(E-BOOK) MELO - Reflexões Sobre o Discurso Religioso PDF
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Discurso Religioso
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Christian Plantin - ICAR-CNRS- Lyon
Claude Chabrol - Université de Paris III - Sorbonne Nouvelle
Cláudio Humberto Lessa - CEFET/MG
Cristiane Cataldi dos Santos Paes - UFV
Giani David Silva - CEFET/MG
Hugo Mari - PUC/MG
Mariana Ramalho Procópio - UFV
Patrick Charaudeau - LCP-CNRS - Paris
Renato de Mello - FALE/UFMG
William Augusto Menezes - UFOP
Mônica Santos de Souza Melo
Organizadora
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NAD/FALE/UFMG - Belo Horizonte, MG
Direitos Autorais reservados – Lei 5988/73
Copyright © 2017 – Núcleo de Análise do Discurso da FALE-UFMG
Os capítulos assinados são de responsabilidade de seus autores, não
traduzindo, necessariamente, a opinião do NAD/FALE-UFMG
Mônica
Julho de 2017.
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Adriana do Carmo Figueiredo é Doutoranda do Programa de Pós-
Graduação em Estudos Linguísticos do PosLin/FALE-UFMG. Mestre em
Letras, Teoria da Literatura, pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Belo Horizonte. Advogada
constitucionalista. Atua como docente no Centro Federal de Educação
Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG) e como pesquisadora nas
seguintes áreas: estudos linguísticos e literários, com ênfase na Análise do
Discurso e em teorias feministas e de gênero, América Latina, Direitos
Humanos e hermenêutica jurídica.
Aline Torres Sousa Carvalho é Doutora em Estudos Linguísticos pela UFMG
(2016). É mestre em Letras: Teoria Literária e Crítica da Cultura, pela
Universidade Federal de São João del-Rei. Especialista em Educação pela
Universidade Federal de Lavras. Graduada em Letras pela Universidade Federal
de São João del-Rei (2016). Professora de Língua Portuguesa no Instituto de
Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro.
Clebson Luiz de Brito é Professor do Departamento de Letras da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Doutor em Estudos
Linguísticos pela UFMG (2015), com estágio doutoral na Universidade de
Paris IV-Sorbonne. Graduado em Letras-Língua Portuguesa pela UFMG
(2007) e Mestre em Linguística do Texto e do Discurso (2011) pela mesma
instituição. Tem experiência de ensino em Língua Portuguesa com ênfase em
abordagens do Texto e do Discurso. É atualmente Coordenador do curso de
Letras-Língua Portuguesa e Literaturas da UFRN.
Denise de Souza Assis é Professora de Magistério Superior Substituto da
Universidade Federal de Viçosa. Mestre em Estudos discursivos pela UFV
(2017). Graduada em Letras-Literaturas de Língua Portuguesa pela UFV
(2014).
Eduardo Assunção Franco é Doutorando em Análise do Discurso e do
Texto pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais
(2014-2017). Bolsista do CNPq. Mestre em Análise do Discurso e do Texto
pela Faculdade de Letras da UFMG (2010-2012). Especialista em Imagens e
Culturas Midiáticas pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
UFMG (2005). Graduado em Comunicação Social (Jornalismo) pela
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG (1983-1987). Tem
experiência na área de Comunicação, com ênfase em Jornalismo e
Editoração. Tutor da Oficina de Leitura e Produção de Textos (online) da
Faculdade de Letras da UFMG (02/2015, 01/2016, 02/2016)
Edvania Gomes da Silva possui Pós-Doutorado em Linguística pela
Universidade Estadual de Campinas (2010), Doutorado em Linguística
(2006), Mestrado em Linguística (2004) pela mesma instituição e Graduação
em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (2002). Atualmente, é
Professora Titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB);
docente do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e
Sociedade (CAPES/UESB) e docente do Programa de Pós-Graduação em
Linguística (CAPES/UESB). Atua na área de Linguística, área de
concentração em Análise de Discurso, com ênfase nos seguintes temas:
discurso religioso; polêmica discursiva e interdiscurso; aforização.
Glaucia Muniz Proença Lara possui Doutorado em Semiótica e Linguística
Geral pela USP. Realizou dois estágios pós-doutorais em Análise do Discurso, o
mais recente em 2012-2013, com a supervisão de Sírio Possenti (Unicamp) e de
Dominique Maingueneau (Universidade Paris IV – Sorbonne). É professora da
Faculdade de Letras/UFMG, atuando tanto na graduação quanto na pós-
graduação na área de estudos textuais e discursivos. Entre outras publicações
relevantes, organizou os volumes 1, 2 e 4 da coletânea “Análises do discurso
hoje” (com Ida Lucia Machado e Wander Emediato) e o livro “Discurso e
(des)igualdade social” (com Rita de Cássia Pacheco Limberti).Ocupa também o
cargo de coordenadora do POSLIN/UFMG, tendo sido eleita para o biênio
2017-2019.
Ida Lucia Machado é Doutora em Lettres pela Université de Toulouse II.
Realizou dois pós-doutorados em Análise do Discurso em Paris XIII e Paris
III na França. Docente no ICHS/UFOP de 1983 a 1992. Docente na
FALE/UFMG de 1992 a 2012, onde ministrou cursos de língua e literatura
francesa (graduação) e análise do discurso (pós-graduação). Nesse período,
fundou o Núcleo de Análise de Discurso da FALE/UFMG, criou a coleção
NAD/FALE/UFMG, coordenou dois Projetos Capes/COFECUB com Paris
XIII (França), obteve duas bolsas concedidas pela Escola de Altos Estudos da
CAPES, para professores estrangeiros que atuaram no PosLin/FALE/UFMG.
Atualmente é professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos
Linguísticos da FALE/UFMG, onde ministra cursos sobre estudos
discursivos e orienta mestrandos, doutorandos e pós-doutorandos em Análise
do Discurso de tendência francesa. Suas pesquisas nesta área centram-se
sobre narrativas de vida, sujeitos do discurso, literatura, ironia e paródia. É
pesquisadora 2 do CNPq.
Mônica Santos de Souza Melo é Doutora em Estudos Linguísticos pela
Universidade Federal de Minas Gerais (2003), tendo realizado estágio pós-
doutoral em Análise do Discurso (2012) na mesma instituição. Atualmente é
Professora Associada IV da Universidade Federal de Viçosa, onde leciona e
orienta pesquisas na Graduação e no Programa de Pós-Graduação em Letras,
atuando principalmente nos seguintes temas: discurso (religioso, político e
jurídico), argumentação, semiolinguística e mídia. É Bolsista de Produtividade
em Pesquisa do CNPq.
Rony Petterson Gomes do Vale Ġ PHD em Linguística do Texto e do
Discurso pela Universidade Federal de Minas Gerais e Professor Adjunto do
Departamento de Letras da Universidade Federal de Viçosa, na área
Linguística/Português. Atua na graduação em disciplinas como: Metodologia
de Pesquisa, Leitura e Produção de Textos, Análise do Discurso, entre outras.
É professor credenciado do programa de pós-graduação em Letras do DLA-
UFV, onde desenvolve pesquisas sobre o Discurso Humorístico e a
Linguagem do Riso, com base nos pressupostos teóricos e metodológicos da
Análise do Discurso e contribuições de outras áreas do conhecimento como,
por exemplo, a Retórica, a Filosofia, a Psicologia etc. No estágio pós-
doutoral (UFMG), busca a compreensão do Discurso Humorístico em suas
relações interdiscursivas (politicamente incorretas), com especial destaque
para a presença das formas plenas e reduzidas do riso na produção dos
discursos constituintes, como o científico e o religioso.
Sandra Ramos Carmo é Mestre em Linguística pela Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia - UESB, graduada em Letras e especialista em
Linguagem Pesquisa e Ensino, pela mesma Instituição. Tem experiência
como tutora Ead (cursos de especialização e extensão) e em docência na área
de Língua Portuguesa. Desenvolve pesquisas na área de Análise de Discurso,
com ênfase no discurso religioso, e realiza estudos voltados à Linguística de
Texto, especialmente, ligados aos processos de referenciação.
Wander Emediato é Graduado em Letras pela UFMG (1992), e Mestre em
Estudos Linguísticos pela mesma universidade (1996). Doutor em Ciências da
Linguagem pela Universidade de Paris XIIII (Paris-Nord) (2000) e Pós-doutor
pela Universidade de Lyon II (ICAR-CNRS). Atualmente é Professor Associado
da Universidade Federal de Minas Gerais, área de Língua Portuguesa, Estudos
Textuais e Discursivos e do Programa de Pós-graduação em Estudos
Linguísticos. É também o atual coordenador do Núcleo de Análise do Discurso
(NAD-UFMG) e líder do Grupo de Pesquisa em Análise do Discurso do CNPq.
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CAPÍTULO 1: Entre os claustros do convento e a cidade letrada: narrativas
de vida de Sor Juana Inés de la Cruz, 15
Adriana do Carmo Figueiredo
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Segundo Octavio Paz (1993), os três séculos que caracterizam
a chamada Nova Espanha, especialmente os séculos XVII e XVIII,
podem ser compreendidos como uma gestação do que hoje
conhecemos como nação mexicana. De fato, as raízes do México estão
no mundo pré-hispânico, e muitos dos elementos constitutivos desse
mundo reaparecem na sociedade seiscentista. Esses matizes novo-
hispânicos se apresentam de forma numerosa e decisiva, destacando-
se, entre eles, os discursos religiosos, literários e a própria cultura
letrada que se formou na colônia. A Nova Espanha era um complexo
tecido de influências e jurisdições; diante do poder político e judicial
do vice-rei, encontrava-se o poder moral e religioso da igreja,
especialmente, do arcebispo do México, Francisco de Aguiar y Seijas
y Ulloa (1632-1698). É nesse ambiente de alianças e disputas pelo
poder, que localizamos as narrativas de vida da escritora e religiosa
16 Adriana do Carmo Figueiredo
1
Tradução de Aline T. Carvalho (2016, p. 23): “[...] étudier un fragment particulier
de la réalité social-historique, un objet social; de comprendre comment il
fonctionne et comment il se transforme, en mettant l’accent sur les configurations de
rapports sociaux, les mécanismes, les processus, les logiques d’action qui les
caractérisent.”
Entre os claustros do convento e a cidade letrada: Narrativas de vida de ... 17
mundo em que viveu. Essa relação nos leva, por fim, a compreender
como se dá a intervenção desse sujeito discursivo, “sendo, ele próprio,
psicossocio-linguageiro” (CHARAUDEAU, 2005) numa sociedade
que se encontrava sob os domínios da Igreja e da Corte vice-real. Esta
é a razão de nosso recorte teórico e metodológico que enfatiza trechos
de narrativas de vida da monja Sor Juana e sua relação com a Teoria
Semiolinguística.
No que se refere à nossa visada sobre uma suposta nação
imaginária que se constrói por meio dos discursos literários e
religiosos, destacamos que, para Benedict Anderson (1989),
determinados termos como “nação”, “nacionalidade” e
“nacionalismo” são de difícil definição, tendo em vista a influência
que tais termos têm exercido no mundo contemporâneo e a escassez
de teorias plausíveis sobre estes. O autor parte da compreensão de que
tanto “nacionalidade” quanto “nacionalismo” são artefatos culturais
de um tipo peculiar. Desse modo, para que possamos compreender a
construção imaginária da nação, pelas vias do discurso, é preciso levar
em conta como esses artefatos culturais tornaram-se entidades
históricas linguageiras, de que modo seus significados se alteraram no
decorrer do tempo, e por que, hoje em dia, inspiram os fluxos de
legitimidade.
A criação desses artefatos caracterizadores da nação
mexicana, a nosso ver, tem sua origem no “cruzamento” intrincado de
forças históricas marcadas pelos discursos provenientes da Igreja e do
poder dos Vice-Reis, que mapearam o território ocupado pela Nova
Espanha, no período colonial, e definiram o papel exercido pelos
intelectuais das cidades letradas (RAMA, 1985). Assim, surge a
literatura poético-epistolar sorjuanista que suscitou as primeiras
construções de um imaginário de crenças de onde brotou a noção de
uma comunidade embrionária, erguida entre os alicerces de uma casta
religiosa e um reino dinástico, e que apresentava as raízes culturais do
que entendemos hoje como nação moderna. Segundo Anderson (1989,
p. 31), detrás da suposta “decadência das comunidades, línguas e
linhagens sagradas, tinha lugar uma mudança fundamental nos modos
de apreender o mundo, que, mais do que qualquer outra coisa, tornou
possível ‘pensar’ a nação.”
É importante esclarecer também que a construção imaginária
dessa nação-embrionária será lida por meio de um discurso literário
Entre os claustros do convento e a cidade letrada: Narrativas de vida de ... 19
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A fundação dos conventos na Nova Espanha ocorreu por meio
de obra popular em que se arrecadavam esmolas para que os edifícios
fossem erguidos. Josefina Muriel (1995) conta que essa ideia surgiu
do bispo Juan de Zumárraga3 e foi concretizada com a participação do
povo, em uma verdadeira congregação humana que ainda não havia
constituído sua nacionalidade. Nesse cenário, encontravam-se o
conquistador espanhol, fiel às ordens da Igreja, os índios e os negros
que não aceitavam completamente o catolicismo, mas buscavam
2
Em conformidade com o Diccionario de la Real Academia Española, o termo
“criollo” refere-se a uma pessoa, filha ou descendente de europeus, nascida nos
antigos territórios espanhóis que se encontravam na América ou em algumas
colônias europeias do referido continente. O dicionário supracitado também define
o mesmo termo como pessoa de raça negra, nascida em territórios hispano-
americanos, por oposição àquelas que haviam sido levadas da África como
escravas.
