor ardia accezo,
Acodia a emendar, o que entoava
Em diversas paixões a um tempo prezo.
Que busco, infausta lira...? já clamava.
Vem adorada lira.. de outro modo,
A mesma cantilena já trocava.
Lie. Ao valle, ao monte, ao bosque, ao campo todo
OlíUAP POÉTICAS 311

Por Nize só pergunto...


Meti. Na mudança
A meu martyrio o cântico accommodo.
Lie. Entro na festa, baile, jogo ou dança;
Se não vejo de Nize a gentileza:
Minha alma um só instante não descança.
Men. Tanto por Franceliza esta alma preza
Morrer de puro amor, que o valle, o monte
Assombrados deixou minha fineza.
Testemunha me seja aquella fonte;
Onde estive a chorar toda uma tarde,
Que não me appareceo alli defronte.
Lie. 0 incontrastavel Ímpeto, com que arde
Este meu coração, diga-o Montano;
Que um dia me chamou fraco e cobarde.
Disse-me que não deve um peito humano,
Render-se com tal força ao golpe indigno,
Com que nas almas fere Amor tyranno.
Men. Foi o primeiro amor : tem o destino
De cada um forjado aquelle laço,
Que obra a seu tempo com rigor maligno.
Pastoras desprezei : pouco embaraço
Achava n'uma e n'outra : escarnecia
Daquelle, que aceuzava a Amor escaço.
Lie. Vês tu no despertar da Aurora fria
0 gosto, com que os pássaros, e as flores
Saúdão docemente o novo dia ?
Assim, não de outra sorte, os meus ardores
Ao vêlla tão gentil a cada instante.. .
Men. A cada instante crescem meus amores.
1S
318 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
De um tronco sempre verde e vegetante
Sobre a cortiça dura, em um letreiro,
Alli gravado o n o m e . . .
Lie. 0 gado errante
Perdido, e sem Pastor sobre este oiteiro
Mil vezes o deixei : desta montanha
0 sabe inda o mais rude pegureiro.
Men. Não mais, Licida; basta : é couza estranha
Esta anciã, que em mim vês : entende, amigo,
Que está zombando assim, quem te acompanha.
Lie. Tu zombas, quando eu choro ?
Men. Em vão prosigo;
Lembrando-me de um bem, que é já passado :
Leve-o, quem tudo o mais levou comsigo.
Seja tua esta flauta : este cajado
Toma, Pastor, também : se esta alma queres,
Recebe-a; mas sopporta o seu cuidado.
Lie. Feliz Menalca tu, no que proferes;
Se o tempo já te deve desenganos :
Que eu te acredite, amigo, não esperes :
A Amor só vence a morte, não os annos.
OBRAS POÉTICAS 319

VIDA DO CAMPO
EfiLOGA XIX
Oh doce soledade !
Oh pátria do descanço !
Da paz, e da concórdia
Grosseira habitação, tosco palácio !
Quantos a meus delírios
Tu dietas desenganos,
Oráculos fazendo
Das arvores, dos troncos, dos penhascos!
Não fere os meus ouvidos
O estrondo cançado,
Que levanta a lisonja,
Junto aos pórticos d'ouro em regio Paço.
A macilenta inveja
Não derrama o contagio
Nas innocentes almas,
Que são de seu furor mísero estrago.
Dos olhos se retira
0 objecto sempre ingrato
Dos que suspirão mudos,
Em vez do prêmio, as semrazões do damno.
Aqui tem a virtude
Erguido o seu thealro ;
E nas rústicas scenas
Aqui mostra a pobreza os apparatos.
As mal seguras canas,
Que move o vento brando.
Da pobre rede tecem
Ao mísero Pastor o abrigo caro.
320 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Colhida a tenra fruta


Vem de seu próprio ramo,
A adornar a choupana,
Em vez dos altos capiteis dourados.
Oh sitio venturozo !
Quanto te invejo, quanto !
Ditozo quem possue
O suave prazer de teu descanço !
Se tu bem alcançaras,
Pastor, um bem tão raro,
Não cessara o teu culto
De consagrar obzequios a teu fado.
Infeliz, o que envolto
No trafego inhumano
Da aborrecida corte,
Só vê da confuzão o rosto infausto.
Imagina do amigo
Seguir os doces laços,
E a torpe aleivozia
Lhe abre o sepulchro, onde buscou o ampar
Se o valimento encontra,
Teme com justo espanto,
Quanto é grande a subida,
Que o despenho também seja mais alto.
Não ha fronte segura,
Que em fim dissimulando
Não veja os seus affectos ;
Como a flor entre os aspides ingratos.
Ah ! mede, Pastor bello
O bem, que alcanças : tanto
Dar-te não pôde a corte;
Só pôde a soledade deste campo.
OBRAS POÉTICAS -í'21

