Dissertação Final Paulo Macan
Dissertação Final Paulo Macan
Dissertação Final Paulo Macan
CURITIBA
2020
PAULO AFONSO CHAVES MACAN
CURITIBA
2020
Catalogação na publicação
Sistema de Bibliotecas UFPR
Biblioteca de Artes, Comunicação e Design/Batel
(Elaborado por: Karolayne Costa Rodrigues de Lima CRB 9/1638)
CDD 781.66
Dedicatória
Dedico este trabalho a todos os músicos de Curitiba. Àqueles que estão iniciando os
estudos em seus instrumentos, aos que ensaiam até tarde, aos músicos que nos fins de semana
trocam a companhia dos amigos ou da família por viagens a trabalho, àqueles que ao invés de
se preocupar em comprar um carro novo, preocupam-se com o próximo equipamento a adquirir.
Eu dedico este trabalho aos que não desistiram da música por causa da velha pressão de que “a
música não dá dinheiro”. Dedico também aos que desistiram, pois sei o quão difícil é, e seria
hipócrita de minha parte dizer que eu mesmo nunca pensei, e ainda penso, às vezes, em desistir.
Este trabalho é para os que compõem até tarde, para os que viram madrugadas tirando músicas
e acordam cedo no dia seguinte para ir trabalhar em outro emprego. Para os colegas que
precisam esconder a guitarra nova da esposa, ou mentir o valor que pagaram, evitando assim
discussões motivadas por uma irracionalidade – movida pela paixão e fantasia incontroláveis
que compõem o fazer musical. Este trabalho é para os músicos que ficam no quarto fazendo
vídeos para o Instagram, mas é também pra aqueles que sobem várias vezes no palco, muitas
das quais entretém um público que está mais preocupado com a TV, onde passa o futebol ou o
UFC. É para aqueles que se revoltam a cada show com o cachê, mas tornam a tocar no mesmo
lugar de novo e de novo. É para todos os que amam e vivem intensamente a música.
Agradecimentos
Eu agradeço em primeiro lugar à minha avó Tereza Macan, ao meu avô Vergolino José
Macan, minha tia Cristiane Poerner Chaves e à minha avó Suely Ana Poerner, igualmente a
cada um deles por me ensinarem o significado de família.
Agradeço à minha nação por me proporcionar o estudo gratuito durante oito anos. À
Universidade Federal do Paraná e todos os professores do curso de Música pelo ensino. À
Coordenação de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo incentivo enorme que foi a
possibilidade de eu estudar com bolsa de mestrado. Ressalto que, sem a bolsa, eu não teria
tempo de estudar nem produzir a coleta e análise de dados enorme que demandou esta pesquisa,
pois estaria usando este tempo de estudo para conseguir mais dinheiro para sobreviver.
Agradeço ao Grupo de Pesquisa em Etnomusicologia da UFPR (GRUPETNO) por todas as
discussões e suporte com bibliografias e orientações, sem o qual este trabalho não se realizaria.
Meu muito obrigado ao meu orientador e amigo Professor Dr. Edwin Ricardo Pitre-
Vásquez pela autonomia e confiança que me foi dada e pela sua receptividade e colaboração
com minha pesquisa além da compreensão com minhas atividades musicais intensas fora da
universidade. Agradeço à professora Luzia Aparecida pelas correções e dicas no projeto que
originou este estudo. Aos professores Eduardo Paiva, pelos apontamentos em meu questionário
para esta pesquisa, e Simone Pereira de Sá por me indicar textos sobre cenas.
Agradeço aos colegas de GRUPETNO Julio Borba e Luciano Candemil pelo
compartilhamento de referências e troca de ideias para pesquisas musicais e extramusicais.
Agradeço ao Cainã Alves pela sempre solícita atuação como representante discente. Aos
amigos pesquisadores do UFPRock Celso Costa Segundo e Felipe Estivalet pela troca muito
produtiva de referências e pelo sincero interesse em contribuir com a pesquisa.
Meu agradecimento aos entrevistados deste trabalho Manoel Neto, André Hernandes,
Alvaro Ramos, Ivan Junior, Rodriggo Vivasz, Cyro Ridal, Zé Rodrigo e todos os que
empreenderam seu tempo respondendo o questionário online deste estudo.
Agradeço a meus amigos Daniel Nunes, Sandro Tissot, Saulo Trada, Gilson Mocellin,
Marcelo Grobb, Juliano Mildemberg e Rodrigo Schwartz, que têm me proporcionado viver
intensamente a profissão de músico, tanto em Curitiba como pelos inúmeros lugares que já
estivemos juntos e a meu amigo e professor Luca Barros, pelas tão eficientes lições de inglês.
Por fim, agradeço à sabedoria suprema, que me colocou no tempo e espaço para
desfrutar do privilégio de ser quem eu sou e estar onde estou.
“Há quase meio século uma eletrificada mistura espalhou-se pelo
mundo contagiando em cheio a juventude. Chocando gerações,
questionando instituições e mudando comportamentos. Rebelde, vibrou
forte pelos autofalantes, invadiu ouvidos, assaltou cérebros e criou
mitos. Instituído, criou novas modas atitudes e concepções. A isto
chamou-se rock’n’roll, cultura bizarra, barulhento circo sonoro,
indústria de lucro e prejuízo, negócio sujo, divertido produto de
entretenimento que se transformou na principal manifestação de arte
pop do século e a trilha sonora do fim dos tempos. Rock’n’roll, fútil
forma de arte, descartável, volátil e bastarda como toda arte moderna.
Nunca se contaram histórias tão boas em volume tão alto. Apenas
rock’n’roll no volume máximo [...]”
(Pedro do Rosário)
RESUMO
1 INTRODUÇÃO.........................................................................................................20
1.1 CONTEXTO PESSOAL.............................................................................................20
1.2 APRESENTAÇÃO DO TEMA ..................................................................................25
1.3 JUSTIFICATIVA DA ESCOLHA E RELEVÂNCIA................................................28
1.4 PROBLEMAS E OBJETIVOS...................................................................................30
1.5 VISÃO GERAL DO TRABALHO.............................................................................32
2 CONTEXTUALIZAÇÃO – ESTADO DA ARTE................................................. 35
3 METODOLOGIA.....................................................................................................41
3.1 MÉTODOS ................................................................................................................41
3.1.1 Revisão Bibliográfica..................................................................................................41
3.1.2 Levantamento de macroambiente: questionário..........................................................43
3.1.3 Etnografia....................................................................................................................50
3.1.4 Levantamento de microambiente: cartografia das regiões sociais da cena musical rock
de Curitiba...................................................................................................................54
3.1.5 Pesquisa qualitativa: entrevistas..................................................................................58
3.2 MATERIAIS...............................................................................................................60
4 DESCRIÇÃO ETNOGRÁFICA..............................................................................62
4.1 CURITIBA – A “SEATTLE BRASILEIRA”?............................................................62
4.2 DUALISMOS NA CENA ROCK...............................................................................66
4.3 LOCAIS......................................................................................................................70
4.4 DINÂMICAS ENTRE PÚBLICO, GRUPOS E ESTABELECIMENTOS................72
4.5 GRUPOS MUSICAIS, PÚBLICO, REPERTÓRIO E APRESENTAÇÕES..............76
4.6 RIVALIDADES E ALIANÇAS................................................................................. 81
5 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ...........................................................................90
5.1 CENA MUSICAL.......................................................................................................90
5.1.1 Cena musical: entretenimento e conflito......................................................................90
5.1.2 Local versus global......................................................................................................92
5.1.3 Críticas ao termo: flexibilidade, ordem e caos.............................................................94
5.1.4 Cena e política.............................................................................................................97
5.1.5 O carácter disruptivo das cenas....................................................................................98
5.1.6 Lógicas de mudanças: lógica de campo; social; de movimentos circunstanciais........98
5.1.7 Gênero musical e cena...............................................................................................102
5.1.8 Cena musical e o Século XXI....................................................................................108
5.2 CENAS HUMANAMENTE ORGANIZADAS – HABITUS..................................112
5.2.1 Etnomusicologia: música para que?..........................................................................113
5.2.2 Usos e funções da música..........................................................................................115
5.2.3 A indústria cultural e o impacto na relação do indivíduo com os bens culturais.........119
5.2.4 Críticas sobre decadência do gosto musical...............................................................120
5.2.5 Música e entretenimento: regressão da audição e fetichismo.....................................122
5.2.6 Comunidades de prática: identidade, alianças e afetos..............................................123
5.3 ESPAÇO - LOCUS...................................................................................................128
5.3.1 Espaço e cena musical...............................................................................................128
5.3.2 Circuitos e cenas........................................................................................................130
5.3.3 Espaço, território, lugar e não-lugar..........................................................................132
5.3.4 Territorialidades........................................................................................................135
5.3.5 Cena musical e ciberespaço.......................................................................................137
5.4 TEMPO – HUMANAMENTE [DES]ORGANIZADO............................................141
5.4.1 Cadeia produtiva da economia da música..................................................................142
5.4.2 Relação indivíduo e indústria: autoral e cover, independentes e alternativos.............143
5.4.3 Breve contextualização da indústria fonográfica brasileira entre 1970 e 2000..........145
5.4.4 A Teoria da Cauda Longa: indústria fonográfica a partir dos anos 2000....................150
5.4.5 Efeitos da cibercultura no séc. XXI...........................................................................155
5.4.6 O futuro da indústria fonográfica no séc. XXI...........................................................156
5.5 A INTERSEÇÃO......................................................................................................159
6 RESULTADOS .......................................................................................................161
6.1 PROBLEMAS DA PESQUISA E OBJETIVOS (GERAL E ESPECÍFICOS) .........161
6.2 PROCESSOS METODOLÓGICOS E OCORRÊNCIAS INESPERADAS.............162
6.3 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DOS RESULTADOS.......................................165
6.4 ANÁLISE E DESCRIÇÃO DOS DADOS COLETADOS.......................................166
6.4.1 “Questões sobre você” – perguntas onde o tema principal é o indivíduo...................166
6.4.2 “Sobre tocar em Curitiba” – questões em que o tema principal são os espaços da
cidade........................................................................................................................175
6.4.3 “Música e mídia em Curitiba” – relação dos músicos com os meios de
comunicação .............................................................................................................197
6.4.4 Considerações finais dos músicos redigidas na pesquisa online................................207
6.5 MAPAS DA CENA ROCK EM CURITIBA............................................................211
6.5.1 Cartografia do macroambiente da cena musical rock de Curitiba..............................216
6.5.2 Cartografia do microambiente da cena musical rock de Curitiba...............................220
7 DISCUSSÃO............................................................................................................226
7.1 CENA MUSICAL ROCK CURITIBANA................................................................226
7.1.1 A perspectiva dos músicos atuantes na cena rock de Curitiba....................................226
7.1.2 OMB: pior com ou sem?............................................................................................230
7.1.3 Do local ao global......................................................................................................232
7.1.4 Maleabilidade do conceito cena musical...................................................................235
7.1.5 Mudanças e inércia....................................................................................................236
7.1.6 Gêneros roqueiros em Curitiba..................................................................................243
7.1.7 Cena rock curitibana e o séc. XXI..............................................................................245
7.2 A CENA MUSICAL ROCK E OS SEUS INDIVÍDUOS.........................................247
7.2.1 Indústria cultural na cena rock de Curitiba................................................................249
7.2.2 Cena rock e comunidades..........................................................................................252
7.3 A CENA MUSICAL ROCK DE CURITIBA E SEUS ESPAÇOS............................253
7.3.1 A cartografia..............................................................................................................259
7.3.2 Cena rock curitibana e o ciberespaço........................................................................260
7.4 ROCK EM CURITIBA E A INDÚSTRIA DO ENTRETENIMENTO LOCAL......263
7.4.1 Cadeia produtiva e cena rock curitibana....................................................................263
7.4.2 Independência e acesso ao mainstream.....................................................................267
7.4.3 Músico-transmídia e a indústria em rede...................................................................268
8 CONSIDERAÇÕES TRANSITÓRIAS................................................................ 274
8.1 REFLEXÕES E [RE]DEFINIÇÕES DO CONCEITO CENA MUSICAL...............274
8.2 ATUAÇÃO MUSICAL ROQUEIRA EM CURITIBA............................................275
8.3 ESTILO DE ROCK “BEM CURITIBANO MESMO” ............................................278
8.4 ONDE ESTÃO OS LOCAIS DESTA CENA ROCK?..............................................279
8.5 CENA INTERCONECTADA.................................................................................. 280
8.6 A CADEIA PRODUTIVA E A FORMAÇÃO DE PLATEIA EM CURITIBA........281
8.7 MÚSICO-TRANSMÍDIA........................................................................................ 282
8.8 INOVAÇÃO E LACUNAS NO ESTUDO DA CENA ROCK CURITIBANA........282
REFERÊNCIAS......................................................................................................286
20
1 INTRODUÇÃO
1
Rock é o rótulo para a imensa variedade de estilos desenvolvidos a partir do rock’n’roll (SHUKER, 1999, p. 249)
2
“Banda” é um termo coloquial que se refere a um conjunto de pessoas que se reúne para performar musicas, é
usado exclusivamente fora do ambiente formal acadêmico, porém pelo excesso de uso pelos sujeitos dessa
pesquisa, será incorporado no texto.
21
Vendemos em torno de 15 ingressos cada integrante, a 10 Reais 3 e o dinheiro era entregue para
os organizadores do evento a fim de pagar os custos do festival.
Quando chegamos ao local do festival, havia muitos grupos musicais, cada qual com
seus amigos e “fãs”. Percebia-se uma atmosfera competitiva decorrente da busca pela
premiação no evento e, nesse ambiente, algumas fofocas passavam de músico para músico.
Lembro por exemplo de um colega comentar que o integrante de outra banda havia dito em tom
de sarcasmo “público não ganha festival”, dado ao fato de termos levado muitas pessoas para
prestigiar nossa apresentação. Havia essas “microtensões”, por exemplo, em outro momento
fomos criticados por executar músicas do mainstream nacional, faixas de bandas como Capital
Inicial, Ira!, Lulu Santos, Jota Quest, Engenheiros do Hawaii, Titãs, entre outros.
Neste mesmo evento, por causa da pressa em deixar o palco no tempo previsto para
outro grupo se apresentar, acabei esquecendo uma guitarra Giannini Gemini Jazzmaster no
camarim e, quando retornei ao final das apresentações para reavê-la, o instrumento não estava
mais lá. A guitarra Giannini quase foi furtada por um sujeito que havia também performado no
festival, não fosse um conhecido nosso ter intervindo quando percebeu que a segunda guitarra
carregada por um dos músicos que deixava o local, assemelhava-se com a que havíamos
descrito e, assim, numa mescla de sorte e atenção, nos recuperou a Giannini.
Foi a primeira vez que subi em um palco em Curitiba, aos 15 anos de idade. Naquele
concerto, que ocorreu no antigo endereço do clássico espaço 92 Graus – The Underground Pub,
no bairro São Francisco. Foram tocados pelas bandas, em suma hits nacionais e internacionais,
com exceção do trio Terra em Transe, que além de performar alguns clássicos do rock, executou
também a faixa “Garoa e Solidão” da banda curitibana Relespública.
Após este festival, novos questionamentos começaram a surgir. Além de me causar
desconforto o fato aparente de que a música incomodava em Curitiba, a rivalidade entre os
grupos me chamou a atenção naquele evento. Por que, aparentemente, os grupos eram tão
apáticos e se boicotavam, além das fofocas, ao ponto de um instrumento quase ser roubado por
outro músico, ao invés de ser deliberadamente devolvido num ato de camaradagem,
colaboração e honestidade? Além disso, por que a responsabilidade da venda dos ingressos e
angariação de plateia era passada aos próprios músicos, sendo que nenhum deles lucraria com
o evento e já iriam performar sem nenhum cachê garantido? Por que achávamos isso normal?
Por que a grande maioria das bandas (inclusive a minha), em um tempo livre reservado, sem
nenhuma imposição de repertório, optava por executar hits de outros grupos já conhecidos
3
Em valores atuais, aproximados, seria o equivalente a R$24,00.
22
nacional e internacionalmente? Por que, mesmo em contato com os grandes veículos de mídia
de massa locais e nacionais, interessado em rock’n’roll desde criança, só fui conhecer uma
música de uma banda curitibana aos 15 anos de idade, através de outro conjunto que resolveu
fazer um tributo em um festival de bandas de garagem da ETFPR num espaço underground4 da
cidade?
Entre 2009 e 2011, enquanto estudava e trabalhava em outras áreas não musicais,
toquei algumas vezes em bares onde o cachê dependia exclusivamente da portaria, ou seja, uma
porcentagem da arrecadação que a casa noturna cobra pela entrada de público. Dois eventos
marcantes dessa época foram o festival promovido pelo músico e produtor Saulo Trada,
chamado Caminhos do Rock 4, no antigo endereço do Hermes Bar5 e um outro festival de
bandas da Pontifícia Universidade Católica (PUC-PR), que foi realizado no palco da concha
acústica da instituição em Maio de 2010. Não há mais registro audiovisual de minha
participação nesses eventos, mas recordo que no festival da PUC-PR um dos jurados elogiou o
fato do grupo Molungo, que foi o conjunto vencedor do evento, além de apresentar uma boa
performance, possuir canais digitais muito bem estruturados e serem muito profissionais (na
época se usava principalmente o Myspace6). O comentário dirigido à banda Brigada Sul, grupo
em que toquei, foi apenas “vocês tocam um rock bem curitibano mesmo”.
Na época, essas experiências me trouxeram novos questionamentos: quão responsável
é o músico pelos seus canais de comunicação, estratégias de divulgação e produção de material?
Como conciliar os estudos musicais com a aquisição de autonomia digital suficiente para – além
de aprender músicas, montar repertório, ensaiar a performance, lidar com tensões entre colegas,
conseguir espaços para tocar – administrar redes digitais, produzir e editar material online e
manipular estratégias de marketing? O que é ter profissionalismo no meio musical? O que seria
“rock bem curitibano”, quais os parâmetros musicais e extramusicais que delineiam uma banda
de “rock curitibano”? Existe, signos musicais que identificam a música de Curitiba? Como se
identifica o fator “curitibano” em uma canção? Esses foram os primeiros contatos e, logo,
minhas primeiras impressões e questionamentos com parte da cena musical rock de Curitiba.
A ideia de transformar em pesquisa essas inquietações sobre a cena rock da cidade
veio à tona quando, após superar o terrorismo familiar que tentava me coibir a atuar em qualquer
4
Shuker (1999, p. 79) explica que os termos cultura underground ou contracultura como “continuam a ser usados
para designar diversos grupos e subculturas que não se integram ou que se opõe ao mainstream social e
econômico”.
5
Nesta época o Hermes Bar se localizava no endereço da Avenida Iguaçu, 2504
6
Criada em 2003, já foi a rede social mais popular do mundo, oferece uma rede interativa de perfis pessoais e era
amplamente utilizada como plataforma digital de portfólio musical.
23
outra área que não fosse a música, entre 2013 e 2014, já no segundo ano do Bacharelado em
Música pela UFPR, durante um estágio no Estúdio Gramofone 7, recebi o acervo do programa
de rádio e TV Ciclojam para digitalizar e editar no formato digital.
O Programa Ciclojam foi idealizado e realizado pelo produtor de rádio e TV Cyro
Ridal, que desde o início dos anos 1990 manteve a iniciativa de registrar grupos musicais em
Curitiba. O Ciclojam surge nessa época, inicialmente, como um quadro dentro de um outro
programa denominado Ciclorama, que era realizado na Faculdade de Artes do Paraná (FAP).
Cyro conta em entrevista para este estudo que o Programa Ciclojam surge como embrião entre
1994 e 1995 e a partir daí se torna um programa independente do Ciclorama, passando a ser
veiculado pela Rádio da Rede Educativa, um veículo de comunicação público.
O acervo que digitalizei em meu estágio no estúdio Gramofone compreende os
registros dos anos de 1996 a 2005 e consiste em gravações de áudio e vídeo, com música ao
vivo sendo tocada por grupos musicais de Curitiba, e seções de entrevistas com estes músicos.
Como o processo de digitalização e edição precisava ser monitorado, ouvi, sem cortes, 75 fitas
K7, 17 MD’s, 6 CD’s e assisti a 111 fitas Beta de aproximadamente 90 minutos contendo esses
materiais. As seções de entrevista duravam cerca de 20 a 30 minutos cada e nelas Cyro
procurava abordar questões em relação à música em Curitiba, ao cenário, aos bares, aos cachês,
ao público, entre outras abordagens.
Quando me deparei com este material, todos os questionamentos que me fiz nos anos
anteriores emergiram novamente. Antes disso, a minha hipótese era de que minhas experiências
haviam sido casos isolados, porém com a escuta do material, principalmente a parte de
entrevistas, um padrão começou a tomar forma, pois muitos músicos entrevistados por Cyro
possuíam os mesmos questionamentos que eu, ou demonstravam incertezas frente às questões
colocadas pelo produtor do Ciclojam.
Muitos músicos se queixavam de fatores no cenário musical curitibano que – além de
terem me sidos alertados pelo senso comum familiar que, com receio, me coagiam a estudar
qualquer outra área do conhecimento para que não virasse um roqueiro drogado, cheio de
piercings, tatuado, sem teto, sem renda e sem futuro8 – eu havia também começado a perceber
nas minhas precoces experiências musicais e extramusicais em Curitiba, que já me traziam
7
A Gramofone, fundada em 1988, é fruto da amizade musical de Alvaro Ramos e Mara Fontoura. Em sua trajetória
tornou-se além de um dos maiores estúdios de gravação da cidade de Curitiba, uma empresa com vocação para a
gestão e marketing cultural. Fonte: http://gramofone.com.br/sobre
8
Optei por demonstrar com esta anedota o autoritarismo e o preconceito que se faz presente em grande parte da
sociedade curitibana em relação à música e ao artista em geral. Este assunto será abordado à frente no trabalho.
24
O assunto deste trabalho é a cena musical em torno dos fazeres musicais do gênero
rock na cidade de Curitiba. O “fazer musical” neste trabalho é entendido pela perspectiva do
conceito “musicking”9 de Small (1998), em que a música é vista como um processo e não um
fim, portanto o processo de “musicar” é permeado de diversos agentes sem os quais não é
possível a atividade musical na cena. Com isso em mente, entende-se neste trabalho a
coparticipação da rede de indivíduos com diversas funções na cena estudada como sendo fazer
musical.
Por rock, entende-se, como já colocado anteriormente de forma breve, um gênero
musical que surgiu a partir do rock’n’roll no início dos anos 1950, e que possui raízes profundas
na música vocal de “chamado-e-resposta” africana, com harmonizações da música tradicional
europeia do séx. XVIII e, mais tarde a partir de estilos como o blues, o boogie woogie e o
country (SHUKER, 1999, P. 249; FRIEDLANDER, 2002, p. 23).
Não é objetivo deste estudo abordar a história do rock, nem aprofundar em definições
de termos adjacentes como os gêneros citados no parágrafo anterior. No entanto, vale ressaltar
que o rock surgiu nos Estados Unidos em um contexto de grande crescimento econômico pós
Segunda Guerra Mundial onde se formou um terreno fértil para reflexões sobre os horrores de
um passado próximo, relacionado à guerra, em relação aos desafios para o futuro aparentemente
distante (SOUSA, 2007, p. 5).
Nesse sentido, o rock foi um gênero que desde seu surgimento impactou de diversas
formas a sociedade da época. Duas citações de Paul Friedlander chamam a atenção logo na
abertura de Rock and Roll: Uma História Social. A primeira, uma fala exasperada de Frank
Sinatra10 sobre o estilo e a segunda é uma reflexão de David Laing 11.
9
Pode se traduzir como “musicar”.
10
Artista americano do séc. XX, um dos maiores ícones populares da história da música pop, recordista de vendas
de discos com mais de 150 milhões de cópias vendidas em todo o mundo.
11
Foi um especialista em história da música pop e rock e colaborador em pesquisas das Universidades Westminster
e Liverpool.
26
popular utilizam para tentar manter seu domínio, pois se esses elementos forem
introduzidos na música popular, eles podem ter um efeito demolidor. Quando eles são
introduzidos, há procedimentos para a incorporação destes elementos externos (sejam
eles ritmos, estilos de cabelo ou o significado das letras) para minimizar a ruptura que
eles fariam no consumo ordenado (LAING, citado por FRIEDLANDER, 2002, p. 11).
A partir disso tem-se a noção de que o rock é um gênero muitas vezes controverso,
desafiador frente a regras implícitas e explícitas da sociedade e, em suma, rebelde. Mais além,
Friedlander aponta que o conteúdo mais frequente das letras são amor – ou sexo – e rebelião.
O público-alvo do gênero era principalmente jovens e adolescentes. O autor explica que o
“uniforme de guerra de qualquer roqueiro verdadeiro” é o jeans, camisetas e casaco de couro
preto, vestimentas que nos anos 1950 eram símbolos rebeldes e nos anos 1980 se tornaram
“mero padrão de moda” (2002, p. 20).
No início da década de 1950 o rock’n’roll escalou as paradas de sucesso como uma
manifestação underground e majoritariamente negra. A guitarra elétrica foi uma inovação que
começou a se destacar na instrumentação dos conjuntos musicais roqueiros pelas grandes
quantidades de compassos nas músicas que começaram a ser destinadas a solos e pelas jams
intermináveis onde os guitar heros tomavam a frente do conjunto para improvisar
(FRIEDLANDER, 2002, p. 25).
De acordo com Bellest e Malson, o rock emprestou a instrumentação dos grupos de
jazz dos anos 1950, contento pelo menos uma bateria acústica, contrabaixo, guitarra elétrica,
piano e voz, embora isto seja amplamente variado. O gênero:
[...] agradou por uma evidente simplicidade, uma natureza fundamentalmente vocal,
um novo espírito da canção, um aumento do volume sonoro dos amplificadores das
guitarras e baixos elétricos. O ritmo tornou-se rigorosamente binário (oito colcheias
iguais por compasso ouvidas constantemente ou subentendidas) – embora tenha se
dividido como ritmo funk um recurso bastante próximo do recurso ternário. O
compasso, concebido em 4/4 com andamentos que pouco ultrapassaram 144
batimentos por minuto (BELLEST; MALSON, 1989, p. 127).
Em matéria das qualidades da estética do rock, Bruce Baugh (1993) salienta que o rock
é um gênero musical que deve ser mais sentido do que pensado. Para o autor, o rock “funciona”
a partir do efeito que produz na resposta física de seus interlocutores. De acordo com o
raciocínio de Baugh, três são os elementos materiais que constituem a essência do rock: ritmo,
expressividade e altura. “Uma canção ruim de rock é aquela que tenta e falha ao inspirar o corpo
a dançar” (BAUGH, 1993, p. 20). Se para o autor, de um lado o ritmo é o indispensável para
que o rock seja, de fato, rock, a performance vocal é “o principal veículo de expressão” do
gênero, ao que acrescenta:
27
Os padrões de performance para os vocalistas de rock têm muito pouco a ver com o
virtuosismo de um cantor de ópera [...] alguns dos melhores vocalistas do rock, de
Muddy Waters a Elvis ou Lennon e Joplin, são tecnicamente cantores muito ruins.
[...] Nos anos 60, os modos de expressão que até então estavam unicamente associados
com a voz foram assumidos, com vários níveis de realização bem-sucedida, pelos
próprios instrumentos, especialmente pela guitarra. [...] Parte da intensidade da
performance do rock tem a ver com um aspecto que é frequentemente usado contra
ele: o forte volume ou altura da música. A altura [...] é também um veículo de
expressão. Evidentemente, música muito alta provoca um efeito sobre o corpo e não
apenas sobre o ouvido: você pode senti-la vibrando na cavidade do peito. Isto [...]
usado adequadamente pode acrescentar-se à expressividade (BAUGH, 1993, p. 21-
23).
O outro temo que compõe o assunto principal deste estudo é o conceito de cena musical
(STRAW, 1991; 2006) e será vastamente discorrido na seção de fundamentação teórica dado
ao seu carácter deslizante e confuso. No entanto, vale ressaltar que cena musical,
resumidamente, trata-se de “espaços geograficamente específicos para a articulação de práticas
musicais” (2006, p. 7). No caso deste trabalho são os espaços em que tomam forma a prática
do rock e suas vertentes, conforme já delineado nos parágrafos anteriores.
Os trabalhos sobre cenas musicais referem-se a contextos urbanos em que a música
ocupa a função de entretenimento. A diversidade desses trabalhos se dá decorrente do próprio
carácter difuso do conceito, proporcionando estudos que relacionem cena e, por exemplo:
gênero musical (CAMPOS, 2015; STRAW, 1991); gênero e sexualidade (COHEN, 1997;
STRAW, 1997); movimentos sociais (OLIVEIRA, 2015); comunidades e cena (STRAW, 1991;
PITRE-VÁSQUEZ; MACAN, 2019); indústria do entretenimento cultural em cidades
específicas (PITRE-VÁSQUEZ; MACAN, 2017); bairros em metrópoles (PEREIRA, 2014);
tecnologias digitais de produção, distribuição, comercialização e consumo (GALLETA, 2013);
identidades culturais e subculturas (BISPO, 2010; FREIRE FILHO; FERNANDES, 2005);
mídia e cidade (BATISTA; MONTEIRO, 2014); entre outros.
Percebe-se nos estudos sobre cenas musicais que, implícita ou explicitamente, sempre
há o fazer musical e: o componente espacial urbano – o território de uma cidade específica ou
de cidades polo dispersas globalmente atreladas à produção de uma preferência cultural
particular em uma cena; indivíduos agentes em torno de práticas musicais e extramusicais
desempenhando funções-chave em uma cena, ou que transitam entre cenas; e interações sociais,
comercialização, consumo, distribuição e produção por meio de tecnologias de comunicação
on e offline. Em suma, os trabalhos sobre cena musical tratam de relações entre cidade, pessoas
e tecnologias de comunicação permeados pelo fazer musical.
28
À frente no trabalho será explicado que existe pesquisa sobre a música em Curitiba e
do Paraná. Porém o s registros acadêmicos sobre cena musical em Curitiba são escassos. Isso se dá
porque a abordagem da prática musical na cidade através do conceito de cena, tal como visto neste
estudo, é muito específica, o que não significa que não haja estudos sobre o tema. Eles existem,
porém, não utilizam a perspectiva das cenas musicais conforme proposto por Straw (1991; 2006).
Os materiais acadêmicos tratam de manifestações musicais na cidade, porém nenhum
oferece a visão em torno do conceito de cena musical, desenvolvido por Straw. O estudo das
cenas musicais aponta características, situa questões e oferece a compreensão de fatores
históricos, sociais e econômicos que, em torno das manifestações musicais de determinado
lugar, podem explicar fenômenos relacionados a identidades culturais e comportamentos locais,
possibilitando maior entendimento da realidade da cidade. Com base nisso, entende-se também
que a perspectiva cultural da música, assunto muito explorado pela etnomusicologia, é uma
forma de se entender a relação entre indivíduo e sociedade.
Estudar cena musical permite ao pesquisador transitar e colaborar em várias áreas do
saber, de Teoria Musical a Geografia, de História a Comunicação, de Antropologia a Marketing,
de Urbanismo a Economia, de Sociologia a Inovação, Empreendedorismo, Administração
Pública, Direito, entre outras. Cena é um conceito superprodutivo por conta da sua capacidade
de proporcionar inúmeras conexões interdisciplinares. Isso se dá pelo próprio carácter
deslizante do termo, o que proporciona uma abordagem muito vasta, e também possivelmente
inovadora, dado às misturas intertextuais com outras áreas do conhecimento sobre o fazer
musical nos espaços físicos e virtuais e suas contingências no decorrer do tempo. Em outras
palavras, através do estudo de cenas musicais, as mais variáveis e não previsíveis parcerias
acadêmicas podem surgir, possibilitando uma rica e dispersa produção de conhecimento.
Atualmente, há em Curitiba um aparente interesse, por parte dos profissionais de
música e de cultura, em enxergar as manifestações musicais curitibanas. Fato que contrasta com
os depoimentos registrados na sessão de entrevistas do programa Ciclojam entre 1996 e 2005,
onde é notória a presença de queixas pelo “descaso” generalizado em relação à cena naquela
época. Mesmo com o aparente interesse atual sobre a cena, o primeiro registro científico que
responde se de fato há cena musical na cidade, e entre outras questões, como esta cena se
caracterizava, foi o artigo A Cena Musical em Curitiba: a partir do acervo do programa
Ciclojam entre 1996 e 2005 (PITRE-VÁSQUEZ; MACAN, 2017), que une pesquisa
bibliográfica a fontes primárias, preservadas pelo acervo do programa Ciclojam.
29
Em 2016, Cyro Ridal, em parceria com leis de incentivo, lançou o programa Espaço
Off, o qual funciona de forma muito parecida com o Ciclojam, porém traz uma amostra
atualizada dos grupos curitibanos. Em Outubro de 2017 foi publicado o livro Sob uma fina
camada de gelo: o rock autoral e a alma arredia de Curitiba (MERCER, 2017), outra iniciativa
que também surge como fonte riquíssima de conteúdos para esta pesquisa e que,
coincidentemente, aborda as manifestações musicais da capital paranaense até o ano de 1996,
mesmo ano em que inicia o recorte do meu trabalho anterior.
O professor Dr. Vincenzo Cambria, presidente da Associação Brasileira de
Etnomusicologia (ABET) entre 2014 e 2016, escreveu em 2017 um artigo onde trata da falta da
abordagem das cenas musicais por etnomusicólogos. Segundo ele, não há trabalhos de
etnomusicologia com este viés, até porque, para ele, a noção do conceito de cena ainda precisa
ser mais assimilada para se viabilizar como modelo metodológico. Decorrente deste
apontamento, neste trabalho procurou-se testar metodologias de pesquisa com cena musical: a
cartografia dessas regiões sociais, entrevistas com diferentes sujeitos da cena, a ativa etnografia
como insider e a divisão dos temas de abordagem pelo trinômio indivíduos, espaço e tempo,
como intuito de proporcionar uma melhor localização intertextual nos deslizes do uso do
conceito cena musical.
Cambria conclui que há ausência de preocupação por parte dos etnomusicólogos em
estudar o espaço urbano em toda sua complexidade, ressaltando que os trabalhos na área são
sempre voltados à dimensões “micro”, ou “macro”, ou direcionadas a sistemas globais, mas
sempre negligenciando a dimensão da cidade, ao que comenta: “o problema é que a maioria
dos etnomusicólogos está simplesmente conduzindo pesquisas “na cidade” e não “da cidade”,
isto é, continua “recortando” comunidades mais ou menos homogêneas e coerentes, evitando a
complexidade e heterogeneidade da vida urbana” (CAMBRIA, 2017, p. 13).
No presente estudo entendemos que o papel do pesquisador está muito relacionado à
organização dos assuntos. Para isso, atentando-se à crítica de Cambria, duas dinâmicas – que
funcionam numa via de mão dupla – instalaram-se na lógica geral deste trabalho. De um lado,
buscou-se extrair informações do macroambiente que se encaixassem e ajudassem a explicar o
microambiente das cenas. De outro lado, adentrando-se no microambiente – por meio das
entrevistas realizadas, os casos isolados que se repetiam em diferentes tempos e espaços, as
opiniões convergentes e divergentes, as experiências de imersão no campo – procurou-se
informações que ajudassem a explicar o macroambiente. No decorrer da pesquisa entendemos
que a cena não está em um ou em outro desses ambientes, mas na interseção dos diversos
campos que permeiam o conceito. Então, inevitavelmente, este estudo não é só uma pesquisa
30
de microambiente, mas leva em conta também o campo maior no qual está inserido e, por isso,
evoca constantemente a lógica de duplicidade na relação entre macro e microambiente.
Desta forma, o presente estudo encontra sua relevância principalmente por oferecer
uma abordagem às manifestações musicais de Curitiba, relacionando o conceito de cena
musical (STRAW, 1991; 2006) e a perspectiva da Etnomusicologia (MERRIAM, 1964; RICE,
2014; BLACKING, 1974; 1995; LAPLANTINE, 2004), e procura desbravar a complexidade
das relações em torno da música na cidade de Curitiba dentro do contexto atual de interação
global por meio de práticas culturais em rede (LEVÝ, 2013; LEMOS, 2006; ANDERSON,
2006; JENKINS, 2009; 2014).
Uma das principais críticas por parte dos profissionais de música era a falta de espaços
físicos na cidade para os grupos se apresentarem, o que dificultava o trabalho do músico ficar
em evidência. Com as tecnologias digitais online após 2005, a criação de espaços virtuais para
a alocação de material produzido pelos grupos curitibanos pode ter sido uma solução parcial ao
problema da falta de espaço que, seguindo este raciocínio, era um dos principais fatores que
contribuía ao anonimato destes profissionais. Junto a isso, o desenvolvimento de buscadores,
softwares de recomendação e filtros podem ter solucionado a dificuldade dos grupos musicais
em encontrar público engajado e contratantes para seus trabalhos, diminuindo o “isolamento de
Curitiba” do resto do país.
A “falta de união” e afetos na cena musical curitibana entre 1996 e 2005 pode ser
decorrente de uma competição entre os músicos por espaço no cenário da cidade. Sendo assim,
é possível que o uso daquelas tecnologias tenha possibilitado amenizar e incentivar a criação
de laços entre artistas curitibanos após o ano de 2005. De modo geral, acredita-se previamente
que o uso de tais adventos tecnológicos possibilitou um maior florescimento da manifestação
musical em Curitiba e, sendo assim, catalisou a profissionalização e união dos músicos da
cidade, alterando aquele paradigma colocado pelos indivíduos nas sessões de entrevistas
concedidas a Cyro Ridal nas edições do programa de rádio e TV Ciclojam.
Utilizando a perspectiva da Etnomusicologia, este estudo tem como objetivo geral
investigar se o uso das tecnologias desenvolvidas após 2005, Youtube, Facebook, Instagram,
entre outras, alterou o paradigma da cena musical curitibana, conforme registrado na sessão de
entrevistas do acervo do programa de rádio Ciclojam e pesquisado previamente no artigo A
Cena Musical em Curitiba: a partir do acervo do programa Ciclojam entre 1996 e 2005
(PITRE-VÁSQUEZ, MACAN; 2017). Em outras palavras, busca-se entender se o padrão
deixado pela problemática levantada no estudo anterior foi alterado e, se sim, como ocorreu a
alteração.
Os objetivos específicos da presente pesquisa são: investigar em que medida o uso das
tecnologias digitais interferiu, contribuiu ou não, na solução dos problemas levantados naquelas
críticas colocadas pelos músicos curitibanos no período entre 1996 e 2005; discorrer se, como
e em que sentido o uso dessas tecnologias digitais desenvolvidas a partir de 2005 alterou as
relações entre grupos musicais, público e contratantes na cidade de Curitiba; desbravar novas
problemáticas em torno da utilização de tais mídias digitais em torno do cenário musical
curitibano; propor uma abordagem sobre o conceito de cena musical relacionando-o ao trinômio
indivíduo, espaço e tempo; cartografar a cena musical rock de Curitiba; atualizar dados sobre a
realidade das manifestações musicais da cena rock estudada.
32
de rupturas nas lógicas em que as cenas se articulam, mudanças e fixações de práticas nas cenas
musicais, a relação de cena com gênero musical e apontamentos para o estudo de cenas musicais
no contexto atual.
A seguir, argumenta-se sobre o papel da Etnomusicologia (RICE, 2014), os usos e
funções da música sob a perspectiva do etnomusicólogo (MERRIAM, 1964; BLACKING,
1995; 1974), a influência da indústria cultural nos usos da música na cena musical, sobretudo
no entretenimento (ADORNO, 1996) e, por fim, aborda-se o conceito de comunidades de
prática visando diferenciá-lo do conceito de cena e entende-lo como uma parte circunscrita às
cenas (WENGER, 1998).
Na seção sobre espaços e cena musicais são abordadas as diferenças conceituais entre
espaço, território (VERGARA, 2013), territorialidades, territorialidades sônico-musicais,
(HERSCHMANN, 2013), lugares e não-lugares (AUGÉ, 2008) e ciberespaço (LEVÝ, 2014).
Buscou-se contrapor a aplicação dos conceitos em relação aos seus possíveis usos no estudo de
cenas musicais.
Durante a seção que trata das temporalidades envolvendo o termo cena musical,
abordou-se principalmente a relação das mudanças tecnológicas, decorrentes de inovações da
indústria, com a passagem do tempo. Tomou-se como princípio de que a noção do tempo na
modernidade é afetada pela constante e incerta mudança proporcionada pela indústria e avanço
das tecnologias na vivência dos indivíduos e, por consequência, nas cenas musicais
(BAUMAN, 2001). A partir disso, nomeou-se “tempo” a seção dedicada às inovações
tecnológicas e à indústria. Neste subcapítulo abordamos a relação do indivíduo com a indústria
e os posicionamentos cover e autoral, independentes e alternativos. É feita uma breve
contextualização sobre a história da indústria fonográfica e as mudanças que foram acarretando
em sua configuração atual com os efeitos da cibercultura (LEVÝ, 2014; ANDERSON, 2006,
DE MARCHI, 2016).
Por fim, o subcapítulo denominado “interseção” apresenta um diagrama conceitual a
fim de proporcionar uma visão cartesiana da distribuição dos principais conceitos apresentados
no corpo do texto e reforça a produtividade no estudo de cenas musicais com a colaboração de
outras áreas do saber e seu potencial inovador.
Durante a seção de resultados, apresentou-se na mesma ordem colocada pelo capítulo
anterior, os dados coletados. Neste capítulo é mencionado novamente o problema da pesquisa,
apresenta-se as estatísticas descritivas resultantes dos métodos quantitativos, descreve-se
comportamentos apresentados pelos métodos qualitativos, mostra-se gráficos, tabelas e, sem
poupar espaço, dá-se “voz” aos sujeitos desta pesquisa. É importante ressaltar que a principal
34
fonte de dados são os sujeitos e suas experiências musicais e extramusicais, por isso a
transcrição de entrevistas foi explorada exaustivamente. Durante a apresentação dos dados foi
antecipado também, moderadamente, algumas análises, que foram mais reservadas ao capítulo
de discussão.
Na seção de discussão acontecem as análises de dados e o cruzamento dessas
informações com a pesquisa bibliográfica. Neste capítulo realizei a interpretação dos dados
coletados e os comparei com algumas discussões de trabalhos semelhantes. Busquei analisar
criticamente os dados coletados utilizado a estrutura teórica previamente apresentada.
Inevitavelmente, algumas conclusões sobre o fazer musical rock em Curitiba emergem deste
capítulo, antecipando assim o conseguinte. Algumas tendências e generalizações, hipóteses e
novas questões foram apontadas.
Os principais tópicos do capítulo 7 de conclusão são comparações entre os resultados
e hipóteses. Neste estudo, ao contrário do que imaginei ao início do projeto, surgiram mais
discordâncias do que comprovações de hipóteses, o que, de certo modo, satisfez ainda mais as
pretensões deste estudo devido às surpresas encontradas. Neste capítulo reafirmo que o trabalho
alcançou os objetivos propostos e, além disso, deixou novas questões em aberto por meio da
análise de fatos verificados no estudo em relação à revisão crítica da literatura. Ao fim,
argumento e lanço algumas hipóteses sobre a cena musical rock e a indústria da música na
cidade de Curitiba. Nas conclusões transitórias também relembro o leitor das sugestões para
trabalhos futuros.
35
Aos moldes de Candemil (2019), no que se refere ao recorte dado por este trabalho, o
objetivo deste capítulo é situar a presente pesquisa em comparação com outras sobre cenas
musicais e verificar de que maneira a pós-graduação brasileira tem direcionado seus estudos
para o assunto. Embasando-se em uma plataforma oficial, o Catálogo de Teses e Dissertações
da CAPES, buscou-se identificar de forma quantitativa qual a dimensão da pesquisa acadêmica
brasileira em relação ao tema do estudo. Para isso, não será levado em conta produções como
trabalhos de conclusão de curso, livros ou artigos que contemplem o tema, serão levantadas
apenas dissertações e teses.
Como já explicado anteriormente, cena musical é um conceito deslizante, não apenas
no sentido das atribuições a ele significadas, mas deslizante no que diz respeito à sua capacidade
de “escorregar” por outras áreas do conhecimento, assim entendo. Por isso, além dos trabalhos
acadêmicos da área da Música, produções de outras áreas de conhecimento, como Artes,
História, Antropologia, Sociologia, Geografia e Comunicação foram também contempladas.
A palavra-chave utilizada na pesquisa pelo Catálogo de Teses e Dissertações da
CAPES foi, de início, apenas “cena musical”. O termo foi isolado por aspas na busca dentro
catálogo como medida técnica para que o software do buscador entendesse que as duas palavras,
“cena” e “musical”, compreendem um único termo. A partir disso, 99 resultados foram
alcançados pelo buscador, dividindo-se entre uma dissertação de mestrado profissional, 73 de
mestrado acadêmico e 25 de doutorado relacionados com “cena musical”. Nos gráficos a seguir,
foi destacado com a cor amarelada as informações em que se enquadra o presente estudo.
Feito isso, através da leitura dos resumos e referências dos trabalhos sobre “cena
musical” dispostos no site da CAPES, foram levantados trabalhos que tivessem possíveis
interseções com o presente estudo. Sobre cena musical e gêneros musicais, encontra-se estudos
abordando os seguinte gêneros: rock, heavy metal, pop, reggae, choro, música eletrônica, punk,
música alternativa; indie; soul; sambajazz; house; techno; rap; música sertaneja; blues; MPB;
funk; funk ostentação; cumbia; trance, música experimental; música instrumental; pagode
baiano.
Outros temas muito abordados nos trabalhos foram cena e: gênero e sexualidade;
moda; identidades; identidade musical; corpo e dança; performance; neotribos; contracultura;
racismo e hegemonia; juventude; uso de substâncias psicoativas; mercado; tecnologias de
comunicação digital; grupos independentes; digitalização da música; mídia; internet; carreira
nas cenas locais; indústria fonográfica brasileira; estratégias de comunicação; broadcasting;
consumismo; consumo; imprensa; cibercultura; produção musical; ressignificação de espaços
na cidade; historicidade local; cartografias de cenas musicais; política.
Mais além, a CAPES oferece recursos para refinarmos a busca por nível de pesquisa,
mestrado acadêmico, mestrado profissional ou doutorado; ano de publicação; autor; orientador;
banca; grande área de conhecimento; área de conhecimento; área de avaliação; área de
concentração; nome do programa; instituição e biblioteca, nessa ordem. Dado o reduzido
número de pesquisas encontradas e, como o objetivo deste capítulo de contextualização é situar
os trabalhos que tratam do conceito de cena musical dentro de programas de pós-graduação de
Música, utilizei apenas os filtros: grande área de conhecimento; área de conhecimento; e, para
ter uma breve noção geográfica de onde realizaram-se esses trabalhos, utilizei também o filtro
por instituição. Como 99 trabalhos é uma quantidade relativamente fácil de analisar
qualitativamente em relação às abordagens, não foi necessário refinar mais a busca.
Analisando o filtro por grande área de conhecimento, as pesquisas sobre cena musical
dividiram-se em quatro principais áreas: Ciências Humanas; Ciências Sociais Aplicadas;
Linguística, Letras e Artes; e Multidisciplinar. As 99 pesquisas sobre cena musical do banco de
dados da CAPES distribuíram-se da seguinte forma: 40 estudos dentro da grande área Ciências
Humanas; 22 estudos em Ciências Sociais Aplicadas; 26 estudos em Linguística, Letras e Artes;
e 11 trabalhos multidisciplinares.
37
A seguir utilizei o segundo filtro, por área de conhecimento, que mostrou os trabalhos
sobre cena musical distribuídos em 14 áreas menores. As áreas de Antropologia, Educação,
Ensino, História do Brasil e Interdisciplinar tiveram apenas um trabalho cada. Administração
possui dois trabalhos. A área de Geografia possui quatro pesquisas em cena musical. Letras
possui cinco. Artes e Sociais e Humanidades possuem nove estudos cada. A área de Música
possui doze pesquisas nesse campo. Sociologia possui 16, História contempla 17 e a área com
maior número de estudos sobre cenas musicais é Comunicação, com 20.
38
Segundo os dados da CAPES, existem até então 12 trabalhos sobre cenas musicais na
área de Música. Três deles são de doutorado e nove são de mestrado. Todos são dentro da área
de concentração de Musicologia e Etnomusicologia, a qual também contempla o âmbito deste
estudo. Dentro desta área não há trabalhos sobre cena musical rock. Os gêneros musicais
estudados em cenas musicais por etnomusicólogos no Brasil, segundo a CAPES, são: choro
(AZEVEDO, 2017; RIBEIRO, 2009); blues (DEFFACI, 2015; PEREIRA, 2014); música
popular (BATISTA, 2009; ARAÚJO, 2015); música instrumental (BONFIM, 2014); pagode
baiano (LOPES, 2015); frevo (SILVA, 2009); música experimental (BRANDÃO, 2018);
tecnobrega (AMARAL, 2009); e música instrumental nordestina (VALERIANO, 2018). Sendo
assim, dos programas de pós-graduação brasileiros, o presente estudo é o primeiro trabalho de
Etnomusicologia que trata sobre cena musical no âmbito do rock.
Como o número de pesquisas encontradas pelo filtro “cena musical” em programas de
Música foi relativamente pequeno, retornei a pesquisa para o nível inicial, sem utilizar nenhum
filtro específico por grande área de conhecimento. O intuito desse procedimento foi mapear por
estado brasileiro a quantidade de pesquisas relacionadas ao conceito de cena.
