Anais Da V Jornada Discente - 2016

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Cristian Borges (org.

Anais da V Jornada Discente do PPGMPA


Trabalhos dos alunos do Programa de
Pós-Graduação em Meios e Processos
Audiovisuais da USP

1ª Edição

São Paulo
ECA - USP
2018
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo

J 82a Jornada Discente do PPGMPA (5. : 2016 : São Paulo)


Anais da V Jornada Discente do PPGMPA [recurso eletrônico] : trabalhos dos
alunos do Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da
USP / Cristian Borges (Org.) – São Paulo : ECA/USP, 2018.195 p.

Trabalhos apresentados na Jornada realizada em 01 de abril de 2016,


Escola de Comunicações e Artes da USP, São Paulo.

ISBN 978-85-7205-230-6

1. Cinema - Congressos 2. Meios de comunicação - Congressos


3. Multimeios
– Congressos I. Borges, Cristian.

CDD 21.ed. – 791.43


Elaborado por: Sarah Lorenzon Ferreira CRB-8/6888
Universidade de São Paulo

Prof. Dr. Vahan Agopyan


Reitor

Prof. Dr. Antonio Carlos Hernandes


Vice-Reitor

Prof. Dr. Carlos Gilberto Carlotti Júnior


Pró-Reitor de Pós-Graduação

Prof. Dr. Sylvio Roberto Accioly Canuto


Pró-Reitor de Pesquisa
_._
Escola de Comunicações e Artes

Prof. Dr. Eduardo Henrique Soares Monteiro


Diretor

Profa. Dra. Brasilina Passarelli


Vice-Diretora
_._
Departamento de Cinema, Rádio e Televisão

Prof. Dr. Almir Antonio Rosa


Chefe

Prof. Dr. Eduardo Simões dos Santos Mendes


Vice-Chefe
_._
ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

Programa de Pós-Graduação
em Meios e Processos Audiovisuais

Profa. Dra. Esther Império Hamburger


Coordenadora

Profa. Dra. Irene de Araújo Machado


Vice-Coordenadora

4
EXPEDIENTE
V JORNADA DISCENTE
Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais – USP
1º de abril de 2016

ORGANIZAÇÃO
Cristian Borges
Irene Machado

ASSISTENTE DE PRODUÇÃO
Douglas Galan

ANAIS DA V JORNADA DISCENTE DO PPGMPA


2018

ORGANIZAÇÃO
Cristian Borges

CONSELHO CIENTÍFICO
Almir Almas

Cecília Mello

Eduardo Morettin
Eduardo Vicente
Esther Hamburger
Irene Machado
Mateus Araújo
Patrícia Moran
Rosana Soares
Rubens Machado ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

ASSISTENTES DE EDIÇÃO
Gisele Frederico
Marina Costa

CRIAÇÃO DO LOGO E PROJETO GRÁFICO


Raissa Araújo (@cissaaraujos)

REVISÃO
Aline Rabelo Santos Luiz

DIAGRAMAÇÃO Malu Dias Marques

5
PROGRAMA
de PÓS-GRADUAÇÃO

em MEIOS e
PROCESSOS
AUDIOVISUAIS
>
www.eca.usp.br/pos
Anais da V Jornada Discente
PPGMPA - USP

LINHAS DE PESQUISA

História, Teoria e Crítica do Audiovisual


Poéticas e Técnicas Audiovisuais
Cultura Audiovisual e Comunicação
APRESENTAÇÃO

Mais uma vez nos surpreendemos com a riqueza e a variedade das pesquisas
desenvolvidas no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos
Audiovisuais da USP, a partir desta singela coletânea de trabalhos apresentados na V
Jornada Discente, ocorrida em abril de 2016.

Divididos em quatro núcleos temáticos, para fins meramente didáticos – a saber:


Fronteiras da linguagem audiovisual, Encontro de linguagens, Aspectos da linguagem
cinematográfica e O fazer cinematográfico –, os trabalhos acabam por revelar, no
final das contas, muito mais pontos de contato do que dissidências. Assim, navegamos
ao longo destes anais pelo universo da animação, das narrativas transmídia, das
experiências em tempo real, dos jogos digitais, do found-footage, das intersecções
entre cinema e literatura, pintura, teatro e representação religiosa, passando pelas
interações do corpo, da câmera, do olhar e da escuta, sem com isso esquecermos da


política, da memória e de algumas propriedades do próprio plano fílmico.

A partir do turbilhão de imagens e


sons em movimento (tão díspares quanto
complementares) que serve de objeto
e inspiração para estas pesquisas ,
surgem lampejos teóricos e críticos de
pensamentos em constante ebulição.

Fechamos com essa coletânea mais uma etapa, aberta às pesquisas presentes
e futuras que preenchem e enriquecem o percurso daquelas e daquelas que
desenvolvem suas pesquisas de mestrado e doutorado neste ou em outros programas
de pós-graduação, num eterno intercâmbio de ideias e impressões, autores, textos e
obras de arte que nos inspiram e transbordam de suas molduras em direção a estas e
muitas outras páginas, sempre em movimento.

Desejamos a todos e todas uma agradável leitura!

Cristian Borges
Dezembro de 2018
^ SUMÁRIO ^

FRONTEIRAS DA LINGUAGEM AUDIOVISUAL

O QUE É NARRATIVA TRANSMÍDIA: MISTURANDO POKÉMONGO COM 12


PARABOLICAMARÁ
João Pedro de Azevêdo Machado MOTA – Yan TIBET

CINEMA AO VIVO E EXPERIÊNCIAS AUDIOVISUAIS EM TEMPO REAL 31


Jair Sanches MOLINA JÚNIOR

A ANIMAÇÃO COMO INSTRUMENTO POTENCIALIZADOR DO 36


AUDIOVISUAL CIENTÍFICO
Maria Luiza Dias de Almeida MARQUES

ABORDANDO TEORIAS SOBRE OS JOGOS DIGITAIS 43


Gustavo Henrique Soares DENANI

ENCONTRO DE LINGUAGENS

“VULGARIZAÇÕES”: NARRATIVAS COMPARADAS DO FILME NO PAIZ DAS 60


AMAZONAS E DO LIVRO LE PAYS DES AMAZONES
Sávio Luis STOCO

ÉLIE FAURE, A PINTURA E A CINEPLÁSTICA 73


Edson Pereira da COSTA JÚNIOR

MÓLECULAS DE CONTAMINAÇÃO AFETIVA EM “MOONOVOSOL” 80


Roderik Peter STEEL

CONSTRUÇÕES E LEITURAS DAS XICAS DA SILVA NO CINEMA E NA


LITERATURA DE 1976 91
Mariana Queen Ifeyinwaeze NWABASILI
ASPECTOS DA LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA 36

SOBRE ALGUMAS PROPRIEDADES DO PLANO FÍLMICO 104


Lucas Bastos Guimarães BAPTISTA

EXPERIMENTALISMOS SONOROS NO CINEMA LATINO-AMERICANO: A 110


ESCUTA DA INTIMIDADE EM O PÁTIO, DE GLAUBER ROCHA
Damyler Ferreira CUNHA

DE UM PONTO AO OUTRO: O OLHAR EM ELEFANTE, DE GUS VAN SANT 123


Thiago Siqueira VENANZONI

PERDIDOS E MALDITOS: POLÍTICA, PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA E 138


MEMÓRIA FORA DO EIXO
Giovana SIQUEIRA

O FAZER CINEMATOGRÁFICO

O FALSO “FOUND FOOTAGE” DE HORROR: UMA DESAMBIGUAÇÃO 146


NECESSÁRIA
Marcos Leandro Kurtinaitis FERNANDES

GESTOS, CORPOS E CÂMERA: UM DIÁLOGO COM GILBERT SIMONDON 167


Andréa Carla SCANSANI

A ANUNCIAÇÃO: SIDNEY OLCOTT E O PRIMEIRO CINEMA 172


Pedro de Andrade Lima FAISSOL

O ATOR DO TEATRO AO CINEMA: KULESHOV, EISENSTEIN E PUDOVKIN 184


Sabrina Tozatti GREVE
FRONTEIRAS
DA LINGUAGEM
AUDIOVISUAL
>
O QUE É NARRATIVA TRANSMÍDIA:
MISTURANDO POKÉMON GO COM PARABOLICAMARÁ

Autor: João pedro de Azevêdo Machado Mota - Yan Tibet


Orientador: Almir Rosa
Nível: Mestrado

R esumo
Buscamos compreender o objeto das Narrativas Transmídia por outros olhares dialó-
gicos transdisciplinares, ao contextualizarmos as suas origens e analisarmos o estudo
de caso de “Pokémon GO” (2016), relacionando-o à metáfora das novas conexões pos-
síveis oferecidas pela poesia da música “Parabolicamará” (1992), do compositor baiano
Gilberto Gil, que versa sobre a polissemia de sentidos presentes na ideia da rede — tan-
to as arcaicas quanto, especialmente, as contemporâneas.

P alavras - chave: Narrativa Transmídia; Pokémon GO; redes; Parabolicamará; expe-


riência

ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA


Rede de pesca artesanal – arte sobre rede de pesca tradicional,
feita de fibras e boias de madeira da restinga.

12
O que é narrativa transmídia?

A narrativa transmídia — do inglês transmedia storytelling — é um conceito


complexo e em constante desenvolvimento, que muitos autores, pesquisadores e
acadêmicos têm se debruçado para definir, na atualidade. Entre as questões que
norteiam o nosso artigo, faz-se distinta a diferenciação entre as noções de transmedia e
storytelling. Partindo-se da premissa de que ambos podem funcionar juntos, na forma
de transmedia storytelling, naturalmente, ambos também têm sentido isoladamente.
O conceito de transmedia, traduzido para o português como “transmídia”, contém
em si uma definição embrionária trazida na década de noventa por Marsha Kinder, com
base nos estudos de Julia Kristeva sobre o conceito de intertextualité — que por sua vez
bebe diretamente das formulações sobre o dialogismo de Mikhail Bakhtin —, sob uma
perspectiva educacional, que será revista ao longo século XXI por diferentes autores,
como Henry Jenkins, Carlos Alberto Scolari e Nuno Bernardo. Já as noções em torno
de storytelling, cujo significado literal é “história”, ou mais precisamente “contação de
história”, tem sido habitualmente traduzido para o português como “narrativa”.
Ora, compreende-se a narrativa enquanto uma prática social que tem sido
realizada pela humanidade há pelo menos trinta mil anos, segundo correntes da
Antropologia Evolucionária, período que corresponde às estimativas médias de quando
a linguagem surgiu. O teórico literário irlandês, Brian Boyd1, em seu livro On the origin
of stories (2009), ao flertar com as formulações da antropologia evolucionária, oferece-
nos evidências sobre uma plausível explicação sobre as origens das narrativas, ao iniciar
sua percepção sobre a descoberta de pinturas rupestres na caverna francesa de Chauvet-
Pont-d’Arc. Boyd entende que

[...] viewers from any modern society can feel a shock of recognition
at the Chauvet images, whatever other effects the artists may have
intended. By the time of the Chauvet drawings art would seem to
have become characteristically human. We can only presume that
works as elaborate as this bespeak a long prior process of practice and
experiment on surfaces like bark or skins that have not survived. The
intact and monumental example of Chauvet Cave, along with a few
other isolated but much more modest relics over the preceding 30,000
years or so, implies extensive traditions of art, as something humanly
shared, incorporating sophisticated representation, involving expert
ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

practitioners, earning the ready comprehension and eliciting the


admiration of others around them [...] (BOYD, 2009, p.8).

Este autor reconhece, portanto, um desejo inerentemente humano de


“representar” — tal qual percebido pela Poética de Aristóteles (1995), desde a Antiguidade
Clássica, ao conceito de mimesis — que seria compartilhado pela tradição da arte,
tão antiga quanto a origem da linguagem e da narrativa, de tal forma a reconhecer a
importância do trabalho de artesãos dotados da habilidade de registrar, em benefício
coletivo, aspectos de sua cultura em alguma forma de arte artesanal. Este autor entende
que a arte teria sido “projetada” pela evolução humana (BOYD, 2009, p.85), sendo
considerada uma parte do comportamento humano inato que tenderia a ficcionalizar
o mundo em certos padrões compreensíveis enquanto portadores de sentidos, em

1 Cf. BOYD, Brian. “On the origin of stories”. Cambridge: Harvard University Press, 2009 - p.8-89.

13
função das grandes vantagens adaptativas que esse comportamento enseja à evolução
da espécie humana. Para Boyd, nós tenderíamos a buscar padrões em nosso redor —
como analisa o autor sobre o questionamento do que teria levado os nossos ancestrais
a procurarem padrões de “constelações” no céu (BOYD, 2009, p.413), uma expressão
cultural inerentemente humana à tentativa de construção de padrões de sentido em
algo que não está “dado”, no aparente caos da esfera celeste.
Assim, esta busca por padrões — tão bem representada à percepção de Joseph
Campbell (2004, 2015) sobre a formação de padrões arquetípicos presentes nas
tradições de diversas culturas ao redor do mundo — seria uma forma de criar sentido
para o homem, além da busca por um sensação de bem estar e harmonia sociais que
a contação de histórias nos provoca: estes elementos adaptativos seriam, portanto,
essenciais à nossa sobrevivência em sociedade. A narrativa, assim, faria parte desse
processo adaptativo enquanto expressão da linguagem humana em forma de arte que
aproximaria as pessoas, da mesma maneira que a experiência estética das pinturas da
caverna de Chauvet, citada por Boyd, oferecer-nos-ia.
Não nos aprofundaremos sobre as origens antropológicas da narrativa
propriamente neste artigo — ao compreendermos que este é um trabalho bastante
relevante cuja pertinência reconhecemos como fundamental ao nosso campo, a
ser eventualmente desenvolvido em outras produções —, mas buscaremos buscar
as origens da narrativa transmídia, cujo conceito pode ser melhor compreendido,
sobretudo, a partir de uma contextualização histórica desde suas origens. Longe de
esgotar a compreensão deste conceito, visamos descrevê-lo a partir da confrontação
de definições apresentadas por diferentes autores, para então estendermos nossa
compreensão ao contexto das redes digitais em que as narrativas transmídia se
desenvolvem de forma plena, hipoteticamente, na contemporaneidade.
Primeiramente cunhado pelo teórico estadunidense, Henry Jenkins, sobre
o termo transmedia storytelling, o conceito de narrativa transmídia neste autor tem
relação direta com o contexto da cultura da convergência, que origina seu famigerado
livro Convergence Culture: Where Old and New Media Collide, originalmente publicado
no ano de 2006 pela New York University Press. Para Jenkins, o conceito refere-se “a
uma nova estética que surgiu em resposta à convergência das mídias”, configurando-
se enquanto uma “estética que faz novas exigências aos consumidores e depende da
participação ativa de comunidades de conhecimento” (2009a, p.49). A transmedia
storytelling é entendida, então, por este autor, como “a arte da criação de um universo
[em que] os consumidores devem assumir o papel de caçadores e coletores, perseguindo
pedaços da história pelos diferentes canais, comparando suas observações com as de
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outros fãs, em grupos de discussão on-line” (JENKINS, 2009a, p.49), ao colaborarem


cooperativamente para que todos os envolvidos neste universo narrativo ficcional
tenham uma experiência mais enriquecedora coletivamente.
John Welsh (1996), por sua vez, remete-nos ao termo trans-media system, do
campo musical, que tem origem com o músico Stuart Saunders Smith, desde 1975,
ao propor a elaboração de uma composição cujos aspectos melódicos, harmônicos e
rítmicos pudessem ser direcionados para diferentes instrumentos, potencialmente
complementável por diferentes compositores. David Bordwell (1989, p.99) faz uso
do termo transmedia symbols2, para se referir aos críticos de cinema entre as décadas

2 David Bordwell se refere aos críticos da Segunda Guerra e posteriormente a ela, entre as décadas de 40 e
60, que haviam encarado os filmes como um sonho ou uma fantasia, ao supostamente conterem, em si, uma
espécie de símbolos transmídia presentes na “superfície” e na “profundeza” de seu texto, ao que se pode
verificar no trecho: “Here one can find an important difference from 1940s symptomatic work. The wartime

14
de 1940 e 1960, que teriam usaram a ideia de “símbolos transmídia” para representar
“mundos oníricos” contidos nos filmes que poderiam ser melhor explorados e
amplificados por outros autores. Marsha Kinder (1991, p.1), por sua vez, investiga, já
na década de 1990, o conceito transmedia intertextuality no universo ficcional infantil
das franquias de “super entretenimento”, como a série televisiva de animação Muppet
Babies (1984) e os quadrinhos Teenage Mutant Ninja Turtles (1984), ambas narrativas
pertencentes à esfera infantil que se complexificaram durante a década de 1980 e início
da década de 1990 em torno de diversas outras linguagens e mídias, a citar séries de
televisão, quadrinhos, longas-metragens de animação, jogos, etc., em cujo contexto a
autora encontrou um poderoso potencial de interação entre espectadores-jogadores,
ao, literalmente, desvalorizarem a abordagem comercial destas narrativas audiovisuais,
em favor das trocas afetivas entre seus diversos nichos de público. Segundo Kinder:

What I found [from recording Saturday morning children’s TV] was a


fairly consistent form of transmedia intertextuality, which positions
young spectators (1) to recognize, distinguish, and combine different
popular genres and their respective iconography that cut across
movies, television, comic books, commercials, videogames, and
toys; (2) to observe the formal differences between television and its
prior discourse of cinema, which it absorbs, parodies, and ultimately
replaces as the dominant mode of image production; (3) to respond to
and distinguish between the two basic modes of subject positioning
associated respectively with television and cinema, being hailed in
direct address by fictional characters or by offscreen voices, and
being sutured into imaginary identification with fictional character
and fictional space, frequently through the structure of the gaze
and through the classical editing conventions of shot/reverse shot;
and (4) to perceive both the dangers of obsolescence (as a potential
threat to individuals, programs, genres, and media) and the values
of compatibility with a larger system of intertextuality, whithin [sic]
which formerly conflicting categories can be absorbed and restrictive
boundaries erased. (KINDER, 1991, p.47)

É curioso notar que o conceito de transmedia storytelling, efetivamente elaborado


por Jenkins sobre esta expressão, faz referência, somente em uma nota de rodapé de seu
livro (JENKINS, 2009a, p.398), ao conceito de transmedia intertextuality desenvolvido
ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

por Kinder; contudo, esta autora é mais generosa em suas referências, e vai mais fundo
na rigorosa referenciação de onde bebeu, originalmente, ao citar, logo na primeira parte
de seu livro (KINDER, 1991, p.1), as origens do conceito de intertextuality desenvolvido
and postwar critics had treated the film as a dream or a daydream, and they were thus inclined to disclose trans-
media symbols, either on the text’s surface or in its depths. The 1970s critics, treating the film on the analogy
of the patient's symptom-ridden discourse, were far more attuned to issues of ‘film language.’ From the start,
these critics looked more closely at formal procedures. Yet one is hard pressed to isolate any film technique
discovered by the symptomatic tradition. The interpretion [sic] of film as ‘discourse’ has derived virtually all its
categories from the work of the classical film aestheticians. Typically, current symptomatic criticism ascribes
symbolic meanings to recognized sorts of stylistic or narrative devices and then claims that those meanings
‘contradict’ the film’s explicit or implicit meanings.” Cf. BORDWELL, David. “Making meaning: inference
and rhetoric in the interpretation of cinema”. Cambridge: Harvard University, 1989 - p.99.

15
por Julia Kristeva (1980, pp.65-66), em relação ao conceito precursor de dialogismo de
Mikhail Bakhtin (1990, 2008), conceituado pelo autor russo desde a década de 1920,
em que Kristeva teria se inspirado, em suas formulações desde 1966: a conceituação de
“intertextualidade” de Kristeva, relacionada ao que Bakhtin entendeu conceitualmente
por “dialogismo”, refere-se ao reconhecimento, por parte do leitor, da existência de
textos anteriores, que tenham relação com um texto atualmente lido por este leitor, ao
revelar a dinâmica de um fluxo, de um movimento, de uma relação entre textos que é
evocada pelo repertório de cada leitor3.
Não é surpreendente perceber a dificuldade de definição para a narrativa
transmídia, sendo que, para o autor argentino, Carlos Alberto Scolari, a primeira
impressão com que o pesquisador se depara, ao adentrar sobre este tema, no
campo dos estudos de mídia, é a de um aparente “caos semântico” que rondaria o
conceito, havendo muitos outros conceitos adjacentes que se correlacionariam à sua
complexidade conceitual:

[...] TS is not alone: concepts like “cross media” (Bechmann


Petersen, 2006), “multiple platforms” (Jeffery-Poulter, 2003),
“hybrid media” (Boumans, 2004), “intertextual commodity”
(Marshall, 2004), “transmedial worlds” (Klastrup & Tosca, 2004),
“transmedial interactions” (Bardzell, Wu, Bardzell & Quagliara,
2007), “multimodality” (Kress & van Leeuwen, 2001), or “intermedia”
(Higgins, 1966) may be found orbiting in the same semantic galaxy.
All of these concepts try to define roughly the same experience: a
sense production and interpretation practice based on narratives
expressed through a coordinated combination of languages and
media or “platforms” [...] (SCOLARI, 2009, p.587-588)4

3 Segundo Kristeva (1980, pp.65-66), “the literary word is an intersection of textual surfaces rather than a
point, as a dialogue among several writings”, em que, ao desenvolver as noções de linguagem literária de
Bakhtin, ela propõe que “each word is an intersection of other words where at least one other word can be
read”. Para María Alfaro (1996, pp.268), “from this point of view, it is easy to understand the fact that the
development of the theory of intertextuality would constitute in itself a complex intertextual event. If Pla-
to, Aristotle, Cicero, Quintilian... can be considered the intertexts of Bakhtin’s theory, Kristeva’s dialogue
with the texts of Bakhtin, in which she initially uses the term intertextualité, is carried out, in turn, with the
mediation of the works of Derrida and Lacan, among others. The ideas expounded by all these authors are
equally present in any of the later contributions to the subject (Barthes, Genette, Riffaterre...), and they will
be in those approaches still to come.” Cf. KRISTEVA, Julia. “Word, Dialogue, and Novel”. In: “Desire in
Language: A Semiotic Approach to Literature and Art”. Edição: Leon S. Roudiez. Tradução: Thomas Gora
ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

et al. Nova Iorque: Columbia University Press, 1980 - p.65-66; ALFARO, M. J. M. “Intertextuality: origins
and development of the concept”. In: Atlantis: Revista de la Asociación Española de Estudios Anglo-Nor-
teamericanos. Vol. 18, N. 1/2, pp. 268-285. Sevilha: AEDEAN, 1996. Disponível em: <http://www.jstor.org/
stable/41054827>. Acesso em: 13/02/2017.
4 Cf. BECHMANN PETERSEN, Anja. “Internet and cross media productions: Case studies in two major Da-
nish media organizations”. Vol. 4, No. 2. [S.l.]: Australian Journal of Emerging Technologies and Society, 21 de
Setembro de 2006 - pp.94-107. Disponível em: <http://apo.org.au/node/15351>. Acesso em: 14/02/2017; JE-
FFERY-POULTER, Stephen. “Creating and producing digital content across multiple platforms”. Vol. 3, No. 3.
Abingdon-on-Thames: Journal of Media Practice, 2003 - pp.155-164. Disponível em: <http://www.tandfonlin
e.com/doi/abs/10.1386/jmpr.3.3.155>. Acesso em: 14/02/2017; BOUMANS, Jak. “Cross-media, e-content re-
port 8, ACTeN — Anticipating content technology needs”. Editor: Zeger Karssen. [S.l.]: E-Content Reports by
ACTeN, Agosto de 2004. Disponível em: < http://www.sociologia.unimib.it/DATA/Insegnamenti/13_3299/ma
teriale/04%20-20jak%20boumans%20cross-media%20acten%20aug%202004.pdf>.Acesso em: 14/02/2017;

16
Para Scolari, possuindo uma estrutura narrativa particular que se expande por
diferentes linguagens, dentre a verbal, a icônica, etc., e por diferentes “mídias”, dentre
o cinema, os quadrinhos, a televisão, os videogames, etc., e não podendo ser entendida
como apenas uma adaptação do conteúdo de uma mídia simplesmente transplantada
para outra, de tal forma que, por exemplo, a história que os quadrinhos contam não são
a mesma contada na televisão ou no cinema (SCOLARI, 2009, p.587), se as diferentes
mídias e linguagens participam e contribuem para a construção do universo narrativo
transmídia, o autor entende que seria precisamente esta “dispersão textual” uma das
mais importantes fontes de complexidade da cultura popular contemporânea — tão
bem representada pela transmedia storytelling.
Jenkins (2009a, p.172) entende que narrativas transmídia seriam tão antigas
quanto o teatro e a poesia épica, dado que, já na Grécia Antiga, afrescos, santuários,
peças e canções combinavam-se para descrever, colorir e expandir as bases da mitologia
grega. Segundo Jenkins,

[...] apesar de todas as suas qualidades experimentais e inovadoras,


a narrativa transmídia não é inteiramente nova. Veja, por exemplo,
a história de Jesus, conforme contada na Idade Média. A menos que
se soubesse ler, Jesus não era fundamentado em livros, mas algo que
se encontrava em múltiplos níveis de cultura. Cada representação
(um vitral, uma tapeçaria, um salmo, um sermão, uma apresentação
teatral) presumia que o personagem e sua história já eram conhecidos
em algum outro lugar. [...] (JENKINS, 2009a, p.172)

David Bordwell busca dialogar com o entendimento de Jenkins sobre a relativa


longevidade do conceito, ao destacar a característica relativa a algumas narrativas
transmídia, ao permitirem criar uma “experiência geral mais complexa” do que a
fornecida por qualquer texto sozinho, como se observa em:

In this sense, transmedia storytelling is very, very old. The Bible, the
Homeric epics, the Bhagvad-gita [sic], and many other classic stories
have been rendered in plays and the visual arts across centuries. There
are paintings portraying episodes in mythology and Shakespeare
plays. More recently, film, radio, and television have created their own
versions of literary or dramatic or operatic works. The whole area
ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

of what we now call adaptation is a matter of stories passed among


media. What makes this traditional idea sexy? I think it’s a [...] less
common component that Henry has spotlighted. Some transmedia

MARSHALL, David. “New media cultures”. Londres: Arnold Publishers, 2004; KLASTRUP, Lisbeth & TOS-
CA, Susana. “Transmedial Worlds - Rethinking Cyberworld Design”. Los Alamitos: IEEE Computer Society
Washington, Novembro de 2014 - pp.409-416. Disponível em: < http://www.itu.dk/people/klastrup/klastruptosc
a_transworlds.pdf>. Acesso em: 14/02/2017; BARDZELL, Shaowen et al. “Transmedial interactions and digi-
tal games”. Proceedings of the International Conference on Advances in Computer Entertainment Technology.
Nova Iorque: ACM, Junho de 2007. Disponível em: < https://pdfs.semanticscholar.org/b7d1/e25bc105fcd407b9
73103c4f97938ab690c0.pdf>. Acesso em: 14/02/2017; GUNTHER, R. Kress & LEEUWEN, Theo Van. “Mul-
timodal discourse: The modes and media of contemporary communication”. Londres: Arnold, 2001 - 141
p.; HIGGINS, Dick. “Synesthesia and Intersenses: Intermedia.” Vol. 1, No. 1. Nova Iorque: Something Else
Newsletter, 1966 - pp.1-6. In: “Multimedia: From Wagner to Virtual Reality”. Edição: Randall Packer & Ken
Jordan. Nova Iorque: W. W. Norton & Company, 2001 - 496p.

17
narratives create a more complex overall experience than that provided
by any text alone. This can be accomplished by spreading characters
and plot twists among the different texts. If you haven’t tracked the
story world on different platforms, you have an imperfect grasp of it.
(BORDWELL, 2009, n.p., itálico nosso)

Se de um lado, podemos encontrar um precursor da narrativa transmídia


entre o final do século XIX e início do século XX, o universo ficcional de Sherlock
Holmes, escrito por Arthur Conan Doyle, entre 1887 e 1927, que inaugura um universo
intertextual disperso entre sessenta obras, sendo composto por cinquenta e seis
contos e quatro romances5, que foi adaptado largamente para o cinema, para novos
livros, para jogos e quadrinhos, etc. pela cultura de massa, ao longo do século XX e
XXI; de outro lado, Jenkins (2009b, n.p.), em seu site pessoal, refere-se ao caso de uma
estátua gigante do personagem animado do cinema mudo ianque, Felix the Cat, que foi
erguido sobre uma concessionária de automóveis, tornando-se um marco público da
cidade de Los Angeles da década de 1920, ao ser entendido como uma personalidade
transmidiática cujo universo teria ultrapassado a tela do cinema e das tirinhas de
jornal de sua época, ao ser explorado, tanto na música popular, quanto na publicidade,
quanto na televisão estadunidense, nas décadas seguintes.
Mas quando nos referimos a produtos culturais da cultura de massas — que,
entendidos como realidades concretas de narrativas transmídia contemporâneas,
cujo apelo comercial não desmerece-os em sua análise como fato socioeconômico e
cultural —, dentre os que ganharam destaque nas últimas décadas estão as franquias de
Star Trek (1966) de Gene Roddenberry, e especialmente a franquia Star Wars (1977), de
George Lucas, esta última considerada das mais complexas, ao ter-se multiplicado em
um universo bastante diversificado, ao compor, desde sequências cinematográficas,
à jogos, quadrinhos, grupos de discussão on-line, filmes de animação, fanfics6, etc.
Jenkins endossa esse entendimento ao compreender que a narrativa transmídia refere-
se à construção de narrativas expandidas em diferentes mídias, cada uma autônoma
por si, de forma a oferecer um aprofundamento de compreensão do universo original
da mídia primária. Jenkins afirma:

A narrativa transmídia desenrola-se através de múltiplas plataformas


de mídia, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e
valiosa para o todo. Na forma ideal de narrativa transmídia, cada
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meio faz o que faz de melhor — a fim de que uma história possa
ser introduzida num filme, ser expandida pela televisão, romances

5 Cf. TIKKANEN, Amy. “Sherlock Holmes: Fictional Character”. Encyclopædia Britanni-


ca Online. [S.l.]: [s.n.], 03/12/2014. Disponível em: <https://www.britannica.com/topic/Sherlock-Holmes>.
Acesso em: 02/02/2017; WEXLER, Bruce. “The Mysterious World of Sherlock Holmes”. Londres: Running
Press, 2008.
6 O termo fanfic, também entendido como fanfiction ou “ficção de fã”, refere-se, basicamen-
te, à narrativas ficcionais criadas por grupos de fãs, que têm origem em remixagens de histórias originais
contidas em produtos culturais, desde filmes, animações, games, quadrinhos, séries de TV, a partir da rea-
propriação de enredos, personagens, sequências, temporalidades diegéticas, etc. destes universos originais,
geralmente ao ser divulgado no ciberespaço, seja em sites de fãs, blogs, redes sociais, streamings de vídeo
como o youtube, etc., ao propor uma reconstrução, complementação ou contradição sobre ao universo fic-
cional, que se desdobra em uma ampla gama de classificações. Cf. COPPA, Francesca. “A Brief History of
Media Fandom”. In: HELLEKSON, Karen; BUSSE, Kristina. “Fan Fiction and Fan Communities in the Age
of the Internet”. Jefferson: McFarland & Company, 2006.