LIRA
ECLOGA XX
Aqui deste salgueiro
Pendente ficarás, ó lira minha !
Tu qae foste primeiro,
Em quanto á Amor convinha,
Allivio de meus males,
Ferindo os montes, abalando os valles.
De todo já deixada,
Nem se quer nas imagens da memória
Vi virás retratada;
De tanta antiga gloria
Se consultada fores,
As delicias aponta nos horrores.
Será lingua eloqüente
A mesma face macilenta : o rosto
De meu mal inclemente
Pela voz do desgosto,
Com a muda harmonia
Poderá declarar minha agonia.
De Araehne o enredo escuro,
Em ti as debdis linhas estendendo,
Cubra teu centro impuro,
Que acorde respondendo
Do verso ás consonâncias,
Tantas vezes ouvio as minhas ancias.
322 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Gênio funesto inspire


Sempre em teu damno; e por maior tristeza
De ti não se retire
A fúnebre aspereza,
Daquelle horror maligno,
Que os passos acompanha a meu destino.
Ludibrio sejas feio
De todos os Pastores deste monte :
0 mudo infausto enleio
Teu mudo gesto conte,
De um triste, e desgraçado
Tosco instrumento, inútil, desprezado.
E se lá quando o dia
Desmaiando-se o Sol ao mar se ausenta.
Lá na tarde sombria,
Lizarda, que se ostenta
Destes campos senhora,
Baixar acazo, dando inveja a Flora;

Seu vestigio dourado,


Mais bello do que os goivos, e açucenas,
Se inclinar seu cuidado
A este centro de penas;
Eaqui te achar pendente,
Triste lira, deixada, e descontente;
Quando chegue curioza,
Sem horror de te ver, ao tronco duro
A Ninfa mais formoza,
Lêa o epitafio escuro ;
Que em fúnebre letreiro
Guardará para sempre este salgueiro.
Breves vozes a historia
Explicarão da minha desventura;
OBRAS POÉTICAS 323
Quando empenhe a memória
Dessa tão impia, e dura
Belleza, em vão amada,
Em vão de meus extremos contrastada.
Aqui vivo (este o lema,
Que no fúnebre tronco fique escrito)
Para que sempre gema
0 tormento infinito
De perder uma ingrata,
Que perjura, e cruel me offende, e mata.
EPÍSTOLAS

ALCINO A F1LENO
EPÍSTOLA I

A vós, Pastor distante,


Bem que presente sempre na lembrança,
Saudeenvia Alcino, que a vingança.
Da fortuna inconstante,
Do bárbaro destino,
Chora na própria terra peregrino.
Se a flauta mal cadente
Entoa agora o verso harmoniozo,
Sabei me communica este saudozo
Influxo a dòr vehemente,
Não o gênio suave,
Que ouviste j á n o accento agudo, e grave.
Entorpeceo-se o canto ;
E a Muza tristemente enrouquecida
Se vio, depois que a sorte desabrida
Trocou o doce encanto
Das Ninfas do Mondego,
Pelo deste retiro inculto emprego.
Como presente vejo,
Fileno, para estrago da memória
OBRAS POÉTICAS 325
Aquelle doce bem, que a maior gloria
Formava a meu desejo!
Como na estampa grata
Da lembrança o perdido se retrata!
Pela margem frondoza
Desse, que corre, vagarozorio,
Quantas vezes, Pastor, a calma, o frio
Vencemos na gostoza,
Alegre sociedade,
Que alentava do canto a suavidade l
Quantas vezes rompendo
Das claras agoas a corrente fria,
Das Ninfas do Mondego a companhia
A ouvir se estava erguendo,
Por entre a espuma bella,
Que uma hora se desfaz, e outra congela.
Quantas vezes parava
A doce Filomena o triste accento !
E do álamo frondozo (em quanto o vento
As folhas meneava)
Os números ouvia,
Que a nossa acorde flauta repetia!
Que mudança importuna
Hoje diverso faz o gênio antigo!
Negando á Muza o generozo abrigo
Da plácida fortuna;
Porque habite uma estância,
Em que só vive a pena, a magoa, a anciã

0 gênio antes festivo,


Prompto no baile, jogo, e na floresta
Quanto se opprime, quanto se molesta
Ao golpe executivo
19
326 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
Do fado, que tem posto
Tanto empenho em tecer o meu desgosto!
0 seu giro, ó Fileno,
Não seja em vosso damno assim violento:
Discorra sono bem, no obzequio attento :
Porque no mais ameno
Campo, e entre os Pastores,
Vos consagre Amarillis seus amores.
Não erre o vosso gado,
Qual vaga o meu, sem dono : antes contenle
Paste do campo a relva florecente.
0 pomo sazonado
Colhei; e na floresta
Tende fortuna mais ditoza, que esta.
E se no prado, ou monte
Pastor vive, que guarde inda a memória
Da minha triste, lastimoza historia;
Dizei-lhe vós; que conte
0 seu verso canoro
Meu cazo triste no silvestre coro.
A minha tosca avena
Sempre hade respirar na actividade
Da, que me arde no peito, impia saudade •
E creio, á minha pena
Se hade ver algum dia
Respirar estes bosques alegria.
OBRAS POÉTICAS 327