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buscador do site identificou como sendo a respeito de cenas musicais, na verdade, é uma
pesquisa de doutorado na área de jornalismo com o enfoque em fotojornalismo em que o autor
Rafael Schoenherr (2017) busca responder de que modo as fotografias inscrevem a música na
paisagem cultural urbana da cidade de Ponta Grossa-PR. Uma pesquisa sobre as referências do
autor também demonstrou que não haviam interseções temáticas com o assunto abordado aqui,
o que leva-nos a concluir que o único trabalho de pós-graduação sobre cenas musicais no Paraná
é o presente estudo, além de ser o primeiro sobre cena musical em Curitiba a nível de pós-
graduação.
Outro dado que interessa a este trabalho, visando possíveis estudos futuros, é que,
segundo a CAPES, não existe ainda nenhuma pesquisa sobre cenas musicais e inovação no
Brasil. Uma pesquisa breve no catálogo de teses e dissertações da CAPES no revela que os
trabalhos sobre música e inovação tratam, principalmente, de eventos históricos relacionados à
práticas instrumentais ou composicionais, ou de inovações no âmbito da educação musical, que
são a maior parte desses estudos.
41
3 METODOLOGIA
3.1 MÉTODOS
O tema principal deste estudo são cenas musicais. Para dar conta de explicar o que são
estes fenômenos, foi revisado os principais textos do principal teórico na área, Will Straw da
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Universidade McGill. Junto a Straw destacam-se trabalhos de alguns teóricos brasileiros, Jeder
Janotti Junior, Simone Pereira de Sá e Michael Herschmann, os quais utilizei como ponte para
o conceito de cena musical e também para aprofundar conceitos periféricos. Dentro deste
escopo, os principais pontos abordados foram: cena musical; entretenimento e conflito; local
versus global; cena e política; o carácter disruptivo das cenas; lógicas de mudança; gênero
musical e cena; cena musical e o século XXI.
Ao pensar o termo Cena Musical durante as orientações com o Professor Dr. Edwin
Pitre-Vásquez, surgiu a ideia de desmembrar o campo em três conjuntos principais, que de
acordo com a própria bibliografia estudada nos pareceu pertinente, são eles: indivíduos, espaço
e temporalidades. A proposta foi buscar interseções entre essas perspectivas diferentes dentro
do tema maior, que no caso, é Cena Musical, mas não excluindo a possibilidade de
determinados assuntos se expandirem para uma ou outra perspectiva também, como já
explicado anteriormente. Então, a separação em esferas teve o intuito principal de organizar a
abordagem do estudo e oferecer, primeiramente, três visões diferentes para conceitos
periféricos que envolvem a compreensão do termo Cena Musical.
Com o delineamento dessas três esferas, foi criado um Diagrama de Venn. A intenção
deste gráfico é aproximar a noção de cena musical das três perspectivas oferecidas por meio de
uma visualização cartesiana, para facilitar também ao leitor uma compreensão da organização
do capítulo de fundamentação teórica. Houve o cuidado em explicar que esses conjuntos não
são estáticos, é preciso pensar estes conceitos como se as esferas ali dispostas estivessem em
constante movimentação e não estáticas como o desenho pode sugerir.
Como o presente estudo encontra-se na área de Etnomusicologia, foi dada a prioridade
para que conceitos desta área aparecessem logo após a conceitualização em torno de Cena
Musical, no segundo tópico do capítulo de fundamentação teórica, denominado “Indivíduos”.
O subcapítulo discorre sobre os papéis inerentes à Etnomusicologia, os usos e funções da
música em sociedades, tanto ágrafas como na civilização ocidental, a relação do indivíduo com
a indústria cultural, a função da música como entretenimento no âmbito das cenas musicais e,
por fim, as conceitualizações sobre comunidades de prática e seu papel na formação de
identidades e de alianças em torno da música.
A segunda esfera foi denominada Espaço e privilegia uma noção “geográfica” das
cenas, como o próprio Straw propõe na origem do termo Cena Musical, a qual já fora abordada
anteriormente. Os pontos de interseção abordados foram: espaço e cena musical; circuitos e
cenas; espaço, território, lugar e não-lugar; territorialidades; e a relação entre cena musical e o
ciberespaço.
43
sociais da cena em questão para aproximarmos a visão do microambiente, que são os locais em
que as manifestações da cena rock tomam forma.
Ao elaborar o questionário online as questões foram separadas de acordo com as
temáticas: cena musical, espaço, indivíduos, indústria e tecnologias. O público-alvo deste
questionário não se restringe a músicos atuantes na cena rock, pois o intuito foi coletar
informações de músicos ativos na cidade independente do gênero musical em que atuam. Essa
escolha foi estrategicamente pensada para podermos coletar dados de macroambiente e, a partir
de outras etapas metodológicas, a etnografia e as entrevistas qualitativas, filtrar, aproximar,
extrair e comparar dados de microambiente específicos da cena rock.
A ideia do questionário é, conforme Acevedo e Norrara colocam sobre o nível de
pesquisa descritiva, entre outras, “descobrir incidências relativas” (ACEVEDO; NORRARA,
2013, p. 75). Ressalta-se que o questionário foi pensado para angariar dados de macroambiente,
portanto não se restringe a dados sobre o gênero musical rock e sim na totalidade das
manifestações musicais de Curitiba, em que, de acordo com a proposta inicial do trabalho, o
indivíduo chave é o músico, pois sem ter o profissional que performe a música ao vivo na
cidade, ela não se torna possível.
A população entrevistada no questionário é parte de o que Acevedo e Norrara chamam
de “amostragem não probabilística por conveniência” (2013, p. 83), isto é, são pessoas
selecionadas de acordo com a conveniência e objetivos do pesquisador. Neste caso, a fim de ter
uma noção de macroambiente, o filtro utilizado foi “músicos atuantes no cenário de bares e
casas noturnas de Curitiba”, não restringindo-se por gênero musical. As questões que envolvem
o filtro do gênero musical rock, ou seja, a cena musical rock em si, foram aplicadas durante a
etnografia, o microambiente, que será discorrido em outra seção mais à frente.
Então procurou-se diversificar ao máximo o alcance deste questionário para que se
pudesse, dentre outros objetivos, comprovar a proporção de indivíduos atuantes no gênero rock
em comparação com outros. Para isso, foram utilizadas redes sociais digitais (Facebook e
Whatsapp), e-mails e os próprios grupos na Universidade Federal do Paraná, o de pesquisa em
Etnomusicologia e o da Pós-Graduação, a fim de divulgar o questionário nos cursos da
instituição, sobretudo no curso de Música, onde há uma diversidade enorme de ramos de
atuação entre os alunos e professores. Além disso, foi criado um site12 para hospedar os dados
e anexos da pesquisa, ao mesmo tempo para informar os participantes de possíveis novidades.
A propagação da pesquisa em meio online foi feita de acordo com o que Mazer coloca como
12
www.cenamusicalcuritibana.wordpress.com
45
1. Você é músico(a) residente em Curitiba e atua com remuneração (não necessariamente com
vínculo empregatício) no cenário musical (bares, casas noturnas, teatros, etc) da cidade?
a. Opções de respostas objetivas: sim ou não.
b. Opção de resposta discursiva: nenhuma.
6. Qual sua função/ qual instrumento você toca? (Mais de uma alternativa disponível).
a. Opções de respostas objetivas: violão/guitarra; baixo; bateria; teclado/piano;
harmônica; acordeom; percussão; voz; outro; empresário (função de gerenciamento);
produtor.
b. Opção de resposta discursiva: você desempenha alguma outra função? Comente aqui,
por favor (opcional).
7. Quais locais costuma se apresentar na cidade de Curitiba? (Mais de uma alternativa
disponível).
a. Opções de respostas objetivas: bares/pubs; praças/espaços públicos; estúdios; outro.
47
b. Opção de resposta discursiva: em qual tipo de espaço já tocou? Comente, por favor
(opcional).
10. Qual sua média de cachê individual em Reais (por cada show que faz) na cidade de Curitiba?
a. Opções de respostas objetivas: 0 a 100; 100 a 200; 200 a 300; 300 a 500; 500 a 1000;
mais de 1000.
b. Opção de resposta discursiva: deixe um comentário sobre os cachês no cenário de
Curitiba, por favor. (Opcional).
12. Em quantos locais diferentes costuma se apresentar em Curitiba (pense nos locais de show
nos últimos 12 meses)?
a. Opções de respostas objetivas: 1; 1 a 3; 3 a 6; 6 a 10; mais de 10.
b. Opção de resposta discursiva: importante! Quais locais são esses? Cite-os por favor!
(Opcional).
13. Como você qualifica os equipamentos técnicos disponíveis nos locais que se apresenta em
Curitiba?
48
18. Sobre o cenário musical de Curitiba em 2018, há espaço para as bandas tocarem
remuneradamente?
a. Opções de respostas objetivas: sim; não; não sei.
b. Opção de resposta discursiva: deixe um comentário, por favor. (Opcional).
19. Na sua opinião, de forma geral, há alguma identidade da música produzida em Curitiba?
a. Opções de respostas objetivas: sim; não; não sei.
b. Opção de resposta discursiva: comente, por favor. (Opcional).
20. Você acha que o público curitibano se envolve/se sente representado/conhece as bandas de
Curitiba?
a. Opções de respostas objetivas: sim; não; não sei.
49
21. De forma geral, como você considera o relacionamento entre as bandas em Curitiba?
a. Opções de respostas objetivas: ótimo; bom; regular; ruim.
b. Opção de resposta discursiva: deixe um comentário, por favor. (Opcional).
23. Você já se apresentou em algum veículo nas mídias de massa (Rádio e/ou TV)?
a. Opções de respostas objetivas: somente rádio; somente TV; ambos (rádio e TV); não
me apresentei em veículos de mídia de massa.
b. Opção de resposta discursiva: deixe um comentário, por favor. (Opcional).
24. Você considera as mídias sociais essenciais para a venda de shows?
a. Opções de respostas objetivas: sim; não; não sei.
b. Opção de resposta discursiva: comente sobre o que pensa a respeito da influência das
plataformas digitais no seu cotidiano enquanto profissional da música. (Opcional).
26. Você ou sua banda já fez alguma publicação paga (post patrocinado) nas mídias sociais?
a. Opções de respostas objetivas: sim ou não.
b. Opção de resposta discursiva: nenhuma.
27. Vale a pena impulsionar anúncios nas mídias sociais? O retorno dos anúncios da banda
reflete em mais contratações, mais público nas apresentações, mais comentários em seus
posts, mais curtidas na sua página?
50
28. Quanto em média você ou sua banda gasta com anúncios por publicação?
a. Opções de respostas objetivas: 0; 0 a 50; 50 a 100; 100 a 200; 200 a 500; mais de 500.
b. Opção de resposta discursiva: deixe um comentário, por favor. (Opcional).
29. Você acha que as mídias sociais aproximam/melhoram o relacionamento dos músicos em
Curitiba?
a. Opções de respostas objetivas: sim; não; não sei.
b. Opção de resposta discursiva: nenhuma.
O questionário precisou passar por dois testes para então ser divulgado à população da
pesquisa. O primeiro teste foi essencialmente estrutural, com relação à manipulação técnica dos
instrumentos de coleta de dados. O segundo teste foi com relação ao conteúdo das perguntas,
sua ordem e propósito para fins da pesquisa, que será apresentado posteriormente na sessão de
resultados. Neste quesito foi relativamente simples ajustá-lo pois, além de pesquisador emic, o
que facilita a compreensão prévia dos indivíduos estudados, contei com a ajuda de dois
membros do grupo de pesquisa em Etnomusicologia, que são músicos já atuantes no cenário de
Curitiba, o Prof. Dr. Edwin Pitre-Vásquez e o colega Felipe Viana Estivalet, na época
doutorando pela Unisinos.
3.1.3 Etnografia
relacionados sobretudo às práticas dos indivíduos e das instituições que compõem a cena rock
nestes espaços. Esta seção foi sistematizada através de três métodos: etnografia, autoetnografia
e netnografia. Os três juntos compõem a descrição etnográfica do trabalho. O principal texto de
referência para a realização da seção foi A Descrição Etnográfica, de Laplantine (2004).
Para o autor, “o etnógrafo deve ser capaz de viver no seu íntimo a tendência principal
da cultura que está estudando” (2004, p. 22). A partir deste raciocínio, Laplantine destaca que
é necessário se interessar por aquilo que o grupo estudado se interessa, mesmo que,
aparentemente, não haja nenhuma conexão com o objeto de estudo. Como se trata de um objeto
intensamente ativo em redes sociais digitais online foi necessário sistematizar a descrição
etnográfica por meio da netnografia (KOZINETS, 2014).
Neste ponto, realizar este estudo como pesquisador emic favoreceu a aproximação com
as pessoas envolvidas da cena rock de Curitiba, porém demandou também a inserção do método
da autoetnografia (REED-DANAHAY, 1997) dentro da etapa aqui colocada como descrição
etnográfica. A sistematização da autoetnografia proporciona ao pesquisador êmico a
advertência para que este se atente em “perder o hábito de tomar como natural, aquilo que é
cultural”, fato que é comum, porém mais evidente em casos de estudiosos insiders13 e pode se
passar despercebido devido à proximidade cotidiana entre estudioso e campo (LAPLANTINE,
2004, p. 30).
Há, de acordo com Laplantine, uma diferença entre “ver” e “olhar” no sentido
etnográfico. Segundo o autor:
[...] a percepção etnográfica não é por sua vez, da ordem do imediatamente visto, do
conhecimento fulgurante da intuição, mas da visão (e consequentemente do
conhecimento) mediada, distanciada, diferenciada, reavaliada, instrumentalizada
(caneta, gravador, câmera fotográfica, ou de vídeo...) e, em todos os casos,
retrabalhada pela escrita (LAPLANTINE, 2004, p. 17).
“Ver”, neste sentido, está atrelado a apenas receber imagens que estão à volta do
observador. “Olhar” é mais apropriado para descrever a atividade do etnográfica porque remete
à observação atenta dos fenômenos, “que vai em busca da significação das variantes”. Em
outras palavras, o olhar do etnógrafo implica na busca pela percepção aguçada da realidade
como ela é, considerando sua mutabilidade com a ação do tempo. Mais além, Laplantine explica
que o “olhar etnográfico” não se resume apenas à atividade da visão e que o pesquisador deve
13
Expressão que remete a pesquisadores que fazem parte da comunidade, e/ou da cultura que estudam.
52
experimentar a percepção através das várias sensações disponíveis – olfato, paladar, audição,
visão e tato (2004, p. 20).
Seguindo esta linha, a etnografia foi realizada conforme as recomendações do autor.
Se consistiu por meio de uma imersão no campo, como músico e pesquisador emic, através do
constante olhar questionador sobre a cena musical rock da cidade de Curitiba, buscando cercar
o objeto do estudo por várias frentes de abordagem, escutando e analisando diferentes
perspectivas de indivíduos em variadas posições em relação ao tema trabalhado e com os
devidos instrumentos, conforme discorrido na seção 3.2.
A autoetnografia, no entanto, é um método escolhido porque o objeto de estudo desta
pesquisa é um campo no qual atuo. Este método orienta-se em três bases: (1) orientação
metodológica, de base etnográfica e analítica; (2) orientação cultural, de base interpretativa de
fatores vividos, da relação entre pesquisador e objeto, de fenômenos sociais; e (3) orientação
do conteúdo, que se sustenta na base autobiográfica e reflexiva (CHANG, 2008).
Segundo Santos (2017, p. 4), “o que caracteriza a especificidade do método
autoetnográfico é o reconhecimento e a inclusão da experiência do sujeito pesquisador tanto na
definição do que será pesquisado quanto no desenvolvimento da pesquisa”. Na autoetnografia
a narrativa e as experiências do autor se destacam, pois “dão voz para quem fala” em “favor de
quem se fala” (REED-DANAHAY, 1997). Em outras palavras é um método que demanda
posicionamento crítico do autor em relação ao objeto estudado e por isso se aplica inteiramente
no viés deste trabalho.
A terceira parte da descrição etnográfica será a etapa de netnografia que, segundo
Kozinets (2014) é um desdobramento que proporciona ao pesquisador realizar análises
comportamentais de indivíduos e grupos sociais no ciberespaço e, mais além, das relações
desses agentes nos ambientes on e offline, sobretudo interações em sites de redes sociais
digitais, que são segmentados por grupos de interesses, normalmente democráticos, onde
usuários têm a liberdade de expor conteúdos multimídia e também debater acerca de temas em
comum – neste caso, a cena musical rock de Curitiba.
A amostragem das entrevistas presenciais foi a “amostragem por julgamento” que,
segundo Acevedo e Norrara, “são sujeitos selecionados segundo um critério específico de
julgamento do investigador” (2013, p. 83). No caso deste estudo, realizei uma constante
observação no cenário musical rock de Curitiba, no qual estou inserido como músico atuante.
Um ponto positivo de fazer parte do cenário foi que as pessoas com quem conversei
informalmente ou mesmo a maior parte dos entrevistados não me viram como um indivíduo
“de fora”. Isso facilitou a coleta de alguns dados que muitas vezes ficam restritos nessas
53
14
Expressão em inglês que remete a pessoas que não pertencem a um lugar ou uma comunidade específica.
54
estive inserido nesses ambientes da cena musical rock de Curitiba, o que confere a média
aproximada de uma imersão no campo a cada 8 dias dentro do recorte estipulado.
Um ponto importante a se ressaltar é que em cada um desses momentos estive
dividindo ambientes com outros grupos musicais da cidade, por exemplo as bandas
Relespública, Silvermoon, The Elder, Jack Vermouth, Electric Mob, Geração Coca-Cola, Zé
Rodrigo, Sulround, Pigs and Diamonds, Backstage, Creedence Cover CWB, Dr. Smith, entre
muitas outras. Estar no mesmo ambiente que outros grupos musicais foi importante porque
permitiu conversar com outros músicos fora do meu convívio habitual sobre as questões que
envolvem a cena musical de Curitiba neste trabalho. Alguns desses músicos, inclusive, tiveram
uma entrevista à parte, conforme mostrado na próxima seção.
Além do convívio e das conversas com os músicos da cidade, estar envolvido na cena
e ter estabelecido a descrição etnográfica de tal maneira, proporcionou uma aproximação
prática com cinco níveis de interação em comunidades, propostos por Kimieck (2002, p. 40).
Em um primeiro nível, estabeleceu-se o contato com o “grupo nuclear” – líderes, produtores,
proprietários, pessoas que são responsáveis pelas apresentações acontecerem; “grupo de adesão
completa” – membros de grupos musicais, audiência, demais pessoas que tornam capaz a
realização dos eventos promovidos pelos líderes; “de participação periférica” – espectadores
casuais; “grupo de participação transacional” – prestadores de serviços locais, como
seguranças, garçons, demais colaboradores; “grupos de acesso passivo” – pessoas que acessam
conteúdo residual e não interferem ativamente na cena mas têm conhecimento dela e de alguma
forma são atingidos por ela, poderia ser um vizinho de uma casa noturna que é afetado pela
intensidade sonora no entorno do estabelecimento, ou o motorista de aplicativo que muda sua
rota decorrente do tráfego de pessoas proporcionado pela cena em questão, por exemplo.
A partir de diferentes pontos de vista, estes cinco níveis combinados na etnografia
tiveram o propósito de ampliar a percepção da cena musical rock de Curitiba neste trabalho. A
pesquisa de campo, combinada com a pesquisa bibliográfica e com os levantamentos
quantitativos de macroambiente, teve o intuito de proporcionar ao estudo dados qualitativos,
que serão discorridos à frente no trabalho.
3.1.4 Levantamento de microambiente: cartografia das regiões sociais da cena musical rock de
Curitiba
Pereira de Sá explica que isso pode ser útil para o pesquisador cartografar as sociabilidades e
regiões de uma cidade e suas interconexões, apontando assim para uma noção espacial das
comunidades de gosto através dos espaços metropolitanos (PEREIRA DE SÁ, 2011, p. 155).
Como parte da metodologia deste estudo, buscou-se um método cartográfico. Dulce
H. Mazer aponta a necessidade de a cartografia indicar sujeitos, práticas e fluxos
comunicacionais em cenas musicais. Há, no entanto, levando em consideração o carácter fluído
e mutável das cenas musicais, a dificuldade de se tornar um mapa legítimo. A isto, a autora
sugere a abordagem segundo a “retórica do passeio” ou “etnografia de rua”, que contém em sua
natureza a característica “orgânica, mutante, movente, fragmentária”. Mazer coloca que, desta
forma, o mapa em questão, “muitas vezes, não dura mais do que uma caminhada” (2017, p. 2).
A cartografia de cenas musicais é um método que consiste em explorar territórios
através da movimentação pela cidade sem seguir um destino fixo. O pesquisador segue uma
rede comunicacional que dá os indícios da cena, podendo ser esta rede palpável (fisicamente
alcançável), cartazes de eventos, letreiros de casas noturnas, filas para shows, aglomerações,
indicações verbais, ruídos, pontos de venda e demais meios em torno da música, ou uma rede
intocável, porém ainda assim analisável, como por exemplo, redes virtuais (MAZER, 2017, p.
10).
Não seria a cartografia apenas o desenho de um mapa, mas o processo metodológico
de acesso à cena. Mazer aponta duas sugestões de Straw ao método cartográfico em questão:
15
O Tripline é um site de georreferenciamento que permite ao usuário traçar rotas em um mapa virtual pelo mundo
inteiro. O site oferece a possibilidade de compartilhamento de imagens e notas sobre os locais, além de medir a
distância entre os circuitos elaborados pela adição de pontos de encontro. Fonte: https://www.tripline.net/
57
catalogados foi alto para este nível de pesquisa, estipulou-se a criação do mapa com até 50
locais, que foram escolhidos de acordo com o seu reconhecimento e relevância local, bem como
a frequência que foram lembrados nas etapas metodológicas do estudo. Ao final do
mapeamento, chegou-se ao número de 50 espaços. O intuito é oferecer um recorte que
demonstre os locais mais lembrados e influentes da cena rock de Curitiba segundo os dados
coletados neste trabalho.
O critério para os locais serem discriminados no mapa é ter capacidade de estrutura
para comportar apresentações ao vivo, que são aquelas que o músico vai ao local e se apresenta
publicamente. A amostragem aqui empregada é a “amostragem por julgamento” (NORRARA;
ACEVEDO, 2013, p. 83), ou seja, os lugares são selecionados à medida em que aparecem na
etnografia e nas entrevistas, além de que, dentro de todos os locais de apresentações musicais
em Curitiba, foram selecionados apenas os que abarcam a cena rock, isto é, os que são palco de
apresentação de grupos musicais que trabalham com o dado gênero musical, excluindo os
demais lugares, que não aceitam apresentações de grupos roqueiros.
Com o intuito de ajustar a coleta de dados nesta etapa ao potencial previsto no alcance
e profundidade da pesquisa, foi estipulado a coleta dos seguintes dados de cada local, por meio
do contato individual com cada um deles através de seus meios de comunicação (principalmente
por telefone e redes sociais): endereço; capacidade de público; gêneros musicais trabalhados,
tamanho dos grupos musicais que o local comporta – duos, trios, quartetos, etc; tipo de
estabelecimento – bar, pub, teatro, etc. A pesquisa não entrará em detalhes se os locais possuem
as documentações necessárias para se viabilizar legalmente tais apresentações porque não
compete ao problema do estudo. Este dado merece ser comentado visto a grande quantidade de
lugares que não possuem o devido registro formal, tornando inviável a busca por
estabelecimentos em repartições públicas que têm o intuito de registrá-los.
3.2 MATERIAIS
Para realizar este trabalho foram utilizados quatro hardwares. Um desktop com
sistema Microsoft Windows 7 em que redigi todo o texto do trabalho, fiz edições audiovisuais
e montei as apresentações. O segundo é um notebook Acer, com o sistema Microsoft Windows
10, em que realizei entrevistas. O notebook serviu também como primeiro backup do texto
original, editado no desktop, e para registros em orientações e reuniões do grupo de pesquisa.
61
16
www.facebook.com
17
www.instagram.com
18
Em inglês, Content Manager System (CMS), são sistemas que têm como finalidade facilitar a criação de sites
para pessoas não técnicas (GABRIEL, 2010, p. 125).
62
4 DESCRIÇÃO ETNOGRÁFICA
Curitiba possuiu uma colonização muito diversa, de meados do séc. XIX ao início do
séc. XX variados povos da Europa, Ásia e África chegaram à cidade, misturando-se entre os já
estabelecidos indígenas, portugueses, espanhóis e numerosos escravos e ex-escravos de origem
africana. Além disso, vieram se estabelecer em Curitiba outros variados povos brasileiros, como
nordestinos, paulistas, mineiros, gaúchos, entre outros. A identidade da cidade é, portanto, a
diversidade. Em Curitiba fixaram-se italianos, alemães, ucranianos, poloneses, suíços,
franceses, japoneses, sírios e libaneses, entre outras etnias. Cada uma delas marcou de alguma
forma o território curitibano, desenvolvendo atividades econômicas e fundando colônias que
vieram a se tornar bairros ainda atualmente característicos de seus fundadores (PREFEITURA
MUNICIPAL DE CURITIBA, 2020).
Da mesma forma que a cidade foi moldada socioeconomicamente pela diversidade de
povos, os fazeres musicais da capital também são diversos, conforme aponta Manoel Neto ao
salientar que A [des]Construção da Música na Cultura Paranaense – publicação com mais de
700 páginas sobre a música regional – é apenas uma introdução ao tema: “a música do Paraná
é mais rica e diversa do que se imagina ou se divulga” (NETO, 2004, p. 10). Apesar da
diversidade de gêneros e estilos comentada por Manoel, que é decorrente deste “caldeirão
étnico” formado pela colonização multicultural, paira sobre a capital paranaense um estigma de
cidade roqueira. Exemplo disso foi a ressonância até hoje percebida do comentário de Carlos
Eduardo Miranda19, ao chamar Curitiba de “Seattle brasileira” nos anos 1990, dado a enorme
quantidade de grupos roqueiros na cidade.
Da mesma forma que a cidade fora apelidada em alusão à quantidade de bandas de
rock, atualmente também foi referida como sendo a “Goiânia Sulista” em matéria da Gazeta do
Povo de 2016 dado ao fato do grande consumo de música sertaneja pelo público curitibano. Isto
é, de certa forma, uma das tantas controvérsias encontradas neste trabalho porque percebe-se
nitidamente uma certa rivalidade entre o público roqueiro e o público do sertanejo. Obviamente
há exceções. Até porque dentro do rock existem vários desdobramentos e dentro do sertanejo
também, então de certa forma acontecem interseções entre os dois estilos 20.
19
Músico e produtor musical riograndense amplamente conhecido pela atuação como crítico e jurado em diversos
festivais e programas de música nacionais.
20
Country Rock e Folk Rock são apenas algumas dessas possíveis interseções.
63
21
Fabio conta este caso em uma entrevista para o programa Estúdio C em 2015 e relembra que a ideia surgiu
enquanto ele trabalhava em São Paulo no ano de 2009 nos bastidores do show do ACDC, uma das maiores bandas
de rock do mundo.
22
Dupla sertaneja de sucesso nacional.
23
Trecho da canção “Dormi na praça” de Bruno & Marrone (2000).
64
Europe, Scorpions, Whitesnake, Bon Jovi e, os nacionais Sandy & Junior, que atuam numa
mescla de estilos entre pop e sertanejo. Nos demais locais de grande porte da cidade, nesse
mesmo recorte, também se percebe a mesma lógica pois, são ocupados apenas por artistas
difundidos na grande mídia de massa nacional e internacional, como é o exemplo das seguintes
atrações em Curitiba neste período recortado: Celtic Woman, uma atração irlandesa; Fernando
e Sorocaba ; Thiaguinho ; Marcelo Falcão ; Call The Police ; e Marília Mendonça .
Por limitação de tempo, espaço e também por relevância da discussão, optou-se por
exemplificar as atrações que ocupam os maiores espaços de Curitiba apenas entre a janela
temporal de Agosto e Setembro de 2019, mas, o padrão se repete em todos os meses, em todos
os anos. Não há artistas de Curitiba ocupando esses espaços, em nenhum gênero musical
específico, de modo que esses lugares ficam reservados a atrações mainstream nacionais e
internacionais. Todavia, existem poucas exceções. Uma delas é o Festival Crossroads no Dia
Mundial do Rock, que acontece todo ano no espaço Usina 5 promovido pelo bar curitibano
Crossroads com atrações nacionais e também locais.
Rótulos como “a cidade do rock”, “cidade roqueira”, mesmo “Seattle brasileira” ou
ainda, no sentido oposto, “Goiânia sulista”, são utilizados apenas como exercícios de reflexão
neste trabalho porque desconsideram a vasta diversidade musical na cidade. Até porque a
demanda por outros estilos em grandes eventos também existe. Por exemplo, a agenda do
espaço Live Curitiba, um dos maiores da cidade, com capacidade para cerca de seis mil pessoas,
é repleta de atrações nacionais de samba, pagode, sertanejo universitário, entre outros. A
Curitiba “roqueira” existe em grande intensidade, mas entendo como sendo apenas uma de suas
diversas facetas.
Segundo às redes do próprio Tork’n’Roll, eles são o maior bar de rock da América do
Sul e estão na cidade. Curitiba é destino de megaeventos em torno do rock e apresenta grande
demanda para essas atrações, fato é que elas continuam a vir para a capital de tempos em
tempos. Entretanto, além destas ilustrações um tanto apelativas, dado ao poderio financeiro por
trás dos dados expostos, Curitiba nutre uma efervescente rede underground em torno de gêneros
adjacentes ao rock. Se de um lado a cidade possui megabares e estruturas para eventos de porte
gigantesco em que o rock se faz presente muitas vezes de forma sazonal, por outro lado, dezenas
– talvez centenas – de locais pequenos, com capacidade de público para poucas dezenas de
pessoas – muitas vezes sem nenhuma estrutura ou até mesmo ilegais – estão em constante
atividade nutrindo uma grande rede microeconômica em torno do gênero e seus
desdobramentos.
66
A cena rock de Curitiba é marcada por dualismos e estas controvérsias são frequentes
durante a observação no campo. Como já mostrado em meus trabalhos anteriores, é evidente a
separação entre cover e autoral, ou mainstream e underground em torno das expressões
roqueiras na cidade.
Existe, de um lado, locais dedicados a uma celebração do rock pelo que ficou marcado
com os grandes hits dos anos 1950 em diante, principalmente 1980 e 1990, seguindo uma lógica
de repertório que valoriza o que é ainda atualmente reproduzido pelos meios de comunicação
de radiodifusão – o lado esquerdo da Cauda Longa de Anderson (2006). São locais em suma
frequentados por uma classe socioeconômica de maior poder aquisitivo, em regiões de maior
concentração de renda, salvo algumas exceções.
A maioria das bandas neste polo tocam repertório cover, algumas dessas se dedicam a
tocar apenas o repertório de uma banda de renome. São esses dois tipos de grupos que
conseguem frequentemente tocar remuneradamente. Exemplo prático disso são as duas bandas
em que atuo. U2 e Bon Jovi são os dois grupos de rock mundialmente “mais caros” no momento
em que escrevo. Isso se reflete em nossa demanda de mercado também, mesmo sendo cover.
Neste lado da cena rock, as lógicas são essencialmente capitalistas. Um exemplo disso é o
repertório dos grupos, que é muito parecido, muitas vezes apelidados de “repertórios Mundo
Livre” – referência à rádio rock em Curitiba que atualmente possui maior audiência.
Não significa que os grupos que atuam segundo esta lógica não tenham composições
próprias, porém, é raro a inserção de músicas, ou mesmo de arranjos autorais. Certa vez no
camarim do Clay Highway Bar, presenciei o grupo Electric Mob combinar de abrir um show
com uma música autoral. Eles falavam em “provocar” a plateia, justamente porque essa é uma
prática incomum nestes locais em que se busca um repertório de hits. Começar um show com
uma música autoral é então contrariar a lógica deste mercado pois se espera, em geral, que a
primeira música de um concerto seja um grande hit já mundialmente conhecido que faça a
audiência interagir em massa, ao menos cantar a música junto com a banda. Esta parte da cena
rock a que me refiro é intensamente moldada pelo entretenimento. A função da música nesta
porção é entreter. Música conceitual e introspectiva não cabe nestas lógicas, portanto a maioria
dos grupos musicais de rock que atuam neste segmento buscam a interação da plateia como
medida para avaliação de um concerto.
Em outras palavras, o show é bom e “funciona” se o público interage, canta as músicas
junto com a banda, se aplaude, se pede bis no final, se filma e compartilha nas redes sociais
67
marcando nas publicações online a página do grupo musical e da casa noturna, se consome mais
no bar, se lota o espaço em que acontece a apresentação, etc. Esses são os parâmetros para
músicos e contratantes avaliarem o desempenho de um concerto de rock nesta parte da cena em
que descrevo. Tais efeitos determinam se uma banda volta ou não a tocar em uma casa. Por isso
a escolha do repertório é dependente dos efeitos que causa, o que previne mudanças bruscas
uma vez que já se tenha uma “receita” do que “funciona” neste mercado.
Por ser determinada pelas lógicas dos hits, esta porção da cena rock é resistente a
mudanças de repertório e performance. Como depende da referência dos grandes clássicos das
décadas anteriores, os grupos musicais, no intuito de atender a demanda do público, se prendem
a simular performances de bandas mundialmente conhecidas e difundidas. Saulo Strada,
vocalista dos grupos em que atuo e produtor musical com mais de vinte anos de atividade em
Curitiba explica em entrevista para a TV É-Paraná como essas demandas partem do público:
É a proposta da banda, tentar chegar o mais próximo possível do original, isso inclui
roupas, performance, equipamento, é um estudo bem minucioso para chegar perto do
original. A gente faz isso justamente para encantar o fã do U2. [...] Eles acabam se
emocionando porque muitas vezes, muitos deles ainda não foram em um show do U2.
[...] Eles acabam se emocionando, a gente cansa de ver pessoas chorando justamente
pelo fato de a banda ser parecida, som, imagem, enfim (STRADA, 2016).
Por exemplo, é comum guitarristas mudarem seus solos ao vivo, eles improvisam,
mudam arranjos e muitas vezes erram. Em uma banda que atua com covers é esperado que o
solo de guitarra da performance ao vivo seja igual ao do disco da banda original – que é a
referência comum porque, em geral, as gravações de estúdio são as que tocam nas rádios e nas
playlists online. Considerando um guitarrista como Jimmy Page, do Led Zeppelin, por exemplo,
isto seria um simulacro porque nem mesmo Page reproduz seus solos ao vivo de maneira
idêntica aos da gravação. Portando, esta porção da cena rock, movida por lógicas capitalistas
de repetição de hits é também repleta de simulações e simulacros em diferentes níveis.
Por outro lado, existem manifestações rock e locais que não se articulam seguindo as
lógicas colocadas até aqui. Pelo contrário, negam as influências de um mainstream midiático
em torno do rock. Felipe Estivalet (2020) e Celso Costa Segundo (2019) mostram outras faces
do que seria essa grande cena rock em Curitiba, o que me gerou certo desconforto inclusive em
considerar o underground citado pelos autores como parte da mesma cena que estudo, dados às
tantas diferenças. Fato é que alguns indivíduos e alguns locais permeiam e são permeados pela
prática do rock, ora segundo uma lógica, ora segundo outra. Alguns músicos atuam tanto no
underground como em apresentações que seguem a lógica dos hits. Alguns locais, ora são palco
para bandas cover e ora são palco para bandas autorais que não executam músicas de outros
artistas e se inserem num contexto underground.
Novamente surgem as controvérsias. Por exemplo, Estivalet nos apresenta uma prática
de escuta de apresentações de rock – shoegaze, mathrock, post-rock – de grupos autorais
curitibanos onde as pessoas se reúnem para escutar música ao vivo de forma introspectiva,
como se estivessem em suas próprias “bolhas”, porém reunidas presencialmente em um
concerto. Não se vê pessoas alcoolizadas pedindo músicas de duplas sertanejas apenas para
causar tumulto, por exemplo, pois a audiência é focada na apresentação musical.
Estivalet destaca um “virtuosismo da escuta”, referindo-se à prática atenta da
apreciação, algo que não acontece nos locais em que estive presencialmente para este estudo.
Pelo contrário, nos locais em que estive havia dois tipos de comportamentos controversos: uma
evidente euforia coletiva durante a execução de determinadas canções – sempre hits; um
completo descaso com o grupo musical e as canções executadas, com pessoas de costas para as
bandas, priorizando a sociabilidade – conversar, beber, fumar, namorar, paquerar – enquanto
os grupos se apresentam.
O assédio sexual também é bastante comum neste polo da cena voltada aos “hits” tanto
com quem está na plateia quanto com quem está no palco. Certa vez, no Clay Highway, ao subir
numa caixa front fill para a execução de um solo de guitarra, fui puxado pelas pernas por um
69
grupo que dirigiam a mim palavras de assédio. Em questão de segundos, uma dessas pessoas
inclusive tentou segurar minha mão durante a performance e, só não caí da caixa, o que
arruinaria o concerto, porque outro grupo de pessoas, vendo o absurdo da situação, as impediu
de continuar. Isso demonstra, em relação ao parágrafo anterior, como a euforia e o descaso
podem também aparecer juntos no comportamento do público, motivados muitas vezes por um
aparente fetichismo em relação a quem está sob os holofotes – que seria, neste exemplo, a
objetificação sexualizada do artista.
Costa Segundo (2019) apresenta ainda uma outra perspectiva, assim como Estivalet,
voltado a manifestações de contracultura – o psychobilly. Este gênero também é derivado do
rock, porém é tido como uma manifestação underground pois nega as lógicas dos hits. Neste
nicho, segundo o autor, existem muitas bandas autorais curitibanas com público cativo dentro
e fora da capital paranaense. Costa Segundo nos mostra que, diferente do contexto em que eu
me inseri como pesquisador e performer, existe muita união entre os grupos musicais e agentes
em torno do psychobilly.
Por outro lado, nos contextos em que eu e Estivalet nos inserimos, a falta de união
entre os grupos é um assunto recorrente. No caso que estudo, as bandas se conhecem, mas não
costumam ter muita afinidade, salvo algumas exceções. Por outro lado, Estivalet comenta que
os grupos com os quais teve contato na maioria das vezes nem mesmo se conheciam. No caso
de Costa Segundo, os psychos além de se conhecerem, se apoiam e costumam trabalhar em
conjunto na realização de festivais como por exemplo o Psycho Carnival, que é uma festa de
psychobilly em Curitiba conhecida mundialmente e que teve sua idealização por Vlad Urban,
que é membro da banda psycho “Os Catalépticos”.
Com tantas controvérsias e interseções sem um aparente padrão fica impreciso
estabelecer filtros. Segundo as descrições, são contextos diferentes, todos tendo o rock como
elemento comum, entretanto opostos em suas lógicas. Porém, é fato que existem fluxos entre
duas orientações, embora de modo geral pareçam tão adversos. Como esta questão ainda precisa
de trabalho e desenvolvimento, para fins metodológicos, considerarei de forma transitória que
existe em Curitiba dois polos em torno das práticas do rock, porém dentro da mesma cena
musical. De um lado, lógicas capitalistas que primam por bandas cover, menos heterogêneo,
massivo, focado na reprodução de hits; de outro um underground diverso, dividido em nichos,
com forte presença de música autoral e que nega o modus operandi do anterior.
A etnografia desta pesquisa se concentra no primeiro contexto, uma cena musical
roqueira em que a função principal da música é promover entretenimento – por meio da
incitação à resposta física e a emoções adjacentes à euforia. Uma cena roqueira que é simulada
70
no sentido em que busca imitar grandes clássicos da história do rock e que segue lógicas de
obtenção de lucro segundo as demandas da audiência por hits.
4.3 LOCAIS
Estive presente em vários locais de shows de rock na cidade: bares, teatros, auditórios,
universidades, locais a céu aberto, restaurantes, hamburguerias, praças, entre outros. Dos
diversos locais de apresentação musical em Curitiba, os espaços mais utilizados são bares.
Existem vários tipos de bar na cidade, os mais comuns são pubs, moto bares e bares americanos.
Pub24 é um dos tipos de bar, trata-se de um ambiente que vem da tradição britânica
onde as pessoas comem e bebem sentadas, ali existe uma preocupação conceitual com as
cervejas servidas, é também um lugar em que pessoas se reúnem para happy hours25, petiscar e
conversar geralmente após o expediente de trabalho, que termina entre às 18 e 19 horas.
Sheridan’s Irish Pub, Barbarium Pub, Slainte e Jokers Pub são exemplos curitibanos deste tipo
de bar.
É importante ressaltar que nem todo bar com “pub” no nome é de fato um pub.
Segundo a British Beer and Pub Association (2020), apesar da mudança pela qual passaram os
modelos deste tipo de bar ao longo da história, eles se caracterizam por geralmente ser de
pequeno porte, servir comida, cerveja característica (Ale, Lager e Escura) em um ambiente
aconchegante que relembre casas britânicas do séc. XIX. É comum em pubs cortinas xadrez
com prendedores de laço, toalhas em cima das mesas, móveis rústicos, iluminação baixa
remetendo aos lampiões antigos, balcões e armários grandes de madeira bruta, cristaleiras com
bebida armazenada, sofás no estilo “canto alemão” com acabamento em capitonê, etc. Nos pubs
as pessoas se reúnem para conversar, assistir a jogos esportivos em televisões e, em alguns,
acontecem apresentações musicais.
Moto bar é um estilo de casa noturna em que se conecta o gosto por rock com a prática
do motociclismo e o gosto por carros antigos e muscle cars, etc. Nestes espaços as pessoas
podem entrar com suas próprias motocicletas no bar e, em alguns casos, o local é projetado com
uma via destinada à passagem das motocicletas mesmo perto do palco. O espaço costuma ser
24
Abreviação de public house.
25
Em português traduz-se “hora feliz”. Muitos bares aproveitam o horário em que o expediente comum termina
para não cobrar entrada e oferecer promoções de comidas e bebidas como atrativo. Inicia-se por volta das 18 horas
e termina próximo às 20 horas. No Sheridan’s Irish Pub, por exemplo, o grupo musical começa a tocar próximo às
22 horas. Em alguns lugares é comum ter um duo ou mesmo um cantor(a) solo executando voz e violão no período
do happy hour.
71
amplo, as pessoas costumam a ficar mais em pé do que sentadas, o balcão onde são servidas as
bebidas é geralmente no centro do local, há poucas mesas e cadeiras, normalmente são
construídos em galpões com poucas divisões internas. No moto bar é possível enxergar quase
a totalidade do lugar porque não existem ou são poucas as paredes internas. A sensação de estar
em um destes bares é de muito espaço, diferente do pub que é “aconchegante” e remete
normalmente à estrutura de uma casa. Exemplos de moto bares em Curitiba: Clay Highway
Bar, Tork’n’Roll, Armazém Garagem, Detroit Club, Route 116 e Distrito 1340.
Os bares no estilo “americano” são um meio termo entre o pub e o moto bar, podendo
variar muito em tamanho. Estes locais possuem em geral um grande balcão com um ou mais
barmen26 trabalhando, um amplo armário para exposição de bebidas, mesas e cadeiras em maior
quantidade que um moto bar. Diferente do pub, o bar no estilo americano não remete às casas
antigas, nem sempre busca passar a sensação de aconchego, são mais maleáveis quanto a
decoração e a proposta, podendo apresentar interiores ora retrô, ora modernos. É o tipo mais
comum de bar na cidade, por exemplo: Crossroads, Hermes Bar, Aqualung, Dobrucki, Empório
São Francisco, John Bull Pub, Phoenix Bar, Blood Rock Bar e Peppers.
Além destes tipos de bar existem outros locais em que apresentações rock são bastante
presentes em Curitiba. Nos últimos cinco anos percebe-se abrindo na cidade uma grande
quantidade de estabelecimentos do tipo cervejaria e hamburgueria, acompanhados por praças
de alimentação a céu aberto dedicadas principalmente a estes tipos de comércio, como por
exemplo o Ca’dore e o Souq. Hamburguerias são espaços em que a principal atração são
hamburgueres gourmet e cervejarias são locais em que normalmente se fabrica a bebida que se
vende no próprio estabelecimento, comumente variados tipos de chopp, tendo os tonéis à vista
do público e uma característica também artesanal na produção.
26
Plural de barman (masculino) e barmaid (feminino). São os profissionais que preparam drinks em um bar.
72
27
Em inglês significa um grupo de pessoas que representam/trabalham vinculados a determinado local. Escolhi
este termo porque é o que mais aparece na linguagem das pessoas na cena, comumente o termo staff vem escrito
em camisetas e uniformes de trabalho para indicar que o determinado indivíduo representa o local em que está
inserido.
28
Agências de agendamentos de show.
73
vocalista, tenha a capacidade de animar os presentes no local, o que garante a quase necessidade
de uma atuação extrovertida nesta função. Há ainda, em alguns casos apenas, a presença de
roadies29 e de empresários atuando com as bandas. A função do roadie é montar o palco para
os músicos e atender determinadas necessidades que envolvam a apresentação musical. O
empresário é a parte da banda que negocia e agenda shows.
Para o público existem duas dinâmicas de funcionamento nos locais da cena rock de
Curitiba, depende do local. O cliente pode chegar ao estabelecimento, pegar uma ficha de
consumação, dispor das funcionalidades do local (atrações artísticas, dependências internas,
ingeríveis, etc) e acertar a conta ao final de sua estadia, nos caixas; ou, logo que entrar no
estabelecimento, procurar um caixa, comprar vouchers de consumação e consumir após ter
efeituado o pagamento. A primeira forma é a mais comum e a segunda acontece com mais
frequência em locais de grande porte, especialmente nos moto bares. Os estabelecimentos em
Curitiba ficam abertos, em geral, das 18 horas até as 2 horas da manhã, mas há exceções, como
por exemplo bares em que a atração termina sua apresentação às 03:30.
Antes de se apresentarem, os grupos musicais, quase sempre, destinam um tempo para
ajustar o som com o auxílio de um técnico de som, que pode ser membro do grupo ou contratado
da casa noturna, o que é mais comum. É o que chamam de “passagem de som”. Em alguns
locais esse momento acontece antes de a casa noturna abrir as portas para receber público, em
Do inglês, “pessoa que trabalha na estrada”. São os técnicos que auxiliam os grupos musicais na estrada e na
29
montagem de palcos.
74
outros, pode acontecer enquanto as pessoas chegam ao local. Algumas casas não “passam o
som” porque dispõem de equipamento de áudio digital em que se é possível salvar presets30,
eliminando a necessidade de toda vez que um grupo se apresentar, ter que repetir o processo.
Há casos específicos em que o bar exige a presença do grupo musical horas antes de
iniciar suas atividades com o público, o que acontece no Hard Rock Café, por exemplo. Os
grupos musicais têm, em geral, entre duas e duas horas e meia de tempo para apresentação,
podendo acontecer intervalos, normalmente de meia hora. Na maioria dos locais, o horário em
que o concerto começa é maleável. Há espaços em que isso é uma norma rígida, mas na maioria,
a hora em que se inicia uma apresentação depende do movimento de pessoas na casa noturna.
Geralmente é durante a apresentação musical em que se dá o ápice de consumo interno e, por
isso, tenta-se protelar ao máximo a duração de um show.
Sendo assim, a apresentação musical “segura” o público no ambiente e, por isso, os
intervalos durante os concertos são usados de forma estratégica, segundo a lógica de cada
estabelecimento. Por exemplo, no Hard Rock Café, que é um tipo de bar restaurante, onde existe
uma certa rotatividade, o intervalo é maior, com cerca de uma hora, e é utilizado como tática
para que os presentes deixem suas mesas para outros, que estão na fila de espera. Isso gera
maior rotatividade de clientes e, por ser um restaurante em que o produto principal são pratos
culinários que demoram a ser produzidos, é mais interessante para o negócio que, tendo
entregado o consumível, o cliente ingira rápido e deixe o local.
Por outro lado, negócios como moto bares, pubs e bares americanos tendem a não
praticar intervalos nos concertos, exceto quando há mais de uma apresentação musical o que,
nesse caso, é inevitável dado à logística de desmontagem e montagem de palco. Em bares, onde
o produto principal são os drinks, consumíveis de rápido preparo e consumo, é preferível ao
estabelecimento segurar o máximo de pessoas pelo maior tempo possível, por isso os grupos
musicais tocam geralmente sem interrupções. O ambiente desses espaços sempre possui música
sendo reproduzida mecanicamente em playlists, porém em menor intensidade do que as
apresentações.
O controle da temperatura é algo que não é explícito, mas, perceptível dado aos anos
de vivência no cenário. Mesmo com ventiladores e equipamentos de ar-condicionado, alguns
locais deixam a temperatura interna elevar propositalmente, assim as pessoas sentem calor, logo
sentem mais sede e consomem mais bebidas. Além disso, certa vez conversei com uma
cozinheira que confessou aumentar a quantidade de sal nos petiscos para provocar o mesmo
30
Bancos de informação pré-formatados.
75
efeito nos consumidores e, assim, os induzir a consumir mais bebida, que é na maioria das vezes
cerveja ou chopp gelado e representa a maior fatia de lucro de uma casa noturna. Esses dados
ilustram como as práticas nos estabelecimentos da cena rock seguem lógicas estritamente
capitalistas, o que afeta público e grupos musicais em diferentes formas.
O horário de início das apresentações é determinado por lógicas internas, relacionadas
aos picos de consumo e a lógicas externas, relacionadas à vizinhança e ao expediente comum
de trabalho dos clientes, que tendem, em sua maioria, deixar o trabalho às 18:00 horas. Em dias
no meio da semana (de Segunda à Quinta-Feira) são raras as apresentações, mas as que
acontecem acabam no máximo à 00:00 hora, pois os clientes, em geral, iniciam seus expedientes
de trabalho pela manhã do dia seguinte. Nas Sextas-feiras, Sábados e feriados, as apresentações
tendem a acabar mais tarde, por volta das 02:00 horas e das 03:30.