3
Foi o primeiro bispo da diocese do México, desde 1528, e segundo da Nova Espanha
(depois de Fray Julián Garcés), consagrado em 27 de abril de 1533 e nomeado
arcebispo em 1547. Zumárraga foi repressor das supostas bruxas, na Espanha, e
também foi fundador da Real y Pontificia Universidad de México, atualmente
conhecida como Universidad Nacional Autónoma de México.
20 Adriana do Carmo Figueiredo
4
[...] leer y más leer, de estudiar y más estudiar, sin más maestro que los mismos
libros (CRUZ, 1995, IV, p. 447).
22 Adriana do Carmo Figueiredo
5
Este tema será abordado com profundidade na minha tese doutoral no Programa de
Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Minas Gerais, quando
destacarei as formações discursivas ideológicas presentes nessa narrativa de Sor
Juana que nos levam a pensar esses princípios jurídicos relativos à igualdade,
liberdade e dignidade.
6
O termo feminismo foi forjado no século XX; referimo-nos aqui aos atos que
fizeram com que a escritora mexicana se tornasse uma feminista avant la lettre.
Entre os claustros do convento e a cidade letrada: Narrativas de vida de ... 23
7
Entendemos como discurso hegemônico aquele que sobressai dentre os discursos
existentes e que, dentro de uma correlação de forças, detém uma posição
hierárquica, a qual termina por polarizar os outros discursos a partir de si mesmo.
Esse discurso hegemônico é marcadamente masculino e vale-se de uma linguagem
construída sob uma razão civilizatória que assimilou o masculino como universal,
como nos aponta RICHARD, N. Masculino / Femenino: Prácticas de la diferencia y
Cultura democrática. Santiago: Francisco Zegers Editor, 1993.
24 Adriana do Carmo Figueiredo
particular, mas para todas em geral” (CRUZ, 1995, IV, p. 449, trad.
nossa). Contudo, mesmo nessas leituras aparentemente desordenadas,
guardava certo ritmo. Sor Juana quis abraçar com profundidade os
temas e as ciências que formavam o núcleo da cultura de sua época,
procurando discernir os nexos que uniam esses díspares
conhecimentos uns aos outros.
E como não tinha interesse que me movesse, nem limite
de tempo que me encurtasse o continuado estudo de
uma coisa pela necessidade das classes, quase ao
mesmo tempo estudava diversas coisas ou deixava umas
por outras; [...] Eu sobre mim posso assegurar que o que
não entendo em um autor de uma determinada
academia, procuro entender em outro de outra que
parece muito distante; e esses próprios, ao se
explicarem, abrem exemplos metafóricos de outras artes
[...] (CRUZ, 1995, IV, p. 449-450, trad. nossa).9
9
Y como no tenía interés que me moviese, ni límite de tiempo que me estrechase el
continuado estudio de una cosa por la necesidad de los grados, casi a un tiempo
estudiaba diversas cosas o dejaba unas por otras; [...] Yo de mí puedo asegurar
que lo que no entiendo en un autor de una facultad, lo suelo entender en otro de
otra que parece muy distante; y esos propios, al explicarse, abren ejemplos
metafóricos de otras artes [...] (CRUZ, 1995, IV, p. 449-450).
10
Neste sentido, Hobsbawm (1990, p. 63) esclarece que os movimentos nacionais e o
Estado podem provocar múltiplos sentimentos e certas variações que levam à
mobilização de um vínculo coletivo já existente que geram o que o autor chama de
“laços protonacionais”.
26 Adriana do Carmo Figueiredo
11
Ni aun la libertad misma / tenerla por bien quiero: / que luego será daño / si por tal
la poseo (CRUZ, 1995, I, p. 207).
12
Para el alma no hay encierrro / ni prisiones que la impidan, / porque sólo la
aprisionan / las que se forma ella misma (CRUZ, 1995, I, p. 221).
Entre os claustros do convento e a cidade letrada: Narrativas de vida de ... 27
13
Mulieres in Ecclesiis taceant, non enim permittitur eis loqui, [...] Mulier in silentio
discat (CRUZ, 1995, IV, p. 467-468).
14
[...] yo quisiera que estos intérpretes y expositores de San Pablo me explicaran
cómo entienden aquel lugar: Mulieres in Ecclesia taceant. Porque o lo han de
entender de lo material de los púlpitos y cátedras, o de lo formal de la
Entre os claustros do convento e a cidade letrada: Narrativas de vida de ... 29
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Charaudeau (2015) esclarece que existem múltiplas
abordagens sobre os mecanismos de construção identitária, e isso nos
leva a analisar os efeitos nos imaginários socioculturais e nos modos
de comportamento dos indivíduos em sociedade com diferentes
ressonâncias. Entre elas, consideramos as abordagens sociológica,
histórica e antropológica como relevantes para o nosso estudo
referente ao discurso religioso e suas interfaces. É importante
comentar que a Análise do Discurso, como ciência da linguagem,
destaca-se por sua natureza transdisciplinar, uma vez que “a
linguagem está no cerne da construção, tanto individual quanto
coletiva, do sujeito, o que ocorre em três domínios de atividade
humana” (CHARAUDEAU, 2015, p. 13). Esses domínios, por sua
vez, são destacados por Charaudeau (2015) da seguinte forma: a) o
domínio da socialização dos indivíduos, dado que a linguagem aqui
funciona como elo social, pois promove a relação de si com o outro;
b) o domínio do pensamento, uma vez que os conceitos se dão pela
mediação da linguagem. Assim “extraímos o mundo de sua realidade
empírica para fazê-lo significar” (CHARAUDEAU, 2015, p. 13); e,
por fim, c) o domínio dos valores, já que estes existem porque há a
linguagem que os expressa, logo as nossas ações ganham sentido por
meio dos atos de linguagem que significamos.
Esses domínios, de certa forma, também são elaborados por
Ángel Rama (1985) quando, na perspectiva dos estudos culturais,
afirma que, no centro das sociedades vice-reais, houve uma cidade
letrada que se ergueu com as alianças entre o eixo protetor do poder e
o executor de suas ordens: essa cidade era composta por um núcleo de
religiosos, intelectuais, administradores e múltiplos servidores dos
16
Muitos foram os intelectuais e eclesiásticos da época que se tornaram admiradores
de Sor Juana e deixaram ricas contribuições como panegiristas em seus escritos.
Entre eles, destacam-se: fray Luis Tineo de Morales, Pedro Zapata, José Zarraldi,
Juan Bautista Sandi, Gabriel Álvarez de Toledo, Carlos de Sigüenza y Góngora,
entre outros.
Entre os claustros do convento e a cidade letrada: Narrativas de vida de ... 31
17
Teniendo yo después como seis o siete años, y sabiendo ya leer y escribir, con todas
las otras habilidades de labores y costuras que deprenden las mujeres, oí decir que
había Universidad y Escuelas en que se estudiaban las ciencias, en Méjico; y
apenas lo oí cuando empecé a matar a mi madre con instantes e importunos ruegos
sobre que, mudándome el traje, me enviase a Méjico, en casa de unos deudos que
tenía, para estudiar y cursar la Universidad (CRUZ, 1995, p. 445-446).
Entre os claustros do convento e a cidade letrada: Narrativas de vida de ... 33
KJ?HQO°K
Sor Juana pertencia, portanto, a outros espaços da sociedade
novo-hispânica que ultrapassavam os limites do convento. Ainda que
tenha sido a partir de seus claustros, ela encontrou a legitimação dos
seus discursos e promoveu a efetivação do seu principal projeto de
fala, qual seja, o de ressignificar o papel da mulher na sociedade
colonial. E, desse modo, defender o direito feminino principalmente
no que se refere à educação e ao conhecimento, alicerces ideológicos
de uma futura nação pensada com o matiz da justiça social em seus
pilares. Sem dúvida, essa vivência da monja mexicana entre a Igreja e
a Corte trouxe marcas significativas na sua produção literária. Essas
marcas trazem peculiaridades em seu discurso religioso que, embora
alicerçado de teologia e histórias sagradas, nos levam à compreensão
de um mundo que vai além daquele universo monástico em que estava
submersa, pois seus discursos são reveladores da diversidade da
cultura hispânica, de forma ampla, e das bases culturais do México
atual.
A monja mexicana viveu uma luta ambígua entre religião e
vida da corte, em que sua missão consistia em provar que, para
alcançar o saber máximo, ou seja, o domínio da teologia, era preciso
passar pelos estudos das diversas ciências e artes.
Lembramos ainda que, muito jovem e antes de entrar para o
claustro, ela produziu nesta corte poemas por encomenda. Seus versos
começaram a circular de mão em mão, de boca em boca e logo se
tornaram totalmente públicos, pois também foram impressos com o
apoio dos vice-reis. Desse modo, considerada em seu todo, a produção
poética sorjuanista ganhou expressividade entre um fazer que era, ao
mesmo tempo, profano e religioso.
Segundo Benedict Anderson (1989, p.72), “a imprensa chegou
cedo à Nova Espanha, mas permaneceu durante dois séculos sob o
estrito controle da coroa e da Igreja”. As gráficas se localizavam na
Cidade do México e em Lima, e a Igreja determinava de forma
praticamente exclusiva a produção até fins do século XVII. Foi dessa
Entre os claustros do convento e a cidade letrada: Narrativas de vida de ... 35
18
Importante comentar que muitos são os enigmas que circundam a vida da escritora
mexicana. Um deles diz respeito a sua origem. O enigma do pai de Juana Inés, além
de desconcertante, é um dos grandes obstáculos que enfrentam seus biógrafos. Em
1926, Dorothy Schons, uma sorjuanista americana, afirmou que “a biografia de Sor
Juana ainda está por ser escrita.” Hoje, depois de alguns anos, podemos afirmar que
os mistérios e enigmas da Décima Musa do México ainda pairam sobre os
estudiosos da sua vida e obra como algo apaixonante, em que se buscam respostas a
inúmeras perguntas.
Entre os claustros do convento e a cidade letrada: Narrativas de vida de ... 37
/ABAN¶J?E=O
ANDERSON, B. Nação e consciência nacional. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira.
São Paulo: Ática, 1989.
BERTAUX, D. Le récit de vie. L’enquête et ses méthodes. 2. ed. Paris: Armand Colin,
2005.
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<URL: http://www.patrick-charaudeau.com/Uma-analise-semiolinguistica-do.html>.
CRUZ, S. J. I. de la. Obras Completas de Sor Juana Inés de la Cruz II – Villancicos y
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CRUZ, S. J. I. de la. Obras Completas de Sor Juana Inés de la Cruz IV – Comedias,
Sainetes y Prosa. Edición, introducción y notas de Alberto G. Salceda. México:
Fondo de Cultura Económica, Instituto Mexiquense de Cultura, 1995.
CRUZ, S. J. I. de la. Obras Completas de Sor Juana Inés de la Cruz I – Lírica
Personal. Edición, prólogo y notas de Alfonso Méndez Plancarte. México: Fondo de
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Diccionario de la Real Academia Española. Disponível em: <http://dle.rae.es/>
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HOBSBAWM, E. J. Nações e Nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade.
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FIGUEIREDO, A. C. A construção da voz feminina na obra de Sóror Juana Inés de
la Cruz: Mistérios e Enigmas. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação
38 Adriana do Carmo Figueiredo
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Aline Torres Sousa Carvalho
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Quando pensamos na figura do santo, parecemos estar diante
de um múltiplo universo de saberes e de crenças, seja no que diz
respeito à religião e à cultura de povos de diferentes épocas e locais,
seja em relação às diversas áreas que compõem o campo das Ciências
Humanas, da Teologia, das Letras, das Artes, da Psicologia.
Nesse sentido, uma série de perguntas vem à tona: o que é ser
santo? Essa ideia refere-se apenas aos que foram canonizados, isto é,
aos santos reconhecidos pela Igreja Católica ou é possível pensar em
uma “santidade” para além desta religião? Em que medida a santidade
pode ser considerada uma questão discursiva? Para refletir sobre tais
questões, analisaremos, sob o viés da Análise do Discurso, fragmentos
das narrativas de vida de dois personagens: São Francisco de Assis e
Francisco Xavier, mais conhecido como Chico Xavier.
Acreditamos que ambos os Franciscos tenham em comum
muito além do nome, sobretudo, se analisarmos os processos de mise-
en-narrative encontrados nas obras Vida de um homem: Francisco de
Assis, de Chiara Frugoni (2011), e As vidas de Chico Xavier, de
Marcel Souto Maior (2003).