FILENO A ALGANO
EPÍSTOLA 11

Depois, Algano amado,


Que por mais verde, e plácido terreno,
Deixaste o sitio ameno,
Onde alegre pascia o manso gado,
Tomou minha saudade
Triste posse no horror da soledade.

De todos os Pastores
Foi mui sentida a tua ausência dura:
Que o bem de uma ventura
Se se perde, inda os mesmos moradores
Da choça, que os abriga,
Sabem sentir : oh quanto a dôr obriga !

Poço importa a cultura,


E agudeza maior do pensamento:
Que a força do tormento
Sobre a mesma rudeza o estrago apura;
E quem melhor discorre,
É, quem buscando allivio, menos morre.

Talvez mais lisonjêa


Esta no meu pezar néscia jactancia;
328 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Por ser minha ignorância


Alimento, em que a magoa mais seatêa :
Que a ser mais entendido,
Não fora o meu tormento tão crescido.

Não somente o effeito


De tão ingrato mal em nós sentimos;
Mas, se bem advertimos,
Tudo ao grande pezar ficou sugeito :
Que fez a ausência tua
A saudade em nós razão commua.

0 rio, que algum dia


Liquida habitação das Ninfas era,
A còr, que a primavera
Nestes frondozos alamos vestia,
Tudo perde o seu brio :
Não tem o álamo còr, Ninfas o rio.

Não se ouvem já sonoras,


(Quando arguindo o adúltero condemna),
Queixas da Filomena,
E até do tempo as carregadas horas
Correm mais dilatadas;
E parece, que a dòr as faz pesadas.

É tudo horror; é tudo


Uma pálida imagem da tristeza.
Habita esta aspereza
0 fúnebre silencio, o assombro mudo,
Que tanto pôde, tanto
De tua ausência o misero quebranto,

Ah meu Algano caro,


Doce consolação do campo ameno !
0 teu triste Fileno
OBRAS POÉTICAS 3'29

Busca debalde allivio : que o reparo


Da saudade está posto
Na imagem só de teu alegre rosto :

Não só o seu alento,


Porém inda dos campos a alegria,
A clara luz do dia,
Das aves o canoro, e doce accento,
E quanto tem mudado
Da tua ausência o deshumano estado.

Apressa, apressa o passo,


Com que hoje alegras as regiões do Tejo :
Rompe já o embaraço,
Que se interpõem á vista do desejo :
K possa alegre ver-te,
Algano meu, quem sabe merecer-te.
330 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

DALIZO A' SALICIO


EPÍSTOLA III

A vós, Pastor amado,


Que lá do pátrio rio
Nas frescas praias, humidas ribeiras,
(Qual debaixo de um álamo sombrio
Titiro, que abrazado
De Amarillis suspira), as lisonjeiras
Horas lograis, no métrico exercício,
Propicio seja o fado, ou impropicio;

Saúde vos deseja,


E plácido descanço
Dalizo, o Pastor triste ; cujo emprego
É mal tocada lira, e gado manso ;
Que nem maligna inveja,
Nem emula porfia em seu socego
Altera, atravessando o bosque inculto,
Desde o monte frondozo ao valle occulto.
Aquella harmonioza,
Nunca no bosque ouvida,
Cithara, que regia o vosso canto,
Com que activo desejo me convida
A pena mais saudoza !
Se souberas, Salicio amado, quanto
Me chega a arrebatar aquelle accento,
Duvidareis vós mesmo do tormento.
OBRAS POÉTICAS 331
Então vi sem mentira,
Ou fabulozo engano,
Possivel, o que Alfemo nos contava,
Do amante, que do Averno deshumano
Ao som da acorde lira,
A já perdida esposa resgatava.
0 vosso canto, Amigo, se quizera,
0 mesmo inferno adormecer pudera.

Não duvidei, que houvesse


Accento tão divino,
Que enternecendo o bárbaro pirata,
Fiasse todo o bem do seu destino
A um Delfim, que pudesse,
Rompendo as ondas, que esse mar desata,
Conduzir de Arion a amada vida,
Sobre os hombros, á praia appetecida.