Os concertos duram em média de duas a duas horas e meia e, em geral, o final das
apresentações marca também o final das atividades da casa noturna. Em bares que encerram as
atividades às 02:00 horas, o grupo musical tende a iniciar a apresentação à 00:00 hora e assim
por diante. Caso haja mais de uma apresentação musical, a tendência é que o horário seja
programado de acordo com o fim do expediente da casa noturna.
Algumas casas noturnas têm problemas com a vizinhança em relação à intensidade
sonora gerada pelos concertos e isso determina e modifica a dinâmica de funcionamento dos
estabelecimentos, bem como das performances dos grupos musicais. Muitas das casas noturnas
encontram-se em bairros residenciais de Curitiba e não possuem isolamento acústico
apropriado. Como a Lei Municipal 10625/02 (CURITIBA, 2002) prevê limites de emissão
sonora entre as 07:00 horas da manhã e as 22:00 horas, algumas casas precisam se adequar.
Nem sempre a casa noturna encerra suas atividades antes das 22:00 horas por causa de vizinhos,
é comum existirem acordos informais entre donos de estabelecimentos e vizinhança para uma
tolerância de horário, mas em geral não passa da 00:00 hora.
André Hernandes31, músico que hoje atua em Portugal, (informação verbal) comentou
para este estudo que em países da Europa os concertos não costumam iniciar muito tarde e que
isso faz com que as pessoas saiam de seus trabalhos, assistam aos shows relativamente cedo,
mesmo no meio da semana, e consigam estar de volta em casa antes da meia noite para
descansar. Em Curitiba isso não acontece porque comercialmente é inviável para as casas
31
André “Zaza” Hernandes foi guitarrista da banda curitibana The Elder, é um brasileiro de destaque na cena rock
mundial, está na lista dos 70 melhores guitarristas brasileiros da revista Rolling Stone (Fonte:
https://goo.gl/a6zKLo), ensina guitarra há mais de 30 anos, tanto presencial como em meio online, já esteve em
turnê em vários países e se apresentou em uma edição do Festival Rock in Rio, um dos maiores festivais de rock
no mundo.
76
Tanto quem está no palco, quanto quem está na plateia são fãs do gênero musical rock.
Este gênero, especialmente, como já explicado anteriormente pelo posicionamento de Baugh
(1993), é uma forma musical que instiga o corpo a se mexer e que tende a provocar respostas
psicológicas relacionadas à euforia. Embora um tanto subjetivo de se afirmar, percebo que ser
fã de rock é uma constante “prova de amor”, o que faz a maioria do público e dos grupos
musicais deste gênero atuar com muita paixão durante as apresentações.
Os fãs e os músicos tendem a se comportar de forma muito parecida com relação, por
exemplo, às vestimentas. Embora existam variações no modo se vestir e a cena musical rock
seja extremamente diversa, o “uniforme de guerra” de um roqueiro é calça jeans normalmente
azul, preta, ou cinza, camiseta preta com estampa de algum grupo de rock, coturnos ou tênis no
modelo all star. É comum tanto homens como mulheres usarem cabelos compridos e muitos
deles pintarem o cabelo de diversas cores: vermelho, verde, roxo, etc. Acessórios como
braceletes, pulseiras, colares, tatuagens, bandanas, chapéus, cintos com rebites em formato de
77
pirâmides ou spikes, botas no estilo western, peças de roupa rasgadas, jaquetas e coletes de
couro, roupas em geral apertadas, esmalte preto nas unhas, maquiagem de cor preta, óculos
escuros, entre outros, são comuns nas pessoas que vão a shows de rock na cidade. Contudo,
isso não é uma regra ou parâmetro para aceitação, de modo geral as pessoas tendem a não dar
muita atenção se alguém está vestido como descrito acima.
Em um show de rock, nos locais deste polo “hit”, é comum o consumo de álcool,
sobretudo cerveja e drinks destilados preparados pelos barmen. Muitas pessoas fumam cigarro,
o que torna os fumódromos sempre abarrotados. Drogas ilícitas são repreendidas pela maioria
dos locais, mas já presenciei pessoas fazendo uso de maconha e também de cocaína. Nos locais
em que estive presente, o uso dessas substâncias é expressamente proibido, especialmente pelos
músicos que, se forem pegos pelo staff do local, podem sofrer represálias, como por exemplo,
não tocar mais no determinado estabelecimento. Em geral, o consumo de substâncias ilícitas é
algo velado e acontece nos bastidores – banheiros, camarins, estacionamentos, etc.
É evidente que o repertório, a performance e a proposta estética de um grupo musical
de rock interferem na sua própria atuação na cidade. A escolha do repertório, junto à adequação
dos grupos no que tange a produção e o posicionamento de marketing – a nível artístico,
audiovisual e de entretenimento – ditam em que polos os grupos vão atuar. Como já comentado
anteriormente, há um polo destinado à reprodução de hits, com repertório cover e atrações
difundidas a nível nacional e internacional; e outro polo underground, com repertório autoral,
ou covers de grupos de contracultura, que vão propositalmente contra o status quo estabelecido
pela repetição de hits nos grandes meios de comunicação.
O público de um polo é diferente de outro, porém existem interseções. Essas
interseções são mais comuns na atuação dos músicos, que ora se apresentam com repertório
autoral, ora com repertório cover em diferentes locais. Algumas casas também alternam entre
os posicionamentos, recebendo música autoral ou covers. O mais comum, entretanto, são casas
destinadas ou ao repertório de hits ou ao repertório underground. Em locais destinados a hits,
a performance da música autoral aparece pontualmente no meio de um repertório cover, em
uma posição estratégica para que não destoe da tendência da apresentação. As apresentações
exclusivamente autorais em casas destinadas a hits acontecem com mais frequência em dias da
semana de pouco movimento, como Segundas, Terças e Quartas-feiras. Seguramente é possível
afirmar que no polo dos hits é onde tanto para os músicos, quanto para as casas noturnas, existe
maior demanda e, logo, maior lucro.
78
Sabbath, entre outros grupos de sucesso mundial. Por exemplo, desses grupos que atuaram em
Dezembro de 2019, os que possuem Bon Jovi em seus repertórios, somente os que pude
vivenciar pessoalmente, são: Delorean, Heartfield, Bon Jovi Cover Brasil, Backstage, Asgard,
Silvermoon, Electric Mob, Hawks, Boogie Night, entre outros. Isso acontece com várias outras
referências internacionais.
Elencar aqui as músicas mais tocadas seria um exercício redundante dado à acentuada
repetição de referências, então, conclui-se concomitantemente à própria experiência que as
músicas escolhidas também se repetem. Além disso, o repertório dos grupos se comporta de
forma parecida com uma playlist. Isto é, as músicas são dispostas em uma sequência de
“ganchos”, de forma que uma música puxa a outra, seja pela proximidade de estilo, pelo artista
de referência, pela época em que foi lançada – o que tem a capacidade de acessar memórias
afetivas, entre outras categorias. Embora existam estudos científicos sobre música e emoção,
no contexto em que descrevo, as emoções causadas pelas diferentes composições são
subjetivamente entendidas na montagem de um repertório. Como já comentado anteriormente,
uma apresentação de rock “funciona” para este polo da cena rock quando tem a capacidade de
“animar” a audiência.
Para isso, além do entretenimento musical, a performance do grupo busca geralmente
uma resposta física na plateia, então há uma preferência por faixas que provoquem emoções
condizentes, normalmente que causem euforia. Músicas em baixo andamento, em modo menor,
com baixa intensidade de volume sonoro tendem a “não funcionar” porque, em geral, não
instigam o público a responder fisicamente com emoções relacionadas à alegria, pelo contrário,
contribuem à introspecção. Por isso, como este polo está diretamente relacionado ao
entretenimento, as faixas escolhidas na construção de um repertório tendem a expressar alto
volume sonoro, andamentos que variam do moderato ao vivace e modo maior.
A constância de uma apresentação também é subjetivamente levada em conta pelos
músicos e representantes da casa noturna pois, tem-se a ininterrupção das músicas executadas
como sendo essencial para manter os ânimos da audiência elevados. Ou seja, evita-se pausas
entre uma música e outra. É comum, inclusive, os músicos “emendarem” uma música na outra.
Esta lógica faz com que muitas vezes músicas sejam harmonizadas ou apenas agrupadas num
mesmo tom para facilitar junções entre as peças. Assim, uma faixa que termina em um tom
maior, por exemplo, é facilmente “amarrada” à outra de tom igual, ou relativo menor, sem que
o grupo pare de tocar. Em apresentações de rock em Curitiba é muito comum ouvirmos o último
acorde de uma música ser também o primeiro da faixa seguinte. Essa preocupação na montagem
81
Considerando o exposto até aqui como um campo (BOURDIEU, 2007), é natural que
haja disputas por poder simbólico em torno deste polo do rock praticado em Curitiba. É comum
na vivência da cena musical roqueira que haja rivalidades e indisposições entre indivíduos com
outros indivíduos, indivíduos com estabelecimentos e estabelecimentos com outros
estabelecimentos. Em geral, as rivalidades surgem por concorrência no mercado, por
desentendimentos interpessoais, por preconceito e/ou indisposição com determinadas práticas,
mas, de um modo geral surgem da disputa por legitimidade neste campo.
Já fora argumentado brevemente em meu trabalho anterior (MACAN, 2017, p. 26) que
são comuns as rixas entre bandas, entretanto, mesmo com o estudo do acervo do Ciclojam,
mencionado anteriormente, ficam imprecisos os motivos dos quais surgem os tão comentados
desentendimentos neste polo da cena musical rock. Durante minha vivência pude perceber que,
em suma, as rivalidades acontecem por concorrência em um campo simbólico, que também
implica em ganhos ou perdas financeiras para os agentes roqueiros da cidade, conforme suas
respectivas posições neste campo.
Em outras palavras, um grupo musical vai ter mais apresentações, vai lucrar mais
conforme se destaca entre os demais. Existe uma competição acirrada neste polo da cena rock
e, a partir daí, surgem as rivalidades. Uma das causas que entendo como sendo fator intenso na
formação de adversidades entre grupos musicais curitibanos é o próprio repertório dos grupos,
que é muito parecido. Então se existem muitas bandas cover ofertando as mesmas interpretações
32
“Repertório” em inglês. Terminologia muito utilizada por músicos na cidade de Curitiba.
82
das canções de determinadas referências, consequentemente haverá uma disputa entre essas
bandas pela legitimidade de quem interpreta “melhor”. Neste caso entram no debate
principalmente questões técnicas de execução e iniciam-se comparações subjetivas entre
músicos, o que acarreta em maledicências entre os próprios agentes musicais.
Então há uma disputa por representatividade em um domínio específico. Tomemos por
exemplo hipotético, A e B, duas bandas cover que toquem apenas repertório do ACDC. A
tendência é que haja rivalidade entre elas porque estarão disputando pelo mesmo mercado e,
neste âmbito da cena rock, as críticas entre uma banda e outra quase sempre ganham carácter
ad hominem em relação à técnica: “o guitarrista da banda A toca tudo errado”; ou “o vocalista
da banda B é desafinado”. Conversas de difamação entre os músicos espalham-se de forma
muito rápida e isso causa indisposições e rivalidades.
Mais além, na busca por representatividade na execução do repertório, alguns artistas
cover buscam estratégias de destaque publicitário. É comum artistas cover arcarem com altas
despesas de “meet and greet”33 para serem fotografados ao lado da referência que interpretam.
Isso é utilizado como ferramenta de marketing e como argumento de legitimidade, beirando a
bizarrices que controvertem a própria lógica da indústria, como por exemplo o rótulo “Banda
Cover Oficial” – leia-se “simulacro oficial”, o que não faz sentido per se. Então esses pequenos
“troféus” são utilizados como moeda de troca para garantias de apresentações, reconhecimento
público, diferenciação com os demais e, de certa forma, são também motivos de rivalidade dado
a facilidade com que são questionados. Por exemplo, considerando dois artistas cover, por que
uma fotografia com um músico de referência torna um cover mais legítimo do que outro que
não a possui, sendo que nenhum deles possui o direito autoral da música que executam?
Há também outros motivos de rivalidade relacionados à concorrência como, por
exemplo, a sensação que uma banda cover pode ter de “estar sendo copiada” por outra de
repertório semelhante. É algo incoerente porque neste polo as referências são compartilhadas,
então fica impreciso apontar cópias e originalidades num âmbito que já é tomado por
simulações. Entretanto, mesmo para essa pesquisa, por atuar como insider, tive certa resistência
de alguns agentes em poder analisar seus repertórios – ainda que os fins sejam exclusivamente
acadêmicos. Isso se dá porque paira a desconfiança e o receio em ser copiado. Fato incoerente
porque, para saber o repertório de um grupo, basta ir ao concerto, o que, de fato, acontece
cotidianamente em minha experiência.
33
Do inglês, “encontrar e agradecer”. É um serviço oferecido em apresentações de nível nacional e internacional
em que se cobra da audiência uma quantia relativamente alta em dinheiro para que se encontrem, cumprimentem
e registrem o momento com os artistas.
83
34
“Função” remete a profissões de nível operacional e atividade braçal. Esse rótulo se refere ao “rock dos função”:
pedreiros, metalúrgicos, faxineiros, entre outros. Uma população desfavorecida socialmente que tende a gostar dos
mesmos tipos de rock. Alguns grupos musicais que vi serem chamados de função: Nazareth, ACDC (sobretudo a
fase dos anos 1970), Status Quo, The Sweet, Joan Jett and the Heartbreakers, Creedence Clearwater Revival etc.
84
político entre os músicos, exemplificados por xingamentos e chacotas online. Certa vez, pedi
que postassem no grupo algum link de música autoral, na tentativa de mudar de assunto. A
interação foi mínima! Por tanto, apesar de 2018 ter sido um ano conturbado com relação ao
debate político, intensificou-se também conflitos interpessoais na cena rock envolvendo o tema.
algumas casas noturnas fomentarem essas rivalidades. Por exemplo, uma tática de promoção
que virou cartão de visita do Clay Highway Bar em 2016, foi o oferecimento de entrada gratuita
para o consumo de suas atrações. O público pode entrar sem pagar o valor do couvert artístico,
o bar oferece a atração, o espaço amplo pra congregação e lucra apenas com a venda de
produtos, bebidas, lanches, etc.
O resultado para o Clay é que está frequentemente com lotação máxima. A grande
movimentação do espaço ativa nos clientes um gatilho mental empregado muito
frequentemente por profissionais de marketing do entretenimento noturno: “se está lotado, é
porque é bom, se é bom é porque vale a pena gastar dinheiro lá”. A mesma lógica acontece
comumente em casas noturnas que, mesmo sem lotação, seguram filas enormes de público ao
lado de fora para atrair mais público. A diferença é que, dado ao fato de o Clay não cobrar
entrada, a casa não “segura” o público nem para o lado de fora, nem para dentro dos portões.
Como as pessoas não precisam pagar para entrar, elas saem quando preferirem e voltam se
assim o quiserem, sem arcar com o ônus de gastar duas vezes com a entrada ao local. Isto
conferiu um carácter rotativo ao público do bar e ajudou a impulsionar o consumo interno.
O carácter rotativo não foi a única mudança de paradigma que o posicionamento do
Clay Highway Bar promoveu. Ao meu ver, o principal efeito foram as reações de outros bares
que afetaram diretamente os músicos da cidade, criando rivalidades – rupturas. Certa vez, uma
das casas de shows a quem prestávamos serviço, o “S Bar”35, propôs uma espécie de “acordo”,
que na verdade era uma intervenção aos nossos serviços no “C Bar”.
A proposta era simples: se tocar no C Bar, não toca no S Bar. Mais tarde tive
conhecimento de que esta “proposta” aconteceu com vários outros artistas de Curitiba e de que
não partia apenas do “S Bar”, mas sim de um complô entre outros bares da capital paranaense
que se uniram para tentar coibir músicos a não tocar em bares que não cobrassem entrada, e
isso é de conhecimento público no âmbito roqueiro da cidade. Por fim, o desfecho de nossa
negociação é que cedemos de um lado para ganhar do outro, como atuamos com dois “produtos
cover”, o cover “a” tocava no S Bar e o cover “b” tocava no C Bar. É uma lógica um tanto
infantil pois são os mesmos músicos em ambos os projetos, o que muda é o repertório e a
caracterização, mas para eles foi o suficiente, o que, por outro lado, demonstra que não era algo
pessoal e sim estritamente comercial, o que difere muitas vezes das rivalidades entre músicos.
35
Nome fictício.
86
Quando entrevistei Rodriggo Vivasz para a redação deste trabalho, pudemos dividir
algumas das nossas experiências, então ele contou que desde que começou a tocar em Curitiba,
na década de 1980, já se falava no meio musical sobre um “cartel de bares” (informação verbal):
Desde que eu comecei já tinha essa questão do cartel, abria um bar novo e: ‘se você
tocar naquele bar, não vai tocar no meu bar’. [...] na época do Gypsy36 era assim, só
que a gente chutou o balde. [...] a gente se impôs. E daí começaram a tratar a gente
melhor do que antes porque na época a gente tinha uma banda que levava bastante
público [...] a gente tocou nosso clipe na MTV, até na extinta Rede Manchete.
Em minha conversa com Rodriggo, ele também comentou que em negociações com
casas noturnas, ao propor um contrato que fixasse uma frequência de shows, nunca houve
interesse por parte dos bares (informação verbal):
[...] ‘se você me der um salário mensal, eu tocar aqui toda semana, aí a gente fecha
um contrato’ – nenhum bar quer fazer isso. [...] antes, quando eu era só músico, eu
tinha que ganhar o dinheiro. Tocar Terça, Quarta, Quinta, Sexta, Sábado e Domingo.
Quem me chamasse eu tinha que ir tocar. Não podia ficar escolhendo. E acho que é
uma questão de você se impor também. [...] se eles se unem para definir cachês e
boicotar novos bares, é só os músicos se unirem também que eles não têm o que fazer.
Vão colocar quem para tocar? [...] No começo eles (os donos de bar) fazem isso.
Depois eles veem que são eles que precisam mudar.
Alianças são mais raras do que rivalidades. Portanto, percebo que, em suma, com a
mesma facilidade com que as alianças podem se formar, elas também são rompidas –
diferentemente das rivalidades, que tendem a ser permanentes. De modo geral, não existem
alianças permanentes na cena rock de Curitiba. “Fazer e refazer alianças são processos políticos
cruciais” na cena, o que também confere o carácter fluído desses fenômenos e é algo
determinante na música popular (STRAW, 1991).
Um exemplo de como isso pode acontecer são as relações de alianças com
gatekeepers37 na cena rock. Houve um caso de um agenciador apelidado pelos músicos da cena
roqueira como “cafetão de bandas”. Deste caso, formaram-se práticas que dificultam a entrada
de novos grupos musicais em casas noturnas porque o agenciador em questão monta uma
espécie de catálogo de artistas e os vende em diferentes bares, podendo também trabalhar em
apenas uma casa. Acaba se criando uma certa exclusividade entre os bares e o agenciador, o
que reforça a presença dos mesmos músicos nos mesmos locais.
36
Banda Gypsy Dream, teve seu período de atividade principalmente nos anos 1990 (MERCER, 2017)
37
Expressão utilizada por Henry Jenkins (2009) para referir-se a agentes que detêm o controle sobre entrada de
indivíduos em determinadas práticas ou locais (virtuais ou físicos).
87
Além disso, e motivo pelo referido apelido, estas práticas dão margem para
articulações, de certo modo, injustas ou imorais. Como já mostrado, o agenciador recebe da
casa noturna para captar e agendar artistas, mas muitas vezes, o valor do cachê negociado não
é repassado inteiramente para a banda, que acaba não tendo conhecimento do acerto entre
agenciador e casa noturna e, muitas vezes, se sujeita a trabalhar por um cachê muito menor do
que receberia caso negociasse diretamente com o dono da casa noturna, ou caso as negociações
fossem transparentes.
Por exemplo, apenas para efeito de ilustração, o contratante acredita ter pago y pelo
trabalho do agenciador e um valor x para o artista, mas o artista recebe 70% de x38, enquanto o
agenciador recebe y mais aqueles 30% de x, por exemplo. É uma prática de atravessamento e,
mesmo que muitas bandas não tenham conhecimento deste processo, algumas que sabem como
funciona, se sujeitam pela necessidade de fazer agenda e ainda se consideram com sorte por
estar em um grupo seleto de alianças, que é chamado pelos músicos de “panela”.
Panela, em linhas gerais, é um termo coloquial utilizado para designar grupos fechados
de pessoas que repelem a presença de estranhos em suas práticas, não à toa o subtítulo do livro
de Eduardo Mercer, frequentemente citado nesta pesquisa é “O rock autoral e a alma arredia de
Curitiba”. Isso mostra como as alianças funcionam para também fixar práticas, engessar
comunidades e garantir a posteridade de um grupo em determinada função ou privilégio.
Um exemplo que ocorreu com o público de um bar específico em 2018 demonstra a
forma de atuar das “panelas”. Desde 2005 o Pub X39 apresentava toda Segunda-Feira uma banda
cover do U2. Uma vez por semana, quatro vezes por mês, quarenta e oito vezes por ano essa
banda cover se apresentou naquele mesmo endereço, no mesmo dia da semana, nos mesmos
horários desde Março de 2005 até Maio de 2018. Sem contar as vezes que esta banda foi
convidada a se apresentar em Sábados ou Sextas-Feiras, estimando-se por baixo, foram, pelo
menos 600 shows nestes 13 anos. A mesma banda cover, o mesmo repertório, no mesmo
horário, no mesmo endereço, no mesmo dia da semana. Criou-se uma “tradição” no Pub X,
Segunda-Feira era dia de U2 cover, isso ficou reconhecido inclusive fora de Curitiba, em outros
estados e até fora do país.
Curiosamente, um dos projetos que atuo também é uma banda cover do U2. Porém,
não tocamos no Pub X. Desde 2016, a banda em que atuo como guitarrista realizou mais de 300
shows. Posso afirmar que em mais da metade desses shows, mesmo naqueles mais distantes de
Curitiba, há alguém que nos pergunta “e como vão as Segundas-Feiras no Pub X?”. Certa vez
38
Valor hipotético para fins de exemplificação.
39
Nome fictício.
88
um fã nos parabenizou após um show em alguma cidade de Santa Catarina: “sou fã do U2 desde
os anos 80, eu vi vocês no Pub X quando viajei a Curitiba no ano passado, parabéns, estão cada
vez melhor!”. Sem dúvida, nossos contratantes conhecem nosso trabalho e sabem que nós não
tocamos naquele bar, mas o público, nessas ocasiões, não vê diferença, afinal, é um grupo
musical que simula outro de renome, então são por essência extremamente parecidos, sonora e
visualmente. A “tradição” de ter um U2 cover toda Segunda-Feira em um bar de Curitiba é tão
enraizada que leva o público a confundir uma banda cover pela outra.
O “U2 cover do Pub X” encerrou suas atividades na casa após um período de 13 anos
de atividade regular e, certa vez, o cover em que atuo foi convidado para tocar em uma festa no
mesmo bar – a festa “Rock de Inverno”40. Ao lado do palco havia um quadro com caricaturas
dos membros da banda cover fantasiados dos integrantes do U2 original. Não se trata de um
quadro do U2 original, com Bono, Edge, Larry e Adam caricaturados. São caricaturas dos
integrantes da banda cover fantasiados dos integrantes da banda irlandesa original – uma
lembrança do cover incorporada pelo local.
Nessa festa, dia em que tocamos no Pub X, pairou sobre nós uma certa sensação de
desconforto. O público havia sido informado apenas um dia antes sobre nossa presença ao invés
do outro cover. A casa estava cheia e nas primeiras fileiras de mesas, coladas ao palco, estavam
pessoas que frequentam o bar há anos. Em um lado do palco há uma mesa que durante anos é
ocupada por um mesmo grupo de pessoas que se reuniam quase religiosamente para assistir o
“U2 cover do Pub X” durante os 13 anos de atuação na casa. A recepção dessas pessoas não foi
muito calorosa conosco, apesar de que a maioria do público recebeu bem nosso show.
A banda em que atuo está no mercado desde 2006, foram incontáveis shows no Brasil
e na América do Sul. Estar no palco e lidar com a audiência é nosso trabalho e temos a
experiência para isso, logicamente é um grupo experiente que não deixa a desejar nas
apresentações. Por onde passamos emocionamos fãs e arrancamos aplausos da audiência, mas
por que algumas pessoas no Rock de Inverno não receberam bem?
Na página online do evento, que foi publicado no Facebook um dia antes da festa, um
frequentador antigo da casa comentou no post com nossa imagem “já sei que posso chegar mais
tarde” dado ao fato de que iríamos tocar no início da noite daquele dia. A questão não era
musical e sim extramusical (BLACKING, 1995). Aquele dia esbarramos na chamada “panela”.
Para parte do público, não importava o quão “boa” era a banda que estava no palco, se os
parâmetros para avaliação não eram musicais e, sim, extramusicais. Questões me surgiram em
40
Nome fictício.
89
mente neste dia: por que inúmeras vezes, ao longo de tantas viagens, fomos confundidos como
“o U2 do Pub X” e no dia em que de fato tocamos no referido bar éramos tão diferentes aos
olhos de alguns?
É evidente que as alianças, elementos extramusicais em torno de classe, bairro, redes
de relações, que parte do público nutria pelo outro grupo musical não permitiam que aceitassem
a nossa, apesar de o repertório, os instrumentos, a caracterização e a performance serem
idênticos (elementos musicais). Nesse sentido, alianças se mostram como, de um lado
articulações de união entre determinado grupo ou comunidade para fins de perpetuação e, de
outro, e quase que por efeito do primeiro, estruturas que tendem a repelir outsiders para fins de
proteção da detenção de determinado privilégio ou prática. Embora seja um evento isolado, o
breve relato anterior demonstra como as alianças e afetos contribuem na resistência a mudanças
na cena musical.
90
5 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Cena musical será o conceito mais presente neste trabalho e por isso requer uma vasta
explicação sobre os seus possíveis significados. Embora já existisse anteriormente, o termo foi
popularizado no início dos anos 1990 no âmbito dos estudos culturais, sobretudo relacionado
aos estudos da urbanidade. Neste trabalho tomarei como principal direção para discorrer sobre
cenas musicais o Prof. Dr. Phd. Will Straw, que é tido pela comunidade científica como a maior
referência no assunto. Juntamente com Straw, utilizarei os textos dos brasileiros Prof. Dr. Jeder
Janotti Junior e da Profa. Dra. Simone Pereira de Sá que, em âmbito nacional, são a principal
ponte com o conceito de cena musical, tendo inúmeras publicações sobre o tema em língua
portuguesa e estabelecendo contato direto com Straw em seus respectivos intercâmbios com a
Universidade McGill, onde Straw leciona.
Em linhas gerais, cena é a“conexão entre práticas musicais e o espaço geográfico em
que estas estão inseridas” (JANOTTI JUNIOR, 2012, p.2). Antes de começar a desbravar os
mais amplos possíveis significados do termo, a primeira coisa a lembrar é que cena musical é
um conceito escorregadio e muito maleável e, por isso, ainda é alvo de críticas e de
questionamentos no âmbito acadêmico.
Janotti Junior argumenta que o termo cena musical “acabou gerando uma série de
debates em relação ao seu alcance e, principalmente, sua limitação”, pois para muitos críticos
da expressão, cena tende a privilegiar “aspectos sociológicos das apropriações da música em
detrimento de seus aspectos estéticos” (JANOTTI JUNIOR, 2012, p.1). Straw comenta que
durante os anos 1990 houveram várias tentativas de refinar o conceito de cena, porém, sempre
tropeçavam na natureza escorregadia do termo. O autor explica que para transmitir as
complexidades da vida urbana, muitas vezes é necessário contrair ou expandir o termo
(STRAW, 2006, p.1).
Para entendermos melhor, Straw conta uma breve história sobre as expressões
musicais de Toronto dos anos 1950, descrevendo a coluna de jornal de Alex Barris denominada
“Night in, night out”, onde Barris se dedicava a escrever sobre o circuito de música e sobre
91
41
Merriam (1964, p. 223) defende que o entretenimento é uma das funções da música, abordarei com profundidade
este viés mais à frente no trabalho.
42
Estado/província canadense em que Toronto é a capital.
43
The practices we typically associate with scenes [...] involve ongoing negotiation over the appropriate relations
between [...] noise and music, attention and distraction (STRAW, 2006, p. 5).
92
Cena compreende-se na interseção dessas esferas, o espaço que está inserida, podendo
ser físico e/ou virtual; a indústria do entretenimento e suas metamorfoses tecnológicas com o
passar do tempo; indivíduos e comunidades e os processos de identificação que os unem ou
contribuem no estabelecimento de fronteiras, envolvidos com as experiências musicais e
extramusicais44 (BLACKING, 1995, p. 51). Straw explica que o conceito cena é muito
abrangente e ainda tem uma variedade de funções a que é atribuído, remetendo-se ora à
movimentação em um local, ora à soma total de atividades globais em torno de um gênero
musical específico.
No campo dos estudos culturais, sobretudo no das cenas musicais, as relações entre
local, regional, nacional e global foram importante ponto de discussão no início dos anos 1990,
época marcada pela atmosfera de “mundo em mudança”, associada aos efeitos da globalização.
Conforme Straw, a tendência de práticas e produções de “propriedade global” na indústria
lançou questionamento sobre a validade na utilização de rótulos classificatórios por gênero
atrelado ao espaço, como por exemplo “rock curitibano”, “k-pop”, ou ainda, como colocado
pelo autor, “anglo american rock”.
O envolvimento dos estudiosos com o conceito de comunidade, no contexto dos anos
1990, com a crescente preocupação em entender a globalização, gerou uma tendência em
abordar relações do espaço com nação – rupturas e fixações de práticas. “O cuidado que tem
acompanhado discussões nos estudos sobre autenticidade na música popular [...] passou a ser
direcionado a noções de espaço musical regional ou nacional” (STRAW, 1991, p.368, tradução
nossa) 45. Isso apontou para novos interesses dos estudiosos na diversidade musical urbana e
serviu para desestabilizar as noções de uniformidade em culturas musicais locais.
De acordo com Straw, as características do local geográfico têm sido transformadas
na sociedade contemporânea pelo “crescente sistema de articulação universal”, que é moldado
pela globalização. Pereira de Sá explica que a globalização são fluxos internacionais de
44
John Blacking, aborda os aspectos das “Experiências em música” em seu livro Music, Culture, and experience
(1995), onde constata que: “o mundo da música é o mundo da experiência humana. Em um compositor, por mais
pessoal que a consciência da experiência possa ser, ela foi adquirida como resultado da vida na sociedade. Ser
membro de uma sociedade humana é uma condição essencial para se tornar um ser consciente e criar música. Uma
pessoa pode criar para o ganho financeiro, para o prazer privado, para o entretenimento, ou para acompanhar uma
variedade de eventos sociais, e o compositor não necessita expressar a preocupação aberta para a condição humana;
mas a música do criador não pode escapar ao selo da sociedade que tornou seu criador humano. [...] A música é o
som organizado humanamente, e sua eficácia e valor, como meio de expressão, depende, em última instância, do
tipo e qualidade das experiências humanas envolvidas na sua criação e performance”.
45
The caution which has accompanied discussions of musical authenticity within popular-music studies has only
recently come to be directed at notions of a regional or national musical space.
93
46
“[...] an emphasis on the disruptive effects of economic reordering will result in the valorization of musical
practices perceived to be rooted in geographical, historical and cultural unities which are stable and conflated”
(STRAW, 1991, p. 369).
47
Ativista cultural e político desde os anos 1990, participou no lançamento de músicas de mais de 100 bandas,
esteve em órgãos de gestão cultural e na elaboração de várias leis referentes à cultura, coordenou diversas pesquisas
histórico-culturais, autor do livro A [des]construção da música na cultura paranaense (MERCER, 2017, p. 390).
48
“It functions to sociability and as a lazy synonym for globalized virtual communities of taste”(STRAW, 2006,
p. 6).
94
Straw também reforça que o conceito de cena musical é útil em descrever a relação
entre diferentes práticas musicais que se desenvolvem dentro de um espaço geográfico
específico e ressalta que o termo difere em vários sentidos de comunidade musical. Janotti
Junior, explica que essa perspectiva aponta os aspectos ativos das cenas contra o engessamento
geográfico das comunidades musicais (JANOTTI JUNIOR, 2012, p. 1). Então cena é um espaço
cultural em que várias práticas musicais coexistem e interagem entre si por meio de diversos
processos de diferenciação. Straw argumenta que “nas cenas musicais o mesmo senso de
propósito é articulado dentro das formas de comunicação através das quais a formação de
alianças e a construção de fronteiras musicais tomam lugar” 49 (STRAW, 1991, p. 373, tradução
nossa).
A elasticidade do termo “cena” é defendida por Straw como um ponto positivo pela
facilidade que imprime na abordagem de unidades culturais diversas. Ele explica que o uso do
conceito “não requer mais do que uma coerência nebulosa entre um conjunto de práticas e
afinidades”50 (2006, p.6, tradução nossa). Desta forma, consegue-se atingir tanto uma
comunidade mais restrita, quanto a frenética vida urbana. O conceito cena oferece, em ambos
os casos, recursos diferentes. No primeiro, adiciona um certo dinamismo e, no segundo, através
do desembaraçar de grupos menores inscritos ao todo caótico, propõe uma ordem mais estável.
Cena, de acordo com Straw, pode sugerir:
(a) congregação de pessoas num eventual lugar; (b) o movimento dessas pessoas entre
um lugar e outro; (c) as ruas em que esse movimento toma espaço; (d) todos os lugares
e atividades que envolvem e nutrem uma preferência cultural particular; (e) o amplo
e mais geograficamente disperso fenômeno no qual esse movimento ou essas
preferências são exemplos locais; (f) a rede da atividade microeconômica que
alimenta a sociabilidade e a conecta à contínua reprodução da cidade (STRAW, 2006,
p. 6, tradução nossa)51.
49
“Within a musical scene, that same sense of purpose is articulated within those forms of communication through
which the building of musical alliances and the drawing of musical boundaries take place” (STRAW, 1991, p.
373).
50
“[...] requiring of those who use it no more than that they observe a hazy coherence between sets of practices or
affinities” (2006, p.6).
51
“Is a scene (a) the recurring congregation of people at a particular place, (b) the movement of these people
between this place and other spaces of congregation, (c) the streets/strips along which this movement takes place
95
Straw comenta que a década de 1990 inteira foi dedicada em tentativas de refinamento
do termo e, mesmo assim, o significado de cena continua escorregadio. Para ele, cena são
“espaços geograficamente específicos para a articulação de práticas musicais”, embora
reconheça que não é um significado exclusivo e nem diminui a significância de outros usos
(2006, p. 7). Entre outros significados de cena, descrever pessoas que ocupam determinado
espaço para entretenimento, por exemplo um bar, indica que interações sociais à primeira vista
sem propósito, contribuem na produção de identidade de grupo. Micael Herschmann completa
a ideia de cena, explicando que Straw considerava inicialmente um “‘contexto’, no qual práticas
musicais coexistem, interagindo umas com as outras, dentro de uma variedade de processos de
diferenciação e afiliações (HERSCHMANN, 2013, p. 44). Dulce H. Mazer acrescenta que cena
sugere “organizações instáveis, com um protagonismo maior dos agentes sociais, costuradas
por identificações grupais, afetividades e outros vínculos entre os indivíduos”.
Mais além, ressaltando a relevância em se considerar as alianças e afetos em uma cena
musical, a autora aponta que uma cena é configurada a partir de afetividades e identificações
entre indivíduos e, “por isso a cena é instável”, pois, “depende da vontade empreendedora dos
agentes para constituir as práticas culturais relacionadas à música” (MAZER, 2017, p. 4-5).
Então, compreende-se melhor a noção colocada por Straw à medida que se considera a
significação dos espaços por parte dos indivíduos presentes na cena.
Straw coloca que “parte do carácter superprodutivo de significados das cenas [...] é
seu papel vasto em realinhar a cartografia da vida urbana, mesmo quando as atividades das
cenas parecem intencionadas em expressar ou ocupar locais muito precisos” 52 (2006, p.9,
tradução nossa). Isto é, um efeito cumulativo das “cenas” menores que interfere na “cena” da
cidade num âmbito geral. Pereira de Sá aponta a menor noção de cena como sendo reservada à
dimensão local, e a explica como “atividades sociais ocorridas num espaço territorial e período
de tempo delimitado”, quando agentes musicais utilizam de seus gostos semelhantes para
diferenciar-se através do uso da música e outros símbolos culturais (PEREIRA DE SÁ, 2013,
p. 30). Aqui, fica claro a associação das cenas aos usos e funções da música, como proposto
por Merriam (1964). Nesta citação de Pereira de Sá, em específico, aponta-se implicitamente o
uso da música nas cenas locais para fins de construção de identidade, o que está associado à
(Allor, 2000), (d) all the places and activities which surround and nourish a particular cultural preference, (e) the
broader and more geographically dispersed phenomena of which this movement or these preferences are local
examples, or (f) the webs of microeconomic activity which foster sociability and link this to the city’s ongoing
selfreproduction?”(STRAW, 2006, p.6)
52
“Part of the “overproductive signifying” character of scenes [...] is their broader role in realigning the
cartographies of city life, even when the activities of scenes seem intended to express or occupy very precise
places.”
96
décima função da música proposta por Merriam, “de contribuir para a integração de uma
sociedade” (MERRIAM, 1964, p. 9).
Seguindo neste raciocínio, também aponta a existência das cenas translocais, que são
aquelas que “se constituem a partir do contato regular dos membros de distintas cenas locais
em torno do mesmo interesse musical”. O termo translocal é colocado porque, apesar destas
cenas terem sua dimensão local, elas se interconectam através de redes de relações e trocas de
conteúdos que ultrapassam a necessidade de interação presencial como condição para pertencer
à determinada cena (PEREIRA DE SÁ, 2013, p. 31).
Penso ser possível relativizar aquele efeito cumulativo proposto por Straw desde as
cenas locais às regionais; das regionais às globais, de modo que a soma da interação dessas
cenas menores aplica o resultado proposto como “realinhar a cartografia” da vida urbana.
Destas relações surge o termo Glocalização, a fim de explicar “processos de incorporação
vividos dentro da sociedade que passou pela globalização e retirou daí algo para seu avanço
social, como na prática, as cenas o fazem (FERREIRA, 2006, p. 23). Segundo a professora Lia
Aparecida (2006), ao colocar uma reflexão sobre essas interseções entre as camadas de
abrangência das localidades, explica que há uma articulação entre o global e o local do ponto
de vista urbano. Assim, tal relação supõe um destaque na atuação de gestores governamentais
nas questões do global em suas políticas públicas e aponta que, “o que regula esse processo são
os meios de comunicação” (FERREIRA, 2006, p. 107).
Em entrevista no ano de 2012, Will Straw argumenta que, inicialmente nos anos 1990,
estava preocupado com “circuitos de estilos” e “espécies de mundos em que as pessoas viviam
sua relação com a música”. Em sua entrevista de 2012, com o mundo já sob forte influência das
tecnologias digitais em torno da cadeia produtiva da música, isto é, produção, distribuição,
comercialização e consumo (PRESTES FILHO, 2004), onde a globalização já era uma
realidade não mais tão misteriosa para as cidades e seus habitantes, Straw definiu cena musical
como “as esferas circunscritas de sociabilidade, criatividade e conexão que tomam forma em
torno de certos tipos de objetos culturais no transcurso da vida social desses objetos” (JANOTTI
JUNIOR, 2012, p. 9).
Trazendo para a análise deste estudo, Straw deixa implícito em sua então definição as
três frentes aqui abordadas. Indivíduos e comunidades, ao citar “esferas circunscritas de
sociabilidade”; indústria, tecnologia e temporalidade ao citar “criatividade [...] em torno de
objetos culturais e no transcurso da vida social desses objetos”; espaço, por meio de “conexão”,
97
que pode ser tanto física a nível local, regional, nacional ou global, quanto virtual, por meio de
redes digitais e demais artifícios proporcionados pelo ciberespaço 53.
Algumas críticas à noção de cena, segundo Straw, surgem pelo fato de o conceito
parecer excluir a implicação política das cenas, o que fica evidente nos trabalhos que utilizam
o termo pois raramente citam algo em que uma cena tende a se opor. Porém, no caso do trabalho
de Luciana Xavier de Oliveira (2015), a autora demonstra como os bailes black no Rio de
Janeiro dos anos 1970 configuraram uma cena musical em torno das experiências identitárias
dos negros que viviam em uma situação marginal na capital carioca daquele ano:
Assim, a autora afirma o carácter político nos movimentos da cena Black Rio inscritos
numa cena musical. À esta possível contradição, Straw reforça que não se trata da cena em si
como sendo agente político, mas sim das subculturas ou tribos urbanas inseridas no seu
contexto. Luciana Oliveira comenta que “a noção de cena musical é a chave para a compreensão
dos espaços de ligação entre identidade, territorialidade e temporalidades contingentes”
(OLIVEIRA, 2015, p. 7) – o que vai de encontro com a proposta metodológica deste trabalho,
ao relacionar na cena indivíduos, espaço e temporalidades.
A questão política nas cenas fica então reservada aos indivíduos que a compõe,
contudo é preciso ressaltar que a cena “envolve outros aspectos de estilo de vida, tais como
modo de se vestir, de dançar, uso de drogas”, inclusive política, porém não cabe à cena decidir
os rumos desses aspectos e sim os agentes nela ativos (PEREIRA DE SÁ, 2013, p. 31).
Novamente, conferir à cena uma determinada posição política, parece-me um erro conceitual
ocasionado pela atribuição dos significados de movimento, subcultura e tribos urbanas ao termo
cena musical.
Em outras palavras, não se trata de excluir o carácter político da discussão sobre cena,
porém direcioná-lo para o objeto mais coerente, que seriam os indivíduos nela agentes. Levando
esta discussão mais à frente, proponho que a manifestação política de indivíduos em uma dada
53
Ciberespaço é um conceito levantado por Pierre Levý e, em linhas gerais, é um “novo meio de comunicação que
surge da interconexão da rede mundial de computadores” (LEVÝ, 2014, p. 17).
98
cena musical é um efeito das relações destes agentes com o tempo e o espaço que os permeia.
A cena não é causa do carácter destas relações e sim o ecossistema ocupado por elas. Nesta
linha de pensamento, seria um território para atividade política, mas não a atividade política em
si. Esta discussão também é válida para não nos perdermos no carácter deslizante do termo,
reafirmando o conceito de cena e lembrando que se trata de uma relação entre práticas culturais
e identitárias, espaço geográfico e virtual e as “temporalidades contingentes”. Por fim, esta
abordagem se mostra produtiva ao pensar a cena como um fenômeno contínuo dentro dessas
três dimensões.
Timothy Rice ressalta que tanto a mudança, quanto a estabilidade de práticas musicais
são fenômenos naturais e ambos precisam de explicação (RICE, 2014, p. 92). Neste sentido,
Straw também reforça a discussão sobre o carácter “disruptivo” das cenas musicais, ou seja,
são marcadas por transformações, rupturas, quebras de paradigma em determinadas práticas.
Ele exemplifica este argumento com a mudança das práticas relacionadas ao entretenimento
noturno de Nova York no início dos anos 1920. Nesta época popularizaram-se bares no estilo
cabaret, no formato de restaurantes dançantes, onde a proximidade física da plateia com as
práticas musicais no local envolveu o público e, através do maior contato com os artistas
contratados, permitiu que a expressividade se expandisse à plateia. Assim, a audiência ganhou
um carácter mais ativo em relação à atração artística do restaurante, o que representou uma
quebra de paradigma com outras formas de entretenimento, como em teatros, por exemplo,
onde os grandes palcos e o distanciamento da plateia com as atrações conferiam um carácter
passivo, isto é, pouco interativo destas práticas (STRAW, 2006, p. 11).
Straw (1991) discorre vastamente sobre o que chama de “lógicas de mudanças”. Ele
inicia o debate reconhecendo que há uma perspectiva homogênea dos estudiosos de música
popular que, segundo ele, sempre observam o objeto a partir da produção e consumo da música
em determinado ambiente. Para Straw, esta visão tem dificultado a análise do que chama de
“lógicas” dentro dos terrenos musicais, pois a “produção e consumo” de música são efeitos do
que acontece em maior escala no macroambiente em que a música está inserida. Além disso,
99
existem outros dois elos da cadeia produtiva que, mesmo implícitos, é válido serem
separadamente considerados, a distribuição e a comercialização (PRESTES FILHO, 2004).
Assim sendo, o olhar sempre direcionado aos efeitos, prejudica a compreensão das
causas mais complexas em que o fenômeno das cenas musicais acontece. O autor comenta que
“o carácter cosmopolita de certas atividades musicais [...] deve dotá-las com uma proposta de
unidade e um senso de participação em alianças afetivas” 54, o que ilustra a limitação de um
campo de estudo focado continuamente na produção e consumo da música popular (STRAW,
1991, p. 374, tradução nossa). Pereira de Sá reafirma este raciocínio ao colocar que as cenas
musicais evocam universos com públicos específicos, com locais definidos e que isto está
ligado a estratégias de diferenciação entre “insiders” e “outsiders”, “nós” e “eles”, que ao
mesmo tempo interagem entre si (PEREIRA DE SÁ, 2011, p. 158).
Para entendermos este raciocínio de Straw, é necessário levar em conta que existe um
respaldo teórico por parte do autor na obra do sociólogo francês Pierre Bourdieu,
principalmente relacionado ao conceito de habitus55 e campo. Habitus é um conceito abstrato
apresentado como um mediador entre o indivíduo e a sociedade. A ideia de Bourdieu, assim
como outras apresentadas neste trabalho, apresenta uma noção de relação de mão dupla entre
indivíduo e sociedade. Neste sentido, o coletivo interfere no indivíduo e também é interferido
por este indivíduo, através de uma ponte mediadora que o filósofo chama de habitus. Sendo
assim, segundo Pierre Bourdieu “habitus, é, com efeito, princípio gerador de práticas
objetivamente classificáveis e, ao mesmo tempo, sistema de classificação de tais práticas”
(BOURDIEU, 2007, p. 162).
Conforme esse pensamento, habitus é um sistema de disposições que condicionam a
forma de viver do indivíduo, isto é, são múltiplas escolhas – opções construídas pelas estruturas
da sociedade (estado, igreja, polícia, trânsito, etc.), a quem o indivíduo está sujeito em um dado
território. Então, segundo este raciocínio, determinado grupo de agentes, em um terreno social
específico, possui um conjunto de práticas e ideologias característicos que são constituídos pelo
seu habitus. Em outras palavras, as estruturas que envolvem os agentes em uma sociedade,
também estruturam (organizam) a forma como os agentes compreendem as partes da sociedade,
dispondo assim as opções possíveis ao indivíduo e condicionando suas diversas ações – gosto,
ideologia, crença, entre outras. Este processo mediador de estruturação ambivalente entre
indivíduo e sociedade é denominado habitus.
54
“[...] the cosmopolitan character of certain kinds of musical activity [...] may endow them with a unity of purpose
and sense of participating in 'affective alliances'” (STRAW, 1991, p. 374).
55
Do Latim, “hábito”.
100
Mais além neste contexto, o conceito de campo, tal qual habitus, aparece como uma
abstração. O termo deriva de observações em que Bourdieu constata que agentes, dentro de
organizações específicas, tendem a agir de formas condizentes com o contexto o qual estão
circunscritos nessas organizações. O habitus é um modus operandi internalizado pelos
indivíduos que compõem um campo. Sendo assim, campo é o conjunto das estruturas
(estruturantes) que envolvem os indivíduos. O campo é um espaço social constituído por forças
opostas que, mediante às regras próprias do campo (implícitas ou explícitas), e as disposições
dos agentes (habitus), operam tanto na conservação quanto na alteração deste campo e, por isso,
é um território de tensões sociais, que são ocasionadas pela oposição dessas forças
(BOURDIEU, 2007).
Quando Straw direciona sua crítica para estudos que partem da produção e consumo
e, mais além, aponta a dificuldade desses estudos em compreender a “causas mais complexas”,
está implicitamente apontando a falta de análise sociológica dos habitus nos campos sociais
que compõem essas cenas musicais estudadas. Por exemplo, Bourdieu, no posfácio de A
Economia das Trocas Simbólicas (2005), ao tratar sobre experiência estética, exemplifica esta
falta de aprofundamento na interpretação da relação da filosofia e obras de arte, criticando a
interpretação “fenomenológica” dos fatos, que é aquela compreensão baseada em fenômenos
aparentes e não na análise de causa e efeito, dos quais os fenômenos em questão são apenas
resultados aparentes. A crítica de Straw aos trabalhos que consideram apenas produção e
consumo se dá neste mesmo sentido, o que poderia ser suprida por uma análise mais sociológica
das cenas, levando em conta os conceitos habitus e campo de Bourdieu.
Straw oferece três usos para o termo “lógica”, que são perspectivas mais abrangentes
sobre as cenas musicais, indo além daquela visão criticada anteriormente, que é restrita apenas
à produção e consumo em torno da música popular. Em primeiro lugar, aponta a lógica de
campo, que está ligada ao termo “campo das práticas culturais” de Pierre Bourdieu. A lógica
de campo indica “processos pelos quais princípios de validação e acomodação de mudanças
operam dentro de espaços culturais particulares assim como perpetuam suas fronteiras” 56
(STRAW, 1991,p. 374). Num primeiro contato com esta lógica destacada por Straw, refere-se
mais intimamente às relações socioculturais circunscritas a um espaço específico, conectada
estreitamente com a historicidade deste espaço e com disputas de poder simbólico que
acontecem entre a sociedade ali disposta. A este raciocínio, Pereira de Sá completa que o
56
“[...]procedures through which principles of validation and means of accommodating change operate within
particular cultural spaces so as to perpetuate their boundaries”.