18
e quadrinhos; seu universo possa ser explorado em games ou
experimentado como atração de um parque de diversões. Cada acesso
à franquia deve ser autônomo, para que não seja necessário ver o filme
para gostar do game, e vice-versa. Cada produto determinado é um
ponto de acesso à franquia como um todo. A compreensão obtida por
meio de diversas mídias sustenta uma profundidade de experiência
que motiva mais consumo. A redundância acaba com o interesse do
fã e provoca o fracasso da franquia. (JENKINS, 2009a, p.138)

Como se pode verificar, apesar de se situar como uma nova forma de contar
histórias, a narrativa transmídia deve suas origens ao desenvolvimento de uma série
de outras inovações técnicas da história — cujo primeiro grande precedente moderno
pode ser identificado com o surgimento da prensa de Gutemberg, no século XV, que
inicialmente permitiu uma maior acessibilidade à mídia escrita dos livros para novos
leitores — inovações estas principalmente alavancadas a partir do século XIX.
O processo de industrialização no século XVIII permitiu o desenvolvimento
de uma série de tecnologias ao longo dos séculos seguintes, capazes de, por exemplo,
codificar imagens em diferentes meios:
a) passando-se desde a invenção da fotografia por Niépce, no início do
século XIX — cuja criação é devedor do acúmulo de avanços na ótica e na química,
principalmente, desde a câmara escura, na Antiguidade grega, aos experimentos de
pintura de Leonardo da Vinci, na Itália renascentista do século XV;
b) pelo desenvolvimento dos quadrinhos, no século XIX (especialmente no
início do século XX, nos EUA), cuja criação e popularização foram facilitadas pela
imprensa do século XV;
c) pelo desenvolvimento do cinema pelos irmãos Lumière, ao final do século
XIX, cujo desenvolvimento tem estreita relação com os legados técnicos desenvolvidos
pela fotografia desde o início do século XIX, e cujas narrativas se diversificaram em
múltiplos gêneros ao longo do século XX.
Da mesma forma tal desenvolvimento técnico permitiu a codificação dos sons
em diferentes meios:
d) passando-se pelo desenvolvimento de sistemas de transmissão de som,
como o rádio, surgido no final do século XIX, cuja popularização na transmissão de
narrativas, como as radionovelas, viria a se consolidar somente em meados do século
XX, na América Latina, por exemplo; até a popularização de ferramentas digitais de
gravação de som com o surgimento do MP3, na década de 1990;
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O mesmo desenvolvimento tecnológico permitiu a união de ambas técnicas, ao


codificar sons e imagens em uma mesma mídia:
e) tanto quanto ocorreu com o cinema sonoro, tornado comercialmente viável
e popular somente num segundo momento, em meados da década de 1930; também
ocorreu no desenvolvimento da televisão, cujas narrativas se complexificaram, tal
qual no cinema, em uma diversidade de gêneros, desde a metade do século XX até
hoje, por exemplo.
Contudo, foi somente com a criação do meio de comunicação da Internet,
surgido na década de 1960 e popularizado a partir da década de 1980, e especialmente
a partir da década de 1990, que a narrativa transmídia pôde se consolidar como uma
nova forma de contar histórias, marcada pelas relações horizontais de interação
entre diferentes nichos de públicos, virtualmente interconectados de forma

19
desterritorializada nas redes da Internet, em torno das narrativas da cultura de massa
que passaram a se multiplicar, em diferentes meios, em torno de um mesmo universo
narrativo diegético.
O universo de Matrix (1999), entendido como um exemplo pioneiro de narrativa
transmídia que passou a fazer parte do cânone desta nova categoria narrativa, situa-se
como um universo em transmedia storytelling que soube bem aproveitar este terreno
da expansão das redes para construção de uma outra forma de contar histórias, de tal
forma que a criação, a distribuição e o consumo deste universo foi fundamentalmente
marcado pela participação conjunta entre aqueles que originalmente propuseram
este universo narrativo, ao dispersarem suas diversas unidades de fragmentos em
diversas mídias — as irmãs Wachowski e ao menos um milhar de outros profissionais
convidados de diversas áreas afins —, e os diversos nichos de público e grupos de
fãs, cuja trocas mediadas pelas redes, dentre fóruns de discussão, redes sociais,
páginas e softwares colaborativos da plataforma wiki, etc., foram fundamentais para
a construção deste outro universo de narrativa possível — sem contar a extrapolação
dessas trocas virtuais em encontros reais, como nos encontros em cineclubes, grupos
de fãs e eventos cosplay7, por exemplo.
Atualmente, o contato com um universo em transmedia storytelling pode advir
do contato com diferentes mídias que possam introduzir um potencial participante
a este mundo narrativo de caça e coleta que se forma com uma espécie de jogo de
quebra-cabeça composto por diversos fragmentos narrativos — que não se restringe
unicamente a uma linguagem: pode surgir do ato de sentar numa poltrona e assistir
ao mais novo filme da franquia Star Wars (1977-), no escurinho do cinema; pode se
originar do mergulho na leitura de uma série dos livros da saga Harry Potter (1998),
de J. K. Rowling; pode surgir do contato com um episódio da websérie do The Walking
Dead Webisodes (2011) disponível no youtube; pode ocorrer da imersão na plataforma
interativa de um videogame para PC como The Lord of Rings: War in the North (2011); e
até mesmo, pode ocorrer ao baixar um aplicativo de jogo, para celular Android ou iOS,
como o Pokemón Go (2016), por exemplo.
Do contato (ou ponto de acesso primário) com apenas uma dessas narrativas
em transmedia storytelling, pode surgir nos leitores o interesse em buscar mais
aprofundamento sobre a história, buscando-se mais fragmentos narrativos do
universo em questão pelo acesso a mídias afins para se tentar compreender melhor
a complexidade da história que aí é contada, ou mesmo interesse à contribuição da
própria interpretação da história original, ao inverter-se a lógica midiática original de
conteúdo feito por profissionais para consumidores, numa indústria originalmente
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verticalizada: hoje, as relações têm se tornado marcadamente mais horizontais, à


medida que as redes digitais são democratizadas a maiores estratos da sociedade —
tanto pela ampliação da acessibilidade de acesso, mas, sobretudo, pela ampliação da
formação básica necessária para que mais pessoas possam ser alfabetizadas digitalmente
para este acesso —, a ponto de qualquer pessoa em posse de um celular com aplicativo
de edição de vídeo embutido à configuração original do aparelho e acesso à Internet
poder assumir o papel de “produtor de conteúdo”, como bem percebido por Toffler

7 Jenkins cita o caso dos eventos cosplay no Japão em meados de 2003, quando The Matrix
Reloaded foi lançado, ao observar que “no Japão, onde a tradição do ‘cosplay’ (ou ‘costume play’, brinca-
deira de vestir roupas de personagens de mangá ou anime) está firmemente enraizada nas culturas de fãs, e
onde os fãs de determinado programa podem reunir-se em algum lugar como o Parque Yoyogi, em Tóquio,
num domingo à tarde, vestidos a caráter e prontos para brincar, houve uma série de encenações de Matrix”
(JENKINS, 2009a, p.158).

20
(2012) ao conceito do prosumidor8 — mesmo que de forma amadora —, como ocorre no
caso de uma infinidade de fanfics, disponíveis em comunidades de fãs no ciberespaço,
por exemplo.

O case Pokémon GO (2016)

Jenkins afirma que a narrativa transmídia mais elaborada, até agora, talvez se
encontre nas franquias infantis, como o jogo da plataforma Game Boy, o famigerado
Pokémon (1996) — que ano passado completou a “maioridade” aos 20 anos, com o
lançamento de aniversário do Pokémon GO (2016) —, e como o mangá Yu-Gi-Oh!
(1996) — ambas narrativas que se ampliaram para além das mídias originais, tendo-
se multiplicado em uma infinitude de outras linguagens, desde jogos de cartas, jogos
de computador, séries de desenhos infantis animados, longas de animação, etc. —, ao
concordar com dois pesquisadores de pedagogia, segundo os quais “Pokémon é algo
que você faz, não algo que você apenas lê, vê ou consome” (BUCKINGHAM & SEFTON-
GREEN, 2004, p.12 apud JENKINS, 2009a, p.183).
De fato, o universo de Pokémon é dos universos em narrativa transmídia dos
mais complexos já desenvolvidos até hoje, que assumiu uma escala de influência sobre
públicos de quase todos continentes, desde a década de 1990: da Ásia à América,
da Europa à Oceania e mesmo à África — que talvez apenas não tenha público na
Antártida, por razões obviamente demográficas. Enquanto eventual objeto de pesquisa
contemporânea é interessante notar a seguinte percepção sobre este universo
narrativo, em nosso ver: se, ao menos para a maioria dos habitantes majoritariamente
urbanos nascidos até os anos 2000, Pokémon é um repertório amplamente conhecido
culturalmente, talvez este universo seja encarado como estranho para a maior parte
das pessoas nascidas até a década de 1970, que muitas vezes não compreendem este
fenômeno social, talvez ao encará-lo como uma febre passageira — “febre” esta que,
ironicamente, já dura quase duas décadas, com extraordinário sucesso de público e
de retorno comercial, tendo-se tornado um dos símbolos da cultura pop japonesa,
exportado para diversos países do mundo.
De fato, é importante encararmos este fenômeno sociocultural e econômico,
que atinge pessoas de diversas faixas etárias, grupos culturais e classes econômicas,
nas palavras dos pedagogos David Buckingham e Julian Sefton-Green, muito mais
como “algo que se faz”; e, de fato, menos como algo que apenas se “lê, vê ou consome”:
afinal, enquanto um dado concreto da real, é fundamental que ultrapassemos o senso
comum de rotulá-lo como uma “mania” puramente infantil, ao encará-lo enquanto
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um fenômeno relevante da cultura, dando-lhe a devida magnitude de importância


sócio-cultural, dada a sua efetiva influência sobre diversos grupos sociais, a ser melhor
investigado por seus potenciais profundamente agregadores, cooperativos, solidários,
ao reunir coletivamente seus participantes em busca de uma espécie de experiência
vivida individualmente e compartilhada coletivamente por seus nichos de público.
É coerente, portanto, o argumento de Jenkins, segundo o qual habitar um
universo em transmedia storytelling acaba se tornando uma espécie de “brincadeira de
criança”: entendemos que seria, portanto, fundamental que nos permitamos entrar
nesta brincadeira para melhor compreendê-la, tal qual no método etnográfico lévi-

8 Cf. TOFFLER, Alvin. “A terceira onda”. 31. ed. Rio de Janeiro: Record, 2012.

21
straussiano9 que nos convida a inserir-nos enquanto objetos de observação, quando
nosso interesse de pesquisa leva em conta o próprio participante como parte
integrante do objeto estudado — e, portanto da análise empreendida —, tal qual nos
ensina belamente Lévi-Strauss, ao afirmar que “tudo o que é observado faz parte da
observação; mas também e sobretudo que, numa ciência em que o observador é da
mesma natureza que seu objeto, o observador é ele próprio uma parte de sua observação”
(LÉVI-STRAUSS, 2003, p.25).
Ou seja, para que possamos compreender este fenômeno, tanto como
pesquisadores-observadores, como também como objetos-de-pesquisa-observados, cuja
produção narrativa, mesmo quando nos eximimos enquanto pesquisadores, muitas
das vezes fazemos parte como produtores, criadores, sujeitos ativos, tanto quanto a
própria narrativa oficial de nosso interesse, que, muitas vezes nos envolve aos seus
fluxos, correntes e sentidos narrativos, ao que as narrativas e nós mesmos, como
público, comporíamos juntos um objeto de pesquisa em si: ao encará-lo enquanto um
hábito cultural que se propõe enquanto um convite à interação social, que aproxima
pessoas de várias idades — desde pessoas mais idosas à crianças, de jovens à adultos —,
aprendemos que “[e]xistem centenas de Pokémon diferentes, cada um com múltiplas
formas evolucionárias e um complexo conjunto de rivalidades e afetos. Não existe um
texto único em que se possam obter informações sobre as várias espécies” (JENKINS,
2009a, p.184), ao que, ao invés disso, “a criança reúne seu conhecimento sobre
Pokémon a partir de diversas mídias, e o resultado é que cada criança sabe alguma
coisa que seus amigos não sabem e, portanto, tem a chance de compartilhar sua
expertise com outros” (JENKINS, 2009a, p.184). A análise dos pedagogos Buckingham
e Sefton-Green ensina-nos que:

As crianças podem assistir ao desenho animado na televisão, por


exemplo, como meio de colher informações que mais tarde utilizarão
no jogo do computador ou na troca de cartões, e vice-versa. [...] Os
textos de Pokémon não são planejados apenas para serem consumidos,
no sentido passivo da palavra. [...] A fim de fazer parte da cultura
de Pokémon e aprender o que você precisa saber, é preciso buscar
ativamente novas informações e novos produtos e, fundamentalmente,
envolver-se com outras pessoas ao fazê-lo (BUCKINGHAM & SEFTON-
GREEN, 2004, p.22 apud JENKINS, 2009a, p.184)

Este universo originalmente criado e desenvolvido pelo japonês Satoshi Tajiri,


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então com apenas 30 anos de idade, em 1996, com base em suas memórias da infância
ao colecionar insetos, tendo surgido originalmente enquanto um jogo de Game Boy:
entendemos, em nosso ver, que seu slogan evoca uma mudança de perspectiva quanto
ao tipo de atitude assumida pelos seus novos públicos, para viverem-no plenamente.
“Pokémon: Gotta Catch ‘Em All”. Esta expressão, amplamente referenciada
ao universo de Pokémon, pode ser traduzida, literalmente, do inglês coloquial para
o português igualmente coloquial como: “Pokémon: temos que pegar todos eles”10.
9 Cf. LÉVI-STRAUSS, Claude. “Introdução à Obra de Marcel Mauss”. In: “Sociologia e Antropologia”.
Tradução: Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2003 - p.25.
10 Em nosso ver, este slogan poderia ser coerentemente criticado por uma perspectiva educacional ambien-
talista pelos direitos dos animais, não estando de todo equivocada em interpretar-se a narrativa deste universo

22
Ela contém em si um forte potencial de direcionar uma postura, se originalmente
mais “passiva” e solitária dos jogos de computador, à outra potencialmente mais
ativa e solidária de busca, caça e coleta, no contato com seu universo narrativo —
cuja franquia recentemente completou duas décadas de existência em 2016, e cuja
produtora, neste mesmo ano, além de ter relançado os jogos originais para Game Boy
no Japão, os Pokémon Red, Blue, também lançou o novo jogo de realidade aumentada
para celulares, o Pokémon GO (2016).
Neste último jogo, em que as fronteiras entre o real e o virtual se confundem,
ao podermos “ver” os monstrinhos desse universo pela tela do celular, ao apontarmos
nossas câmeras dos celulares para localidades reais específicas do mundo real em que
eles “aparecem” segundo o obscuro algoritmo da produtora Nintendo — que, veremos,
não é tão obscuro assim, mas bem pensado —, qualquer um de nós com o aplicativo
gratuitamente instalado em nossos celulares, com acesso à Internet e à um sistema
de GPS, ao conectarmo-nos ao servidor da Niantic, temos oportunidade de encontrar
pokémons virtuais em lugares reais, ao podermos “capturá-los” em tempo real, num
universo extremamente complexo, jogado de forma extremamente simples, que abre
espaço à aproximações, colaborações e trocas entre pessoas no mundo real, por diversas
razões — em nosso ponto de vista. Vejamos o porquê:
a) o jogo permite uma aproximação entre as pessoas, na medida em que, para
“capturar” pokémons no Pokémon GO, nós precisamos, literalmente, movermo-nos
pelo mundo “real” para encontrá-los — sendo que eles são muito mais facilmente
encontrados em lugares públicos nas metrópoles, como praças, universidades, cafés,
shoppings, cartões postais, etc., do que em espaços rurais isolados, obviamente, por
motivos comerciais; ou seja, ao buscá-los nos chamados Pokestops, onde há grande
número de pessoas em busca dos itens especiais de “captura” — como pokebolas,
incensos, incubadoras de ovos —, o convite aos encontros se estabelece, sendo sempre
possível encontrarmos jogadores das faixas mais jovens tentando capturá-los nestes
espaços públicos, eventualmente, desde 201611;
como uma versão ficcional das “rinhas de galo” latino-americanas do mundo real; uma transmutação con-
temporânea deste gênero de crueldade real contra a vida à versão digital, em que crianças seriam estimula-
das, desde pequenas, a valorizar o aprisionamento de animais — ao menos animais ficcionais — em gaiolas
virtuais como pokébolas, para a obrigar estes serezinhos ao conflito corporal em campeonatos ambientados
em Ginásios ao redor de todo o mundo, em busca de troféus (as famosas insígnias dos elementos, na diegese
de Pokémon), numa competição tipicamente capitalista, para se descobrir quem seria o “melhor” treinador
Pokémon do mundo (!). As crianças se inspiram, diretamente, no protagonista das séries animadas, Ash, junto
com seus abiguinhos, Brock e Misty, ao se identificarem afetivamente com eles, imaginando “segui-los” em
diversas mídias. Existem precedentes factuais para esta crítica, na medida em que a maior organização pelos
direitos animais do mundo, a People for the Ethical Treatment of Animals (PETA), localizado no estado de
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Virgínia, nos Estados Unidos, lançou uma campanha contra a franquia Pokémon chamado #GottaFreeThe-
mAll no Twitter, ao nos fazer refletir sobre o tema dos direitos dos animais — o que, analisamos, é uma refle-
xão não pouco desconfortável para os seus mais fãs aficcionados com alguma sensibilidade pelos direitos dos
animais, em verdade, uma verdade que pode soar bastante incômoda; deduzimos que seria um tanto hipócrita
haver um fã de Pokémon simultaneamente ambientalista, cuja intensidade de paixão por esta narrativa fosse
tão intensa quanto a motivação da causa animal defendida... Ou seja, arriscamos dizer que não devem haver
Pokefans defensores dos Animal Rights que anseiem um mínimo de coerência plenamente ética per si, em
nosso mundo contemporâneo. Em referência ao grupo PETA: Cf. EWALT, David M. “Animal Rights Group At-
tacks Pokemon For Promoting Animal Abuse”. [S.l.]: [s.n], 2012. Disponível em: <https://www.forbes.com/
sites/davidewalt/2012/10/08/peta-pokemon-animal-abuse/#3d96fec52d91>. Acesso em: 20/03/2017.
11 É interessante notar o quanto, pessoalmente, percebemos um boom de inesperadas visitas
de estudantes à frente do prédio central da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo,
especialmente nos meses de agosto, setembro e outubro de 2016, para um observador desavisado, sem mo-
tivos racionalmente explicáveis. Acontece que os criadores de Pokémon GO elegeram o Prédio Principal da

23
b) o jogo permite a colaboração, na medida em que, sendo os jogadores divididos
em três grandes times nas cores azul (grupo “Mystic”), amarela (grupo “Instinct”) e
vermelha (grupo “Valor”), para se “conquistar” um Ginásio dominado por um time
específico em alguma localidade real, se a tarefa é improvável (quase impossível) para
um jogador individual — dado que cada Ginásio tem pokémons de outros jogadores
defendendo-o —, a conquista ao menos lúdica deste Ginásio torna-se possível, para
grupos de jogadores de um mesmo time, reunidos presencialmente naquele Ginásio,
para “tomá-lo”, coletivamente, com seus respectivos pokémons. Lembremos que,
apesar da desterritorialidade das redes, só se chega ao Ginásio virtual de Tóquio,
segundo a práxis do universo lúdico-diegético de Pokémon GO, com seu aparelho
celular, com GPS ligado, situando-se física, local e presencialmente na cidade de Tóquio.
Ou seja, não há chance de se “chegar” virtualmente a um Ginásio de Tóquio, no Japão,
com seus amigos, encontrando-se no Ginásio da Avenida Paulista, em São Paulo, por
exemplo — a não ser, é claro, que você use um aplicativo de cheating (trapaça), que
falseie sua localização pelo GPS, de São Paulo, para uma localidade no Japão (o que
sequer consideramos como possibilidade, porque “roubar”, no jogo ou na realidade,
nunca se deve considerar como uma postura moral séria);
c) o jogo estimula as trocas, ao incentivar o deslocamento físico — e,
consequentemente, a atividade física — entre seus jogadores pelo mundo, pelo uso do
GPS dos celulares para se poder encontrar e “capturar” pokémons que se localizam em
ambientes afins às suas características físicas e biológicas — dado que pokémons do
elemento “água” se encontram mais nas proximidades de lagoas, cachoeiras e praias,
por exemplo. “Capturas” estas que, contraditoriamente, ainda são bastante restritas
ao mundo dito “urbano”, sendo que, ironicamente, estes animais ficcionais ditos
“selvagens” são muito pouco encontrados nos ambientes rurais em que há raríssimos
Pokestops — mesmo que se tenha um celular com o aplicativo instalado, conectado
à Internet e com GPS ligado, conectado ao servidor da Niantic, nesse ambiente —,
mas muito encontrados em locais onde o comércio e os serviços são abundantes nas
regiões metropolitanas — o que se explica pela estratégia de concentrar a existência
destes animais tipicamente urbanos onde existe o “capital” para manter seu negócio
midiático; sendo possível “domesticá-los” pela simples ação de capturá-los com uma
variedade de pokébolas existentes, de tal maneira que muitas delas só podem ser
adquiridas se compradas com dinheiro real no site da companhia.
Ou seja, Pokémon GO, sendo uma narrativa de um universo em narrativa
transmídia potencialmente capaz de aproximar as pessoas, não deixa de ser uma
mercadoria da cultura de massa neoliberal que se baseia nas relações comerciais que o
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sustentam enquanto produto cultural tipicamente urbano, essencialmente dependente


da tecnologia — o que, mais uma vez, não o exime de seus potenciais em aproximar
pessoas, um argumento muito importante aos leitores tecnófobos. Inclusive, novas
atualizações, previstas ainda para o ano de 2017, prevêem a possibilidade de “trocas”
de pokémons entre pessoas próximas umas das outras, e mesmo a possibilidade lúdica
e interativa de batalhas entre jogadores, como nos jogos originais do Game Boy, ou das

ECA como um Pokestop de referência na Cidade Universitária e na metrópole paulistana, ao que percebemos,
durante estes meses por breves interações investigativas com estes novos visitantes que se situavam parados,
em seus lugares, em grandes grupos de pessoas, em frente à entrada do Prédio Principal — que não vieram
por qualquer congresso, evento ou interesse no grande acervo de livros da Biblioteca da ECA, referência
da América Latina em livros da área de comunicação —, haver tanto estudantes da USP quanto jovens par-
ticipantes das comunidades ao redor da USP que vieram à ECA apenas para usufruir deste generoso novo
Pokéstop, farto virtualmente em incensos, pokebolas e itens diversos para capturarem pokémons pelo mundo.

24
séries animadas da década de 1990.
A antropóloga japonesa Mimi Ito (Mizuko Ito) descreve bem o universo
satoshitajiriano, sofisticadamente complexo, para nós:

Pokemon was and still is a global media sensation that first swept
childhood culture in the late nineties. The kids who are graduating
from college now are the first post-Pokemon generation. These are
kids who grew up with ubiquitous social gaming and convergent
media as a central part of their peer culture. After Mario, Pokemon
is the second most successful gaming franchise ever. Pokemon was
a breakthrough media form in a number of ways. First, it created an
integrated and synergistic relationship between analog and digital
media, but in a way that positioned interactive gaming at the center
of the transmedia enterprise. [...] In addition to portability, the other
important thing about Pokemon is that it developed a new format
for the narrative content of a children’s series. The story centers
on a game-like narrative based on the acquisition of Pokemon and
knowledge about how Pokemon perform in battle. Currently there are
almost 500 different Pokemon, each with it’s unique characteristics,
powers, and ways of evolving. The series is not particularly complex
in the ways we think of in traditional narrative, like character
development and complex narrative arcs. But it is an incredibly rich
knowledge ecology because of the sheer volume of esoteric content
generated by the series. Traditional children’s narratives have a very
limited set of characters — a good guy, a bad guy, a sidekick, maybe a
love interest. Creators of children’s media assumed that kids couldn’t
grasp a whole lot of complexity. Pokemon blew that assumption out
of the water. And it’s not just that there is a lot of content. The key is
that the content is about gaming and social action — in other words,
the content invites collection, strategizing, and trading activity. It is
media that mobilizes kids to do something with it. (ITO, 2009, n.p.,
itálico nosso)

Ao invés de compreendermos este e outros fenômenos de narrativa transmídia


— ao olhar umbertoeconiano —, tão somente pela perspectiva “apocalíptica” (ECO,
2015a) de abordá-lo como um produto da indústria cultural japonesa em expansão
por todo o mundo — de fato, um negócio lucrativo, cuja franquia já arrecadou mais de
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¥6.0 trilhões no mundo, o que equivale a US$53,64 bilhões, segundo dados oficiais da
companhia12 —, ou somente ao elogiá-lo de forma “integrada”, ao vermos tão somente
seus pontos positivos, sem o devido olhar crítico sobre os males que também provoca
— dentre os não infrequentes acidentes físicos com seus jogadores, em função da
tentativa de se aproximar de lugares perigosos do mundo real para “capturar” os
monstrinhos, incluindo-se afogamentos, acidentes de trânsito e quedas de locais
altos pela desatenção entre as fronteiras do mundo real e virtual, ou mesmo uma
contraditória onda de insociabilidade entre alguns jovens, em razão do vício provocado
pelo jogo, em que muitas vezes a pessoa se abstém de interagir socialmente para ficar
12 Dados colhidos diretamente no site oficial da companhia, relativos ao final do mês de março de 2016,
antes do lançamento da plataforma Pokémon GO, para Android e iOS, em julho do mesmo ano. Cf. THE
Pokémon Company. “Pokémon in figures: Pokémon market size”. [S.l.]: [s.n], Março de 2016. Disponível
em: <http://www.pokemon.co.jp/corporate/en/data/>. Acesso em: 30/03/2017.

25
“capturando” pokémons em eventos sociais, e mesmo uma certa alienação quanto a
este universo ficcional, que passa a dominar os interesses de alguns em detrimento
das responsabilidades cotidianas “reais”, fatos que ocorrem, principalmente, entre as
faixas etárias mais jovens; ou seja, é preciso buscarmos indícios que, contrapostos,
mostre-nos o peso dos dois lados, ao nos indicar se as narrativas transmídia nos
conduziriam:
a) a um mundo mais individualista, alienado e passivo; ou se:
b) favorecem à criação de um mundo mais colaborativo, generoso e sociável,
mediado pelas redes; ou ainda:
c) se seria um misto de ambas possibilidades, tanto com pontos negativos,
quanto positivos.
Ao meio termo da compreensão de que as narrativas transmídia,
simultaneamente, permitem-nos bons e maus usos da relação estabelecida pelos
indivíduos com as narratividades contemporâneas, é crucial notarmos que as relações
sociais nunca devem se limitar à esfera virtual e tecnológica, sob o risco de se perderem
no limbo intelectual do que, ao nosso ver, seria a mais latente defesa do elogio ingênuo
à tecnologia como falsamente capaz da transformação social per si, o que, em nosso
ver, é um categórico equívoco: na medida em que a Internet não é uma ferramenta de
comunicação revolucionária por si, mas depende do uso que se faz dela; ou seja, o que
mais importa não é a tecnologia em si, que tem se desenvolvido desde os primórdios
da humanidade, mas o uso que fazemos dela.
Se para construirmos um mundo mais justo, humano e horizontal, baseado em
experiências reticularmente coletivas; ou para acirrarmos as diferenças das pirâmides
de poder, concentrarmos os recursos sobre uma “elite tecnológica” e verticalizarmos
cada vez mais as relações humanas entre aqueles que têm acesso aos meios e aqueles
que (ainda) não têm — ou, se têm, ainda não foram orientados, ajudados, alfabetizados a
como melhor utilizá-los, para sua própria libertação social e autonomia pessoal próprias.
Como nos ensina o mahatma compositor baiano, Gilberto Gil, condecorado com
o título Artista pela Paz, pela UNESCO, em 1999, na categoria Goodwill Ambassadors13,
com sua inventiva canção:

[...] Antes mundo era pequeno


Porque Terra era grande
Hoje mundo é muito grande
Porque Terra é pequena
Do tamanho da antena
Parabolicamará
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Ê volta do mundo, camará


Ê, ê, mundo dá volta, camará [...]
(GIL, 1992, n.p.)14

Lembremo-nos a singela sabedoria contida nas palavras do poeta soterapolitano


que, em seu site pessoal, ao relatar as origens criativas de Parabolicamará, explica-nos
que

13 Cf. UNESCO. “Honorary and Goodwill Ambassadors”. United Nations Organization for Education,
Science and Culture (UNESCO). [S.l.]: [s.n], 2017. Disponível em: <http://www.unesco.org/new/en/goo-
dwill-ambassadors/artists-for-peace/>. Acesso em: 04/04/2017.
14 Cf. GIL, Gilberto. “GILBERTO GIL: Parabolicamará”. Produção: Liminha. Gravadora: Warner Mu-
sic Brasil Ltda. [S.l.]: [s.n], 1992. Disponível em: <http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_interno.php?i
d=31>. Acesso em: 04/04/2017.

26
[...] queria fazer uma canção falando dos contrastes entre o rural e o
urbano, o artesanal e o industrial, usando um linguajar simples, típico
de comunidades rudimentares, e uma cadência de roda de capoeira.
Aí, compondo os primeiros versos, quando

me ocorreu a palavra ‘antena’ — seguida de ‘parabólica’ — para rimar


com ‘pequena’, eu pensei em ‘camará’ [palavra usada comumente nas
cantigas de capoeira como vocativo] para completar a linha e a estrofe.
Como ‘parabólica camará’ dava um cacófato, eu cortei uma sílaba
‘ca’ e fiz a junção das palavras, criando o vocábulo ‘parabolicamará’.
Uma verdadeira invenção concretista; uma concreção perfeita
em som, sentido e imagem. Nela, como um símbolo, vinham-me
reveladas todas as interações de mundos que eu queria fazer. Aí se
tornou irrecusável prosseguir e, mais, fazer daquilo um emblema do
conceito, não só da canção, mas de todo o disco. (GIL, 1992, n.p.)