Tudo possivel cria ;


Que aquelle acorde accento,
Que arrebatando a idéa contemplava,
De vossa voz no doce movimento,
Dar ao mundo podia
Exemplos de prodigio : oh qual rasgava
Nunca imitado canto o vento leve 1
Como o Zefiro a ouvillo se deteve!

Crede-me : eu suspirando
Mil vezes a ventura
De ver-vos, a um Pastor dessa montanha
Perguntava por vós ; e a doce cura
Do desejo buscando
Da noticia, que tinha em nada exlranha,
Da que notei, feliz realidade,
Maior motivo achava á saudade.
332 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Quando verei, dizia,


Um Pastor tão amado,
Que no baile, na dança, na carreira,
Ou perseguindo a fera, sempre ao lado
Por companheiro via ?
Oh ! Queira o brando fado. a sorte queira
Que esta tão larga, tão cruel distancia,
Não venha a perverter sua constância.
Hydropico meu peito
Sempre ver-vos suspira;
E por lisonja desta ausência dura
Ao doce, e acorde som da vossa lira
Invoca o terno effeito.
Fazei, que eu logre o bem desta ventura.
Em quanto fica com attento avizo,
Para servir-vos o Pastor Dalizo.
OBRAS POÉTICA- 333

MELIZO A SALICIO
EPÍSTOLA IV

Ao duro tronco atado


O Grego enganador da Ninfa bella,
Ouvindo o som daquella
Consonância do coro levantado,
Foge á ruina, teme o precipício.
Mas se o canto, Salicio,
Que alternastes no verso harmonioso,
No golfo perigoso
Das humidas Deidades se entoara,
Do acorde accento á suavidade rara,
Que alegre cederia
Ulysses, aos encantos da harmonia !
Hydropico bebendo
A liquida corrente, nunca tanto
Se vê com o quebranto
Do Sol ardente o gado, que descendo
Vem de uma, e outra parte da floresta.
Quanto se manifesta
Ancioso o meu desejo, achando agora
A lisonja sonora
Desse canto, Salicio, que respira
Tão doce, que por mais que a alma ferira
O impulso harmonioso,
Sempre o meu peito suspirara ancioso.
19
334 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Oh ditoso salgueiro
Aquelle, Pastor bello, em que pendente
A cithara cadente
No silencio me vio por derradeiro,
Em quanto choro a vossa ausência dura !
Quanto maior ventura
É ver da solitária sombra fria
A perdida alegria,
0 gosto desmaiado, expor brilhante,
Mais risonho esta vez o seu semblante,
Bem como a tenebrosa
Noite, que a luz do Sol faz mais formosa !
Do musico instrumento
0 espirito té agora suffocado
Bebeo mais esforçado,
U que respira, harmonioso alento :
Deva-se tanto obséquio á saudade.
De Pan a Divindade,
Que unio primeiro a cera á débil cana,
Nunca tão soberana
A voz ergueo; nem lá no Idalio monte
Ao murmurar feliz do Xanto a fonte,
Respirou tão suave,
De Enone bella no tormento grave.
Só vós, Pastor querido,
As sombras desterrando da tristeza,
Podeis lograr a empreza
De suftbcar os eccos do gemido,
Com tão acorde, sonoroso excesso !
A tanto bem confesso,
Que do campo os prodígios celebrados
Serão mal comparados;
Inda quando a memória os eternize
Pelos troncos de faias ; bem que avize
OBRAS POÉTICAS 335
Um, e outro letreiro,
Qual o segundo foi, qual o primeiro.
Se pois é de Salicio
Tão poderosa a voz ; se a mão tão destra
No jogo, na palestra
Tem a gloria maior; se no exercício
Do canto o verde louro elle consegue ;

Salicio não me negue,


Que desigual a competência fica,
Quando a seguir se. applica
Do mísero Melizo a mal pulsada
Cithara ; que é somente acompanhada
De Faunos da espessura,
Não de branca Napéa, ou Ninfa pura.

Turva, e feia a corrente


Deste ribeiro nosso não habita
Dryada, que repita
Em branda voz o numero cadente :
Que tudo nelle triste fez o fado

Ditoso aquelle estado,


Em que pobre pastor me contentava
A terra, que lavrava,
O gado, que a pastar guiava errante
Desta montanha á aquella : ah que inconstante
Fortuna em mim figura
De Melibeo a triste desventura !

Mas eu cuido, que vejo


Aquella carregada sombra feia.
De gosto, que recrêa,
(Se não mo finge a imagem do desejo)
Ir a face vestindo já mais clara.
336 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Oh que mudança rara


Estou nesta ribeira contemplando !
Pouco, e pouco dourando
Se vai o escuro valle, e o alto monte :
Nova chama illumina este orisonle.
Tanto gosto se deve
Do sonoro Salicio ao canto leve.