40 Aline Torres Sousa Carvalho
OJ=NN=PER=O@ARE@=ÏQIIQJ@KNA=HEI=CEJ=@K
Existem muitas obras cuja temática é a narrativa de vida de
Chico Xavier, haja vista sua importância no cenário brasileiro e no
universo espírita. As vidas de Chico Xavier (MAIOR, 2003) é uma
obra que havia sido publicada em 1994 e que foi revista e ampliada
em 2003. Em suas páginas, encontram-se fatos da vida de Francisco
Xavier, relatados pelo médium ao jornalista, que foi a Uberaba “com
uma tarefa ambiciosa: receber um sinal verde do próprio Chico Xavier
para escrever sua biografia” (MAIOR, 2003, p. 15).
A narrativa tem início com os últimos momentos de Chico
Xavier, em sua casa, antes de sua morte, e da repercussão do
acontecimento no Brasil. Em retrospectiva, segue o relato de vida do
médium desde menino, apresentando, em toda a obra,
personagens/pessoas que participaram da vida de Chico, diálogos
entre eles, reprodução de trechos de jornais, fotos, cartas e poemas
psicografados pelo médium.
O discurso da “santidade” em narrativas de vida: Para além da religião 41
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O verbete santidade, na Enciclopédia Einaudi (1987), explica
que a figura do santo encontra-se em grande parte das religiões,
possuindo um significado ambivalente, uma vez que se remete tanto
ao terrestre, implicando uma separação da condição humana, quanto à
hipótese de uma ligação com a divindade, suscetível de efeitos
purificadores. Nesse sentido, o santo é um ser “(...) ao mesmo tempo
totalmente diferente e extremamente próximo do homem”
(VAUCHEZ, 1987, p. 287), sendo que, conforme o autor, em
determinadas épocas, evidenciou-se mais em um ou outro lado dessa
definição.
Na Grécia Antiga, a santidade era relacionada apenas à
divindade, jamais sendo atributo de seres humanos vivos, muito
embora os heróis tenham alcançado a perfeição e a imortalidade. De
modo semelhante, na religião hebraica, em seus primórdios, a
santidade era atribuída apenas a Yahwëh, enquanto que, na Bíblia, a
palavra santo designava tudo o que estava próximo de Deus,
referindo-se a pessoas ou a locais, sobretudo, aos templos e aos
sacerdotes (VAUCHEZ, 1987).
No tempo dos profetas, a concepção bíblica de santidade
passou a adquirir um valor moral e espiritual (VAUCHEZ, 1987;
GAJANO, 2002), ultrapassando, em certa medida, os limites do
universo religioso. A santidade, então, passou ser atribuída “tanto à
coletividade (o povo de Israel) quanto a certos homens em particular,
eleitos por Deus, dotados por Ele de um espírito profético e de
poderes taumatúrgicos5” (GAJANO, 2002, p. 96).
Tais homens eram considerados mediadores entre Deus e os
seres humanos e, no Antigo Testamento, limitavam-se a um pequeno
número: Moisés, Daniel, Samuel, Elias, Eliseu e alguns outros.
Conhecidos como profetas, eram considerados capazes de agir
segundo a autoridade e a influência de Deus, levando aos demais a
promessa da benevolência divina condicionada à renúncia ao mal e ao
pecado.
5
Do grego șĮȪȝĮ, thaûma, milagre ou maravilha, e ȑȡȖȠȞ, érgon, trabalho, a
taumaturgia designa a capacidade daqueles que realizam milagres, os taumaturgos.
46 Aline Torres Sousa Carvalho
6
Este episódio, tal como os demais descritos ao longo de nosso trabalho, pode ser
observado em outras narrativas de vida do personagem, tais como as de Le Goff
(2013) e a do teólogo Spoleto (2010), nosso corpus de apoio. Isso, porém, sem nos
esquecermos da pesquisa de Frugoni (2011), já que nosso propósito é trabalhar com
o discurso proposto/organizado por esta historiadora em seu já citado livro.
O discurso da “santidade” em narrativas de vida: Para além da religião 49
7
É importante ressaltar que Chico Xavier pregava o Evangelho Segundo o Espiritismo, de
Allan Kardec, cuja base doutrinária destoa em diversos pontos do Evangelho, presente na
Bíblia. No entanto, como tratamos de uma análise discursiva de determinada narrativa de
vida, acreditamos ser suficiente considerar que tanto ele quanto Francisco de Assis
propõem a seus seguidores bondade, a caridade e a fé em Jesus Cristo.
52 Aline Torres Sousa Carvalho
,?KNLK@KO=JPKÏLQNEBE?=³°KA?=OPE@=@A
Como vimos até o momento, o mediador entre Deus e o
homem é um ser que, tendo vivido na Terra, tem como atributo, entre
outros, o fato de ter renunciado ao pecado e aos prazeres carnais.
Desse modo, o corpo do santo é um elemento fundamental em sua
história, tanto em vida, quanto após sua morte.
Gajano (2002) afirma que a santidade cristã ocorre a partir das
escolhas de vida feitas por homens e mulheres cujas vivências
destacam-se pela excepcionalidade no seguimento do exemplo de
Cristo e pela sintonia com Ele, adquirida por meio da oração, das
práticas das virtudes e até mesmo do sofrimento. Nas palavras da
autora, para que alguém seja considerado um santo:
A escolha religiosa deve ser visível e reconhecível.
Disto resulta a importância central dada ao corpo:
controlado, atormentado, dominado, o corpo é a
realidade física na qual o percurso espiritual se coloca
em evidência (tomando sobretudo formas extremas, que
são consideradas a prova da identificação com Cristo:
estigmas, troca do coração, materialização dos símbolos
da cruz)” (GAJANO, 2002, p. 99).
8
Houve uma figura feminina importante na vida de São Francisco de Assis: Santa
Clara, uma jovem que, aos 18 anos, deixou sua casa para seguir os preceitos do
personagem. Santa Clara fundou a Ordem das Clarissas, inserindo o universo
feminino no ideal franciscano. Segundo Frugoni (2011), ao longo de suas vidas,
houve certo distanciamento físico entre os personagens, mas eles cultivaram uma
grande amizade de modo que foram Clara e suas irmãs quem cuidaram de São
Francisco em sua velhice e nas proximidades de sua morte.
O discurso da “santidade” em narrativas de vida: Para além da religião 57
HCQI=O?KJOE@AN=³ÀAOBEJ=EO
Tecemos neste capítulo uma análise do discurso mais livre,
inspirada no que podemos chamar de uma Análise do Discurso
60 Aline Torres Sousa Carvalho
/ABAN¶J?E=O
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1998.
CHARAUDEAU, P. Langage et Discours. Paris: Hachette, 1983.
O discurso da “santidade” em narrativas de vida: Para além da religião 61
=L¹PQHK
0HVVLDQLVPRFRPR'LVFXUVRH
FRPR&HQRJUDILD
&JPNK@Q³°K
Nosso objeto de estudo neste trabalho está relacionado ao
conceito de messianismo, o que exige, inicialmente, uma
contextualização. Como explica Cazelles (1984, p. 1312), no seu
sentido restrito, o termo tem relação com o caráter sagrado dos reinos
da época primitiva. Ele deriva de messias, que significa originalmente
“ungido do senhor”, uma referência ao rito de unção por óleo de oliva
que legitimava o rei como aquele destinado pela divindade a levar
proteção a seu povo.
Como crença religiosa, o termo refere-se originalmente à
crença judaica na vinda de um libertador ou salvador, o messias, que
poria fim a uma ordem caótica e perversa, estabelecendo uma outra de
justiça e felicidade, como explica Vanderlinde (2008, p. 88). Essa
crença foi também assumida pelos cristãos, para os quais as profecias
do Velho Testamento sobre a vinda do Salvador concretizaram-se em
Jesus. Por isso, nessa crença, espera-se, segundo Katz e Popkin (1999,
p. 15-20), a parousia, isto é, o retorno do Cristo para a instalação de
seu reino de mil anos.
64 Clebson Luiz de Brito e Glaucia Muniz Proença Lara
?KIQJE?=³°KLANOQ=OER=A=O?AJ=O@=
AJQJ?E=³°K
Na abordagem aqui assumida, tomamos o discurso como um
objeto que engaja enunciador e enunciatário em uma comunicação
persuasiva que relaciona fazer saber e fazer crer. O ato de linguagem
é compreendido, assim, como a proposição de um contrato fiduciário,
que envolve uma certa confiança mútua entre os parceiros, bem como
um contrato de veridicção, que implica papéis ativos para ambos os
actantes da enunciação: ao enunciador cabe o fazer persuasivo que
busca fazer parecer verdadeiro o objeto-discurso oferecido ao outro;
ao enunciatário, por sua vez, cabe o fazer interpretativo,
compreendido como um ato epistêmico em que se julga o discurso
recebido, comparando-o com aquilo que já se sabe e com aquilo em
que se crê.
Com efeito, a interpretação é um processo de reconhecimento,
que pressupõe uma comparação e uma possível identificação entre a
“verdade” proposta no discurso (parecer verdadeiro) e a “verdade”
contida no universo cognitivo e no universo de crenças do
Messianismo como discurso e como cenografia 65
1
Em sintonia com a teoria semiótica, utilizamos aqui os termos “enunciador” e
“enunciatário”, entendidos, respectivamente, como o destinador e o destinatário do
objeto-discurso. Lembramos, porém, que não são termos empregados por
Maingueneau.
Messianismo como discurso e como cenografia 67
OLA?PKOAJQJ?E=PERKOANAP¾NE?KO@K
@EO?QNOKIAOOE¯JE?K
Em um trabalho anterior (ver BRITO; LARA, 2014),
procuramos esboçar o que denominamos “retórica do discurso
messiânico”, isto é, um conjunto de procedimentos ligados à
persuasão nesse discurso. Buscamos, assim, determinar o que do
ponto de vista da dimensão persuasiva ligava, sob a etiqueta discurso
messiânico, textos bem diferentes do ponto de vista do nível mais
superficial da construção do sentido. Neste artigo, retomaremos e
ampliaremos essa discussão, introduzindo noções que não foram
contempladas no trabalho citado. Além disso, tomaremos como
exemplo um texto ainda pouco conhecido de Padre Vieira: História do
Futuro, obra que dá voz a um messianismo português/cristão,
defendendo a iminência do Quinto Império, um império do Cristo na
Terra liderado por Portugal.
O que se constatou em Brito e Lara (2014) é que a imagem do
enunciatário no discurso messiânico está ligada a uma situação de
vulnerabilidade e de angústia diante de uma realidade tida como
opressora, variando, de caso a caso, apenas os problemas de que se
vale o enunciador para atualizar essa disposição negativa do
enunciatário, embora tais problemas apontem, de modo geral, para
uma falta ligada ao desejo de um valor absoluto (ausência total e
definitiva de males diversos). Já o enunciador caracteriza-se,
sobretudo, por um ethos de conhecimento, na medida em que detém
um saber singular sobre a (única) saída possível para a condição
aflitiva.
68 Clebson Luiz de Brito e Glaucia Muniz Proença Lara
NAP¾NE?=IAOOE¯JE?=J=%EOP¾NE=@KBQPQNK
@A-=@NA3EAEN=
A História do Futuro, de Padre Vieira, manifesta os
elementos indicados até aqui. A obra deveria conter sete livros, mas
acabou contando com apenas dois, em parte em função das
implicações do trabalho para o jesuíta, que foi alvo de processo no
Santo Ofício. No texto, defende-se, sobretudo com base em leituras de
profecias de Daniel e de Zacarias, a iminência do Quinto Império, um
2
Para Zilberberg (2007), a estrutura do acontecimento, por oposição à da rotina (ou
exercício), é marcada por um necessário sincretismo entre o sobrevir (modo de
eficiência), em que a grandeza se instala, no campo de presença do sujeito, sem
nenhuma espera, denegando, de forma abrupta, suas expectativas; a apreensão
(modo de existência), que remete ao estado do sujeito inicialmente espantado,
admirado, impressionado e, dali por diante, marcado pelo que lhe aconteceu; e a
concessão (modo de junção), que remete à dupla “embora a, entretanto não b”.
Messianismo como discurso e como cenografia 69
,@EO?QNNOKIAOOE¯JE?K?KIK?AJKCN=BE=ÏÏ
=HCQJOAATAILHKO
Vamos explorar
e aqui três textos jornalísticos que se valeem de
uma cenografia que remete à cena englobante religiosa e, mais
especificamente, ao quadro do messianismo. Neles, a inform mação
trazida pelo enunnciador-jornalista ganha ares de promessa, anúnccio de
uma transformação radical à maneira da redenção prometidaa em
discursos como o que examinamos na seção anterior. Esse é o caaso da
matéria de Vejaa (a capa e a reportagem correspondente) sobre
pesquisas com céélulas-tronco:
Quadro 1: Depoimento
E ELE FOI À PADARIA SOZINHO
Fonte: Folhapress
Foto: de Daniel Marenco
Messianismo como discurso e como cenografia 81
KJ?HQO°K
Fizemos, neste trabalho, uma reflexão sobre a problemática
dos textos que manifestam um discurso tido como messiânico, textos
esses que separamos em dois grupos: de um lado, aqueles que
atualizam a crença messiânica de forma explícita; de outro, aqueles
que, de alguma maneira, aludem ao messianismo. Essa divisão nos
levou a relacionar os dois grupos por meio das chamadas cenas da
enunciação propostas por Maingueneau (2008a), que permitem, ao
mesmo tempo, diferenciar e aproximar os textos de ambos os grupos.