Parabolicamará, lançada em 1992 em álbum homônimo, dialoga diretamente


com outra música chamada Pela Internet, lançada nas redes precocemente em 1996 (e
adicionada ao álbum gilbertogilniano “Quanta”, de 1997), como o primeiro single musical
brasileiro online da história15. Em tempos em que não havia redes sociais, quando a
Internet ainda “engatinhava” no Brasil, o baiano Gilberto Gil foi pioneiro ao compor
e fazer upload, na World Wide Web, à esta canção que revelava o quão impressionado o
compositor estava com os efeitos da nova “rede”, sendo que, somente posteriormente,
a música Pela Internet passaria a ser divulgada em rádios e lançada em disco.
Sejamos claros e diretos, portanto: ao nosso ver, a experiência oferecida pelas
narrativas transmídia surge e se desenvolve nas redes do século XXI, hipoteticamente,
como uma chance de libertação às amarras impostas pelas narrativas quadráticas,
construídas pelo império em pirâmide da cultura de massa do século XX, em
“mononarrativas” unilaterais diegeticamente, homogeneizantes ao ocorrer de uma
experiência falsamente coletiva tal qual no conceito de autisme généralisé16 de Debord
(1992), e que ensejam veementemente ao isolamento social passivo (ou mais passivo
que ativo), diante das múltiplas telas, especialmente as de TV — constatação que, em
si, não ignora as contradições inerentes à categoria de narrativas da cultura de massa
em que as transmedia storytelling têm origem, desenvolvendo-se no século XXI, por
sua vez, em outro contexto reticular digital.
Reformulemos, portanto, este entendimento sobre outra ideia:
ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

contraditoriamente, apesar de nascerem, ao seio do capitalismo neoliberal, de uma


15 Em seu blog pessoal, Mauro Segura, funcionário da IBM responsável pelo trabalho técnico de veicular,
pela primeira vez na história do Brasil, em 14 de dezembro de 1996, no Rio de Janeiro, o streaming da pri-
meira música transmitida ao vivo pela Internet, a própria música “Pela Internet”, de Gilberto Gil (presente
em <https://www.youtube.com/watch?v=EnCH41Wn6Vs>); segundo o seu relato: “Essa é uma história que
aconteceu há apenas 20 anos. Alguns conhecem partes, mas poucos conhecem a história completa. […] O pro-
jeto tinha por trás um fato muito singular. Em 1917, ou seja, quase 80 anos antes, era gravado o primeiro sam-
ba no Brasil, o famoso ‘Pelo telefone’, composição de Donga e Mauro de Almeida. A ideia da Flora [esposa
de Gil] era simples: criar uma música e lança-la através da internet, de forma que ela fosse a primeira música
transmitida em tempo real pela internet no Brasil. Foi esse o conceito e o desafio que motivou Gilberto Gil a
compor a famosa ‘Pela internet’”. Cf. SEGURA, Mauro. “MAURO SEGURA: A incrível história por trás da
música ‘Pela internet’ de Gilberto Gil”. [S.l.]: [s.n], 20 de maio de 2017. Disponível em: <https://www.maur
osegura.com.br/pela-internet-gilberto-gil/>. Acesso em 25/05/2017 - colchetes nossos.
16 Cf. DEBORD, Guy. “La Société du Spectacle”. Paris: Gallimard, 1992.

27
espécie de “nova cultura de massa 2.0”, o contexto das redes digitais em que se desenvolvem
as narrativas transmídia é que, em nosso ver, hipoteticamente, ofereceriam uma chance
de liberdade aos novos prosumidores majoritariamente metropolitanos, habitantes do
ciberespaço do século XXI.
Neste artigo elaboramos parte do desenvolvimento elaborado em um
dos subcapítulos do capítulo relacionado à definição das Narrativas Transmídia,
originalmente contido em nossa dissertação de mestrado no PPGMPA (2017), intitulada
“Geometrias da Experiência: das tessituras do conceito de Experiência e do conceito de
Vivência em Walter Benjamin às investigações sobre o devir de uma nova categoria de
experiência reticular possível em Narrativas Transmídia”, ao buscarmos contribuir com
um modesto alargamento do conhecimento sobre o nosso campo, ao entendimento
destas novas narratividades contemporâneas, ao analisarmos brevemente o caso da
transmedia storytelling Pokémon (1996), especificamente ao estudo de caso de Pokémon
GO (2016) e sua contextualização à metáfora das novas conexões possíveis oferecidas
pela poesia de Gilberto Gil, contida em Parabolicamará (1992), ao entendimento no novo
contexto das redes digitais da Internet.

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ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

30
CINEMA AO VIVO E EXPERIÊNCIAS
AUDIOVISUAIS EM TEMPO REAL
Autor: Jair Sanches Molina Junior
Orientador: Almir Almas
Nível: Mestrado

R esumo
O trabalho busca apresentar algumas características recorrentes em tentativas de de-
finir um dos principais elementos da construção fílmica, o plano. Partindo de uma
definição que reúne algumas dessas propriedades, busca-se então seus limites através
de comparações e análises pontuais com exemplos de períodos e procedências diver-
sas. Os exemplos, oriundos sobretudo do cinema experimental, apontam para uma
espécie de física do material fílmico, seus pontos de ebulição e congelamento, sua
elasticidade e solidez.

P alavras - chave: experiência audiovisual, tempo real, cinema ao vivo



Durante a V Jornada Discente em 2016 participei de duas mesas com trabalhos
distintos e também complementares. Na mesa ‘Do analógico à cultura digital’ – sobre
trabalhos que se dedicam tanto à restauração quanto à degradação de sons e imagens,
levando em consideração a passagem recente do analógico ao digital, assim como
pesquisas sobre o cinema ao vivo e o remix - apresentei os caminhos que apontavam
para o desenvolvimento da pesquisa intitulada ‘Cinema ao vivo experiências audiovi-
suais em tempo real’ que venho desenvolvendo junto ao professor e orientador Almir
Almas e que se tornará a dissertação para o mestrado.
Já na mesa ‘Poéticas audiovisuais contemporâneas’ - dedicada a trabalhos pub-
licados na 4a edição da Revista Movimento, sobre a interconexão entre mídias e a
redefinição de territórios da arte contemporânea, ampliando discussões sobre poética
e pensando a importância de execução e reflexão em pesquisas práticas e processuais
- apresentei a pesquisa intitulada ‘Experiências audiovisuais na cena teatral’1, com um
ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

breve percurso histórico das relações entre luz, palco e tela em diferentes períodos,
grupos e peças teatrais que utilizam-se do mecanismo de exibir e projetar filmes e ma-
nipular imagens e sons em tempo real como recurso expressivo para composição de
cenários, iluminação, videoinstalação, videomapping, videoarte, vjing, performance
audiovisual, entre outros, a partir do início do século XX até a contemporaneidade,
quando alcançamos as experiências realizadas junto ao grupo Teat(r)o Oficina, com
foco na peça Os Bandidos (2008), na qual fiz parte do núcleo criativo e técnico.
Após ambas as apresentações na Jornada Discente, importantes debates se de-
ram com os participantes presentes, de modo que, também com o aprimoramento

da pesquisa sob a orientação do professor Almir Almas, e do incentivo dos membros

1 http://www.revistamovimento.net/edicoes-anteriores/4

31
da banca de qualificação, os professores Rubens Machado Jr (PPGMPA) e Luiz Fernan-
do Ramos (PPGAC), percebi a importância de expor as minhas próprias experiências
pessoais que obtive neste tema de pesquisa, a fim de expressar uma compreensão deste
modo de criação, as técnicas e poéticas possíveis na produção cinematográfica em tem-
po real, contribuindo com a pesquisa e realização nesta área por outros pensadores e
artistas.
Assim, a pesquisa sobre Cinema ao Vivo apresentada na V Jornada Discente,
e que caminhava para ser teórica sobre a identificação de conceitos com estudos de
caso realizados entre 2000 e 2015, passou a ter um outro recorte. E integramos junto à
pesquisa uma abordagem principalmente empírica, utilizando como estudos de caso as
diversas obras teatrais e cinematográficas em tempo real ou experimental que partici-
pei como autor ou artista audiovisual contratado entre 2007 a 2017, e que deu corpo à
dissertação a ser defendida em setembro deste ano.
Uma razão para isso é a amplitude em descrever exatamente o que são as experiências
audiovisuais em tempo real no cinema e em que constitui essa área de estudos e exper-
imentações.
No campo artístico, o cinema ao vivo se apresenta de forma instável e associado
principalmente a noção anglo-saxã, Live Cinema, de onde derivam festivais e atividades
correlacionadas, ou como performance cinema ou performance audiovisual, ambos os
termos sempre vinculados à presença de um performer manuseando, montando e re-
mixando imagens e sons próximo à tela no espaço de projeção.
Nesta pesquisa o termo cinema ao vivo não será entendido apenas como uma tradução
de um termo estrangeiro, mas sim uma arte e um processo em expansão e que culmina
na existência de um fenômeno semiótico, realizado principalmente através de modos
experimentais, não necessariamente com a presença de performers em frente à tela,
mas principalmente com a presença do(s) autor(es) dirigindo a experiência em tempo
real, conjuntamente ao aparato tecnológico, ao elenco e ao público, todos participantes
da montagem e exibição da obra no mesmo tempo em que ela ocorre, em transmissão
direta para a tela de cinema, monitores, telas digitais ou espaços arquitetônicos.
Tradicionalmente, em cinema, a história é o elemento central dos filmes, e
principalmente produzida pela técnica da montagem. Foram os russos, liderados por
Lev Kuleshov, quem primeiro teorizaram a montagem e a consideraram como essen-
cial para a linguagem cinematográfica. O cineasta russo Sergei Eisenstein, ex-aluno
de Meyerhold, seguiu os passos de Kuleshov ao explorar as qualidades expressivas da
ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

montagem, e experimentou diferentes tipos de técnicas de edição, que ele separava por
montagens: intelectual, métrica, rítmica, tonal e overtonal. Eisenstein compreendeu o
efeito do ritmo e a justaposição de imagens sobre o espectador, e para ele toda a teoria
e prática do cinema deriva do teatro, e todo o seu percurso é um corpo a corpo com a
questão geral da arte e seus critérios, seja no palco ou na tela.
Entre a montagem de uma cor, uma imagem, um vídeo, uma fotografia, uma an-
imação, um som, haveria uma comunicação existencial que constituiria um momento
não representativo da sensação. Portanto, caberia ao artista audiovisual fazer ver uma
espécie de unidade dos sentidos e fazer aparecer visualmente uma figura múltipla. Mas
essa operação só é possível se a sensação desse ou daquele domínio (aqui, a sensação
visual e sonora) for diretamente capturada por uma potência vital que transborda todos
os domínios e os atravessa.

32
Umberto Eco, no livro A Obra Aberta, cita que algumas das características da
transmissão direta mais relevante para os nossos fins já foram focalizados por diversas
fontes.
Antes de mais nada, captar e por no ar um acontecimento no mesmo
instante em que ele acontece coloca-nos diante de uma montagem
– uma montagem improvisada e simultânea ao fato captado e mon-
tado. Filmagem, Montagem e Projeção, três fases que na produção
cinematográfica são bem distintas, sendo cada uma delas dotada de
fisionomias própria, aqui se identificam. Isso deriva a identificação de
tempo real e tempo televisional sem que nenhum expediente narrativo
possa reduzir a duração temporal, que é a do acontecimento transmit-
ido (ECO 2008).

Em audiovisual, o montador de uma experiência audiovisual em tempo real pode


ser considerado principalmente pelos termos: diretor de corte, diretor de imagem, edi-
tor de corte, operador de corte, ou VJ. Já quanto aos sons projetados, o montador de som
em tempo real pode ser o diretor de som, diretor de áudio, sonoplasta, editor de som,
operador de som, ou DJ.
Estes profissionais em audiovisual projetam situações em tempo presente e
trazem um contato direto com o público no espaço e no tempo presente, através das
narrativas visuais e sonoras e com ritmo que só a sutil presença da temporalidade e o
domínio da montagem ao vivo alcançam.
Já o termo VJ é um acrônimo para Video Jockey, ou retroacrônimo Visual Jock-
ey, e foi criado em complemento ao termo DJ (Disc Jockey). Seu significado extrapola o
simples ato de apresentar videoclipes na televisão, termo que ficou popularizado pela
MTV a partir da década de 80. Sendo que a cultura do VJing nasce das experiências com
cinema expandido e vídeo na década de 60, e invade as casas noturnas, pistas de dança
e festas raves no final dos anos 70. Atualmente é utilizado como técnica e poética por
artistas visuais no mundo todo que projetam vídeo em tempo real em concertos music-
ais, festas eletrônicas, intervenções digitais, cenários virtuais, live cinema, espetáculos
teatrais, videomapping, performances audiovisuais, cinema ao vivo, entre outros meios
e processos em tempo real.
Conforme exemplifica Patrícia Moran2, a atividade dos VJ’s diz respeito à manip-
ulação de imagens fixas ou em movimento, figurativas ou abstratas a partir de impro-
visações com um banco de imagens previamente selecionado. E a cultura eletrônica, o
ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

espaço da experiência, as imagens em relação com os sons e a técnica em sua material-


idade produtora de visualidade garantem ao trabalho dos VJ’s características poéticas
que merecem ser exploradas.
Para Mia Makela, VJs podem usar os mesmos clipes de modo distintos, e isto
normalmente não compromete a originalidade de suas performances, onde o essencial
é saber remisturar (remix) materiais, linguagens e formatos, originando uma apresen-
tação performática híbrida.
Por Marcus Bastos3, a prática do remix se resume, na maioria das vezes, a um
novo tratamento rítmico do material audiovisual. Onde não acontecem grandes mu-
danças na estrutura melódica e harmônica da composição, geralmente reembalada com

2 Moran, Patrícia. VJ em cena: espaços como partitura audiovisual.


3 Bastos, Marcus. A cultura da reciclagem.

33
fins de adequá-la ao conceito predominante.
Para Rodrigo Gontijo4, é dentro do contexto do cinema expandido e do vjing
que surge o Live Cinema utilizando–se inclusive dos mesmos equipamentos tais como
teclados midi, câmeras, laptops e softwares de edição de imagens em tempo real.
Eles reinventam o cinema expandido, mas diferentemente dos artistas dos
anos 1960, a preocupação está mais em proporcionar uma identidade visual aos locais
onde se apresentam, criando muitas vezes narrativas a partir dos catálogos de efeitos
propostos pelos softwares.
Assim, a poética do cinema ao vivo é aplicada em continuidade à teoria e prática
da montagem cinematográfica, de modo que as imagens pré-gravadas, pré-editadas,
criadas em qualquer tipo de suporte analógico ou digital, são editadas e montadas em
tempo real, muitas vezes com a utilização de diferentes câmeras e filmagem ao vivo,
e distribuídas para os suportes de projeção, sempre com a presença do público e do
artista visual no mesmo tempo presente em que a transmissão ocorre no espaço físico,
telas, monitores ou dispositivos.
É com base em amplo material de pesquisa literária, filmográfica e empírico
que optamos por realizar a dissertação apresentando com mais detalhes as técnicas
e poéticas de diversas experiências realizadas entre 2007 a 2017, de maneira a buscar
este fenômeno semiótico específico, o cinema ao vivo, e compreender com um olhar
mais atento a criação de experiências audiovisuais em tempo real, a fim de contribuir
com a reflexão nestes formatos, cujos meios e processos audiovisuais estão em con-
tínua expansão de suas fronteiras.

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ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

35
A ANIMAÇÃO COMO INSTRUMENTO
POTENCIALIZADOR DO AUDIOVISUAL
CIENTÍFICO
Autora: Maria Luiza Dias de Almeida Marques
Orientador: Atílio Avancini
Nível: Doutorado

R esumo
Este artigo apresenta o andamento da minha pesquisa de doutorado, que, à época da
Jornada Discente, em abril de 2016, acabara de se iniciar. Com pouco material coletado
e um esboço de ideias para o desenvolvimento, apresentei minha proposta de trabalho
para o doutorado, localizada no terreno do cinema científico e dos filmes de pesquisa,
sob o ponto de vista das técnicas e das linguagens, observando o caminho estético
adotado pelos seus realizadores. Como obras exemplares deste gênero, escolhemos
analisar e comparar dois filmes contemporâneos e com a mesma temática: o filme De
Revolutionibus, de Marcello Tassara, físico e cineasta brasileiro e Nicholas Coperni-
cus, do casal Ray e Charles Eams.

P alavras - chave filme científico, cinema científico ciências, filme de pesquisa, mul-
tidisciplinaridade

Este doutorado inscrito no PPGMPA-ECA-USP, linha de pesquisa Poéticas e


Técnicas, tem por objetivo estudar a linguagem e a estética no cinema científico. Parte
de uma reflexão inicial – pessoal - que considera que os fenômenos observáveis na na-
tureza e na sociedade incitam a curiosidade humana pela via da afetividade, roubando
o sujeito de seu equilíbrio inicial, ao qual só retornará através do esforço consciente de
seu sistema cognitivo, no processo de compreensão desses fenômenos. A observação,
olhar compenetrado e apaixonado ao objeto de estudo, é consequência de um impul-
so inicial de curiosidade, do questionamento em busca da verdade contida nos fatos.
Gaston Bachelard, em A Formação do Espírito Científico (1938) explora justamente o
mecanismo pelo qual a humanidade passou a se equipar intelectualmente na conquis-
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ta do conhecimento:

(....) para provar claramente que o que existe de mais imediato na ex-
periência primeira somos nós mesmos, nossas surdas paixões, nossos
desejos inconscientes, vamos estudar mais de perto algumas fanta-
sias referentes à matéria, tentar mostrar suas bases afetivas e o dina-
mismo subjetivo. Para tal demonstração, examinaremos o que vamos
chamar de caráter psicologicamente concreto da alquimia. A experiên-
cia alquímica, mais que qualquer outra, é dupla: é objetiva e é subje-
tiva (p. 57).

Se a subjetividade é, para Bachelard, marca fundamental na ciência, outra de


suas ideias coadunam com o espírito dessa pesquisa:

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No estado de pureza alcançado por uma psicanálise do conhecimento
objetivo, a ciência é a estética da inteligência (BACHELARD, 1938. p. 13)

Inspirada pela beleza estética de certos experimentos registrados em filme (ví-


deo ou película), por evidências que só puderam ser criadas pela captura de imagens,
e por todas as questões que envolvem o terreno do fazer-pensar em ciências e em ci-
nema, desenvolvi este projeto de pesquisa que almeja debruçar-se sobre o terreno da
ciência em filme, buscando referências históricas e analisando práticas que nos per-
mitam afirmar que a imaginação e a estética são peças chave na abordagem cinemato-
gráfica da ciência.
Um pouco da história deste projeto de pesquisa: dado o meu interesse profis-
sional pelo cinema de animação, e minha passagem por alguns projetos desenvolvidos
na Poli-USP, a proposta apresentada para a banca da pós-graduação versava sobre a re-
lação entre o cinema de animação e a ciência. A premissa era a de que a animação seria
um recurso potencializador do cinema científico e educativo, na medida em que mate-
rializa aquilo que é abstrato e/ou invisível, isto é, aquilo que só a mente é capaz de ela-
borar no tratamento dos fenômenos da natureza, da vida e mesmo da sociedade, além
de estender a percepção humana em relação a fenômenos extremos não captados pela
visão em condições normais. Falamos aqui de técnicas variadas, como o time-lapse, que
pertence ao grupo das técnicas da animação, e que nos permite assistir a fenômenos
morosos, e também à computação gráfica, capaz de traduzir em imagens situações
abstratas e teorias matemáticas. Assim, animação representa um considerável reforço
para as teorias propostas pelo cientista e um valioso instrumento quando os objetivos
dessas peças audiovisuais são dirigidas para o ensino, o treinamento e o debate.
Por outro lado temos filmagens tomadas ao vivo a partir de diversos processos,
como a filmagem em high-speed, que nos revela com detalhes as etapas de um evento
que ocorre em frações de segundo; a filmagem microscópica, que nos oferece visões
“abstratas” de fenômenos invisíveis a olho nu; as filmagens em raio-X e em infra-ver-
melho, que mostram aspectos insuspeitos da nossa realidade. Dessa forma, por todo
um conjunto de técnicas de filmagem que não pertencem ao âmbito da animação, e
que rendem obras instigantes, resolvi redirecionar a pesquisa, ampliando o espectro
de filmes analisados para além do cinema de animação.
Dentro da linha Poéticas e Técnicas, interessa-nos tudo que se relaciona com
o pensar-fazer audiovisual. O cinema científico, que, grosso modo, compreende os fil-
mes de pesquisa (research films) e os filmes com temática científica para difusão de
conhecimento, combina dois tipos de percepção, inerentes à cinematografia e às ciên-
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cias: a percepção estética e a cognitiva. Posta em prática para oferecer a melhor ima-
gem de um fenômeno, a percepção estética enfatiza e corrobora a informação ou a evi-
dência que se pretende fazer visível. A especificidade, portanto desta estética voltada
para o conhecimento em ciências almeja uma clareza da figura retratada em relação ao
entorno, de maneira que o cientista ofereça ao espectador a visão do que é relevante
no fenômeno.
Interessa-nos, portanto, compreender neste universo das ciências ditas naturais,
quais seus limites, como se dá sua evolução técnica, quais suas aplicações e, em um capí-
tulo a parte, avaliar em que aspectos a animação é mais eficaz.
Esperamos com esta pesquisa, contribuir para o adensamento dos estudos dos
vínculos entre ciência e cinema, no âmbito da não-ficção, esquematizando dentro das
práticas do cinema científico, a sua definição, a sua evolução, suas técnicas e suas apli-
cações, de modo a evidenciar os processos de colaboração interdisciplinar na elabora-

37
ção dos projetos e as alternativas estéticas adotadas conforme cada temática.
Também pretendemos demonstrar a tese de que os recursos da animação são
um instrumento poderoso na realização de filmes científicos e/ou educativos. As hi-
póteses, neste caso, circunscrevem-se a um percurso analítico por esse tipo de produ-
ção audiovisual, com ou sem animação, e um levantamento, mesmo que incompleto,
do acervo brasileiro disponível, o corpus principal deste trabalho.
Criar um banco de dados catalogando obras nacionais e estrangeiras de con-
teúdo relacionado à ciência, no âmbito da pesquisa ou difusão.
  Dar especial atenção às obras em que a animação foi utilizada, relacionando os
recursos de que se dispunham em cada produção e o contexto em que foram feitos
os filmes, para entender em que medida o cinema de animação revelou-se a melhor
alternativa para a representação de fenômenos do universo das ciências.
Resgatar o histórico de filmes, o modo como foram feitos, e avaliar o cresci-
mento ou diminuição da demanda por este tipo de filme. Catalogar a produção reali-
zada no âmbito universitário nos anos 1960 e 1970.
A revisão bibliográfica que orienta este trabalho apoia-se parte na historiogra-
fia do cinema voltado a pesquisas e a divulgação científicas, parte em filósofos, críticos
e cientistas que investigam as intersecções entre os conjuntos do conhecimento e das
artes. O fato de haver pouca bibliografia a respeito do tema não é de todo negativo,
uma vez que corrobora nossa percepção de que se trata de um campo pouco explora-
do, pouco valorizado. Por um lado a tarefa de comparar obras torna-se mais fácil, por
outro, sentimos dificuldades em preencher lacunas de informação.
Assim, no que toca à historiografia e ao acervo da cinematografia em questão,
encontramos em Virgilio Tosi e Anthony Michaels, um imenso repertório, base para a
elaboração de questões e para descoberta de outros autores que contribuíram para o
campo da ciência na tela.
Para Tosi, existe uma nova linguagem desenvolvida a partir do cinema científi-
co que não consiste apenas das imagens que reproduzem a realidade dos experimen-
tos: trata-se uma língua, chave para novas possibilidades cognitivas,

(...) com lugar para informação, comparação, análise e síntese. É


possível descobrir, conhecer e transmitir informações que antes não
seria possível descobrir, conhecer e transmitir. Essa língua não subs-
titui inteiramente as línguas oral e escrita. É uma nova língua com
suas próprias especificidades expressivas e comunicativas (TOSI,
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1982. p.5).

Seguindo os passos de Tosi e de Michaels, encontramos na obra de Edwaerd


aponta para a especificidade da linguagem e da estética em filmes científicos.
Escolhemos um percurso investigativo cujo ponto de partida antecede os ex-
perimentos científicos dos pioneiros que desenvolveram essas máquinas de ampliar a
percepção humana através da quarta dimensão; é de longa data a ideia de que imagens
são úteis na compreensão e no ensino de fenômenos. Assim, identificamos na biblio-
grafia, registros dos primeiros estudiosos ainda na baixa Idade Média que entenderam
o poder da imagem para a compreensão e transmissão do conhecimento. Mais tarde,
por no século XVIII, um professor de fisiologia criou um diagrama animado com 4
imagens para explicar o funcionamento do sistema circulatório. Concomitantemente,
estudos em torno da persistência da imagem na retina, do registro em nitrato de pra-

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ta, e de dispositivos para captura de imagem em movimento estavam em curso em
muitos locais da Europa.
Isso tem a ver com o crescente interesse pelo científico, pelas engenharias,
pelas novas formas de energia, pela física do movimento eram compartilhados pela
academia e pelo cidadão comum, que assistia à troca da iluminação a gás pelas lâm-
padas elétricas, à onipresença das máquinas a vapor, ao traçado das ferrovias, ao
surgimento das revistas ilustradas e à tipografia moderna.
Em meados do século XIX, no centro do mundo ocidental, a revolução indus-
trial já estava consolidada; a busca pela eficiência nos processos levava à toda ordem
de pesquisas que trouxessem melhorias nas máquinas e nos processos. O método
científico se instaura como o padrão a ser seguido na busca pela verdade, sempre
indexada à realidade objetiva e concreta. O “ver para crer”... (visual, mas nem sempre
acessível aos sentidos de que fomos dotados nós, os seres humanos) não mais sus-
tenta por si só o espírito científico, o qual pode ter na visão sua ferramenta primá-
ria, mas exige esforço de elaboração abstrata para criar leis válidas aplicáveis para
um mesmo fenômeno. Para Gaston Bachelard, em A Formação do Espírito Científico
(1938),
(...) sobre qualquer questão, sobre qualquer fenômeno, é preciso passar
primeiro da imagem para a forma geométrica e, depois, da forma geo-
métrica para a forma abstrata, ou seja, seguir a via psicológica normal
do pensamento científico (p. 11).

Notamos que o desenvolvimento dos recursos em si é considerado um fato


científico, na medida em que, a partir da segunda metade do século XIX, muitos dos
textos de cinema científico mostram os modelos de captura de imagem, a descrição
dos equipamentos, métodos de revelação, e apontam para os futuros desdobramen-
tos da tecnologia, como cor, som e estereoscopia.
Aprofundamo-nos nos pioneiros e encontramos exemplares de filmes didáti-
cos em matemática, em física, além de fisiologia
Como já foi mencionado, passada uma primeira coleta de material, ficou pa-
tente que as técnicas de animação constituem peça importante no cinema científico,
mas o volume de trabalhos interessantes do ponto de vista estético e de linguagem,
extrapola com folga o terreno da animação. Assim, o universo dessa pesquisa abarca
todas as técnicas empregadas na visualização de fenômenos científicos, seja para o
uso em pesquisa, investigação e análise, seja para difusão e debate.
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Isto posto, a escolha por De revolutionibus1, e Nicholas Copernicus, que mes-


clam as imagens animadas em truca com imagens captadas a 24 fps, na busca de
tecer um painel que, longe de descrever a teoria de Copérnico, oferece ao espectador
a experiência de transitar entre duas visões de mundo, como nos explicou o diretor:

A ideia desse filme foi muito além do que simplesmente mostrar o


movimento dos planetas, etc. A ideia era de ilustrar como a ciência
evolui, era uma forma de dizer isso. Como a ciência evolui, ao con-
trário do processo de descascar um abacaxi, ou uma cebola, você
vai juntando coisas, você não modifica as coisas. (...) A mecânica de
Newton funciona de certa maneira. Quando veio a teoria da relati-

1 Em latim, “Sobre as Revoluções das Esferas Celestes”, a obra magna de Copérnico.

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vidade, aquelas ideias do Newton tiveram que ser revistas2.

 Apresentaremos uma definição abrangente gênero científico para compreender


qual seu lugar e sua importância, seu papel e seu valor dentro da cinematografia como
um todo. Consideramos inevitável passar pelas histórias do cinema e do pensamento
científico, para encontrar as intersecções ou tangências nessas duas linhas evolutivas.
Neste universo, que envolve filmes realizados no interior de grupos de pesquisa,
filmes de divulgação científica ou filmes pedagógicos, (sempre com a ciência no foco do
interesse), nosso objeto de pesquisa será o filme De Revolutionibus, dirigido em 1975 por
Marcello Tassara, em comemoração aos 500 anos da morte de Nicolau Copérnico. O tí-
tulo faz menção à obra De revolutionibus orbium coelestium, em que Copérnico descreve
pormenorizadamente os cálculos que o levam a concluir que o Sol - e não a Terra - está
no centro do Universo. Acreditamos ser este filme uma obra que explora todo potencial
da linguagem cinematográfica e amplia as fronteiras do cinema científico em direção
ao terreno da imaginação, da criatividade, ao aproximar documentos históricos, ima-
gens documentais de paisagem urbana moderna e música pop, sugerindo, em subtexto,
a plasticidade do pensamento científico, caracterizando um discurso aberto.
Também por ocasião dos 500 anos da morte de Copérnico, encontramos no fil-
me Nicholas Copernicus, realizado pelo casal americano Ray e Charles Eams, um exce-
lente contraponto a De Revolutionibus, pois, filmado na mesma época e pelo mesmo mo-
tivo que o brasileiro, o filme dos Eams explora o universo de Copérnico pela “chave” da
elegância informativa, com enquadramentos análogos a naturezas mortas. Composições
utilizando objetos do universo de Copérnico, seus manuscritos e tabelas de cálculos me-
ticulosamente diagramados, a natureza dos locais onde viveu são amarradas pelo texto
lido em que, ora o narrador descreve o momento histórico, ora encarna a voz de Nicolau
Copérnico.
É impossível não comparar os dois filmes, que trazem algumas semelhanças su-
perficiais e diferenças profundas. A pesquisa patrocinada pela IBM permitiu a Charles
Eams viajar para a Europa para pesquisar toda iconografia que cerca a figura de Copér-
nico, como seus livros, gravuras, objetos e instrumentos científicos de época e docu-
mentos. Há muito mais material de arquivo e diversidade nas imagens coletadas para
o Copérnico dos Eams, uma vez que o filme fez parte de um evento muito maior em
celebração dos 500 anos de nascimento do astrônomo. A beleza e a plasticidade são
marca registrada no estilo dos filmes Eams, e neste curta em especial, a composição das
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imagens estáticas, planos de detalhe, e planos com movimento com uma trilha especial-
mente composta para este trabalho evidencia a busca pela precisão.
Defendemos, contudo, que o trabalho realizado no Brasil, ECA – USP, articula de
forma radicalmente mais complexa o conjunto das imagens coletadas, apontando, não
apenas para a grandeza da contribuição de Copérnico, como lançando ao público o con-
vite para olhar o nosso tempo e identificar o que nele há que ainda pode ser descoberto.
Nossa hipótese, portanto, é comprovar que se pode extrair de imagens tão enrai-
zadas na realidade palpável um conteúdo de potencial poético que transcenda a denota-
ção e reserve à imaginação um lugar privilegiado no conhecimento. É também demons-
trar que esta categoria de filmes que explora a realidade concreta é fonte inesgotável
de plasticidade e de surpresa, trabalhando imagens que flertam com a abstração. Em

2 Marcello Tasara, em entrevista concedida em 10/04/2017.

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outras palavras, o audiovisual de conteúdo científico imbuído de pensamento científico
pode apresentar uma liberdade de expressão que coexista com o método científico. Se
na ciência moderna o esforço intelectual empreendido gira em torno da formulação
abstrata partindo-se de experiência visível concreta (fenômenos observáveis), no cine-
ma científico as imagens existem em função da compreensão das formulações teóricas,
incumbindo o elemento estético da tradução de conceitos pela via afetiva. Aproveita-
mos aqui as proposições de Gaston Bachelard em “A Formação do Espírito Científico”,
obra em que
delinear os fenômenos e ordenar em série os acontecimentos decisivos
de uma experiência, eis a tarefa primordial em que se firma o espírito
científico.

(...) para provar claramente que o que existe de mais imediato na ex-
periência primeira somos nós mesmos, nossas surdas paixões, nossos
desejos inconscientes, vamos estudar mais de perto algumas fantasias
referentes à matéria, tentar mostrar suas bases afetivas e o dinamismo
subjetivo. Para tal demonstração, examinaremos o que vamos chamar
de caráter psicologicamente concreto da alquimia. A experiência alquí-
mica, mais que qualquer outra, é dupla: é objetiva e é subjetiva (p. 57).