101
trabalho de Straw reconhece a centralidade da cultura entendida como prática cotidiana e lugar
de disputa (PEREIRA DE SÁ, 2011, p. 158).
A lógica social está mais relacionada à produção em si, às instituições, indústria e
tecnologia. Através da visão de Bernard Miége sobre mercadorias culturais, refere-se à
especificidade dos campos e é “moldada em parte pelas regiões que eles ocupam, seja pelo
mercado ou pelo contexto de produção relativos a instituições culturais” 57 (STRAW, 1991, p.
374). Straw coloca que “diferentes espaços culturais são marcados por tipos de temporalidades
encontrados entre eles [...] neste sentido, a ‘lógica’ de uma cultura musical é uma função no
modo em que valor é construído nesta cultura relativo à passagem do tempo 58”(1991, p. 374).
A partir de Michel de Certau, a terceira lógica elencada é a dos “movimentos
circunstanciais”, ou “práticas cotidianas”, que se divide em duas partes: os esforços dos
profissionais da música para conseguir prestígio em determinado terreno e a contínua
transformação das relações socioculturais, alianças entre determinadas comunidades musicais.
De acordo com esta lógica, Straw critica as linhas de análise que resultam em “mero formalismo
sobre mudança cíclica” na música. O autor sugere que a preocupação dos sociólogos musicais
se afaste da substancialidade das formas musicais e dirija-se no sentido do terreno cultural –
campo cultural. Na etnomusicologia esta questão já vem sendo debatida há tempo através do
reforço da pesquisa em aspectos extramusicais e na importância do contexto em que a música
acontece, como colocado por John Blacking em Music, Culture, and experience (1995) e em
How musical is Man (1974).
Para Straw, o foco comum na substancialidade da música, ou seja, nos formantes
plásticos, na forma e não no conteúdo mais significativo do que a música representa, obscurece
a variedade em que mudanças podem ser melhor exemplificadas. O autor defende que a atenção
com a lógica dos movimentos circunstanciais previne que o pesquisador cometa dois erros
comuns:
57
“[...] shaped in part by the 'regions' they occupy, as markets and contexts of production, relative to a given set
of cultural institutions”.
58
Different cultural spaces are marked by the sorts of temporalities to be found within them [...] In this respect,
the 'logic' of particular musical culture is a function of the way in which value is constructed within them relative
to the passing of time.
102
Conforme Pereira de Sá, o conceito de cena conecta o diálogo com os debates em torno
de gênero musical e processos de rotulação. Gênero musical é um conceito central para
entenderemos a produção, distribuição, comercialização e consumo (escuta musical), mesmo
num cenário de globalização, onde as apropriações locais geram hibridismos que tornam
instáveis as fronteiras entre um gênero e outro. A importância do gênero musical se dá pela sua
função em mediar a escolha dos indivíduos no cenário musical, ou seja, são as convenções de
gênero que orientam uma parte das escolhas no cenário musical e definem “onde essa música
se encaixa; “com o que se parece”; e “quem vai comprar” (JANOTTI JUNIOR; PEREIRA DE
59
“[...] privileging the processes within popular musical culture which most resemble those of an 'art world' and
overstating the directive or transformative force of particular agents within them; on the other, Reading each
instance of musical change or synthesis as unproblematic evidence of a reordering of social relations.
103
SÁ, 2018, p. 4). Janotti Junior completa a ideia de gênero como mediador explicando o termo
como “modos de mediação entre as estratégias produtivas e os sistemas de recepção”
(JANOTTI JUNIOR, 2005, p. 5), e “definido então por elementos textuais, sociológicos e
ideológicos” (2005, p. 8). Pereira de Sá relembra que os gêneros musicais são “dinâmicos e
instáveis porque estão sempre tensionados pelas disputas simbólicas em torno de suas
fronteiras” (PEREIRA DE SÁ, 2011, p. 153).
A autora complementa que o gênero demarca também o alcance comercial e o público-
alvo dos produtos midiáticos por ele originados, tais como CD’s, DVD’s, shows, vídeos,
vestimentas, etc. Para se definir um gênero pressupõe-se uma demarcação negativa e
comparativa com outros gêneros. Pereira de Sá explica que o dinamismo atrelado ao termo
acontece porque ele reage a condições de produção; condições de reconhecimento;
possibilidades de produção de sentido; e possibilidades de interação na cadeia de consumo.
Pereira de Sá explica que tais definições em torno do dinamismo dos gêneros é interessante
porque aponta para “aspectos extramusicais” (BLACKING, 1995) na construção desses
gêneros. Além disso, a autora explica que o processo de rotulação das manifestações musicais
está inteiramente ligado à disputa simbólica entre os diversos agentes envolvidos e não é algo
livre de ambiguidades, porém é este processo que dá origem aos gêneros musicais. A rotulação
“supõe um campo de batalha em que a disputa ocorre por autoridade” (PEREIRA DE SÁ, 2011,
p. 153).
Mais além, a autora explica que a noção de um gênero não é definitiva e sempre indica
uma tensão relativa a mudanças, como veremos mais à frente no trabalho. Complementado este
raciocínio, Shuker explica que “há também uma considerável flexibilidade em relação ao
gênero: subverte-se ou brinca-se com as convenções dos gêneros musicais existentes, ou adota-
se um distanciamento irônico dessas convenções” (SHUKER, 1999, p. 142). Ele ainda
complementa que é comum essa flexibilidade em gêneros híbridos, como o rock alternativo,
que será abordado a seguir nesta pesquisa a fim de exemplificar as lógicas de mudanças nas
cenas musicais.
Straw compara a forma pela qual as cenas em torno de dois gêneros musicais reagem
a lógicas de mudança, o rock alternativo e a dance music. Ao tratar do rock alternativo, Straw
começa comparando-o com o punk rock, sob a ótica dos “terrenos musicais” que cada um
ocupava no início dos anos 1980, sobretudo no Canadá e nos Estados Unidos. Embora o rock
alternativo seja entendido comumente como um desmembramento do punk rock, o autor
comenta que enquanto as cenas punk se estabilizavam, uma cena começou a se estruturar
articulada pelo gênero rock alternativo, com a criação de selos de gravação, locais para
104
performance, canais exclusivos de comunicação, entre outras estruturas em que essas atividades
musicais se desdobravam.
A isto, Straw complementa que, ao passo que a centralização do punk na cultura
musical local declinava, a unidade do rock alternativo não estava fixada à forma como o gênero
soava. Mesmo porque, o rock alternativo combina múltiplos gêneros de diferentes épocas e
locais, não tendo construído uma unidade baseada em uma linha de identidade sonora e
estilística padronizada. Por causa deste pluralismo não houve uma corrente estilística que
pudesse apontar uma trajetória do movimento, eliminando assim a possibilidade de se formar
polos representantes desta cultura musical, o que torna o rock alternativo diferente dos outros
subgêneros ao longo da história do rock, como por exemplo o punk, o pós-punk ou os mods.
De acordo com o autor, a unidade do rock alternativo residia no modo como era estabelecida
uma relação diferenciada com o tempo histórico e a localização geográfica das práticas musicais
atreladas ao gênero (STRAW, 1991, p. 375).
Neste primeiro momento da análise de Straw, embora o autor deixe implícito em seu
texto original, percebe-se uma aplicação da lógica de campo, que se refere às tensões no terreno
musical originadas com lutas por validação e tentativas de acomodação de mudanças, quebras
de paradigmas, valores, comportamentos, entre outras práticas no ambiente musical (STRAW,
1991, p. 376).
Em um segundo momento, Straw discorre sobre a necessidade de examinar o rock
alternativo através do papel da hibridização estilística que, segundo ele, raramente terá o sentido
de síntese de um novo movimento específico com a formação de alianças conectadas por ele.
Em linhas gerais, Straw ressalta a peculiaridade no âmbito do rock alternativo, dado ao fato de
que as alianças formadas dentro deste estilo não se dão fundamentadas num gênero particular,
justamente porque o rock alternativo é uma mescla constante de estilos, sempre em mudança,
o que não dá espaço para surgir um gênero que delineie um caminho estético na posteridade
deste estilo, contrastando assim com as demais alianças formadas em outras práticas que
constituíram pontos de virada durante a história do rock, que se deram, normalmente,
fundamentadas no compartilhamento de linhas estilísticas semelhantes. Um dos efeitos disso
percebido pelo autor é “ter na carreira individual, ao invés da cultura do rock alternativo como
um todo, como o principal contexto em que a mudança é significativa” 60.
Mais além e, também decorrente da característica instável do gênero, destaca-se no
âmbito do rock alternativo a consagração dos “connoisseurs”, que são indivíduos incessantes
60
“[...] to install the individual career, rather than the culture of alternative rock as a whole, as the principal context
within which change is meaningful” (STRAW, 1991, p. 376).
105
pela busca quase arqueológica de conhecimento dentro de um assunto. Tal prática assegura
autoridade dentro de determinadas culturas, como também coloca Henry Jenkins, ao utilizar o
termo “braintrust” para ilustrar as relações construídas através deste tipo de atividade
(JENKINS, 2008, p. 375). Embora as pessoas ainda se reúnam em grupos exclusivos em função
de seus gostos, Straw complementa que:
O aprendizado da história e dos valores da forma musical continua sendo uma parte
essencial do envolvimento com a música, o que foi muito facilitado pelo YouTube,
por grupos de afinidade do Facebook e outros aspectos das novas mídias (JANOTTI
JUNIOR, 2012, p. 8).
61
“One effect of these processes has been an intermittently observed sense of crisis within the culture of alternative
rock music” (STRAW, 1991, p. 377).
106
rock alternativo pela indústria, bem como da criação de prateleiras em lojas de discos dedicadas
a um gênero que tem, por essência, a multiplicidade de referências e o pluralismo de
sonoridades. O autor também comenta o paradoxal fato de que o rock alternativo, apesar de sua
ampla capacidade de atender variados gostos, não deter a aderência necessária para a formação
de alianças coletivas, justamente pela falta de sentido a um movimento mais amplo do gênero.
Neste terceiro momento, sob a lógica social, aquela que aponta como o campo é
moldado pelo mercado e seus contextos de produção e consumo referentes às instituições
culturais, bem como à passagem do tempo e o avanço tecnológico, Straw comenta como a
característica instável do rock alternativo tem formatado os principais grupos musicais 62 que
circulam em seu meio. O autor explica que por se tratar de uma manifestação musical
“permeável”, o gênero encontrou repercussão em instituições pró diversidade, como rádios
universitárias, lojas de discos independentes e espaços para performance ao vivo (STRAW,
1991, p. 376).
Os parágrafos anteriores não só ilustram como uma cena musical pode ser articulada
através de um gênero, como também exemplificam a análise de Straw desta cena específica por
meio da perspectiva das suas lógicas de mudança: de campo; social; de movimentos
circunstanciais. Esta visão facilita a compreensão da atividade das cenas musicais e favorece
na comparação de uma cena com outra porque, mesmo que implicitamente, sugere um modelo
metodológico de abordagem do assunto. As lógicas de mudança apresentadas por Straw
encontram ressonância na proposta desta pesquisa pois também se dividem em três frentes de
abordagem razoavelmente parecidas com as sugeridas aqui. A lógica de campo pode-se
entender que seja mais voltada à perspectiva das territorialidades; a lógica social se aproxima
mais da perspectiva da indústria e tecnologia; e a lógica de movimentos circunstanciais se
conecta melhor com a visão por meio de indivíduos e comunidades – ressaltando as interseções
entre as três. Estas perspectivas, ou lógicas, não tratam de temas exclusivos umas das outras,
podendo se permear, como o próprio autor faz por vezes, ainda que implicitamente.
Para ele, a principal diferença entre a dance music e o rock alternativo é a forma como
cada um dos gêneros reage às hierarquias e diferenças como estilo musical, idade, orientação
sexual, etnicidade, comportamentos de consumo cultural, entre outros critérios (STRAW, 1991,
p. 380).
Dentro da cultura da dance music, as linhas estilísticas são transformadas no sentido
de reafirmação de uma linguagem estética escolhida e invocada coletivamente. No rock
62
Straw utiliza o termo “commodities”
107
alternativo, em contraste, apesar do gênero ter alguns consensos do que não se utilizar, como
por exemplo os corais soul (soulful voices), não aparece nesta cultura a incitação da resposta
coletiva a uma linha estilística, que é o caso da dance music. No terreno do rock alternativo
coexistem diversas temporalidades dentro de um espaço cultural delimitado, “a cultura da dance
music, em contraste, é aquela em que a diversidade espacial é perpetuamente retrabalhada como
sequência temporal”63 (STRAW, 1991, p. 381, tradução nossa). No âmbito da dance music,
emergem polos territoriais de produtividade que são responsáveis por formar tendências,
normalmente atrelados a cidades específicas. Straw utiliza o termo “indígena” para ilustrar esta
lógica de tendências, fazendo alusão dessas cidades a aldeias, referindo-se também a esses polos
como “sítios de trabalho”. Em contrapartida, o rock alternativo elimina a possibilidade de
existência desses polos.
O ponto chave desta discussão não está na materialidade sonora de cada estilo, mas
sim no modelo de análise entre eles. Straw conclui que o interessante deste tipo de estudo são
as formas pelas quais cada cultura responde à diversidade, atribuindo valores e relações
diferentes com a inevitável mudança dentro de cada cena musical. O que estas lógicas implicam
é a compreensão das políticas na música popular e que elas não se concentram apenas na
qualidade das manifestações musicais e no consumo destas. Para o autor, o importante são os
processos “através dos quais determinadas diferenças sociais são articuladas dentro da
construção de audiências em torno de determinadas alianças por meio de formas musicais” 64
(STRAW, 1991, p. 384), podendo ser, entre outras formas, os gêneros, como mostra o trabalho
de Oliveira com a cena musical Black Rio dos anos 1970 e a soul music (2015).
Como colocado anteriormente, gêneros são, em poucas palavras, um conjunto de
regras, técnicas semióticas, e formas que são “encenadas” nas cenas musicais por meio de
performances de distinções de gosto. Amaral explica que, ao interpretar um gosto, “[...] os fãs
de certa forma criam personas, geralmente para não parecer deslocado, ou um “mau exemplo
de fã” (AMARAL, 2013, p. 459). A noção de cena, por sua vez, funciona como uma metáfora
que capta como as comunidades de gosto lidam com o fluxo e o excesso de informação
(PEREIRA DE SÁ, 2011, p. 155). Pereira de Sá explica que é na cena que os gêneros se
confirmam ou não. Na cena, eles são transformados em possíveis novos gêneros e, para a autora,
é nesse sentido que a discussão sobre gêneros e cenas se faz produtiva.
63
The culture of dance music, in contrast, is one in which spatial diversity is perpetually reworked as temporal
sequence.
64
“[...] through which particular social differences are articulated within the building of audiences around
particular coalitions of musical form.
108
65
Aqui há um problema de tradução do Inglês para o Português. Fui questionado em minha banca de TCC sobre
a expressão “instituições de nível mais baixo”, que pode soar pejorativo no Português, se entendermos como
“instituições de baixo nível”. Ao meu ver, Straw usa com o intuito de referir-se a instituições de maior contato
com as manifestações musicais da cidade, seriam instituições de base para o consumo e práticas musicais, por isso
“nível mais baixo”.
66
Levý explica que a cibercultura é o conjunto de técnicas, práticas, atitudes, modos de pensamento e de valores
que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço.
109
Apesar de Straw considerar ainda que as cenas virtuais acrescentaram pouco à primeira
noção de cena musical, colocada entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990, Pereira de
Sá as define como sendo aquelas em que “se utiliza da internet para sua existência”. No mesmo
sentido que as cenas translocais, os agentes envolvidos estão separados geograficamente, porém
dispersos em âmbito global (2013, p. 31).
Um detalhe relevância para a ideia, embora já tenha sido notado por diversos autores,
como Henry Jenkins (2009; 2014), em conteúdos menos específicos, e mesmo Bennet e
Peterson, citados pela professora Simone Pereira de Sá (2013), é o fato do controle do virtual
estar mais amplamente disperso entre os usuários, conforme sugere a autora, os fãs “se mantém
com maior controle da cena através da internet, em salas de bate papo ou listas de discussão nas
quais o capital subcultural dos membros é exibido e medido por outros fãs” (PEREIRA DE SÁ,
2013, p. 31).
Uma hipótese que surge é que esta constante interação entre fãs e performer reforça o
carácter disruptivo das cenas, como colocado no exemplo citado por Straw a respeito da cena
musical dos bares no estilo cabaret em Nova York, no início dos anos 1920, citado
anteriormente. A atividade dos fãs em ambiente virtual permite um remix ativo de conteúdos
audiovisuais e práticas, podendo por meio desta troca incessante, ditar novos rumos para as
manifestações musicais em torno de determinada cena, em velocidade mais rápida do que
anteriormente, no período em que não havia esta possibilidade provida pelo ciberespaço, e por
isso pode ser um catalisador de inovação em cenas musicais, que é um assunto ainda não
explorado em âmbito acadêmico.
Levý fomenta esse argumento ao começar Cibercultura (2014) explicando que “o
crescimento do ciberespaço resulta em um movimento internacional de jovens ávidos por
experiências com novas comunicações em âmbito econômico, político, cultural e humano. O
autor reforça que o novo é “sempre desprezado”, assim foi com o cinema, com o potencial
transformador do rock’n’roll e também é atualmente com a cibercultura (LEVÝ, 2014, p. 11).
Essas experiências com o novo provido pelas possibilidades do ciberespaço são o ponto capaz
de inovar as cenas musicais em âmbito on e off-line. Em seguida, Levý reforça esta ideia ao
explicar que, ante ao desprezo cíclico com as novidades tecnológicas e culturais, “a questão é
reconhecer” uma vasta mudança qualitativa no que chama de “ecologia dos signos”
proporcionada por um ambiente inédito que resulta na extensão de novas redes (LEVÝ, 2014,
p.12).
110
A isto, Timothy Rice completa a noção da música como sendo um sistema de signos 67
e que, embora não haja consenso sobre o significado musical, frequentemente a música é
atribuída a determinadas ações como por exemplo: música para praticar exercícios; música para
humor; música para suspense. Contudo, tais significados mudam de cultura para cultura.
Entender um gesto musical como um ícone é um ato de imaginação que contribui ao senso de
identidade de uma pessoa e pode disparar fortes emoções associadas com aquela identidade,
por exemplo. Portanto, a música produz significado (RICE, 2014, p. 59).
A música é um sistema de signos que possui significado e também os produz.
Concomitante a isso, Straw considera as cenas musicais um ambiente superprodutivo de
significados (STRAW, 2006, p. 9). Para Levý, a velocidade de transformação é uma constante
na cibercultura e “até os mais ligados encontram-se [...] ultrapassados” pela incessante criação
e recriação de conteúdos (LEVÝ, 2014, p. 28). Dessa forma, fazendo a conexão entre os três
autores, entendendo as cenas virtuais como cenas musicais situadas no ciberespaço, sob forte
atuação da inteligência coletiva, que são modos de cooperação comum, na experimentação e
atribuição de novos significados ao produto musical, penso que cenas musicais virtuais
multiplicam o carácter superprodutivo das cenas locais, que fora apontado por Straw
anteriormente, tornando-as um ambiente ainda mais produtivo e propício para inovação
musical.
Pierre Levý explica que, no ciberespaço, esta inundação de informação não tem fim e,
por isso, é chamada de “segundo dilúvio”. Por causa disso, o autor comenta que a cibercultura
leva a mensagem novamente ao patamar em que as mensagens aconteciam antigamente apenas
na oralidade, no sentido de reforçar sua união entre contexto e mensagem (LEVÝ, 2014, p. 15).
A este fenômeno, Manoel Neto comenta (informação verbal) sobre como a música é afetada:
A música não está mais em voga. O excesso de música na humanidade fez com que
se tenha perdido interesse. A música está voltando a uma fase original, que é uma fase
ritual. Faz parte do cotidiano, tem a ver com espiritualidade, bem-estar, não a ver com
mercado.
67
A semiótica distingue três tipos de signos: símbolos, índices e ícones. Um ícone é um signo que relembra de
alguma forma aquilo que ele representa. Na música isto se aplica na imitação: uma flauta imitando o piar de um
pássaro, por exemplo; o índice é aquele que aponta ao objeto o que ele representa. Acontece na música quando
determinada peça é associada ou ocorre ao mesmo tempo que alguma outra coisa. Por exemplo o fenômeno na
“nossa música”, comum entre casais; símbolos são signos com significados previsíveis e específicos, utilizados na
linguagem. Na música estão presentes apenas em notação musical, ademais, utiliza-se apenas índices e ícones.
111
Aproveitando o gancho deixado pela citação de Manoel Neto, Alan Merriam coloca
que “a música é usada e integrada em quase todos os aspectos da vida entre as sociedades
ágrafas, o que não acontece na civilização ocidental” (MERRIAM, 1964, p. 214, tradução
nossa). Rice complementa esta ideia ao explicar que a noção de propriedade musical na maioria
das culturas simplesmente não existe – semelhante ao que acontece no ciberespaço. De duas
uma: ou todos possuem a música, ou ela não é de ninguém (RICE, 2014, p. 42). John Blacking
acreditava que a música é um atributo fundamental da natureza humana. A partir disto, Blacking
conclui que a especialização do trabalho em grandes sociedades, como a civilização ocidental,
levou à criação de “classes” de músicos especialistas profissionais e, logo “uma
desmusicalização da maioria da população (BLACKING, 1974). Neste sentido, Manoel Neto
continua seu raciocínio (informação verbal):
É furada a ideia de que a música vai se sustentar numa ilusão do século XX. Até os
anos 1960 não tinha valor nenhum na música, mesmo com o mercado editorial, isso
era irrelevante. Não existiam repetidoras. Quando eles começam a criar transmissão
via satélite é que começa a valer a pena pra indústria investir pesado e lucrar alto,
porque aí tinham 1000 rádios repetindo um só conteúdo. Dos anos 1960 até o final
dos anos 1990 se criou uma ilusão sobre uma potência (comercial) da música.
Essa “potência comercial da música”, ilustrada pela indústria dos hits, pautada na
repetição, claramente foi desestabilizada pelas possibilidades da cibercultura e uma mudança
de paradigma a nível global que reestruturou as lógicas de mercado envolvendo a cadeia
produtiva da música após a democratização dos meios digitais. Porém, como sugerido
anteriormente, a cibercultura retoma a mensagem, e a música também, ao seu nível original,
como na época em que as informações eram passadas pela oralidade, conforme argumentado
por Pierre Levý.
Retornando ao raciocínio provido por Straw, sobre como as cenas podem ser
disruptivas, isto é, ambientes de mudança e quebras de paradigma, exemplificado pela mudança
no comportamento da cena musical através da interação da audiência com o artista em
restaurantes cabaret em Nova York nos anos 1920, sugere-se que, no mesmo sentido, a
interação online, em cenas virtuais, também podem possuir o mesmo efeito disruptivo, porém
ainda em maior escala, visto que o ciberespaço elimina as fronteiras geográficas, não
dependendo da atuação presencial dos agentes.
Neste sentido, Dulce Mazer, ao trazer à tona os efeitos da noção contemporânea das
cidades, como organizações culturais de um espaço físico interconectadas em rede por meio de
tecnologias de comunicação disponíveis aos habitantes, defende que “as práticas de consumo
112
musical mostram novos fluxos e usos sociais do território, como possibilidades de conectar-se
em redes aos modos de estar juntos”. Para a autora, esta forma de viver a cidade contemporânea,
que é um comportamento mediado, “tem um papel estruturador” e, sobretudo na relação com a
música, seu estudo traz a compreensão de uma (grande) “parte da rede comunicativa que se
forma na urbe e na cultura” (MAZER, 2017, p. 8).
Henry Jenkins cita constantemente como a interação dos fãs pode remodelar as práticas
da indústria, conferindo-os a qualidade de produtores, mesmo que em menor escala (JENKINS,
2009). Jenkins segue o raciocínio com a máxima “aquilo que não se propaga, morre”
(JENKINS, 2014), defendendo que no atual paradigma, ou seja, esta nova reordenação de
papéis entre fãs e indústria, é preciso se adaptar e repelir a lógica da aderência, que de acordo
com ele, atrasa a difusão de conteúdos na internet.
Segundo este raciocínio, sugere-se pensar que as relações entre artistas, público,
instituições de base, plataformas, entre outros agentes presentes em cenas musicais virtuais,
entendendo ou não o jogo da interatividade, são capazes de reconfigurar o carácter de uma cena
em âmbito local e até mesmo global, como coloca Pereira de Sá, “trata-se, assim, de um
processo altamente complexo, que pode deixar marcas e transformar de maneira definitiva a
própria identidade de uma cena local ou translocal”, atravessando assim a fronteira entre off-
line e online (2013, p. 32).
O presente subcapítulo tratará a respeito dos indivíduos presentes na cena musical rock
de Curitiba. São músicos, frequentadores de casas noturnas, proprietários e funcionários de
bares e outras demais instituições que estejam vinculadas com o fazer musical na cena rock da
cidade, jornalistas, produtores, empresários, agitadores culturais, políticos, professores, entre
outras pessoas ou grupos de pessoas que influenciam a cena musical em questão. Estes agentes
estão, sob a ótica aqui proposta, “musicando” na cena roqueira (SMALL, 1998).
É preciso ressaltar que há muitas frentes científicas disponíveis para pensar o indivíduo
e sua relação com a música, sobretudo na Etnomusicologia e na Comunicação. Para esta
pesquisa foi delimitado um recorte bem específico que atende aos objetivos propostos e permite
68
Os Etnomusicólogos escrevem sobre indivíduos em parte por uma questão de método, pois percebem que o
conhecimento ganhado durante a pesquisa não é produto de observação objetiva (não somente), contudo, é fruto
de interações específicas entre os estudiosos e os indivíduos numa comunidade em que eles se inserem para estudar
(RICE, 2014, p. 79).
113
mais objetividade e foco no tema principal. Por isso, também pelos dados autoetnográficos, foi
escolhido para esse subcapítulo um viés mais empírico, buscando um enfoque maior na figura
do indivíduo músico e nas comunidades formadas por eles. Ressalta-se também que, nas cenas
musicais, há variadas redes de relações envolvendo os indivíduos, muitas das quais não
necessariamente envolvem músicos, como é o caso, por exemplo, da relação entre políticos e
empreendedores locais, que não envolve diretamente a participação de profissionais da música,
embora estes estejam diretamente afetados.
Neste sentido, o objetivo deste subcapítulo é pensar o profissional de música e suas
relações com os demais agentes presentes na cena, lembrando também que um dos objetivos
específicos desta pesquisa é atualizar dados sobre a realidade da cena em questão, o que
subentende compreender o centro das relações que interferem no fazer musical da cena rock.
69
Etnomusicologia é a junção dos termos gregos ethnos, logos e mousiké. Ethnos significa “pessoas da mesma
nação” ou “pessoas de um mesmo grupo”. Logos significa estudo. Mousiké significa música. Etnomusicologia é o
estudo da música em pessoas de um grupo em comum.
70
“Som humanamente organizado” é a definição de John Blacking para música (BLACKING, 1974).
114
como um fenômeno comportamental, então, como isto está embutido nas sociedades e nas
estruturas sociais?
Segundo Christopher Waterman, “o objeto de interesse irredutível da Etnomusicologia
não é a música em si, [...] mas os sujeitos humanos historicamente situados, que percebem,
aprendem, interpretam, avaliam, produzem e respondem à música” (RICE, 2014, p. 24,
tradução nossa). Mais além, Rice adiciona que a Etnomusicologia também abarca nesta mesma
ordem de prioridade as comunidades baseadas em afinidades, alianças e afetos que podem
ocorrer, por exemplo, em torno de gêneros musicais ou através da associação desses grupos
com instituições (2014, p. 28). Com base nisto que foi elaborado este presente subcapítulo, uma
abordagem voltada para indivíduos na cena musical e suas comunidades circunscritas à cena
em questão.
O professor Dr. Vincenzo Cambria, presidente da Associação Brasileira de
Etnomusicologia (ABET) entre 2014 e 2016, trata da falta da abordagem das cenas musicais
por etnomusicólogos. Embora Rice (2014) destaque o surgimento de trabalhos
etnomusicológicos sobre cenas musicais, Cambria relata a ausência de preocupação por parte
dos etnomusicólogos em estudar o espaço urbano em toda sua complexidade, ressaltando que
os trabalhos na área são sempre voltados a dimensões “micro”, ou “macro”, ou direcionadas a
sistemas globais, mas sempre negligenciando a dimensão da cidade (CAMBRIA, 2017).
Tendo o foco em indivíduos e grupos, a disciplina entende que há um fim para o fazer
musical, isto é, há uma utilização da música em diferentes contextos, o que derruba a ideia de
que a música é uma forma de arte que é feita com o propósito em si mesma. Timothy Rice
explica que a música é um recurso de funções sociais e psicológicas; uma forma cultural;
comportamento social; é texto para ser lido e interpretado; configura um sistema de signos; e
também é arte (2014, p. 44). Cena musical nos parece pertinente à Etnomusicologia porque,
dentre outras interseções, também depende fortemente da dimensão social aplicada aos
contextos em que a música é empregada.
A noção da música como recurso social baseia-se nos usos e funções de Merriam
(1964) e está extremamente embutida no pensamento etnomusicológico. Muitas sociedades
usam a música para integrar a sociedade em torno de valores e comportamentos comuns. Pode
ser usada também como recurso comunicativo, na celebração de passagens de estações, ou
ainda em ritos de transição da infância para vida adulta, por exemplo (BLACKING, 1974). Há
também a noção do fazer musical como recurso psicológico, principalmente ao ser relacionado
a entretenimento, apreciação estética e expressão emocional (RICE, 2014, p. 48). Além disso,
existe a noção da música como um elo entre o social e o psicológico, por exemplo, aquelas
115
feitas para marchar ou dançar. Agir em conjunto no ritmo da música faz com que as pessoas
tornem uma resposta psicológica individual num recurso social que os leva a entrarem em
sincronismo umas com as outras e, por isso, fortalece ações em grupo (2014, p. 50).
A visão da música como uma forma cultural e comportamento social tem raízes na
perspectiva estruturalista de Levy Straus e baseia-se na argumentação de que tanto a natureza
da música como o comportamento social devem ser coerentes com outras formas culturais em
uma determinada comunidade. Após os anos 1990 os etnomusicólogos continuaram a ver a
música como uma forma cultural e um comportamento social, porém, influenciados pelo pós-
estruturalismo, começaram a rejeitar homologias entre estruturas sociais e musicais, visão que
permanece atualmente. Segundo Rice, esta linha de pensamento crê que a música produz cultura
ao invés de somente refleti-la (2014, p. 56).
A música pode ser entendida também como um sistema de signos, porém, diferente da
linguagem, o som humanamente organizado não possui signos da família dos símbolos. Por
fim, o entendimento da música como arte remete à discussão do próprio significado da arte. Em
linhas gerais, há duas noções de arte: o fazer habilidoso de alguma coisa e/ou, seguindo a linha
de pensamento Kantiana, liga a arte ao julgamento estético do belo, do sublime, do bom, do
agradável. A visão Kantiana foca na habilidade da arte em expressar emoções (RICE, p. 60).
Por outro lado, Rice explica que algumas culturas simplesmente não fazem julgamento estético
da música71.
Sob a visão de Rice foi exposta uma breve explicação do que é a Etnomusicologia,
quais seus objetos de estudo, o porquê de o foco principal ser em indivíduos e comunidades, o
que é música e em qual contexto ela costuma ser empregada como recurso, além de exemplificar
quais são estes recursos em questão.
Em linhas gerais, a música ganha relevância à medida em que é utilizada pelas pessoas
em sua vivência nas sociedades que se inserem. Na seção anterior, foi exemplificado que, para
os etnomusicólogos, a música não é uma expressão que tem fim em si mesma, ou seja, ela
possui significado e propósito para os seres humanos, fato é que está presente em todas as
culturas.
71
Por exemplo, houve um caso com David McAllister em que ao perguntar sobre o que determinada música
causava num ouvinte de Navajo, acabou o ofendendo, pois a música em questão era conhecida no uso da cura de
doenças mentais. Nesse caso, uma boa performance é aquela que funciona (RICE, 2014, p. 63).
116
Pensar a música como uma atividade com um fim para a sociedade e para os indivíduos
que a integram, nos leva para o debate levantado por Alan Merriam a respeito dos usos e funções
da música. Merriam coloca que a questão dos usos e funções é “um dos mais importantes
problemas na Etnomusicologia”, pois no estudo do comportamento humano é procurado
constantemente não apenas fatores descritivos sobre a música, mas seu significado, ao que
completa: “Nós queremos saber não apenas o que a ‘coisa’ é, mas, de forma mais significante,
o que isso faz nas pessoas e como faz”. A partir deste problema que surge a necessidade de
entender os termos uso e função da música. Segundo Merriam, há diferença entre os termos,
porém são conceitos complementares (MERRIAM, 1964, p. 209, tradução nossa).
O termo “uso” refere-se às formas pelas quais a música é empregada nas sociedades,
desde sua prática cotidiana como “uma coisa por ela mesma”, ou em combinação com outras
atividades72. Merriam cita como exemplo a música em serenatas de amor, a canção para
invocação de deuses, a entonação de melodias para chamar animais para o abate. Neste caso a
música está sendo usada em determinadas maneiras. O autor completa que quando a música é
usada em certas situações, pode se tornar parte delas. Seguindo por esta linha, o termo uso
refere-se à situação contextual em que uma música é empregada na ação humana (MERRIAM,
1964, p. 210).
O termo função se relaciona com as razões para o emprego da música e particularmente
com o propósito maior a que esta música serve. No caso da serenata de amor, por exemplo, a
música é usada para o cortejo, porém a função final seria a perpetuação da espécie; na música
usada para atrair animais ao abate, a função seria a produção de alimento; na música usada para
entretenimento, a função é causar divertimento. Há então, seguindo por esta linha de raciocínio,
uma relação entre uso como sendo os meios e a função como sendo os fins (MERRIAM, 1964,
p. 210).
Merriam coloca que o conceito de função foi dividido em quatro categorias por Nadel
em 1951. Ter função é usado como sinônimo de operar, ter um papel ou ser ativo; significa a
não aleatoriedade, isto é, “todo fato social tem uma função”; no mesmo sentido que é
empregado na física e na matemática, função denota interdependência entre elementos;
responde a um propósito definido (MERRIAM, 1964, p. 210-211). Mais além, segundo
Radcliffe-Brown, “função é a contribuição que uma atividade parcial dá à atividade total em
que esta é só uma parte” (RADCLIFFE-BROWN apud MERRIAM, 1964, p. 211, tradução
nossa).
72
Por exemplo, música usada para estimular exercícios físicos.
117
Para dar início a esta seção, sobretudo com o intuito de fomentar a reflexão principal
sobre a profissão músico, que vem sendo aos poucos elaborada no presente trabalho, será
utilizado a perspectiva de Adorno, da Escola de Frankfurt 73. Adorno, em grande parte de sua
obra, critica extensivamente aquilo que chama de “indústria cultural”74, que segundo ele,
falsifica as relações entre os homens e também com a natureza. Segundo Adorno a indústria
cultural “impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de
decidir conscientemente”. Mais além nesta reflexão, para Adorno, o ócio do homem é
aproveitado pela indústria cultural justamente para ajustá-lo ao trabalho (ADORNO, 1996). O
entretenimento seria assim buscado como um escapismo que tem a única função de
recondicionar o trabalhador para aguentar um novo ciclo laboral, que geralmente termina com
o final da semana, o que vai diretamente ao encontro das reflexões de Certau (1994) acerca do
cotidiano, as quais Straw (1991) utilizou para embasar suas lógicas de mudança em cenas
musicais.
Mais adiante, para exemplificar a crítica de Adorno nas práticas da indústria cultural,
é possível elencar a dimensão erótica, a qual é fortemente explorada nos produtos culturais.
Adorno coloca como exemplo as situações sexuais retratadas pelo cinema, mas mesmo na
música isto se percebe nitidamente. Tais situações comunicam imagens e sons eróticos porém
não são capazes de satisfazer o interlocutor com a realização daquilo que incitam. Ou seja, o
espectador assiste a uma cena de sexo em um filme, por exemplo, mas não pratica o sexo ali
sugerido. A crítica de Adorno está concentrada no não cumprimento da “promessa” colocada
pela indústria, está no fato de ela oferecer algo ao mesmo tempo em que o priva (ADORNO,
1996).
73
Iniciou-se com a fundação do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt em 1923, sob direção de Carl Grünberg.
Vários pensadores se destacaram, como por exemplo Theodor Adorno, Walter Benjamin e Max Horkheimer. A
escola de Frankfurt possuía uma linha de pensamento crítico “marxista”, não no sentido político partidário mas,
no que tange a um “sistema econômico, de uma determinada cosmovisão de um método de pesquisa bem definido”
(ADORNO, 1996).
74
Indústria Cultural é um termo empregado por Adorno para traduzir uma lógica comercial em detrimento dos
bens culturais. É, em poucas palavras, a comercialização da cultura, a visão da arte como produto e do uso dela
para obtenção de lucro. O conceito foi introduzido a primeira vez em 1947 para substituir o termo “cultura de
massa” pois, segundo Adorno e seu parceiro de escrita Horkheimer, o segundo daria a entender que trata-se de
uma cultura espontânea surgida do povo, quando de acordo com eles, a indústria molda e determina o consumo
cultural. Então o conceito de indústria cultural é para fomentar as lógicas capitalistas que englobam a produção e
comercialização da cultura por grandes veículos e detentores de direitos dessas produções. O uso por si só do
conceito já determina uma crítica à sobreposição das lógicas de obtenção de lucro pela prática cultural em si.
120
Na música isto é uma discussão não atual, mas que persiste com força e vai justamente
de encontro à análise daquelas lógicas de obtenção de lucro sobre bens culturais, que acontecem
frequentemente com a sobreposição de práticas extramusicais às práticas musicais. O erotismo
na música popular massiva é um exemplo claro disto, e é uma dimensão cada vez mais
explorada na produção de músicas com a função de entretenimento, como acontece atualmente
com os grandes hits comerciais vinculados aos gêneros do funk carioca, sertanejo universitário,
pop e até mesmo ao rock. O efeito disto, o qual é criticado por Adorno, é a criação de
necessidades ao consumidor - o vicia, o torna dependente e ansioso por algo que não se realiza,
mas que é fortemente incitado pela indústria.
Antes de adentrar mais afundo na questão que envolve o fetichismo na cena musical
rock de Curitiba, é preciso frisar que as críticas sobre a decadência do gosto musical são tão
remotas quanto à própria existência da música, ao que se sabe (ADORNO, 1996, p. 65).
Timothy Rice comenta que o interesse de como e por que os seres humanos fazem música já
data da China e da Grécia antiga (RICE, 2014, p. 10). Grout e Palisca ilustram esse fato com
um relato de que o próprio Aristóteles no séc. IV a. C. já criticara os excessos técnicos
supervalorizados em detrimento do fazer musical em si. Para Aristóteles o virtuosismo
exagerado era algo nocivo à música (GROUT; PALISCA, 2007, p. 18). É preciso ressaltar que
essa colocação de Aristóteles nos é pertinente porque a história da música em nossa civilização
tem seu início na tradição e mesmo na mitologia grega.
A linha de pensamento grega sobre a música era pautada na doutrina do ethos, que
levava em conta a possibilidade de efeitos morais e éticos, e mesmo psicológicos, decorrentes
dos fazeres musicais. Não só na Grécia antiga, mas também na China acreditava-se que a
música tinha um extraordinário papel cultural com implicação social, cosmológica, metafísica,
religiosa e política (RICE, 2014, p. 10). Seguindo pela doutrina do ethos75, Platão e Aristóteles
concordavam que a música imprimia forte influência nas cidades-estados e que era possível
produzir pessoas “boas” através de uma educação que combinasse ginástica e música, a
primeira ligada ao corpo e a segunda ligada ao espírito (2007, p. 20-21). Platão expunha que
“os fundamentos da música, uma vez estabelecidos, não deverão ser alterados, pois o
desregramento na arte e na educação conduz inevitavelmente à libertinagem nos costumes e a
75
Ethos em grego significa “costume”, “hábito” ou “comportamento”.
121
anarquia na sociedade”. Por exemplo, é desta época o ditado “deixai-me fazer as canções de
uma nação que pouco me importa quem faz as suas leis”.
Um dualismo no fazer musical entre sagrado e profano, ou ainda, adequado e
inadequado, se perpetuou pela história, como exemplificado pela forte preocupação da igreja
cristã durante a Idade Média em regulamentar o que era permitido ou não se executar nas
missas, pelo impacto do modernismo na arte nos movimentos do início do século XX,
fortemente combatido por regimes totalitários, como aconteceu na Alemanha nazista, por
exemplo, e no Brasil com o uso da música para fortalecer o nacionalismo durante o governo de
Getúlio Vargas.
A noção de que a música produz efeitos comportamentais se faz presente também
pelos ainda atuais debates acerca da música popular massiva e pelas críticas direcionadas às
estratégias comerciais da indústria cultural. A divergência entre os significados atribuídos pelos
gregos às práticas musicais, pode atualmente ser entendida como as tensões na arte entre as
correntes de pensamento que defendem a busca pelo belo, pelo sublime, pela ordem, pela
elevação espiritual em busca do divino, e as demais, que buscam o fazer artístico com a
desordem, o caos, o grotesco, o erotismo, a ostentação, ou a própria escatologia 76.
Aquele dualismo presente no pensamento grego acerca da música ainda persiste, mas,
de certa forma mais complexo pelos inúmeros processos de significação e ressignificação
proporcionados com o avanço das tecnologias e das comunicações. É neste sentido que, ainda
no início do século XX, Adorno, declarado admirador das opiniões de Platão (1996, p. 68)
aponta: “toda vez que a paz musical se apresenta perturbada por excitações bacânticas, pode-se
falar da decadência do gosto” (1996, p.65). A crítica de Adorno não está de todo modo
fundamentada no que ele julga correto gostar ou não, ou ainda na lógica do ethos grego, mas
sim na incapacidade do ouvinte em fazer o próprio julgo da música que ouve. Ele critica a
supressão do poder de escolha, que é um efeito da homogeneização promovida pela indústria
cultural, ao que coloca:
76
Um exemplo de como este debate é colocado frequentemente à tona, foi uma postagem do jornal O Estadão na
rede social Twitter, do dia 18 de Dezembro de 2017, em que destaca o posicionamento do músico e compositor
Lulu Santos ao criticar o videoclipe da música Vai Malandra, da cantora Anitta: "Caramba! É tanta bunda, polpa,
bumbum granada e tabaca que a impressão que dá é que a MPB regrediu pra fase anal. Eu, hein?" (Fonte:
https://t.co/u8MUUvtRbw). Em resposta a Lulu, o compositor Rogério Skylab declarou em entrevista durante o
programa The Noite, do dia 24 de Abril de 2018: “O fato da música popular brasileira ter regredido à fase anal, eu
vejo um grande avanço!” (Fonte: https://goo.gl/jPMDtV).
122
Adorno teceu várias críticas à música de entretenimento a qual, para ele serviria apenas
como plano de fundo. Em sua obra, faz uma reflexão entre o sistema de produção capitalista e
seus efeitos na música. Com isto chega à conclusão de que a música de entretenimento teria o
intuito, em sua maior parte, de preencher um “vazio do silêncio” que se instalara em pessoas
escravizadas por uma rotina criada pelo sistema. Decorrente disso, Adorno sugere que “se
ninguém mais é capaz de falar realmente, é óbvio que também que ninguém é capaz de ouvir”
(1996, p. 67). Além disso, o autor complementa que o prazer do entretenimento desobriga o
ouvinte de pensar no contexto, o que para ele, é uma condição da audição “adequada e justa”
(1996, p. 70).
O desprendimento do ouvinte pelo contexto da produção artística somado à regressão
da capacidade de ouvir contribui, neste sentido, para o consumo do sucesso, do “estrelato”, ao
invés da música em si, conforme aponta Adorno:
O qual (consumo do sucesso), por sua vez, não pode ser suficientemente explicado
pela espontaneidade da audição, mas antes, parece comandado pelos editores,
magnatas do cinema e senhores do rádio [...] o mais conhecido é o mais famoso, e tem
mais sucesso. Consequentemente, gravado e ouvido sempre mais, e com isto se torna
cada vez mais conhecido (1996, p. 74-75).
Nesse sentido, o momento da apresentação musical, por exemplo, tende a ser visto
não como o resultado de um processo de trabalho, mas como o trabalho em si, como
se para a sua execução não fosse necessário nenhum esforço laboral anterior. Essa
ideia também contribui para a fetichização do artista, como um ser com capacidades
extraordinárias, visão que elimina do artista suas necessidades humanas (REQUIÃO,
2008, p. 136).
77
REQUIÃO, L, P, S. “Eis aí a Lapa...”: Processos e Relações de trabalho do músico nas casas de shows da Lapa.
247. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2008.
124
influenciado por uma herança histórica do local em que é executado e por uma significação
afetiva em torno das práticas tradicionais, uma “emosignificação”, conforme Vergara coloca
em sua reflexão sobre o espaço simbólico e expressivo (VERGARA FIGUEROA, 2013, p. 35).
Pereira de Sá completa esta ideia ao frisar que uma cena, no sentido contrário às comunidades,
necessita da mudança, não da estabilidade das práticas para poder se referenciar e, para isso,
expõe um breve exemplo sobre a cena musical do rock brasileiro dos anos 1980, que tinha como
forte característica a oposição aos valores da MPB dos anos 1960 e 70 (PEREIRA DE SÁ,
2011, 151).
O conceito de comunidades de prática foi elaborado por Wenger em 1998 e, em linhas
gerais, são grupos que compartilham interesses ou uma paixão por algo que fazem” (TORRES;
ARAÚJO, 2009, p. 2). O termo está intimamente relacionado à aprendizagem porque, segundo
Wenger, à medida que as pessoas interagem regularmente em determinadas práticas, as
aprendem melhor. Por exemplo, John Blacking acreditava que a música é um atributo
fundamental da natureza humana. A partir disto, Blacking conclui que a especialização do
trabalho em grandes sociedades levou à criação de “classes” de músicos especialistas
profissionais e, logo “uma desmusicalização da maioria da população” (BLACKING, 1974).
Torres e Araújo explicam que, conforme a visão de Russell sobre comunidades,
“encontramos este conceito expandido para ‘comunidades de prática musical’” (RUSSELL
apud TORRES; ARAÚJO, 2009, p. 2), que seriam caracterizadas pela formação de grupos
dedicados à troca de experiências em música (BLACKING, 1995) 78. As autoras utilizam-se da
Canja de Viola, um tradicional encontro semanal de violeiros que acontece em Curitiba há mais
de trinta anos, para aplicar o conceito de Wenger.
Além disso, elas destacam que tais encontros, cujo propósito é o fazer musical, dão
ênfase na identificação e no cultivo social e cultural entre os atores presentes no Canja de Viola.
Este evento pode então ser caracterizado como comunidade, conforme Wenger, pois está
baseado no que Sawaia chama de “bons encontros”, atrelado à formação de identidade dos
atores envolvidos nas determinadas práticas (SAWAIA apud TORRES; ARAÚJO, 2009, p. 3).
Seguindo por este raciocínio, a noção de comunidade de prática está intimamente ligada à ideia
de identidade cultural e, no caso do evento citado, segundo Torres e Araújo, o fazer musical
“no domínio da música sertaneja, define a identidade deste grupo” (2009, p. 13). No âmbito dos
clubes musicais, ao tratar mais especificamente sobre cenas, Straw explica que ao unir consumo
musical com a “atividade de dançar”, se articula o senso da identidade, corporificando-o com
78
John Blacking, aborda os aspectos das “Experiências em música” em seu livro Music, Culture, and experience
(1995), onde constata que: “o mundo da música é o mundo da experiência humana”.
125
as notáveis e diferenciadas exibições de gosto. Da mesma forma, o clube musical serve para
tornar explícito a distribuição de conhecimentos e formas de capital cultural através dos vetores
de gênero, raça e classe social (STRAW, 1991, p. 380).
Música e identidade, sobretudo na Etnomusicologia, é um assunto que persiste desde
os anos 1980. Timothy Rice coloca que há preocupações dentro da disciplina sobre a influência
do fazer musical na formação de identidade de grupos e indivíduos (RICE, 2014, p. 71). No
âmbito das identidades culturais, mais direcionado à relação com a música, Simon Frith (1996)
explica que “identidade cultural” não se trata de um fenômeno fixo, mas sim, um processo de
construção e desconstrução. A experiência musical, segundo Frith, é um fator que contribui na
formação de identidade, que pode ser compreendida também como um “self-in-process79”.
Sob o mesmo raciocínio, Frith explica que a influência da música nas identidades pode
ser entendida como uma troca constante, que resulta do coletivo influenciando no individual ao
passo que o individual influencia o coletivo também (FRITH, 1996). Para Kathryn Woodward
e Stuart Hall, o carácter de troca constante de influências entre grupo e indivíduo fortalece o
argumento de que identidades culturais são fenômenos fluídos, estão sempre em transformação.
Mais além, os autores completam este pensamento ao explicar que a variação de acontecimentos
históricos, seus efeitos nas sociedades e o acúmulo de heranças sociais criam um ritmo
constante ao processo de formação de identidade (WOODWARD, 2007).