No caso dos textos que atualizam a crença messiânica, o
discurso inscreve-se em um quadro cênico religioso (domínio
discursivo + cena genérica), prevendo como iminente o advento de
uma instância redentora ligada ao sagrado. Esse é o caso da obra de
Padre Vieira, que mescla um messianismo cristão a um messianismo
português, como explicamos. O discurso da História do futuro é o
lugar de um ato preditivo que dá como iminente a instalação do
Império do Cristo na Terra, império que traria pacificação global e que
seria liderado por Portugal. Esse ato preditivo, ligado a um ethos de
conhecimento do enunciador, volta-se para um enunciatário marcado
82 Clebson Luiz de Brito e Glaucia Muniz Proença Lara
/ABAN¶J?E=O
BRITO, C. L. de; LARA, G. M. P. Esboço de uma retórica do discurso messiânico.
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Messianismo como discurso e como cenografia 83
=L¹PQHK
$QDOLVDQGRR'LVFXUVR5HOLJLRVR
0LGLDWL]DGRQR3URJUDPD'H)UHQWH
&RP*DEL8P&RQVWUDVWH(QWUHRV
'LVFXUVRVGR3DGUH)iELRGH0HORH
GR3DVWRU6LODV0DODIDLD
Denise de Souza Assis e Mônica Santos de Souza Melo
&JPNK@Q³°K
A religião é uma prática social que se destaca pela sua
importância histórica e pela sua contribuição ativa nos processos
sociais. Na contemporaneidade, essa importância se estende
principalmente pelo fato de a religião ser responsável pela propagação
de valores morais e éticos dentro da sociedade. Ademais, é cada vez
mais atuante seu papel na formação da identidade de um determinado
povo, sendo que as Igrejas e formas de religiosidade são vistas pelos
fiéis como uma válvula de escape e um alívio para problemas
espirituais e até mesmo físicos. A Igreja funciona, então, como
transformadora da vida de seus devotos.
Essa importância da religião na sociedade faz com que as
Igrejas se preocupem cada vez mais com a expansão de sua
visibilidade, através de novas formas de fazer religião que, muitas
vezes, são amparadas pelos dispositivos midiáticos. Dessa forma,
percebemos uma aproximação entre o domínio religioso e o domínio
86 Denise de Souza Assis e Mônica Santos de Souza Melo
IE@E=PEV=³°K@K@EO?QNOKNAHECEKOK
Primeiramente, é interessante pensarmos em um conceito de
mídia, que conforme Hepp (2014), pode se referir a instrumentos
técnicos que influenciam de forma direta o processo de comunicação.
Podemos citar, dentre esses instrumentos, a televisão, o rádio e as
redes sociais, instrumentos estes que estão em constante modificação e
interferem nos processos sociais contemporâneos, já que influenciam
os diversas práticas sociais. Quando pensamos em midiatização,
vemos de forma mais ativa, sua utilidade e importância articuladas a
essas práticas sociais, estabelecendo dessa forma, uma mediação
desses ditos campos sociais. Essa mediação ainda se faz integrada a
elementos psicológicos, sociais e culturais.
Segundo Gasparetto (2009), a midiatização é um processo
técnico, social e discursivo através do qual as mídias se relacionam
com outras esferas sociais, afetando-as e por elas sendo afetadas.
Podemos dizer, então, que a religião é afetada por essa influência, já
que, muitas vezes, sofre mudanças em seu próprio discurso como
forma de adaptação aos dispositivos midiáticos.
Sabemos da importância da religião como uma prática social
responsável por propagar doutrinas e dogmas, além de influenciar
diretamente a vida do fiel, ditando e moldando comportamentos.
Devido a isso, é mais nítida ainda essa forte relação entre discurso
midiático e discurso religioso, pois os dispositivos midiáticos
Analisando o discurso religioso midiatizado no programa De Frente com Gabi ... 89
NCQIAJP=³°KJ=LANOLA?PER=
0AIEKHEJCQ¹OPE?=AKOLNK?A@EIAJPKO
@EO?QNOERKO
O interesse pelos estudos da argumentação surgiu na época
em que os gregos a consideravam como a “arte de bem falar”, o que
fazia com que essa disciplina se destacasse como centro da Retórica.
90 Denise de Souza Assis e Mônica Santos de Souza Melo
,C¶JANKAJPNAREOP=AKLNKCN=I=!ABNAJPA
?KI$=>E
De forma geral, a entrevista midiática ou televisiva é um
gênero que trabalha com uma troca linguageira na qual temos a
presença de dois parceiros fisicamente presentes, com alternância dos
turnos de fala. Para Charaudeau (2013), na entrevista, um dos
parceiros ocupa o papel de “questionador” e o outro assume um papel
de “questionado-com-razões-para-ser-questionado”. Assim, para esse
autor, a alternância da fala dos dois parceiros é regulada e controlada
por quem entrevista de acordo com as finalidades dessa situação de
comunicação. Segundo Arfuch (2010), entrevistador e entrevistado
compartilham uma relação pragmática, na qual prevalece a dinâmica
92 Denise de Souza Assis e Mônica Santos de Souza Melo
,OLNK?A@EIAJPKO@EO?QNOERKOJKO@EO?QNOKO
@KONAHECEKOKOÏJ®HEOA@KAOPN=PKRAN>=HA
J°KRAN>=H
Assis (2017) destaca que, ao trabalharmos com o discurso
televisual, é necessário nos atermos ao fato de a televisão ser formada
pelos estratos verbal e não-verbal e perceber que ambos devem ser
considerados ao tratarmos desse tipo de dispositivo. Segundo
Soulages (2008), cada programa televisivo se apropriará de elementos
94 Denise de Souza Assis e Mônica Santos de Souza Melo
KJOE@AN=³ÀAOBEJ=EO
Mesmo se tratando de um programa no qual não predomina a
doutrinação, evidenciamos que a escolha dos entrevistados, que são
líderes religiosos e também apresentam uma projeção midiática, fez
com que as perguntas feitas pela entrevistadora apresentassem um
cunho religioso e tivessem ligação explícita com a Igreja e as
doutrinas que cada uma defende. Assim, percebemos que nesse
corpus, a instância midiática e a instância religiosa estavam em
constante articulação para a efetivação dos propósitos de ambas, na
Analisando o discurso religioso midiatizado no programa De Frente com Gabi ... 103
/ABAN¶J?E=O
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Interações discursivas entre alguns poetas da idade média francesa e ... 105
=L¹PQHK
,QWHUDo}HV'LVFXUVLYDVHQWUH$OJXQV
3RHWDVGD,GDGH0pGLD)UDQFHVDH
'LYLQGDGHV&ULVWmV
Ida Lucia Machado
1
E ainda realizam, pois seus textos – os que chegaram até nós – são hoje
lidos/interpretados por novos destinatários, bem diferentes dos primeiros…
2
Na Idade Média Satã era conhecido como “o diabo”.
106 Ida Lucia Machado
4
Um exemplo entre outros: o livro de nossa autoria, Parodie et Analyse du Discours
(2013) utiliza alguns excertos literários vindos da Idade Média francesa.
5
Deve-se notar que, na língua portuguesa utilizada no Brasil, certas expressões que
recorrem à religião católica em certos pontos do país (em Minas, por exemplo)
perderam o sentido religioso: denotam apenas uma surpresa (boa ou má), tal como
“Meu Deus!” ou o “Nossa”. Este “Nossa” vem de Nossa Senhora e por vez é
transformado, na língua falada, em um “Nó”... Uma expressão cujo uso foi desviado
do sentido primeiro religioso é “Cruz credo!” que é frequentemente dito para
expressar um grande espanto ou uma forma de sortilégio para proteger quem fala
contra algum mal.
108 Ida Lucia Machado
10
Como por exemplo a escola laica que o ministro da educação Jules Ferry implantou
na França, em 1880. Todos tinham direito ao ensino gratuito e livre de dogmas
religiosos.
Interações discursivas entre alguns poetas da idade média francesa e ... 113
(os ladrões)
Pincédé. – Per signum sancte crucifix! Cliquet, o que acha
disso? E você, Rasoir, o que me diz?
Rasoir. – Por minha fé e para minha grande tristeza, parece
que esse Senhor falou a verdade.
116 Ida Lucia Machado
12
Maiores informações podem ser obtidas em: SOUZA, Guilherme Queiroz (2014),
autor de uma tese intitulada A recepção do mito de Heráclio por Gautier d’Arras.
No resumo de seu trabalho o pesquisador explica que “[...] em Eracle (fim do século
XII), romance octossilábico tripartite (6570 versos), Gautier adaptou a trajetória
biográfica do soberano bizantino, do nascimento à morte. Especialmente na terceira
parte da obra, o autor baseou-se na Reversio Sanctae Crucis, texto litúrgico que
popularizou o mito heracliano no imaginário cristão ocidental. Na Reversio, [...]
celebram-se o triunfo de Heráclio contra os persas e a recuperação da relíquia da
Santa Cruz e de Jerusalém.”
Interações discursivas entre alguns poetas da idade média francesa e ... 117
2IKHD=N@EO?QNOERKH=J³=@KOK>NAK?KNLQO
Antes de tudo, o que dizer do ponto de vista sociológico da
sociedade medieval onde tais obras foram produzidas? Elas refletem
uma visão dos escritores sobre o mundo em que viviam: mundo no
qual a Igreja era soberana e onde inúmeros fatos inexplicáveis eram
atribuídos a Deus... ou ao diabo.
Nessa sociedade, como já foi dito, verifica-se a supremacia da
Igreja Católica na vida do povo, que era dividido em hierarquias. Na
primeira e mais importante figuravam o rei ou soberano e sua corte;
na segunda, os vassalos que possuíam uma terra legada pelo rei e que
a ele deviam uma obediência cega. A terceira era aquela constituída
pelo que agora chamamos de “povão”: os servos, camponeses e
pequenos artesãos. Acima de tudo e, mesmo do rei, estava Deus e sua
imperiosa e arbitrária vontade. O clero tinha, pois, onde se apegar para
propagar suas ideias ou melhor que isso, impô-las como modus
vivendi para todos. Os bons seriam recompensados (mas, após a
morte). Os maus, naturalmente, iriam arder no inferno.
A vida nessa sociedade obedecia a padrões rígidos. Porém,
por vezes, os autores de textos literários tentavam deles escapar e o
faziam por meio da ironia, da paródia ou da derrisão (MACHADO,
2006, 2013). A nosso ver, temos aí uma prova de coragem ou de
audácia de tais escritores, já que uma grande maioria escrevia sob
encomenda de nobres senhores, que não queriam ler ou ouvir críticas
sobre os temas que solicitavam. A liberdade de criação dos escritores
(artistas em geral) era submetida a uma dura prova...
Nos três excertos agora apresentados, somos confrontados a
estilos de escrita diversos. O excerto (a) é o mais clássico de todos e
deu origem a vários outros escritos, como o famoso Fausto, de Goethe
(1832), história do homem que vendeu a alma para o diabo. Aliás,
sempre achamos curioso – e um pouco cômico – esse grande mercado
de compra e venda de almas, que, por sinal, era muito comentado no
imaginário cristão da Idade Média. O patrão do mercado, o chefe-mor
deste comércio, era o diabo. “Venda-me tua alma e eu te darei em
troca riquezas e felicidades durante toda tua vida terrena” parecia ser
seu mote persuasivo.
Interações discursivas entre alguns poetas da idade média francesa e ... 119
13
Chamamos a atenção para a combinação absurda do sintagma em questão. Uma
guerra é algo desumano, horrível. Como pode ser “santa”? Por que um grupo de
homens acredita que sua religião é melhor que a do “outro” e, logo, Deus estará
com ele?
120 Ida Lucia Machado
14
Ver nota número 11.
126 Ida Lucia Machado
HCQI=OL=H=RN=OL=N=?KJ?HQEN
Ao começar este capítulo de livro dissemos que tentaríamos
melhor compreender as relações e as identidades que os escritores de
nosso corpus deixaram ver ou entrever ao conceber suas narrativas e
seus personagens. No entanto, ao chegar ao fim do capítulo vimos que
essa promessa foi um pouco precipitada: o conceito de identidade é
por demais fluido e mutante para podermos captá-lo após a
leitura/análise de apenas algumas linhas dos três autores medievais
que nos acompanharam ao longo dessas páginas. Como diz Bauman
(2005, p. 19) “As identidades flutuam no ar, algumas de nossa própria
escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas à nossa volta”.
Em nosso caso, as “pessoas à nossa volta” seriam os escritores e nós
mesmos como suas leitoras e analistas de seus discursos.
Bauman (2005, p. 26) na entrevista que concedeu a
Benedetto Vecchi, em 1925, e que deu lugar ao livro Identidade, ao
refletir sobre essa questão complexa, lembra-se de alguns ditos de
Jorge Luis Borges. Por uma coincidência, as ideias do escritor
argentino evocadas por Bauman (op. cit.), podem também aplicar-se
aos escritores medievais que ousaram transgredir certas normas, pois
Borges fala da complicada situação daqueles que devem realizar
uma tarefa “que não é proibida para outros homens, mas proibida
para eles”. E Borges cita (apud BAUMAN, 2005, p. 26) o caso de
Averróis quando tentou traduzir Aristóteles para o árabe.