No estado de pureza alcançado por uma psicanálise do conhecimento


objetivo, a ciência é a estética da inteligência (BACHELARD, 1938. P. 13).

Com essa noção da colaboração mútua entre as ciências e as artes, desenvolve-


mos esta pesquisa, buscando evidências que nos permitam estabelecer as devidas co-
nexões entre o conhecimento científico, a estética e a afirmar o caráter multidisciplinar
destas produções.
Seguindo a cronologia das produções nas primeiras décadas do cinema, após os
experimento de Janssen, Muybridge e Marey, Albert Londe, entre outros, passamos pe-
las obras de Ludwig Münch3, Martin Duncan4, Wilhelm Pfeffer5 Roberto Omegna6. Esses
cientistas-cineastas, ou, como diz Tosi, cineastas científicos, cujos trabalhos foram reali-
zados em laboratórios de universidades, evidenciam a vocação investigativa e difusora
de saberes que tem cinema.
Partimos a observar a evolução do uso do cinema em pesquisas e em divulgação,
observando as características linguagens adotadas em cada filme, de acordo com seu
propósito.
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Destacamos para uma observação mais demorada os trabalhos de Jean Painlevé,


do casal Eams, Albert Baez, e das sociedades para o desenvolvimento de cinematografia
científica, como a PSSC - Physical Science Study Committee, a Encyclopaedia Cinema-
tographica de Göttingen, a Lomonosov de Moscou, ou produtoras especializadas, como
a Tokyo Cinema Co..
Chegamos finalmente à USP, à ECA, onde foi realizado o filme que analisaremos
como estudo de caso nesta tese. De Revolutionibus faz parte de um conjunto de filmes
3 Mathematische Trickfilme, uma animação 2D com circunferências que se tangenciam de acordo com teore-
mas geométricos.
4 The Cheese Mites, microfilmagem das bactérias do queijo.
5 Pioneiro no uso do time lapse.
6 La Neuropatologia - Crisi d’Isteria, ilustração de uma mulher em ataque histérico.

41
realizados por Marcello Tassara em equipe multidisciplinar composta por técnicos e
estudantes da ECA egressos do Instituto de Física e da Poli, ou seja, equipe com co-
nhecimento de procedimentos metodológicos científicos e com domínio em técnicas
cinematográficas. Do mesmo autor, temos uma série de filmes dedicados a temas da
física, como As Leis de Kepler (1969), Relações entre trabalho e energia cinética (1970),
Centro de massa – série de seis filmes em loop (1971), Colisões – série de 5 filmes em
loop (1973), O Pendulo (1974), Laboratório sem paredes/sem fronteiras (1977), Radia-
ção Cósmica (1995), Física – Laboratório Visual (2004), Laboratório Virtual de Física
(2010). Estes são alguns dos títulos produzidos em quase 50 anos de carreira. Outros
temas caros ao diretor são o meio ambiente e os povos indígenas, aos quais foram dedi-
cados mais de uma dezena de filmes.
De todos esses filmes citados, parte da série de film-loops Centro de massa foi
recuperada e digitalizada na Cinemateca, e está disponível no Youtube. Os demais en-
contram-se na Cinemateca ou no acervo da ECA-USP.
No conjunto de obras realizadas dentro da USP, conheceremos também mate-
riais da biologia, da psicologia e da antropologia, entendendo que o espítrito científico
habita o pesquisador, mas nem sempre habita o cineasta, ou, como diz o Prof. Mario
Guidi: “é muito mais fácil você transformar o pesquisador num operador de vídeo para
o seu trabalho, do que transformar um operador de vídeo em pesquisador7.” Assim,
com recursos variados, os institutos de pesquisa suprem a necessidade de habilidade
técnica com pessoal de dentro da própria pesquisa, quando o assunto é registro em
cine/vídeo.
Por se tratar de um trabalho em andamento, ainda não há uma conclusão de-
finitiva, mesmo porque, o modelo de hipótese colocada não requer uma conclusão do
tipo fechada; mas as pistas apontam para o fato de que se trata de um gênero multidis-
ciplinar que floresce na medida em que é alimentado por imaginação e, por mais que
se queira objetivo, posto que trabalha com realidade, terá em seu centro, sempre, uma
motivação humana na direção do conhecimento. Pra finalizar este artigo-aperitivo de
pesquisa, mencionamos uma citação de Carl Sagan, para quem “toda pesquisa demanda
ceticismo e imaginação” (SAGAN. 1981, p 13).

B ibliografia
AUMONT, Jacques; MARIE, M. A imagem. Tradução Estela dos Santos Abreu e Cláudio C. Santoro. 1993.
GARCIA, Gabriel Cid; COIMBRA, Carlos AO. Ciência em Foco: o olhar pelo cinema. Rio
de Janeiro: Garamond, 2008.
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JÚNIOR, Alberto Lucena. Arte da animação. Senac, 2002.


MICHAELIS, Anthony. Research films in biology, anthropology, psychology, and medicine. Elsevier, 2012.
NETTO, Domingos Luiz Bargmann. Produção audiovisual na Universidade de São Paulo. 2000. Tese de
Doutorado.
SAGAN, Carl. Cosmos. 1980. Trad. Maria Auta de Barros, e Isabel Pereira dos Santos. Lisboa: Gradiva,
1981.
TOSI, Virgilio. Cinema before Cinema. London: British Universities Film and Video Council, 2005.

7 Entrevista concedida por amara o pesquisador Domingos Bragmann, para sua tese de doutorado, defendida
em 2000.

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ABORDANDO TEORIAS SOBRE OS
JOGOS DIGITAIS
Autor: Gustavo Denani
Orientador: Cristian Borges
Nível: Doutorado

game /gām/ n. (pl. -games) a free activity


characterized by an opposition between forces.

game /gām/ n. (pl. -games) a playable subjective


representation in which players engage in an
opposition between forces to enact a fantasy of power.

game /gām/ n. (pl. -games) a cultural form telling a story.

- Molleindustria1

Introdução

Este texto tem o duplo propósito de delinear uma abordagem sobre jogos di-
gitais, situando-os nos campos da ludologia e Game Studies e contextualizando-os
sob o viés de críticos contemporâneos que tratam da produção de trabalho imaterial
e subjetividade. Posteriormente, serão analisadas referências no campo do Game De-
sign a fim de se analisar como se compõem a rede de discursos que norteia a elabo-
ração de um jogo digital. Acredita-se que tal rede ganha formas e sentidos expressos
nas dimensões audiovisual e algorítmica dos jogos. Desse modo, torna-se possível um
conhecimento pormenorizado a respeito da ubiquidade das mídias digitais e o caráter
crescentemente pervasivo que redes sociais, aplicativos e jogos digitais têm apontan-
do para uma tendência cuja novidade está na produção de informação de maneira dis-
creta. Ou seja, informações inseridas ou consumidas no Facebook, buscas realizadas
pelo Google ou partidas realizadas no Candy Crush geram metadados cujo potencial
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econômico e político pode ser percebido, por exemplo, na atenção que a Big Data tem
ganhado ao ser possível mapear, e às vezes prever, tendências sociais das mais diver-
sas.
Neste sentido, argumenta-se que o próprio entendimento do jogo digital como
uma mídia vai muito além de uma dicotomia entre materialidade e imaterialidade, de
modo que desde o fluxo de elétrons nos transistores até sua carcaça de plástico, vidro
e silício devem ser entendidos enquanto um continuum pelo qual o jogador produz
informação ao compreender e manipular algoritmos.
Dessa forma, escolha da epígrafe não foi por acaso. No gerador de definições
aleatórios sobre o termo “jogo”, feito pelo coletivo italiano Molleindustria, foram escolhidas
definições sugeridas nas três primeiras tentativas. Com isso, procura-se apontar que

43
escolher exclusivamente entre “uma atividade”, “uma representação”, “uma forma”, ou
qualquer outro substantivo dotado de uma única finalidade (contar uma história ou
encenar uma fantasia de poder) engessa uma reflexão metodológica sobre o objeto
em questão. Isto porque é impossível interrogar um jogo a respeito de seu sentido se
considerá-lo como alheio aos agenciamentos que perpassam tanto o jogador quanto a
máquina que ele manuseia. Agenciamentos estes que são irredutíveis a uma única prá-
tica social ou humana, uma vez que articulam potencialidades expressadas na forma
de cognição, libido e raciocínio, por exemplo.
A provocação do coletivo italiano é pertinente também pela atenção e sensibi-
lidade presente em seus jogos, propondo com ironia um olhar crítico sobre questões
ocultas e intrínsecas em produtos da indústria cultural. Por isso, cabe aqui um preâm-
bulo acerca da política e da cultura contemporânea, esferas estas que estão fortemente
relacionadas ao se falar de um artefato cultural cujo percurso acompanhou, quando
não influenciou severamente, os avanços tecnológicos em telecomunicação e infor-
mação.
Assim, uma crítica que parta de jogos digitais, mas que vá para além deles, im-
prescinde de um enquadramento teórico acerca de pensadores clássicos e contempo-
râneos sobre o tema. Busca-se assim tomar os autores precursores no estudo detido da
atividade lúdica, bem como os que esboçaram uma metodologia acerca desse objeto.
Os autores que interessam nesta pesquisa podem ser arbitrariamente divididos em or-
dem cronológica: aqueles que buscaram estabelecer fundamentos que respondessem
o porquê e o como da atividade lúdica, como foi o caso de Johan Huizinga e Roger Cail-
lois; e todos os outros, contemporâneos do advento e massificação de jogos digitais.

Johan Huizinga e Roger Caillois

Por serem autores fundadores no estudo contemporâneo da ludologia, o modo


pelo qual é feita a leitura das obras de Huizinga e Caillois sinalizam sobre a tendência
pela qual a abordagem sobre jogos será feita. Assim, busca-se aqui mais do que um
resumo e comparação das ideias dos dois autores, tarefa já feita em outros trabalhos,
explicitando alguns dos pressupostos presentes nos textos dos autores.
Dado o escopo distinto entre eles, Huizinga e Caillois tendem a polarizar o de-
bate acerca do ato de jogar. Isso porque enquanto Huizinga vê o jogo como “uma cate-
goria absolutamente primária da vida, que qualquer um é capaz de identificar desde o
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próprio nível animal”2, para Caillois, o historiador holandês “vê jogar como uma ação
desprovida de qualquer interesse material [que] simplesmente exclui apostas e jogos
de azar – por exemplo, casas de apostas, cassinos, pistas de corrida e loterias – que,
para o bem ou para o mal, ocupam uma parte importante na economia e vida diária de
várias culturas”3.
Atendo-se a um viés sociologizante, Caillois restringe a atividade lúdica à per-
formance realizada por seres humanos, que por sua vez estão submetidos a uma de-
terminada cultura. Sendo uma atividade cultural, o jogo delimita uma temporalidade
e uma espacialidade que o separa da vida cotidiana. Por isso a abordagem do jogo en-
quanto momento de oferecer ao jogador aquilo que ele não tem no dia a dia, como
2 HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2004,
p.5.
3 CAILLOIS, Roger. Man, Play and Games. University of Illinois Press, 2001, p. 5.

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oportunidades simétricas ou interpretar outro papel além dos interpretados no seu co-
tidiano.
É interessante notar que ambos os autores estão de acordo com um certo etno-
centrismo ao desenvolverem suas argumentações. No início do seu texto, Huizinga se
detém a etnografias, ressaltando como o lúdico e o sagrado se cruzam na experiência do
homem “primitivo”. No seu esforço em não reduzir a alteridade à condição sub-humana,
Huizinga põe na mesma condição ontológica a criança (presumidamente europeia, do
século XX), o poeta e o selvagem, enfim, pessoas exteriores ou fronteiriças ao mundo
racional, sério, desencantado da modernidade. São eles que seriam capazes de criar e
habitar o círculo mágico, esse espaço-tempo que ignora o mundo “real”.
Ao levar em conta o caráter ritualístico do jogo e o caráter lúdico do ritual, Hui-
zinga reforça uma de suas argumentações principais, de que o jogo tem um papel fun-
damental na atividade cultural, tornando possível tomá-lo para além do campo pré-con-
cebido da falta de seriedade. Pelo contrário, é justamente levando a sério as regras que
regem desde um culto religioso, quanto uma interpretação teatral ou a manipulação de
um instrumento musical que torna-se possível observar o que Huizinga chama de cír-
culo mágico, ou seja, o espaço delimitado para pessoas investidas integralmente a uma
dada performance. Se “arena, a mesa de jogo, o círculo mágico, o templo, o palco, a tela,
o campo de tênis, o tribunal etc., têm todos a forma e a função de terrenos de jogo, [os
quais] são mundos temporários dentro do mundo habitual, dedicados à prática de uma
atividade especial”4, deduz-se que há uma dimensão lúdica em diversas práticas huma-
nas.
Caillois, por sua vez, ao categorizar tipos ideais que estruturariam formalmente o
jogo, acaba por circunscrever o ato de jogar na sua cultura. Basta observar uma de suas
divisões, agôn e alea. Enquanto a primeira refere-se a jogos onde a habilidade do jogador
é um fator decisivo, a segunda compreende jogos em que o resultado não depende dos
esforços do jogador. A relação causal entre esforço e recompensa, ou a dicotomia entre
caos e ordem só fazem sentido para alguém que tenha internalizado discursos como os
da física newtoniana ou a ascese protestante, que por sua vez pressupõem atores racio-
nais. Dessa forma, a razão de existir do jogo em Caillois parece orbitar em um funcio-
nalismo que visa complementar a satisfação de capacidades intrínsecas à natureza hu-
mana, como criatividade e competitividade, quando outras instituições não conseguem
suprir sua realização. Daí a distinção entre jogador e trabalhador, que Caillois ilustra no
exemplo do esportista e do ator. Na medida em que torna-se uma atividade compulsória
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enquanto meio de subsistência, um ator ou um boxeador não estão jogando, e sim traba-
lhando.
Mais do que possuir uma ou várias formas, o ludus de Caillois não prescinde de
uma normatividade. Isso fica claro nas possíveis formas corrompidas que as categorias
do jogo podem assumir. Ao ultrapassarem um limiar vicioso, o respeito ao árbitro (agôn)
ou a neutralidade da contingência (alea) desaparecem, originando pura disputa violenta
e superstição, respectivamente. Se para Caillois jogos são formas culturais, que em maior
ou menor grau encontram correlatos em formas institucionais integradas na vida social,
deduz-se que uma teoria normativa da atividade lúdica redunda sobre uma teoria nor-
mativa da sociedade. São sintomáticos do sociólogo francês os exemplos de integração
social correspondentes a cada forma de jogo: competição econômica (agôn); especulação

4 HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 11.

45
na bolsa de valores (alea); etiqueta cerimonial (mímica); profissões que requerem con-
trole da vertigem (ilinx). Talvez por acidente, ele acabe por delinear atos e virtudes do
sujeito neoliberal, ainda em estágio embrionário a uma década do maio de 68.
Assim, coloca-se em questão no trabalho de Caillois a delimitação rígida à qual
ele submete seu objeto, conferindo-o um caráter demasiadamente instrumental ao té-
los de sua disciplina, a (sua) sociedade. Por isso, segundo Caillois, a “falha” no esforço
de Huizinga, a saber, de que ele parte de uma definição “muito ampla e muito estrita”5 é
justamente o que a torna interessante. Enquanto um conceito independente, jogo para
Huizinga não se submete ao crivo da biologia ou psicologia: “é uma função da vida, mas
não é passível de definição exata em termos lógicos, biológicos ou estéticos”6. Ou seja,
não se submete a nenhuma teleologia, a nenhuma lógica externa a ele. Apesar de ser
parte da cultura, jogar não se submete a ela, mas constitui o momento pelo qual a cultu-
ra é praticada.
É importante notar, no entanto, que Huizinga também recai sobre um lamento,
saudosista no seu caso, sobre o lugar e o papel do jogo na sociedade do seu tempo. Se
na época em que a cultura era jogada, ou na época em que a aprendizagem e sociabili-
dade infantis estavam embebidas de brincadeira, nos tempos de Huizinga, modernos e
desencantados,
esta ligação com o ritual foi completamente eliminada, o esporte se
tomou profano, foi ‘dessacralizado’ sob todos os aspectos e deixou de
possuir qualquer ligação orgânica com a estrutura da sociedade, sobre-
tudo quando é de iniciativa governamental. A capacidade das técnicas
sociais modernas para organizar manifestações de massa com um má-
ximo de efeito exterior no domínio do atletismo não impediu que nem
as Olimpíadas, nem o esporte organizado das Universidades norte-a-
mericanas, nem os campeonatos internacionais tenham contribuído
um mínimo que fosse para elevar o esporte ao nível de uma atividade
culturalmente criadora. Seja qual for sua importância para os jogado-
res e os espectadores, ele é sempre estéril, pois nele o velho fator lúdico
sofreu uma atrofia quase completa.7

Os exemplos apontados por Huizinga continuam atuais quando se pensa no es-
porte enquanto instituição e espetáculo, e a princípio também em jogos digitais, uma
vez que a grande maioria deles é uma caixa preta de códigos, onde o limite da percep-
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ção, imaginação e atividade do jogador é condicionada pelo próprio jogo. Se ele tivesse
presenciado a subversão lúdica dos programadores do MIT sobre o computador expe-
rimental, PDP-1, originando o primeiro jogo digital da história, o Spacewar!, passando
pelo estabelecimento de jogos digitais na indústria cultural, até a tendência atual de
produzir modificações de jogos já existentes feitas por entusiastas, talvez ele identificas-
se um movimento oscilante de aproximação e afastamento de “uma atividade cultural-
mente criadora”.
Sobretudo, nota-se entre os dois autores a distinção entre duas palavras que apa-
rentemente têm o mesmo significado: jogar e brincar. Apesar de serem verbos que se
5 Idem, Ibidem, p. 4.
6 HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2004, p.
10.
7 Ibidem, Idem, p. 141-2.

46
interpolam quando uma partida de esconde-esconde ou uma sessão de Minecraft estão

em andamento, a distinção entre eles é fundamental tanto para demarcar os territórios


de Huizinga, Caillois e seus seguidores, quando para que se estabeleça parâmetros acerca
de uma abordagem. Cabe aqui citar Allan Kaprow:
A diferença chave entre jogar e brincar não pode ser ignorada. Am-
bas envolvem livre fantasia e aparente espontaneidade, ambas podem
ter estruturas claras, ambas podem (mas não precisam) demandar ha-
bilidades especiais que aperfeiçoem a brincadeira. Brincar, no entanto,
oferece satisfação, não no resultado prático pressuposto, como em al-
guma realização imediata, mas na participação contínua sendo seu pró-
prio fim. Escolher lados, vitória, e derrota, todas irrelevantes quando
se brinca, são requisitos fundamentais do jogo. Quando se brinca, se é
despreocupado; em um jogo se é ansioso em ganhar8.

A distinção feita por Kaprow é fundamental, pois além de sintetizar a análise aci-
ma exposta a respeito dos dois teóricos, é persuasiva em propor um maior detimento so-
bre o significado e ambiguidade contidos em “brincar” e “jogar”. Jogar pode implicar em
brincar, podendo-se assim disputar uma partida qualquer, de modo que os participantes
tenhamttt liberdade em mudar suas regras, suas condições de participação e de vitória.
De modo inverso, como aponta Kaprow, um jogo, a saber, uma atividade com regras fixas
acerca do modo como se joga e o modo como se atinge vitória e derrota, estão presentes
em atividades consideradas socialmente sérias. Por isso, não é estranho assistir a noti-
ciários cujos relatos de guerra, economia e política tenham agentes que se mobilizam
dentro de seus contextos como se fossem verdadeiros jogadores9.

Mckenzie Wark e Nick Dyer-Witheford – Uma crítica materialista

Em “Games of Empire” Dyer-Whiteford e Greig de Peuter exploram em vários


exemplos os modos pelos quais jogos digitais “borram as linhas entre trabalho e brin-
cadeira, produção e consumo, atividade voluntária e exploração precária, em uma ma-
neira que tipifica o exercício sem fronteiras do biopoder”10. Biopoder que é experimen-
tado tanto no simulacro dos jogos (nas arquiteturas que constroem mundos como os de
Grand Theft Auto 4 (Rockstar, 2008) e World of Warcraft (Blizzard, 2004), e nos avatares
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possíveis que os habitam, quanto nos novos regimes de trabalho que emergem na pro-
dução de conteúdo pelo os habitantes de Azeroth ao jogarem World of Warcraft, ou na
acumulação intensiva de ouro (a moeda de World of Warcraft) feita por gold farmers.
Interessa na abordagem deles o desenvolvimento do computador, e posterior-
mente, do videogame, como pivô nos processos de desterritorialização e reterritoriali-
zação que caracterizam o capitalismo pós-industrial. Um bom exemplo disso é a leitura
deles acerca da primeira investida11 de Bill Gates sobre o uso sem licença que era feito de seu
8 KAPROW, Allan. Essays on the blurring of art and life. Berkeley: California, University of California
Press, 1993, p. 122.
9 Talvez por isso a teoria de John Nash seja a dos jogos, e não a da brincadeira. A escolha racional a ser
feita pelas duas super-potências durante a guerra fria decidiria o poder delas sobre o planeta. Mais do
que isso, a escolha delas decidiria sobre a própria existência de um planeta para ser governado.
10 DYER-WHITEFORD, Nick; DE PEUTER, Greig. Games of Empire: Global Capitalism and Video Games.
Minneapolis: Minnesota, University of Minnesota Press, 2009, p. XIX.
11 Trata-se da Open Letter to Hobbists, endereçada aos usuários do código Altair Basic, o primeiro pro-
duto da Microsoft, que usavam sem autorização.

47
software nos anos 70. Segundo eles, o enclausuramento em propriedade privada do código
de Altair Basic foi o primeiro passo de uma série de territorializações acerca da ética hacker,
cujas reivindicações giravam em torno da liberdade da informação, ou seja, sua desterritoria-
lização. Apesar de ter sido um “reterritorializador” não é difícil de observar fora da trajetória
de Bill Gates e de sua empresa a sucessão de desterritorialização e reterritorialização enquanto
constantes no desenvolvimento tecnológico dos últimos anos, seja em videogames, Internet,
e outros adventos12.
Segundo os autores, a conexão entre esse consumidor-alvo e os arranjos tecnológi-
cos que compõem o console (como por exemplo recursos multimídia como a reprodução de
músicas e filmes, e acesso à internet) têm um caráter íntimo, “sutilmente inserido em nosso
espaço pessoal e doméstico e mesmo carregado próximo de nossa pele, respondendo às nossas
habilidades e proezas”13. Contrastando com os jogadores casuais, o público hard core explora
as regras do jogo a fim de desenvolver suas habilidades incessantemente, colocando-as à prova
nas partidas online. Apesar dos jogos como Halo (Bungie, 2001) serem o ponto central onde a
captura do público hard core é feita, é por recursos suplementares ao jogo, como ranqueamen-
tos e mecanismos de recompensa simbólica pela performance dos jogadores14 que a captura é
consolidada. Dessa forma, há um salto qualitativo na experiência de um jogo digital quando
joga-se em rede, uma vez que ela produz contextos sociais de jogo. Espaços públicos como fli-
peramas e privados como quartos cedem lugar aos servidores onde os jogadores se relacionam
dentro e fora do jogo, “de modo difuso, infiltrante e molecular, por exemplo, pelas redes que
permeiam nosso dia a dia e saturam o aparente tempo privado”15.
Deve-se notar que a articulação entre as filosofias de Marx e de Deleuze e Guattari feita
por eles explicita a materialidade do videogame nas mais diversas atividades que compõem
a manutenção da soberania imperial, e particularmente sobre a integração das esferas tecno-
lógica, militar e de entretenimento. Assim, desejar o último console da Sony ou da Microsoft
implica no ímpeto de integrar-se à uma densa máquina social e tecnológica, onde a produção
de mercadoria e de subjetividades acontece tanto na aquisição de periféricos e jogos quanto
na própria atividade que engendra o jogo. O mundo de World of Warcraft, por exemplo, é
totalmente dependente de seus habitantes humanos, seja para a acumulação de experiência e
ouro, seja para o desdobramento das narrativas que os personagens não-jogáveis e criaturas de
Azeroth reservam aos jogadores. Trata-se da captura de desejos diversos (habitar uma utopia,
construir um corpo, criar laços afetivos) em um regime de trabalho imaterial.
Pode-se aproveitar a iniciativa de Dyer-Whiteford e de Peuter justamente no aborda-
gem que eles optaram por negligenciar, ou seja, na produção de afetos. Acredita-se que sob
esse ponto de vista é possível deter-se sobre a subjetividade maquínica para além das dualida-
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des que dão o respaldo teórico da análise realizada por eles. Em outras palavras, tal subjetivi
dade não se dá pelo gênero de um jogo, pois importa menos se o jogador está matando
12 Pensando apenas nos desenvolvimentos na área de entretenimento, pode-se citar por exemplo a livre
circulação de música e filmes em programas peer to peer como o Napster e a tecnologia bit torrent, que
sofreram e sofrem sanções legais sistematicamente, para em seguida surgirem serviços de stream de
músicas e vídeos como o Netflix, Pandora, entre outros. O mesmo pode ser observado na cultura de mod-
ificações de jogos (comumente chamados de mods), em que jogadores se apropriam do código-fonte do
jogo para mudar os parâmetros que quiserem. Desnecessário dizer que tal prática, tão ilegal quanto difícil
de punir na época de seu surgimento, também foi apropriada no próprio modelo de negócios das empre-
sas que publicam jogos, fazendo disso uma maneira de “terceirizar” a produção de conteúdo.
13 Ibidem, idem, p. 92.
14 De certa forma, uma “gamificação” do jogo.
15 Ibidem, Idem, p. 94.

48
monstros, jihadistas ou soldados com capacetes azuis, do que o modo como seus olhos
percorrem a tela, quais simulações são apreendidas e internalizadas pelo jogador, e que
tipo de sujeito emerge desse arranjo específico de máquinas.*
Consonante a Games of the Empire, Mckenzie Wark também se preocupa com a
política e a economia que perpassa os jogos que compõem seu trabalho mais famoso.
Em Gamer Theory, ele faz alguns apontamentos que, dado o viés marxista afim ao tra-
balho de Dyer-Whiteford e de Peuter, convém comentar em paralelo. Segundo ele,

O jogo digital é uma mercadoria muito particular. Não é apenas o esto-


que de representações de entretenimento transferidas de uma repro-
dução analógica e mecânica para a forma digital. Ao invés disso, faz
o próprio digital ser entretenimento. O digital sempre endereça seu
sujeito como um gamer, um administrador, um calculador e um com-
petidor que tem valor apenas em relação a um marco, uma pontuação.
O digital inscreve o espaço do jogo no próprio sujeito. O espaço do
jogo faz a topologia parecer como se tivesse, se não um sentido, então
ao menos um algoritmo.16

É interessante notar como Wark toma o jogo digital enquanto um objeto ativo,
assertivo sobre o jogador. Ele endereça-se ao jogador, inscreve seu espaço no sujeito, e
aqui vale acrescentar, no seu corpo. É pela relação intuitiva entre os algoritmos do jogo
e o jogador que este se deixa inscrever o ritmo dos dedos que apertam as teclas e como
paciência, atenção e expectativas articulam-se ao modo como ele é escutado e visto.
Nota-se também o modo bruto pelo qual jogos digitais são apresentados, tendo como
horizonte seu caráter numérico. Não poderia ser diferente, dado que eles são essencial-
mente programas, ou dito de outro modo, máquinas que operam logicamente. Assim, é
pela égide do numérico que jogar (e não brincar como apontaria Kaprow), administrar,
calcular e competir tornam-se ações equivalentes, problematizando o lugar do jogo
digital como mero entretenimento.
Um dos jogos que é objeto de suas reflexões, Civilization III (Firaxis, 2001), é
interessante para se pensar como o espaço e o tempo de um jogo transformam-se “do
tópico para o topográfico, e deste para o topológico”17. O jogador de Civilization III, que
assume o papel de governante de uma civilização no correr dos anos, a conduz rumo
ao progresso e à diplomacia entre outros povos, controlados por inteligência artificial
ou outros jogadores online. Trata-se de um jogo de estratégia, cobrando-se do jogador
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suas competências em alocar recursos e conduzir guerras. Espaço e tempo, geografia e


história são medidos respetivamente por hexágonos e turnos.
O topos primeiro que Wark apresenta, o tópico, consiste na pequena cidadela
vista no início de uma partida, ocupada por um hexágono, e da visão nos hexágonos ad-
jacentes a ela, rodeados pela escuridão imensa de território a ser descoberto. No correr
dos turnos, ao passo em que o jogador expande seu império, a névoa escura desaparece
e dá lugar aos outros povos, outros acidentes geográficos, sempre ocupando a grade
hexagonal. Surge então a topografia que caracteriza o mapa do jogo, um contínuo ho-
mogêneo e plano, composta por montanhas, rios, vilarejos e povoados.
16 WARK, Mckenzie. Gamer Theory. Cambridge: Massachusetts, Harvard Uni-
versity Press, 2007, par. 96.
17 Ibidem, Idem, par. 74.

49
As linhas que ligam uma civilização a outras (linhas de comércio, de tributos, de
guerra e paz) formam o terceiro topos, a topologia. Ela surge “quando o tópico deixa de

ter qualquer autonomia, quando a linha pela qual a comunicação flui fecha o vão en-
tre mapa e território [...] História e geografia estão subsumidas sob uma topologia, cuja
tendência é a de um campo contínuo de valores equivalentes e intercambiáveis, instan-
taneamente comunicáveis em qualquer lugar”18. É pelo “alegoritmo”19que as topologias
emergentes em uma partida de Civilization III ganham um sentido político muito con-
tundente, pois é por elas que o jogador explora e interpreta “a expansão da topologia
afora, para além da América, para fazer a América equivalente a todo o espaço e tempo
[…] sempre e apenas disponível por linhas mediadoras específicas”20.
Se em Gamer Theory Wark pensa no imperialismo norte-americano, acredita-se
aqui que suas provocações remetem muito mais à perspectiva do Império, nos termos
de Hardt e Negri. Ou seja, é pela ordem topológica, e precisamente em sua manifesta-
ção contemporânea, a telecomunicacional, que indivíduos podem ser aproximados ou
excluídos, representados ou estigmatizados, criadores ou destruidores. Porém, atendo-
se apenas à dimensão alegórica de algoritmos, Wark limita-se a pensar um jogo digital
enquanto mera representação, abrindo mão da articulação profunda que essa mídia faz
entre corpo e infraestrutura.

Ian Bogost e procesualidade

Acredita-se que a proposta de Ian Bogost é útil enquanto um intermediário entre


a proposta crítica e geral dos autores anteriores, e a pragmática e sinuosa dos autores a
serem abordados adiante. Isso porque Bogost aposta no efeito retórico que as regras do
jogo têm sobre o jogador na medida em que ele apreende o funcionamento do jogo. Tal
efeito ganha ainda mais peso quando parte do apelo nos jogos está na verossimilhan-
ça e no realismo. Para Bogost, isso quer dizer que as regras contidas em jogos digitais,
oriundas da sua programação, produzem um determinado discurso sobre o tema trata-
do pelo jogo. Assim, tanto os pressupostos físicos (como gravidade ou atrito) quanto os
morais (como por exemplo a ausência quase absoluta de avatares crianças passíveis de
serem agredidos ou mortos – mesmo em jogos cujo apelo está em serem excessivamen-
te violentos) inscritos algoritmicamente nos jogos resultam em determinados discursos
e enunciados. Ian Bogost chama a execução computacional dessas regras de processua-
lidade. Assim,
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para escrever processualmente, deve-se ser autor de um código que


compele regras para gerarem algum tipo de representação, mais do
que ser autor da própria representação. Sistemas processuais geram
comportamentos baseados em modelos baseados em regras; eles são
máquinas capazes de produzir muitos resultados, cada qual de acordo
com os mesmos guias gerais. Processualidade é o principal valor do

18 Ibidem, Idem, p. 56.


19 Alex Galloway. “To play the game means to play the code of the game. To win means to
know the system. And thus to interpret a game means to interpret its algorithm (to discover
its parallel allegorithm).” Em Ibidem, Idem, p. 30.
20 Ibidem, Idem, p. 74.