Rice aponta que este interesse acadêmico por música e identidades reflete uma
mudança da visão estruturalista para a pós-estruturalista, isto é, uma perspectiva que enxerga a
música como criadora de cultura e não apenas reprodutora, como já colocado anteriormente
neste mesmo subcapítulo (RICE, 2014, p. 72). Contribuindo para o argumento da fluidez das
identidades, Pereira de Sá explica que também houve uma mudança acadêmica para a
mentalidade “pós-moderna” ou “pós-cultural”, que é marcada pela crítica às metanarrativas da
modernidade e aposta no fim de “projetos” identitários estáveis. Segundo a autora, a disposição
de um indivíduo a se comprometer profundamente com movimentos musicais foi substituída
por “identificações transitórias”, o que permite maiores combinações de referenciais, dado ao
fato de que “a noção de autenticidade foi, definitivamente, descartada na contemporaneidade”
(PEREIRA DE SÁ, 2011, p. 151). Além disso, Pereira de Sá reforça o carácter fluido das
identidades:
79
“Ser em processo” (tradução própria).
126
identidades como algo engessado, que ‘é’ daquela forma. A noção ‘pós-moderna’
avança no sentido de que nada ‘é’ e sim ‘está’, dessa forma um jovem não ‘é’ punk e
sim ‘está punk’ (PEREIRA DE SÁ, 2011, p. 150)
Neste mesmo raciocínio, conforme apontado anteriormente por Frith (1996), Torres e
Araújo também expõem que há uma relação de mão dupla entre comunidades e identidades. A
comunidade ajuda a construir essas identidades e as identidades, por sua vez, unem a
comunidade. Pitre-Vásquez explica este fenômeno sob o viés musical, ao que coloca como
elementos identitários musicais:
Importante também ressaltar que a mesma relação de mão dupla que ocorre entre
identidades e comunidades, ocorre também entre lugares e indivíduos presentes nestas
comunidades.
Três elementos são fundamentais para caracterizar comunidades: (1) o domínio, que
se define pelo interesse em determinada competência, a qual possui um valor dentro do grupo
que a pratica e também estabelece fronteiras entre membros e não membros. Torres e Araújo
citam que a paixão pelo domínio é “frequentemente uma parte profunda das suas identidades
pessoais” e não tem conexão direta com a “expertise80” e sim com a capacidade dos atores em
desempenhar as funções intrínsecas à esta determinada competência (2009, p. 5). Por exemplo,
em uma roda de choro o domínio estaria atrelado à capacidade do indivíduo em executar o
repertório compartilhado, tal como coloca Cláudio Fernandes (2011) e não necessariamente à
sua virtuosidade individual.
O segundo elemento fundamental seria a própria (2) comunidade, a qual caracteriza-
se pelo engajamento de vários atores em atividades coletivas, pelo compartilhamento de
informação relevante, sobretudo pela interação em torno do domínio específico, resultando na
troca de experiências, que podem tornar-se parte do processo final de aprendizagem. Conforme
Torres e Araújo, a sensação de estar em uma comunidade é essencial pois é construindo
relacionamentos que se estabelece uma base sólida que torna a aprendizagem e a colaboração
entre os membros propícia (TORRES; ARAÚJO, 2009, p. 6).
80
Neste contexto, pode-se entender expertise como sendo o fazer extremamente habilidoso de um domínio.
127
O terceiro elemento seria a (3) prática em si, pois o fazer do domínio é o que diferencia
uma comunidade de interesses de uma comunidade de prática. O fato de os atores serem
praticantes do domínio, por exemplo a música, propicia o desenvolvimento de “repertório
compartilhado de recursos: histórias, ferramentas, maneiras de resolver problemas recorrentes
da prática”, entre outros (2009, p. 6).
Conforme o argumento anterior apresentado pelas autoras, uma comunidade de prática
se define pela ocorrência simultânea de um fazer, que reúne repertório compartilhado, atrelado
a um domínio específico, onde não há a necessidade de “expertise”, em um grupo engajado,
baseado na colaboração e na construção de relacionamentos em torno da prática em si.
Há também uma variação no tamanho em que comunidades de prática podem
acontecer, desde uma dimensão local, resumida a um conjunto mínimo de atores, como a prática
do worship em uma igreja evangélica exemplificada por Castro (2018), até a dimensão global,
que seria então o conjunto de variadas igrejas que tem em comum a mesma prática, por
exemplo. Não há também a necessidade destas comunidades estarem situadas fisicamente,
podendo ocorrer no ciberespaço, como é o caso de jovens escritores de fanfics81, organizados
ao redor do globo em meio virtual, conforme apresentado por Henry Jenkins (JENKINS, 2009,
p. 235). Além disso, podem ocorrer dentro de uma organização ou entre organizações, podem
ter orçamento direcionado às práticas ou ser completamente informais e “até mesmo invisíveis”
(WENGER apud TORRES; ARAÚJO, 2009, p. 6).
No âmbito micro, as estruturas de uma comunidade de prática podem ser divididas em
cinco partes de acordo com o grau de participação e pertencimento dos atores: (1) grupo nuclear,
que seriam as pessoas em que “a paixão e o engajamento energizam a comunidade”; (2) adesão
completa, que refere-se a membros ativamente envolvidos na comunidade; (3) agentes de
participação periférica, que seriam indivíduos com menos interação e autoridade, “talvez pelo
fato de serem novatos ou porque eles não têm muito compromisso”; (4) grupo de participação
transacional, indica pessoas de fora da comunidade mas que interagem com ela
esporadicamente; (5) grupo de acesso passivo, que não interagem mas têm acesso a produtos
(físicos ou intelectuais) gerados por determinada comunidade. (KIMIECK, 2002 p. 40).
Mais além, no âmbito macro, comunidades de prática podem existir a nível global e,
segundo Wenger, existem assim como “constelações”. Seriam, neste sentido, diferentes grupos
espalhados pelo globo compartilhando objetivos comuns, funcionando com um viés
colaborativo por meio da difusão de repertórios, conhecimentos e habilidades. Portanto os
81
Fan fiction ou “fanfic” é um “termo que se refere, originalmente, a qualquer narração em prosa com histórias e
personagens extraídos dos conteúdos dos meios de comunicação de massa (JENKINS, 2009, p. 380).
128
indivíduos podem, ao mesmo tempo, ser parte de mais de uma comunidade de prática
(RUSSELL apud TORRES; ARAÚJO, 2009, p. 19).
Diante desta exposição conceitual fomentada em Wenger (1998), é comum o equívoco
na utilização do termo “cena”, proposto por Will Straw, em detrimento de comunidades de
práticas musicais, como já abordado anteriormente. Isto se dá porque “cena musical” é,
conforme o próprio autor o define, um conceito extremamente deslizante (STRAW, 2006). Os
exemplos colocados resumidamente nos parágrafos anteriores ilustram necessariamente
comunidade de prática e não cenas – a Canja de Viola; uma roda de Choro; a prática do worship
em igrejas; comunidades virtuais de fanfiction. Em linhas gerais, cena musical é usado para
descrever diferentes práticas musicais que acontecem em um espaço geográfico específico. Para
Straw, cena difere em vários sentidos da noção de comunidade e, segundo Janotti Junior, um
desses principais fatores é o aspecto ativo das cenas musicais contra o engessamento geográfico
das comunidades (JANOTTI JUNIOR, 2012, p. 1).
Para Straw, o carácter das audiências se dá pela interação das várias instituições e
locais onde aquela música é disseminada: o ambiente escolar; o dance club urbano; o formato
de rádio. Esses espaços, moldados pelo seu local dentro da metrópole contemporânea e
alinhados com as populações em suas respectivas representações de classe e gosto, proveem as
condições e a possibilidade para que haja alianças entre estilos musicais e elos entre os mais
dispersos locais geográficos (STRAW, 1991, p. 384). Herchmann, ao analisar a noção de cena
coloca por Straw, afirma que o termo abrange “relações de todo o tipo que são construídas no
espaço”, do microambiente local até o macroambiente global. Ele ressalta, porém, que é
necessário levar em conta que “as apropriações e agenciamentos” que são produzidas em locais
diversos, “podem não ser exclusivos dos atores pesquisados” (HERSCHMANN, 2013, p. 49).
A isso Manoel Neto comenta sobre a diversidade musical de Curitiba (informação verbal):
[...] dentro daquilo que é visto em Curitiba, o museu (MUSIN) prova a diversidade.
Eu brigo com a ABERT82, com o poder público, com a Fundação (Cultural de
Curitiba), com a imprensa, eles falam o contrário e a gente prova que o que tem aqui
é diversidade. Eu tenho discos de tudo quanto é gênero, de tudo quando é etnia aqui
82
Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão
129
para dizer isso. [...] aí também tem uma briga política, por exemplo, por que no
governo de R83 teve espaço para a música paranaense nas escolas e no governo de B
não tem? Por que no governo do G não tem? [...] eu acho que em determinada classe
e bairros o jovem tem uma determinada preferência. [...] essa variante no meio de uma
população miscigenada do Alto Boqueirão, vai te dar 70% de axé, funk e hip-hop.
Isso tem a ver com o recorte de local e de redes de relação.
83
Os nomes de governantes foram ocultados com a devida autorização do entrevistado para evitar retaliações
judiciais.
130
relembra que o termo cena musical também é útil no debate sobre a “perda da relação natural”
da cultura com os territórios geográficos e sociais, o que é chamado por Canclini de
“desterritorialização” (2008, p. 309).
No sentido contrário da desterritorialização, cena musical também pode ser utilizado
no entendimento da “reterritorialização”, que são “relocalizações territoriais relativas, parciais,
das velhas e novas produções simbólicas” (CANCLINI, 2008, p. 309). Por trás desses espaços
há uma lógica de articulação que leva em conta fatores macroeconômicos e políticos que
circunscrevem os agentes da cena.
A manifestações musicais tentam se escoar de um jeito ou de outro. Esses espaços são
criados mesmo que contra a ordem vigente e as imposições do poder público e, a partir daí,
criam-se inúmeras tensões entre os agentes. Pereira de Sá exemplifica com o caso das raves
londrinas, que eram grandes festas de música eletrônica e aconteciam em galpões e fábricas
abandonadas nos arredores da cidade, pois além do terreno de Londres já estar amplamente
ocupado, havia também impedimentos jurídicos para a realização de eventos de tamanha
proporção, então para que estas festas pudessem ocorrer, alternativas foram criadas pelos seus
agentes (PEREIRA DE SÁ, 2011, p. 156).
Muito se ouve falar tanto em âmbito acadêmico, quanto na vivência dos espaços
musicais da cidade sobre termos como circuito e cena musical. Como já visto anteriormente,
tanto por Straw, Pereira de Sá e Janotti Junior, como também na presente revisão de seus
trabalhos em contextualização com o objeto desta pesquisa, muitos termos são empregados na
academia com uma conotação diferente da utilizada por indivíduos agentes na cena, mesmo os
profissionais, músicos, produtores, jornalistas, entre outros. É o caso, por exemplo, de cena
musical, que como já explicado e discutido anteriormente, há um significado deslizante mesmo
em meio aos professores da área e um uso também diferente por profissionais que, no caso de
Curitiba, referiam-se ao termo em alusão a movimentos, subculturas, tribos, identidades, o que
não condiz com a proposta inicial de Straw, a qual referia-se por cena, resumidamente, como
sendo a relação das práticas musicais vívidas em determinado recorte geográfico (STRAW,
2006, p. 7).
Segundo Micael Herschmann, nos trabalhos iniciais de Straw, na década de 1990, já
estava presente a ideia de cena musical como sendo um “espaço cultural” (HERSCHMANN,
2013, p. 44). O autor também comenta que no início do século XXI fez uma tentativa de
131
Quando mensagens publicitárias são duas vezes o tamanho das pessoas que as
observam, ou quando uma dúzia de conversas lutam contra uma guitarra amplificada,
o status da sociabilidade é alterado. Essas proporções são parte da dificuldade em se
84
“Nos indica, qué se nos permite – o prohíbe – hacer, qué papeles y qué personajes podemos realizar dentro de
él (lugar) como expressión de relaciones sociales”.
133
O segundo nível dessas relações de duplo sentido no espaço é definido por Vergara
como “espaço sistêmico”. Seriam então as representações mentais ou gráficas, ou ainda
digitais, que permitem o indivíduo se orientar na dimensão física dos lugares, como mapas,
GPS86, escalas, guias turísticos, rotas e demais informações. O nível sistêmico permite uma
noção em maior escala sobre estar em um local e as possíveis conexões deste ambiente com
outros territórios e lugares “articulando-os, configurando um contexto e uma perspectiva maior
para nossas localizações e deslocamentos, a partir da percepção e imaginação das distâncias” 87
(VERGARA FIGUEROA, 2013, p. 20).
Este nível faz uma aproximação entre a noção de macroambiente e microambiente
através do uso de escalas, é possível então ao indivíduo se situar com a extensão da totalidade,
desde nível local ou regional, até o global. Vergara adiciona também a variável tempo neste
nível: “distâncias podem também medir-se em términos de tempo ou duração de viagem”88
(2013, p. 21). Tal como coloca Will Straw, essa percepção, macro e micro da vida urbana, torna
possível mapear as “regiões sociais” da cidade e suas conexões e, a partir da ideia do nível
sistêmico de relações de duplo sentido entre indivíduo e espaço, verifica-se a relevância da
representação cartográfica dos territórios que as cenas musicais compõem (STRAW, 2006, p.
8). É por isso que no decorrer deste trabalho é apresentado alguns mapas de Curitiba e suas
regiões.
O terceiro nível colocado por Vergara é chamado “espaço simbólico e expressivo”.
Nesta relação entre indivíduo e espaço, tem-se o lugar como componente participativo na
construção de identidade, na sensação de pertencimento, na “estabilidade existencial do
indivíduo ao situá-lo em uma ordem fundamental baseada em sua localização no lugar” 89. Neste
nível a relação é “emotiva, expressiva e simbólica”, liga o espaço ao “ser” do indivíduo, a sua
identidade, que “pode simbolizar imaginariamente a origem e o projeto desde onde se vive e
imagina sua comunidade”. Este nível permeia o espaço físico e seus objetos, atingindo também
85
“When advertising messages are twice the size of the people observing them, or when a dozen conversations
struggle against an amplified guitar, the status of sociality is altered. These ratios are part of the difficulty in
analysing scenes, in determining which elements make up their foreground and backdrop”
86
Global Positioning System (Sistema de posicionamento global).
87
“Articulándolos, configurando un contexto y una perspectiva mayor para nuestros emplazamientos y
desplazamientos, a partir de la percepción e imaginación de las distancias”
88
“distancias pueden también medirse em términos de tempo o duración de viaje”
89
“estabilidad existencial al individuo al situarlo em um orden fundamental basado em su ubicación em el lugal”
134
90
“[...] asociado por Mauss y toda una tradición etnológica com el de cultura localizada en el tiempo y en el
espacio”.
135
5.3.4 Territorialidades
91
Segundo Vergara, “emosignificação” refere-se à fusão de significado e emoção (VERGARA FIGUEROA, 2013,
p. 35).
136
É o caso, por exemplo, do funk carioca, que possui uma relação de periferia com a
cidade, mas ao ser trazido para um âmbito de ampla exposição midiática, onde tem-se grande
adesão por parte das audiências, o mesmo gênero torna-se central. O mesmo raciocínio é
possível ser aplicado à música sertaneja que, há pouco mais de vinte anos ainda era
majoritariamente relacionada a uma noção pejorativa do caipira, um personagem periférico,
porém atualmente, através de uma “readequação” do estilo e ressignificação por efeito do
consumo por um público em sua maioria universitário, é um dos principais gêneros a
movimentar o mercado de música nacional, o que traz uma conotação de centro a este estilo.
Herschmann aponta essa necessidade em “dar conta dos intensos fluxos da sociedade
contemporânea” e que é preciso também o pesquisador se propor a trabalhar com termos mais
abstratos, tal como “territorialidade”, pois só assim será possível compreender em profundidade
o nomadismo presente na modernidade (2013, p. 51). A relevância em compreender estes
processos pode ser exemplificada como apontado pelo autor:
Um agravante que vem interferindo a vida social e sua relação com o espaço, bem
como a “‘equação espaço-tempo’” é colocado por Herschmann como o “intenso emprego das
novas tecnologias”, sobretudo as plataformas de redes sociais digitais, mas o autor chama a
atenção para o fato de que as relações presenciais, no espaço, são ainda de importância maior.
O fato de as relações interpessoais mediadas por gostos musicais e práticas comuns atreladas à
música estar “adquirindo visibilidade nas praças, jardins e ‘ruas-galerias’”, também chama a
atenção para a relação destas sociabilidades com a geografia e a arquitetura e, reafirmam a ideia
de que “estes elementos articulados à música constroem uma ‘paisagem sonora’ atraente, capaz
de mobilizar segmentos sociais significativos e que vêm proporcionando uma série de
benefícios diretos e indiretos aos atores locais” (2013, p. 53). De modo geral, entende-se que
estas atribuições de significado são fluidas, impermanentes, o que é decorrente de uma condição
natural da sociedade moderna.
137
92
EAD significa “ensino a distância”. Vale lembrar que o texto original de Levý, embora de conteúdo filosófico
ainda muito atual, data de 1999 e que na época muitas coisas que atualmente, 2019, são comuns, eram apenas
ideias sendo vislumbradas.
93
A Hotmart, por exemplo, é uma plataforma completa para hospedar e vender cursos online. Há inúmeros cursos
com professores de música altamente renomados disponíveis pela Hotmart a preço extremamente reduzido.
94
O Skype e o Zoom são duas ferramentas bem conhecidas deste quesito, por exemplo.
140
transmitirem em tempo real, via tecnologias de transmissão móvel, por meio de telefones
celulares, imagem e vídeo de seu cotidiano 95.
Apesar do exposto anteriormente, a substituição cria o seguinte paradoxo. Ao baratear
a comunicação e tornar desnecessário o tráfego físico das pessoas, melhorando a qualidade de
vida das pessoas pela redução de custos de transporte e também da necessidade de residência
em centros, o que normalmente é caro, a substituição também incentiva que as pessoas se
comuniquem mais. O paradoxo acontece porque, conforme Levý aponta, quanto mais as
pessoas se comunicam, mais elas se deslocam no espaço físico (LEVÝ, 2014, p. 193). Então,
segundo esta lógica, “longe de estabelecer os equilíbrios entre zonas geográficas, o uso
crescente do ciberespaço pode acentuar ainda mais as disparidades regionais (2014, p. 194).
A terceira categoria elencada por Levý é a assimilação. Se refere à comparação entre
“redes de comunicação interativa aos tipos de infraestrutura que já organiza e urbaniza o
território”, tal como vias férreas, autoestradas, etc. O autor critica veementemente a expressão
“autoestrada da informação” por deixar a entender que o sistema ainda não está construído,
dado ao fato de já estar sendo usado nos anos 1980 e também aponta que esta visão tira o foco
de real importância no debate, que é o âmbito social, cultural e político e não a infraestrutura
física da comunicação.
Levý completa a ideia ao citar que “os suportes técnicos não tem importância a não ser
na medida em que eles condicionam as práticas de comunicação” (LEVÝ, 2014, p. 197). O
autor defende o uso do termo ciberespaço e detrimento de “autoestrada da informação” porque,
segundo ele, o ponto fundamental é a forma de se usar a infraestrutura, de explorar os recursos
por meio de uma “inventividade distribuída e incessante que é indissociavelmente social e
técnica” (2014, p. 198).
Para Levý o principal a se levar em conta para evitar a falácia da assimilação, é a
inteligência coletiva, que conforme ele, “já está amplamente em prática”. O autor termina sua
reflexão sobre essa categoria explicando que “a relação entre o ciberespaço e a cidade, entre a
inteligência coletiva e o território, atrai em primeiro lugar a imaginação política” (2014, p. 199).
A isto sugere-se uma atenção especial, pois os efeitos desta dimensão política, atrelado às
possibilidades de discursos emergentes no ciberespaço, impulsionam uma hipótese de que
95
O Facebook lançou em 2015 a ferramenta “Facebook Mentions”, que na época foi liberada com exclusividade
para proprietários de páginas com grande número de seguidores. A partir do ano seguinte, em 2016, a ferramenta
foi incorporada à plataforma e qualquer usuário pode fazer uma transmissão ao vivo por imagem de vídeo e áudio,
desde que esteja conectado a alguma rede por meio de tecnologia móvel. É muito comum essas transmissões por
usuários presentes fisicamente em apresentações musicais, não só na cena de Curitiba, mas no mundo inteiro.
141
96
Lembrando que o texto original data de 1999, reforço que atualmente, em 2019, a maioria das plataformas já
oferecem ou já possuem estas funcionalidades incorporadas. Creio que o leitor contemporâneo já está familiarizado
com sistemas de avaliação de aplicativos, comentários em perfis de instituições e veículos de comunicação, grupos
de compra e venda e oferta de empregos em redes sociais digitais, portais de transparência, entre outros exemplos.
142
tecnologias na vivência dos indivíduos e, por consequência, nas cenas musicais. Isso se reflete
no que Canclini denomina por “heterogeneidade multitemporal”, que é consequência da
simultaneidade em que o antigo e o novo coexistem no mesmo tempo e espaço (CANCLINI,
2008, p. 74), como já abordado anteriormente em relação a escolha de repertório na cena
roqueira de Curitiba por ser um mix de hits de várias décadas, por exemplo.
5.4.1 Cadeia produtiva da economia da música
O presente subcapítulo buscará tratar a relação entre agentes na cena musical com a
passagem do tempo, sobretudo com as mudanças tecnológicas que interferem na participação,
na produção e na distribuição de bens culturais. Para tal, é necessário entender o conceito de
cadeia produtiva da economia da música. Segundo Prestes Filho, o conceito se refere a “uma
noção que pressupõe, para a elaboração de um produto final, o sequenciamento de diversas
fases de um processo produtivo” (2004, p. 29).
No caso da economia da música em si, a cadeia produtiva é um complexo híbrido entre
atividades industriais e serviços especializados que se relacionam de forma independente.
Conforme Prestes Filho, as atividades que a compõem são:
Neste trabalho, tanto a performance cover quanto a autoral estão no mesmo conjunto,
isto é, sob a condição de música independente. Por música independente entende-se aquela
produzida por artistas que não estão submetidos à subordinação com as grandes gravadoras,
comumente chamadas por majors. É possível, no entanto que existam artistas tanto cover
quanto autoral vinculados a essas corporações, que era o caso da cantora Cássia Eller e do cantor
Cazuza, por exemplo. A primeira foi uma artista e intérprete que prestava tributo cover a outros
artistas e o segundo um compositor e intérprete de suas próprias canções, ambos sob a direção
da mesma major, a Universal Music. No entanto, a atenção para este estudo está principalmente
nos espaços e redes ocupados por artistas desvinculados a grandes estúdios, pois aqueles com
filiação a estas gravadoras representam uma minoria das manifestações musicais.
Segundo Monteiro (2008), existem quatro níveis de artistas independentes: o músico
que exerce sua atividade de forma completamente autônoma, que arca com os custos e
97
Fatia de Mercado (tradução minha). Corresponde a um valor em porcentagem do quanto de um mercado é
ocupado por determinada atividade.
144
98
No âmbito musical, os artistas referem-se a merchandising como sendo aqueles produtos personalizados,
comercializados pelo próprio conjunto musical, como por exemplo cervejas, camisetas da banda em questão,
palhetas e baquetas, copos e demais utensílios.
145
99
Em 1911 a Casa Edison vendeu 840 mil discos (DELMIRO, 2001).
146
100
Termo em inglês que se refere a uma única faixa de música gravada.
101
Também conhecido como mass media ou broadcasting.
147
[...] ainda insatisfeitos com a produção musical das grandes gravadoras, um público
altamente intelectualizado, com baixo poder aquisitivo, predominantemente formado
por estudantes, estimula a criação de um espaço para promover artistas fora da ordem
mercadológica. Nesses termos, no final de 1979, por criação de Wilson Souto Jr. surge
o teatro Lira, que mais tarde assumiria como gráfica e adquiriria um selo fonográfico.
Fato contrastante e curioso é que, em 1982, o idealizador do Lira assumiria o cargo
148
Vicente (2006) explica que durante os anos 1980 houve a marcante falta de visão dos
músicos independentes aliada à dificuldade de distribuição e divulgação. Além desses fatores,
combinava-se o boicote das majors à cena independente. O autor cita alguns outros
componentes que prejudicaram a cena independente como um todo: uma forte recessão da
economia mundial, que atingiu o Brasil durante a década de 1980 e a metade de década 1990;
o atraso tecnológico brasileiro em relação ao mundo, já que não se produziam equipamentos de
áudio profissional na indústria local; havia um grave problema no fornecimento de matéria-
prima para o desenvolvimento de novas tecnologias. Neste sentido, pode-se concluir que a crise
econômica mundial foi acompanhada de uma crise na produção musical. Como as gravadoras
precisavam manter o ritmo de lucro mesmo num cenário de recessão, houve nesta época um
apelo muito forte para táticas que exploravam o fetiche na música, o que perdurou pela década
de 1990 e 2000 (MACAN, 2017, p. 11).
Durante a década de1990, já familiarizados com as lógicas de comercialização da
música, desenvolvida durante os anos 1980, houve uma maior profissionalização dos músicos
independentes. Muitos proprietários de estúdios menores eram ex-empregados de grandes
gravadoras, o que permitiu à cena independente um maior contato com as estratégias de
produção que a conectasse com as majors (MACAN, 2017, p. 12). Sobre o final da década de
1980, Paulo Bandeira de Mello, então diretor da EMI, explica que houve uma aproximação
entre a grande indústria e os estúdios indies (VICENTE, 2006). Talvez, uma das principais
mudanças nessa relação foi um maior foco de empresários independentes em captar e formar
artistas para grandes gravadoras.
Embora ainda sob o estigma de crise, os anos 1990 contrastaram da década anterior
em decorrência da implementação do plano Real em 1994. Segundo Delmiro (2001), houve um
período de ininterrupção do crescimento da indústria até 1998, onde a venda de discos, principal
atividade do ramo, rendeu 105 milhões de Reais. Neste período, a principal mídia física que
dava acesso ao fonograma era principal o CD102, mas ainda haviam LPs103 e fitas cassete no
mercado. Além disso, os custos de produção foram extremamente reduzidos por causa das
inovações promovidas pelas tecnologias de áudio digital, o que impulsionou a produção
102
O Compact Disc foi uma tecnologia de armazenamento de dados digital desenvolvido pela Sony Music e
colocado no mercado a partir do ano de 1982, porém alcançou popularidade nos anos 1990.
103
Long Play, é uma mídia analógica de armazenamento de dados no formato de um disco, produzida com plástico
vinil e desenvolvida no início do século XX.
149
mercado musical. O principal bem cultural comercializado pela indústria, que até então eram
os fonogramas gravados em mídia física, perderam valor comercial decorrente das trocas ilegais
online. Chris Anderson, então editor da Revista Wired, aproveitou este cenário para lançar a
Teoria da Cauda Longa (ANDERSON, 2006).
5.4.4 A Teoria da Cauda Longa: indústria fonográfica a partir dos anos 2000
produção atende e que, muitas vezes, não consegue ser abarcado pela grande indústria
fonográfica, ficando a cargo da indústria independente (ANDERSON, 2006).
Três fatores emergentes ao final do séc. XX são destacados por Anderson como agentes
niveladores das produções de nichos com os hits: (1) a democratização das ferramentas de
produção; (2) a redução de custos de produção decorrente da força anterior e da implementação
de tecnologias mais baratas; (3) a ligação mais assertiva entre oferta e demanda decorrente das
possibilidades promovidas pelo ciberespaço que, a partir da década de 1990 se tornou
amplamente acessível (ANDERSON, 2006, p. 50).
FIGURA 9 – FORÇA 1
FIGURA 10 – FORÇA 2
FIGURA 11 – FORÇA 3
Os efeitos destas três forças colocadas por Anderson são: (1) um aumento significativo
das produções de nicho em relação aos hits; (2) o aumento da variedade de produtos culturais,
o que diminui o esforço necessário para atingir mercados de nicho; (3) o desenvolvimento de
tecnologias de recomendações para forçar a demanda ao longo dos possíveis mercados; (4) a
aparente perda de interesse da audiência pelos hits e o aumento da demanda por produções de
nicho; (5) a aparente equivalência entre a soma do market share de nicho com o dos hits; (6) a
facilidade e maior liberdade do consumidor em encontrar o que deseja, sem a influência da
153
104
Em inglês peer to peer, refere-se a um sistema de trocas entre computadores onde cada máquina opera tanto
como cliente, baixando arquivos, como por servidor, hospedando e enviando arquivos a outros computadores
semelhantes.
105
Empresa do ramo de tecnologias digitais, famosa por inúmeras inovações no âmbito da microinformática.
154
FONTE: https://goo.gl/ynvgm1
106
Ouro, vendas acima de 500 mil cópias; platina, de um a dois milhões de cópias; multiplatina, de dois a dez
milhões de cópias; diamante, acima de dez milhões de cópias.
155
Por liberação do polo de emissão, de acordo com Lemos (2005), entende-se diversas
manifestações socioculturais contemporâneas manifestando-se na emergência de
vozes e discursos, anteriormente reprimidos pela edição da informação no mass
media. Conectividade, refere-se ao princípio de conectividade generalizada. Neste
sentido, tudo comunica e tudo está em rede: pessoas, máquinas, objetos, monumentos,
cidades. Reconfiguração: de práticas, modalidades, mídias, espaços, sem a
substituição de seus respectivos antecedentes. Por reconfiguração compreendemos a
ideia de remediação, mas também a de modificação das estruturas sociais, das
instituições e das práticas comunicacionais e culturais (MACAN, 2017, p. 17).
Assim, entende-se que tais fatores se tornam condição natural do ser humano
contemporâneo, conectado em rede e sugerem a readaptação constante da indústria do
entretenimento. Os anos 2000 foram palco de mudanças bruscas tanto para a indústria, quanto
para os indivíduos e os espaços que estes ocupam. Para as próximas mudanças, que acontecem
diariamente, entende-se que, principalmente para o indivíduo músico, é fundamental conhecer
estes fenômenos providos como efeito do ciberespaço, dentro e fora dele. Entendendo o circuito
156
musical também como uma possível extensão do espaço digital e das redes que o formam, junto
a todos os fenômenos expostos anteriormente sob a visão de Lemos (2005), a compreensão das
cenas musicais e da própria atuação da indústria fonográfica se torna mais complexa.
Lucina Viana (2009, p. 54) explica que as fases anteriores da indústria fonográfica se
dividem em: mecânica, elétrica, eletrônica e digital. A próxima fase, seria então a indústria “em
rede”, onde o consumidor é participativo e também produtor dentro das mesmas plataformas, a
hierarquia de produção e distribuição não obedece mais a lógica das fases anteriores e há o
surgimento de novas dinâmicas de mercado e também novas funções. Segundo a autora:
Então, de fato, o sistema todo que envolve esses diferentes negócios se tornou mais
complexo na segunda metade do séc. XXI, formando-se por “um conjunto heterogêneo de
agentes (empresas, indivíduos, e até mesmo o Estado)” que se articulam a fim de realizar
projetos específicos. A complexidade da nova indústria fonográfica se espalha na forma de uma
rede global. De Marchi aponta que o que garante o funcionamento desta organização em rede
são pontos de convergência denominados hubs, ou núcleos, podendo ser mais ou menos
dinâmicos, e dependem exclusivamente da conexão com outros pontos (DE MARCHI, 2016,
p. 194).
O autor reforça que o principal núcleo dinâmico da indústria fonográfica do séc. XXI,
sobre tudo nesta segunda década, são as empresas eletrônicas de música, as quais detém o
monopólio da inovação tecnológica, que no período anterior era propriedade exclusiva das
majors. Por exemplo, para se ter noção da abrangência de duas destas empresas, a sueca Spotify
e a francesa Deezer, até 2015 elas ofereciam, cada uma, mais de 30 milhões de fonogramas e
estavam presentes ao todo em mais de 180 países (DE MARCHI, 2016, p. 196). A partir deste
tipo de empresa que surgem novos produtos e serviços, normalmente difundidos por redes
sociais digitais de comunicação. Em consequência disso, são essas empresas as também
responsáveis pela expansão de novos mercados musicais.
De modo geral, De Marchi coloca que há uma colaboração entre os agentes
tradicionais da indústria e estas empresas, pois seu potencial de inovação decorrente da
compreensão rápida sobre as mudanças no mercado foi logo reconhecido (2016, p. 195). Um
exemplo de inovação por empresas eletrônicas de música foi a implementação e popularização
dos serviços de streaming107 nesta segunda década.
Ao citar os Digital Music Report (DMR) da década de 2010, De Marchi aponta alguns
possíveis efeitos da colaboração entre os agentes tradicionais com as empresas de tecnologia.
O autor explica que o streaming tem ganhado força, o que se reflete na diminuição de
downloads ilegais à medida em que o acesso à rede por banda larga se torna mais fácil e os
dispositivos de comunicação ficam mais rápidos. Ao que completa:
107
É um anglicismo comumente usado, refere-se à transmissão contínua de dados digitais que não obriga o usuário
a fazer o download dessas mídias, o que possibilita a recepção dos produtos audiovisuais à medida que estes são
consumidos. Algumas empresas do ramo são a Netflix, o Youtube, o Spotify, o Deezer, entre outras.
158
imprecisão com que o dinheiro é distribuído entre as plataformas de streaming, majors e artistas
(DE MARCHI, 2016, p. 202-203). A isso, o autor alerta para a necessidade de uma
reformulação das leis de direito autoral que levem em conta essa complexidade do ambiente
digital.
A ideia desta seção foi apresentar um panorama da indústria fonográfica atual, algumas
de suas possibilidades e mudanças que atinjam, sobretudo, o músico. De Marchi (2016) cita
vários pontos de tensão envolvendo artistas e empresas de música. De forma geral, conclui-se
que no desenrolar do séc. XXI é imprescindível ao produtor autônomo, que hoje representa
quantitativamente a maior parte das produções da indústria, estar ciente de seus direitos e
deveres, bem como se mobilizar para garantir melhores condições legais para sua ocupação.
5.5 A INTERSEÇÃO
6 RESULTADOS
Em meu trabalho anterior, fora pesquisado um recorte da cena musical de Curitiba com
base nas entrevistas dos músicos no acervo do programa de rádio e TV Ciclojam, entre os anos
de 1996 e 2005, como já contextualizado anteriormente. Tal estudo levantou problemáticas
inerentes à cena musical de Curitiba no contexto, relacionando principalmente aos meios de
comunicação vigentes nesta época e ao circuito de entretenimento noturno da cidade.
A partir de 2005, ano em que termina o acervo analisado do Ciclojam, diversas
plataformas digitais começaram a viabilizar a propagação de informação e conteúdo online,
revolucionando a forma de se produzir e se distribuir música, como já revisado anteriormente.
Com base neste dado, a presente pesquisa tem o objetivo principal de investigar e comparar o
paradigma atual da cena musical rock em Curitiba atual com o apresentado na pesquisa anterior.
Sobre a cena dos anos 1996 a 2005, embora houvessem opiniões mais favoráveis, a maior parte
dos depoimentos traziam críticas como as colocadas neste trecho
De acordo com este estudo, certamente havia, nos anos 1990 e início dos anos 2000,
uma problemática que sufocava a cena musical da cidade. A questão central do presente estudo
é, resumidamente, “no paradigma atual, os mesmos problemas ainda persistem?”. Esta questão
pareceu pertinente por causa da mudança promovida pela inserção das tecnologias de
comunicação online após 2005, as quais disponibilizaram novos espaços, o que já foi abordado
em outras seções. Então, o objetivo central do estudo é atualizar esta questão, fazendo uma
comparação com o que foi coletado no estudo anterior e contextualizar as possíveis diferenças
e interseções baseando-se em dados atuais.
Mais além, o estudo tem como objetivos específicos, trazer a perspectiva da
Etnomusicologia ao estudo das cenas musicais; propor uma abordagem sobre o conceito de
162
cena musical relacionando-o ao trinômio indivíduo, espaço e tempo; mapear o cenário de casas
noturnas relacionadas ao gênero rock em Curitiba; trazer reflexões atualizadas sobre a
identidade dos grupos musicais curitibanos organizados em torno do gênero rock; investigar se
o uso de tecnologias digitais contribuiu para a solução dos problemas levantados naquelas
críticas colocadas pelos músicos curitibanos no período entre 1996 e 2005 e, se sim, discorrer
como e em que sentido o uso dessas tecnologias alterou as relações entre os agentes da cena
estudada; desbravar novas problemáticas em torno da utilização de tais mídias digitais em torno
do cenário musical curitibano.
Além deste caso isolado com o músico amador que respondeu o questionário, foi
percebido, ao passo que se averiguava as respostas chegando em tempo real pelo smartphone,
mesmo com o anonimato dos participantes, a presença de um usuário aplicando trolling, isto é,
um troll de internet. De acordo com Thiago Amorim Caminada et al, (CAMINADA;
108
Aproximadamente, 83% das pessoas que tiveram acesso à pesquisa online são músicos que atuam com
remuneração em Curitiba, totalizando 132 respostas.
164
SCHLINDWEIN; JOHN, 2016, p. 13-14), trolls são indivíduos que perturbam o bom
andamento de uma comunidade virtual, por meio de postagens negativas, ou
descontextualizadas e tendem a se proteger pelo anonimato (AMARAL, 2013,p. 457). Por causa
da cultura participativa instalada nos sites de redes sociais, aquela onde o público pode interferir
no conteúdo produzido por terceiros, esses ambientes se tornaram propícios para a prática do
trolling109, que é um comportamento que envolve insultos e provocações em meio virtual,
através de postagens públicas agressivas, irônicas, humoradas e até mesmo ameaças.
Quando foi optado por disponibilizar o questionário desta pesquisa em meio virtual,
tinha-se a plena consciência da possibilidade de aparecer um troll, porém foi um risco aceitado
devido às possibilidades de alcance que o meio online oferece. Além disso, no período em que
o formulário esteve recebendo respostas, tive o cuidado de monitora-las à medida em que
chegavam, de modo que pudesse detectar um comportamento estranho, como foi o caso citado.
Este usuário em questão, na parte quantitativa do questionário, marcou o extremo de todas as
opções de alternativa, como por exemplo: “mais de 60 anos; pós-doutorado; mais de 20 anos
(de atuação no mercado em Curitiba); “sim, no Brasil inteiro e em outros países também (locais
em que se apresenta); mais de R$1000,00 (como média de cachê por unidade de show em
Curitiba); mais de 12 (como média de shows em Curitiba por mês); mais de 5 (sobre quantidade
de projetos musicais em que atua); mais de 10000 pessoas (como número médio de público em
Curitiba). Mais além, o usuário colocou respostas qualitativas como: “os cachês são muito bons,
bem acima da média do restante do Brasil”, sobre os cachês na cidade; “perfeito” ao se referir
sobre os relacionamentos entre bandas na capital, entre outros comentários sempre
ironicamente extremos e sem nenhum complemento empírico para embasar o ponto de vista.
Assim sendo, desconsiderei as respostas, o que, devido ao número de participantes do
formulário ser superior a 100, não altera a porcentagem correspondente nos gráficos gerados
com as respostas quantitativas. Mesmo assim, por conta desses dois casos, os valores
quantitativos serão sempre considerados aproximados, com uma margem de erro de 1%.
Com relação aos dados qualitativos, houve uma superprodução. Se no questionário
online fora deixado opcional para os usuários responderem as questões com textos descritivos,
é porque não se esperava tanto engajamento. Das 30 questões, 22 tiveram a opção para
complemento qualitativo. E, inesperadamente, a maior parte dos entrevistados contribuiu com
muitos relatos, o que gerou mais dados do que essa pesquisa consegue comportar. Além disso,
as entrevistas presenciais somaram aproximadamente cinco horas de duração, com mais ou
109
O termo é emprestado do inglês e significa “lançar a isca”. O troll de internet é aquele usuário que busca reações
de outros usuários por meio de provocações, normalmente com o intuito de se divertir.
165
menos 25 mil palavras transcritas. Há então, somado ao material utilizado no estudo anterior,
uma quantidade exorbitante de dados qualitativos sobre a cena musical rock de Curitiba na
atualidade.
A forma pela qual foi decidido tratar essa imensidão de dados, se consistiu primeiro
em uma organização destes relatos por ordem de semelhança. Assim, os relatos foram
agrupados em conjuntos de acordo com suas interseções. Por exemplo, na questão 18 do
formulário, “sobre o cenário musical de Curitiba em 2018, há espaço para as bandas tocarem
remuneradamente?”, as respostas foram separadas em um grupo com conotação positiva e em
outro com conotação negativa. Em algumas questões houve a possibilidade de o entrevistado
declarar neutralidade e, nestes casos, foi criado um terceiro grupo de respostas com a conotação
neutra. Esta foi a forma pela qual se atenuou a dificuldade em lidar com esta superprodução de
dados qualitativos. A escolha dos dados utilizados na pesquisa foi por ordem de relevância.
Como não é possível, por limitação de tempo e espaço, trazer todos os dados levantados na
coleta, optou-se por escolher apenas os mais relevantes, levando em conta a argumentação
coerente do entrevistado.
levando em conta a dimensão espacial da cena local e os indivíduos que a compõem, há muito
mais dados que complementam o que foi apresentado no estudo anterior, do que informações
discordantes. A maior exceção está, talvez, no novo comportamento estabelecido através da
difusão de tecnologias de comunicação digital após a segunda metade dos anos 2000, que foram
bem recebidas e incorporadas na dinâmica da cena. Porém, ainda assim, há uma descrença,
acompanhada de uma dificuldade dos músicos em assimilar essas inovações.
indicando 20,5% dos entrevistados; pessoas de 31 anos a 35, são 16,7% da amostra e totalizam
22 indivíduos; 21 pessoas estão na faixa etária de 35 a 40 anos, sendo 15,9% do total; foram 24
pessoas de 41 anos a 45, o que significa 18,2% da amostra; 17 músicos possuem de 46 a 50
anos de idade, correspondendo a 12,9% do total atingido; os restantes estão entre os 50 e 60
anos e foram 3 indivíduos, totalizando 2,3% das pessoas.
110
56,1% dos músicos entrevistados tem sua principal fonte de renda através de atividades musicais no circuito
de entretenimento (bares, pubs, teatros, casas noturnas, concertos, etc.) em Curitiba.
170
Dos entrevistados que não possuem as apresentações musicais como fonte principal
de renda, destacam-se os relatos: “já tentei ter a música como minha principal fonte de renda e
não fui muito feliz em Curitiba, hoje atuo somente na minha área de formação. Talvez algum
dia eu volte a tentar a ter a música como fonte principal de renda”; “professor de inglês, música
só não dá, e tem que ser cover”; “com o cenário musical curitibano, é pouco provável conseguir
se manter com a música, especialmente se for rock”.
Cyro Ridal, em entrevista para este estudo, sobre a década de 1990 e início dos anos
2000, época em que produziu o programa de rádio Ciclojam¸ relata que músico em Curitiba
informação verbal):
[...] é uma profissão, só que tem que tocar cover. [...] Se você encarar a música como
profissão, você tem que viver disso. Mas você tem que ir tocar em lugares. [...]
Normalmente as pessoas tinham isso e tinham uma atividade paralela. Isso era difícil
até para os músicos, que tinha que trabalhar durante o dia e a noite tocar e ensaiar.
Então banda, de verdade, tinha que ser um negócio.
Alvaro Ramos, complementa esta ideia explicando que mesmo atualmente: “é muito
difícil aquele artista de banda que só tenha a banda. Normalmente ele é profissional liberal que
trabalha em outra coisa e daí tem a banda como um hobby, um prazer, é ali que ele se realiza,
mas ele não pode viver daquilo” (informação verbal).
111
Soulution Orchestra é um conjunto musical fundado em 1999 pelo cantor e empreendedor Zé Rodrigo em
conjunto com demais músicos do Colégio Bagozzi.
171
Um fator interessante coletado na etapa quantitativa foi que 52,2% da amostra, pouco
mais da metade dos entrevistados, atuam em Curitiba por mais de dez anos. Um terço (33,3%)
dos participantes estão atuando no cenário musical curitibano há mais de 20 anos. 18,9%,
trabalham com música na capital paranaense entre 10 e 20 anos. Os que atuam de 5 a 10 anos
totalizam 23,5%. 14,4% estão no cenário musical da cidade entre 2 e 5 anos. Os que trabalham
na área entre 1 e 2 anos, correspondem a 7,6% do total. Apenas 2,3% dos entrevistados ainda
não completaram um ano atuando com música em Curitiba.
172
Um dia, com 14 anos de idade eu fui no parque Barigüi, estava tocando Patrulha do
Espaço e Blindagem. A hora que o Ivo Rodrigues abriu a boca eu falei ‘cara, será que
eu consigo fazer isso da vida?’ Porque eu nunca tinha visto uma banda ao vivo né?
Eu via o Queen, o Kiss na televisão e eu era um piazão. Com 14 anos, na minha época,
se jogava bola com o uniforme na rua, gol a gol, você não tinha acesso à informação,
não existia Youtube, internet, nada disso. Então eu vi o Blindagem, aí eu falei ‘puts,
eu queria ser isso, né’. Aí eu passei a levar de uma forma mais a sério. É o mindset
né? O que importa é sempre o mindset. Aonde você quer chegar. E não é o caminho,
mas a cabeça que você tem pra realizar aquele caminho que é o mais importante. Então
meu mindset mudou. Eu era office boy com 14 anos e eu guardava grana. Minha mãe
conta até hoje que o primeiro salário eu gastei com pratos. Eu comprei dois pratos
com meu salário todo. Todo meu salário foi pro negócio. [...] e aí na época, tinha uma
efervescência muito grande, porque nós tínhamos coisas que estão faltando hoje:
Festival de música do Positivo; Festival de música do Dom Bosco. O Palavra Viva e
o Música Viva do Positivo eram onde a gente se encontrava com 15 anos de idade. As
pessoas tinham lá 35 bandas nas escolas [...] aí eu chegava lá e estava o Diogo
Portugal, o Rogério Cordoni, o Amandio, pessoas que são tão elogiadas na área da
música eu conheci lá. Pessoas que não se conheciam, se conheciam tocando uns com
173
os outros e tal, essa interação é uma das coisas que faltam hoje e que na época existia.
Então com 15 anos eu já tinha uma banda com pessoas que eu nunca tinha visto na
vida, o que é uma coisa que é um dos problemas de hoje. O Youtube te dá a condição
de tocar um instrumento bem, mas a condição de chegar lá é a mesma, você tem que
se relacionar com as pessoas, é o difícil. E aí eu fui indo. Aí surgiram umas outras
oportunidades. Surgiu o Paulo Hilário Bonametti, baixista e fundador dos Metralhas.
Os Metralhas eram a banda mais importante dos anos 60 no Brasil e eles tiveram um
hiato. Em 89, mais ou menos, eles resolveram voltar. E o Paulo Hilário, que era um
músico reconhecido, compositor, é um dos ícones da nossa música. O filho dele tinha
minha idade na época, 14 anos, 15. E ele queria montar uma banda pro filho dele,
porque ele podia ajudar a colocar em gravadoras e tal. Coisa muito diferente de hoje
também. Você tinha que realmente conhecer as pessoas pra chegar nessas gravadoras.
Então com 17 anos eu entrei numa banda, se chamava ‘Sem Censura’. Aí gravei meu
primeiro disco, na época não se gravava afinal, tanto que era um vinil com uma música
de cada lado, era caríssimo. [...] E aí comecei a sentir, foi capa da ‘Viver Bem’ [...]
porque as pessoas não gravavam discos. Então eu tive uma trajetória de estar no lugar
certo na época certa mesmo. E aí foi indo, eu fui sempre trabalhando com música,
conhecendo gente, inovar, mas sempre tentando empreender alguma coisa, sempre
tive esse espírito. É aquilo que eu falo. Sabe quantos cantores que eu conheço que são
melhores do que eu? Todos. Eu aprendi a vender. [...] Eu ia ver né, o Rodriggo Vivazs,
por exemplo, que hoje é meu irmão. Eu ia ver o Gypsy Dream quando começou, eu
era fã. Eu não achava que poderia estar no meio deles. [...] Isso na verdade me levou
ao processo, tanto que, depois do ‘Sem Censura’, eu era baterista [...] a banda deu
certo durante um bom tempo e daí acabou, se separou e aí o Paulo Hilário me convidou
pra tocar nos Metralhas quando eu tinha 20 e poucos anos. Aí mudou completamente
minha vida. Eu entrei numa banda que todo mundo conhecia. Meu pai, quando eu
contei na mesa, que ia tocar nos Metralhas, ele achou que eu estava brincando. Então
aí mudou muito mesmo. Aí eu entrei no mercado profissional mesmo, de fazer 10
shows por mês, com cachê, andar de van, então eu pensava ‘como que o cara manda
uma van te buscar em casa, sou muito importante’ (risos). Eu fui entender melhor o
mercado, as oportunidades, fui entender melhor o processo, tudo. Fiquei nos
Metralhas 5, 6 ou 7 anos assim. [...] em 1999 eu dava aula de inglês em uma escola
aqui e Curitiba, o Colégio Bagozzi, eu dava aula de inglês para cursinho. E a galera
da fanfarra da escola, eles tocavam sopros e eles gostavam de soul e jazz, essas coisas.
Eles me procuraram ‘você não é músico?’. Eu falei ‘eu toco bateria e canto’. [...] aí a
gente fez o primeiro ensaio, tem uma história longa, mas isso virou a Soulution
Orchestra, que é a minha banda que faz 20 anos agora em 2019. 2500 shows. 14 discos
gravados. Duas vezes no Jô Soares, Fasutão, Via Funchal, festival de Rio das Ostras,
Festival de Buzios, de Jazz, Gramado, todos os festivais de jazz do Brasil.