“Confinando ao círculo do Islã” como diz Borges, Averróis deve ter
tentando imaginar “o que é uma peça teatral sem jamais ter
suspeitado do que fosse um teatro” (op.cit.).
Assim, o exercício retórico praticado pelos escritores
medievais que buscavam alguma autonomia crítica para falar de seus
personagens era obtido por meio da inclusão da ironia e do humor. O
que não era nada fácil, pois deviam manter uma escrita que agradasse
àqueles que a tinham encomendado o que, a priori, não comportaria
visões ou comentários críticos do escritor.
Assim, há tarefas difíceis e acreditamos que a proposta no
início deste capítulo é uma delas. Assim, talvez fosse melhor falarmos
de “pistas” que os escritores em pauta deixaram em seus discursos e
que podem nos conduzir a algumas características de suas
personalidades. Melhor explicando: iremos apenas aproximarmo-nos
Interações discursivas entre alguns poetas da idade média francesa e ... 127
/ABAN¶J?E=O
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130 Ida Lucia Machado
=L¹PQHK
&RQVLGHUDo}HVVREUHR'RPtQLRGH
3UiWLFD'LVFXUYLVD5HOLJLRVR
NAHECE°K?KIKEJOP¯J?E=@ALK@AN
Para Van Dijk (2008), as relações de poder social pressupõem
uma estrutura ideológica e se manifestam na interação, através das
ações reais ou potenciais de um grupo pelas quais ele exerce um
controle social sobre outro. Esse controle das ações, segundo o autor,
pressupõe um controle cognitivo, que inclui desejos, planos e crenças.
Assim, a manutenção desse poder social se faz de forma indireta,
através de persuasão que, por sua vez, se efetiva por meio do discurso.
Esse poder relaciona-se, ainda, ao campo e à extensão dos agentes de
poder. Em geral, o poder desses agentes, assim como a extensão de
suas ações, se restringem a um domínio social (política, religião,
direito), mas pode ultrapassá-lo.
Abordando as relações de poder no âmbito religioso, Lemos
(2005) destaca que:
A religião é um sistema de símbolos que atua
para estabelecer poderosas, penetrantes e
duradouras disposições e motivações nos seres
humanos. Ela pode tanto fornecer a explicação e
a justificação das relações sociais como construir
o sistema de práticas destinadas a reproduzi-las.
(LEMOS, 2005, p. 28)
/AHECE°KALKH¹PE?=
Ao abordarmos a relação entre religião e poder, antecipamos a
discussão em torno da relação entre religião e política, uma vez que a
influência exercida pela religião afeta, em grande parte, as relações
138 Mônica Santos de Souza Melo
/AHECE°KA*¹@E=
A fim de manter seu poder de influência nos vários setores da
vida social, as igrejas têm investido no uso da mídia, através de
programas de rádio, TV e das mídias digitais, o que vem permitindo
que os indivíduos continuem recorrendo a ela para compreender seu
lugar no mundo, para compreender a si mesmo e para balizar valores e
comportamentos.
Há, na atualidade, uma conjuntura complexa que favorece o
uso das novas tecnologias pelas religiões. Trata-se do processo de
midiatização do discurso religioso, do qual decorre a criação de um
novo ambiente, que é um espaço privilegiado de ressignificação da
religião. Esse novo ambiente permite que a mensagem não se restrinja
ao espaço dos cultos, mas permaneça em circulação em outros
espaços, o que favorece uma maior interação do público nas práticas
simbólicas religiosas.
A utilização dos meios de comunicação por parte das igrejas
não é um fenômeno recente, porém tem adquirido maiores proporções
em função da crescente influência e utilização das mídias,
especialmente as digitais. De acordo com Pereira (2014), o
ordenamento bíblico “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a
toda criatura”, que justifica o uso dos dispositivos midiáticos pelos
agentes religiosos cristãos na divulgação do evangelho a todos os
povos, encontra na atualidade uma nova configuração. Assim,
vivencia-se na atualidade uma nova cruzada, a “cruzada midiática”
que busca fazer avançar novos métodos de evangelização via rádio,
televisão, mídia impressa e internet.
De acordo com Gasparetto (2011):
O surgimento do fenômeno midiático religioso se
deve de modo especial a três fatores: primeiro, o
desenvolvimento da Modernidade. Segundo, na
conjunção de transição de milênio, o surgimento
de outras formas, expressões e práticas de
religiosidade-espiritualidade, principalmente no
panorama católico ocidental latino-americano; e
terceiro, o papel marcante do campo midiático e
das novas tecnologias de informação e
comunicação eletrônicas na construção e
140 Mônica Santos de Souza Melo
/AHECE°KA?E¶J?E=
Sabemos que a relação entre ciência e religião é bastante
complexa, especialmente se se considera a variedade de religiões do
mundo. Quando se trata das religiões cristãs, como é o nosso caso,
acreditamos que é possível adotar alguns parâmetros identificados por
Portugal (2014), a partir do estudo de Barbour (1998). Para esses
autores a relação entre ciência e religião pode ser classificada a partir
de quatro parâmetros: do conflito, da independência, do diálogo e da
integração.
Para Portugal, a tese do conflito é a mais conhecida e se
fundamenta, fortemente, no debate em torno da oposição entre
criacionismo e evolucionismo, enfatizando a oposição entre o caráter
subjetivo da religião e o caráter objetivo e materialista da ciência. O
conflito entre ciência e religião é também abordado por Russell
(1977), que, além das teses evolucionistas de Darwin, vê, também, as
descobertas de Galileu como outro episódio marcante nesse embate.
Tal oposição só se sustentaria, porém, se se considerarem as vertentes
fundamentalistas da igreja. Essa posição é contestada por autores
como Agostinho, Tomás de Aquino, Calvino e Lutero que
reconhecem que a Bíblia tem várias passagens metafóricas que não
podem ser lidas literalmente.
Acredita-se, ainda, que um modo de evitar conflitos entre
ciência e religião é ver as duas como independentes, ou seja, cada uma
tendo seu próprio método e objetos de interesse específicos. Para
Portugal, essa tese, no entanto, não se sustenta, uma vez que a
autonomia entre religião e ciência seria apenas relativa.
Rejeitando-se parcialmente as teses do conflito e da
independência, pode-se vislumbrar a possibilidade de integração e
diálogo entre ambas, já apontadas por Barbour. Portanto, embora
historicamente posicionamentos da Igreja tenham se mostrado
contrários aos da ciência, constituindo verdadeiros obstáculos ao seu
desenvolvimento, mais recentemente algumas manifestações têm
sinalizado a possibilidade de compatibilidade entre os dois campos,
como é o caso da Igreja Católica, que tem assumido uma nova postura
em relação ao conhecimento científico, postura essa evidenciada por
atitudes como a reabilitação pública e oficial das ideias de Galileu e a
Considerações sobre o domínio de prática discursiva religioso 143
,@EO?QNOKNAHECEKOKÏ=HCQI=O?=N=?PAN¹OPE?=O
À primeira vista poderíamos dizer que o que define o
discurso religioso é o fato de ser produzido em situações de
comunicação pertencentes ao domínio de prática religioso. Porém,
essa definição circular não abrange, obviamente, todas as
manifestações do discurso religioso, sobretudo considerando a
interseção entre os vários domínios, dentre os quais o religioso, o
midiático e o científico, abordados acima.
3
Disponível em https://w2.vatican.va/content/paul-
vi/pt/speeches/1965/documents/hf_p-vi_spe_19651208_epilogo-concilio-
intelletuali.html. Acesso em 26 jun 2015.
144 Mônica Santos de Souza Melo
KJOE@AN=³ÀAOBEJ=EO
Nesse texto procuramos refletir a respeito de algumas
características da religião e do discurso religioso, articulando
contribuições do âmbito da Sociologia, da Filosofia e da Análise do
Discurso. Procuramos ao longo do texto identificar alguns elementos
que pudessem nos levar a definir a religião em termos de domínio de
prática discursivo, relacionando-a a outros domínios, especificamente,
o político, o midiático e o científico. Por fim, procuramos levantar
alguns traços definitórios do discurso religioso, centrando nossa
atenção nas especificidades que permeiam a relação entre as instâncias
de produção e recepção desse tipo de discurso. Ao desenvolver esse
percurso nos chama a atenção o número de questões que ainda
precisam ser respondidas e, consequentemente, as inúmeras
possibilidades de pesquisa que se abrem nesse campo. Esperamos que
as reflexões trazidas ao longo desse texto colaborem, de alguma
forma, para que o leitor possa vislumbrar algumas dessas questões.
148 Mônica Santos de Souza Melo
/ABAN¶J?E=O
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O riso no discurso religioso cristão: Questões de rejeição e de aceitação 149
=L¹PQHK
25LVRQR'LVFXUVR5HOLJLRVR&ULVWmR
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1
Lat. “A língua sacra em gorro burlesco”. Essa expressão latina servia para designar
os grupos de obras paródicas nos fins da Antiguidade (semelhante ao que acontecia à
GRAMMATICA PILEATA como, por exemplo, a Vergilius Maro Grammaticus do século
VII), apontados por Bakhtin (2010b, p. 388-391).
O riso no discurso religioso cristão: Questões de rejeição e de aceitação 151
2
O judaísmo e o islamismo também apresentam, em seus discursos, algumas dessas
características; todavia, o impacto dessas religiões no mundo ocidental não alcançou
o nível do cristianismo, difundido a partir do século XV no novo mundo pelas
nações cristãs envolvidas nas grandes navegações.
3
Essas práticas discursivas ritualizadas, como a proibição à livre interpretação da
bíblia pelos fiéis e a adoção, pelo catolicismo romano, do texto iconográfico e
estatuário, serão motivos de críticas dos reformadores no século XVI, dando origem
ao protestantismo na Europa.
152 Rony Petterson Gomes do Vale
,NEOKJK?NEOPE=JEOIKLNEIEPERK
No mundo da Antiguidade, ria-se às gargalhadas
no Olimpo e na terra, ouvindo Aristófanes e suas
comédias, ria-se às gargalhadas até Luciano.
Desde o século IV, os homens deixaram de rir, e
começaram a chorar sem parar e pesadas
correntes se apoderam do espírito entre as
lamentações e os remorsos de consciência.
(HERZEN, 1954, p. 223, apud BAKHTIN,
2010a, p. 80 – nota 34)
4
Lat. “regras”; “régua”.
O riso no discurso religioso cristão: Questões de rejeição e de aceitação 155
&CNAF= NEOP°/KI=J=A=@E=>KHEV=³°K
@KNEOKJ=HP=&@=@A*µ@E=
Como vimos, o problema do riso no DRC dos primeiros
cristãos esbarra na natureza divina e humana de Jesus:
O fato de que Jesus era um homem é claramente
ilustrado nas descrições que temos dele nos
quatro evangelhos. Aí podemos ler sobre toda
uma gama de emoções humanas. Jesus era capaz
de sentir alegria e tristeza; podia ser terno e
compassivo, mas também severo e reprovador.
Ele sofria tentações como qualquer outro ser
humano e durante suas últimas horas de vida
travou uma batalha interna contra o medo da
morte. (GAARDER; HELLERN; NOTAKER,
2005, p. 177)
/EOKÏK>N=@K!E=>K@AO@AK$¶JAOEO
A serpente falante leva Adão e Eva, os quais não tinham
motivo algum para rir enquanto estavam no Éden (lugar de paz, de
tranquilidade e de pureza), a comer o fruto proibido da Árvore da
Ciência do Bem e do Mal. Nesse momento, homem e mulher se
deparariam com a dor (e o praguejar), a feiura (e o escárnio), o
envelhecimento (e o grotesco), o trabalho árduo (e a fadiga), a mentira
(e o engodo), a nudez (e o desejo) e a vergonha (e o ridículo) e, por
fim, a noção de pecado e o medo da morte. Agora sim havia motivos
para rir: rir da própria inferioridade diante de Deus e da própria
decadência.
O riso vai se insinuar por todas as imperfeições
humanas. É uma constatação da decadência e, ao
mesmo tempo, um consolo, uma conduta de
compensação, para escapar ao desespero e à
angústia: rir para não chorar. Eis aí o que os pais
da igreja recriminam: em lugar de chorar sobre
nossa decadência, o que seria marca de
arrependimento, rimos de nossas fraquezas, e
essa é nossa perda. Vemos nosso nada e rimos
dele: um riso diabólico. (MINOIS, 2003, p. 112)
$¶JAOA@=µPE?=?NEOP°?KJPN=KNEOK
Além do bode expiatório na figura do Diabo, solidifica-se,
nesse mesmo período, uma espécie de ética cristã contra o riso. Isso
porque o riso, devido à sua força perigosa e, por vezes, subversiva,
158 Rony Petterson Gomes do Vale
,LAJO=IAJPKCNA?KNKI=JKLNAL=N=K=P=MQA
µPE?K?NEOP°K?KJPN=KNEOK
Os pensadores cristãos da Alta Idade Média, na tentativa de
conciliar o cristianismo e a filosofia clássica, percebem que havia uma
grande quantidade de prédicas (éticas e retóricas) sobre o riso. Nas
“mãos” da intelligentsia cristã, essas prédicas e reflexões se
transformaram em argumentos de autoridade. A esse respeito, Minois
(2003, p. 69-76) nos apresenta um quadro geral das principais fontes,
a saber: os estoicos, os pitagóricos, e Platão, no mundo grego; além de
Plutarco, no mundo romano. Com base em Minois (2003),
apresentaremos, num primeiro momento, o que cada uma dessas
fontes diz sobre o riso em linhas gerais; num segundo momento,
procuraremos vislumbrar como essas ideias podem ser percebidas nos
discursos dos “pais” da Igreja.