Vivei, ó Pastor grato ;


li o vosso campo eternamente seja
Dos Elifios inveja,
Ditosa copia, plácido retrato
Daquelle, que o Pastor pisou de Andrizo
E vive para gloria de Melizo.
OBRAS POÉTICAS 337

EURILLO A ALCIDO
EPÍSTOLA V

Recebo, Alcido amado,


0 transumpto feliz, o delicado,
Numeroso desenho
Do vosso bello, peregrino engenho.
Nelle respira aquella suavidade,
Com que outro tempo a Delfica Deidade,
Pelas ribeiras do saudoso Anfrizo,
Tornava todo o monte de improvizo,
De Thebaida alegre, Chipre amena,
Centro da magoa, habitação da pena.
A imagem da saudade retratada
Qual se descobre aos eccos animada
Da vossa acorde lira !
Alli geme, alli chora, alli suspira
O rosto macilento,
Reclinando com brando movimento
Já sobre a mão, já enxugando o pranto,
Que os olhos vertem com mortal quebranto.
Menos suave, menos elegante
Pintou o Portuguez a fragoa amante,
Em que Venus dispunha aos Luzitanos
A dourada lisonja dos enganos ;
Quando aos olhos descobre a feliz Ilha,
Do mar d'Atlante occulta maravilha.
Mas que muito respire tão activo
0 fogo da saudade executivo,
Se da razão no intrínseco conceito
Bebe a força efficaz do agudo effeito !
338 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

É sempre menos dura


A pena, que na rústica cultura
Ao Pastor acompanha
Na choça, no redil, que aquella estranha
Paixão, que segue o cortezão polido,
Na civil sociedade introduzido.
Assim o vosso engenho agudo, e raro
Concebe em grande excesso o estrago avaro
Do saudoso tormento;
Dando-lhe tanto mais crescido alento,
Que ao vigor do discurso ponderada
K em vós a saudade mais pezada.
Oh se a guerra implacável, que se accende
Por dentro de minha alma, e que se estende
Pelo campo espaçoso da lembrança,
Pudera retratar-vos ! que mudança,
Tão contraria, tão fúnebre, tão dura
Em mim verieis da fortuna escura!
Aquelle aspecto affavel da alegria,
Que o coração brotava, quando via
Presente em vós o bem, que adora tanto,
Apenas pelas cláusulas do pranto,
Pelas syllabas mudas do gemido,
Hoje publica o fúnebre ruido,
Que ergue a dôr nas imagens da memória,
Tentando em sombras a passada gloria.
0 confuso girar de meu cuidado
Encontro vivamente retratado
Em um baixei vagando; que sem norte
Guia com varia sorte
A onda impetuosa
No golfo Egêo, soprando a tormentosa
Fúria dos ventos, que na estranha guerra
0 crespo Eólo no penhasco encerra.
OBRAS POÉTICAS 339
Mas cesse de meu mal aquella activa
Tyranna agitação, que se deriva
Do tormento fatal da vossa ausência,
Já parece desmaio esta violência,
Quando do vosso espirito suave
A bella producção canora, e grave
Enche os ares de acorde melodia,
Que arrebata de todo a fantasia.
Dos nossos fieis amigos, que a lembrança
Vossa com tão gostozo excesso alcança,
Testemunho a plausível recompensa,
Enviando-vos d'um a copia immensa
Desses, de Apollo gratos desperdícios ;
D'outro interpretes sendo os sacrifícios,
Que repete nas chamas da saudade
A vossa, em tudo cândida, amizade.
Mas desta, que deixaste tão saudoza,
Ribeira, em outro tempo venturoza,
Quando animada do sonoro accento
Do vosso acorde, harmônico instrumento,
Como é possivel, que eu traslade as vozes,
Que entre os ais, e suspiros mais velozes,
Me estão recommendando a cada instante
As lembranças do seu obséquio amante ?
Ella me pede (que discreto rogo !)
Que aquelle generoso, ardente fogo,
Em que por vós se abrasa, vos reGra;
E que outra vez do vosso plectro, e lira
(Porque a pena suffoque, extinga a anciã)
0 toque busque, empenhe a consonância.
Eu o supplico assim, meu caro Alcido,
E a vossos pés rendido
Offereço a vontade; com que posso
Dizer que sou fiel amigo vosso.
340 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