6.4.2 “Sobre tocar em Curitiba” – questões em que o tema principal são os espaços da cidade
Sobre o nível de satisfação em relação aos festivais promovidos na cidade, 57,6% dos
participantes declarou que estão insatisfeitos com a promoção desses eventos na capital
paranaense. Aproximadamente 38% das pessoas está parcialmente satisfeito com os festivais.
O restante, 4,5% comentou estar satisfeito com esses eventos promovidos em Curitiba.
176
Confesso que estou um pouco afastado da cena musical, muito por conta das
frustrações de manter uma banda autoral na cidade. Era extremamente difícil
conseguirmos shows remunerados, tomamos alguns valores em cachês grandes.
Ganhamos alguns festivais, mas nada estancou o prejuízo que tínhamos ao tocar que
acabava por superar qualquer renda que tivéssemos.
Estamos vendo se alastrar uma onda de restrições para músicos em espaços públicos,
isso me incomoda bastante. Acho que deveriam haver mais festivais, mas que
partissem da iniciativa das próprias bandas que deveriam se unir mais.
112
Optou-se por subtrair qualquer nome de político para evitar possíveis censuras ao trabalho.
177
Com experiencia em Lei de Incentivo, o ciclo é sempre muito longo, a realidade é que
é quase impossível executar um projeto em menos de dois anos. com isso, a própria
proposta artística perde seu ‘momento’ e isso atrapalha bastante a dinâmica. Fora da
lei de incentivo é praticamente impossível levar adiante projetos que envolvem
pesquisa. Evito me lançar mais diretamente na rotina de performer profissional
justamente por não considerar justo os cachês praticados na cidade. Músico tem
dificuldade de sobreviver em Curitiba como performer.
Sem fomento algum ao cenário musical curitibano. O que não faz parte do
Conservatório de MPB, é outsider.
A verdade é que nos restam bem poucos lugares para shows, falta apoio e consumo
de música regional. Mas seguimos na luta.
Curadoria é feita por diretores de marketing e não por pessoas da área musical.
Outro dado percebido nesta seção é que alguns entrevistados não souberam opinar,
declaram não ter conhecimento o suficiente sobre festivais ou sobre como participar deles.
Alguns músicos emitiram opiniões que discordam das apresentadas anteriormente, como por
exemplo: “no cenário do blues isso está melhorando. Cada ano mais festivais e mais procura
por bandas deste estilo em eventos – apesar do cachê estar ultra defasado”; “não responsabilizo
as instituições”; “poucas são as pessoas que incentivam a cena ‘cultural’ (autoral) em Curitiba.
Há espaço para muita promoção e incentivo à música local, uma vez que esse gap se faz tão
grande na região”; “não tenho nenhum tipo de reclamação. Pelo menos comigo sempre as portas
se abriram naturalmente. Sou músico profissional há 30 anos”. Alvaro Ramos, comenta
(informação verbal):
Por exemplo, São Paulo é muito dependente das redes SESC. [...] Que levam os
artistas e ocupam aqueles espaços com editais com cachê. Se não fosse o SESC, ia ter
um grande contingente desse terceiro escalão que iam estar completamente órfãos,
sem nenhum tipo de amparo. É uma dificuldade grande de ser artista.
Em geral, o músico em Curitiba recebe por cachê, isto é, uma quantia em dinheiro
correspondente às horas trabalhadas em função da apresentação. Não há um salário nem um
vínculo empregatício com locais de apresentação. A maior parte dos músicos entrevistados,
55,3%, recebe de 0 a 200 Reais por apresentação. 14,4% recebe de 0 a 100 Reais por show;
40,9% relatou estar recebendo entre 100 e 200 Reais; 28% dos entrevistados comentou receber
de 200 a 300 Reais por apresentação; dos entrevistados, 8,3% disse receber entre R$300,00 a
R$500,00; 3,8% apontou receber cachês entre 500 e mil Reais; 4,5% disse que recebe mais de
mil reais por apresentação única.
178
Sabe como é, depende da casa e do dono/gerente. Tem lugar que paga bem e dá
comida e consumação independente do movimento, tem lugar que combina cachê,
mas quando dá pouco movimento quer pagar menos, tem de tudo;
Os cachês variam muito. Cachê fechado, geralmente pagam para banda. Minha banda
tem seis músicos. Geralmente quando contratam a banda a primeira vez, pagam
apenas $600 reais (dando em média 100 por músico). Geralmente varia entre R$100
a R$200 por músico na banda (com seis integrantes, pois eles contratam a banda e não
por músico). Quando nós produzimos nossas festas e eventos, acaba dando mais lucro,
mas por conta da produção, mas obviamente se tem mais gastos e mais trabalho.
Eventos fechados geralmente pagam mais que os bares;
A maior parte dos comentários na seção qualitativa expôs críticas e também denunciou
práticas abusivas com relação ao valor do cachê médio na cidade.
Em 1997 eu recebia R$ 150,00 de cachê, ou seja, o valor real do cachê diminuiu muito;
Não dá pra depender financeiramente desses caches, pagam pouco pelo trabalho que
dá;
A maioria dos lugares não se interessam a pagar um cachê mínimo. Sempre reclamam
que tá muito caro. Mas não sabem de todo o trabalho que o músico tem, o investimento
nos equipamentos para produzir um som de qualidade, o trabalho de montar e
desmontar tudo, a preparação do show como ensaios, repertórios customizados, o
transporte dos equipamentos além de tocar por duas, três horas as vezes sem intervalo.
Querem pagar uma miséria com a expectativa de receber um show de qualidade. E o
musico que vive disso, pra não perder qualquer dinheiro muito necessitado (porque já
é difícil fechar shows) ainda negocia abaixo do mínimo e toca praticamente de graça.
Uma vez que dá desconto, sempre querem o desconto. E ainda esperam o mesmo
desconto dos outros músicos porque ‘conseguem o fulano que faz por menos’.
Certamente se o cliente do bar tentasse negociar o preço que quer pagar da cerveja, o
bar não ia se render. Acho importantes todos os músicos se juntarem para estabelecer
um mínimo justo, para valorizar o trabalho e para ninguém sair perdendo por causa
de ‘fulano que faz por menos;
Os cachês não sobem há muito tempo. Tudo subiu. Comida, combustível, luz,
moradia, mas os nossos ganhos não são regularizados;
ao que ele responde: “exatamente! Porque não existe um environment113. Porque não existe um
mercado profissional. Acho que esse é um grande defeito do mercado curitibano. Não são as
pessoas, não é a música. O grande defeito do mercado curitibano é o ambiente não profissional”.
Zé Rodrigo corrobora uma ideia exposta na maioria dos comentários dos entrevistados na
pesquisa online (informação verbal):
Os donos de bar não são obrigados a pagar ninguém bem. Eles são obrigados a seguir
uma lógica que existe no mercado. Se o mercado começar a cobrar mais caro, eles vão
ter que pagar. E não vão chiar, porque nenhum dono de bar aqui de Curitiba é contra
os músicos. Só que aí ele mesmo vai poder levar artistas maiores. [...] É o que eu digo,
eu cobro caro pra tocar em bar. Mas o que acontece? Enche. Porque eu tenho uma
rede de pessoas que gostam do meu trabalho. E eu gasto dinheiro junto com o bar para
levar as pessoas lá. Então é diferente? É diferente sim. Mas eu nunca consegui passar
isso pra frente porque não existem pessoas que estão sequer dispostas a ouvir o que
eu tenho pra dizer neste sentido.
113
Do inglês, “ambiente”.
181
Quando tocava cover eram bem mais frequentes as apresentações, e também maiores
os cachês. Depois de um tempo fui procurando outras fontes de renda com a música
e preferindo tocar apenas em condições melhores, escolhendo me envolver apenas
com músicas autorais que gosto, pois o sentido inicial estava sendo trocado pela busca
de dinheiro, com isso cheguei a ficar muito tempo sem tocar;
Tento equilibrar cachê com qualidade de som, então não toco muito. Também percebi
muita panela em locais e entre músicos.
Poucos bares têm equipamentos bons. Alguns estão melhorando sempre. Alguns não
dispõe da mínima estrutura. A visão do empresário geralmente é de que é um gasto
passivo e não um investimento que vai aumentar a qualidade do seu ambiente. Mas
cada caso é um caso. Existem lugares com instrumentos danificados há anos sem
previsão de conserto, o que indica um desleixo. Alguns também quando algo é
danificado, a troca é muito difícil de ocorrer (quase todos);
Algumas casas têm equipamentos bons, mas falta um técnico. Muitas vezes o próprio
dono do local vai lá mexer. Outras vezes falta acústica;
183
Varia de um bar para outro, mas regularmente alguns bares disponibilizam somente
equipamento de voz e palco, sem amplificadores para guitarra baixo e etc;
Quando tem algo pra voz já ficamos felizes, mas geralmente a união entre bandas faz
acontecer principalmente na questão de equipamentos;
Nos locais que nos apresentamos sempre encontramos boa estrutura. Isso também é
uma exigência mínima da banda. Mas sei que, em muitos lugares, a estrutura deixa
muito a desejar.
Anteriormente já foi apontado que é comum o músico curitibano fazer parte de mais
de um projeto musical. 37,1%, a maior fatia, pertence a até cinco grupos musicais diferentes;
30,3% está em até dois projetos; aproximadamente um quarto dos entrevistados, 25,8%, faz
parte de apenas um grupo; 6,8% atua em seis ou mais. Como já discutido anteriormente, há a
necessidade do músico curitibano em atuar em variados conjuntos. Como complemento a esta
característica, o relato de um dos participantes ilustra os dados quantitativos apresentados:
“viver somente de um projeto é um desafio”.
O gênero musical mais comum executado entre os participantes da pesquisa online foi
o rock, totalizando 84,1% das respostas; 32,6% dos participantes respondeu que trabalham com
o gênero pop; a MPB totalizou 31,1% das respostas; 28% dos entrevistados apontou executar
músicas do gênero blues. Nesta questão o participante tinha a opção de marcar mais de um
gênero musical, ou de indicar outros possíveis gêneros. Os músicos indicaram os seguintes:
sertanejo; pagode; funk; samba; choro; folk; rap; metal; música latina; jazz; instrumental, rock
progressivo, medieval e renascença, flamenco, música erudita, reggae, gótico, ska, grunge,
shoegaze, hard’n’blues, post rock, soul, trilha sonora de filmes e jogos, klezmer, chicha, new
age, música ambiente, minimalismo, pop rock, ópera, música clássica, entre outros.
A maioria dos músicos que responderam o questionário, 59,8%, respondeu atuar com
ambos repertórios cover e autoral. Aproximadamente um terço dos participantes, 31,1% indicou
que atua apenas fazendo covers. A minoria, 9,1%, atua somente com música autoral.
186
Esta pergunta, com certeza, é uma das que mais gera debate entre os agentes do cenário
musical curitibano. Quarenta pessoas contribuíram com respostas qualitativas. Dos músicos que
187
concordam que existe espaço em Curitiba para apresentações musicais, muitos ressaltam a
necessidade de se trabalhar por nenhuma, ou por baixa remuneração. A seguir, alguns relatos
com este viés:
Ter tem, mas com baixa remuneração. A não ser por festivais e eventos maiores;
Para bandas de covers, acho que sim, para autorais está bem difícil, mas mesmo as de
covers não conseguem depender da renda exclusiva de shows;
Acredito que tem espaço sim, mas cada dia está mais difícil e cada vez se começa
mais de baixo. O mercado está bem saturado, o que prejudica as bandas novas e acaba
dando espaço somente para bandas com músicos ‘experientes’ e que possuem
indicação. A procura pelo novo acontece com muita pouca frequência;
Outra parte dos entrevistados defende que não há espaço suficiente para apresentações
musicais na capital paranaense, conforme os relatos:
[...] Acredito que as bandas maiores, e que estão há mais tempo têm oportunidade de
tocar. Para as bandas mais novas, sinto que é difícil conquistar espaço, apenas com
indicação;
Sem vínculo empregatício, na verdade a cena é um verdadeiro Deus nos acuda, cada
um por si, sem respaldo de absolutamente nada e nem ninguém;
Poucos, e é preciso indicar e ser indicado, é preciso ser parte de algum esforço coletivo
de artistas, é preciso falar sobre isso quando possível, é preciso tentar criar espaços e
parcerias com quem tem espaço;
Para música autoral incentivo zero, as rádios locais tem preconceitos com os artistas
do lugar e não os toca, bares com equipamentos e palcos pequenos, remuneração
baixa. [...] A prefeitura através da cultura poderia ser mais atuante e mais democrática
[...];
Hoje você não tem casas noturnas que têm som ao vivo porque as casas têm que ter
um preparo acústico para poder trabalhar, se não ela não pode ter som ao vivo porque
a polícia toma os instrumentos dos músicos. Já começa pelo próprio estímulo e
incentivo da prefeitura municipal a dar espaços alternativos e desburocratizar certas
situações [...] o que falta é uma atitude do artista de querer se colocar em um lugar
maior. Vai conseguir fazer isso aqui dentro? Não. Não conseguirá. Nenhum artista
conseguiu fazer nada estando só aqui em Curitiba, infelizmente. Embora pareça que
não, porque nós temos a internet, você coloca qualquer coisa que se faça aqui na palma
de qualquer outra pessoa no planeta, então ele está em qualquer lugar. [...] Não precisa
sair daqui para fazer sucesso. Sair daqui significa enfiar a viola embaixo do braço e
fazer carreira. Arriscar-se, fazer bilheteria, promover-se. [...] Os próprios grandes
artistas não estão mais fazendo tanto show como faziam antes.
Curitiba eu vejo assim, na minha opinião particular [...] no cenário do Brasil é assim,
não tem oportunidade para todo mundo. Eu estou indo morar nos EUA, já faço shows
lá há três anos, porque é um lugar onde existe oportunidade para todo mundo. A frase
que eu mais ouvi nos EUA foi ‘quem é que eu conheço que pode te ajudar?’. Essa é
uma frase que todo americano fala. No Brasil não existe isso. Porque não dá. Nem
recrimino ninguém por isso, eu acho que o Brasil não dá oportunidade suficiente para
as pessoas. Então se um cara está pegando uma oportunidade, ele está pegando a sua
oportunidade. Então não tem como ser colaborativo como nos EUA ou na Europa,
[...]. Eu acho que isso mudou muito nos últimos anos por causa do governo e da
administração, então isso foi piorando o cenário. Mas em Curitiba, eu acho que isso
existe há trinta anos. Não politicamente, ou por um cenário econômico, não por nada,
mas porque a cidade é muito pequena e porque o cenário é muito pequeno. [...] eu falo
isso da minha experiência. Em Curitiba então existe um cenário? Não existe um
cenário. Por que? Porque pra existir um cenário você precisa de colaboração. Você
precisa de pessoas ajudando a empurrar pessoas para cima. O que em Curitiba fica
muito difícil porque se um cara pegou uma vaga numa casa [...] aquela vaga seria tua.
Porque um bar só vai ter quatro sábados por mês. Como o número de casas aqui em
Curitiba - não é pequeno, mas mesmo assim não atende à demanda [...]. E eu vou
dizer, Curitiba tem uma música que não tem no Brasil inteiro. Em Curitiba não tem
banda ruim. [...] se chegou a tocar nas casas tradicionais, se chegou lá é porque a
banda é boa. Banda média fica pelo caminho em Curitiba. E mesmo com uma
quantidade tão grande de bandas boas, você não consegue criar um cenário em que as
pessoas consigam se ajudar. Isso não é culpa das pessoas. Então o que acontece, eu
mesmo tenho muitos amigos, mas não consegui ajudar todo mundo que eu queria no
cenário por causa disso.
No que tange este último tema no relato acima, 44,7% dos entrevistados não reconhece
uma identidade da música produzida em Curitiba. Aproximadamente 15% não sabe opinar e
40,2% acredita que sim, há uma identidade específica produzida na música da capital.
189
Em todas as décadas vai ter as tendências, você tinha essas coisas muito hardcore
tocando. Sugar Kane, por exemplo é uma puta banda [...]. Não tem KO é uma puta
banda que vem da influência punk rock. [...] Eu vi bandas muito legais, então tinha
tendências. [...] Se você pegar as fases do Ciclojam você vai entender 'o Cyro pegou
até Clone DT, música eletrônica’. [...] Ao mesmo tempo que eu pegava o rock rural
do Blindagem, ao mesmo que eu pegava o Black Maria que vem da escola cover
tocando as músicas deles, [...] ao mesmo tempo que eu pegava uma banda de indie
[...] como Swamps, cantando em inglês numa época em que era muito forte a
influência do indie rock, como hoje é. Então assim existiam várias vertentes e eu
nunca ia em cima de uma só porque eu tinha que mostrar como eram limitadas minhas
vagas, eu tinha que mostrar o panorama o mais aberto possível. Por isso que a versão
de 2004 lá no TUCA, o teatro da PUC, foi mais o lado MPB.
Eu acho que essa expressão de música curitibana, é uma expressão errada. Porque a
gente não faz música porque estamos aqui, ou a música daqui. A gente vive num
mundo globalizado que você traz o mundo na palma da sua mão em todos os telefones.
O Brasil tem mais de dois aparelhos por habitante. [...] A música que a gente faz é
uma música para o mundo.
você descubra que é de Curitiba. Você nunca sabe se é de São Paulo, Brasília, Rio Grande do
Sul ou Paraná, etc.”; “qual a banda autoral de Curitiba que desponta no cenário, que toca em
todos os bares, o público comparece, que toca nas rádios? Nenhuma”; “cover de tudo, falta
ousadia e originalidade”; “como as rádios locais não tocam artistas locais, não produzimos
artistas deixando assim de fomentar uma indústria de empregos e cultura”; “Curitiba se esforça
e tem bons músicos mas não consegue ter bons projetos de mercado uma música que se destaque
de algo que já tenha sido feito no Brasil”.
Por outro lado, alguns entrevistados acreditam que há uma identidade em formação,
se construindo e se reafirmando aos poucos: “certamente há uma identidade, mas não que seja
clara e facilmente reconhecível”. Alguns participantes reconhecem que alguns lugares da cidade
estão atrelados a gêneros musicais específicos, delimitados pela dimensão espacial e que isso
está conectado com uma identidade da cidade. Mesmo reconhecendo a existência de uma
identidade musical em Curitiba, algumas opiniões apresentam críticas: “sim! Há uma
identidade na tal ‘música paranaense’. E o ‘elo’ entre elas além do ‘sotaque musical’, é achar
bonito e exaltar a falta de qualidade. Quanto pior, melhor. Com pouquíssimas exceções”. O
relato a seguir reafirma que há uma busca por se criar uma identidade:
[...] existia uma composição inicial mais integrada entre portugueses e espanhóis ao
sul. Além dessa integração original teve uma colonização que é pouco contada, as
pessoas procuram partir direto para a questão de ‘leste europeu’, Europa, [...] mas a
verdade é que os grupos étnicos que estiveram aqui junto com os negros, os indígenas,
que já estavam além de portugueses e espanhóis, são basicamente árabes, judeus e
ciganos. Aí vai ter várias ondas migratórias. [...] Curitiba tem um problema, é grave.
[...] defina a identidade de um Curitibano. [..] É muito parecido com aquele filme
‘Gangues de Nova York’. [...] aquele monte de grupo que não se entende, quebram o
pau o tempo todo, todo mundo fechado em suas panelinhas. Eu falo isso pra dizer o
seguinte: esta composição teve em poucos lugares. Não é todo lugar que tem essa
construção. Aí há diversidade de ideias. É um traço forte da região. Por que que Nova
York, São Paulo são uma coisa e aqui é outra? Porque essa composição traz traços,
por exemplo os portugueses, no ciclo da erva mate, trabalhavam seis meses e seis
meses não trabalhavam, apesar de aqui ter menos força escrava, eles trabalhavam
pouco, mas trabalhavam. [...] Aqui o cara trabalhava porque tinha menos força
escrava. [...] Então já ficou isso do ‘mito do trabalho’. Só que eram seis meses sem
trabalhar. [...] Quando começa a chegar outros grupos (de imigrantes) eles acham, o
alemão e tal, que o polonês trabalhava pouco, só que o polonês achava que trabalhava
muito, ‘esses caras sempre estão nos prejudicando’ e achava que o português, que era
o dono das terras, era um vagabundo. [...] obviamente, a partir disso, começaram a
aparecer tensões sociais. [...] Se você pegar essas tensões sociais que apareceram a
partir deste cenário que eu estou te dizendo, você imagine depois os grupos tendo que
construir diante dessas divisões, e as elites locais eram donos das terras, das erva
mateiras, donos de um monte de coisas. Os grupos começam a ter muita desconfiança
também porque tinha preconceito. Então, por exemplo, tem uma briga com o lado
hispânico, com a revolução federalista. A companhia Maragatos, que era Jacobina,
portanto de esquerda, era uma companhia espanhola que operava no Brasil no
comércio de cargas, valores, tropas e tal, é expulsa pelo Marechal do Brasil (Floriano
Peixoto), ele tinha laços fortes de parentesco até aqui no Paraná, isso deu problemas,
aí teve um preconceito com as famílias que tinham a origem um pouco mais hispânica.
Só tinha seis famílias alemãs de fato aqui, que eram alemães, alemães mesmo, de
cidades que hoje são alemãs e que tinha algum dinheiro. [...] As outras famílias eram
do império Austro-Húngaro e de várias regiões, desde Prússia à Polônia, Romênia,
um caldeirão. [...] Esses países mais ao leste europeu era mistura com turco, com
cigano, não têm nada de alemão. Só que esse pessoal se dizia alemão. Por causa da
emissão de papéis. [...] uns eram da Tchecoslováquia, mas esse país tinha outros
nomes antes, depois virou República Tcheca, depois divide, aí são mais sete países. A
Polônia andou no mapa! [...] A Polônia nem ocupa o mesmo lugar de onde era como
nação. O volume de confusões que teve, as guerras do século XIX na Europa [...] o
pessoal que veio para cá era um monte de coisa que nem eles sabem. Curitiba já tem
um problema grave de identidade porque essas pessoas que vieram pra cá, vieram com
falsas promessas de riqueza, de lugares que foram devastados em guerra, que teriam
mudanças de territórios, e eles não sabem de fato as origens. [...] O ponto é que
Curitiba tem uma ‘fantasmagoria’ da sua identidade, da sua Cultura, porque ela se
prende em coisas que não são reais. Por causa desses conflitos que te falei: os
territórios de onde vieram. Então por mais que tenha uma identidade de grupos que
são bem definidos, árabes, por exemplo, tem muita gente que confunde por libanês
[...] e na verdade são dezenas de povos e nações antigas. E do outro lado, um
apagamento desses grupos que estavam antes, índios e negros, devido a uma estratégia
de governo, já no Império e depois na República, de recolonizar o sul do Brasil para
que não tivesse mais divisão do país, como aconteceu do lado hispânico. Isso tem a
ver com a questão das invasões napoleônicas na Europa. Quando o Napoleão invadiu
tudo, o governo português fugiu e aqui não ‘rachou’ porque teve imperador. [...]
Vamos falar de Curitiba especificamente. Aqui era um lamaçal pobre. Deram o status
de capital por causa de uma briga política entre Paranaguá e Lapa. Não queriam que
fosse para a Lapa aí apoiaram que fosse para Curitiba. [...] Os caras chegam numa
cidade fria, um baita de um banhado, não tem riquezas naturais, um monte de conflito
étnico, todos xingando um ao outro, cheio de preconceito, que tipo de sociedade vai
se formar daí? Laços rachados, mal humor, cidade fria, é provado essa coisa de que
192
Em consonância com este dado colocado por Manoel Neto, 59,1% dos entrevistados
na pesquisa online acredita que o relacionamento entre os grupos musicais em Curitiba é
regular; 24,2% indicou que o relacionamento entre os músicos é bom; 14,4% aponta que é ruim;
apenas 2,3% considera o relacionamento entre bandas ótimo.
GRÁFICO 25 – OPINIÕES SOBRE A QUALIDADE DOS LAÇOS E AFETOS ENTRE GRUPOS MUSICAIS
Trinta e uma pessoas complementaram com dados qualitativos. Dos músicos que
consideram os relacionamentos bons ou ótimos, seguem os relatos mais relevantes:
Em geral o pessoal se respeita bastante e tem amizade. Alguns laços são bem fortes,
afinal estamos todos no mesmo barco. Há quem não se dê bem com ninguém e há os
que não se dão. Mas isso em geral acredito que é exceção. Um exemplo são os eventos
beneficentes em que várias bandas (umas 15 ou 20) se unem por um motivo maior;
Dentro da minha bolha social vejo várias interações, inclusive com dança, pintura, etc.
Acho que esse relacionamento com outros artistas é o que faz a coisa fluir, possibilita
chegar em condições melhores. Conforme vamos percebendo vamos nos relacionando
melhor também. Mas estou há pouco tempo na cidade.
Existe há muitos anos uma rixa idiota entre o cover e o autoral, porém ao meu ver,
todos são livres para escolher onde atuar. Existe público para todas as tendências.
Acho essas rixas ridículas e coisa de quem não tem o que fazer. Geralmente são os
músicos do autoral atacando os músicos que fazem cover. Eu faço os dois sem nenhum
problema. E geralmente aquele que reclama, tem seu trabalho autoral bem precário,
pra não dizer ruim. Quem se realiza com o que faz, não precisa atacar ninguém;
Gostaria de ver mais cooperação entre as bandas no sentido de dividir mais os espaços.
Tocar mais junto, se misturar mais;
Depende muito de banda pra banda, são pessoas isso torna sempre algo complicado,
existem bandas que são parceiras ajudam indicam, e outras que só querem se
aproveitar;
Curitibanos não têm relacionamentos com muitas pessoas, e no meio musical não é
diferente, além da questão ‘concorrência’ por espaço nos bares da cidade que não são
poucos, porém tem uma historinha de que se tocar aqui não toca lá, isso parte dos
donos de alguns bares tradicionais da cidade;
Como uma nova banda acho difícil entrar no círculo das bandas estabelecidas na
cidade!;
Eu tenho uma teoria de que a falta de oportunidade determina que as pessoas tenham
que lutar pelas oportunidades pegando sempre um espaço que poderia ou deveria ser
de outro artista. Portanto, ao conquistar um espaço no mercado as pessoas não ficam
muito felizes por você porque, a grosso modo, este espaço deveria ou poderia ser
delas;
Existem muitas rixas bestas, rivalidades tortas. Quanto antes o cenário perceber que
precisa é unir forças, tanto mais rápido se dará o salto de qualidade nos hábitos de
produção musical da cidade;
194
Acho que não há união entre os músicos/bandas locais, isso é um dos principais fatores
que levam a serem mal remunerados e reconhecidos, enfraquece o movimento;
Como sou novo na cena e minha banda também, vemos tudo de fora. Vejo como uma
cena que já existe a algum tempo que está se enfraquecendo, onde existem muitas
panelinhas e picuinhas, com muito ego e pouca ação. Mas também enxergo uma nova
‘safra’, onde existem músicos que se ajudam e apoiam, e veem tudo com olhares
otimistas e que têm ‘muita lenha pra queimar’ e muito pra contribuir.
Ivan Junior114, em entrevista para este estudo, comenta o assunto (informação verbal):
O problema é que são pequenos grupinhos de duas ou três bandas que se juntam e vão
fazendo acontecer à sua maneira. [...] poderia ser maior, poderia ser mais abrangente.
Mas aí tem as diferenças de gênero, [...] amizade, mas de alguma forma ou outra, vão
se movimentando. É sempre uma conta de soma, nunca é divisão. [...] quando você
gosta de uma banda você pensa ‘a se tivessem mais músicos assim’. Quanto mais
daquilo você tiver, mais você vai querer. [...] É bom pra todo mundo. Para o público
também. Se uma banda é muito sozinha, isso não é muito bom. Ela precisa de mais
gente pra suportar aquela rede que ela está construindo. Dividir o consumo. [...] Sim,
se as bandas fossem mais unidas, com certeza elas teriam mais público e seria melhor
para todo mundo.
114
Músico e empreendedor na área de Marketing Musical em Curitiba.
195
Sim, me parece que, de um modo geral, cada vez mais. Cito uma iniciativa do JukeBar
de ter playlist com bandas curitibanas, o Encontro de Compositores do Coletivo Água
Viva, as movimentações dos coletivos locais em geral. É preciso também se atualizar
e compreender as mudanças de relação com a música hoje em dia. Penso que no Brasil
todo a música está sendo ouvida mais online que presencialmente, e o engajamento
do público muitas vezes se dá por meio de manifestações nas redes sociais. Penso
também que as mensagens e o que o artista transmite além do som importam cada vez
mais, a postura perante os acontecimentos, o envolvimento com o que acontece na
cidade, a exposição na internet, o conteúdo das letras. O que me faz decidir se vou ou
não a algum show geralmente são os preços do local e a facilidade do transporte,
porque existem várias opções de música na cidade, mas nem sempre o evento é
acessível para todos. O artista que se envolve em eventos acessíveis também constrói
um vínculo mais forte com o público.
Por outro lado, a maioria dos entrevistados responde que não há um vínculo forte entre
público e artista, ao que argumentam nos relatos:
Não valoriza as flores do seu quintal. Não é obrigado a gostar, porém age naquela de
‘não ouvi e não gostei!’;
Apenas uma minoria acompanha e fortalece a cena local. A grande maioria (pelo
menos no que eu vejo nos shows que eu faço) vão mais pelo status do lugar e da banda;
Santo de casa não faz milagre. Infelizmente o Paraná não respeita os músicos locais
como acontece com os artistas que vem de fora;
Curitibano não gosta de prestigiar músicas autorais. Muito difícil achar público para
aderir;
Curitiba ainda vive numa urbanidade um tanto provinciana. Tem um grupo pequeno
de pessoas que está em todas, que compreende o que está sendo produzido. Mas em
geral, a população não é ligada de fato em cultura, só em consumo da indústria cultural
de massa.
Manoel Neto completa esta ideia de Curitiba como “província” com o seguinte comentário:
Curitiba é provinciana no sentido de que sempre olha para a “capital”, que é São
Paulo. Mas também tem o bairrismo de dizer que o daqui é melhor. Mas é dizer sem
saber. Por falta de experiência. Desconhece do mundo então fala que daqui é melhor.
Aí você vai ver do que falam, é de um prato ligado a uma identidade étnica, é de um
parque, é de um sistema de transporte [...] - os mitos de Curitiba, o mito da cidade
modelo (DE OLIVEIRA, 2000). Denninson de Oliveira detona, mostra que tudo não
passa de propaganda e revela este mal-estar, de que Curitiba tem um bairrismo às
avessas porque fica trabalhando com mitos e não valoriza os artistas, a identidade e a
cultura. No entanto as atitudes deles, os artistas, são todas de copiar coisas
ultrapassadas de cenários de fora, que é atitude da província. Então, toda a galera de
vanguarda, underground, experimental, fica totalmente deslocada, porque há uma
divisão clara e na maioria da sociedade e nos populares, ou seja, estão criando coisas
196
pra ninguém porque o que eles fazem não dialoga com a sociedade. Esse é um tipo de
problema local.
A maioria dos músicos que participaram da entrevista online, 56,1%, respondeu que
costuma se apresentar para público de até 200 pessoas. 11,4%, se apresenta para até 50 pessoas;
44,7% se apresenta para público entre 50 e 200 pessoas; 27,3% comenta que as apresentações
costumam ser para público de 200 a 400 pessoas; 14,4% costuma fazer shows para uma
audiência de 400 a 1000 pessoas; 2,2% disse que se apresenta em locais que acolhem de 1000
a 5000 pessoas; ninguém marcou a opção que indicava mais de 5000.
6.4.3 “Música e mídia em Curitiba” –relação dos músicos com os meios de comunicação
As redes sociais são uma ótima ferramenta de vender sua imagem profissional se
souber utilizá-las;
Essencial demais. O marketing hoje é em maior parte digital, em qualquer ramo. Seria
impossível nos dias de hoje um artista se lançar sem um bom gerenciamento das
plataformas e mídias sociais;
115
Termo em inglês que remete às redes de relações envolvendo contatos profissionais.
199
Sou da geração que viveu antes da revolução digital. Mesmo com todos os problemas,
é incomparável o nível de investimento (finanças e esforços) para ter o mesmo alcance
quando comparamos com o advento das plataformas digitais;
Ferramenta essencial não só para projeto musical, mas como para qualquer segmento.
Todas pessoas estão conectadas, as mídias convencionais já não têm mais força;
Hoje as plataformas digitais são a melhor e mais barata maneira de chegar ao público-
alvo da sua música. Costumo fazer um investimento mensal de boa parte do dinheiro
que ganho nas redes sociais no dia porque considero isso fundamental para a saúde do
trabalho nos tempos atuais;
Se você não tem um trabalho bem feito nas redes sociais, dificilmente conseguirá bons
trabalhos. Através das redes sociais também é possível angariar público, que começam
a comparecer aos shows e se você leva público pro show, não fica mais tão dependente
dos donos dos estabelecimentos pra sobreviver.
Penso que é raro trocar outras possibilidades de programação artística para ir assistir
algo sem nenhum conhecimento prévio, sem nenhuma dica do que vai ser. Mais raro
ainda topar ir a um evento sem nenhum conhecido que tenha te convidado -
frequentemente usando as redes sociais. Porém, ao mesmo tempo em que ouço muitas
músicas através da internet, sou também colecionador de vinil e por vezes me canso
de estar sempre olhando para telas. As redes sociais têm sido essenciais para a
comunicação, mas quem se comunica bem sem elas certamente poderia ficar sabendo
de shows e ir sem mesmo saber se foram divulgados online. Apenas me parece cada
vez mais raro. No entanto, o excesso de uso das redes sociais causa um movimento
contrário, e divulgar apenas online não atinge a todos, é preciso também continuar
falando pessoalmente. Eu tenho utilizado as plataformas sociais principalmente para
divulgar sons gravados em casa, e penso que eles ajudam as pessoas a se interessarem
e procurarem por si os shows;
Acredito que seja uma faca de dois gumes pois a internet é um caminho de declarações
não abertas sem o mínimo de pudor, então se você faz um bom trabalho com qualidade
consegue um bom retorno;
Sim e não. Hoje é obrigatório ter esse movimento na internet. Mas bandas com
marketing excessivo em detrimento da qualidade musical fazem mais sucesso pelo
movimento midiático do que musical.
200
Há, neste sentido, também o posicionamento crítico perante o uso das redes. Alvaro
Ramos aponta uma de suas percepções sobre o uso de mídias sociais no meio musical: “essa
geração mais nova já tem a compreensão de que essa mídia é uma coisa obrigatória. Traz o
multipista no seu celular. Há uma compreensão comparada com a minha geração, por exemplo,
que é do analógico” Ivan Junior destaca que atualmente o uso das redes é essencial (informação
verbal):
Em termos estatísticos, se não estiver no Spotify, tua chance de não alcançar 500
milhões de usuários é grande. [...] O modo de consumir muda. Então você tem que
se adaptar ao que as pessoas estão usando. Se tem um indicador que x% da música é
no Spotify, se eu quero ter sucesso comercial, por que não estar no Spotify? [...] Se
você quer sucesso comercial, você tem que estar em todo lugar. Aí depende da
estratégia de divulgação. [...] Se você é um músico novo, você tem que lançar em
tudo, em todo lugar.
e eu, ‘sabe o que que eu faço’? Eu vou bater na porta das pessoas. [...] ‘Encher o saco
das pessoas em Ponta Grossa é igualzinho a encher o saco das pessoas em Paris’. É
exatamente a mesma coisa. É bater na porta e falar assim ‘olha eu sou músico, você
quer ver meu trabalho’? E 80% das pessoas vão dizer que não querem. Ou porque já
estão com 50 pessoas iguais a você lá batendo na porta ou porque não tem interesse
mesmo.
O site de rede social mais utilizado pelos músicos segundo a pesquisa online foi o
Facebook, totalizando aproximadamente 94% das respostas. O Youtube é utilizado por 83,3%
dos participantes. 81,1% dos entrevistados utilizam também o Whatsapp e 79,5% respondeu
que utiliza o Instagram.
O Instagram tem um baita alcance orgânico. O Facebook é bom para anúncios, mas
está perdendo o engajamento. Penso que o Instagram deixou ainda mais os conteúdos,
em geral, voláteis, dado ao fato do tempo de os vídeos ser limitado. Ainda assim tem
um bom engajamento e alcança bastante gente;
Instagram. É muito mais direta o objetiva do que Facebook. Youtube também é ótimo.
E com Facebook se alcança um público maior. Resumindo, tem que usar todas;
202
Instagram, Youtube e Facebook são a tríplice aliança que todo artista precisa
trabalhar, cada uma tem uma função específica. Youtube para conteúdos oficiais,
Facebook para relacionamento e Instagram pra mostrar o estilo de vida, os bastidores,
etc. E trazer mais proximidade e carisma entre o artista e o público;
Não vejo uma melhor que a outra. Cada uma tem sua finalidade específica e também
partes que se sobrepõem. Tudo está interligado no trabalho geral de divulgação digital.
Zé Rodrigo, comentou em entrevista presencial para este trabalho, como suas redes
são trabalhadas (informação verbal):
Não sou eu quem determina minhas redes. Eu administro parte das minhas redes. O
conteúdo das redes é muito importante que seja seu. As poucas tentativas que eu tive
de alguém administrar minhas redes, começaram a dar muito errado, porque as
pessoas que conhecem meu trabalho praticamente me conhecem. Então não é difícil
perceber que não sou eu. [...] Eu hoje tenho uma agência que administra o Instagram.
Eu nunca comprei likes. Eu cuido do conteúdo todo. Só passa pela aprovação da
agência. O Facebook, eu tenho uma agência que cuida só de propostas de projetos.
[...] Hoje, com o tempo de trabalho com essas agências, eu estou fazendo o contrário.
Eu já aprendi um pouco, então eu já monto e mando pra eles só aprovarem ou só
sugerirem alguma coisa. O que me custa bem menos daí. Outro detalhe pra mim é que
o Facebook morreu, literalmente, ultimamente o Facebook não funciona mais. O
Whatsapp hoje funciona melhor porque eu sei exatamente pra quem eu estou falando.
Eu consigo ter grupos de 200 pessoas. E o Facebook hoje, te dou um exemplo prático.
Eu fazia um post e colocava lá um valor x. Dava lá, 1500 likes. Hoje com o mesmo
dinheiro dá 100. Por um tempo achei que era só comigo. Aí comecei a entender com
os outros artistas que a experiência está igual com todo mundo. O Facebook é uma
fake news116. [...] Porque quando o cara entra lá pra dar sua opinião, ele não tem
informação o suficiente para dar opinião. Eu parei de discutir. Eu tinha um blog de
música no onda.com.br, um programa de rádio na Transamérica, eu parei com tudo.
Porque eu estudei música a minha vida inteira, virou minha profissão. [...] Na música,
as vezes eu convidava pessoas intelectuais daqui. Muita gente que eu levava no meu
programa pra discutir música, nas redes sociais isso acabou, o Facebook virou a
central mundial de opiniões que ninguém pediu.
Nos últimos cinco anos há o avanço das redes sociais como uma mídia obrigatória.
Tanto que, as grandes gravadoras, que quebraram há 10 anos, agora elas têm os seus
planos de distribuição 360. Que significa atirar seu produto para todos os lados. Vai
pôr na TV, no Youtube, na rádio e no Spotify, em todos os players do mundo inteiro.
Vai fazer essa distribuição digital e monetizando pelos players que tiverem ou por
vendas isoladas de faixas inteiras. [...] Elas entendem que é ali que está a
rentabilidade. [...] Os artistas também percebem isso, tentam com seu jeito, com sua
assessoria, sua falta de habilidade. [...] Eles também não têm toda a habilidade para
lidar com as redes sociais. [...] Normalmente vídeos são mais fortes do que apenas
áudios. Redes sociais são uma ferramenta essencial para a carreira de qualquer artista.
116
Gíria popular que significa “notícia falsa”.
203
já fizeram este tipo de ação, enquanto que 28% declarou não ter feito. Ivan Junior comenta que
atualmente a maior parte do orçamento destinado à produção musical é utilizada em marketing
(informação verbal):
Do que você vai gastar em gravação, coloca mais 70% em divulgação, pelo menos.
Vai custar 10 mil pra gravar o EP117. É preferível que você gaste mil para gravar um
single e gaste 9 mil para divulgar este single do que você gravar um EP. [...] É
marketing puro. Você tem que espalhar o nome, principalmente se você não for
conhecido. [...] Pessoas adoram coisas novas, mas você precisa chegar nelas. Então é
sempre assim, no mínimo, no mínimo, meio a meio.
Em relação a este dado, 63,6% dos entrevistados acredita que existe retorno em mais
contratações e mais público presente em seus concertos. 23,5% não soube opinar a respeito e o
restante, 12,9%, respondeu que este investimento não é viável.
117
Abreviação de Extende Play. É um registro musical não grande o suficiente para ser considerado álbum, porém
maior que um single. Normalmente, varia de três a seis faixas.
204
Trinta e sete pessoas responderam à questão qualitativa. Dos que utilizam este recurso,
alguns apontam a necessidade de um planejamento de marketing digital para que o investimento
surta efeito, como sugere os seguintes relatos: “em todas as vezes que utilizei este recurso houve
um planejamento, por isso sempre funcionou”; “se o anuncio é feito de maneira correta, vai sim
ter retorno. Cada dia mais o alcance orgânico está ficando menor, exigindo certo investimento
em divulgação. Mas como qualquer empresa, um artista ou banda tem que investir em
marketing. Afinal, quem não é visto não é lembrado”; “é importante uma segmentação correta
do público assim como traçar o objetivo da campanha de forma correta para colher frutos
positivos”.
Os participantes também apontaram que percebem diferenças de engajamento e
conversão de acordo com o formato do conteúdo publicado: “claro que nem sempre, vale
impulsionar bons materiais como vídeos, teasers e vídeo clipes. Agora fotos e flyers dentro da
cidade onde toca não vale o investimento”. Mais além, alguns participantes teceram críticas
sobre a forma como as plataformas funcionam: “vejo como uma relação entre traficante e
viciado. No começo é tudo promoção”; “não, é algo que na verdade tem que ser trabalhado,
sem falar que as pessoas são conquistadas ao vivo, é preciso além de tocar estar onde músicos
também tocam, consumir essa música, compartilhar”; “Infelizmente hoje em dia o Facebook
por exemplo mudou os algoritmos Para que sua fanpage funcione apenas quando for
movimentada com o dinheiro. Isso na minha opinião está determinando uma derrocada das
205
redes sociais sendo o Facebook a principal delas. Algumas postagens não valem a pena gastar
dinheiro, porém isso se torna necessário para equilibrar a quantidade de informação na sua rede
e visualização de sua marca. Triste”.
De modo geral, a maior parte dos músicos, 59,8%, acredita que as mídias sociais
aproximaram os relacionamentos entre eles, 25,8% não soube opinar e o restante, 14,4%
acredita que não houve interferência das mídias sociais nos relacionamentos entre músicos de
Curitiba.
A maior fatia dos entrevistados, 36,4%, investe em torno de R$50,00 por mês em
publicações nas redes sociais; aproximadamente 30% não investe; 22% impulsiona de R$50,00
a R$100,00 mensais; 7,6% paga de R$100,00 a R$200,00; 1,5% respondeu que investe de
R$200,00 a R$500,00 ao mês; e 2,3% indicou gastar mais de 500 Reais neste período de tempo.
206
Gravou 10 mil? Só para ser legal, sair nas mídias, de assessoria de imprensa você vai
pagar dois ou três mil Reais por mês durante seis meses se você quiser dar uma
continuidade. Marketing? Mais uns mil Reais por mês. Essas coisas vão se
acumulando. [...] Em termos estatísticos, se não tiver no Spotify, tua chance de não
alcançar 500 milhões de usuários é grande. [...] O modo de consumir muda. Então
você tem que se adaptar ao que as pessoas estão usando. Se tem um indicador que x%
da música é no Spotify, se eu quero ter sucesso comercial, por que não estar no Spotify?
[...] Se você quer sucesso comercial, você tem que estar em todo lugar. Aí depende da
estratégia de divulgação. [...] Se você é um músico novo, você tem que lançar em
tudo, em todo lugar. Eu vejo uma galera buscando. Um dado que eu tenho é o curso
da nossa parte de cursos da plataforma gestão de bandas mesmo, o que mais vendia
foi o Spotify Pro que é de como você ter um perfil massa no Spotify e conseguir
bombar lá dentro. A Banda Mais Bonita da Cidade. Uma das poucas que eu vi que
têm um plano do que fazer. [...] se preocupam com isso, têm a noção. A Karol Conka,
essa foi uma das que eu vi que mais sabe o que está fazendo. Não existe mais isso de
alguém chamar a atenção e vir alguém e falar ‘vou te cuidar’. [...] Você acha que a
Anitta é alguém que achou ela? Foi ela que construiu. Ela que fez o caminho dela. [...]
A Anitta tem até desenho hoje [...] no rap tem muito isso, tem muita união [...] sabem
muito mais do mercado do que outros gêneros. Eu não acho errado o músico que se
preocupa só em tocar [...] porque as pessoas não levam jeito pra isso. [...] Mas tem
gente que simplesmente não leva jeito. [...] Ele precisa ter a consciência de que se ele
não leva jeito, alguém vai ter que fazer isso pra ele se ele quiser viver de música. Você
tem dois caminhos: ou você vai ser um músico empreendedor - que aprende, que vai
fazer por conta. Ou chama alguém. Alguém vai ter que fazer se você quiser viver de
música.
207
Cosmopolita musical, muitas pessoas, muitos estilos, mistura-se samba com jazz com maracatu
com rock com blues com muita cultura, Curitiba povo de muitos povos, mescla nova, porém de
muito valor;
Conheci muitas bandas de Curitiba entre 1987 e 2007 e o que mais me deixava surpreso era a
‘promiscuidade’ musical, vários músicos faziam parte de várias bandas, cada uma com um estilo
diferente, mas com músicos em comum! Isso era muito legal e muito bom para a cena local! Essa
é uma ótima recordação que tenho da cena curitibana!;
Curitiba é uma cidade cosmopolita. Tem público para todos os gostos, mas a competição é
acirrada.
Desde que comecei atuar aqui, apareceram muitos novos artistas. Mas penso que ainda
existem muitas ‘panelas’. O cenário musical é rico, mas bastante competitivo. Os
projetos diminuíram bastante como tudo que diz respeito à cultura em nosso país. Mas
creio que a música sempre resistirá às intemperes. Somos seres musicais por natureza
humana. O que eu acredito de fato é que tudo que tem qualidade consegue se manter;
É difícil fazer uma análise num momento em que o país atravessa uma crise. Mas o
que posso dizer é que os cachês não sobem, e tem bandas tocando por cerveja. E isso
já vem de antes da crise. Sem a união dos músicos vai ser difícil mudar esse cenário;
Falar que as bandas tem que se unir não é o correto, amigos no meio musical todos
temos, mas esse negócio de cena musical é complicado, hoje qualquer um que tenha
208
um instrumento, estuda com vídeo aula uns 2 meses e já acha que toca, forma banda,
e sai tocando por duas cervejas aí, tirando lugar de músico formado, experiente e pai
de família que depende de espaço para garantir seu sustento, no meu ver é injusto”;
“O cenário musical geral precisa de mudanças.