O riso no discurso religioso cristão: Questões de rejeição e de aceitação 159
∴
Havia na Grécia Antiga o que se podia chamar de filósofos
apáticos. Entre suas linhas mestras de pensamento, encontra-se
principalmente a defesa de uma maior seriedade do ser. Assim, os
estoicos, cientes da ridicularização que deve passar o “ser filósofo”, se
abstêm do riso, do zombar, do fazer rir e das idas às comédias. Para
eles, “aquele que ri dissocia-se do objeto de seu riso, toma distância
em relação à ordem do mundo, em lugar de integrar-se nela”
(MINOIS, 2003, p. 70). Já os pitagóricos, a exemplo de Pitágoras, não
riem, pois a vastidão do universo representado pelos números os teria
tornado impassíveis às paixões. Sentem na pele a ironia das comédias
por seus “rostos de quaresmas”. Mas é Platão quem demostra maior
aversão ao riso. Para esse filósofo, o riso representa uma paixão de
natureza ambivalente, mistura de dor e prazer, uma combinação
malévola de bem e mal, de desejo e inveja (MINOIS, 2003, p. 71). Por
conseguinte, o fazer rir, principalmente na forma da comédia, deve, a
exemplo dos outros tipos de mimesis (como a tragédia e a poesia,
especialmente), ser banido da república ideal. Por sua vez, no mundo
romano, Plutarco se apresenta como o grande agelasta. Seu
radicalismo leva-o a propor a equação “rir = ateísmo”. Ser ateu é
ridicularizar os “mistérios sagrados” e a “loucura dos crentes”. Para
ele, devem ser evitadas desde as cócegas (que acarretam as convulsões
e o desfalecimento do riso) até as zombarias. Embora seja adepto da
possibilidade da existência de um riso alegre (esvaziado de escárnio5),
não abre mão da prudência em relação ao rir e ao fazer rir, não
devendo aquele que é reprimido rir durante o processo, ou seja, para
Plutarco, o riso bom (que condena o comportamento de um ser
querido) é impossível.
Passadas em revista tais fontes, vejamos como tais ideias são
refletidas e refratadas no discurso dos “pais” da Igreja. Apoiados em
Minois (2003, p.125 et seq.), podemos dizer que os “pais” da Igreja
são, com certeza, aqueles que mais contribuíram para a demonização
5
Cf. Propp (1992), o riso pode ser classificado em tipos de acordo com o alvo e a
presença ou não de uma intenção escarnecedora, a saber: riso zombeteiro (voltado
para os vícios); riso maldoso (destruidor de tudo); riso bom (cujo alvo visado é
alguém pelo qual se nutrem sentimentos ligados ao amor); riso cínico (cujo prazer
resulta da desgraça alheia); riso alegre (esvaziado de qualquer tipo de maldade ou de
escárnio); riso ritual (teatralizado e mecanizado).
160 Rony Petterson Gomes do Vale
6
Cf. Vale (2013, p. 212), de caráter retórico e normativo, o conceito de VRBANITAS
(lat. “urbanidade”) “diz respeito (i) às características que contribuem para a
constituição do ethos discursivo do orador, afastando-o de virtudes indesejáveis
O riso no discurso religioso cristão: Questões de rejeição e de aceitação 161
como a RVSTICITAS (lat. “rusticidade”) e (ii) à captação dos afetos dos ouvintes
(auditório) para o sucesso da argumentação com a utilização do riso no discurso”.
7
Cf. Vale (2013, p. 256), esse conceito “prescreve ao homem astos (gr. “urbano”) a
justa medida no uso do riso. Assim, conforme postula Aristóteles, esse homem livre
e urbano deve utilizar o riso com parcimônia, procurando se afastar do exagero,
próprio do bufão, e da ausência de graça, própria do rústico.”
8
Lat. “carestia, preço alto; amor; caridade”.
162 Rony Petterson Gomes do Vale
,NEOKJ=BKNI=³°K@KIKJCAÏK
å?=PA?EOIKFK?KOKJKOIKOPAENKO
IA@EAR=EO
Imitemos o exemplo do profeta que diz: decidi,
vigiarei o meu caminho para não pecar com a
língua, coloquei uma mordaça na boca, emudeci
em humilhação, abstive-me de falar mesmo de
coisas honestas. E se nessa passagem o profeta
nos ensina que às vezes, por amor ao silêncio,
deveríamos nos abster dos discursos lícitos,
tanto mais deveremos nos abster dos discursos
ilícitos para evitar a pena desse pecado. [...]
Mas as vulgaridades, asneiras, e as palhaçadas
nós as condenamos à reclusão perpétua em
qualquer lugar, e não permitimos que o discípulo
abra a boca para fazer discursos de tal feitio.9
9
Leitura de uma REGULA do século XIV na abadia do romance O nome da Rosa (cf.
ECO, 1986, p. 188)
10
Lat. “riso monástico ou riso dos monges”
O riso no discurso religioso cristão: Questões de rejeição e de aceitação 163
o riso tornam-se seus maiores inimigos. Nas REGULAE dos séc. V, por
exemplo, o riso é colocado em oposição direta ao silêncio (virtude que
o monge deve almejar a todo custo). Apesar disso, e embora sendo o
riso proibido e ilegítimo, nosso autor garante: “nossos bons monges
certamente tiveram momentos de diversão nos mosteiros” (LE GOFF,
2000, p. 77). Daí os IOCA MONACHORVM11: um tipo de “anedota”
escrita sobre os próprios monges, curas, judeus etc. que continham
também uma série de perguntas e respostas engraçadas sobre a fé e a
Bíblia. Esses “jogos” – como veremos mais adiante – serviam para
aliviar a pressão da fermentação nos tonéis de vinho da austeridade e
seriedade da vida monástica medieval.
Bakhtin (2010a) discute essa questão de perto, mostrando
certos fatores que contribuíram na adoção dos IOCA MONACHORVM,
além de algumas características desses “jogos” e de outras formas do
riso desenvolvidas no “interior da Igreja”. Para o teórico russo, o
RISVS MONASTICVS nada mais é que um reflexo do carnaval e do riso
ritual (como, por exemplo, o RISVS PASCHALIS12) dentro dos muros
dos mosteiros, ou seja, mesmo sob a proteção da Santa Igreja, os
monges seriam, de algum modo, atingidos por fatores sociais e
culturais. Esses momentos de festa (por vezes legitimadas pela própria
Igreja) realizados fora dos mosteiros levavam os monges a “renegar de
certo modo a sua condição social (como monge, clérigo ou erudito)”
(BAKHTIN, 2010a, p. 12). Assim, mesmo eclesiásticos de alta
hierarquia e doutores em teologia tendiam a abdicar de sua
13
GRAVITAS na forma dos IOCA MONACHORVM: “nas suas celas de
sábios escreviam tratados mais ou menos paródicos e obras cômicas
em latim” (BAKHTIN, 2010a, p. 12). Todavia, como vimos, mesmo
nesse espaço de abertura, havia toda uma argumentação para impedir
que o riso saísse do controle. Daí um passo para compreendermos os
IOCA MONACHORVM como uma espécie de aceitação do riso
regulamentada, numa espécie de “catecismo jocoso” (BAKHTIN,
2010a, p. 73) para determinados fins. Mas quais?
Em Vale (2013, p. 86-87), discutimos as finalidades do riso na
Idade Média. Com base em Alberti (1999), argumentamos que os
11
Lat. “jogos monásticos ou jogos dos monges”
12
Lat. “riso pascal” – ritual cristão no qual era permitido o riso (cf. Bakhtin, 2010a)
13
Lat. “gravidade”; “austeridade”
164 Rony Petterson Gomes do Vale
14
Lat. “alegria temporária”.
15
Lat. “alegria própria do espírito humano”.
16
DELECTATIO, -ONIS – “deleitação, deleite, prazer, encanto, distração”.
17
VTILITAS, -TATIS – 1) “utilidade, vantagem, proveito”; 2) “serviços prestados”; 3)
“necessidade”.
18
Lat. “exemplos agradáveis”; “exemplos aprazíveis”.
O riso no discurso religioso cristão: Questões de rejeição e de aceitação 165
2009, p. 154). Essa corrente, conforme nos diz Febvre (2009), ainda
estaria com toda a sua força em pleno século XVI, momento em que
outro riso (cristão) surgiria: o riso dos reformadores.
OåCQANN=O@ANAHECE°KAKNEOK@KO
NABKNI=@KNAO
O século XVI, na Europa, é marcado pelo advento da Reforma
que, entre outros fatores19, constituirá uma guinada na forma como o
DRC passa a se relacionar com o riso. Isso porque, nesse contexto,
estabelecer-se-á uma nova função para o riso que deveras fora
combatida pela CARITAS cristã, a saber: zombar não somente dos
vícios, mas também dos pecadores, ou melhor dizendo, daqueles que
não professam a “verdadeira fé”.
De fato, agora o riso está aliado ao ódio religioso: é uma
arma, como outra qualquer, nas lutas religiosas. Mais do que nunca,
uma desconfiança paira sobre o riso e as suas formas, pois “os
confrontos religiosos tornaram flagrante a ameaça de desvio cético ou
ateu que o riso representa e a tendência a surgir uma contra-religião”
(MINOIS, 2003, p. 296). Sobre tais confrontos, Febvre (2009, p. 243
et seq.) nos diz que, na Europa, diante das primeiras campanhas dos
evangelistas e dos reformistas20, certos soberanos passaram a romper
com a Igreja de Roma e a instalar em seus territórios “igrejas
reformadas”, sob autoridade real ou imperial, levando seus súditos a
se separarem, automaticamente, de Roma21. Nesse contexto, todavia,
19
Entre esses fatores, merece destaque a invenção da imprensa, que propiciará a
maior difusão, principalmente, dos panfletos religiosos e, mais tarde, a criação da
caricatura, voltada, inicialmente, para dessacralização das coisas da Igreja.
20
Embora não houvesse ainda, nesse período, um consenso sobre como a “nova fé”
seria direcionada, com base Febvre (2009), podemos elencar, esquematicamente,
algumas das diretrizes dos reformadores como, por exemplo: os ensinamentos se
baseiam somente no Evangelho; o poder do papa é usurpador; o monastério é uma
vida não natural; condena-se o culto aos santos e as peregrinações; e Deus deve ser
cultuado de modo interior e pessoal.
21
Em algumas nações (como, por exemplo, a Inglaterra), data do mesmo período o
início da desativação e eliminação dos mosteiros (FEBVRE, 2009).
166 Rony Petterson Gomes do Vale
KJOE@AN=³ÀAOBEJ=EO
Embora a linguagem e o riso sejam considerados as marcas
definitivas do homem, o riso se apresenta, pelo menos no domínio das
práticas religiosas cristãs, sob suspeita: a diabolização do riso e uma
ética contra as suas formas criadas pelos pensadores cristãos deixaram
uma mácula difícil de ser extirpada tanto pelos discursos de alguns
dos “pais” da Igreja que acreditavam no uso moderado do riso
(baseados na eutrapelia de Aristóteles ou na VRBANITAS dos
romanos), quanto pelas práticas do riso, realizadas de forma mais ou
menos consentida, dentro da Igreja (verbi gratia, os IOCA
MONACHORUM) nesses dois mil anos.
Nesse passo, não é de espantar a surpresa que atualmente
provocam o riso e as suas formas quando presentes nos discursos de
alguns expoentes da Igreja Cristã (tanto católica quanto protestante) –
como exemplo, podemos citar, aqui no Brasil, os discursos do Padre
Léo e do Pastor Cláudio Duarte. Talvez, essas reações de surpresa e,
ao mesmo tempo, de rejeição e aceitação dessa relação, aparentemente
incestuosa, do riso (e, por conseguinte, do Discurso Humorístico22)
com o DRC sejam parte da responsabilidade pela morte de Deus que
Foucault (2016, p.533-534), apoiado em Nietzsche, afere ao homem
por este ter colocado, no lugar de Deus, o seu pensamento e a sua
linguagem (linguagem do riso!), esfacelando seu próprio rosto no riso,
num retorno ao jogo das máscaras.
/ABAN¶J?E=O
ALBERTI, V. O riso e o risível: na história do pensamento. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor; FGV, 1999.
BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto
de François Rabelais. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2010a.
22
Admitiremos, portanto, o riso como índice de que essa relação interdiscursiva entre
esses dois discursos não se constituem em uma via de mão única, ou seja, também o
Discurso Religioso pode vir a “se nutrir” de expedientes discursivos (linguísticos e
enunciativos) do Discurso Humorístico. O mapeamento dessas relações
interdiscursivas é, atualmente, um dos objetivos de nossas pesquisas.