SYLVIO A ALGANO
EPÍSTOLA VI

Pediz-me, Algano, que do meu destino


O enredo peregrino
Vos conte, desde o dia, em que deixada
A pobre choça, a habitação amada,
Para tão triste mal, tão cruel guerra,
Deixei esta montanha, e aquella serra
Busquei; onde jamais o manso gado
Havia apascentado
Dalizo, nem Alfemo,
Pastores, que nas prendas eu nã temo,
Que competir-lhes possa
Cousa alguma, a não ser a gloria vossa.
Ai quanto, caro Amigo,
Esta obediência custa ! Mas se digo,
Que me suffoca a voz o sentimento
De uma ardente paixão, o meu tormento,
Só na vossa amizade,
Que a compaixão promete, a atrocidade
Moderar pôde de um profundo damno ;
Que no intimo arcano
De meu afflicto peito
Não menos que o respeito,
Amor tem encerrado.
OBRAS POÉTICAS 341
Este Monstro vendado,
Gigante, que sem pôr sobre a grandeza
De um monte o outro monte, a redondeza
Do Olympo tem postrado,
E ao soberano Jove despojado
Do raio fulminante ;
Este estrago incessante,
A quem valor não basta, nem escudo ;
Porque tudo destroe, e estraga tudo,
Sendo a sua impiedade
Verdugo infiel da pobre liberdade;
E o mísero alvedrio,
Perdida a gloria, despojado o brio,
Serve de ornar com precipício infausto
De seu triunfante carro o ardente fausto ;
Naquelle dia, Algano, em que apartada
Do rebanho a melhor, a mais amada,
Branca, e tenra ovelhinha,
Solicito me tinha,
Levou-me o Monstro cego,
Desde as humidas margens do Mondego,
Habitação gostosa,
Ou já pela corrente deliciosa,
Ou pela verde sombra dos salgueiros ;

Por ásperos oiteiros


Levou-me o Monstro cego. Entenderias
A cada instante, Algano,
Vendo eminente o damno,
E a face da ruina tão presente ;
Que aquelle escuro sitio era somente,
Ou de enigmas deposito sombrio,
Ou túmulo fatal do somno frio.
Alli não florecia o lírio brando.
342 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Nem ovelha pastando


Alli se divisava;
De estéril producção da pedra brava
A terra se cobria.
Um risco, e outro risco discorria
Assim o meu cuidado :
E Amor já tão ligado
A seu carro fatal me tinha, que indo
A noite as azas sobre o monte abrindo,
Da sombra carregada
Nada me acobardava: porque nada
Poder tão raro tinha, e tão aclivo,
Como de Amor o raio executivo.

Depois em fim que a Aurora


Foi accendendo a tocha brilhadora
Do luminoso Febo,
Diviso de Corebo
0 campo dilatado;
Corebo, esse Pastor tão nomeado,
Não só pela riqueza ;
Mas inda pela graça, e gentileza
Das Ninfas, e Pastoras,
De sitio tão feliz habitadoras.

Pelo prado, e floresta


Cada uma tão gentil se manifesta,
Que não á fresca rosa
Que possa competir-lhes, por formosa.
Cobertas andão todas de um pelico
Mais cândido, e mais rico,
Que a pelle de um arminho esbranquiçado ;
Por um e outro lado
Tecem as flores bellas,
Qual mostra o Armamento áureas estrellas.
OBRAS POÉTICA 343
Porém maior espanto
É ver o cajadinho, que com tanto
Capricho vão movendo ;
Ora sobre elle tendo
A branca mão, ora encostando a face,
Em que Amor, era força, se abrazasse.
Ovelhas vem guiando ;
E em vario som cantando
Os míseros amores
De Ninfas, e Pastores ;
Que naquella floresta
Vio a sorte funesta,
Ou o soberbo fado,
Em venturozo, ou infeliz estado.
Não á Ninfa mimoza,
A quem de Amor a setta venenoza
Não penetrasse o peito,
De Corebo o respeito
A todas suffocava:
Cada uma, o que sentia, mais callava :
Porque o Pastor tyranno,
Por zelo, ou. crueldade (ai, caro Algano !)
A todas tinha posto
Violenta escravidão na lei do gosto.
Dalizo desterrado
Gemia a infausta pena de um cuidado ;
Que para o sentimento
Vivo tem na memória o seu tormento,
Anfrizo sem ventura
Suspirava a perdida formosura,
Em cárcere cruel, que em dura pena
Ccrebo, o Pastor bárbaro, lhe ordena ;
Imaginando ser culpa, que infama,
Arder de Amor na venturoza chama.
314 - CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