Não sou o maior conhecedor, mas sinto que o cenário autoral na música popular em
Curitiba é fraquíssimo. Com raras exceções que conheço, as pessoas ou grupos que se
autopromovem como músicos autorais são músicos empíricos sem conhecimento
algum, que reproduzem uma música insípida e sem qualquer originalidade. Vejo uma
postura adolescente de jovens que pensam que farão sucesso magicamente com seu
‘talento’. Sinto que falta conhecimento e interesse;
Os bares exigem cada vez mais das bandas. O cachê nunca aumenta. As bandas fazem
papel de divulgador, web designer, jukebox e inúmeras outras, além de tocar. As
funções e tempo de palco aumentam cada vez mais. Os bares em sua maioria têm cada
vez menos qualidade e estrutura. Tocar/cantar bem é o que menos importa para o
contratante hoje em dia. Devido a isso tudo e muito mais, vejo cada vez mais músicos
desistindo no meio do caminho;
Ser um músico em Curitiba é difícil. Os repertórios das bandas são sempre muito
similares, tornando fácil a substituição de bandas. Há muitos músicos tocando por
quase nenhum dinheiro ou até de graça mesmo. Esse comportamento afeta todos os
outros músicos trabalhando na cena. Quando mais fácil for encontrar um músico que
toque por nada, mais difícil vai ser receber um cachê digno;
A cena musical autoral curitibana não leva a sério a atividade como uma profissão. A
maioria dos músicos atua como um hobby. Na hora em que isso cansa ou é necessário
dar mais atenção ao lado profissional para garantir o dinheiro em casa, as bandas e
projetos acabam;
Muito talento, principalmente na música autoral. Mas com poucos espaços para se
apresentar. Público que não se preocupa com música, só serve de segundo plano para
beber e conversar;
Sinto que estamos parados no tempo, as vezes perco o fervor. Mesmas pessoas,
mesmas bandas de sempre, inclusive a minha. Quero ver a moçada tocando,
compondo, curtindo música como antes, mas está ficando mais difícil a cada dia que
passa. Faltam mulheres na cena, nas bandas, nas produções, as que tocam têm suas
bandas, sempre as mesmas bandas, sempre. Que de alguma maneira, o som da cidade
chegue nas novas caras da música, e que cada artista fique eternizado e seja um dia
lembrado;
Acho que o Paraná não tem uma identidade musical, somos covers, sempre lutei pela
obrigatoriedade de pelo menos 30% dos artistas locais na programação das rádios
paranaenses, mas não é de interesse dos políticos, já que são donos de praticamente
todos os meios de comunicações e ficariam sem o tão precioso jabá;
A cena musical é inexistente na minha opinião. Depende de qual lado dos muros do
CMPB por exemplo, você está. Bares estão indo à falência. Teatros públicos são
burocráticos e engessados e Teatros Privados cobram muito caro o aluguel. Em breve
não terá mais espaços;
Vejo também muitas ferramentas de cultura do nosso sistema, como teatros, editais, e
projetos e espaços culturais que são conduzidos por pessoas que colaboram com um
sistema que favorece a conveniência de alguns. E dessa forma funciona como uma
espécie de “feudo;
Curitiba tem muita gente boa produzindo música de qualidade. Faltam produtores que
consigam transformar isso em um negócio autossustentável;
Eu acredito que a intenção das bandas (de rock) é boa, existe até um cunho social
(manter vivo o estilo que infelizmente está em decadência), porém existem algumas
dificuldades que citei anteriormente: 1) a desunião entre os músicos/bandas - é
perceptível como cada um quer defender apenas o seu e não o coletivo; 2) a falta de
valorização do próprio trabalho - tocam de graça ou em troca de duas cervejas, enfim,
o português bem claro, se prostituem e isso naturalmente enfraquece toda a classe; 3)
o público admira o trabalho, porém não se envolve mais profundamente na causa -
reclamam de pagar o valor de entrada, não comparecem aos shows, não adquirem
produtos da banda (CD's, merchandising em geral), 4) os empresários dos bares
desvalorizam os músicos, muitos acham que estão fazendo um favor, e não fazem a
leitura que boas bandas/músicos atraem público e os ajudam a manter seus bares bem
frequentados e por consequência a encher seus bolsos ‘$$$’, que aliás, dá impressão
que este é o único interesse deles. E pra ajudar, alguns destes empresários agem de
forma completamente incoerente, beirando a falta de caráter, como por exemplo, o
210
cúmulo de não pagar o cachê da banda. Neste tema, existem também alguns
‘intermediários’ (pra não chamar de criminosos) na cidade que dão calote nas bandas;
5) os empresários acabam se fechando e trabalhando com as mesmas bandas e não
oxigenam o line-up118 de atrações, isso também gera um desgaste no público, que fica
entediado de sempre ter que ouvir as mesmas músicas e piadas todo final de semana,
e também as boas bandas que acabam ficando sem espaço; 6) não há investimento na
infraestrutura de vários bares, equipamentos de palco sucateados, gerando riscos para
os músicos e também para o público (estilo boate Kiss), sem contar com o cúmulo de
alguns bares comercializarem bebidas adulteradas/falsificadas para seus clientes; 7)
não sei como está essa questão, mas até pouco tempo atrás, havia uma rixa ridícula
entre bares que cobram entrada versus bares que não cobram, e quem pagava o pato
eram as bandas, pois tinham que ficar limitadas a tocar com exclusividade em um dos
‘times’. Enfim, todas essas dificuldades enfraquecem a cena e desmotivam as antigas
e novas gerações de músicos, seria muito importante que as pessoas tomassem
conhecimento destes detalhes e se envolvessem para que a cidade seja uma referência
no campo da música.
118
Expressão em inglês que, quando utilizada neste caso, significa “atrações”.
211
ficando muito caro’. Dentro dessa lógica surgiu o segundo produto que tenho na
produtora. A gente sentou e falou assim: ‘a gente vai criar um produto do zero? Uma
marca’? ‘Depois da marca Soulution Orchestra, a gente já tem um produto fomentado
dentro do mercado’. ‘Qual é’? ‘O seu nome’. Então o segundo melhor produto que a
gente tem dentro da produtora não é uma banda começando do zero, é o nome Zé
Rodrigo. O Zé Rodrigo da Soulution é uma banda menor. [...] Então ficou certo que
iam me lançar como cantor solo. [...] Eu só topei porque isso implicaria em ter um
produto que já estava pré lançado. Dentro de um evento eu posso tocar de Frank
Sinatra a Metallica, por exemplo. Porque são coisas que eu gosto. E, por isso, que se
solidificou nosso último produto que se chama Multi Music Man. É um produto que
iremos usar nos Estados Unidos, onde as pessoas não conseguem falar meu nome.
Então o produto não poderia ter o meu nome. O nome por si já fala o que é. Eu só
preciso agora implantar no mercado o posicionamento, que as pessoas entendam ‘é o
cara de terno.
Mais além, Ivan Junior estende sua crítica para a educação e formação do profissional
de música e explica que esta foi a razão que o levou a interromper seu negócio de gestão de
bandas (informação verbal):
O principal problema [...] é a educação. Foi um dos pontos da gente pivotar o negócio
no passado. De retransformar ele, porque o que a gente trouxe pro mercado musical,
ele não estava pronto ainda. Porque o que a gente traz é profissionalizar o músico. E
aí o músico não sabe ser profissional. E daí, pra você fazer isso, é a mesma coisa que
educação básica. [...] Eu conheço centenas de bandas e músicos que vivem de música
[...]. Mas o cara tem um nível de amadorismo no que ele faz muito grande. Ele perde
oportunidades. Muitas oportunidades. Ainda mais esses que conseguem um pouco
mais de alcance. Não é à toa que vários dão um ‘boom’, parece um foguete, mas daí
bate no teto, não consegue continuar em frente. São poucos que conseguem porque
são profissionais. O principal problema é educação básica de como ter uma carreira
musical. Isso não se ensina na faculdade. [...] Você aprende um monte de coisa que
não tem a ver com o negócio da música. [...] Conheço também especialistas, mestrado,
doutorado e é o mesmo formato dos anos 80 que funcionou, eles ainda ensinam. [...]
Que você tem que trabalhar com uma gravadora. Isso aí já era, não tem mais o que
fazer.
Nesta seção, serão apresentados alguns mapas decorrentes da etnografia na cena rock
de Curitiba. O intuito deste subcapítulo é apresentar os mapas como parte do resultado da
cartografia.
Convém, antes de pontuar a localização dos espaços em que ocorrem apresentações ao
vivo de rock em Curitiba, apresentar o mapa da própria cidade e suas Regionais. Segundo o site
da Prefeitura Municipal de Curitiba (PMC), “Regional é a área de abrangência de cada território
em que a cidade está dividida administrativamente. Curitiba possui dez Regionais, destinadas
à operacionalização, integração e controle das atividades descentralizadas”119. De acordo com
119
Fonte: https://www.curitiba.pr.gov.br/conteudo/o-que-sao-administracoes-regionais/80
212
a prefeitura, a administração das Regionais “são responsáveis por conectar as ações das
Secretarias e Órgãos que compõem a gestão aos reais interesses da comunidade. A sua estrutura
está implantada nas Ruas da Cidadania”, que por sua vez, são equipamentos municipais onde
se disponibiliza serviços públicos de infraestrutura urbana (PREFEITURA DE CURITIBA,
2019). Entende-se a divisão da cidade dessa forma como uma maneira de aproximar o
microambiente do macroambiente administrativo da cidade.
Em matéria disponibilizada em Novembro de 2015 no site da Prefeitura, a então
Administração das Regionais120 explica (informação verbal): “[...]a gente tenta deixar por
regional mais ou menos a mesma quantidade de população”. Ainda segundo o site da Prefeitura,
a divisão em Regionais leva em conta a:
120
O autor do áudio não está identificado no site da Prefeitura, mas entende-se que, pelo conteúdo do arquivo, é
um dos responsáveis pela divisão do mapa de Curitiba em Regionais.
213
121
Disponível em: http://www.agencia.curitiba.pr.gov.br/arquivos/regionais/perfil-economico-regional-
matriz.pdf
215
FONTE: FONTE: IBGE - Censo Demográfico 2010 / IPPUC - Banco de Dados / Monitoração
De acordo com esses dados, aponta-se as Regionais Boa Vista, Cajuru e Matriz como
as mais povoadas, respectivamente. Quanto à densidade demográfica, as Regionais do Portão,
Cajuru e Pinheirinho se destacam respectivamente com a maior concentração de habitantes por
Km². As Regionais com maior renda mensal por domicílio são, respectivamente a Matriz,
216
Até o presente momento, foram providas pela etnografia, 155 dessas regiões sociais,
muitos são espaços momentâneos, outros são estabelecimentos que durante o recorte temporal
da pesquisa já declararam falência. Estas possibilidades de nuances na cartografia são parte
intrínseca do exercício de se cartografar uma cena musical, que é um fenômeno por si só
mutante e suscetível a flexibilidades, portanto, respeitando o recorte temporal estipulado no
217
início da pesquisa, os locais citados serão dispostos no mapa, entendendo que fazem parte desse
período estudado independente da sua efemeridade. Dado a proporção do mapa de
macroambiente, resultante desta etapa, fica inviável colocá-lo (impresso) em sua totalidade
neste documento e, por esta razão, será disponibilizado o link para acesso online pela plataforma
Tripline.
A maior parte dos locais apresentados pelo mapa de que a FIGURA 17 faz referência
está distribuído na região central de Curitiba. As Regionais com maior concentração de espaços
para apresentações musicais ao vivo foram, respectivamente, Matriz e Portão. Por conseguinte,
as Regionais Santa Felicidade e Boa Vista equipararam-se em número de locais. As demais
apresentaram poucos e dispersos espaços. A única Regional de Curitiba a qual o presente estudo
não conseguiu nenhum dado sobre locais de apresentações musicais ao vivo, de qualquer gênero
musical, foi a Regional Tatuquara, formada pelos bairros Tatuquara, Campo de Santana e
Caximba. A Regional Bairro Novo apresentou apenas um local.
O primeiro dado qualitativo que emerge deste mapa, em relação aos dados
quantitativos providos pela Prefeitura Municipal de Curitiba é que, se traçarmos uma “linha
horizontal imaginária” cortando o território de Curitiba ao meio, dividindo entre porções norte
e sul, a partir do bairro Fazendinha, que está localizado no limite sul da Regional Portão, nota-
se que a maior parte (85% aproximadamente) dos locais que apareceram na etnografia deste
trabalho encontra-se concentrada na porção centro-norte da cidade.
218
122
Optou-se por disponibilizar uma versão digital a fim de proporcionar ao leitor uma melhor definição de imagem
juntamente com a possibilidade de se ler a TABELA 2 ao mesmo tempo em que se observa o mapa.
221
R. Maestro Francisco
Esquina do
22 Antonello, 2427 - Fanny, Fanny 200 Rock Até 2
Maestro
Curitiba - PR, 81030-100
7 DISCUSSÃO
123
Em 2020 o salário mínimo passou a ser de R$1045,00.
228
meio da semana e custam menos para o contratante dado o número reduzido de pessoas. Nesse
sentido, entende-se que é necessário ao profissional da música diversificar sua atuação musical,
caso opte por trabalhar com performances ao vivo, o que ilustra os 67,4% de músicos atuando
em 2 até 5 projetos musicais simultâneos.
Dos que se apresentam com grupos maiores na cidade, uma minoria consegue agendar
mais de dez shows por mês porque atua com variados projetos paralelos. Entendo que isso
prejudica os trabalhos no que diz respeito ao viés artístico, aos conceitos e às estéticas musicais.
O profissional que atua “para ganhar na quantidade” fica à mercê das demandas do mercado
cover e, literalmente, não tem tempo de desenvolver trabalho autoral ou de pensar estratégias
que agreguem valor ao seu próprio trabalho musical. Isso ajuda a ilustrar o fato que 59,9% dos
entrevistados não saber reconhecer ou não acreditar que exista alguma expressão musical
característica da cidade. Raros são os artistas que possuem uma agenda abarrotada de shows e,
junto a isso, desenvolvem trabalho autoral.
Com relação às materialidades do cenário, a maioria dos entrevistados demonstra estar
insatisfeito com as estruturas de suporte técnico das casas noturnas em Curitiba. Em
contrapartida, essa mesma maioria acredita que seus próprios equipamentos são de ótima
qualidade. Isso gera uma controvérsia pois, de um lado, parte das casas de entretenimento
noturno parecem não se importar com a própria estrutura, mas a maioria dos músicos busca e
deseja ter equipamento com cada vez mais qualidade.
É uma controvérsia também porque, no que diz respeito às estratégias para obtenção
de prestígio e legitimidade no meio musical, muitos indivíduos que não têm condições de arcar
com equipamentos caros, chegam a “falsificar” logotipos de instrumentos para impressionar
contratantes, que levam em conta as materialidades dos grupos musicais no momento de decisão
sobre contratar ou não. Ou seja, a qualidade do equipamento de um grupo musical pesa na hora
de sua contratação. Porém, a maior parte dos bares citados na pesquisa online não dá a mesma
atenção aos próprios equipamentos, sendo muitos deles tidos como “sucateados”. Nesse
sentido, por mais que seja de uma forma implícita, cobra-se dos grupos musicais uma qualidade
que não é recíproca por quem os contrata.
Cria-se outro ponto de desequilíbrio uma vez que, mesmo com agenda cheia nos dias
da semana favorecidos pela atividade musical na cidade – o que é uma benesse reservada à uma
minoria –, com dificuldade para ganhar a quantia bruta de até dois salários mínimos, os agentes
musicais de Curitiba custam a ter acesso por equipamentos de qualidade. Por exemplo, um
trabalhador nos Estados Unidos que execute um regime de 40 horas semanais trabalhadas, tendo
como base de pagamento o mínimo de $7,25 dólares por hora, receberá aproximadamente ao
229
124
Em 2020, o salário mínimo nos Estados Unidos é de $7,25 dólares. O valor exemplificado é tomando como
base um mês em que tenham 20 dias úteis e que o trabalhador empreenda oito horas diárias de trabalho.
125
Na loja americana reverb.com o equipamento em questão está anunciado novo por $2999,99 dólares. Na
repartição da semelhante brasileira, o mercadolivre.com.br, o mesmo equipamento varia entre R$8000,00 e
R$16000,00 Reais.
230
Esse dado é comum com aqueles coletados no acervo do programa Ciclojam da década
de 1990 e início dos 2000. Este problema de união entre os grupos musicais e os afetos na cena
musical da cidade ainda é recorrente. O uso das mídias sociais, por outro lado, ajuda a visibilizar
e conscientizar os agentes sobre esse dado, o que se demonstra pelos quase 60% de
entrevistados que acredita em uma melhora nos relacionamentos após o advento das mídias
sociais. Atualmente, embora o problema persista, é algo mais debatido e reconhecido
publicamente como sendo maléfico para a música na cidade.
Um dado que ilustra essa questão é também o fato de 61,4% dos entrevistados
apontarem que o público de Curitiba não se envolve e não se sente representado pelos grupos
musicais locais. Isso se dá de modo geral, mas é preciso ressaltar que existem esforços para
mudar esse padrão, tanto por parte de bares, púbico e grupos musicais. Entretanto, esses
esforços aparecem como casos isolados, bolhas sociais autônomas, desconectados de um todo
e, muitas vezes, invisibilizados. É a partir daí que surge o argumento de que Curitiba é
“provinciana”, no sentido de que olha para as metrópoles, São Paulo e Rio de Janeiro, como as
suas “capitais”. Tanto que, muitos entrevistados relatam a grande adesão de público curitibano
a shows de artistas propagados a nível midiático nacional, fato que não acontece com os artistas
autorais locais, por exemplo. Então, surge a revolta do músico curitibano com a própria cidade
em que mora e o recorrente discurso: “é impossível”.
É preciso ressaltar que esse é um dado extraído da maioria dos entrevistados, porém
não corresponde à totalidade. Entende-se que há músicos ativos na cidade com relativa
estabilidade, mas raros os que obtiveram destaque e estabilidade profissional atuando em
Curitiba. Contudo, é comum que esses artistas deixem de atuar exclusivamente na capital
paranaense à medida em que suas carreiras avancem, como foi o caso de Zé Rodrigo, que
mesmo discordando da ideia de que “é impossível viver de música em Curitiba”, mudou-se
recentemente para Orlando em busca de oportunidades melhores.
Em Curitiba, durante a década de 1990 e início dos anos 2000, o cenário da música era
repleto de disputas do mesmo tipo daquelas levantadas por Straw em relação à legislação de
Ontario (STRAW, 2006), marcadas pelo desacordo entre mercado musical e músicos
curitibanos. Além disso, eram presentes temas como: valorização do exterior e desvalorização
do local; autoral versus cover; cachês baixos; baixa qualidade de infraestrutura dos locais de
apresentação; amadorismo; isolamento da cidade do resto do país; falta de valorização pelo
231
público; etc (MACAN, 2017, p.26). Em entrevista para este trabalho, o atual vocalista da banda
Blindagem, Rodriggo Vivasz 126, comenta um episódio com a Ordem dos Músicos127 do Brasil
(OMB) em Curitiba (informação verbal) que ilustra a semelhança dos desacordos entre as
repartições públicas e os músicos da cidade:
Antigamente funcionava, você tocava num bar, você ia na ordem dos músicos, pegava
um contrato da ordem onde se estipulava o valor mínimo de cachê por músico e daí
você levava para o dono do bar, ele assinava, e você recebia exatamente o que estava
escrito ali no contrato. Tinha esse contrato então era uma maneira até de você
comprovar tempo de trabalho. Com o tempo a ordem, pelo menos aqui em Curitiba,
foi se perdendo. Muita gente começou a reclamar porque naquela época, nos anos 90,
o pessoal da ordem ia nos bares e se você estivesse sem sua carteirinha, queriam levar
seu instrumento, queriam multar o bar, multar o músico, começou a ficar uma coisa
meio “polícia”. [...] Eu mais vários amigos entramos com uma ação contra a OMB,
ganhamos a ação e paramos de pagar a Ordem, nunca mais ninguém incomodou a
gente. [...] a Ordem foi se perdendo, até porque hoje em dia poucas pessoas querem
uma carteira profissional de músico. Algum bar vai assinar sua carteira? Não, né.
Nesta mesma conversa com Rodriggo, ele comenta que “a Ordem não trazia nenhum
tipo de benefício aparente para o músico, nem mesmo descontos em lojas de equipamentos, só
servia para cobrar”. O músico Julian Barg, em consonância, explica que “eles (OMB) deveriam
controlar o número de horas que a gente (músicos) trabalha, mas isso não acontece. O salário
mínimo, não acontece. A única coisa que acontece é a cobrança” (NETO, 2002, p. 635). Mais
além, Barg compara a atuação da OMB com a dos cuidadores de carros: “você vai pagar o cara
não para ele cuidar do seu carro, mas para ele não riscá-lo” (NETO, 2002, p. 638). Então essas
tensões entre poder público e as expressões musicais em determinado local são assunto
recorrente no que tange cenas musicais.
O problema, como discorrido até então, é que o território de uma cena musical não é
só entretenimento ou manifestações culturais que agitam a sociabilidade. É espaço com forte
interferência de trocas comerciais em que o bem comercializado não são apenas produtos
ingeríveis, mas também uma cultura particular oferecida por profissionais, que se encontram
sem nenhum amparo sindical. O que se percebe e, amplamente exposto na seção de resultados,
é que dado ao contexto “festivo” das cenas, muito se mascara sobre a necessidade de um
environment profissional, como coloca Zé Rodrigo. A falta desse ambiente formal de negócios,
126
Nome artístico de Rodrigo Otávio Sampaio, vocalista reconhecido na cena musical rock em Curitiba, atua desde
a década de 1980 na cidade e atualmente nas bandas Blindagem e The Elder. Rodriggo também é colaborador da
Associação de direitos autorais Abramus. Em meu trabalho anterior, quando fichei as sessões de gravação brutas
do acervo do programa Ciclojam (MACAN, 2017), Rodrigo esteve presente com seu projeto autoral Bizarre, no
dia 03 de Novembro de 2003.
127
“É uma autarquia federal, disciplinada através da Lei 3.857/1960, assinada pelo Presidente Juscelino
Kubitschek para regularizar e fiscalizar a profissão de músico”. Fonte: www.ombsp.org.br. (Não foi encontrado
site da OMB do Paraná).
232
É válido constar que o texto de Straw se faz oportuno em ambos meus trabalhos sobre
a cena musical de Curitiba, pois o objeto das pesquisas está situado num recorte temporal em
que a globalização, fenômeno que contextualiza as produções do autor, se faz muito presente
nos debates da área. Por exemplo, é nesse contexto que Julian Barg explica como ajudou ao fim
dos anos 1990, por meio da internet, milhares de músicos a se dissociarem-se da OMB (NETO,
2002, p. 630) – o que também configura uma facilidade na formação de aliança nas cenas
musicais. Além disso, a reação do local ao global e as tecnologias digitais emergentes, que são
produto da globalização, estão dentro do âmbito de discussão de Straw, o que faz o carácter
desta pesquisa ser complementar à do autor.
Como colocado por Straw, os níveis – do local ao global – tendem a ser resolvidos por
estudos de casos específicos em cenas musicais. Então existe a noção de cena em pequenas e
grandes dimensões, a compreensão deste conceito se dá pela escolha do objeto de estudo. Cena,
neste espectro pode então se esticar ou se comprimir a fim de dar conta das diferentes dimensões
em que é entendido.
Aplicando isso à Curitiba, há claramente uma efervescência de entretenimento
cultural, predominantemente noturna, relacionada à Rua Trajano Reis, no bairro São Francisco,
centro da capital, lugar que já frequentei algumas vezes entre os anos 2010 e 2013. Dentro deste
espaço, delimitado pela Rua Trajano Reis e seus arredores, estão localizados vários bares 128. As
128
351 Bar e Galeria, Blues Velvet Bar CWB, O Torto, Peppers, Rock’a Burger, Tuba’s bar, Bar Pablo EscoBar,
entre incontáveis outros. Não se pode deixar de citar o Wonka Bar (Rua Trajano Reis nº326) que fechou
233
pessoas movimentam-se entre um bar e outro, mas utilizam frequentemente a calçada como
espaço para sociabilidade. As atrações dos bares contêm por vezes vários gêneros musicais
diferentes. O Wonka Bar foi um ótimo exemplo deste fato pois, no mesmo espaço realizava ora
festas rock, ora funk, ora música eletrônica, ora pop, entre outros gêneros.
Os arredores da Rua Trajano Reis são permeados por espaços que funcionam como
palco de outras formas de expressão, como teatro, fotografia, exposições de arte urbana, entre
outros. Certa vez, no final de 2013, estive em uma festa no 351 Bar e Galeria, em que aconteceu
uma performance teatral. Como o próprio nome sugere, o espaço não é só um bar. O entorno
da Rua Trajano Reis é um local delimitado, reconhecido pela ocupação da rua e pelas casas
noturnas que se alastram por ali. Toda essa relação entre o espaço, a indústria do entretenimento
e as pessoas que ali frequentam se encaixa na definição de “cena” que Straw sugere a partir de
“sociabilidades cara a cara”.
A cena da Rua Trajano Reis em Curitiba é demarcada pelo território e não por um
componente mediador específico, como gênero musical, por exemplo. Embora a “cena da
Trajano”, como é comumente referida, não se situe apenas na Rua Trajano Reis, mas sim em
toda sua redondeza, através da soma de lugares129, estendendo-se ao bairro São Francisco e ao
Largo da Ordem, atuam várias expressões culturais, não somente musicais, e que moldam o
carácter desta cena específica e contribuem para a emergência de manifestações musicais
características dela130.
recentemente, em 2016, após 11 anos de atividade decorrente de uma mudança de comportamento do público (que
vale um trabalho dedicado somente ao tema) relatado pelo jornal Gazeta do Povo em 10 de Junho de 2016. Fonte:
goo.gl/Ci4pES
129
Mais à frente neste trabalho haverá uma seção dedicada a definir “lugar” à luz da antropologia
130
Fato interessante é que, no mapa da FIGURA 22, o referido local está registrado sob a luz do dia e durante a
noite, período em que as atividades do entretenimento tomam forma, o cenário sofre grande mudança, novos
significados e atores surgem no espaço em questão devido a essa mudança de horário. Além disso, a casa noturna
Peppers, que aparece no início do tour virtual, mudou seu endereço no decorrer desta pesquisa, mais à frente no
texto será citada com outro endereço.
234
Por outro lado, há a visão de cena musical como “sociedades de gosto globais”
(STRAW, 2006, p. 6), articulada através de um movimento cultural, ou mesmo um gênero
musical específico. Eduardo Mercer demonstra uma matéria do jornal O Estado de S. Paulo, de
1994, por Jotabê Medeiros, em que se destaca a manchete: “Curitiba é a versão brasileira de
Seattle” (2017, p. 17).
FIGURA 23 – QR CODE DE ACESSO PARA A IMAGEM SEATTLE BRASILEIRA
Nos anos 90, a explosão de bandas de rock em Curitiba fez com que o jornalista e
produtor Carlos Miranda chamasse a cidade de ‘Seattle brasileira’, na revista Bizz [...]
em referência ao movimento grunge que acontecia na cidade estadunidense.
No caso da “Seattle brasileira” pode-se ter uma noção mais clara do que é cena musical
do ponto de vista global, visto que um fenômeno muito parecido, articulado através do rock,
mais especificamente o subgênero grunge132, se repetia simultaneamente em uma cidade dos
Estados Unidos e outra no Sul do Brasil, em Curitiba. Por esta lógica, o conceito de cena
musical pode ser entendido também como o conjunto de agentes que a constitui a nível mundial:
locais de apresentação e o circuito formado pela movimentação entre estes locais; o público e
seu próprio comportamento, suas identidades e gostos; intérpretes e compositores; veículos de
comunicação de radiodifusão, jornais, redes sociais e demais espaços virtuais especializados.
131
Fonte: goo.gl/vsR9mX
132
“[...] a música grunge desenvolveu-se inicialmente na região de Seattle, Estados Unidos, no final dos anos de
1980” (SHUKER, 1999, p. 152)
235
Cena, para mim, é uma manifestação cultural que sempre vai existir. E ela existe em
todas as áreas porque sempre vai ter algum artista se manifestando. Existe cena em
Curitiba? Sim, existe como em qualquer outro lugar. E pessoas muito boas! Só que o
mundo não comporta todas essas pessoas.
Fica claro que a “cena” que os músicos de Curitiba nos anos 1990 e 2000 se referiam
não era a mesma “cena” que Cyro se refere, que também não é a mesma definição de “cena”
que Straw propõe. Para os músicos, na maioria das vezes que surgia o termo “cena”, era com a
conotação de “subcultura” ou “movimento”. Cyro perguntava se existia cena em Curitiba, mas
236
o que a maioria dos entrevistados interpretava era se havia algum “movimento” curitibano, algo
que representasse Curitiba em termos de identidade musical local. Então, a partir desta
interpretação de “cena”, as respostas eram quase sempre negativas.
Straw explica que “movimento” ou “subcultura” são noções inscritas à cena e que
estão relacionados mais estritamente com os indivíduos e suas atividades e identidades. Ele
comenta que “cena é uma comunidade de significados superprodutiva”. Mais além explica que,
dentro de uma cena, “é produzida mais informação semiótica do que se pode racionalmente
analisar”133 (SHANK apud STRAW, 2006, p. 9, tradução nossa). Certamente, os músicos não
estavam se referindo à cena musical com o mesmo entendimento do conceito proposto no
âmbito acadêmico.
133
“[...] far more semiotic information is produced than can be rationally parsed”.
237
e autoral em Curitiba e suas interseções, aplica-se a “lógica de mudança social” (STRAW, 1991,
p. 374) que é mais relacionada com o “mercado ou pelo contexto de produção relativo a
instituições culturais” – bares, teatros, a Fundação Cultural, entre outras. As mudanças, em que
o principal filtro utilizado para validação são esses contextos institucionais ou mercadológicos,
elencam-se nesta “lógica social”. As disposições de repertório, por exemplo, cover ou autoral,
são moldadas por esses contextos das “lógicas sociais” dentro da cena roqueira curitibana.
É comum em Curitiba artistas convidarem conhecidos para “dar canja”, isto é,
performar uma canção como convidado do grupo musical que se apresenta em determinado
local. Mais além, existem as jam sessions, que são apresentações com a presença de vários
músicos de vários grupos diferentes, que se reúnem para performar repertório comum,
normalmente intercalando membros entre uma música e outra – num contexto informal, que
acontece mais por diversão.
Existem também, em contextos mais formais onde rege uma lógica de obtenção de
lucro pela instituição provedora, até mesmo eventos dedicados a esta prática, como foi, por
exemplo o Jam Session organizado pela banda Hawks no Tork’n’Roll no dia 15 de Dezembro
de 2019, em que subiram ao palco dezenas de integrantes de diferentes grupos musicais,
individualmente partilhando a performance com os organizadores. Tal prática confere prestígio
à casa noturna e ao grupo musical organizador, pois cria confraternização, fornece exposição e
compartilhamento de público entre artistas, converge material midiático para os idealizadores
por meio de postagens em redes sociais. Pode-se considerar que jam sessions e canjas são táticas
para se firmar alianças entre grupos musicais, audiência e instituições.
É possível elencar essas táticas como lógicas de mudança dos “movimentos
circunstanciais”, ou “práticas cotidianas” (STRAW, 1991, p. 374). A divisão desta lógica em
duas partes – esforços dos profissionais da música para obter prestígio; transformação de
alianças entre comunidades – apresenta-se sobrepostas no caso do exemplo das jam sessions.
Aliás, tais lógicas de mudança são abstrações que, na prática, não acontecem isoladas umas das
outras. Portanto, mesmo os esforços para reconhecimento e estabelecimento de alianças, quanto
as tensões institucionais e mercadológicas, quanto as lutas por validação no campo, se
sobrepõem no entendimento de como cenas musicais fixam ou modificam suas práticas.
À medida em que nos deparamos com as estruturas dessas lógicas de mudança,
diversos fenômenos chamam a atenção no âmbito do entretenimento musical da cidade. Da
mesma forma com que mudanças são acomodadas, rupturas também se formam. Pode-se citar
algumas rupturas de práticas por parte do comportamento de consumo do público dos bares que
também reformularam as cenas da cidade. Exemplo atual é o fechamento do Wonka Bar no ano
238
134
“[...] the making and remaking of alliances between communities are the crucial political processes within
popular music”
135
Canções de rock das respectivas bandas: ACDC (1979), Guns and Roses (1987), Midnight Oil (1987), Talking
Heads (1977), Creedence Clearwater Revival (1970) e Metallica (1991).
240
Surge a hipótese de que as práticas resistentes dos músicos com a escolha do repertório
se devem principalmente à demanda da audiência e não uma fixação por parte exclusiva deles.
Entendo também que não se trata de um provável envelhecimento do público roqueiro, como é
comum argumentarem, pois é frequente a presença significativa de jovens em concertos de
rock. A cena rock de Curitiba é dinâmica neste sentido, os jovens e os mais velhos dividem os
mesmos espaço, gostos semelhantes e afinidades parecidas em torno do rock. O que acontece,
em meu entendimento da cena, é que os mais velhos não recebem bem os novos subgêneros,
mesmo aqueles voltados ao rock, porém os jovens, além de consumirem as produções mais
antigas, são mais receptivos a grupos atuais. Ainda assim, com algumas exceções, não é o
suficiente para a boa receptividade de repertório atual na cena rock de Curitiba.
Estes mesmos apontamentos estão presentes em meu trabalho anterior (MACAN,
2017, p. 26) e, por serem oriundos de um acervo de rádio e TV dos anos 1990 (1996 a 2005),
demonstram que esse paradigma não é atual, apenas se repete. Paralelo aos dados coletados na
sessão de entrevistas do Ciclojam, Straw tece alguns comentários sobre uma manchete da
revista Billboard de 1990 com os dizeres “Reportagem especial – o rock perde aderência
enquanto outros gêneros ganham136. O autor explica que naquele ano se percebia uma dualidade
entre gostos musicais, de um lado a dance music de outro o heavy metal. Em Curitiba, conforme
já colocado, esta dualidade pode ser percebida entre o sertanejo universitário e o rock. Straw
lança duas hipóteses para o suposto declínio roqueiro: é um fenômeno cíclico, resultado da
mudança da fronteira política na música popular e/ou um sinal da ausência de novos artistas
trabalhando naquele gênero (STRAW, 1991, p. 371).
Pelo menos em Curitiba, é evidente que a cada dia surgem mais bandas de rock e,
apesar da vasta diversidade de manifestações musicais na capital, a proliferação de grupos
roqueiros e seus subgêneros é uma característica marcante da cidade, como coloca Rodriggo
Vivasz (informação verbal):
A quantidade de bandas (de rock) é muito grande apesar de hoje em dia o rock’n’roll
estar um pouco em baixa na questão de vendagem [...]. Hoje em dia os grandes shows,
que tem equipamento, são do sertanejo, é essa galera que tem dinheiro e que investe.
O rock anda meio pobre neste sentido. Já foi melhor nos anos 1980 e até nos anos
1990. [...] Curitiba sempre foi (uma cidade roqueira), nos anos 1980 tinha bandas de
rock [...], tem o Blindagem que é desde os anos 1970 [...] e é uma banda importante
porque eles abriram portas para todas essas outras bandas, principalmente na noite
curitibana. [...] sempre teve esse lado da noite curitibana ter bastante banda de rock.
[...] todo mundo curtia rock, virou meio moda, mas continua até hoje, saiu uma
quantidade de bandas que não dá nem para enumerar, então Curitiba sempre foi uma
cidade roqueira.
136
“Special Report – rock losing grips as other genres gain”.
241
Com um outro ponto de vista, Manoel Neto (informação verbal), afirma que isso não se
restringe ao rock e defende a ampla diversidade das práticas musicais em Curitiba:
Na verdade (atualmente) tem muito mais artista. Tem muito mais cenas. Tem muito
mais espaço. A gente tem pelo menos 50 artistas daqui que tiveram algum destaque
em cenário de nicho global nos últimos 20 anos. [...] o sentimento de pertencimento e
de cena e de você estar vivenciando culturalmente isso na cidade diminuiu, enquanto
que para os nichos não faz essa sensação porque eles vivem aquela cena, então para
eles a cena existe, mas a percepção generalizada é que não. [...] o rock é a maioria em
determinada classe, mas, o gosto do curitibano mostra que 38% a 40% ouve sertanejo
universitário e se a música evangélica é a mais produzida, ela é também a mais
consumida.
Embora seja comum a ideia de que o rock perdeu aderência nas últimas duas décadas
e isso se reflita em críticas já citadas nesta pesquisa, como por exemplo um “congelamento”
dos cachês, no contexto de Curitiba, a causa não é decorrente da diminuição do número de
artistas fazendo rock na cidade, como suposto por Straw. Pelo contrário, conforme a lógica
econômica da oferta e da demanda propõe, a oferta de determinado produto ou serviço é
inversamente proporcional à procura e ao valor atribuído a ele, como coloca Manoel Neto
(informação verbal):
Luciana Requião defende que isso é um problema nas lógicas de produção: “apesar da
‘aura romântica’ que pode envolver o trabalho de um músico, [...] estão presentes nesses
137
O texto foi editado com a devida autorização do entrevistado para evitar possíveis censuras por conta da
publicação de nomes de partidos, políticos e bares envolvidos nos esquemas de corrupção relatados.
242
[...] um agravante é que a gente tem um aumento da crise econômica no Brasil de dois
anos para cá e muita gente que sabe fazer um som e perdeu o emprego em suas áreas
querendo também tocar. [...] muito músico não se ligou que tem um fenômeno novo,
os caras estão tocando na rua XV por causa da lei [...] do artista de rua. Aí um
governante138 fez o seguinte [...] tem o uso do som, mas tem também o uso do solo,
que é na URBS139. [...] então eles dão alvarás para músicos que ficam tocando cover
e aí aquele local já está ocupado. Eles colocam uns laranjas de bairro, que são ligados
a associações de moradores que apoiaram a candidatura dele (daquele governante)
para ocupar o espaço e daí não dão mais o alvará do solo para os artistas tocarem, e
sai da rua a música autoral. [...] eles ficam emitindo permanentemente alvarás para
essas pessoas e não emitem para mais ninguém. Aí vários artistas não estão com
espaço em bar, não estão com espaço na rua [...] estão tocando na frente do bar, na rua
(sem regulamentação), e não tem cachê, eles pegam um troco e às vezes uma
comidinha. [...] aí eles (poder público) fazem essa sacanagem, liberam só para alguns,
para os mesmos e sempre é cover, [...] está se retirando o espaço dos artistas, além da
crise dos bares [...] além dessa nova crise econômica que faz com que empurre mais
pessoas que tinham empregos em outras áreas a tentar ganhar um troco de qualquer
jeito. [...] isso mina o mercado, ou seja, não tem a ver com a qualidade artística [...]
são essas leis econômicas que estabelecem a relação entre contratante e contratado no
qual os contratantes também estão em crise mas têm uma vantagem muito grande em
relação aos contratados [...] isso detona com a economia do setor.
Apesar de Straw apontar que cenas são fenômenos disruptivos, ele também reconhece
que elas podem trabalhar no sentido contrário. Nos parágrafos anteriores, com base na
experiência etnográfica, através da incitação de assuntos entre meus pares com o propósito de
138
O nome foi ocultado com a autorização do entrevistado para fins de evitar retaliações judiciais.
139
A URBS, é uma empresa de economia mista que controla o sistema de transporte público da cidade de Curitiba
243
levantar dados qualitativos para esta pesquisa, citei exemplos musicais e extramusicais de como
a cena musical rock de Curitiba tem trabalhado no sentido de fixar práticas. Reforço, no entanto,
que os exemplos foram colocados com o propósito de reafirmar a possibilidade de resistência
das cenas a mudanças e não com o objetivo de caracterizar a cena rock de Curitiba como
exclusivamente “engessada” ou arredia.
Para finalizar, segundo Straw, as cenas funcionam cada vez mais como espaços
conservadores “organizados contra mudanças”. O autor aponta que “dentro delas, gostos e
hábitos são perpetuados com o suporte de redes de instituições de menor escala (lojas e bares)”.
Ele comenta que as cenas podem ser como um “antídoto para uma economia de contínua
obsolescência e de modismo de curto prazo” (STRAW, 2006, p. 13, tradução nossa), o que
reafirma o carácter ambivalente das cenas, sendo tanto fenômenos disruptivos de práticas como
também fixadores.
Dentro do rock, por exemplo, “o movimento punk surgiu como uma alternativa ao
sistema autoritário, à música comercial e à complexidade do rock progressivo” (MERCER,
2017, p. 73). Porém, em Curitiba, apesar de haver uma certa efervescência do estilo no final
dos anos 1970, o movimento na capital paranaense é descrito como sendo um tanto desprendido
de pretensões políticas. Em depoimento, Kevan ‘Killer’ Gillies, vocalista da Carne Podre, a
primeira banda punk de Curitiba, surgida em 1978, explica: “nos tornamos punks pela razão
mais primária que é querer e não saber tocar” (2017, p. 73). Em contraste a Gillies, Fernando
Tupan, baixista da banda punk Estação do Inferno, formada em 1983, comenta: “a gente queria
mudar algumas estruturas dentro da sociedade e começamos a nos posicionar contra a ditadura”
(2017, p. 75).
Os gêneros musicais delimitam a produção de sentido demarcando a significação e os
aspectos ideológicos dos textos, o que corrobora na demarcação de limites, por isso alguns
gêneros remetem a determinados comportamentos, o que, por exemplo, torna a possibilidade
de uma banda punk de direita conservadora um contrassenso no âmbito deste gênero e, daí
entende-se o porquê de um debate crítico, inclusive com tom de deboche, presente na referida
postagem apresentada anteriormente (PEREIRA DE SÁ, 2011, p. 153).
Um ponto destacado por Straw que se conecta a este raciocínio anterior apresentado
por Pereira de Sá, e também percebido em minha etnografia, é que grande parte dos roqueiros,
sobretudo em Curitiba, acredita que o gosto pelo gênero da música pop está ligado à “era das
244
modas” e que isso é passageiro até que os valores duráveis do rock façam seu retorno. Tal
discurso se exemplifica na fala de Rodriggo Vivasz (informação verbal):
[...] o sertanejo é uma moda. Essa galera toda aí que está indo nesses bares, a Shed
(por exemplo), pode ver, lota! Os caras vão atrás das mulheres e nem sempre os caras
gostam de sertanejo. [...] se o modismo fosse rock, essas pessoas estariam nos bares
de rock. [...] o rock não é só uma questão de moda, o rock é um estilo de vida, o
rock’n’roll é uma questão cultural e acho que aqui em Curitiba esta questão cultural
do rock é muito presente.
140
The decline of heartland rock as a specific form is less significant than is the [...] waning of a distinctive sense
[...] of rock music's centre.
245
Tomando como base a definição mais objetiva de cena musical, que seriam as
conexões entre as práticas musicais e o local no qual estão inseridas, o próprio contexto
temporal em que foi definido o termo cena – globalização – já sugeria repensar as relações entre
local e global. A partir das bibliografias utilizadas sobre o rock curitibano, do acervo do
Programa Ciclojam 1996-2005, da etnografia, das entrevistas com músicos atuantes por mais
de trinta anos na cidade, entre outras evidências, fica claro que nunca houve grande
significância de uma possível identidade curitibana no rock da cidade. Pelo contrário, como o
próprio apelido “Seattle brasileira” já sugeria nos anos 1990, a cidade produzia bandas de rock
aos moldes internacionais e isso ainda é uma tendência inerte. Não significa que não exista uma
“identidade” sonora musicalmente curitibana, ela apenas é imprecisa e pouco notável no rock
autoral da capital paranaense.
As diversas tecnologias de comunicação digital que surgiram, com abundância
principalmente a partir de 2005, reforçaram este carácter global à cena roqueira curitibana,
extrapolando seus limites ao ciberespaço em sites, blogs, páginas de redes sociais, perfis em
plataformas musicais, entre vários outros ambientes virtuais. A dimensão virtual permite vasto
acesso a material sonoro e ideológico da cena roqueira, o que, por exemplo, possibilitou este
trabalho atingir um número vasto de agentes musicais e de material para análise, o que antes
era restringido à experiência física pessoalmente situada
Frente a um aparente descrédito pela noção de cenas musicais virtuais, sugiro que o
principal desafio para a ideia, e talvez o mais produtivo, é entender como estas cenas podem
trabalhar para levar a música àquele contexto original exemplificado tanto por Manoel Neto,
como também por Levý – em que seria menos aderente à propriedade; semelhante ao contexto
original da mensagem, que se dava na oralidade. Um possível caminho, penso estar atrelado a
ideia de inteligência coletiva, conforme explica o autor, “o especialista de uma tecnologia ajuda
um novato enquanto um outro especialista o inicia, por sua vez, em um campo no qual ele tem
menos conhecimentos” (LEVÝ, 2014, p. 29). Assim, mesmo havendo controvérsias, a
facilidade de obtenção de informação através da inteligência coletiva, desmistifica aquela noção
fetichista a respeito do artista, “como um ser com capacidades extraordinárias, [...] naturais,
associadas à noção de dom e talento”, e não no estudo regular de música (REQUIÃO, 2008, p.
136-137).
A contribuição da cibercultura à noção de propriedade coletiva da música, à ideia de
que todos podem aprender e interpretá-la, somada à possibilidade de integrá-la frequentemente
246
141
“Padrões”.
247
algumas práticas como simulação, que é o caso, por definição de grupos cover, também nas
incorporações de apresentações autorais e mesmo de locais de apresentação. Esses fenômenos
estão fortemente enraizados nas práticas roqueiras da cidade, como já descrito na etnografia.
Cenas virtuais são também por definição, dado às dinâmicas do ciberespaço, ambientes
simulados. Portanto, entendo que desbravar as camadas de simulações e simulacros dentro das
práticas do rock curitibano, tanto em ambiente online quanto offline e, mais além, no diálogo
entre esses polos, é um campo produtivo.
funções elencadas por Merriam (1964), o entretenimento é com toda certeza a principal e mais
explicitamente perceptível. Porém, não é a única função da música encontrada nesta cena.
As funções de expressão emocional; da apreciação estética; da comunicação através
de signos musicais; da representação simbólica – como é o caso incontestável das
“performances musicais simuladas” na cena, ou os covers; da resposta física por meio da
interação da plateia como recurso de performance; de se fazer cumprir normas ou ativar
comportamentos sociais – notável no pico de consumo de bares durante as apresentações
musicais, ou quando a música é iniciada por um aparato mecânico, indicando o fim de uma
apresentação musical ao vivo, exemplificam como variadas funções tomam parte do
entretenimento musical roqueiro da capital paranaense.
atenta, é aqui entendido como uma incapacidade “funcional” do indivíduo em estabelecer filtros
de escuta e de se entender o próprio gosto musical. Nesta lógica, se gosta de determinada música
a partir do quão famosa ela é e não por efeito de escuta crítica da composição artística.
Embora seja alvo de críticas, é um fato muito recorrente na cena rock estudada, como
exemplificado pela estandardização dos repertórios, isto é, à medida que o tempo passa, mais
as práticas e as escolhas se adensam, apesar de um contexto temporal em que as mudanças são
favorecidas pelos meios de comunicação digital. Um dos fatores que contribuem para essa
padronização é a incapacidade do público, e também dos artistas, em absorver novas referências
dentro do terreno no rock, prática que contradiz a perspectiva de Anderson (2006) em que o
autor ressalta uma força que seria capaz de nivelar as produções de nicho com os hits.
A supervalorização de cantores, a ideia do “ídolo” musical como aquele personagem
capaz de comandar a audiência e incitar emoções é bastante comum nas expressões roqueiras
curitibanas. Conforme exposto, espera-se do vocalista de uma banda de rock uma atuação
extrovertida que seja capaz de entreter. Adorno criticava esta fetichização dos agentes musicais
pois, segundo essa lógica, a atenção é desviada da música para uma figura humana particular.
Isso também é notável nas expressões do rock neste polo da cena pois, muitas vezes, os cantores
mais reconhecidos não são os que desempenham uma função musical precisa e sim os que têm
a capacidade de entreter, animar, provocar respostas físicas e interações na plateia.
Trazendo a discussão para o contexto atual e, até mesmo propondo uma futura
discussão, não seria a mesma lógica apontada por Adorno, no início do séc. XX, aquela
referente à idolatria por parte da audiência pelos vocalistas e guitarristas do rock a partir da
segunda metade do séc. XX? A alta exposição midiática aliada à exploração da imagem dessas
funções, acarretou no desejo de grande parte dos músicos atuais a buscarem a guitarra elétrica
ou a voz como instrumento, fato é que, também em Curitiba, a maior parte da cena musical rock
é formada por cantores e guitarristas.
Em Curitiba é notória a fetichização do trabalho do músico por parte dos próprios
músicos que, muitas vezes, são incapazes de refletir sobre sua posição de trabalhador do
entretenimento. Muitos músicos se deslumbram pela exposição e, mesmo sob o revés da
irregularidade da profissão e das péssimas condições de trabalho, calotes, cachês baixos, se
encantam com a própria ocupação pelo fato de estar em evidência. Fato é que grande parte dos
músicos em Curitiba não têm na música sua principal fonte de renda e atuam no mercado
musical da cidade por hobby.
Neste caso, aplicando a visão de Adorno, a alta exposição midiática de bandas de rock
proliferou uma infinidade de hobbistas, pessoas sob efeito de fetiche que não dependem da
251
música para obtenção de renda, mas mesmo assim disputam o mercado com músicos
profissionais para gozo próprio. Levando em conta as leis de oferta e demanda, pode-se
entender que a grande quantidade de indivíduos agindo sob esta lógica ajudou a minar o
mercado de música ao vivo da capital paranaense.
Ao conversar com Manoel Neto sobre este dado, principalmente no que refere à
atualidade da cena musical rock de Curitiba, ele comenta (informação verbal): “se ele (artista)
quiser ser guitar hero e fama, ele nasceu na época errada porque essa fase já acabou. [...] Hoje
em dia ‘ser guitar hero’, substitua isso por gamers, youtubers, etc”. O interessante dessa
exposição é que ilustra mais um ponto em que a lógica de Anderson (2006), de que os nichos
no meio digital ganhariam vantagem competitiva em relação à grande indústria, na prática, não
acontece com tanta facilidade. A estrutura ainda é muito parecida com o broadcasting, em que
muitos consomem o conteúdo de poucos, só que convergiu para o ciberespaço. Isto é, ainda
existe uma lógica de comportamento semelhante à do mass media, porém em ambientes virtuais
como o Youtube, ou o Instagram. O que Manoel aponta é a necessidade de readequação em
forma e conteúdo desses agentes musicais que buscam fama e prestígio, do presencial para o
digital.
Tem-se de um lado a marginalização com um trabalho geralmente sem
regulamentação, sujeitos muitas vezes a calotes por parte dos donos de casas noturnas ou
mesmo à exploração por alterações contratuais feitas verbalmente durante o momento da
apresentação, em que o músico se vê pressionado a permanecer mais tempo trabalhando do que
fora combinado, a não remuneração dos honorários depreendidos em atividades extras, como
por exemplo a passagem de som, a não visibilidade do esforço colocado em ensaios, estudos
musicais, criação de repertório, elaboração de arranjos, coreografias, entre outros.
De outro lado, uma supervalorização fetichista por parte da audiência que,
frequentemente vê o profissional da música como um ser superior, dotado de capacidades
mágicas, uma crença absoluta do público na necessidade de talento natural para a realização
das atividades musicais, a glamourização decorrente da ocupação ser, por vários fatores, o
centro das atenções no local. Fato que se conecta com a reflexão de Adorno: “o caráter fetichista
da música produz, através da identificação dos ouvintes com os fetiches lançados no mercado,
o seu próprio mascaramento” (ADORNO, 1996, p. 92), isto é, o mascaramento da atividade
musical em si, em todas suas etapas e a percepção irreal do músico como sendo um ser dotado
de capacidades superiores.