168 Rony Petterson Gomes do Vale
=L¹PQHK
3ROrPLFD'LVFXUVLYD23DVWRUDGR
)HPLQLQR%DWLVWDHP&HQD
Sandra Ramos Carmo e Edvania Gomes da Silva
&JPNK@Q³°K
Neste texto, analisamos aspectos da polêmica discursiva,
constituída na/pela relação entre dois posicionamentos da Convenção
Batista Brasileira - CBB, acerca da legitimidade do pastorado
feminino. Para tanto, recorremos aos pressupostos teóricos da Escola
Francesa de Análise de Discurso, mais especificamente, aos trabalhos
de Dominique Maingueneau (2005 [1984]; 2010).
O referido autor analisa, no livro Gênese dos discursos (2005
[1984]), dois posicionamentos discursivos, o jansenismo e o
humanismo devoto, cuja relação se estabelece de forma polêmica em
um mesmo espaço discursivo. Partindo, portanto, daquilo que postula
Maingueneau acerca da polêmica discursiva, procuramos, dentro do
espaço discursivo que constitui a polêmica em torno da legitimidade
do pastorado feminino, analisar os discursos que rechaçam e os que
aprovam o referido pastorado, considerando as três dimensões do
polêmico: a dimensão enunciativo-pragmática, a dimensão
sociogenérica e a dimensão semântica (MAINGUENEAU, 2010).
Para compreendermos o funcionamento das dimensões
supracitadas, analisamos dois artigos de opinião do O Jornal Batista
que tratam da legitimidade, ou não, do pastorado feminino.
Salientamos, ainda, que, em alguns momentos, foi necessário recorrer
170 Sandra Ramos Carmo e Edvania Gomes da Silva
OPN¶O@EIAJOÀAO@KLKH¶IE?K
Em um de seus recentes trabalhos acerca da polêmica
discursiva, Maingueneau (2010), ao caracterizá-la como uma forma de
registro, procura estudá-la a partir de três dimensões que para ele são
indissociáveis, a saber: a dimensão enunciativo-pragmática, a
dimensão sociogenérica e a dimensão semântica.
O registro, tal como propõe Maingueneau, é uma unidade
transversa1. Dentre as unidades transversas, além do registro polêmico,
objeto de estudo deste texto, há também o registro cômico e o didático,
por exemplo. Ainda de acordo com o mesmo autor, os registros são
divididos em três tipos: linguísticos, funcionais e comunicacionais.
Os registros linguísticos são definidos sobre uma base
enunciativa e/ou textual. Já os registros funcionais, como o próprio nome
indica, estão relacionados às funções que exercem e têm sua
classificação, inicialmente, apoiada nas funções da linguagem postuladas
por Jakobson. Por fim, os registros comunicacionais são definidos a
partir da combinação dos traços linguísticos e funcionais e não se limitam
a um único gênero discursivo. Como exemplo desse tipo de registro,
temos o “discurso cômico”, o “discurso de divulgação”, o “discurso
didático”, entre outros. Segundo Maingueneau, em virtude dos vários
fatores que uma atividade comunicacional envolve, diferentemente do
que ocorre nos demais tipos de registros, nos registros comunicacionais as
fronteiras que separam um registro de outro não são tão claras.
Assim, definido como registro comunicacional, o discurso
polêmico possui algumas características importantes que ajudam na
sua delimitação e compreensão. A primeira delas é que o registro
polêmico pertence aos gêneros instituídos, os quais não dizem respeito
1
As unidades transversas são tratadas por Maingueneau (2006) como unidades
tópicas que atravessam os gêneros discursivos, os quais são selecionados pelo
analista no processo de análise.
Polêmica discursiva: O pastorado feminino batista em cena 171
2
Nos textos analisados neste trabalho, o terceiro espectador, aquele que “assume as
normas subjacentes ao debate”, está sempre associado à figura divina que se
materializa ora da pessoa de Jesus Cristo, ora por meio dos textos bíblicos.
Polêmica discursiva: O pastorado feminino batista em cena 173
3
De acordo com Maingueneuau (2010), um enunciado provocativo pode surgir de um
texto base que dá início à polêmica, mas isso nem sempre acontece. Nos casos em
que acontece, a polêmica surge a partir de um enunciado que fora ouvido ou lido
por um segundo autor, o qual entende ser necessário responder à suposta
provocação, permitindo assim a construção de uma série de outras respostas. A
partir daí, “todo um metadiscurso se desenvolve então e, em relação a ele, cada um
procura enquadrar sua própria enunciação, reenquadrando o conjunto de debate a
seu favor” (MAINGUENEAU, 2010, p. 193).
174 Sandra Ramos Carmo e Edvania Gomes da Silva
4
Pêcheux (2006 [1983], p. 17) define o acontecimento como o encontro entre uma
atualidade e uma memória.
5
O suporte é definido por Maingueneau & Charaudeau (2006, p. 461) como objeto do
conhecimento composto de todos os elementos constitutivos da escrita e que
contribuem para a construção do sentido. É esse conceito de suporte que assumimos
neste trabalho, uma vez que tomamos como fundamento teórico os conceitos
desenvolvidos no âmbito da Escola Francesa de Análise de Discurso.
Polêmica discursiva: O pastorado feminino batista em cena 175
Excerto 3
Resisti o quanto pude para omitir-me de opinar
sobre tal assunto. [...] O trabalho da mulher é
importante? É. Muitas delas, com o que fazem,
poderiam até ser pastoras, segundo alguns.
Poderiam, mas não devem. Também não encontro
respaldo bíblico, para que o sejam.
6
A noção de interdiscurso é a base das análises empreendidas por Maingueneau e, por
isso, na obra Gênese dos discursos (2005 [1984]), o autor concebe a hipótese do
primado do interdiscurso “na perspectiva de uma heterogeneidade constitutiva, que
amarra, numa relação inextricável, o Mesmo do discurso e do seu Outro”
(MAINGENEAU, 2005 [1984], p. 33). Isso mostra que, para o referido autor, todo
discurso é constitutivamente heterogêneo, pois só existe devido à relação que
mantém com outros discursos. É essa relação que se apresenta como um espaço de
regularidades pertinente para a análise, pois somente nesse espaço é possível
identificar a identidade dos discursos. Por isso, Maingueneau considera o
interdiscurso, e não o discurso, como principal unidade de análise.
Polêmica discursiva: O pastorado feminino batista em cena 177
LKH¶IE?=AJPNAKO>=PEOP=O@=
O corpus selecionado para análise reúne excertos de dois
textos que materializam posicionamentos divergentes sobre a
legitimidade do pastorado feminino, discutidos pela Convenção
Batista Brasileira (CBB). Na análise dos referidos textos,
consideramos a abordagem teórica de Maingueneau, acima discutida,
sobre as dimensões enunciativo-pragmática, sociogenérica e
semântica do discurso polêmico. Para tanto, verificamos o
funcionamento das três dimensões e sua interrelação no processo de
construção da polêmica, já que, como propõe Maingueneau, embora
os pesquisadores, em suas análises, privilegiem uma ou outra
dimensão, de acordo com os objetivos da pesquisa, as três dimensões
“são por definição indissociáveis” (MAINGENEAU, 2010, p. 197).
Assim, para atender a proposta da análise, priorizamos, no que
diz respeito ao aspecto enunciativo-pragmático, o uso recorrente da
negação polêmica, como fenômeno linguístico, e da citação e da
alusão, como recursos polifônicos7. Em relação à dimensão
7
No livro, Novas tendências em Análise do discurso, Maingueneau, ao trabalhar a
heterogeneidade enunciativa, proposta por Authier-Revuz, discute a polifonia com
base na perspectiva de Ducrot. Assim, apoiado nesse autor, Maingueneau defende
que “há polifonia quando é possível distinguir em uma enunciação dois tipos de
personagens, os enunciadores e os locutores” (MAINGUENEAU, 1997, p. 76) e
apresenta alguns fenômenos nos quais a polifonia pode ser identificada, tais como a
ironia, a citação, a pressuposição, o discurso direto, entre outros. Entretanto, neste
trabalho, não temos como proposta de análise identificar locutores e enunciadores,
conforme a teoria de Ducrot, mas mostrar como alguns fenômenos polifônicos
Polêmica discursiva: O pastorado feminino batista em cena 179
Excerto 6
Sem dúvida alguma, a maior objeção ao
pastorado feminino é o preconceito. Vinte
séculos de cristianismo não foram suficientes
para alijá-lo da mente humana de tal modo que o
9
No quadro da teoria polifônica de Ducrot (1987), o fenômeno da negação pode
aparecer nas seguintes formas: descritiva, metalinguística e polêmica. No caso da
negação polêmica, identificada em nossas análises, a mesma é apresentada pelo
autor como sendo um fenômeno que se mostra através dos marcadores linguísticos
responsáveis pela presença da polifonia em um enunciado. Dessa forma, ao rejeitar
o enunciado do outro, o enunciador traz para a enunciação a presença do enunciador
que é refutado. Sobre esse processo, Maingueneau (1997), ao explicar Ducrot,
afirma que: “a enunciação da maior parte dos enunciados negativos é analisável
como encenação do choque entre duas atitudes antagônicas, atribuídas a dois
‘enunciadores’ diferentes: o primeiro personagem assume o ponto de vista do
rejeitado e o segundo, a rejeição desse ponto de vista (MAINGUENEAU, 1997, p.
80).”
182 Sandra Ramos Carmo e Edvania Gomes da Silva
10
Para explicar o funcionamento do fenômeno da citação e da alusão, conforme
aparecem nas análises, recorremos aos pressupostos teóricos de Authier-Revuz
(1990), que trata das heterogeneidades enunciativas. Para a autora, um discurso
nunca é homogêneo, pois ele retoma sempre outros dizeres e essas retomadas são
responsáveis pela heterogeneidade discursiva, a qual pode ocorrer de forma
mostrada (heterogeneidade mostrada) ou não mostrada (heterogeneidade
constitutiva). No caso da citação, essa é definida pela autora como uma forma de
heterogeneidade mostrada marcada, já que permite a retomada de outros dizeres de
forma explícita, os quais são recuperáveis no nível do enunciado. Já a alusão é um
caso de heterogeneidade mostrada não-marcada, pois a sua identificação não
aparece de forma explícita na superfície do enunciado, sendo o seu reconhecimento
feito por meio da interpretação do todo.
Polêmica discursiva: O pastorado feminino batista em cena 183
Paulo” e o Espírito Santo que fala “através dele” (“Esta não foi uma
citação do “preconceituoso” Paulo, mas do Espírito Santo através
dele”); e também uma oposição entre a teoria e a prática da igualdade
(“aceitam a teoria, mas não a prática, da igualdade do ser humano)”.
Dessa forma, o enunciador mobiliza dois mecanismos da dimensão
enunciativo-pragmática que produzem a cena enunciativa a partir do
posicionamento com o qual o referido enunciador polemiza: a citação
de autoridade, para fundamentar o argumento de que a mulher pode
ser pastora, já que “todos são um em Cristo”; e o uso do operador
argumentativo “mas”, para produzir um efeito de separação entre os
que são “preconceituosos” e os que “aceitam, na prática, a igualdade
do ser humano”. Além disso, nesse excerto, identificamos também o
funcionamento da dimensão semântica, que pode ser verificada na
construção do simulacro, característica dessa dimensão. O simulacro
ocorre quando o enunciador retoma o discurso daqueles que se opõem
ao pastorado feminino para reinterpretá-lo e rotulá-lo, chamando-o de
“preconceito” (“a maior objeção ao pastorado feminino é o
preconceito”). No exemplo abaixo, identificamos mais uma forma,
utilizada pelo enunciador, de marcar o posicionamento do adversário.
Vejamos:
Excerto 7
A igreja Católica Romana, tão dogmática e
fechada em toda a sua história, apesar de suas
restrições sobre o assunto, tem permitido discuti-
lo. Atualmente, os Batistas têm pastoras na
Europa, na América do Norte, na África e na
Ásia. Os Batistas do Sul dos Estados Unidos têm
pastoras desde 1964. Hoje no Brasil há pastoras
entre os Episcopais, Metodistas e grupos
carismáticos. Mas que dizer dos Batistas
Brasileiros? Será que em pleno alvor do
século XXI agem como se houvesse a
sacralização do ministério pastoral? Alguns
consideram que a inclusão das mulheres nesse
serviço da igreja é profanação (negritamos).
11
O conceito de pré-construído é discutido por Pêcheux [1997 (1975)] na obra
Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Para o autor, o pré-
construído diz respeito ao que está “sempre já aí” presente no enunciado e que
também preexiste em discursos anteriores, uma vez que “algo fala sempre antes,
em outro lugar e independentemente” (PÊCHEUX, 1977 [1975], p. 162).
Entretanto, tais discursos quando retomados, no momento da enunciação,
ressurgem sob uma “interpelação ideológica que fornece-impõe a ‘realidade’ e seu
‘sentido’ sob a forma de universalidade” (PÊCHEUX, 1997 [1975], p. 164). Nesse
sentido, o pré-construído remete a uma construção discursiva exterior e anterior,
mas o faz de forma independente, isto é, sem mostrar explicitamente a ligação com
o enunciado anterior. Dessa forma, o que é formulado no momento da enunciação
“surge” como se fora uma verdade absoluta, proferida pelo sujeito do discurso que
“tende absorver-esquecer o interdiscurso no intradiscurso, de modo que o
interdiscurso aparece como puro já-dito do intradiscurso” (PÊCHEUX, 1997
[1975], p. 167).