Eu, que os exemplos via,


De tanto estrago, e tanta tyrannia,
Em Galatéa pondo o pensamento,
Adorava por gloria o meu tormento.
Tão bella era a Pastora, que somente
Ella fazia o campo estar contente.
Nos seus olhos Amor depositava
Um veneno tão doce, que, se olhava,
Atraz do seu ligeiro movimento
Levava os corações, e o pensamento.
Porém já de meu peito terno, e brando
A dòr fera, e cruel me está chamando,
A que, Algano, vos conte
Os suspiros, que ao Ceo, ao valle, ao monte
Inultilmente dados,
Forão da ingrata Ninfa desprezados.
A anciã continuava ;
Proseguia o gemido ; não cessava
Meu excessivo pranto :
Mas a dispendio tanto,
Compravão meus ardores
Ingratas semrazões, duros rigores.
Um mez quasi corria ;
E esperanças de um dia, e outro dia
Guiavão meu desvelo
Atraz do seu rigor, só por vcnctdlo.
Ah quem vozes tivera,
Algano meu, que referir pudera,
Qual foi o excesso então daquelle dia,
Quando cedendo á força da porfia
De um coração, que entre rigores arde,
Interpretes seus olhos n'uma tarde,
Fez de não sei que incógnita piedade,
Que recatava menos a vontade !
OBRAS POÉTICAS 345
Desde então... mas que emprendo !
Logo Amor aleivoso um golpe horrendo
Contra mim fulminou, roubando a gloria
De tão alta victoria,
De Corebo á noticia,
Fez que chegasse o júbilo, a delicia,
Que provava minha alma. 0 Pastor fero,
Mais cruel, mais severo,
A pena repartindo
Entre dous corações, ao gesto lindo
Da Ninfa mais mimoza
Ordena uma tristeza rigoroza;
E a mim por maior pena
Um desterro duríssimo me ordena.

Deixei-a desmaiada.
Triste, desconsolada,
Seu rizo convertido em vivo pranto :
E eu (triste de mim !) martírio tanto
Sopporto neste fúnebre retiro ;
Que a meus ais, a meu pranto, a meu suspiro
Enterneço os rochedos,
Movo as feras, os troncos, e os penedos.
Quem me dissera, Algano,
Que o fado deshumano,
Fingindo-se propicio,
Me encaminhava a tanto precipício !
E já que foi tão duro,
Que com rosto perjuro
Me pôde conceder um breve instante
De alegria, e de gosto ao peito amante,
Que causa teve o fado
Para me não levar traz meu cuidado,
Conspirando a fereza
De Corebo cruel contra a firmeza
346 CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

De minha adoração, deixando affavel


Do golpe inexorável
Da Parca enfurecida,
Extincto o meu amor na minha vida !
Mas ah ! Que em não matar-me
0 fado mais cruel se quiz mostrar-me :
Assim mais se acredita
A fúria, que meu peito debilita :
Pois louco, e delirante
Vivo sempre em tormento. Astro inconstante.
Maligno, desigual, sempre em meu damno
(Ai carissimo Algano !)
Ordenará, que eu seja
Victima do rigor, e mais da inveja.

FIM DO PRIMEIRO TOMO


ÍNDICE DO PRIMEIRO TOMO

ADVERTÊNCIA i
CLÁUDIO MANOKL DA COSTA. — Sua vida e suas obras . . . . 1
BlBLIOGRAPHU 46
CHRONOLOGIA 48
DOCUMENTOS *i0

SONETOS

A cada instante, Amor, a cada instante 125


Adeos, ídolo bello, adeos, querido 128
Altas serras, que ao Ceo estaes servindo 131
Apenas rebentava no Oriente 136
Apre Giano il gran Tempio ; orrido, e nero 144
Apressa-se a tocar o caminhante 116
Aquella cinta azul, que o Ceo estende . 111
Aquelle, que enfermou de desgraçado 120
Aqui sobre esta pedra áspera, e dura 119
.Assim como o Pastor, também o pobre 203
A vós, canoras Ninfas, que no amado. 180
Ai de mim! Como estou tào descuidado ! 11-
Ai Nize amada! Se este meu tormento 111
Bella imagem, emprego idolatrado 131
Brandas ribeiras, quanto estou contente 10J
Breves horas, Amor, ha, que eu gozava 122
137
Breves horas, que em rápida porfia
Campos, que ao respirar meu triste peito 1'' l
348 ÍNDICE