252
“Autoral Não Paga Conta”, apesar de preencher os pré-requisitos colocados por Wenger, difere-
se fortemente do evento apontado por Torres e Araújo (2009), o Canja de Viola, uma vez que
o primeiro é esporádico e o segundo perdura por mais de 30 anos.
O segundo ponto é, no sentido totalmente oposto, a partir do olhar de Wenger, é
possível elencar o conceito de comunidades de prática musical também no âmbito de grupos
em que o fazer musical é essencial para a organização das sociedades em que eles integram, tal
como o povo Venda, amplamente discutido na obra de John Blacking (1974) em que a
aprendizagem musical é fator determinante para o desenrolar das práticas que os organizam
socialmente?
Por terceiro, no âmbito das cenas musicais, Straw conclui que o que lhe causa real
interesse são os caminhos pelos quais alianças musicais são formadas (STRAW, 1991, p. 385).
Seguindo neste propósito, de que forma o compartilhamento de identidades através do fazer
musical em comunidades proporciona alianças e afetos dentro de cenas musicais?
O termo comunidade de prática se apresenta como um conceito produtivo nos casos
levantados, tanto para a conservação e disseminação de conhecimento específico, quanto para
a solução de problemas comuns, fica então a reflexão de, no mesmo sentido das críticas
colocadas sobre cena musical, de Will Straw, até que ponto o termo comunidades de prática
pode ser flexibilizado para entendermos as organizações de grupos sociais que giram em torno
de práticas e domínios específicos.
Por fim, a reflexão sobre os conceitos apresentados nesta seção ilustra a relevância dos
indivíduos em sua atuação no tema maior proposto neste estudo, que é cena musical. Mazer
demonstra este fato, ao discorrer que a participação dos atores sociais é “vital para a existência
de uma cena, pois sua configuração é baseada na afetividade e identificação dos indivíduos”
(MAZER, 2017, p. 4).
Herschmann destaca que cena são “relações de todo tipo que são construídas no
espaço”, tendo a música como fator mediador (2013, p. 49). O carácter dessas relações, mas
principalmente o carácter da audiência se dá na interseção das organizações em que a música é
disseminada que, no caso deste estudo são principalmente bares – no estilo moto bar, pub e
americano – e meios de comunicação, plataformas de streaming, rádio e TV, entre outros
(STRAW, 1991, p. 384).
254
Dentro da noção de “espaços praticados”, que são aqueles caracterizados pelos rastros
de seus frequentadores, assume-se que existe então uma conexão entre território e as expressões
culturais nele presentes. Em cenas musicais, sobretudo na cena rock de Curitiba, se lançarmos
esta noção a nível de microambiente, com a cartografia é possível identificar essas expressões
culturais particulares com os locais em que se fazem mais frequentemente presentes. Um
exemplo é a região do bairro São Francisco, que possui grande quantidade de bares e a maioria
deles destina-se à prática de repertório underground ou autoral.
Em um nível de entendimento mais amplo, podem haver rupturas da cultura local com
o espaço em que ela uma vez foi inserida, originando uma “perda de relação natural” entre o
sociocultural e os territórios, o que é chamado por Canclini de “desterritorialização”. Esse
fenômeno é intensificado pelos fluxos econômicos e culturais internacionais e pelas lógicas de
modernização da cultura apropriadas por instituições privadas, que moldam o carácter das
expressões artísticas subsidiadas no sentido (2008).
Um possível exemplo razoável é o caso da “Seattle brasileira”, que ocorreu devido à
grande quantidade de bandas grunge – que era um estilo proveniente dos Estados Unidos,
sobretudo da cidade de Seattle e Los Angeles – intensificado na cena musical rock paranaense
do início dos anos 1990. Isto vem sendo percebido até hoje e ilustra, ainda que em nível
superficial, o fenômeno de desterritorialização colocado por Canclini, pois naquela época as
características dos grupos musicais roqueiros da cidade relembravam mais às dos grupos da
cidade norte americana do que dos da própria Curitiba (CANCLINI apud PEREIRA DE SÁ,
2011, p. 158).
Em Curitiba, é comum a crítica por falta de espaço para a música na cidade, sobretudo
a autoral (MACAN, 2017, p. 26). Dado a este fato de conhecimento geral entre os artistas na
cidade, três bandas curitibanas criaram o festival “Autoral Não Paga a Conta”, que aconteceu
no dia 15 de Dezembro de 2018 no Basement Cultural142, em Curitiba. Ben Hur Auwarter,
guitarrista da banda de rock curitibana Electric Mob, colocou em um de seus posts de
divulgação do evento no Facebook, “quando não se tem espaço, a gente cria”, o que dialoga
com o caso das raves londrinas apresentado por Pereira de Sá (2011).
142
O Basement Cultural situa-se em Curitiba na Rua Des. Benvindo Valente, 260, no bairro São Francisco e “é
um espaço criado e destinado à atividades com que promovem todo o tipo de arte e cultura, como: shows, mostras,
exposições, teatro, apresentações circenses, bazares abertos, workshops e tudo relacionado à cultura”. Fonte:
https://bit.ly/2DbXjWO
255
Vergara (2013) e Augé (2008) discutem as relações com o espaço, uma vez que tenha
sido recortado e significado a nível emocional e social pelas comunidades que o ocupam,
estabelecendo os conceitos de território, territorialidade, lugar e não-lugar. Em Curitiba, se
tomarmos como exemplo o próprio posicionamento dos principais negócios em que se
acontecem apresentações musicais, moto bares, pubs e bares americanos, tem-se aí a estratégia
de significação do território. Junto a esta ideia, levando em conta as comparações com a escala
humana, propostas por Straw (2006) e Vergara (2013), a disposição (interna e externa) desses
locais na cena são parte dessas significações a nível dispositivo.
As diferentes formas de acesso aos locais, principalmente os caminhos que levam a
esses lugares, as rotas de GPS ou os atalhos urbanos também participam das significações, neste
caso, ao nível do espaço sistêmico. O bairro em que estão inseridos, a regional da cidade, a
própria cidade em si, o estado, a região do país em que se encontra esses lugares, dentro de uma
noção de escala, exercem significação. Em Curitiba, por exemplo, dizer que se vai a um bar
localizado no bairro do Batel é também pressupor uma classe social específica, uma faixa de
preço ao entretenimento oferecido, grupos musicais específicos que compõem o histórico desse
lugar, entre outras significações a nível sistêmico.
Os três níveis propostos por Vergara (2013) se sobrepõem, mas o mais perceptível na
relação da cultura com o espaço em que está inserida, sem dúvida é o nível simbólico e
expressivo. Diversas canções e outras obras de arte ecoam a relação emotiva dos indivíduos
com o local em que estão presentes. Em Curitiba isso é mais presente na música autoral que,
embora não haja uma identificação explícita puramente musical com modos de se fazer música
“curitibana”, alguns elementos paranaenses as vezes aparecem, tal como: o pinhão, a araucária,
a gralha-azul, a estrada da graciosa, os bairros de Curitiba, entre outros componentes que são
signos locais.
256
143
É uma franquia estadunidense de restaurantes temáticos com mais de 191 unidades espalhadas em 59 países,
cujo tema é o Rock 'n Roll. Está instalada no nobre bairro do Batel, no coração da cidade, e com capacidade para
receber aproximadamente 360 pessoas.
257
pois dentro deste espaço o indivíduo é destituído de sua relação sociocultural com o local
geográfico em que está situado, o que configura também “desterritorialização” segundo o
raciocínio de Canclini.
Da mesma forma, para atender as demandas de um não-lugar, como o Hard Rock Café,
já que este bar oferece apresentações ao vivo, as bandas locais também precisam se adequar à
proposta da casa de shows porque o público é, em grande parte, de característica transitória –
pessoas em viagem que passam por ali pela característica comum do local. Então a conexão do
conceito de não-lugares e cenas musicais pode-se tornar significativa neste sentido, ao propor
uma avaliação da readequação de práticas que esses locais demandam, principalmente por parte
dos grupos musicais ali atuantes, que em meio a este contexto, precisam realinhar suas
características, muitas vezes personalizar suas performances, decorrente das demandas
neutralizadoras que um não-lugar propõe.
Quando estive presente para me apresentar no Hard Rock Café me deparei com dois
(não) lugares dentro do mesmo território. De um lado a parte do restaurante que o público
percebe sensorialmente, com as impecáveis decorações, exposições de roupas de astros e
estrelas do rock, instrumentos – que também geram questionamentos quanto à própria
autenticidade –, etc. De outro lado, tive contato com o backstage, um local neutro, de acesso
restrito aos funcionários, quase todo pintado de branco, sem quadros nas paredes, com
corredores confusos, um pouco caótico e apertado. A parte projetada em que se recebiam os
clientes é aconchegante, os atendentes estão sempre sorrindo e busca-se viver intensamente a
experiência através de signos do rock’n’roll incorporados ao local. Ao passar por uma porta
“restrita aos funcionários”, o ambiente muda drasticamente.
No momento em que precisei passar pela cozinha para ter acesso ao camarim
improvisado no andar superior do prédio, reparei que durante a preparação dos pratos os
cozinheiros ouviam no rádio o gênero sertanejo universitário, que é “abominado” pelo público
roqueiro. Então, não somente nesse sentido que defendo que as simulações estão presentes nos
não-lugares, assim como as bandas cover o importante é “parecer” mais próximo possível de
uma referência ideal.
Além da noção de emosignificação em lugares por práticas culturais, é possível
entender “territorialidades sônico-musicais” como processos de significação e ressignificação
de espaços geográficos atrelados às práticas musicais que nelas se desenvolvem. Estes
processos estão intimamente ligados com a lógica em três níveis apresentada por Abílio
Vergara, porém neste caso, trata-se de uma reflexão direta das experiências em música
258
Alguns desses locais são temporários, servem hora ou outra como palco de festivais
momentâneos ou demais eventos, que é o caso do Museu Oscar Niemeyer, do Usina 5, da
Pedreira Paulo Leminski, da Ópera de Arame e da Live Curitiba, do Teatro Positivo, entre
outros. Coincidentemente, estes são locais de grande porte, que recebem em torno de mil
pessoas (Ópera de Arame, com capacidade de 1572) a aproximadamente 30 mil expectadores,
que é o caso da Pedreira Paulo Leminski. Alguns desses locais só abrem para apresentações de
artistas amplamente difundidos pelas mídias nacionais e internacionais.
Por exemplo, segundo o site da Gazeta do Povo (2019) entre Agosto e Setembro de
2019, os principais concertos na Pedreira Paulo Leminski são dos artistas de rock internacional
Europe, Scorpions, Whitesnake, Bon Jovi e, os nacionais Sandy & Junior, que atuam numa
mescla de estilos entre pop e sertanejo. Nos demais locais de grande porte da cidade, nesse
259
mesmo recorte, também se percebe a mesma lógica pois, são ocupados apenas por artistas
difundidos na grande mídia de massa nacional e internacional, como é o exemplo das seguintes
atrações em Curitiba neste período recortado: Celtic Woman; Fernando e Sorocaba ;
Thiaguinho ; Marcelo Falcão ; Call The Police ; e Marília Mendonça .
Por limitação de tempo, espaço e também por relevância da discussão, optou-se por
exemplificar as atrações que ocupam os maiores espaços de Curitiba apenas entre a janela
temporal de Agosto e Setembro de 2019, mas, o padrão se repete em todos os meses, em todos
os anos. Não há artistas de Curitiba ocupando frequentemente esses espaços, em nenhum gênero
musical específico, de modo que eles ficam reservados a atrações mainstream.
Todavia, existem poucas exceções. Uma delas é o Festival Crossroads no Dia Mundial
do Rock, que acontece no espaço Usina 5 promovido pelo bar curitibano Crossroads com
atrações nacionais e também locais.
7.3.1 A cartografia
cruzarmos os dados que demonstram as Regionais Matriz, Portão, Santa Felicidade e Boa Vista,
respectivamente no topo do ranking de renda da cidade e a disposição dos locais sociais
apresentada pelo mapa da divisão horizontal da cidade.
Um dado que comprova a não coincidência desta correlação apresentada nos
parágrafos anteriores, foi que a concentração de locais por Regional seguiu o padrão
determinado pela renda mensal de cada uma delas. A Regional Matriz é a que possui mais locais
para música ao vivo e é também a que possui a maior renda mensal por domicílio, seguida pela
Regional Portão, Santa Felicidade e Boa Vista, nessa ordem tal qual o ranking de rendimento
nominal. O mesmo raciocínio funciona para as que possuem menos locais com música ao vivo,
sendo a Regional Tatuquara a que possui menor renda mensal e também menos locais. Voltando
à fundamentação teórica proposta por Straw (1991; 2006), é possível afirmar então, com base
nestas correlações que cenas são fenômenos fortemente influenciados pela economia local e
com alcance e propensão a concentração de espaços, diretamente proporcional à renda das
regiões que ocupam. Em outras palavras, onde há maior concentração de renda, há também
mais oferta de entretenimento.
usuários. Isso é muito comum na cena musical rock de Curitiba porque, mesmo que uma pessoa
nunca tenha ido pessoalmente a determinado lugar, ela pode ter um acesso prévio por meio das
contribuições de outros usuários, recurso amplamente utilizado neste trabalho, principalmente
na cartografia das regiões sociais em que muito desempenhei o papel de ciberflâneur.
O segundo ponto colocado por Levý é o paradoxo da substituição. Segundo essa ideia,
já que o ciberespaço tira a obrigatoriedade das pessoas em estar de corpo presente nas situações
da vida cotidiana, elas trocariam o físico pelo virtual. Em determinados casos na cena musical
roqueira de Curitiba isso pode ser exemplificado. Como é o caso dos vídeos ao vivo ou dos
stories pela plataforma Instagram. Por meio dessas tecnologias, os usuários têm acesso ao
conteúdo de diferentes locais de apresentação em tempo real.
Outro ponto que favorece esse acesso é o filtro de conteúdo colocado pelos usuários
nessa rede. Como a novidade na era pós-digital perdeu sua carga apelativa, o que se explica
pelo próprio excesso de informação, é comum que se publiquem apenas os highlights dos
eventos, assim se captura a atenção das pessoas sem que isso demande muito tempo delas,
comprimindo a informação apenas ao “mais interessante” (LONGO, 2017). Com isso, um
mesmo usuário pode ter acesso às vastas manifestações em diferentes locais da cidade com
pouco tempo de uso e sem sair de casa.
O paradoxo se dá porque com este fato, surge a crença de que as pessoas trocariam o
físico pelo real, entretanto, claramente isso não acontece. Os materiais em tempo real como os
stories e os vídeos ao vivo são, para além de fins de registro, publicidade que, de fato, atrai
pessoas aos locais de apresentação. Reforçando o argumento de Levý de que quanto mais as
pessoas se comunicam, mais elas se deslocam no espaço físico, é percebido que quanto mais
material desta categoria sobre determinado local, e quanto mais difundido pelas redes de
relações, mais frequentado fisicamente ele será.
Atualmente, entendo não haver tão frequentemente o terceiro ponto levantado por
Levý, que é o da assimilação. O autor critica a noção que se tinha nos anos 1990 de que o
ciberespaço funcionaria tal qual as estruturas dos territórios físicos. De fato, em consonância
com o que Levý apontara, percebe-se que a própria inteligência coletiva no ciberespaço deu
conta nas últimas duas décadas de eliminar essa questão, o que é comum em cursos, vídeos,
artigos e demais conteúdos online e gratuitos que informam os usuários sobre o ambiente
digital, por exemplo.
No âmbito da cena roqueira isso é frequente, tanto que o domínio sobre o
funcionamento do ciberespaço culmina em estratégias atualmente essenciais para o
desempenho não somente da profissão músico, como da informação coletada e produzida por
262
frequentadores. Essa vivência ativa no ciberespaço ajuda a eliminar a crença de que o meio
virtual se estrutura tal qual os meios físicos.
O quarto ponto seria então o da “democracia eletrônica”, modos de articulação que
permitem uma comunicação mais transversal, sem a ordem hierárquica social imposta por
lógicas territoriais. Um exemplo prático foi a recente articulação de músicos curitibanos em
meio digital sobre uma rígida medida da prefeitura que limita a liberdade de artistas de rua em
ocupar espaços públicos. Esta quarta categoria traz mais à tona o papel da inteligência coletiva,
ao que se exemplifica pelos sistemas de feedbacks em tempo real, sistemas de avaliação e,
principalmente, pela capacidade de tornar os “grupos humanos mais conscientes daquilo que
fazem em conjunto” em relação à vida na urbe.
Entendo que, juntamente ao proposto por Levý, as formas de se perceber e de se tomar
decisões com relação ao espaço na cidade, seguindo os níveis propostos por Vergara também
são alteradas pela inserção do ciberespaço e da cibercultura na vida cotidiana das pessoas. Um
exemplo recente em Curitiba, que reconfigurou o entretenimento noturno, foi à ampla adesão à
aplicativos de carona, como o Uber e o 99 Pop. Esses aplicativos utilizam a lógica da economia
colaborativa somada às diversas possibilidades do ciberespaço e das tecnologias mobile para
catalisar a oferta de caronas com as demandas, o que é tido como inovação no transporte urbano.
Isso afetou amplamente a vida noturna curitibana porque eliminou a necessidade das
pessoas em ter um carro próprio para frequentar determinados espaços, mesmo os mais distantes
e com endereço desconhecido pelo usuário. Por exemplo, se antes um músico ou frequentador
de casas de entretenimento precisava arcar com custos de estacionamento, combustível, taxi,
entre outros, com esses aplicativos, esses custos são barateados.
Isso se dá porque, por meio do GPS – conectado ao ciberespaço – o app em questão
localiza em tempo real um motorista credenciado que esteja próximo ao local para oferecer o
serviço, diferente de uma rádio taxi, por exemplo, em que essa localização se dá de forma
demorada, por rádio e acaba custando mais caro. O uso desses aplicativos também diminuiu a
demanda por transporte público pois os valores são quase os mesmos, com a diferença que o
transporte por carro é mais confortável e mais rápido.
Mais além ainda, esses apps, por possuírem os sistemas de classificação e comentários
públicos, condicionam o serviço para ter mais qualidade e ser mais seguro. Então, se um
frequentador ou um músico precisa sair de determinado estabelecimento às 03:00 da manhã,
com essas tecnologias ele se abstém de ficar esperando um ônibus “madrugueiro” num ponto
público, o que pode ser perigoso dependendo da localidade, de ter que pagar por viagens caras
263
de taxi, ou ainda de correr o risco de se acidentar ou de ter que pagar multas em blittz por ter
ingerido álcool e dirigido.
É muito evidente que essas possibilidades providas pelo ciberespaço democratizaram
mais os espaços físicos porque, se antes um possível frequentador de casas de entretenimento
encontrava algum tipo de resistência em buscar diversão noturna por conta das dificuldades do
“mundo offline”, pelo menos de cinco anos para cá isso não acontece mais. Mesmo músicos,
profissão em que era quase obrigatório a posse de um veículo próprio – dado a quantidade de
equipamento para se carregar – agora foram aliviados dessa preocupação extra.
autoral curitibana, dado à falta de demanda por esse tipo de música. Revistas impressas ou
digitais, colunas de jornal, entre outros meios de divulgação existem em pequena escala. Não
há uma agenda cultural de rock curitibano divulgada e visibilizada em grande proporção,
comparando-se com as das grandes produções nacionais e internacionais que visitam a cidade.
No quinto elo da cadeia, o direcionado ao consumo, a própria extensão do trabalho até
então já exemplifica como há a predominância dos hits sobre a música autoral na cena rock.
Isso é uma característica que estabelece rupturas na cena musical rock de Curitiba, dado que a
música autoral e o cover tendem a não se misturar. Porém há consumo significativo de rock na
cidade, exemplificado pela quantidade de locais de apresentação, pela existência de uma rádio
direcionada ao gênero, pela presença frequente de supergrupos internacionais, entre outros
fatores.
A meu ver, esses “buracos” na cadeia produtiva são efeitos da falta de uma estrutura
consolidada de pré-produção na cidade. Alvaro Ramos, ao comparar o cenário musical com o
cinematográfico, corrobora essa ideia ao ressaltar que “o cinema ganhou um certo glamour, tem
lá os festivais de curta metragem, que tem premiação. [...] Isso passa por um outro conceito,
que é o de formação de plateia”, que é um conceito relacionado à etapa de pré-produção da
cadeia produtiva.
Existem na capital paranaense iniciativas públicas para promover música, como a
Oficina de Música de Curitiba, a Virada Cultural, entre outras medidas municipais. Porém é
notável a falta de festivais públicos direcionados à música autoral, o que colabora para o
problema de formação de plateia. Por exemplo, Bacchieri (2012) demonstra como os festivais
autorais impactaram a música do Rio Grande do Sul e ajudaram o estado a formar audiência
direcionada à música local, o que é sempre motivo de comparação entre as audiências
riograndenses, que são conhecidas por consumir a música local, e o público paranaense, que é
conhecido pela lógica contrária.
O que se entende, de modo geral, é que fica a cargo do músico buscar preencher essas
lacunas na cadeia produtiva. O músico trabalha de forma independente para achar seu próprio
nicho de mercado, quase sempre por meio de estratégias digitais. A gravação dos trabalhos
também se dá de forma independente, pois são poucos os selos de gravação curitibanos. A busca
de conhecimento sobre planejamento de marketing e publicidade também acontece de forma
autônoma, tanto quanto a divulgação, principalmente em meio digital. Então, dado a esses
“buracos” na cadeia produtiva, junto a fatores que são externos a Curitiba, de âmbito global,
surgem novas funções “extramusicais” à profissão de músico.
266
É possível arriscar um paralelo com a difundida teoria das hierarquias das necessidades
de Abraham Maslow para entendermos o porquê da desestruturação da cadeia produtiva da
música na cidade de Curitiba. Segundo Maslow, em linhas gerais, existem cinco categorias que
um indivíduo precisa preencher para alcançar a realização pessoal – que é o auge de todas as
categorias. Nesse pensamento, é necessário construir a realização pessoal em cima de bases de
necessidade (MASLOW, 1970).
A primeira base seria a das necessidades fisiológicas, seguida respectivamente por:
necessidade de segurança; relacionamentos afetivos; autoestima e conquistas; e por fim,
realização pessoal. A lógica de Maslow elenca essa ordem de necessidades em uma pirâmide,
de forma que sem atingir a primeira categoria de necessidades, um indivíduo não poderá atingir
a próxima e, consequentemente, não atingirá a última fase de realização pessoal. O
preenchimento ordenado de cada fase das necessidades é então condicionante para o alcance
das respectivas fases. Nesse sentido, um indivíduo que passa necessidades básicas como fome,
desamparo ou condições precárias de moradia, impossibilidade de realizar higiene pessoal e de
se vestir, não conseguirá atingir o nível posterior – de segurança – a menos que, anterior a isso,
estruture a base de necessidades fisiológicas.
Entendo que a estruturação de uma cadeia produtiva da economia da música local
obedece a uma lógica parecida tal qual o raciocínio de Maslow. Isto é, as etapas de produção,
distribuição, comercialização e consumo não podem se desenvolver com abundância sem a base
“invisível” da pré-produção. Ou seja, seguindo o raciocínio de Prestes Filho (2004), sem a base
estrutural oferecida pela presença de indústrias de instrumentos musicais, indústria de
equipamentos de som e gravação, matérias-primas para produção, fabricação de suporte, ensino
profissional, artístico e técnico e, a meu ver, principalmente formação de plateia, todo o resto
da estrutura da cadeia produtiva se torna instável e/ou subdesenvolvido. Metaforicamente, as
etapas de pré-produção são as “necessidades fisiológicas” da cadeira produtiva local.
De modo geral, desde o fichamento do acervo do Ciclojam (1996-2005) até apresente
pesquisa, nota-se que a maior parte da crítica sobre a cena musical rock de Curitiba é em torno
de um desejo por consumo local da música produzida na cidade. O consumo, seguindo pelo
paralelo apresentado com a ideia de Maslow, seria a última etapa, de “realização”. Portanto,
minha hipótese é de que sem a estruturação da base de pré-produção, a cadeia produtiva não
alcançará um consumo significativo da música local e essas críticas tenderão a se perpetuar. O
elemento local de maior significância na base deste raciocínio é a formação de plateia.
267
Poucas bandas de Curitiba tiveram acesso a contratos com grandes gravadoras. Mercer
(2017, p. 303) exemplifica este dado com uma breve história sobre a ascensão da banda
curitibana Sr. Banana ao mainstream, onde aponta as estratégias utilizadas pelo grupo
curitibano em 1994 para conseguir uma aproximação com a major Sony Music e depois com a
britânica Virgin Records, o que vai de encontro às reflexões de Straw (1991) sobre as lógicas
de mudança por “movimentos circunstanciais”. Em linhas gerais, segundo Almir Chediak,
conforme citado por Vicente (2006), “o importante para o músico (a fim de conseguir um
contrato) era não parecer independente”. Mercer ilustra bem este fato ao comentar o caso do
grupo Sr. Banana, que conforme o autor, foi uma banda planejada para fazer sucesso.
Atualmente, a maior parte dos artistas da cena musical rock de Curitiba é
completamente independente, isto é, desempenham a função por conta própria desvinculados
de gravadoras ou leis de incentivo. Mesmo com a possibilidade de recorrer a incentivos de
âmbito governamental, a maior parte desses artistas desacreditam ou simplesmente não
conhecem esses recursos, o que condiciona a atuação dos músicos nesse setor a uma forma
268
de streaming. O que ilustra esse dado é o fato de aproximadamente 90% dos entrevistados
acreditar que as mídias sociais são essenciais para venda de apresentações. Em Curitiba, das
bandas de rock que possuem música autoral, é comum que não prensem mais CD’s e reservem
a música autoral exclusivamente ao meio digital e para um nicho específico. Desses grupos, os
que fazem merchandising, se atém principalmente à venda de roupas e acessórios
personalizados com a própria marca. Surgiram também novas alternativas, como os event cards,
que são cartões comercializados com códigos de acesso online para aplicativos de reprodução
digital de música.
FIGURA 29 – EVENT CARD ZÉ RODRIGO
A ideia colocada por Vianna (2009) de uma indústria (musical) em rede, atualmente
se faz presente no cotidiano da cena musical roqueira. Não somente o grupo musical que se
apresenta ao vivo em determinada casa noturna, mas a própria casa noturna e a audiência
presente produzem material audiovisual, que é compartilhado publicamente nas redes sociais.
Nesse sentido, na indústria em rede, perde-se a noção de “propriedade” do material. Em outro
sentido menos passivo, a indústria em rede permite que as demandas moldem a forma e o
conteúdo de produtos musicais, não somente através de comentários e sugestões, mas por
exemplo, também por meio da participação em campanhas de crowd fundind144, onde o
colaborador tem a possibilidade de interferir diretamente no produto final.
Mais além, a forma de produção digital e em rede é uma realidade no âmbito das
gravações, por exemplo. É comum que, durante a gravação de um material musical, as várias
partes que o compõem sejam registradas separadamente, de forma autônoma, em locais
geográficos distantes, por pessoas em funções musicais diferentes e que, ao fim do processo,
144
Financiamento coletivo realizado por campanhas online.
270
compartilham suas partes em sites de armazenamento online para que o material seja finalizado
por um profissional alheio ao grupo musical, podendo estar inclusive em outro país. Dado os
itens elencados por Lemos (2005), atualmente isso é uma possibilidade cotidiana que exclui a
necessidade de o músico sair de se homestudio para execução deste tipo de trabalho e ajuda a
configurar o que se entende por indústria em rede.
De acordo com a perspectiva de De Marchi (2016), as mudanças iniciadas com a
introdução da cibercultura na vida cotidiana estão longe de se estabilizar. Embora tendo a plena
consciência da demanda extraordinária de estudos que um músico precisa para conseguir atuar
em sua profissão, sugere-se que o artista do séc. XXI tenha os devidos conhecimentos de
produção e disseminação de seus fonogramas, de seu marketing pessoal, suas redes e das
estratégias envolvendo o consumo musical, fatores que, como já revisado anteriormente
encontram-se facilitados pela ascensão do ciberespaço e da inteligência coletiva.
Durante a redação deste trabalho, a minha vivência na cena como músico profissional,
e o contato com outros estudiosos e colegas de pesquisa, percebemos com o Grupo de Pesquisa
em Etnomusicologia, GRUPETNO, novas demandas para a profissão músico. Dois dos itens
apontados na interseção das esferas são o que Henry Jenkins (2009) entende por Convergência,
que se refere aos múltiplos fluxos de informação entre mídias e, sobretudo, aos efeitos que isso
causa “na mente das pessoas” e, mais além, o que o autor classifica como “Textos Producentes”,
que são aqueles conteúdos mais propensos a serem compartilhados e envolvem um
entendimento mais amplo de como as redes funcionam (JENKINS, 2014, p. 248).
Como percebido durante a etnografia para a realização deste estudo, uma dessas novas
demandas para a profissão músico é o entendimento e o manuseio de tecnologias de
comunicação e marketing digital. Ao que já foi debatido anteriormente sobre a atuação no
mercado independente, completa-se a noção de que, cada vez mais, o profissional no ramo da
música precisa dominar estes processos de produção e distribuição a fim de acompanhar o
mercado e ofertar sua mão de obra.
Músico-transmídia seria então uma metáfora do conceito de Henry Jenkins e remete
ao profissional da música que, além de ocupar-se com o domínio da própria profissão, tem
autonomia para lidar no ambiente digital com o próprio planejamento de marketing e de
conteúdo, que domina as plataformas de comunicação online, consegue produzir e editar
material audiovisual e sabe, por diferentes fluxos narrativos, atingir seu público-alvo e
conquistar mercado de forma independente.
Isso se aplica ao debate sobre cenas musicais ao contrapor a ideia de Convergência
(JENKINS, 2009) com as lógicas de mudança colocadas por Straw (1991). Por exemplo, Straw
271
Eu nunca tinha ouvido falar, mas já tinha desconfiado que existia tipo uma ‘puxação
de saco’. [...] o cara vai lá, faz um solo cheio de ‘fritação’ e o outro vai lá e posta: ‘que
lindo’; só frases lindas, uma mais linda que a outra. [...] o Instagram funciona um
pouco assim, sabe? Quando você começa a interagir mais [...] o robozinho146 dele
começa a dar mais atenção para você. Existe tipo um código não oficial, assim, entre
as pessoas. Por exemplo, eu curto seus posts, então você curte o meu. Eu comento o
seu, então você comenta o meu. O cara separa um tempo do dia dele para só ficar lá
navegando, curtindo e comentando. Então eles ficam comentado qualquer coisa e daí
sai esses comentários aí. [...] o cara escreve qualquer coisa ali só para comentar e
passar para o próximo. [...] o ‘Grupo de Interação’ nada mais é do que uma
oficialização disso. Tem regras que você tem que concordar. São três passos: curtir,
comentar e salvar. [...] o robozinho do Instagram vai contando ‘esse vídeo foi
comentado, foi curtido e foi salvo por dez pessoas, então o vídeo é relevante’ – o
robozinho dá mais atenção para esse vídeo.
Ele explica que os grupos de interação são uma prática velada, secreta e que não é vista
com bons olhos para quem está de fora, mas ainda assim é muito comum nas redes,
principalmente no Instagram. Esses grupos utilizam o aplicativo de mensagens Whatsapp para
se organizarem e, sempre que algum membro faz um post em rede social, o grupo é acionado
por meio deste aplicativo de mensagens para interagir com a postagem em um período de tempo
limitado, por meio de elogios escritos no espaço destinado a comentários e “curtidas”, o que
acarreta numa manipulação do algoritmo da plataforma em questão. Ele ainda ressalta que a
maioria do conteúdo nem mesmo é visto, as pessoas do grupo de interação apenas reagem
positivamente como parte de um acordo coletivo velado dos demais usuários, que visa
manipular a rede para gerar mais destaque e prestígio para seus membros.
145
Preferi não expor o nome do entrevistado para preveni-lo de julgamentos.
146
Ele está se referindo ao algoritmo da plataforma em questão. Algoritmos são softwares que medem o
comportamento dos usuários numa rede social e a condicionam para reagir a esses comportamentos de acordo com
os interesses de seus gestores (GABRIEL, 2010).
272
147
Falsa performance de guitarra
148
Indicadores Chave de Desempenho
273
de burlar o algoritmo da rede social em busca de mais prestígio e reconhecimento dentro e fora
dela. Em segundo lugar, é um exemplo claro de como o ciberespaço é condicionante e não
determinante, conforme visto anteriormente segundo a ótica de Pierre Levý (2014).
Em terceiro lugar, entendendo as plataformas de rede social digital principalmente
como ferramentas de entretenimento da indústria cultural, o relato confirma a falsificação das
relações humanas que Adorno (1996), já no início do séc. XX, denunciara, pois, opiniões
qualitativas são expressadas sem significar realmente aquilo que comunicam para um usuário
padrão – aquele que não tem conhecimento dos grupos de interação.
Em quarto lugar, expõe a liquidez e a falta de significado dos bens culturais, bem como
das trocas interpessoais e mesmo dos relacionamentos na contemporaneidade, como
exemplificado acima pelos discursos favoráveis em conteúdos midiáticos de terceiros nem
mesmo acessados por quem comenta, o que atesta então um carácter efêmero da sociabilidade
nestas redes e ressona nas reflexões de Bauman sobre a liquidez dos laços humanos na
modernidade e o paradoxo do indivíduo solitário numa multidão de outros solitários (2001).
274
8 CONSIDERAÇÕES TRANSITÓRIAS
privilegia a reprodução interpretativa de hits ao invés da música autoral por reflexo de uma
demanda de mercado que provém principalmente da influência de meios de comunicação de
massa, daquilo que é e foi amplamente difundido e comercializado, o que barra inovações de
repertório e determina a maior parte da linguagem estética executada.
Um exemplo que ilustra o presente entendimento dos efeitos causados pelos meios
comunicação de massa na configuração do cenário local é o fato de a maioria dos músicos nesta
cena rock ser guitarrista e/ou vocalista, que são as atuações musicais mais visibilizadas e
comercialmente exploradas pelos meios massivos no âmbito do gênero. Por conseguinte,
mesmo que atualmente tenha se instalado um comportamento em rede menos dependente dos
meios tradicionais, entende-se que os efeitos causados pela predominância do broadcasting e
de sua lógica de repetição em décadas passadas ainda é muito presente e condiciona o
comportamento dos agentes musicais em diversas disposições no campo do rock, tanto que o
repertório das bandas observadas e registradas é na maior parte dos anos 1980 e 1990, época de
extrema produtividade do rock e do mass media.
Defende-se esse ponto de vista dado que, segundo a lógica de Adorno (1996) sobre o
fetichismo relacionado ao estrelato e, entendendo a estética de um gênero musical como um
sistema codificado em signos, a forma pela qual um gênero deve soar para ser reconhecido
como tal, é ditada pelas referências audiovisuais mais lembradas pela coletividade (RICE,
2014). Como o rock teve um período de super produtividade ao mesmo tempo em que o modelo
de comunicação de massa, as referências mais utilizadas no gênero, mesmo atualmente, são
aquelas que foram mais repetidas na radiodifusão, o topo da Cauda da Longa de Anderson
(2006), os “grandes” hits dos artistas mais famosos.
Isto é, quanto mais famosa uma canção de rock, mais lembrada ela será e, logo,
alcançará mais relevância semiótica dentro do gênero, portanto mais executada. Entende-se
mais além, que isso é também uma forma de se reafirmar uma possível identidade roqueira na
cena. Ou seja, no intuito de se reafirmar um comportamento atrelado a um gênero musical, os
agentes musicais revestem-se dos signos que representam a referida prática no intuito de serem
reconhecidos dentro de um campo simbólico: roupas, modos de agir e de falar, uso ou não de
determinadas substâncias, posição política, gostos adjacentes (automobilismo, motociclismo,
esportes, filmes) e compartilhamento de repertório.
Então, na tentativa de comunicar essa identidade musical na comunidade em que se
faz parte, se escolhe e se prefere repertório amplamente difundido e facilmente reconhecível
por uma maioria. Acredita-se que por efeito dessa questão simbólica, muito atrelada ao exposto
277
segundo Bourdieu (2007), que o público desse polo do rock em Curitiba seja tão resistente a
mudanças, o que caracterizaria uma perda de referência e logo, de capital simbólico.
Supostamente, entende-se que essa busca por capital simbólico, que afeta tanto o
público quanto quem performa é também, seja por fetichismo ou por benesses sociais, o que
move grande parte dos agentes musicais que não depende financeiramente da música no sentido
de concorrer na qualidade de hobbista no mercado musical. Como mostrado anteriormente, para
um músico finalizar o mês tendo ganho mais de um salário mínimo com apresentações ao vivo
na cidade de Curitiba, é necessário trabalhar aproximadamente seis dias, o que é um “privilégio”
de poucos (11% dos entrevistados, aproximadamente), dado que uma “agenda cheia” nos
principais dias de movimento no entretenimento noturno contemplaria oito dias de shows.
Portanto, o que faria tantos profissionais de outras áreas de atuação concorrer em um
ambiente profissional informal, desregulamentado, onde já se tem oferta em excesso? Acredita-
se que seja uma lógica similar àquela da fixação de repertório, uma vez que ambas estão
relacionadas à busca de legitimidade no campo cultural estudado. Este pensamento tem
ressonância no que Straw comenta a respeito de que cena é um território de “encontros teatrais”
(2006, p. 8).
Nesse contexto, em que a atuação musical em apresentações ao vivo tende a ser
disputada pelas benesses sociais decorrentes dela, de desregulamentação do setor, de
congelamento e defasagem de cachês, de entretenimento tanto para quem está no palco quanto
para quem está na plateia, de hobby, cria-se o senso comum de que a profissão é uma mera
diversão onde é possível paquerar, ingerir álcool, se entreter ao mesmo tempo em que se
trabalha. O imaginário do mundo corporativo como ideal de profissionalismo, muitas vezes tido
como “sisudo”, é repelido nesse contexto. Isso contribui para a falta do environment
profissional estimado nos comentários de Zé Rodrigo, por exemplo. Entende-se que esse
contexto apresentado na pesquisa ajuda a criar o que os próprios músicos atuantes relatam como
“amadorismo” na cena rock e consequentemente o paradigma muito frequente de que “é
impossível viver de música em Curitiba”.
Fato é que não é impossível sobreviver atuando como performer na capital paranaense,
como demonstrado por uma minoria de agentes musicais. Entretanto, entendo ser um desafio
que requer também muito conhecimento e interesse do indivíduo pelo funcionamento do
mercado, pelas leis, pela historicidade local, entre outros fatores, como relatado na entrevista
com Zé Rodrigo, que é um agente musical de destaque no cenário local. Por outro lado, Ivan
Jr. demonstrou em fala verbal que, embora seja necessário conhecer o mercado musical a fim
de otimizar e profissionalizar a atuação dos grupos musicais, a maior parte dos indivíduos é
278
desinteressada por este tema, o que refletiu no fechamento de seu próprio negócio, em que a
proposta era fazer gestão de grupos musicais. Ivan conclui que “o maior problema” é a educação
do músico no entendimento de que a performance musical é objeto de comércio. Nessa
perspectiva, para a rede de entretenimento local as bandas são produtos e as apresentações são
serviços contratados, o que distorce a percepção de muitos agentes e os desafia a repensar a
dicotomia arte versus negócio.
Ainda sobre a atuação musical dos artistas de rock em Curitiba, nota-se que há uma
valorização da quantidade sobre a qualidade. Isto é, dado o contexto do mercado de
apresentações musicais na cidade, principalmente em bares, os artistas se concentram em
diversificar os trabalhos, dividindo-se em diferentes atuações e em variados projetos
simultâneos a fim de aumentar a quantidade de apresentações e não a qualidade dos cachês
recebido. Isso resulta em uma percepção comum no cenário musical, de que vários artistas, de
grupos musicais diferentes, recombinam formações para executar repertório muito parecido.
Ou seja, são as mesmas pessoas, executando músicas semelhantes, porém em grupos com
indivíduos que se intercalam entre si entre um projeto ou outro. A isto refiro como sobreposição
da quantidade à qualidade e entendo que, por readequação ao mercado, tais estruturações
contribuem para a fixação de práticas e de “panelas”.
De modo geral, respondendo por ora a questão inicial deste trabalho, acredito que em
relação ao recorte anterior (1996-2005), a principal mudança provida pelo uso de tecnologias
de comunicação digital foi um aceleramento na visibilidade dos problemas que atualmente
ainda persistem. Na década de 1990 e início dos 2000 falava-se em “amadorismo generalizado”;
“rixas entre bandas”; “cachês baixos”; “isolamento” da cidade em relação ao resto do país;
“autofagia”; “falta de valorização pelo público”; “falência do mercado independente”; “extrema
valorização do exterior e desvalorização da produção local”; “o público ora está no palco, ora
está na plateia”; “há muitas bandas para pouco espaço”; “Curitiba tem mentalidade
provinciana” (MACAN, 2017, p. 26) e atualmente esses relatos ainda persistem. O uso das
tecnologias digitais, em meu entendimento, deu relevância e visibilidade a estas discussões,
mas não trouxe nenhuma solução imediata aos problemas.
Curitiba é uma cidade diversa em suas raízes étnicas, porém, não há uma percepção
comum dessa diversidade porque os grupos, aparentemente, se fecham em suas próprias
279
comunidades. Se fosse possível apontar uma identidade na capital paranaense, seria a própria
pluralidade de etnias.
Concomitante a este raciocínio, há pouca percepção em relação a um suposto estilo
musical de rock curitibano. Por exemplo, algumas poucas bandas de destaque em mídia
nacional, como o Relespública, o Sr. Banana, o Motorocker, o Blindagem, entre outros, foram
nas décadas passadas reconhecidas independentemente de anunciar uma identidade musical
curitibana, que não é nem mesmo reconhecida comumente. Os grupos musicais de sucesso em
nichos específicos tiveram destaque soando esteticamente semelhantes aos movimentos a nível
global nos quais fazem parte, como é o caso das recém afilhadas à italiana Frontiers, citadas
anteriormente.
Não é possível concluir por este trabalho se existe uma identidade musical curitibana
no rock local. Existem elementos que nos dão pistas sobre alguns signos comuns, especialmente
em relação ao espaço “simbólico e expressivo” (VERGARA, 2013), mas nada musical que
anuncie uma organização estética que paute um gênero roqueiro curitibano. Penso que a
metáfora da “Seattle brasileira” faz mais sentido quando se considera Curitiba como um polo
de celebração de estilos musicais reconhecidos internacionalmente ao invés de uma exportadora
de inovações estilísticas, dado também ao desequilíbrio ocasionado pela quantidade de atuação
de grupos cover em relação aos autorais. Em outras palavras, não se tem conhecimento de
nenhum movimento roqueiro iniciado em Curitiba, com uma forma de soar musicalmente
referente ao local, que tenha influenciado esteticamente o rock em proporções internacionais
ou ainda locais.
Sobre as relações interpessoais, ou entre grupos musicais, mesmo que em âmbito mais
filosófico do que empírico, acredito ser evidente a “falsificação” e a efemeridade dessas
sociabilidades. Nesse ponto, a meu ver, Bauman (2001) traça um raciocínio muito preciso e,
atualmente, muito presente. Se antes da conectividade generalizada, comentada por Lemos
(2005), destacavam o problema na criação de laços e afetos em Curitiba, após a revolução
causada pela democratização da cibercultura, esse problema, em meu entendiment, ganhou
mais agravantes: os laços efêmeros; a intensificação do parecer em detrimento do ser; a
falsificação de alianças e a manipulação mais detalhada de relacionamentos entre grupos
musicais, instituições e audiência; a quantificação das relações sobreposta à qualificação.
Isso se exemplifica nos grupos de interação, no fake playing e entre vários simulacros
presentes nessas redes. A falsificação a que me refiro está também presente nas emoções em
relação à música mediadas pelas plataformas digitais, em que por trás de um aparato, se torna
fácil um usuário declarar afeto a determinado produto cultural ao mesmo tempo em que sente
algo completamente contrário ao que profere nas redes, mas com qual intuito? No entanto
sugiro essa discussão para um momento futuro.
Entendo que existe uma cadeia produtiva da música em Curitiba, porém ela é
fragilizada em alguns aspectos já elencados anteriormente, principalmente nos dois primeiros
elos: pré-produção e produção. Muitos dos problemas levantados nessa pesquisa parecem estar
atrelados a um desequilíbrio entre oferta de apresentações musicais e demanda por esse tipo de
entretenimento. Então, é possível afirmar que, comparativamente, há pouca demanda para os
serviços ofertados pelas bandas de rock, uma vez que, neste polo estudado, os grupos exercem
uma atividade comercial e tendem a receber cachê pelas execuções – na maioria de 0 a 200
Reais.
Uma forma de criar demanda, não somente para o rock em Curitiba, mas para as
variadas expressões culturais locais é, a meu ver, o investimento em festivais públicos.
Bacchieri (2012) exemplifica este dado ao relacionar a quantidade de festivais no Rio Grande
do Sul com a demanda e reconhecimento por música local. Então é evidente, no intuito de agitar
este mercado de entretenimento pautado na escuta de música local, a necessidade de um projeto
governamental a longo prazo que dê visibilidade ao artista, crie espaços públicos (locais e
midiáticos) e incentive a população a consumir e prestigiar estas expressões.
282
Curitiba já possui algumas iniciativas como esta, porém a pesquisa nos mostra que a
maior parte dos agentes musicais presentes na cidade não estão satisfeitos com as ações
realizadas. Preenchendo este primeiro “buraco” na pré-produção dentro da cadeia produtiva da
música local seria um grande passo para viabilizar a resolução dos demais problemas de
produção, distribuição, comercialização e consumo.
8.7 MÚSICO-TRANSMÍDIA
dá nome ao congresso e que fora lançado seu artigo Systems of Articulation, Logics of Change,
de 1991, vastamente citado neste trabalho, supõe-se que, atualmente, a mudança é muito mais
acelerada e implica em análises ainda mais complexas sobre cenas, pois, conforme a máxima
de Walter Longo, “no pós-digital, a novidade virou commodity” (LONGO, 2017). Questões
sobre o comportamento das cenas, e nas cenas, ficam em aberto nesta época em que as
tecnologias digitais, entre elas principalmente a mobile149, e a conexão onipresente tomam conta
da vida de seus agentes.
Martha Gabriel explica três características essenciais do ser humano: (1) é mobile por
natureza; (2) necessita de comunicação; (3) necessita da constante troca de informação como
instinto e condição para sobreviver. Então, as tecnologias mobile surgem para ampliar esses
três aspectos do ser humano. A isto a autora completa:
149
Tecnologia móvel. Por exemplo, telefones celulares e tablets.
284
comercialização. Logo, segundo esta lógica, pode-se entender que a inovação é uma
necessidade das instituições capitalistas e, de certa forma, das cenas musicais.
Ainda sobre inovação, Tom Kelley (2007), em seu livro As 10 Faces da Inovação,
indica comportamentos que apontam indivíduos inovadores e que podem ser aplicados às cenas
musicais: o antropólogo; o experimentador; o polinizador; o saltador de obstáculos; o
colaborador; o diretor; o arquiteto de experiências; o cenógrafo; o cuidador; o contador de
histórias. No caso de Curitiba, Mercer (2017) cita o caso de JR Ferreira que, além de músico e
produtor, é o criador de um bar muito conhecido na cidade, o 92 Degrees150 e também o selo
de gravação Bloody Records. Segundo a visão de Kelley, JR se enquadraria no caso do inovador
“antropólogo”, pois este tipo de indivíduo traz as novas ideias para dentro de uma organização.
O “antropólogo” é o responsável por observar o comportamento humano e compreender como
as pessoas interagem com os produtos e serviços. JR se enquadra como indivíduo inovador pois,
conforme o que Mercer coloca em sua apresentação, ele teve a capacidade de perceber
demandas reprimidas, humaniza-las através da articulação de soluções, como foi o caso do 92
Degrees e do Bloody Records na cena musical rock curitibana a partir da década de 1990
(MERCER, 2017, p. 382-389).
Percebe-se então, segundo a ótica de Kelley que há a atuação desses personagens no
ambiente das cenas musicais, porém por limitação de tempo e espaço, este estudo não dará
conta de exemplificar e contextualizar cada um deles, embora reconheça-se que seja um ótimo
método para descrever e analisar uma comunidade musical específica, suas peculiaridades e
problemáticas. Ao longo desta pesquisa, com as trocas de experiências no grupo de pesquisa, a
atuação frequente na cena e as entrevistas realizadas, percebeu-se a presença diversificada de
indivíduos inovadores na cena musical rock de Curitiba.
No âmbito das cenas, como são fenômenos fortemente influenciados pela globalização
e indústria do entretenimento, em que prevalece a busca por obtenção de lucro e há intensa
competição, sugere-se a aplicação do conceito de inovação segundo Schumpeter (1997), uma
perspectiva econômica para estes fenômenos e seus agentes. Entender o ato inovador dentro do
âmbito do espaço, a articulação entre políticas públicas e instituições privadas, dos indivíduos
atuantes nas cenas e nas comunidades, segundo os cinco níveis propostos por Kimieck (2002,
p. 40) e das temporalidades contingentes, através do efeito das tecnologias providas pela
indústria na contemporaneidade, atrelado às reflexões de Straw, Bauman, Levý e Jenkins, pode
150
Segundo Abonico Smith, o 92 Degrees era “um porão aclamado por muitos músicos e frequentadores como o
grande templo do rock curitibano” (MERCER, 2017, p. 386).
285
fomentar um estudo bastante relevante para a interseção da modernidade, dos espaços e dos
indivíduos nas cenas musicais.
286
REFERÊNCIAS
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a fragmentação dos mercados. 9.ed. Rio de Janeiro: Campus, 2006.
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BLACKING, John. Music, Culture, and Experience: Selected Papers of John Blacking.
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