12
A escala argumentativa é apresentada por Ducrot (1981) como uma categoria que
classifica os enunciados conforme a força que exercem no discurso. Essa
classificação é verificada pela presença de operadores argumentativos usados para
estabelecer a relação argumentativa entre os enunciados. No caso da análise acima,
tal classificação é representada pelo operador “tão”. Para explicar o funcionamento
dos operadores argumentativos, Ducrot apresenta duas noções básicas, a saber:
classe argumentativa e escala argumentativa. Ao explicar o funcionamento desses
conceitos operacionalizados por Ducrot, KOCH & ELIAS (2016) mostram que a
classe argumentativa “designa o conjunto de elementos que apontam ou orientam
para uma mesma conclusão”, já a escala argumentativa é constituída por
enunciados que, em uma mesma classe, apresentam “uma gradação de força
(crescente ou decrescente) no sentido de uma mesma conclusão” (KOCH; ELIAS,
2016, p. 61-62, grifos das autoras).
Polêmica discursiva: O pastorado feminino batista em cena 185
13
As perguntas retóricas são estratégias que geralmente são utilizadas em textos
argumentativos com o objetivo de antecipar possíveis dúvidas ou respostas do
leitor e não têm a intenção de obter uma resposta, mas buscam levar esse mesmo
leitor à reflexão. Para Bakthin/Volochinov (2006 [1929]), as perguntas retóricas
têm um valor persuasivo e, de alguma maneira, se situam na fronteira entre o
discurso citante e o discurso citado, de modo que “podem ser interpretadas como
uma pergunta da parte do autor, mas também como a pergunta de um personagem”
(BAKTHIN/VOLOCHINOV, 2006 [1929], p.174).
186 Sandra Ramos Carmo e Edvania Gomes da Silva
Excerto 8
Li no nosso querido O Jornal Batista dois artigos
que favorecem a possibilidade de mais essa
inovação vir ser aplicada entre os Batistas
Brasileiros. Confesso que senti um misto de
tristeza e de alegria. Fiquei triste porque o
espírito de imitação tem afrontado verdades
bíblicas, procurando com sutilezas induzir o
povo de Deus a praticar o que as escrituras não
ensinam. De outro modo alegrei-me porque: 1º)
Começa a aparecer, como que saindo de suas
trincheiras, os que advogam a idéia dessa
prática antibíblica. (...) 2º) Os artigos do
exemplar de 13 a 19/04 deste jornal, e que
apoiam a imposição de mãos sobre as mulheres,
não oferecem nenhum texto bíblico aplicado
convenientemente, e os argumentos dos
articulistas não conseguem alterar as convicções
do povo batista brasileiro (negritamos).
Excerto 12
Desde quando a Igreja Católica é paradigma
para o povo Batista? Se ela está revendo suas
190 Sandra Ramos Carmo e Edvania Gomes da Silva
14
De acordo com Silva (2013, p. 427), “Maingueneau apresenta a noção de aforização
para tratar de um tipo especial de enunciados /.../. Trata-se de enunciados
supostamente sem texto ou, mais especificamente, de aforizações”. Ainda segundo
a referida autora, “para Maingueneau, a aforização tem um funcionamento
enunciativo diverso daquele instituído na/pela enunciação textualizante. Em outras
palavras, a lógica de funcionamento de enunciados como provérbios, máximas,
slogans, frases feitas, etc. difere da lógica de funcionamento de um texto. Trata-se,
ainda segundo Maingueneau (2010b), de uma diferença de ordem e não de
dimensão” (SILVA, 2013, p. 427).
Polêmica discursiva: O pastorado feminino batista em cena 191
KJ?HQO°K
Nas análises, verificamos que a polêmica é construída com
base na relação entre as três dimensões do discurso polêmico,
apresentadas por Maingueneau (dimensão enunciativo-pragmática,
sociogenérica e semântica), ora com predominância de uma, ora de
outra. Essa relação mostra uma construção argumentativa que nos
permitiu constatar algumas diferenças entre os posicionamentos dos
sujeitos envolvidos na polêmica e, consequentemente, como a
Convenção Batista Brasileira concebe a legitimidade ou não do
sacerdócio feminino.
Assim, nos textos da CBB, verificamos que o enunciador,
defensor do pastorado feminino, ataca menos o seu opositor e
apresenta seus argumentos apoiados em uma recontextualização dos
textos bíblicos. O discurso desse enunciador, sob uma perspectiva
enunciativo-pragmática, é marcado pela interpretação dos textos
bíblicos como forma de validar os argumentos do referido enunciador,
sendo que o recurso às escrituras sagradas é feito por meio da citação
direta, funcionando como recurso de autoridade, do operador
argumentativo “mas”, da escala argumentativa e das perguntas
retóricas. Em relação à dimensão sociogenérica, constatamos a
importância do funcionamento do suporte discursivo da polêmica, O
Jornal Batista, que mostra uma temporalidade interna e permite,
assim, ao público alvo (a comunidade batista) acompanhar o
desenrolar do conflito. As características dessas duas dimensões
favorecem a identificação da dimensão semântica. Em relação à
referida dimensão, verificamos a construção de um simulacro em que
Polêmica discursiva: O pastorado feminino batista em cena 193
/ABAN¶J?E=O
AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidades enunciativas. Cadernos de Estudos
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Polêmica discursiva: O pastorado feminino batista em cena 195
=L¹PQHK
'LVFXUVR5HOLJLRVR$UJXPHQWDomRH
&RJQLomRGD)p
Wander Emediato e Eduardo Assunção Franco
&JPNK@Q³°K
Tentar entender o que leva muitas pessoas a terem fé, fazerem
escolhas religiosas e, em diversos casos, se converterem e mudarem
de confissão religiosa ou até mesmo se tornarem sem religião1 ou
ateus são questões relevantes que interessam às ciências humanas e
sociais. Esses fatores já foram bastante estudados na sociologia, na
antropologia, na teoria das religiões, na psicologia social, entre outros.
Nosso objetivo é verificar até que ponto, e como, a análise do discurso
poderia tratar de questões religiosas no âmbito da linguagem, ou seja,
como uma problemática do discurso e, em certa medida, refletir sobre
o problema da influência. Isso implica relacionar os estudos do
discurso com os estudos sobre cognição e argumentação. Nosso
objetivo, aqui, se limita a propor uma problematização possível, e
ensaística, do fenômeno da cognição social religiosa, e da
argumentação religiosa, sem pretensão de demonstrar nenhuma
relação entre a fé e mecanismos mentais internos – inatos ou
adquiridos – ou de superestimar fenômenos complexos como o da
influência.
1
Os sem-religião ou não-afiliados ocupam a terceira posição, em termos numéricos,
no Brasil e no mundo. No Brasil, eles representam 8% da população, sendo que
deste grupo apenas 0,32% são ateus e 0,07% agnósticos.
198 Wander Emediato e Eduardo Assunção Franco
0K?EA@=@AANAHECE°K
O conceito de religião é definido por alguns teólogos:
Religião é a realização socioindividual (em
doutrina, costume, frequentemente ritos) de uma
relação do homem com algo que o transcende e a
seu mundo, ou que abrange todo o mundo, que se
desdobra dentro de uma tradição e de uma
comunidade. É a realização de uma relação do
homem com uma realidade verdadeira e
suprema, seja ela compreendida da maneira que
for (Deus, o Absoluto, Nirvana, Shûnyatâ, Tao).
(KUNG, 1986 apud LIBANIO, 2001, p. 55).
#µA?KCJE³°KOK?E=H
Para a análise do discurso, o fenômeno cognitivo não é de
fácil tratamento, pois este sempre esteve relacionado com o
processamento interno, mental, de fenômenos externos, e a AD nunca
tratou de elaborar uma teoria da mente nesse sentido. De modo geral,
para a análise do discurso, é o mundo social, externo, que se impõe ao
homem e determina, em grande parte, o funcionamento de seu
discurso, num fenômeno que poderíamos chamar, aqui, na esteira de
Giddens (2002), de reflexividade institucional e social e, em
consonância com Auroux (1995, 1998, 2000), segundo o qual a
linguagem não está no cérebro, de fenômeno da cognição externa ou
de externalidade da mente.
As hipóteses sobre cognição social entre analistas do discurso
convergem para a integração de elementos da situação atuando sobre
as práticas dos sujeitos e os modos como eles interpretam os
parâmetros situacionais e são, em certa medida, orientados por esses
dados externos. Há, portanto, que se considerar implicações externas
(parâmetros situacionais) e internas (interpretações subjetivas sobre a
situação de discurso e as atitudes dos participantes). Para Charaudeau,
por exemplo, esses parâmetros são de ordem contratual e apontam
para uma espécie de pré-compreensão do mundo da ação. Para Van
Dijk (2011), que critica os modelos de explicação causais, em que a
situação externa determina as atitudes e as formas do discurso, o
contexto é um modelo mental que controla o discurso por meio dos
aspectos relevantes da situação social e está relacionado com o
processo de interpretação subjetiva que cada participante faz da
situação em curso. O pesquisador acrescenta os aspectos da cognição
à sua teoria:
(...) de acordo com a minha teoria de contexto, a
influência do discurso sempre passa por uma
Discursos religioso, argumentação e cognição da fé 205
NCQIAJP=³°K
/AP¾NE?=A/AHECE°K
O estudo da argumentação deve se situar dentro de uma
problemática da influência social (CHARAUDEAU, 2008), mas isso
não implica nenhum prejulgamento sobre o potencial de eficácia das
argumentações. Postular que a argumentação possui um potencial
persuasivo qualquer ou que sua função é justamente a de persuadir é
uma coisa. Relacionar argumentações e formas argumentativas à
influência e à persuasão efetivas é outra muito diferente. Para
estudiosos da argumentação, como Angenot (2008), o potencial
persuasivo da argumentação é bem limitado. Com efeito, não é difícil
admitir que argumentar, em certa medida, persuade muito menos do
que narrar, por exemplo. A maioria de nossas crenças e valores não
foram fundados em argumentações racionais, mas em narrativas,
sobretudo míticas e religiosas.
Discursos religioso, argumentação e cognição da fé 207
*¹@E=
#µALNKL=C=J@=NAHECEKO=
O uso da mídia é um recurso que as igrejas vêm utilizando
cada vez mais com o propósito de evangelizar, divulgar seus projetos,
captar – eventualmente – novos fiéis e fidelizar os que já possui. Há
algumas décadas, as igrejas Católica e Evangélicas vêm adquirindo ou
fundando emissoras de TV e de rádio, portais, sites, espaço nas redes
sociais, jornais, revistas e outras publicações impressas e digitais. A
programação é diversificada e consta de transmissão de celebrações
religiosas, divulgação de testemunhos de superação e cura, debates,
entrevistas, além do entretenimento. A despeito daquelas que
reproduzem, em novos suportes, as celebrações oficiais, há aquelas
que se constroem na hibridização entre o gênero religioso e o
propriamente midiático, ou seja, entre o discurso religioso e o discurso
da informação, como os jornais Folha Universal e Opinião Católica.
Vale a pena se deter em pelo menos um dos aspectos que essa
hibridização entre religião e informação acarreta: a
tematização/problematização. Em outros artigos, discutimos os
vínculos do jornalismo de referência (como Folha de SP, Le Monde,
O Globo, Le Figaro, etc.) com a problematicidade ética, em especial
com a ética cidadã. O discurso religioso, discurso constituinte por
excelência (MAINGUENEAU, 2008 [1984]), investe em um discurso
não constituinte e mundano, em sua origem profano e laico, que é o do
jornalismo. Isso não se faz sem consequência, pois o discurso
religioso irá predominar sobre a ética cidadã jornalística e investir esse
tipo discursivo de problematicidade religiosa, ou seja, de uma ética
religiosa. Esse procedimento enquadra o mundo social na ética
religiosa e oferta essa esquematização ao leitor-destinatário do
jornalismo religioso, idealmente o próprio fiel. Isso pode ser notado
no exemplo abaixo, recolhido da Folha Universal, jornal evangélico:
212 Wander Emediato e Eduardo Assunção Franco
F
KJ?HQO°K
Devemos entender a cognição religiosa no âmbito da cognição
social e a problemática da influência religiosa nas diferentes práticas
que sustentam a religiosidade em alguma medida. Ela não se limita
apenas à percepção das informações ou da apreensão e aquisição
mental do aprendizado religioso (na catequese, no batismo, nos
sacramentos, etc.). Alguns autores observam que o sintagma
“cognição social” representa a junção de dois elementos que
demonstram a influência que o meio social pode trazer para a
percepção mental. O ser humano vive em sociedade, convive com
familiares, amigos e colegas de trabalho. Frequenta a escola, a igreja e
se diverte no cinema, em parques ou em bares. A convivência com
outras pessoas, estudos e a frequência a determinados lugares
interferem na sua cognição e na sua experiência, inclusive, espiritual.
Daí o sintagma “cognição social”, que se torna cada vez mais
relevante para a Análise do Discurso. Os analistas precisam levar em
214 Wander Emediato e Eduardo Assunção Franco
3
É famosa a frase bíblica de que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma
agulha do que um rico entrar no reino do céu (Mt 19, 24). Weber (2001) postula que
ela compõe a ética católica.
Discursos religioso, argumentação e cognição da fé 215
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9 788577 583249