50
computador, que cria sentido pela interação de algoritmos21.
Apesar de ser um termo próprio das Ciências da Computação, Bogost lembra
que
a compreensão de códigos e processos não é tarefa exclusiva de quem lida com compu-
tadores, mas de qualquer pessoa que lida com máquinas, sejam elas jurídicas, políticas,
urbanas.
Se jogos digitais são executados a partir das complexas estruturas de códigos
que os compõem, e se a expressividade que eles têm se dá quando o jogador investe-
se intelectualmente sobre esses códigos, decodificando-os e testando-os durante uma
partida, Bogost destaca a qualidade retórica que a processualidade tem ao mostrar o
funcionamento de sistemas, nem sempre claros, ao jogador. Um exemplo interessante
destacado pelo autor é o The McDonald’s Videogame (Molleindustria, 2006), em que o
jogador deve administrar a rede de lanchonetes tomando decisões como usar hormô-
nios de crescimento no gado para suprir a crescente demanda, às custas da insatisfação
de agentes de saúde passíveis de serem subornados, entre outras possibilidades que
confrontam o jogador ideologicamente a partir da processualidade operada por ele e
pela máquina.
Enquanto o interesse de Bogost está em jogos cuja processualidade retórica se
dá de maneira mais frontal, ou seja, de jogos persuasivos que podem “fazer afirmações
que falem através ou contra as visões de mundo fixas de instituições como governos ou
corporações”, não se pensa em uma retórica sobre o que o jogo coloca sobre o jogador.
Ressalta-se aqui uma processualidade que não seja necessariamente uma ferramenta
de investigação dialética do jogador, mas em jogos cujas práticas e discursos possuam
“linhas de visibilidade e enunciação, linhas de força, linhas de subjetivação, linhas de
rachadura, ruptura, fratura, as quais se cruzam, entrelaçam-se, algumas linhas se repro-
duzindo ou provocando a ascensão de outras, por modos de variações ou mesmo mu-
danças na maneira que elas são agrupadas”22. Se essas linhas podem ser reconhecidas,
pressupõe-se dimensões pelas quais elas possam se manifestar.

Game Design

Neste ponto não se procura exaurir o campo que compõe o game design, uma
vez que trata-se de disciplinas e práticas interdisciplinares cujo centro de gravidade é o
seu produto final, o jogo digital. Admite-se também que o conjunto de saberes que com-
põem o game design serão tomados à revelia do contexto onde eles circulam, a saber,
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os cursos de níveis diversos e o mercado de trabalho onde esses saberes são postos em
prática. Ainda assim, os tópicos a serem tratados pelos autores a seguir expõem em seu
conjunto um determinado discurso acerca de um determinado modo de se fazer e uma
finalidade. Dessa forma, noções comuns nesses manuais como “diversão”, “interativi-
dade” ou “desafio” compartilham um sentido nem sempre explícito sobre que tipo de
jogador é esperado pelo desenvolvedor e desejado pelas desenvolvedoras. Expectativa
e desejo que ganham a forma não apenas de temas muitas vezes repetidos ad nauseam,
mas também nas convenções lógicas dos jogos, como por exemplo a progressão de de-
21 BOGOST, Ian. Persuasive Games – The Expressive Power of Video Games. Massachu-
setts: MIT Press, 2007, p. 4.
22 DELEUZE, Gilles. Michel Foucault: Philosopher. New York: Routledge, 1992, p. 162.

51
safios impostos ao jogador e as recompensas que este recebe ao superá-los.
Assim, é partindo do trabalho de Eric Zimmerman e Katie Salen que procura-se
mapear os discursos que compõem o design de um jogo digital. A obra mais conhecida
deles, Rules of Play, tem o mérito de expor sucintamente diversos tópicos, desde teorias
sobre o que é um jogo, até técnicas e práticas para a sua produção. Ao manterem uma
tônica didática, os autores sacrificam uma maior densidade nos inúmeros tópicos por

eles apresentados, porém, sem abrir mão de propostas e provocações a respeito do Game
Design, quando este ainda era um saber e prática em fase germinal23. Apesar de haver
tantas abordagens e escopos quanto autores dispostos a educar alunos, uma noção tem po-
sição privilegiada: regras. Isso não é por acaso, pois como será argumentado adiante, elas
vão muito além da estruturação de um jogo digital.

Regras, jogo, cultura

Segundo os autores, regra, jogo e cultura remetem respectivamente aos esquemas


primários formal, empírico e contextual. Apesar de subentender-se uma ordem crescen-
te no escopo desses esquemas, procura-se manter aqui uma reciprocidade entre eles,
de modo que o contexto conforma o aspecto formal e empírico, ao mesmo tempo que o
formal condiciona em certa medida a experiência com o jogo, que por sua vez provoca
mudanças em um contexto.
Até aqui, procurou-se explicitar os pontos de vista social, político e econômico
que norteiam a análise a ser feita, esperando-se ter deixado claro o contexto que os jogos
e suas regras habitam. Resta agora se aprofundar nesses dois últimos, uma vez que su-
jeitos são (des)construídos pela experiência com o jogo digital, que por sua vez pode ser
compreendido como um conjunto de regras.
Uma vez que jogos digitais são programas de computador, eles necessariamente
obedecem a procedimentos e cálculos com o objetivo de simular logicamente fenômenos
que compõem a realidade ou o imaginário do jogador. Dessa forma, sendo jogos digi-
tais um conjunto instruções a serem executadas por um computador, jogos “analógicos”
podem ser tomados enquanto um conjunto de regras passíveis de serem traduzidas em
cálculos, ou seja, podem ser transformados em jogos digitais.
Cabe aqui citar o modo como Zimmerman e Salen expõem esse processo a partir
do exemplo do jogo da velha:
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1- O jogo acontece em uma grade de 3 linhas e três colunas de 9 quadra-


dos vazios.
2- Dois jogadores se alternam marcando quadrados vazios, o primeiro
jogador marcando Xs e o segundo jogador marcando Os.
3- Se um jogador colocar consecutivamente três da mesma marca, aque-
le jogador vence.
4- Se todos os espaços são preenchidos e não há vencedor, então o jogo
23 É claro que a produção de jogos digitais não esperou pelo surgimento do Game Design. No entanto, a
iniciativa acerca de uma colaboração onde áreas do conhecimento como Ciências da Computação, Psico-
logia, Arquitetura e Audiovisual tendo como escopo jogos digitais se deu justamente quando esse entre-
tenimento deixava de ser produto exclusivo de programadores e consumo voltado para um nicho. Pode-se
dizer que Game Design não é somente uma pedagogia em torno do como e o porquê de se fazer jogos
digitais, mas também um saber reflexivo sobre a própria atividade do jogador.

52
termina em empate24.

Apesar de duas pessoas com conhecimentos em português e com noções básicas
de geometria serem capazes de realizar com essas quatro regras uma partida de jogo da

velha, Salen e Zimmerman lembram que “há dois tipos de estruturas formais que essas
quatro regras não cobrem completamente: as estruturas matemáticas profundas do jogo
e as regras implícitas da etiqueta do jogo.”25 Para isso ele realizam o mesmo procedimen-
to em um outro jogo, criado pelo educador Marc LeBlanc, chamado 3-to-15:

1- Dois jogadores alternam turnos.


2- No seu turno, escolha um número de 1 a 9.
3- Você não pode escolher um número que já foi escolhido por outro
jogador. Se você tiver um conjunto de exatamente 3 números que so-
mem 15, você ganha26.

Desses dois jogos é possível depurar um conjunto de regras capazes de regular o
andamento dos dois jogos:

Alternadamente, dois jogadores fazem uma seleção única em uma gra-


de disposta em 3x3 unidades.
O primeiro jogador a selecionar três unidades em uma sequência hori-
zontal, vertical ou diagonal é o vencedor.
Se nenhum jogador puder fazer uma seleção e não houver um vence-
dor, o jogo termina em empate.27

Nota-se nesse processo como é possível passar de uma descrição aproximada e
específica de um jogo para outra mais geral e abstrata, mantendo-se o “esqueleto” que
conforma o funcionamento de uma partida, seja ela jogo da velha ou 3-to-15. Se em Ru-
les of Play pode-se inferir sobre a finalidade pedagógica dessa depuração de regras para
os desenvolvedores de jogos digitais em formação, neste texto ela se mostra um ponto
de partida útil enquanto um modo de identificar os aspectos formais que regulam um
jogo digital.
No entanto, os autores alertam acerca da distinção entre as regras dos jogos di-
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gitais e o código de programação que executam tanto as regras quanto o elemento au-
diovisual que os compõem. De fato, parte do conteúdo audiovisual de um jogo digital
depende das regras que estruturam sua relação com o jogador, e vice-versa, tornando
indissociável regras no sentido pré-digital e a execução de códigos que produzem tanto
a estrutura formal quanto a experiência audiovisual de um jogo digital. Dessa forma,
decompor um jogo digital em apenas uma série de proposições é insuficiente por dois
motivos: pois suas regras são indissociáveis elemento do audiovisual, exigindo assim
uma abordagem que articule regras com imagem e som; tais regras, por sua vez, relacio-
nam-se entre si compondo um todo complexo, característica a ser aprofundada a seguir.

24 SALEN, Katie e ZIMMERMAN, Eric. Rules of Play. Massaschusetts: MIT Press, 2003, Cap 12, pp 1-2.
25 Ibidem, idem.
26 Ibidem, idem.
27 Ibidem, idem.

53
Regras-verbos

Em A Game Design Vocabulary, Anna Anthropy e Naomi Clark são enfáticas em


apontar que verbos são um tipo especial de regra, condicionando o diálogo entre o jo-
gador e o jogo. Tomando como exemplo um dos verbos mais comuns em jogos digitais,
“atirar”:
A regra: apertar o botão atira o Megablaster em frente a Janet a
uma taxa de um raio de laser a cada meio segundo. Porque isso é im-
portante? Porque podemos usar re
gras para configurar as escolhas para os jogadores. Uma escolha pode
ser a respeito de se atirar com o Megablaster de Janet, ou quando, ou
onde. Se há uma duração de meio segundo entre os tiros – talvez não
soe como muito tempo, mas são anos quando você tem um robô enlou-
quecido fazendo ruídos em sua direção – quais escolhas aquilo cria?28

Se as regras “moldam a experiência, as escolhas e as performances da jogado-
ra” , os verbos, essa categoria peculiar de regra, têm um papel fundamental no quanto
29

um jogo pretende-se uma experiência realista, um desafio cognitivo-motor ou uma nar-


rativa imersiva. Isso porque em um jogo de aventura, o verbo “atirar” pode ser menos
útil que “olhar”, enquanto que é fundamental em um jogo de tiro em primeira pessoa.
Além disso, as autoras argumentam que para um jogo ser interessante, essas regras de-
vem ter uma relação de reciprocidade. Tomando como exemplo o jogo Super Mario Bros
(Nintendo, 1985), as autoras afirmam que “há uma forte relação entre a habilidade de
Mario em se mover horizontalmente – andar para a esquerda ou para a direita – e sua
habilidade em mover verticalmente – pular”30. O sentido das regras de um jogo depen-
de, portanto, do modo como se estabelece a relação entre elas. Relações que podem ser
sinérgicas, como nos movimentos vertical e horizontal de Mario, mas também mutua-
mente excludentes quando se atribui pontos de experiência a um personagem de RPG
ou toma-se uma escolha irreversível em uma narrativa.
Tal como na dupla de autores tratada anteriormente, repete-se neste caso o pro-
pósito estritamente pedagógico das autoras, sendo oportuno um desvio da incursão em
Game Design para autores cuja postura crítica é pertinente. Junto com Lazzarato, ao
afirmar que “a ação (tanto de Lênin quanto de um humilde empregado da Fiat, dirá Paso-
lini), sendo a primeira e principal linguagem das pessoas e das coisas, é a fonte de todas
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as outras formas de expressão”31, acredita-se no verbo enquanto elo de ligação entre


pessoas e coisas, humano e máquina, jogador e jogo. Propõe-se, portanto, pensar acerca
do modo como esse elo é produzido, ou seja, o que um humano pode fazer com uma má-
quina, e o que esta pode fazer com o seu operador, é uma manifestação contemporânea
da gerência de corpos e afetos.
Sem dispensar o valioso esforço dos autores em propor reflexões e métodos para

28 ANTHROPY, Anna; CLARK, Naomi. A Game Design Vocabulary. Addison-Wesley:


Paris, 2014, p. 16.
29 Ibidem, Idem, p. 15.
30 Ibidem, Idem, p. 17.
31 LAZZARATO, Maurizio. Signos, Máquinas, Subjetividades. São Paulo: n-1, 2014, pp.
119-120.

54
a produção de jogos, contrapõe-se aqui à tônica aparentemente inofensiva que predomi-
na no discurso do Game Design. Porque modelos de negócios com investimentos bilio-
nários, projetos para treinamento de soldados e estratégias de motivação e docilização
de funcionários não se preocupam somente em “criar mundos interativos” ou “expe-
riências divertidas”. Isso não significa que tais preocupações como as de Zimmerman e
Salen são falaciosas, mas que atendo-se somente a elas subestima-se o poder que jogos
digitais têm em sua expressividade, impedindo que sejam compreendidos em um esco-
po mais abrangente.

Entre a crítica sócio-política de jogos digitais e a metodologia de criação deles, convém


considerar uma das contribuições mais conhecidas de Phil Agre, o seu artigo “Surveil-
lance and Capture”. Afim ao corpo teórico exposto até aqui, Agre explora o modelo de
captura enquanto uma socio-técnica de produtividade e flexibilidade. Trata-se de um
conjunto de práticas computacionais visando auxiliar o funcionamento de alguma ati-
vidade, seja ela serviço telefônico de atendimento ao cliente, rodovias, ou interfaces de
computadores. Esse auxílio se dá pela elaboração de gramáticas de ação, que são a es-
quematização de alguma série de atividades humanas, de modo a serem arranjadas se-
quencialmente. Para tanto, há um processo cujas etapas envolvem análise (o estudo de
uma forma de atividade existente, identificando suas unidades fundamentais em termos
de alguma ontologia); articulação (a articulação dos modos pelos quais essas unidades
podem ser amarradas juntas para formar uma verdadeiras extensões sensíveis da ati-
vidade); imposição (a dotação de uma força normativa, geralmente pela via sociotécni-
ca); instrumentação (o provimento de meios sociais e técnicos para a sua execução); e
elaboração (o registro da atividade capturada, podendo ser armazenada, inspecionada,
submetida a análises estatísticas, etc)32.
A captura, portanto, não remete necessariamente a imagens de aprisionamento
ou coerção, como seria de se pensar em regimes disciplinares, mas às próprias práticas
humanas. Submetidas à lógica computacional, essas práticas tornam-se informação, e
por isso ela pode ser manipulada pelas etapas a pouco mencionadas, uma vez que são
absorvidas pelo processamento computacional. Isso permite que haja uma tendência
sobre o aprofundamento da articulação e captura dessas atividades. Em outras palavras,

antigamente, no ciclo de vida de muitos setores de serviços, a menor


unidade realmente replicável parecia ser o escritório individual, a loja,
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a localização da franquia. Mais tarde, na medida em que o volume au-


mentou, frequentemente tornou-se possível para as sedes desenvolver
e replicar maiores eficiências em localizações ao administrar e medir
variáveis de performance crítica em níveis individuais de departamen-
tos, balcão de vendas, ou unidades de estocagem. E então a redução
bem-sucedida de atividades-chave em seus elementos mais refinados
permitiu que McDonald’s, Federal Express, Wal-Mart, Citicorp, Mrs.
Fields, Pizza Hut, e mesmo a Bolsa de Valores de Nova Iorque (New York
32 Para os propósitos deste texto, optou-se por uma pequena simplificação desse processo. Para a ex-
posição completa, ver AGRE, Philip E. Surveillance and Capture. Two Models of Privacy. Em Information
Society. Vol. 10(2), 1994, pp. 107-108.

55
Stock Exchange – NYSE) empurrassem a repetibilidade da unidade
para níveis cada vez menores de “micro administração (micro mana-
gement)”.33

Dessa forma, pode-se notar um movimento em direção a miniaturização e dis-
cretização tanto da atividade produtiva humana quanto da informação, de modo uma
ser intercambiável por outra. Por isso o intento de Frederick Taylor em implementar a
administração científica na prática laboral pode ser visto como um processo análogo
aos adventos matemáticos e computacionais visando autonomizar cálculos complexos,
que seu contemporâneo, Charles Babbage, perseguiu34.tres repousavam sobre a arbi-
trariedade do mestre, mas também fórmulas analíticas complexas passam a ser des-
membradas, dissecadas e rearranjadas seguindo as necessidades do administrador. Se
no século XIX (e no XX, com o fordismo) esse processo era sinônimo de submissão dos
nervos e músculos proletários a desígnios milimetricamente concebidos pelo adminis-
trador-cientista, Agre argumenta que o modelo de captura, ao contrário, oferece um
maior grau de liberdade para a realização de diferentes ações de uma tarefa. Obviamen-
te, isso se deve à materialidade, em sua mais ínfima escala, dos elétrons e bits na qual
tarefas como as que um caixa de lanchonete ou um operador de telemarketing realizam,
são traduzidas35. Tratam-se de gramáticas de ações para a realização de tarefas cuja he-
terogeneidade está afim ao desenvolvimento tecnológico atual.
Pode-se notar que uma gramática de ações em modelos de captura e o conjunto
de regras que estruturam formalmente um jogo digital compartilham uma semelhan-
ça ambígua entre si. Pois se o processo apresentado por Agre extrai de uma atividade
humana unidades básicas de tarefas para integrá-las em sistemas de informática, são
também em sistemas de informática que a estrutura formal composta por regras é ela-
borada. Em meados dos anos 90, quando o artigo de Agre foi escrito, a diferença mais
explícita entre modelos de captura e jogos digitais se dava pela finalidade orientada à
performance de algum trabalho pelo primeiro, e diversão pelo segundo. Porém, tendo
pontos de partida tão distintos, as ações de um modelo de captura e as regras que es-
truturam o funcionamento de um jogo têm em comum a abstração, seja de uma prática
33 Ibidem, Idem, p. 111.
34 De fato, apesar de serem reconhecidos por feitos aparentemente distintos, Babbage e Taylor tinham
preocupações muito similares no que diz respeito a racionalização tecnológica visando eficiência. Tanto
o engenheiro americano quanto o filósofo e matemático inglês eram proponentes da divisão de trabalho
visando a redução de custos e o aumento de produtividade do capital humano. No entanto, é interes-
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sante notar que enquanto o mérito de Taylor esteve no estudo minucioso do movimento corporal do
trabalhador em uma determinada máquina, Babbage (junto com Ada Lovelace) é lembrado pelas máqui-
nas diferencial e analítica, capazes de realizar cálculos automaticamente. Não é por acaso que Taylor é
indiretamente mencionado por Foucault: “Na emergência da indústria de larga escala, encontra-se sob a
divisão do processo produtivo, a fragmentação individualizante da força de trabalho; as distribuições
do espaço disciplinar geralmente garantiam ambos.” Em BABBAGE, Charles. On the Economy
of Machinery and Manufactures. Cambridge: Cambridge Press, 2009; FOUCAULT, Michel. Discipline
and Punish – The Birth of the Prison. Nova Iorque: Random House, 1995, p. 145.
35 Tomando como exemplo um funcionário que desempenha a função de suporte técnico remoto (via
telefone ou internet), a sua gramática de ações está nas diferentes perguntas feitas ao cliente e quais re-
spostas ou solicitações deve-se fazer a ele. Por se tratar de dois seres humanos em relação, é importante
ressaltar que a ordem dessas ações varia, conferindo a flexibilidade que caracteriza o modelo de captura.

56
humana, seja de um mundo imaginário, em relações lógicas e cálculos numéricos. Essa
similaridade ganha força quando leva em conta a distinção entre brincar e jogar feita
por Kaprow: joga-se para se obter o melhor resultado, que em jogos digitais é alcançado
pelo jogador que manipula no momento e na ordem correta os verbos (ou ações) neces-
sários. Certamente o escopo de Agre ao introduzir o modelo de captura restringia-se a
práticas econômicas e políticas em seu sentido clássico, não obstante, pensar nos ver-
bos-regra propostos por Anthropy e Clark enquanto gramáticas de ação que compõem
a experiência do jogador podem servir de ponto de partida para que se mapeie o usuário
que emerge de sua relação com a máquina em sua escala molecular, composta pelos
pequenos procedimentos que o jogador executa, os movimentos sub-reptícios de suas
mãos, dedos e olhos, entre outras práticas.
Enfatiza-se, portanto, os fragmentos que compõem as mecânicas características
dos jogos onde o esforço repetitivo e de caráter cognitivo-motor intensivo predomi-
nam, citando-se aqui algumas possibilidades de análise: a) a repetitiva tarefa de treinar
um personagem e coletar ouro que caracteriza MMORPGs como World of Warcraft; b)
o cuidado em dar o último e fatal golpe nos minions que são gerados incessantemente
no mapa, garantindo assim pontos de experiência para personagens de MOBAs como
League of Legends (Riot, 2009) e DOTA 2 (Valve, 2013); c) as frações de segundo e os
centímetros em que um avatar de Counter Strike: Global Offensive (Valve, 2012) espia
um corredor para detectar um oponente, ao mesmo que tempo que se expõe para isso;
d) a contínua execução de multitarefas na administração bélica em Starcraft 2 (Blizzard,
2010), competência esta medida em ações por minuto (APM). Todos esses exemplos
engendram uma capacidade cognitiva e motora dos jogadores em interpretar as infor-
mações que o jogo coloca a eles, respondendo-as em tempo hábil para que se alcance a
vitória. Em cada caso há uma temporalidade específica, momentos que alternam entre
espera atenta e a execução frenética de ações, de modo que os raciocínios e a manipula-
ção do mouse e do teclado acabam por produzir potencialidades distintas nos jogadores
de cada um dos jogos.
Logo, pensar acerca de gramáticas de ação em jogos digitais implica em inver-
sões sobre algumas etapas deste processo. Se os modelos de captura que Agre exempli-
fica remetem à manifestação pós-industrial da despropriação do conhecimento e força
laboral, além do jogo de poder e resistência em se submeter a novas formas de produzir
mais-valia, desnecessário dizer que em jogos digitais não se trata de imposição ou resis-
tência. Dessa forma, se o processo de integração entre usuário e lógica computacional é
o meio para o escopo econômico ou político projetado sob uma determinada gramática
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de ação, em jogos digitais essa integração é a finalidade. Pode-se problematizar, por-


tanto, o usuário (jogador) enquanto resultado dessa integração, pois sem ela não seria
possível sequer especular acerca de valores como diversão.

Considerações finais

Se a observação de Kaprow atentou para a distinção entre brincar e jogar, cada


vez mais os jogos digitais tendem para uma indistinção entre jogar e trabalhar. Desde os
exemplos mais óbvios, como os e-atletas em jogos de eSports, passando pelos habitan-
tes que fomentam com conteúdo os mundos de MMOs, até o jogador que casualmente
se diverte em seu smartphone, todos compartilham de um paradoxo sobre a atividade

57
que se engajam: na medida em que é pretensamente expontânea, causa raiva e frustra-
ção na premissa competitiva, compulsão e cansaço quando deve-se acumular ouro e
pontos de experiência, falta de atenção e obsessão quando o jogador é lembrado pelo
seu smartphone de sua função. Junto com Laymert Garcia dos Santos e Pedro Ferreira,
acredita-se que
Trata-se, assim, de um processo duplo, no qual o trabalho vai sendo
cada vez mais apresentado como diversão/jogo (o que tende a legiti-
mar a sua precarização) e a diversão/jogo vai se tornando cada vez mais
acessível à produção de valor econômico (numa espécie de acumulação
neo-primitiva do conhecimento por “enclosures imateriais”). No final,
jogamos o tempo todo, mas o jogo já não é o mesmo.36

Considerando que a concomitância entre a permeabilidade dos jogos digitais e a
precarização do trabalho é sintomática das novas formas de subjetivação e controle, este
texto procurou articular um panorama teórico com um referencial metodológico capaz
de apreender a lógica de um jogo para além daquilo que é apresentado ao jogador.

B ibliografia
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ciety. Vol. 10(2), 1994.
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ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

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California Press, 1993
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SALEN, Katie e ZIMMERMAN, Eric. Rules of Play. Massaschusetts: MIT Press, 2003.
WARK, Mckenzie. Gamer Theory. Cambridge: Massachusetts, Harvard University Press,
2007.

36 GARCIA DOS SANTOS, Laymert; FERREIRA, Pedro Peixoto. A Regra do Jogo – Desejo, servidão e
controle. Em VILLARES, Fábio (Org.). Novas mídias digitais (audiovisual, games e música): impactos
políticos, econômicos e sociais. Rio de Janeiro: E-papers, 2008.

58
ENCONTRO
DE LINGUAGENS
>
“VULGARIZAÇÕES”:
NARRATIVAS COMPARADAS DO FILME NO PAIZ DAS
AMAZONAS E DO LIVRO LE PAYS DES AMAZONES
Autor: Sávio Luis Stoco
Orientador: Eduardo Morettin
Nível: Doutorado
Bolsista: FAPEAM (Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas)

R esumo
O artigo compara o principal o filme de Silvino Santos No paiz das Amazonas (1922) com
o livro do autor Frederico José de Santa-Anna Nery (1885) Les pays des Amazones. A re-
lação com este livro foi estabelecida preliminarmente intuída pela citação intencional
do nome que salta a olho nu no filme para se desdobrar na análise intrínseca das obras
tentando levantar a pertinência desta intertextualidade possível do filme para com o
livro considerando o contexto da elite comercial amazonense. A perspectiva compara-
tivista investiga o dialogismo entre meios de expressão tradicionalmente estudados em
campos separados, neste caso tanto a cultura literária, como a visual (particularmente
a fotográfica) precedentes ao cineasta e seu filme para adensar a historicidade e com-
preensões.

Palavras-chave:  Cinema brasileiro; documentário; Silvino Santos; intertextualidade;


cultura literária.

Esta apresentação na V Jornada Discente se insere no percurso de pesquisas do


meu projeto de doutorado, em andamento, no qual pretendo analisar três principais
filmes documentais amazônicos de Silvino Santos1, diretor português radicado no
Brasil desde a dobra do século XX2. Para adensar percepções históricas e estéticas sobre
estas criações, prevemos cotejo com outros discursos e produtos visuais pertinentes
promovidos pela elite comercial e governamental amazonense, por serem os grupos
com quem Silvino se relacionou. No geral, estes foram os mesmos grupos são que
financiaram e tiveram seus pontos de vista inscritos nos filmes em questão, como
notamos até o momento da pesquisa.
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Para esta ocasião delimitei especificamente a aproximação do longa-metragem


documental No paiz das Amazonas (1922), central na historiografia sobre Silvino Santos
pela fama que alcançou em sua época, com uma obra literária publicada em Paris,
financiada pela Assembleia Legislativa do Amazonas, e de título aproximado Le pays
des Amazones: L’Eldorado, les terres à caoutchouc (1885; em tradução livre, O país das
Amazonas: o Eldorado, as terras da borracha). Esta também foi considerada um destaque,
uma “obra-prima”3 de seu autor. Este intelectual, Frederico José de Santa-Anna Nery
1 São eles Amazonas, maior rio do mundo (c. 1918-1920), No paiz das Amazonas (1922) e No rastro do Eldorado
(1925).
2 Para mais dados acerca da biografia de Silvino Santos, ver o livro de Selda Costa, Eldorado das ilusões:
cinema & sociedade: Manaus (1897-1935). Manaus: Edua. 1996.
3 Termo utilizado por João Paulo Jeannine Andrade Carneiro na tese de doutorado O último propagandista
do Império: o ‘barão’ de Santa-Anna Nery (1848- 1901) e a divulgação do Brasil na Europa, defendida na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em 2013.

60
(1848-1901), gozou de amplo reconhecimento em sua época, foi um jornalista, literato,
homem de ciência e de negócios. Trata-se de um escritor paraense de nascimento, mas
cuja família radicou-se no Amazonas e ele, na Europa, a partir dos 14 anos.
A relação com este livro foi estabelecida por nós preliminarmente a partir da
citação do título que salta a olho nu e nos parece intencional no caso do filme. O esforço
deste artigo visa aprofundar estas impressões iniciais, investigando a historicidade
do filme, a nosso ver, bastante entrelaçado com manifestações políticas e culturais
anteriores a ele e com o objetivo de atrair atenção e investimentos para o Amazonas.
A perspectiva comparativista investiga a intertextualidade entre meios de expressão
e épocas no geral estudados separadamente. Consideramos que não estamos em
terrenos tão distanciados assim. Para chegar a esta conclusão bastaria considerar que
a cultura literária, ou mais apropriadamente a cultura livresca, já na época de Les pays
des Amazones englobava uma parte significativa da cultura visual encomendada pelas
elites amazônicas. Referimo-nos à fotografia precedente ao cineasta e seu projeto, como
veremos. Além disso, é importante considerarmos para aproximação das épocas que a
longeva empresa que financiou o cineasta, a J. G. Araújo & Cia. Ltda., pode também ser
entendida como um elo entre as duas décadas trabalhadas - 1880/1920, já que seu início
em Manaus remonta à 18774. Pretendo com este esforço de relações adensar a genealogia
do projeto fílmico.
Por fim, outro direcionamento metodológico que nos baseamos vai no sentido
de valorizar a torsão de um objeto (filme) considerado “familiarizado” pela historiografia
e revisitá-lo de maneira singular pretendendo contribuir com o andamento dos debates
existentes5. Neste sentido, temos como baliza o que diz Ulpiano Bezerra de Menezes: “E a
documentação inédita acaso traria por si só pistas para rotas até então desconhecidas?
Acredito ser na novidade dos problemas, e não na dos documentos, que se abrem,
efetivamente os caminhos novos” (MENEZES, 1999, p.9).

Contexto manauense

O período de lançamento do livro Les Pays des Amazones, no final do século XIX,
marca o momento em que, para o discurso oficial, Manaus deixava de ser considerada
uma “aldeia” para se tornar “moderna”6. Isso se deu a partir das reformas urbanas de
referências, sobretudo europeias e que marcarão as noções sobre a cidade dai para frente.
Mais do que Belém – esta consolidada como capital do Grão-Pará desde 1751 e localizada
na porta de entrada do vale amazônico – Manaus precisou esforçar-se no final do século
XIX e início do XX para organizar sua identidade e difundi-la, fazendo-se conhecer
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à distância seja em outras capitais brasileiras ou internacionais já que se encontra


localizada a 1.600km do oceano Atlântico. E, também, Manaus precisou esforçar-se
para apresentar os novos pontos de vista da sua elite recentemente constituída. Estes
discursos seriam representativos do período em que a capital do Amazonas passava a

4 MELLO, M. O império comercial de J. G. Araujo e seu legado para a Amazônia (1879- 1989). 2010. Dispo-
nível em: <https://www.academia.edu/4543993/O_Imperio_comercial_de_J.G._Araujo_e_seu_lega-
do_para_amazonia>. Acesso em: 29 nov. 2013.
5 SOUZA (2007, 2010 [1978]), COSTA (1996), MORETTIN (2005, 2011a, 2011b), MARTINS (2006, 2007,
2012, 2013).
6 Estes termos foram atribuídos ao governador Eduardo Ribeiro por Santa-Anna Nery (1979, p. 104):
“Encontrei uma aldeia e transformei-a em uma cidade moderna”. Diversos autores rememoram estas
palavras, inclusive Ana Maria Lima Daou (2000, p. 34-35).