Clara fonte; teu passo lisongeiro 140


Continuamente estou imaginando 121
Corino, vai buscar aquella ovelha 112
De cosi degno Eroe Ia Regia fronte ; . . . . 1 tr*>
De um ramo desta faia pendurado 113
Deixa, que por um pouco aquelle monte 111
üeixemos-nos, Algano, de porfia 133
Del tuo Fileno a Ia incerata avena 150
Destes penhascos fez a natureza 151
Dolci compagni mi' i, dolce mia cura 148
Dolce parole, or piu non siete quelle 149
Emfim te heide deixar, doce corrente . . . 140
Em profundo silencio já descança 130
Entre este álamo, ó Lize, e esta corrente 152
Erra d'intorno a me lombra onorata 150
Esci d'inganno, ó Nice ; io non fadoro 147
Este é o rio, a montanha é essa 106
Estes braços, Amor, com quanta gloria 120
Estes os olhos são da minha amada 118
Eu cantei, não o nego, eu algum dia 138
Eu ponho esta sanfona: tu, Palemo 107
Fatigado da calma se acolhia 108
Faz a imaginação de um bem amado 116
Formoza é Daliana; o seu cabello 108
Formozo, e manso gado, que pasrendo . . 110
Guarda, ó tronco, este fúnebre letreiro 227
Ha quem confie, Amor, na segurança 124
Já me enfado de ouvir este alarido 134
Já rompe, Nize, a matutina Aurora 138
Ingrata foste, Eliza; eu te condemao 135
Injusto Amor, se de teu jugo izento 123
Junto desta corrente contemplando . 143
Lêa a posteridade, ó pátrio Rio 103
Lembrado estou, ó penhas, que algum dia 132
Memórias do presente, e do passado 127
Misera rimembranza che mai tenti ? 147
Morféo doces cadêas estendia 123
Musas, canoras Musas, este canto 152
Nada pôde escapar do golpe avaro ; 2^3
i. 20
ÍNDICE 349
Não de Tigres as testas descarnadas
141
Não ha no mu ido fé, não ha lealdade
Nao se passa, meu bem, na noite, e clia .
135
Não te assuste o prodigio : eu, Caminhan te
Não te cases com Gil, bella Serrana 136
Não vês, Lize, brincar esse menino 1o
Não vês, Nize, este vento desabrido J|*
Neste álamo sombrio, aonde a escura 11
Ninfas gentis, eu sou o que abrazado
Ninfas, que sobre a espuma prateada *
Nize? Nize? onde estás? Aonde espera. . . .
Non lasciarmi, crudel; quella, ch'io rendo 149
Non ho valor, che basti; io corro in vano. . . • "b
Non parlarmi d'amor, ingrata Nice
Onde estou 1 Este sitio desconheço
Os olhos tendo posto, e o pensamento ^
Ou já sobre o cajado te reciines. .
l
Para cantar de Amor tenros cuidados ™
Parece, ou eu me engano, que esta fonte Jjf
Pastores, que levais ao monte o gado
Piedozos troncos, que a meu terno pranto 1«
Polir na guerra o bárbaro Gentio •
Pouco importa, formoza Daliana
l
Quando cheios de gosto, e de alegria f-
Quando, formoza Nize, dividido
Que feliz fora o mundo, se perdida
Que inflexível se mostra, que constante "»
Que molesta lembrança, que cançada 128
Que tarde nasce o Sol, que vagarozo ™*
Quem chora auzente aquella formozura 122
Quem deixa o trato pastoril, amado J°J
Quem es tu ? Ai de mim 1 Eu reclinado 12*
Quem se fia de Amor, quem se assegura yJ
Questo, che Ia mia Musa oggi a te rendi 151
Se á memória trouxeres algum dia
Se este tronco adorado dos Pastores
Se os poucos dias, que vivi contente
Se sou pobre Pastor, se não governo ^
Sombrio bosque, sitio destinado
350 ÍNDICE

Sonha em torrentes d'agoa o que abrazadu 114


Sorpreso de cosi sonori accenti Hg
Sou Pastor, não te nego; os meus montados 104
Sposi felici, per Ia vostra face . . . . . . . 145
Toda a mortal fadiga adormecia U0
Torno a ver-vas, ó montes ; o destino . . 133
Traidoras horas de enganozo gosto 126
Tu, Ninfa, quando eu menos penetrado 130
Tu, sonora corrente, fonte pura. . . . H_í
Valha-te Deos, cansada fantazia 130

EP1CEDIOS
I. — A' morte do Senhor Conde de Bobadella 153
II. — A' morte de Salicio 16 . ;
'II- — A' morte de um Amigo 170

ROMANCE HERÓICO
Ao Senhor Jozé Gomes de Araújo 173

FABCLV
Do Ribeirão do Carmo IgO

ECLOGAS
111. — Albano 204
XIV. — Alcino 296
XII. — Amarillis 267
X. — Angélica 253
V. — Aruncio 228
XV. — Beliza, e Amarillis 301
XI. — Dalizo 257
VI. — Eulino 235
VII. — Fido 240
II. — Fileno 201
XVIII. — Franceliza 315
ÍNDICE 351
247
IX. — Laura
321
XX. — Lira
311
XV11. — Lize
223
IV. — Lysia
i88
I. — Os Maioraes do Tejo .
306
XVI. — Pescadores
245
VIII. — Polifemo
288
XIII. — Silvio
319
XIX. — Vida do campo.

EPÍSTOLAS

I. — Alcino a File no 324


III. — Dalizio a Salicio 330
V. — Eurillo a Alcido 33T
II. — Fileno a Algano 327
IV. — Melizo a Salicio 333
VI. — Silvio a Algano 340






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