61
se beneficiar da taxação em seus portos dos produtos extraídos em seus territórios –
dinâmica que era praticada até 1900 nos portos da capital paraense.
Com esta pesquisa buscamos verificar se é possível afirmar que o cinema de
Silvino Santos inscreve-se na tradição oficial engendrada na capital e pelos poderes
amazonenses. Em No Paiz das Amazonas isso parece se mostrar também pela relação
privilegiada que estabelece com o livro de Nery, uma das obras mais representativas
de uma visão oficial amazonense. Procuraremos demonstrar as relações das ideias
fílmicas com relação às ideias literárias, que deixa entrever a forma dos negócios
empreendida pela firma J. G. Araújo & Cia., produtora de No paiz das Amazonas. Uma
empresa bastante diversificada em seus negócios que exportava numerosos produtos
amazônicos, importava outros tantos para venda em suas lojas espalhadas pelo estado,
e que também passou a dedicar-se à produção de imagens com a contratação de Silvino
a partir de 1920.
Este desejo de exposição pela elite comercial de Manaus seria materializada pela
produção de diversificados empreendimentos visuais e discursivos monumentais, caro
à época – construções de imponentes prédios públicos, como o Teatro Amazonas entre
outros, monumentos públicos (em ambos casos focalizados pelo filme), encomenda
de algumas grandes pinturas históricas por artistas renomados, de luxuosos álbuns
fotográficos governamentais, edições ilustradas de livros sobre as potencialidades da
região (como Les Pays des Amazones), coleções de cartões-postais impressos na Europa
dando a ver a nova infra-estrutura da capital etc.. E, entendemos fazer parte desta
linhagem de obras demandadas pelas elites – é certo que uma pouco mais tarde – os
filmes de Silvino Santos, sobretudo No Paiz das Amazonas - o mais notavelmente oficial
de todos os que chegamos a conhecer.

No paiz das Amazonas: entre a tradição e o novo

Como se estrutura esse filme e porque entendemos estar tão conectado com a
tradição dos discursos oficiais amazonenses?

O filme sugere uma narrativa baseada em uma viagem fluvial pelos principais
rios do estado do Amazonas (rio Madeira, Amazonas e Branco). Apesar deste assunto, é
mais aparente o esforço de estruturação do filme destacando os produtos que vinham
há décadas sendo extraídos da natureza regional, no geral destinados à exportação
internacional – e, diga-se de passagem, estes são os produtos mais reconhecidos e
sedimentados nos relatos de viagens dos cientistas do século XIX. A marca desta segunda
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estruturação fica patente pelos títulos das nove sequências, devidamente apresentadas
em cartelas destacadas ao longo do filme: Manaus - As Pescas – A Borracha - O Fumo – A
Castanha - O Guaraná - A Balata - Baixo Rio Branco - Alto Rio Branco.
Inicialmente o filme se propõe a descrever a capital amazonense. É nesta
sequência que veremos focalizados os bens edificados da capital (prédios públicos,
avenidas, monumentos e pontes), como comentamos anteriormente. Desta forma , se
não inicia com um produto em si, mas apresenta o local onde os produtos posteriormente
apresentados serão encaminhados e onde, algumas vezes, serão processados para depois
serem embarcados destinando-os ao comércio exterior. Outras localidades não são
descritas e exaltadas como a capital. Pontos de produção localizados ao longo dos rios
Madeira, Amazonas e Baixo Rio Branco, quando muito serão apenas mencionados nos
intertítulos e figurados como detentores dos produtos mencionados pelos intertítulos.

62
Estes produtos, sim, irão merecer atenção fílmica, sendo exibidos em seu ambiente
natural, no processo de retirada das matas e rios, no processamento artesanal e
transporte para Manaus. Uma mudança nesta dinâmica acontecerá somente ao final
quando se aborda a região do Alto Rio Branco. É o momento em que o filme reserva
para a apresentação da atividade pecuária e também para aludir à potencialidade de
exploração mineral (incluindo metais e pedras preciosas) vislumbrada para aquela
região. O espaço geográfico é explorado, um local distinto da natureza florestal
amazônica, pois é uma área de lavrado, ou savana, que servem de campos naturais
para o pasto. Por não ser uma atividade tão tradicionalmente associada à região
amazônica e não se prestar à exportação, podemos pensar que a pecuária7 não
tenha sido nomeada em intertítulo como a borracha, o fumo, as pescas, a castanha
e o guaraná. Mas a região é explicitamente exaltada como esperança de salvação da
economia, em declínio desde os primeiro anos da década de 1910. Visão positiva que
pode estar associada ao fato de que é na década de 1920 que a firma J. G. Araújo &
Cia. consegue do governo do Amazonas os títulos definitivos, no Vale do Rio Branco,
de terras ocupadas por antigos fazendeiros e que durante as duas primeira décadas
do século XX haviam sido sistematicamente compradas de pecuaristas endividados
(FARAGE, p. 274).

Les Pays des Amazones: crítica à monocultura

Por sua vez, como está organizado e o que defende o livro Les Pays des Amazones?

Pertencente a uma tradição de “vulgarização” científica, em ascensão na


segunda metade do século XIX, essa publicação tem sua narrativa composta pelo
movimento de sumariar e comentar os principais autores internacionais que haviam
viajado, refletivo e escrito sobre a região desde a colonização da região, mas com
especial ênfase aos numerosos autores do século XIX (como Humboldt , Spix e
Martius, Agasis, Bates, entre outros); Santa-Anna Nery acolhe e destaca os elogios, as
boas imagens, e rechaça as críticas e ponderações. Também como buscava descrever
e atualizar quanto à recente infra-estrutura do estado do Amazonas com finalidade
de atrair potenciais investimentos e mão-de-obra europeia para o período de auge
dos ganhos com a exportação da borracha. Apesar disso, se mostra cético quanto ao
futuro econômico se continuasse baseado apenas na monocultura da borracha, sem
investimentos em pesquisa científica e novos ramos de exploração.
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Neste sentido, já podemos considerar que a firma J. G. Araújo e o filme


No paiz das Amazonas adere ao postulado presente no livro, já que não pratica e
destaca apenas a exploração da borracha – notadamente o produto extrativista mais
tradicionalmente conhecido da região. O filme apresenta uma diversidade de outros
produtos explorados há longa data e não se furta a incluir culturas relativamente
novas, como a agropecuária,

7 Nária Farage e Paulo Santili explicam o lento processo de implantação e sedimentação da pecuária na
região, que atendeu ao mercado interno, não se tornando assim uma indústria reconhecidamente rela-
cionada àquela região, fora de seus círculos sociais, como os outros produtos apresentados em No paiz das
Amazonas: “Da experiência colonial, restara na região uma forma incipiente de exploração econômica,
representada pela pe-

63
cuja consolidação entre fazendeiros data das últimas décadas do século XIX, e
à futura exploração mineral. Neste sentido, vale trazermos o contraponto do filme
documental financiado pela empresa amazonense Asensi & Companhia e produzido
por Thomaz Reis: Ouro branco (1918). Trata-se de uma narrativa que aborda apenas a
exploração do látex (borracha e caucho).
A ideia de que o livro estaria no horizonte dos produtores do filme é reforçada
quando examinamos atentamente os acréscimos no decorrer da segunda edição do livro
de Santa-Anna Nery (1899), também lançado em língua francesa. Nesta versão aparece
acrescentada uma lista do ano de 1896 das 16 principais casas de exportação da borracha
estabelecidas em Manaus juntamente com a quantidade do produto expedida por elas
para a Europa e Estados Unidos. Na décima quarta posição aparece a “Aranjo (sic) Rozas
e Cia.” , antigo nome (grafado errado) da empresa pertencente a J. G. Araujo e que viria
a ser extinta posteriormente para a criação da J. G. Araújo & Cia.. Nesta mesma segunda
edição, quando serão apresentadas as linhas de embarcações a vapor que prestavam
serviço de transporte na linha Manaus-rio Juruá, o texto cita novamente esta empresa
- agora com a grafia correta, indicando não se tratar, portanto de uma empresa distinta
(NERY, 1899, p.252). Queremos dizer com esta observação que o fato do autor incluir a
empresa neste prestigioso livro, ele provavelmente tenha sido bastante apreciado pelo
empresário, não nos deixando dúvidas da pertinência de promovermos a aproximação
entre livro e filme, somadas as outras relações aqui apresentadas.

Museu amazônico itinerante

Outra notável aproximação de postulados desenvolvidos por Santa-Anna Nery e


relacionáveis ao filme está presente quando desenvolve uma das ideias mais originais.
O autor esboça no último capítulo o projeto de uma instituição para publicização da
região e que seria espécie de “museu amazônico na Europa”. Não um projeto que fosse
estático e convencional, mas sim um moderno, móvel, “não muito custoso”, diversificado,
“grandioso, original”. Um museu que “faria em dois anos mais de dez anos de propaganda
escrita e falada”. O autor argumenta, reclamando da eficácia das convencionais formas
de publicização textual que ele mesmo já havia experimentado como jornalista atuante
na Europa, apontando a necessidade de modernização das estratégias oficiais de
propaganda:

O Amazonas ainda não foi vulgarizado. A imprensa cotidiana, a única


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que produz efeito sobre as massas, ainda não lhe fez uma publicidade
à altura.

E continua:

As lições objetivas estão na moda. Elas induzem pelos olhos, sempre


prontos a se deixar seduzir . Porque não tentaríamos esse meio fácil,
que responde às preocupações do dia? Porque não faríamos vir o
Amazonas para a Europa? (...)Um museu Amazonense na Europa, seria
para os apreciadores de novidades, uma atração sem precedentes; para
os cientistas, um assunto de estudo interessante e fácil; para os letrados
e os artistas, um festival de pitoresco; para os industriais e negociantes,

64
uma emulação e um documento; para os economistas, um ponto de
comparação e de apoio; para todos, um estímulo à emigração fecunda
(NERY, 1979 [1899], p. 247).

Lembremos que em 1899, data da segunda edição de Le pays des Amazones o


cinema contava apenas com três anos de existência. Resumidamente, ele lidava com
experiências que tinham como referência o mundo dos espetáculos populares das
feiras, dos musicais e números de mágica, de performances burlescas dos vaudevilles,
das histórias em quadrinhos, e das lanternas mágicas. “É um cinema dominado por uma
forte tendência ao espetáculo e uma fraca tendência à narração”. (COSTA, 2015, p. 112).
Talvez por isso, por não inspirar muita credibilidade nos anseios das elites
letradas, o nosso autor intelectualizado, não tenha se atentado para a proximidade
técnica do que ele solicitava em seu projeto “museológico” com o cinema de seu período,
cuja capacidade narrativa iria se desenvolver só após a morte do escritor em 1901. É a
partir de 1908 que o cinema toma um caminho em direção a uma maior narrativização e
geração de mensagens estruturadas aderindo ao ideário burguês, atendendo-o em seus
propósitos. Esta ideia consta no conceito de Tom Gunning para o que ele chamou de
“cinema de atrações”, ou seja, os filmes feitos antes de 1908.
Não queremos dizer com isso que o autor tenha cometido um equívoco já que
não anteviu o papel estratégico que o cinema passaria a ter, mas é significativo que a
técnica que, de certa forma, executará seu plano de publicização da Amazônia “induzida
pelos olhos” será justamente o cinzz ema. Pensando no ponto de vista dos donos da
empresa produtora do filme, há a realização dos planos prescritos no livro no tocante
a uma ampla publicização da região amazônica e suas potencialidades. Isso porque o
filme obedece aos elementos que o museu amazônico: discurso científico, classificação
metódica de “matérias-primas já exploradas e as suscetíveis de exploração vantajosa”,
dados históricos e econômicos, apresentação e exaltação da região. Consideramos que a
materialização das ideias presentes no livro. E também seria válido levarmos em conta
o contexto mais presenciado em Manaus, no tocante à firma Asensi & Companhia que já
havia experimentado divulgar sua produção por meio de um grande filme, mesmo que
este tenha se delimitado somente à borracha.

Imagens fotográficas ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

Outro aspecto que valeria ser comentado é com relação à questão visual que une
de uma maneira também contundente as duas obras, filme e livro.
Ao mencionar o seu projeto museológico propagandístico, por mais que Santa-
Anna Nery fale de lições apreendidas por meio da “indução pelos olhos” ele não
menciona qual seria o papel da fotografia ao esboçar seu projeto de museu. Mas isso
nos faz crer que esta forma de representação estivesse fora de seu horizonte. Muito
pelo contrário, já que nas quatro edições de Les Pays des Amazones exibe uma rica
exploração da fotografia.
Esse aspecto nos ajuda a reforçar o elo do livro com o cinema, feito também
de imagens fotográficas, postas em movimento durante as sessões. Bem como é
significativo lembrarmos do início da trajetória do cineasta antes de iniciar sua produção
cinematográfica, Silvino trabalhou como fotógrafo profissionalmente, como muitos
documentaristas do seu período. Assim compreende-se como nos filmes dele, e de

65
muitos realizadores de seu período, a estética fotográfica seja um dos mais importantes
referenciais.
Já mencionamos que a estrutura do livro se embasa na sumarização de um grande
espectro de referências bibliográficas e documentos antigos e contemporâneos – todos
sistematicamente citado ao longo da obra. De uma forma aproximada o autor também
mantém ao relacionar e identificar as imagens fotográficas que ilustram seus textos.
Ele se vale da produção de proeminentes fotógrafos estrangeiros sediados na região,
sobretudo, conforme podemos identificar pelas menções declaradas ou reconhecer no
caso das não declaradas. Trata-se de um repertório que hoje constitui, por assim dizer,
o panteão das mais antigas e influentes documentações fotográficas da região.
Por meio das quatro edições é como se apurássemos e sumariássemos o
repertório fotográfico que privilegia tanto os indícios de progressos pelas vistas da
capital amazonense, dos produtos exportáveis e do pitoresco dos locais distantes do
estado – um conjunto de temas muito assemelhado ao que será desenvolvido pelo
filme, como comentamos.
São citados nos créditos dos livros alguns dos primeiros fotógrafos estrangeiros
que fixaram residência na região e que interagiram com a elite social e governamental
com diversos serviços e projetos, e consolidaram-se na história da imagem técnica
no Pará e Amazonas. Tais como o português Felipe Augusto Fidanza (c. 1843-1903)
que manteve em Belém uma dos mais afamados ateliês, a Photographia Fidanza. Este
fotógrafo também prestou seus serviços ao governo amazonense, quando produziu o
Álbum do Amazonas - 1901-1902 (1901).
Fidanza é citado como autor de seis das 53 fotografias que ilustram a segunda
edição francesa de Les pays des Amazones, inclusive a imagem de abertura do livro:
um amplo panorama de Manaus que se desdobra pelas páginas onde foi impresso.
Panoramas também que podemos mencionar pontuam os filmes de Silvino Santos,
como na abertura de No Paiz das Amazonas.
Nesta mesma segunda edição, outros nomes conhecidos pela historiografia
são integrados, como o italiano Arturo Luciani (1861-1936), autor do álbum O Estado
do Amazonas (1899); e o espanhol Francisco Cândido Lyra, considerado o primeiro
proprietário de um estabelecimento fotográfico em Manaus.
Na primeira edição do livro (1885), um projeto considerado de luxo em papel
especial e numerado (150 exemplares), não foram impressas fotografias propriamente
ditas. Temos gravuras que provavelmente tiveram como modelos imagens fotográficas
(Figuras 1-2) – um procedimento gráfico corrente na época. Não consideramos ser este
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o caso de todas as imagens exibidas na publicação, já que nos créditos das imagens
há menção às gravuras preparadas a partir de desenhos. Mas em uma boa parte das
imagens, os detalhamentos ou a fatura da imagem pode nos fazer intuir que sejam
provenientes de um modelo fotográfico.

66
Figuras 1-2. Gravuras com vistas de bens edificados na capital Manaus publicadas na primeira
edição de Les Pays des Amazones. Na figura 1, sede do governo da Província do Amazonas.
Na figura 2, ponte de ferro que ligava o bairro dos Remédios ao bairro da República,
desmontada em 1901. Ambas apresentam um detalhamento que indica que tiveram como
modelos imagens fotográficas. No caso da primeira, atualmente conhecemos uma fotografia
atribuída ao fotógrafo Ermano Stradelli que corresponde com exatidão a esta imagem.

Além das vistas urbanas da capital, são destacados produtos comerciais


extraídos da natureza (borracha e castanha). Uma narrativização é vista no caso das
imagens do processo de produção da borracha presentes na segunda edição do livro
(Figuras 3-9), procedimento que se assemelha à representação deste mesmo produto
em No paiz das Amazonas. Em ambos os casos vemos uma sequencialização e
detalhamento do processo, articulando exibição da residência, utensílios vestimentas,
e diferentes momentos do trabalho do seringueiro.

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Figuras 3-9. Fotografias presentes na segunda edição do livro Les pays des Amazones de Santa-Anna
Nery que narrativizam o trabalho do seringueiro, exibindo sua residência, seus utensílios, roupas e
momentos diversos da jornada de trabalho na mata.

68
Os indígenas são outro assunto desenvolvido por um conjunto de fotografias
presentes no livro. Vemos na segunda edição, por exemplo, um retrato feito por Fidanza
de um índio macuxi, além de índios das etnias “jamamadys”, “caxararys”, “catauixis”
e “pamarys”1. De modo aproximado, também temos nos filmes de Silvino Santos este
procedimento de exibição de grupos considerados “exóticos”, aparentando estar
distanciados dos centros urbanos. No Paiz das Amazonas, apresenta duas cenas em
que figuram os índios parintintin, habitantes da região do rio Madeira, e dos uitotos, do
Peru. Em ambos há uma propensão a apaziguar e escamotear os conflitos históricos
e massacres empreendidos pela população branca. No caso do filme, reconhecemos
que ambas as etnias exibidas são reconhecidamente vítimas do modo de exploração
extrativista. Os parintintin são considerados quase extintos quando se chega à década
de 19202 e os uitotos são internacionalmente conhecidos como vítimas do extermínio
pela firma Peruvian Amazon Rubber Company naquele período. No entanto as cenas
não indicam tais fatos largamente conhecidos na época, como dito anteriormente.
É notável o repertório de imagens circuladas nas diferentes edições do livro en-
quanto um discurso oficial3. Não se trata de fotografias feitas distanciadamente aos pro-
pósitos governamentais e da elite comercial daquela sociedade, visto que algumas das
imagens empregadas ilustraram primeiramente álbuns encomendados pelos governos
do Amazonas. Como exemplo, podemos reconhecer algumas das fotografias e ilustra-
ções que consideramos originalmente publicadas no álbum The city of Manáos and the
country of rubber trees (1893) encomendado para a ocasião da Exposição Universal de
1893 (Feira Mundial de Chicago), de autoria desconhecida. Este contém o desenho do
projeto preliminar da fachada do Teatro Amazonas4 (Figura 10), executado pelo pintor
e cenógrafo Chrispim do Amaral, Amazonas (que seria redesenhado) - mesma imagem
que foi republicada na segunda edição francesa do livro de Nery em 1899.

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1 Mantivemos a escrita encontradas no livro de Santa-Anna Nery no caso de etnias cujas


nomenclaturas não correspondem às empregadas contemporaneamente.
2 NIMUENDAJÚ, Curt. Os índios Parintintin do rio Madeira. Journal de la Societé des
Américanistes. Tomo 16, 1924. P. 201-278.
3 Quanto às ilustrações da versão italiana do livro de Nery, não pudemos localizar um exem-
plar para estudos até a finalização deste artigo.
4 Redesenhado posteriormente, com algumas modificações, conforme observa-se em fotos
de época após a inauguração e contemporaneamente.

69
Figura 10. Desenho do projeto preliminar da fachada do Teatro Amazonas, de autoria
de Chrispim do Amaral. Imagem que aparece tanto no álbum The, city of Manáos and
the country of rubber trees (1893), como no livro Les pays des Amazones.

Após a morte de Santa-Anne Nery em 1901, o seu texto, em versão reduzida e


trilíngue (português, francês e inglês), é incluído no Álbum do Amazonas – 1901-1902.
Esta nova publicação do texto é apresentada pelo seu meio-irmão Silvério Nery, gover-
nador da época, como uma homenagem póstuma. Neste álbum lemos o seguinte trecho
que deixa claro o local incontornável na memória local que Nery havia chegado5:6

Todo trabalho minucioso que, de momento, se emprehendese levar


a cabo sobre a região do Amazonas se tornaria redundância, por que
difícil, senão impossível, será irmanar o que, sobre o assumpto, deixou
traçado esse preclaro espirito de investigador e fecunda pena de litera-
to que foi o malogrado Barão de Santa’Anna Nery – tão cedo roubado
aos carinhos dos seus e ao explendor das letras pátrias (AMAZONAS,
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1901).

5 A produção deste álbum é coordenado e ilustrado por imagens identificadas como sendo
do fotógrafo português Felipe Augusto Fidanza (1847-1903), cujo afamado ateliê com seu
próprio nome era estabelecido em Belém, no Pará. No entanto, investigações contemporâ-
neas levantam a hipótese das fotos terem sido produzidas pelo fotógrafo alemão Georg Hue-
bner. Para mais informações sobre esta argumentação ver o livro de Daniel Schoepf, George
Huebner 1862 – 1935: Um Fotógrafo em Manaus, São Paulo: Metalivros, 2005.
6 Localizei esta constatação em Carneiro (2013, p.30-31).

70
Conclusão
Termino este texto lembrando que Santa-Anna Nery definiu-se como um
“propagandista voluntário do Brasil na Europa” - sem de fato ser voluntário. Assim
como Silvino Santos, ele teve sua principal obra destinada a produzir uma imagem
privilegiada da região amazônica justamente pelo fato de terem sido financiadas pelos
governantes no período de maior pujança econômica do ciclo da borracha.
O filme de Silvino Santos é lançado pela firma J. G. de Araújo & Cia., cujas
influências chegavam até o governo do Amazonas, pois na época era a empresa mais
proeminente do estado. Agesilau Joaquim Gonçalves de Araújo foi presidente da
Associação Comercial do Amazonas em 1925, além de ter se relacionado com outras
instituições. Após o sucesso do filme, essa narrativa representa o estado oficialmente
em diversas ocasiões como na Exposição de Bruxelas (1924), a Feira Mundial de Nova
York (1939), a Exposição do Centenário Farroupilha (em 1935), a Feira Internacional de
Amostras no Rio de Janeiro (1933). E ainda foi projetado em Manaus durante a visita do
futuro presidente Washington Luiz, entre outras personalidades e autoridades. Desta
maneira podemos perceber que o filme, mesmo não sendo uma encomenda oficial,
passa a ser considerado e utilizado como tal.
Cotejar as duas obras nos permite aprofundar a compreensão sobre o filme
financiado pela firma J. G. Araújo & Cia.. Já que entendemos, por meio do estudo do livro,
todo o empenho em elaborar uma imagem por meio do cultivo da tradição discursiva da
região, moldada pelo crivo dos propósitos oficiais. Assim também como vemos novas
ideias sendo colocadas pelo autor, no tocante à diversificação da economia regional,
valorização da comunicação visual (fotográfica), e, sobretudo a busca por modernos
meios de publicização de ideias oficiais. Instâncias estas que estruturam No paiz das
Amazonas.

B ibliografia
ASENSI & COMPANHIA. Ouro branco [livreto cinematográfico]. Manaus, 1919.
AMAZONAS. Álbum do Amazonas: 1901-1902 [álbum fotográfico]. Manaus, 1901.
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CARNEIRO, João Paulo Jeannine Andrade. O último propagandista do Império: o ‘ba-


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ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

72
ÉLIE FAURE, A PINTURA E A
CINEPLÁSTICA
Autor: Edson Pereira da Costa Júnior
Orientador: Cristian Borges
Nível: Doutorado
Bolsista: FAPESP

R esumo
A proposta do trabalho é retomar suscintamente os escritos de Faure sobre pintura
e ali buscar as bases para a noção de plasticidade que será desenvolvida, com outras
particularidades, em sua fortuna crítica sobre o cinema. A partir disso, almeja-se pen-
sar duas questões paralelas: dada a tendência recorrente de preterir o tema figurado
para se ater às dinâmicas rítmicas das imagens (pictóricas e fílmicas), o pensamento
de Faure não conduziria em direção a uma certa abstração dos elementos visuais?
Qual o lugar da figura humana, ou do que o autor denominava de cinemimo, dentro
desta possível inclinação em desfazer o elo entre as imagens e o referente real, o mun-
do e o homem representados?

P alavras - chave: Élie Faure, figura humana, cinema, pintura

Ao longo de seus ensaios, o historiador de arte Élie Faure exaltou a natureza


plástica do cinema, cuja expressividade deveria advir das formas visíveis, da arquite-
tura em movimento desenhada pelos elementos na tela, da exaltação da potência rít-
mica e do equilíbrio dinâmico. Nesta configuração, os sentimentos seriam expressos
na matéria sensível da imagem, pelo seu jogo de valores, luzes e sombras em constan-
te composição e decomposição; o drama, oriundo menos da possível herança teatral
e de uma ficção sentimental que da associação e cadência dos movimentos exibidos
na tela. A noção cunhada por Faure para sintetizar tal proposição foi a cineplástica.
O ponto de partida desse artigo é demonstrar brevemente de que modo as
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bases para a cineplástica já eram esboçadas em seu monumental História da arte,


quando Faure escreve a propósito de determinados expoentes da pintura ocidental,
julgados pelo autor como precursores do drama visual cinematográfico. Feito isso, a
proposta é pensar duas questões paralelas: dada a tendência recorrente de preterir o
tema figurado para se ater às dinâmicas rítmicas das imagens (pictóricas e fílmicas), o
pensamento de Faure não conduziria em direção a uma certa abstração dos elemen-
tos visuais? Como pensar a figura humana, ou o que o autor denominava de cinemi-
mo, dentro desta possível inclinação em desfazer o elo entre as imagens e o referente
real, o mundo e o homem representados?
Fazendo um mapeamento dos textos publicados no seu livro Função do cine-
ma, identificamos a frequente remissão a um grupo de pintores coloristas formado
pelos venezianos Ticiano e Tintoretto, o flamengo Rubens, e o francês Delacroix. Fau-
re não raramente reconhece em suas obras um tratamento vigoroso conferido ao es-
paço pictórico, uma economia figurativa pautada na profusão sensual dos elementos

73
na imagem. De modo genérico, são pintores cuja força e vivacidade das obras está ligada
ao uso da cor/tinta, tratada como elemento tão ou mais importante que a organização
dos elementos visuais a partir do desenho, de um esquematismo que estrutura e agencia
as formas pela linha.
Em História da arte, reconhecemos que mesmo lidando com nomes de escolas e estilos
tão variados, Faure utiliza vocabulário e descrições similares, estabelecendo um virtual
parentesco ancorado na agitação rítmica da imagem. Em todos aqueles pintores, o au-
tor enxerga um movimento torrencial, “um sentimento irresistível de solidariedade uni-
versal das formas, das cores, dos movimentos e dos sons” (FAURE, 2010, p.17) capaz de
promover a circulação interna da imagem. Cada um alcançaria uma figuração na qual
a vibração caudal da tela revela o encontro entre o drama interior e o drama do espaço
plástico, sendo a força deste último amparada nos volumes, linhas e cores em ação. Tanto
em História da arte como em Função do cinema, portanto falando de obras pictóricas
ou fílmicas, o autor recorre às expressões “orquestra visual” e “sinfonia do visível” para
indicar o processo de concreção plástica pela qual se alcança, no espaço visual, o que
na música se desenvolve exclusivamente no tempo, o ritmo. Tentaremos compreender
as razões para essa analogia a partir da análise de duas telas. Uma de Rubens, A batalha
das amazonas (1618), e outra de Delacroix, A caça aos leões (aproximadamente 1854). As
obras não são mencionadas diretamente nos escritos de Faure. Seus comentários sobres
os pintores que aqui mencionamos não são endereçados a quadros específicos. Em His-
tória da arte, o autor discute características gerais dos estilos, do traço autoral, mas sem
referenciar as obras em que se baseia. Nossa escolha pelas telas supracitadas de Rubens
e de Delacroix leva em consideração a forte correspondência que nelas encontramos em
relação à análise de Faure sobre os respectivos pintores, em especial o que exaltava como
uma sinfonia visível.

Figura 1

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Em A batalha das amazonas (1618), de Rubens (esq.) e La chasse aux lions (por volta de 1854), de
Delacroix, a sugestão de movimento é precipitada pelo dinamismo turbulento das formas.

Realizada antes mesmo de 1620, quando Rubens adotaria o estilo próprio do alto
barroco, A batalha das amazonas figura o duelo mitológico entre as guerreiras Amazo-
nas e os atenienses. O artista flamengo apresenta um tratamento vigoroso do espaço em
razão da complexidade da composição. O amontoado de figuras com sua variedades de
gestos e movimentos cria a sensação de uma ação em pleno desenvolvimento, uma ba-
talha que se estende ininterruptamente. A disposição dos elementos no espaço conduz
o olhar do espectador e desenha um movimento espiralar que inicia no lado inferior
esquerdo, sobe, percorre horizontalmente a tela e segue até o canto inferior direito, de

74
onde uma pincelada esparsa e fluída direciona para o plano que se descortina ao fundo,
seguindo o fluxo do rio até o fim do horizonte. Três tons diferentes de vermelho, dispos-
tos triangularmente na tela, na roupa de uma das amazonas – talvez a mesma figura em
diferentes momentos –, reforça a direção dessa espiral. As nuvens diagonais, com uma
mistura de azul e cinza, tons claros e escuros em ritmo intervalar, imprimem uma at-
mosfera tempestuosa e dramática para cena. No texto que dedica ao pintor, sem se ater
a uma obra em específico, Faure (1990, p.27) ressalta esse gosto pelo fluir sensual, pela
presença de arabescos plásticos unidos por um movimento radiante:
Rubens maneja as formas do mundo como uma massa maleável que se pode
alongar e encurtar, reduzir ou dividir, puxar e distribuir por toda a obra como um deus
que, recriando a vida, impusesse uma nova ordem ao tumulto em que ela se encontraria
ao brotar dele. Tudo na vida é devir. Ela nada mais é do que uma força em incessante
transformação que germina, desenvolve-se e morre no mundo infinito das formas, sem
que o espírito que sabe disso possa deter seu movimento num único momento dentre
elas, e isolá-lo do complexo conjunto de que todas elas participam, sem um instante de
repouso, para compor e para destruir.
Não importa qual o tema, Faure avalia que a busca de Rubens é pelo dinamismo
inesgotável da vida. Conduzido pelo seu amor por todos os aspectos da matéria, dos
mais vulgares aos mais superiores, seu gesto seria capaz de imprimir movimento a tudo
o que repousava sob seu olhar, concebendo os elementos do quadro como parte de um
todo orgânico, ligado pelo mesmo fluxo harmonioso, tal como um “movimento sinfôni-
co” (ibid., p.27).
O caso de Delacroix leva ainda mais longe no que diz respeito à potência rítmica
do espaço plástico. Uma tela como A caça aos leões– cujo motivo foi inspirado, entre ou-
tras fontes, nas Chasses de Rubens –, permite entrever como o movimento da imagem
deve menos ao contorno bem delineado da figura a partir do desenho do que à composi-
ção cromática, às vibrações luminosas e às direções das pinceladas ondulantes, rápidas e
nervosas. Já não é exclusivamente o movimento do que é figurado, mas também o gesto
do pintor que alimenta um mundo no qual ganham vida desde os homens e a fauna até
os elementos inanimados. Não há sólidos: tudo se agita em combustão num perpétuo
devir que dificulta o reconhecimento dos temas iconográficos. As figuras se diluem e se
refazem em massas organizadas pelas cores, com o predomínio das primárias e de tons
quentes. Em correspondência com a tela de Rubens anteriormente descrita, encontra-
mos aqui uma formação triangular pelos tons em vermelho, implementando a circula-
ção na imagem. As formas serpenteantes, que víamos com mais evidência na crina dos
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cavalos em A batalha das Amazonas, parecem compor o próprio modelado dos seres de
Delacroix. Nada fica em repouso nesta tela em que mesmo a variedade de técnicas, com
o empasto feito em pinceladas de larguras distintas em contraste com o glacis, contribui
para a instabilidade.
Faure (1991, p.296) considera Delacroix o mais completo e pungente de todos os
“músicos da pintura”, capaz de transformar a forma e cor num pensamento em ação. O
drama de seus quadros, aponta, é criado pelo estremecimento e hesitações da cor, em
seus constantes saltos rítmicos. Seriam seus tom, reflexo, passagem e valor os próprios
atores dramáticos. Os matizes de Delacroix chegam a assumir quase um caráter antro-
pomórfico aos olhos de Faure, que designa qualidades expressivas para cada compo-
nente da paleta. Tamanha atenção aos valores plásticos é ainda mais extrema quando o
historiador elenca uma série de temas do pintor para então afirmar que eles são secun-

75
dários. Mais que a História, os mitos, o Oriente, as tragédias e suas demais inspirações: “O
que ele pinta é a agitação de uma alma alucinada que uma grande harmonia dilacerante
mas aceita domina, das regiões do invisível pressentido [...] O que ele exprime é ainda mais
o espírito do que a forma do movimento” (ibid., p.297). Novamente, é a música que Faure
invocará como metáfora para o trabalho plástico, em que “o espaço inteiro ressoa como
uma lira imensa de colorações e de luzes que o tornam solidário com seu próprio drama
interior” (ibid., p.297).
A recorrência das metáforas musicais em seus ensaios sobre pintura e sobre cinema
aparenta ser um indicativo de conformidade entre o olhar do autor e um programa típico
das vanguardas do século XX. A respeito destas, Greenberg (2001) explica que um dos prin-
cípios foi o instinto de autopreservação da arte, a proteção de seus valores e o afastamento
de ideias que poderiam contaminá-la com lutas ideológicas exteriores. Uma das conse-
quências desse discurso foi a ênfase dada à forma, em detrimento dos temas, com a afir-
mação da vocação e de ofícios autônomos e respeitáveis por si mesmos. O raciocínio era
válido não apenas em relação a outras disciplinas, mas para as diferentes artes, porquanto
cada uma delas buscava o essencial de seu meio. É seguindo esta linha que a obra de certos
impressionistas, por exemplo, em certa medida atenta mais para as vibrações da cor em si
e ocasionalmente para uma modelagem planar do que propriamente para o que era repre-
sentado – vide as séries de Monet em que pintava os mesmos temas, às vezes do mesmo
ponto de vista, voltando seu olhar para os efeitos cambiantes da luz sobre os objetos. Essa
predisposição por buscar as propriedades essenciais de cada arte é uma das razões pelas
quais se justifica a importante posição que a música passou a ocupar diante das vanguardas
artísticas. “Em razão de sua natureza ‘absoluta’, da distância que a separa da imitação, de
sua absorção quase completa na própria qualidade física do seu meio” (GREENBERG, 2001,
p.52), de comunicar algo pela sensação imediata, a música teria se tornado um método
de arte pautado na pureza das formas. Julgamos que as analogias musicais nos ensaios de
Faure refletem – apesar de não se restringirem a – essa configuração, pois o olhar do autor
é voltado mais para as formas pictóricas e cinematográficas do que propriamente para o
que representavam, como se tais meios houvessem alcançado a autonomização de seus
elementos constituintes, o domínio de seu próprio material, para além do realismo ilusio-
nista, de modo similar à música.
Um pouco mais familiarizados com os atributos de dois dos pintores que Faure di-
zia terem aberto caminho para o cinema, e brevemente com a postura do autor, enten-
demos porque seus ensaios apontavam como um dos exemplos da escola cineplástica os
filmes Charlie Chaplin. Faure compara a obra do comediante com o trabalho de Hadyn
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sobre os elementos sonoros e o de Ticiano sobre os elementos coloridos do espaço, no que


diz respeito à expressividade a partir da matéria sensível que dispunham. Chaplin é visto
como criador de uma “imensa orquestra visual” calcada no movimento, por meio da qual o
drama humano se funda no visível, na superfície material e sensível da figura, sem recorrer
a uma ficção sentimental (FAURE, 2010).
A análise leva em consideração o esforço de imaginação e engenho que Chaplin
efetua a fim de encontrar seu lugar no mundo, contemplando em seus filmes tanto a fata-
lidade do drama como a resignação e o riso por meio da comédia. A semântica dos filmes,
portanto, não é perdida pelo espectador Faure. Convive com esse viés, porém, o lado teóri-
co, que revela um olhar apologista da abstração. Ao falar da cineplástica, o autor exige que
na representação de quaisquer que sejam as condições ou dramas humanos o cinema deva
empregar seus meios particulares, mais precisamente, a harmonia visual do movimento
no tempo. Dentro disso, a visão enviesada, tendenciosa a ver exclusivamente a dança das

76
formas, é notória quando, seguindo a mesma linha de raciocínio dos seus textos sobre
pintura e do que anteriormente mencionamos sobre as analogias musicais, Faure oca-
sionalmente desconsidera ou senão minora e encara como pretexto o tema encenado
por um filme. O tema só seria importante na medida em que possibilita fornecer uma
matéria-prima apta a ser moldada e mesmo favorecer o drama plástico, que tudo deve
expressar.
Neste sentido de abstração dos temas figurados, é sintomático quando Faure
(2010) escreve sobre o dia em que, assistindo a um filme, deixou de reparar na trama
encenada para prestar atenção aos sistemas de valores entre o branco e o preto, bem
como sua interferência para a sensação de profundidade da tela. A partir dali, entrava
em questão toda a sorte de recursos capazes de explorar os volumes em movimento, de
extrair a revelação rítmica da imagem, incluindo aí os efeitos de ralenti e de aceleração
– exaltados na mesma época por outros pensadores como Jean Epstein (1975), igual-
mente preocupado com a modulação da matéria-tempo pelas formas em metamorfose
no espaço. Se retomarmos o exemplo de Chaplin, poderíamos dizer que onde outro
espectador vê a imponência física de um corpo em movimento, preso à espessura do
mundo, Faure enxerga a sensualidade de linhas monocromáticas em perpétua vibra-
ção sobre a superfície da imagem.
Ainda que em seus textos não tenha levado adiante a predisposição formal a
ponto de defender um cinema eminentemente “abstrato”, livre da matriz figurativa e
pautado exclusivamente nos valores rítmicos da imagem, Faure considerou a possibi-
lidade de suprimir nos filmes a figura humana, ou cinemimo, como ele a denomina-
va. Independentemente da presença do ator, o cinema já havia adquirido os recursos
necessários para explorar o drama do movimento precipitado no tempo, por isso no
futuro poderia prescindir da imagem do homem. Nestas condições, o vislumbre para o
futuro era o de uma “arte cineplástica plena, que não será mais do que uma arquitetura
ideal e da qual o cinemimo [...] vai desaparecer” (FAURE, 2010, p.36), pois o realizador
poderá se expressar exclusivamente pelo o que se constrói e se desconstrói na imagem
a partir das mudanças de tons e padrões.
Caso a figura humana fosse preterida, os escritos do autor sugestivamente
apontam que a cineplástica poderia encontrar na natureza o seu insumo, a sua maté-
ria. De modo próximo a Dulac e a Epstein (apud XAVIER, 1978), também entusiastas
do que se poderia extrair do meio natural, Faure (2010) comenta a potência dos fil-
mes em reabilitar todas as faces da vida universal, incluindo as menos acessíveis ao
olho humano, como os movimentos ondulatórios imperceptíveis dos gestos animal
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e vegetal, ou ainda a solidariedade entre o ritmo cósmico e os infinitesimais, em suas


vibrações moleculares. No lugar do homem, então, poderiam entrar em cena as formas
em movimento retiradas da natureza e transformadas em potência rítmica na imagem.
Por meio dessa transferência, seria possível apreender o rosto do mundo, suas cons-
telações universais e seus destinos. O cinema seria a máquina capaz de revelar o invi-
sível no visível da natureza, alcançando o coração dos homens pelo o que extraia do
universo exterior, numa dinâmica inesgotável entre tecnicismo e afetividade também
comum aos textos de Epstein e Dulac.
Percebemos, então, duas tendências no tratamento dado à figura humana nos
ensaios de Faure: amparar-se em sua gestualidade a fim de pensar a plasticidade e as
potencialidades do movimento que dali advém, como nos filmes de Chaplin, ou supri-
mir a imagem do ser humano /cinemimo para dar ênfase às harmonias visuais pro-

77
movidas por quaisquer formas em movimento. De um lado, tem-se o corpo filmado;
do outro, as propriedades da imagem cinematográfica. Entre um polo e outro desse
pensamento, haveria a alternativa de valer-se da figura humana como modelo do qual
o realizador é capaz de se servir, de moldá-la sem necessariamente amparar-se na sua
gestualidade e no que mais se produz pelo corpo. A alternativa diz respeito a aplicar os
recursos plásticos do cinema à figura e assim conferir relevo aos jogos da fisionomia e
às atitudes do corpo, promovendo um dinamismo que o ator do teatro, por exemplo,
só alcançaria pela mímica acentuada. Ainda que não a desenvolva profundamente, essa
possibilidade se aproxima de uma concepção segundo a qual é o meio quem irá eviden-
ciar e potencializar a figura.
Em tais tendências – abstrair o tema para pensar a forma da figura, suprimi-la ou,
por fim, moldá-la de acordo com o que o dispositivo fornece –, encontramos se não o
embrião, pelo menos o estado prematuro de um programa, nem sempre consciente ou
sistematizado, que percorre a história do cinema. Trata-se do momento de inflexão em
que a materialidade da imagem do homem cede à estilização de sua figura e aos desdo-
bramentos advindos da materialidade do médium.
Visto o percurso que aqui adotamos, a primeira dedução seria a de que os escritos de
Faure conduzem a uma perspectiva eminentemente formalista em razão da qual tanto
no cinema como na pintura o vínculo com o universo material, com o mundo, é elimi-
nado ou reduzido em favor do reconhecimento e desenvolvimento das propriedades
essenciais dos respectivos meios. A marca maior ou senão emblemática dessa configu-
ração seria a eliminação da figura humana, seu destronamento na imagem. Ora, embo-
ra essa visão não seja de todo temerária, é preciso repensá-la à luz do que a motivava.
O que gostaríamos de sinalizar nesse comentário final, sem contudo analisar, é que ao
pensar as disposições rítmicas em detrimento da narrativa, a forma em detrimento do
tema, Faure era partidário de um discurso essencialista, mas não de uma cisão entre
a obra e o mundo. Devemos encarar sua proposta menos como uma formalismo em
si mesmo do que como uma possível educação estética por meio das propriedades da
imagem, um modo – aos seus olhos mais eficaz para a sua geração – de comunicação
dos dramas humanos. Pela sua vocação plástica, o cinema assumiria o papel que antes
fora destinado ao teatro, à religião e à pintura: o de funcionar como meio capaz de ele-
var uma população a uma concepção unânime do destino e do mundo (FAURE, 2010).
A partir da dança das formas, da sinfonia do visível, o cinema portaria consigo um po-
der revelador, funcionando como uma espécie de ornamento espiritual. A presença do
mundo e do ser humano estaria menos no que é figurado (tema) do que propriamente
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no que se revela (expressividade) pela imagem, no que a plasticidade provoca e desper-


ta no espectador, quer seja a partir da gestualidade febril e ritmicamente plástica da
figura humana, quer seja pela arquitetura das formas em movimento.

78
Bibliografia
CANUDO, Ricciotto. L’usine aux images. Nouvelles Éditions Séguier : Marseille, 1995.
EPSTEIN, Jean. Écrits sur le cinéma – Tome 2 : 1946-1953. Paris : Éditions Seghers,
1975.
FAURE, Élie. A arte antiga. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1990.
______. A arte renascentista. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1990.
______. A arte moderna. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1991.
______. Função do cinema e das outras artes. Tradução: Maria da Conceição No-
bre. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2010.
GREENBERG, Clement. Arte e cultura: ensaios críticos. Trad. Otacílio Nunes. São
Paulo: Cosac naify, 2013.
______. Rumo a um mais novo Laocoonte. In: FERREIRA, Glória. & COTRIM, Ce-
cília (orgs.). Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

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79
MOLÉCULAS DE CONTAMINAÇÃO
AFETIVA EM “MOONOSOVOL”
Autor: Roderick Peter Steel
Orientador: Atílio José Avancini
Nível: Mestrado

Resumo
Este trabalho relata o processo de criação do vídeo-tríptico MOONOVOSOL durante
uma vídeo-residência de duas semanas na cidade de Porto Alegre. Busca examinar es-
tratégias para a captação, transformação e propagação de energias dentro de um ciclo
de experimentação entre uma série de 6 performances-rito e um corpo-vídeo em 3 telas.

Palavras-chave: vídeo-performance, espelho, movimento, cinema, ritual, residência


artística

Fig. 1 – Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL IV: Oo0ø•º•∞ =<

O projeto MOONOVOSOL (ou MOONEGGSUN em inglês) foi produzido durante


uma vídeo-residência de duas semanas na Galeria Mamute1, em Porto Alegre. O proces-
so, desenvolvido por Adriana Tabalipa, Andreia Vigo, o artista sonoro Giancarlo Lorenci
e Roderick Steel, articulou um desejo antigo de juntar cineastas e performers para pro-
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duzir um trabalho colaborativo2. Este artigo, escrito impulsivamente alguns meses de-
pois da residência, tenta processar MOONOVOSOL3 enquanto vídeo-perfor ance4, pelo
1 Contemplado no Programa Rede Nacional Funarte Artes Visuais 10ª Edição, a Videoresidencia Território
Expandido propôs um espaço de inter-relações entre artistas e regiões do Brasil, no intuito de estimular a troca
de conhecimento entre as diferentes produções e favorecer processos de Coletivos de videoarte. As produções
artísticas oriundas da residencia foram expostas na mostra Paisagens Inventadas, com curadoria de Niura
Borges, na Galeria Mamute.
2 Agradecemos também ao artista Alexandre Antunes, cujo apoio durante o processo foi imprescindível. Cul-
minou na filmagem do quinto capítulo de MOONOVOSOL em seu jardim-studio.
3 Para ver MOONOVOSOL clique nos seguintes links:
1. vimeo.com/91799774 Parte 2: vimeo.com/91551839. Parte 3: vimeo.com/91794131, Parte 4: vimeo.
com/91603096. Parte 5: vimeo.com/90971484. Parte 6: vimeo.com/90339559. A senha para todos os videos é
abre.
4 . Sua transdução para outro video-corpo. Neste caso, para um corpo com 3 telas, ou “video-triptico”.

80
viés da contaminação afetiva de Deleuze. Ao colocar agendas individuais de lado e dire-
cionar energias colaborativas aos materiais em mãos, este coletivo temporário de artis-
tas, reunidos durante a residência, procurava se tornar "molécula, a ponto de se tornar
imperceptível" (DELEUZE, 1997, p. 225)5.

Vestes moleculares
Através da introdução arbitrária de dezenas de espelhos, os corpos dos perfor-
mers são submetidos a uma possessão autopoiética: a uma imanência receptiva e trans-
missiva. Juntos se tornam entidades liminares perfuradas por perspectivas e focos va-
riáveis do mundo: refletindo e absorvendo zonas experienciais livres dentro de lentes
dispostas em série. Essas multidões de ovos moleculares "definidas por eixos e vetores,
gradientes e limiares, ... pela transformação de energia e movimentos cinemáticos que
propiciam o deslocamento do grupo", devolvem estes corpos a um estado de criação
"antes da formação dos estratos"(DELEUZE, 1988, A Thousand Plateaus, p. 153).

Fig. 2 – Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL III: —°‰—

Deleuze nos lembra que na imagem-tempo o corpo fica mais lento e, "se torna o
revelador [révélateur] do tempo, para mostrar o tempo por meio de seu cansaço e suas
esperas” (DELEUZE, 1989, p.XI). Como tal, os artistas estampados por células se tor-
nam modelos para todos os devires, ao transformar os locais que encontram em zonas
experimentais. Suas deliberações lentamente desvendam ritos potencialmente trans-
formadores, 'encarnados, promulgados, espacialmente e temporalmente enraizados’ à
faculdades sensoriais agudas .

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Fig. 3 – Strata preênsil. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL V: •Ó···<=Ø=<···Ô•

Anti-espelhos
O termo vídeo-performance é geralmente usado para descrever a exploração da relação entre obras de arte
processuais e presenciais que foram concebidas para vídeo. Vídeo e performance surgiram juntos e influen-
ciam-se mutuamente a partir do final dos anos 1960. Cinco das seis performances de MOONEGGSUN foram
em locais remotos e inacessíveis. Em muito do nosso trabalho estamos interessados tanto nas qualidades
efêmeras de uma performance ao vivo como em sua remediação. Ou seja, em sua transdução para um corpo
de vídeo. Neste caso, para um corpo ampliado de 3-telas, ou "vídeo-tríptico".
5 Adriana Tabalipa e Roderick Steel desenvolvem performances em conjunto desde 2013 dentro do
“coletivo S.T.A.R.” . Buscam, através de seus trabalhos, colaborar com outros artistas em vários estados brasi-
leiros.

81
No lugar da transcendência reflexiva do espelho e da cena, há uma
superfície anti-reflexiva, uma superfície imanente onde as operações
se desenrolam - a superfície lisa e operacional da comunicação (BAU-
DRILLARD, 1983, p.126).

Brian Massumi nos assegura que espelho-visão pertence a uma determinação recí-
proca entre I-me / I-you, mas no mesmo fôlego introduz movimento na equação, como uma
espécie de antônimo do espelho. Que torna o movimento-visão absoluto e auto-distancia-
dor: "Movimento-visão não é apenas descontínuo com espelho-visão. É discontínuo com ele
mesmo. Para se ver de pé como os outros o veem não é o mesmo que se ver andando como
os outros o veem"(Massumi, 2002, p.50). O que fazer, então, de espelho / movimento-visão?
Será que a fusão do espelho de Lacan com a velocidade amplifica essa distância metafísica,
ou cria um evento expressivo com a sua própria "taxa de abstração vivenciada" capaz de criar
uma contaminação afetiva? (Massumi, 2011, p.155).

Fig. 4 – Meditação convexa. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL II: Ø0º>=<0غ

Em "Crystals of time" Deleuze reconhece o processo pelo qual imagens espelhadas


disputam por supremacia virtual e real, um vencendo sobre a outra baseado na primazia
de um determinado campo de visão. Se a imagem-tempo de Deleuze se move na vertical e
a imagem-movimento na horizontal, o espelho convexo passa por uma combinação infinita
de planos horizontais e verticais. Como imagem-objeto móvel.
A superfície convexa do espelho reflete o mundo real como um Outro aparentemen-
te distorcido, proporcionando vistas de um universo policêntrico desprovido de um ponto
de fuga. Este efeito dismórfico registra o objeto real nem como Outro transcendental, nem
como um duplo deslocado: não há coalescência entre os dois, mas sim uma metamorfose
dinâmica entre o objeto real de um estado real e a trajetória física da sua reflexão para outro
estado temporal. No seu movimento duplo de revelação e rasura estes planos sucessivos e
circuitos independentes esticam e encolhem a configuração espacial quantitativa ao redor
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do espelho. Como tal, torna-se uma seleção móvel de tempo, um molde temporal orgânico
em fluxo perpétuo entre telas interiores e exteriores.

Fig. 5 – Ad infinitum. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL II: Ø0º>=<0غ

O movimento/espelho-visão põe em movimento a união de intensidades de expe-

82
riência, enquanto inibe conexões entre eles. Os que manejam o espelho logo percebem sua
evasão de uma expressão pura. Sua superfície líquida acolhe forças imanentes que se aglo-
meram em forma de espiral para dentro de um centro de dispersões centrífugas e um campo
relacional que rechaça a contenção (MASSUMI, 2002, p.155). As vezes age como um cérebro,
reduzindo o mundo a uma série de imagens-pensamentos, ora age como um grão, germinan-
do imagens-sementes.
Em alguns aspectos, o espelho pertence ao paradoxo dos objetos absurdos, inimaginá-
veis. Incluído na definição do objeto impossível de Deleuze estão círculos e o chamado perpe-
tuum mobile (seus itálicos), que ele descreve como "objetos sem uma casa” e sem um devir que
têm, no entanto, "uma posição precisa e distinta dentro deste fora: eles estão “além de ser”
(DELEUZE, 1990, p.35). Talvez o domínio do espelho sobre nós vem dessa afinidade especial
com o objeto impossível em movimento perpétuo. Ao mesmo tempo, quando empunhado, o
espelho convexo nos arrelia com uma metáfora potencial da própria arte quando nos apre-
senta com uma estética da "contra-realização" do mundo por meio de sua interpolação de
uma interpretação do que pode ser efetivamente visto ocorrendo.

Fig. 6 – Objeto Impossível. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL VI: °·O0·—Ø—·0O·°

Buscando situações

O ímpeto de desenvolver performances para vídeo em locais movimentados se desen-


volveu numa breve busca por locações6. Ficou claro que o funcionamento interno de cada
locação teria que ser revelado, até provocado a existir pelo viés dos materiais como o espelho
investigativo, a lanterna de sondagem e as vestes exploratórias. Em frente da câmera, em
tempo real, e durante as performances. Fomos restringidos a um paradoxo: por quanto tem-
po poderia o processo de descoberta e uso criativo dos materiais – da mediação entre eles e
o mundo e nós mesmos – permanecer emergente? As duas últimas performances proporcio-
nam uma relaxação dessas limitações ao juntar todos os materiais em uma onda de atividade
entre os circuitos.
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Uma das questões principais da proposta do coletivo (...qual o papel da vídeo-perfor-


mance dentro da própria performance?) se fez presente no reflexo ominoso da cinegrafista
no espelho convexo 7. Uma capa metálica, coberta de pequenos espelhos ovais, foi usado por
Andreia – cinegrafista oficial do projeto –para ‘ativar' seu próprio olhar performativo e autó-

6 A progressão cinematica (o mais próximo que a série chega a uma narrativa) seguiu o conceito que um
único conjunto de materiais seria utilizado em cada uma das quatro primeiras performances. E em seguida, nas
últimas, seriam usados em conjunto. Isso reduziria cada performance a um circuito compacto de possibilidades.
Restrição e limitaçao são vitais para a criação de um campo de atuação.
7 The performances followed a production method not unlike that of observational documentary filmmak-
ing.

83
nomo8. Ela usou sua capa durante as seis performances e foi capturada 'registrando-perfor-
mando" nas últimas três performances quando uma segunda câmera imóvel foi posicionada
de fora para dentro.

A sessão do Jardim Botânico

Quando vestidas, as vestes transformaram os performers em seres sensíveis, cientes da de-


sestabilização do processo de organização, identificação e interpretação sensorial do sistema
nervoso da natureza.

Fig. 7-9 – Ecologias virtuais. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL IV: Oo0ø•º•∞ =<

No capítulo do livro Machinic orality and virtual ecology Félix Guattari celebra as vir-
tudes de um descentramento estético dos pontos de vista, para enunciar "novas rachaduras
entre outros dentros e foras”. Enquanto os seres performativos de preto e branco exploraram
as trilhas do Jardim Botânico de Porto Alegre, refracionando e absorvendo imagens, eles se
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tornam a personificação da sensação ótica pura. Deleuze criou a noção de tactisigns, ligados
ao toque do olhar. (DELEUZE, 1989, p.13) A fusão de espelho e corpo – já incorporada no
DNA das vestes – incita tactisigns a se misturar com chronosigns (imagens-tempo), noosig-
ns (imagens-pensamento) e lectosigns (imagens-legíveis), dentro de um estado de integração
imanente. Além disso, este devir se dá através da co-presença corporal dos artistas que se
descobrem em relação com o mundo ao seu redor.

8 Whereas ‘Forces’ placed the camera inside the performance, coupling camera and performer diegetically,
MOONEGGSUN presented a work where the relationship between the camera (diegetic) and film-maker (partially
diegetic) is as intense as in Forces but not so present within the action itself.

84
Fig.10 – Diferença e repetição. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL IV: Oo0ø•º•∞ =<

Como mencionado, essas camadas de interações são testemunhados por uma ou duas
câmeras de vídeo. Enquanto um destas registra a mise-en-scène de um ponto fixo, a outra
câmara é coagida para dentro de um movimento de "especialização", pelas lentes de Andreia
Vigo, que exercita um elevado grau de contingência enquanto oscila entre o ato de registrar e
de inscrever novos sentidos . Guattari nos assegura que a Performance "encaminha o instante
para a vertigem do surgimento de Universos que são simultaneamente estranhos e familia-
res.” (página 90). Guattari, novamente:

Engenhocas estranhas, você vai me dizer, essas máquinas de virtualidade, es-


tes blocos de percepções e afetos mutantes, meio-objeto, meio-sujeito, pre-
sentes em sensação e fora de si nos campos do possível (GUATTARI, 1995,
p.92)

Mas o que exatamente são estes afetos? Para Deleuze, eles ocorrem em uma lacuna
entre a imagem-percepção e a imagem-ação; para Massumi, na lacuna entre o conteúdo e seu
efeito (2002, p.24). Eles ocorrem no espaço entre a percepção do Jardim Botânico e do ato
performativo de sentir o seu campo de percepção, e fazer isso sem preencher este espaço.
O espelho e a lanterna iluminam fluxos de imagens-objetos que se apresentam aos raios re-
fletidos do sol. Como um olho-espelho, eles operam em planos múltiplos simultaneamente,
descrevendo, alterando, iluminando, distorcendo: "Surgem no centro de indeterminação ...
entre uma percepção que incomoda... e uma ação hesitante." (Deleuze, 1986, p. 65)

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Fig.11 – Mudança de registro. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL II: Ø0º>=<0غ

A sessão do Viaduto

Dentro dessa nova configuração, o espelho móvel performativo empurra os principais


tipos de imagens-cinema de Deleuze (imagem-movimento e imagem-tempo) para dentro de
um holofote estróbico. A luz da lanterna segue a lente da câmera através do espelho, procu-
rando encontrar seu ponto de indiscernibilidade, iluminando o circuito interno de seu meca-
nismo fotográfico. O dispositivo dança entre os arcos do Otávio Rocha e o Passeio das Quatro
Estações, registrando a ação da lanterna que provoca o confronto óptico entre a superfície

85
convexa do espelho e a própria superfície lenticular da câmera, para alvejar o momento em
que o espelho posicionado entre o obturador e a lente pestaneja, fixando a imagem em mo-
vimento em um frame de vídeo. Embora tenhamos nos acostumado com as vicissitudes do
objeto-espelho, ele nos cativa novamente, enquanto brilha esplendorosamente gerando um
efeito hipnótico.

Fig.12 – Frame do plano-sequência de MOONOVOSOL II : Ø0º>=<0غ

Este curto-circuito do mecanismo da câmera cria falhas que abrem outro circuito ain-
da mais profundo dentro das forças cristalinas já ativas. A luminosidade excessiva da lanter-
na parece repartir o tempo ao estratificar a imagem entre espaços-tempos variáveis dentro
de cada frame, empurrando o cristal ao "limite entre o passado imediato que já não é mais, e
o futuro imediato que ainda não é .... " (DELEUZE, 1989, p.79).

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Fig.12-13 – Falhas entre luzes e cristais. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL II: Ø0º>=<0غ

86
A sessão do jardim molecular

Nesta ocasião, os performers se encontram dentro de um ambiente ótico projetado


para estender seus corpos para dentro do “movimento do mundo”, onde permaneceram
"imóveis num ritmo muito intenso”. (DELEUZE, 1989, p. 59) Este movimento do mundo se
verticaliza através da expansão da totalidade do espaço e o alongamento do tempo através
das múltiplas refrações entre luz e sombras, entre treliças e caleidoscópios. Esta situação é
novamente agravada pelo fluxo entre os estados ópticos e espectrais da própria lente da câ-
mera (sua distância focal e abertura) e sua distância dos espelhos-lentes.

Fig.14-16 – Zonas espectrais. Frames do vídeo-tríptico MOONEGGSUN V: •Ó···<=Ø=<···Ô•


Espectros, refrações e deformações proliferam a partir de uma multiplicidade de es-
pelhos-moléculas que absorvem a totalidade dos performers, os devolvendo às suas partes
atômicas inconscientes e abrindo novos limites de alteridade. Como defendido por Deleuze
e Guattari:
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....em condições tais que o corpo sem órgãos substitui o organismo, a experi-
mentação substitui toda interpretação da qual ela não tem mais necessidade.
Os fluxos de intensidades, seus fluidos, suas fibras, seus contínuos e suas
conjunções de afectos, o vento, uma segmentação fina, as micro-percepções
substituíram o mundo do sujeito. Os devires, devires-animal, devires-molec-
ulares, substituem a história individual ou geral.. (DELEUZE & GUATTARI,
1988, p. 162)

87
Fig.17 – Vórtice digital. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL V: •Ó···<=Ø=<···Ô•

Enquanto isso, os espelhos de uma vestimenta refletem o outro, que reflete de volta
o reflexo do outro, e assim por diante. A lanterna estróbica coloca a relação entre os per-
formers preto e branco em suspensão: o piscar hipnótico injeta luz para dentro do cérebro,
comprometendo a capacidade já limitada da retina modificar a percepção e acompanhar
as repentinas mutações de imagens entrópicas. Outro vórtice, ou buraco negro, é formado
quando o circuito eletrônico da câmera gera um mancha preta, em forma de pixels, no mo-
mento que este aparato capta o momento exato em que a luz direta da lanterna e seu reflexo
no espelho convexo se encontram.
Essa esfera negra cria um feedback entre circuitos externos e internos, gerando um
olho eletrônico ondulante. Esta expansão e dilatação entre um ponto e um óvulo nos lem-
bra o momento anterior, quando os raios do sol se refracionaram na lente da câmera. Como
dentro uma zona abissal, essa mutação numérica abre um buraco através da fusão do bran-
co sobre branco, para gerar um estado digital alterado. É como se a própria luz se libertou
do aparato sensorial cinematográfico para explorar e expandir os horizontes de sua própria
imagem-tempo.

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Fig.18-19 – Zona abissal. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL: •Ó···<=Ø=<···Ô•

88
Uma performance em três telas e três tempos

A fim de preservar a abordagem experimental de todas as seis performances-ritos para vídeo,


optou-se por usar na integra todo o material filmado. Pois da mesma forma que os perform-
ers tiveram liberdade para experimentar e descobrir as possibilidades performativas dos seu
materiais em suas ações, houve um desejo de preservar o processo de descoberta e reveleção
do registro dessas ações pelo olhar do cinegrafista-performer e seu dispositivo.

Fig.20 – Zona abissal. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL VI: °·O0·—Ø—·0O·°

A implantação do dispositivo de três telas gerou relações e junções imprevistas entre


as imagens. Em momentos o efeito se assemelhou ao exercício surrealista de montar ima-
gens aleatoriamente (cadaver exquis) para criar uma nova forma viva. O movimento entre as
telas foge de qualquer tentativa de medição ou controle, e desencadeia um fluxo de monta-
gens-tempo. Além disso, momentos distintos são dispostos lado a lado e percebidos simulta-
neamente.
Uma das características mais surpreendentes do vídeo-tríptico é sua desconstru-
ção diegética de qualquer ação linear. Isso se fez evidente na ação com tules de 50 metros
na Ponte de Pedra no Largo dos Açorianos (MOONOVOSOL III), em que as bolas de tecido
transparente foram desembrulhadas, esticadas, e re-embrulhadas. A unidade de tempo e es-
paço dessa ação e da própria ponte é subdividida em três unidades-telas que se enfrentam
num ciclo interminável de fluxos que inibem perspectivas lineares. Desta forma o objeto (o
tule) e o ato (manusear o tule) se emaranham no tempo e espaço do dispositivo tríptico.

ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

Fig.21 – Subdivisões do espaço-tempo. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL III: —°‰—

O ato contínuo é seccionada em potencialidades do passado, presente e futuro, en-


quanto um se enrola no outro. O ato e a percepção do ato são subdivididos em três outros
intervalos temporais e afetivos. Enquanto uma tela contém as bolas de tecido, outra mostra a
bola sendo desenrolada e, em seguida, re-enrolada, "como uma faixa de memória se desenro-
lando sob as imagens do próprio filme," para formar a camada inferior de um ciclo implícito.
(MAYA DEREN, 1960, p. 154-5.) Estados atuais e anteriores se tornam gradativamente indis-
tinguíveis um do outro, como uma 'espiral aberta em ambas as extremidades "(DELEUZE,
1986, p.32) A “cosmologia plural" da "repetição-variação” da cena liberta o tempo, “inverten-

89
do sua subordinação ao movimento” (DELEUZE, 1989, p.102).

Fig.22-24 – Espirais abertas. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL: —°‰—

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90
CONSTRUÇÕES E LEITURAS DAS XICAS
DA SILVA NO CINEMA E NA LITERATURA
DE 1976
Autora: Mariana Queen Ifeyinwaeze Nwabasili
Orientadora: Irene Machado
Nível: Mestrado

R esumo
O artigo propõe uma análise dos comentários críticos negativos feitos às formas de
construção e representação da Chica da Silva no cinema e na literatura em 1976. A
análise é proposta como meio de refletir se os corpos humanos funcionam e são ob-
servados na realidade vivida por nós, e, consequentemente, nas ficções, como como
signos (PEIRCE, 1977) e como signos ideológicos (VOLOCHÍNOV, 2004), que têm sen-
tidos atribuídos aos seus formatos de modo discursivo e segundo construtos históri-
cos e sociais. Também se propõe uma reflexão sobre estigmas e estereótipos nas re-
presentações de corpos de mulheres negras em produções audiovisuais. Porém, mais
do que isso, propõe-se uma reflexão sobre como os estigmas e os estereótipos operam
na realidade dos espectadores e nas obras ficcionais, a ponto de serem sobrepostos,
ou melhor, falarem junto com as significações intradiegéticas dessas obras.

P alavras - chave: Xica da Silva, mulher negra, imagem, corpo, signo ideológico, sig-
nificado .

Além do que se vê: Xicas da Silva e os signos ideológicos

Partindo do nosso projeto de pesquisa no mestrado, com o nome de “As Xicas


da Silva de João Felício dos Santos e Cacá Diegues: traduções e leituras da imagem da
mulher negra brasileira”, temos como foco estudar os processos de construção dessa
personagem no filme o no livro homônimos de 1976, de Cacá Diegues e João Felício
dos Santos respectivamente. Também faz parta da pesquisa a análise de comentários
de espectadores de 1976 e da atualidade a respeito dessa construção e re(a)presenta-
ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

ção.
A atribuição “das Xicas da Silva” aos criadores João Felício dos Santos e Cacá
Diegues no título da pesquisa ocorre porque, em sua autobiografia, Cacá Diegues
(2014) indica que o filme de 1976 não se trata de uma adaptação literária com base no
livro homônimo, como chegamos a pensar inicialmente. O que aconteceu com rela-
ção a essas obras foi uma adaptação fílmica para a literatura, uma vez que João Felício
dos Santos, convidado por Diegues para roteirizar a obra cinematográfica e atuar nela
no papel do “pároco”, teria primeiro feito o roteiro do filme e depois escrito o livro.
Neste artigo, faremos primeiro uma breve análise da construção das Xicas da
Silva nas obras de 1976. Depois, analisaremos a relação do contexto de produção das
obras com as formas como a personagem foi construída no filme e no livro. Em segui-
da, analisaremos o que os comentários críticos negativos feitos às obras por especta-
dores de 1976 e da contemporaneidade apontam com relação às formas de ver e dar

91
a ver a personagem histórica Chica da Silva e os corpos de mulheres negras em geral nas
ficções.
É preciso dizer que durante toda esta exposição a personagem histórica Chica da
Silva será designada com “CH” (de “Chica” da Silva), enquanto a personagem fictícia será
designada com “X” (de “Xica” da Silva).

Construções de Xica

O filme e o livro Xica da Silva de 1976 são baseados na vida da personagem histórica
Francisca da Silva de Oliveira, a Chica da Silva, negra escravizada, mas liberta em 1754, que
subverteu as hierarquias da sociedade de sua época ao manter um relacionamento amoro-
so com o contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira. Nascido no Brasil Colonial,
mas vindo de Portugal quando adulto para a administrar a coleta de diamantes no arraial
do Tijuco – atual região de Diamantina, em Minas Gerais –, João Fernandes de Oliveira foi
um dos homens mais poderosos da colônia portuguesa na América do século XVIII.
Enquanto na biografia de Chica da Silva escrita por Júnia Furtado (2003) não é pos-
sível verificar se a personagem histórica teve conflitos internos com relação aos costumes
que adotou para ser aceita em uma sociedade que escravizava negros e “pardos” como ela,
nas estórias de João Felício dos Santos e Cacá Diegues, as Xicas da Silva fictícias parecem
ser mais complexas; mais conscientes de si, de sua cor e antiga condição, expressando, por
vezes, “raivas de classe e de raça (sentido sociológico do termo)” por meio de seus exageros
e extravagâncias.
Como exemplo de tal percepção, temos esta cena da obra literária que também
ocorre no filme. Já alforriada e vestida com roupas elegantes e extravagantes, roupas mui-
to coloridas, Xica da Silva fica indignada ao ser proibida pelo pároco da Igreja do Arraial do
Tijuco de entrar na casa de reza que tinha acesso livre aos brancos. A indignação da ex-es-
cravizada é extravazada por xingamentos que dão ao leitor a percepção que Xica da Silva
tem sobre a sua ascensão em uma sociedade racialmente hierarquizada. Vejamos:

Não me deixaram entrar, João Fernandes... o pároco... Dona Hor-


tênsia! Não me deixaram, você tá vendo só? Não deixaram a sua
Xica... esses brancudos, porcos de merda! – Os gritos começaram
a perturbar, dentro – Sacanas, roncolhos! – Também os escravos,
crescendo zumzum, subiam pro adro, aos pouco-pouquinhos, e co-
meçaram a rodear o corpo da ama, caído na soleira. – Hão de me
pagar, chifrudos, cornos vagabundas! – Os berros já eram ouvidos
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além do altar, ecoando na sacristia, interrompendo a missa. – Hão


de me lamber os pé, um dia… Vou mandar pintar essa porra de igre-
ja de preto por dentro por fora! Quero ver agora se preto não vai
entrar! Pelo menos a tinta preta vai, cachorrada! Por dentro e por
fora... toda preta... os santos... merda! Até as hóstias dessa irman-
dade filha da puta vão ser pretas também... por minha ordem! Por
mando de Xica da Silva! Estão me escutando, diabo de putas? Estão?
Caguinchas… ladrões arreganhados! Vão pro inferno, paneleiros do
fresco dos rei de Portugal! Porcarias... Sacanas… bêbados... vacas...
(SANTOS, 1987, p. 99).

92
Num primeiro nível de análise, observamos que os efeitos psicossociais do racismo
associado à escravidão se manifestam na Xica da Silva de João Felício dos Santos por meio
de sua personalidade irreverente, explosiva, exagerada, “louca”, desbocada e debochada
(aspectos que constituem a subjetividade da personagem aparentemente pouco esférica).
Tendo por base a escravidão brasileira do século XVIII, seria possível interpretar que, na
obra ficcional, a ascensão de Xica da Silva foi traduzida como uma anormalidade, aber-
ração, incongruência, loucura como significações intradiegéticas, já que a protagonista
subverte a base social vigente no Brasil do século XVIII retratado nas ficções.
Após leituras mais aprofundadas, passamos a perceber também que, no livro e no
filme (que tratamos como um objeto híbrido) de 1976, a “loucura” e a extravagância de Xica
da Silva fazem parte da personificação da dificuldade de entender, com os olhos de leitores
e autores dos séculos XIX e XX (épocas de Joaquim Felício dos Santos, primeiro autor que
escreveu sobre Chica da Silva no Brasil, e de João Felício dos Santos e Cacá Diegues respec-
tivamente), a existência histórica de negros forros em ascensão nas regiões de minério do
Brasil Colonial do século XVIII, como as pesquisas históricas de Furtado (2003) apontam
ter existido.
A subversão e “loucura” que a existência de uma ex-escravizada negra em ascensão
pode gerar no imaginário de quem olha para as Minas Gerais do século XVIII com “olhos
do presente” se manifesta, então, nos próprios exageros e “loucuras” da protagonista Xica
da Silva das obras aqui estudadas, e também na indignação e racismo das personagens
coadjuvantes da obra literária, como dona Hortênsia.
Ao mesmo tempo, ainda ao analisarmos a construção e apresentação da persona-
gem protagonista, percebemos que Xica da Silva é mostrada como dona de uma sexualida-
de animalesca, selvagem e insaciável. O apetite sexual da protagonista é algo apresentado
como parte importante de sua personalidade, reiteramos, animalesca, apesar de racional:
por muitas vezes, os apelos sexuais de Xica da Silva são usados propositalmente por ela
para conseguir o que quer, fazendo, num movimento dialético, de seus donos seus escra-
vizados.

Contexto e carnaval

Há quem associe as escolhas narrativas dos criadores do filme Xica da Silva à vonta-
de e à necessidade de popularização do Cinema Novo na década de 1970, e a um processo
de filmagem meta-histórica. Em sua tese de doutorado, Rodrigo Ferreira (2014) relaciona,
de maneira enfática, o caráter meta-histórico do filme Xica da Silva à retratação, na obra, de
relações de opressão entre senhores e escravizados como forma de alusão à repressão so-
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frida por cineastas, como Cacá Diegues, em meio à Ditadura Militar no Brasil (1964-1985).
Quanto à necessidade de popularização do Cinema Novo por meio das tramas,
montagem e estética dos filmes, Jean-Claude Bernardet (2009) explica que ela surge como
uma resposta à considerada baixa adesão da massa aos filmes do movimento vanguardista.
Ferreira esmiúça esse processo na carreira de Cacá Diegues:

O cineasta avaliou que os temas sociais haviam perdido sua eficiên-


cia pelo excesso de proselitismo, o que afastava o público do cinema
[...] ‘A gente começou fascinado pelo povo, depois se decepcionou.
Veio a frustração e a gente ficou numa posição agressiva, como se
o povo fosse culpado. [...] Havia uma reflexão realista que foi frus-

93
trada, e a reflexão acabou se tornando uma espécie de autodestrui-
ção, até que os filmes viraram uma abstração louca. E os realizadores
conscientes estão saindo disso e retornando ao povo’. No seu enten-
dimento, retornar ao povo era uma necessidade do cinema brasilei-
ro. (FERREIRA, 2014, p. 177).

Além remeter aos filmes carnavalescos (cômicos e também muito musicados) do


Brasil da segunda metade da década de 1930 (ORTIZ, 1953) e às chanchadas e pornochan-
chadas, a linguagem carnavalesca Xica da Silva tem influência direta do samba tema da
Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro de 1963, que foi Xica da Silva, já então grafada
com “X”. “Aparentemente, para Cacá Diegues, pela comédia e inversão da ordem [e do apelo
à nudez, acrescentamos], recurso narrativo tão caro à linguagem carnavalesca, era possível
reaproximar-se do público e promover reflexões sobre o passado histórico” (FERRREIRA,
2014: 178).

O que as críticas querem dizer

Em verdade, não foi só a graça que foi percebida pelo público do filme, como mos-
tram comentários as respeito da obra. Analisando especificamente comentários negativos
sobre a construção da Xica da Silva no cinema, percebemos que as características da per-
sonagem protagonista chegam aos espectadores de 1976 (e atuais) como um dos pilares da
trama, e colocam as traduções/representações estritamente históricas presentes na obra a
reboque das peripécias – principalmente sexuais – da protagonista.
Em sua tese de doutorado, Ferreira destaca fortes críticas negativas feitas ao filme
em cinco artigos de intelectuais publicados no jornal n’Opinião, em outubro de 1976. Ênfa-
se maior é dada às críticas feitas pela historiadora Beatriz Nascimento, que, à época, con-
solidava-se também como reconhecida militante do Movimento Negro no país. Ela alegou
que o filme de Cacá Diegues se contentava “com o humor barato e grosseiro em cima dos
estereótipos mais vulgares a respeito deste povo [negro]” (FERREIRA, 2014: 283 ).
Já os comentários críticos de Júnia Furtado (2003), mais contemporâneos, têm
por base induções feitas a partir da análise de documentos históricos. Escreve Furtado que:

Por não estar vinculado a essa tradição, e tendo como missão con-
quistar o espectador, o cinema, ao enfatizar a sensualidade da mu-
lher negra, construiu um mito que se ajustava ao imaginário cole-
tivo da época [...] Se o discurso histórico se baseou em uma Chica
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metafórica, o romance, o cinema e a televisão somente criaram os


estereótipos. Nada se fez para levantar o véu que encobre a sua figu-
ra e que imobilizou o mito. Continuava desconhecida a Francisca da
Silva de Oliveira, mulher de carne e osso, ex-escrava, que participou
do ciclo do diamante, período importante da história brasileira, que
enriqueceu, adquiriu propriedade, escravos, bens de raiz, e que edu-
cou catorze filhos. (FURTADO, 2003, p. 282 -284).

As críticas de Júnia Furtado e Beatriz Nascimento parecem partir dos seguintes


pressupostos: 1) as ficções (ao menos aquelas que têm base direta em fatos e personagens
históricos) devem seguir uma acuidade mimética para a construção da verossimilhança; 2)
ao não seguirem tal acuidade mimética, as ficções com base na história tornam-se equivo-
cadas e enviesadas ideologicamente, o que, nesse caso, é identificado pela percepção de que

94
o filme Xica da Silva reforça estereótipos; 3) a realidade dos fatos históricos defendida por
determinados grupos é mais “real/verdadeira” do que aquela defendida por outros grupos;
4) existe uma forma mais fiel de retratar/re(a)presentar quem verdadeiramente teria sido
essa mulher negra.
Em suma, Nascimento e Furtado questionam as imagens das Xicas da Silva ficcio-
nais e colocam em xeque a validade da ordenação e significação proposta especificamente
pelas produções literária e audiovisual. Nesse sentido, seus comentários críticos também
mostram que – a despeito das intencionalidades dos autores alegadas como justificativas
para a construção das obras; a despeito de que a trama do filme e do livro apresentaram Xi-
cas da Silva que, ao nosso ver, são complexas; e a despeito de análises que dizem que o filme
especificamente se vale da meta-história relacionada à Ditatura Militar – os espectadores
acionam elementos extra-diegéticos enquanto entram em contato com as obras, a ponto
de fazerem comentários sobre elas com base em conteúdos (consideração de estereótipos
vinculados aos corpos negros, por exemplo) que não são pilares da trama em si, mas que,
considerando a análise dos comentários, falam junto com a trama e suas imagens.

Intenção versus ação

Tentemos, então, entender como são vistos, nas obras (junto com elas e suas tramas
e imagens), os estereótipos aos quais os comentários mencionados se referem – processo
que consideramos ser possível, porque tais estereótipos existem (foram construídos) “fora/
para além” das obras, na realidade de vida dos próprios espectadores.
Pensando nas imagens como fontes visuais da história geral e não como fontes de
uma história específica da arte ou do cinema, por exemplo, Úlpiano Menezes (2003) escre-
ve que “as imagens não têm sentido em si” e, portanto, faz-se “necessário tomar a imagem
como enunciado”.
Ao se inserir como um enunciado dentro de um contexto social e histórico que, ao
nosso ver, não está apenas relacionado à Ditadura Militar, mas também a outros aconteci-
mentos paralelos a ela, como o surgimento do Movimento Negro Unificado no Brasil em
1970, o surgimento de um chamado Cinema Negro no Brasil e à consolidação das teorias
sociológicas a respeito da atribuição de valores raciais aos corpos desde o século XIX, as
imagens do filme Xica da Silva não são só associadas aos significados que ganham intra-
diegeticamente, mas também são acionadas pelo público em meio a um contexto social e
cultural mais amplo, a uma história longa.
Nesse sentido, parecem ingênuos os depoimentos de Cacá Diegues que apontam
para uma crença de que seu filme teria apenas um significado em si (o significado encami-
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nhado pelo autor empírico) e dentro do contexto da Ditadura Militar e da história do cine-
ma brasileiro. Escreve Diegues a esse respeito que:

“Xica da Silva pretendia recuperar, contra a perversão moralista


da pornochanchada, o sexo bem-humorado dos modernistas, uma
brincadeira cheia de jogos e preguiça, circulação livre de corpos que
se encontram sem tautologia. Eu procurava a sensualidade do sexo.
[...] Estes são os grandes espetáculos dos voyeurs, o contrário de tudo
que era Xica da Silva, onde uma mulher, contra todas as circunstân-
cias de sua condição e época, subverte a sociedade em que vive a
partir de seu simples prazer de viver. [...] Foi um jeito que encontrei
de recuperar, na segunda metade da década de 1970, a utopia do pra-
zer do início dos anos de 1960. [...] Qualquer que fosse o filme que eu

95
fizesse naquele momento, seria necessariamente um projeto contra a
morte, um desejo de recuperação do gosto pela vida que aqueles dias
sombrios tinham nos roubado.” (DIEGUES, 2014, p. 378-379; grifos
do autor).
A alegação de certa ingenuidade no comentário destacado acima parte da ideia de
que uma obra cinematográfica, como fonte visual histórica e também social, não mostra
apenas aquilo que o autor da obra (e o autor empírico, que são diferentes mas têm relação)
quis mostrar e nem mesmo só aquilo que está nas imagens, mas também aquilo que não
está, os lapsos deixados pelo diretor e a dinâmica das relações sociais do período da produ-
ção, como pontua Marc Ferro (2010).

A câmera revela o seu funcionamento real, diz mais sobre cada um


do que seria desejável mostrar. Ela desvenda o segredo, apresenta o
avesso de uma sociedade, seus lapsos. Ela atinge suas estruturas. [...]
Assinalar tais lapsos, bem como suas concordâncias ou discordân-
cias com a ideologia, ajuda a descobrir o que está latente por trás do
aparente, o não visível através do visível. Aí existe a matéria para uma
outra história, que certamente não pretende constituir um belo con-
junto ordenado e racional, como a História; mas contribuiria, antes
disso, para refiná-la ou destruí-la” (FERRO, 2010, p. 31-33).

Em outras palavras, em algum grau e de maneira geral, importa mais o que as nar-
rativas mostram diretamente (sendo que o que se mostra também é construído por tudo o
que não se mostra na obra, ou por tudo o que não se quis necessariamente mostra, mas as
câmeras captaram), e o público leitor apreende de imediato, do que o que os autores atestam
que quiseram dizer a partir das obras como contestação em meio a um determinado e pon-
tual período histórico. Ou seja, as narrativas ficcionais documentam as formas (escolhas) de
narrar dos autores que se constroem na obra, e não (necessariamente) as intencionalidades
anunciadas pelos autores empíricos.
Mais pistas a esse respeito são dadas por Jean-Louis Leutrat (1995) em texto sobre a
complexidade dos chamados filmes históricos. Afinal, no caso de Xica da Silva, o que se per-
cebe na obra é o retrato, mesmo que caricatural, de uma escravizada negra liberta no Brasil
do século XVIII? Ou o que o filme registra é a forma como a imagem de uma escravizada
negra liberta no século XVIII é vista e traduzida por autores a partir da segunda metade do
século XIX, considerando as produções sobre essa personagem criadas desde os escritos de
Joaquim Felício dos Santos em 1868?
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Qual é a imagem que absorve a outra? Os índios, como os cowboys,


são sutilmente diegetizados, ou a diegese é documentarizada? O des-
compasso vai se mudando numa oscilação que torna indecidível a
natureza da imagem mostrada. [...] Se admitimos que o cinema se ins-
creve na ordem das representações, como uma parte ritual bastante
importante, ele não oferece senão o “já simbolizado” e o “já socializa-
do em cada parte”. [...] É notório que o sentido que um autor (diretor,
roteirista...) quis dar a sua obra não é forçosamente nela encontrá-
vel, que há um modo de funcionamento independente das obras que
requer que nos esforcemos em compreender. (LEUTRAT, p. 28-32,
1995).

96
Olhar para o passado

Como mencionado anteriormente, Júnia Furtado escreve sobre um anacronismo na-


tural feito pelos autores de Xica da Silva no momento de tradução da história dessa perso-
nagem histórica para a ficção; um anacronismo não intencional, mas intrínseco às criações
de autores que se criam nas obras (mas têm base em sujeitos sociais da realidade vivida por
nós), e que deixam marcas nos textos.
Aprofundando a questão, Furtado destaca que, quando Joaquim Felício dos Santos
olha para a história de uma ex-escravizada (Chica da Silva) que teve descendentes com aces-
so a uma grande riqueza com olhos do século XIX, é que Chica da Silva se torna digna de re-
gistro na história e literatura brasileiras; registro esse que a torna uma aberração do século
XVIII olhado da perspectiva do século XIX.
Assim, na obra Memórias do Distrito Diamantino, publicada em 1868 e escrita por Joa-
quim Felício dos Santos (1828-­1895), o autor descreve Chica da Silva como uma mulher com
“feições grosseiras, alta, corpulenta, trazia a cabeça rapada e coberta com uma cabeleira
anelada em cachos pendentes, como então se usava; não possuía graças, não possuía beleza,
não possuía espírito, não tivera educação, não possuía atrativo algum, que pudesse justificar
uma forte paixão” (SANTOS, 1976: 124).
Para Furtado, é assim que nasce a lenda de uma Chica da Silva cheia de atributos ne-
gativos, lascivos e selvagens, ou seja, com características não devidamente ordenadas pela
colonização que influenciava e era defendida por “Joaquins Felícios dos Santos” no Brasil
Colonial do século XIX.

Homem do século XIX, o autor [Joaquim Felício dos Santos] recons-


truiu a personagem conforme a visão que predominava em sua época
e fez projeções de suas impressões no século anterior. Baseou-se em
cenas do seu cotidiano social, em que a mulher e a família deviam
regrar-se pela moral cristã e onde imperavam os preconceitos contra
os ex-escravos, mulheres de cor e uniões consensuais. [...] Para os ho-
mens da época [século XIX], as escravas eram sensuais e licenciosas,
mulheres com as quais era impossível manter lanços afetivos está-
veis. [...] Membro da elite branca preconceituosa do século XIX, o au-
tor era incapaz de compreender a atração que exerciam as mulheres
de cor. Joaquim Felício dos Santos a descreveu como uma mulata de
baixo nascimento. (FURTADO, 2003, p. 266-267). ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

Furtado escreve ainda que, a “historiografia que sucedeu Joaquim Felício dos San-
tos pouco mudou a imagem de Chica: apenas acrescentou as caracterizações de perdulária,
bruxa e megera” (FURTADO, 2003: 267).

Real, político, ideológico

A análise dos comentários negativos sobre as obras ainda dá margem para mais re-
flexões e questionamentos. Afinal, haveria existido uma Chica da Silva “mais real”, “mais
verdadeira” e totalmente equivalente ao que foi a personagem histórica, posto que a história
em si já é um construto? Existe realmente algo que possa ser inequivocamente entendido
como Chica da Silva, a verdadeira? “Que circunscrição de campo é feita pelo termo? O que
ele significa? Que sentidos são com ele criados? A que se presta uma tal designação? A quem
interessa?” (GOMES, 2008).

97
Se consideramos os escritos de Mayra Gomes (2008), Ella Shohat e Robert Stam
(2006), em verdade, não há a possibilidade de traçar qualquer enunciado que não seja de
ordem representativa, simbólica, imaginária e ideológica (sendo que a relação deste último
conceito com essas ideias todas será melhor esmiuçado adiante).

A consciência humana e a prática artística, argumenta Bakhtin, não


entram em contato com o “real” de maneira direta, mas através dos
canais do mundo ideológico que nos rodeia. A literatura, e, por ex-
tensão, o cinema, não se referem ao “mundo”, mas apresentam suas
linguagens e seus discursos. Em vez de refletir diretamente o real,
ou mesmo refratar o real, o discurso artístico constitui a refração de
uma refração, ou seja, uma versão mediada de um mundo sócio-ideo-
lógico que já é texto e discurso. (SHOHAT; STAM, 2006, p. 264).

Então, nos perguntamos: podemos relativizar quaisquer representações ficcionais


sobre diferentes “corpos” (abordaremos melhor o que queremos dizer com esse termo
adiante) e personagens sociais existentes na realidade vivida por nós, já que esses enuncia-
dos nunca irão equivaler à “realidade real” desses corpos? Não. E encontramos nos escritos
de Valentin Volochínov (2004), pertencente ao círculo de Bakhtin, Shohat e Stam (este úl-
timo muito adepto de conceitos de Bakhtin) reflexões importantes para a compreensão do
porquê desse não.
Shohat e Stam identificam que julgamentos sobre questões de verossimilhança quan-
to a representações ficcionais específicas vêm “à tona especialmente em casos nos quais há
protótipos reais para as personagens e situações [representadas]” (SHOHAT; STAM, 2006:
262; grifos nossos). Isso significa dizer que saber da existência de uma Chica da Silva históri-
ca faz com que parte específica dos espectadores consigam questionar, ou mesmo enxergar,
o constructo simbólico sobre tal personagem quando ela é abertamente ficcionalizada. As-
sim, as críticas negativas específicas feitas a determinadas construções simbólicas e formas
de apresentação e re(a)presentação dos “corpos” jogam luz sob o “princípio semiótico de que
‘algo está fora de lugar’ de uma outra coisa” que deveria ser colocada em algum lugar de uma
outra forma, “ou de que alguém ou algum grupo está falando em nome de outras pessoas ou
grupos” (SHOHAT; STAM, 2006: 268).
É nesse sentido que as questões de representação também são políticas. Para Shohat
e Stam, são justamente os protestos coletivos contra determinadas formas de representa-
ções nas ficções que apontam para o fato de que as produções cinematográficas, estão, sim,
implicadas com a realidade social na qual se baseiam e são disseminadas.
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O fato de que filmes são representações não os impede de ter efeitos


reais sobre o mundo: filmes racistas podem angariar adeptos para a
ku Klux Klan ou preparar terreno para políticas sociais retrógradas.
Como assinala Stuart Hall, reconhecer a inevitabilidade da represen-
tação “não significa que não há nada em jogo” [...] A teoria pós-es-
truturalista nos lembra que habitamos no interior da linguagem e da
representação, e que não temos acesso direto o “real”. Mas as cons-
truções e codificações do discurso artístico não excluem referências
a uma vida social comum. (SHOHAT; STAM, 2006, p. 262-263).

A partir disso, é preciso destacar: mesmo os enunciados de Beatriz Nascimento e

98
Júnia Furtado sobre a Chica da Silva que elas gostariam que tivesse sido de fato re(a)presen-
tada no cinema e na literatura também são ideológicos, ao serem constituídos por signos
(verbais, no caso) e terem natureza social (VOLOCHÍNOV, 2004). Para o teórico russo Va-
lentin Volochínov (1895-1936), ideologia é toda ideia empenhada em um sentido específi-
co de criação de sentido em uma sociedade de classes; portanto, signo ideológico é todo o
signo que tem um significado necessariamente construído e associado à realidade material
e social na qual é criado e disseminado. Tendo a palavra como um exemplo de signo, é a
intenção de sentido introjetada nela como um signo neutro que faz com que ela seja “um
fenômeno ideológico por excelência”.
Nesse sentido: 1) é por meio dos signos que as ideologias chegam à consciência in-
dividual, e 2) as palavras (como um das formas dos signos) são ideologicamente disputadas,
com relação ao sentido associado às suas formas. “O signo se torna a arena onde se desen-
volve a luta de classes. Esta plurivalência social do signo ideológico é um traço da maior
importância. Na verdade, é este entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo
vivo e móvel, capaz de evoluir” (VOLOCHÍNOV, 2004: 46).

Corpo e significado

A partir dos conceitos e reflexões apresentadas acima, passamos a ter como hipótese
o fato de que, não só as imagens nos filmes, mas também os corpos humanos como imagens
presentes na realidade vivida por nós são signos (formas com significados associados a si)
que, na tela do cinema passam a ser o reflexo de uma imagem (ao ser trabalhada na diegese)
que em sua existência material já é em si imagem-signo.
Quando nos referimos ao corpo humano como imagem, estamos nos referindo à
materialidade desse corpo físico em um dado espaço também físico; corpo esse que tem
significados associados ou sobrepostos a si a partir de determinados contextos, desdobra-
mentos e construtos históricos, culturais e sociais.
Gomes (2008) nos ajuda a pensar a respeito de um já-dito que paira sobre, ou forra,
o manto onde circulam o que nós propomos aqui chamar de “corpos-imagens”.

[...] podemos desenvolver um argumento levando em conta dois


exemplos: a Vênus de Dusseldirf, com seus seios fartos, seu ventre
protuberante, sua figura prenhe, que só é desejável como escultu-
ra a partir de uma visão de mundo que se referência à fertilidade, à
terra/mãe; e a figura da modelo Kate Moss, que só é pensada como
fotografável a partir de um ‘já dito’ que integra a estética da magreza.
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Dessa forma, compreendemos que essas imagens, em sua materiali-


dade, são da ordem do imaginário como a realidade vivida. A figura
feminina é construída sobre esse fundo ‘já dito’ que, no entanto, cor-
responde justamente à topologia instituída pelo símbolo: imaginário
enquanto estratificação. (GOMES, 2008, p. 45).

Nesse sentido, ao falarmos das Xicas da Silva, ou da representação e reapresentação


de corpos de mulheres negras em geral, na ficção, precisamos perguntar: quais os signifi-
cados e características atribuídas a esses corpos historicamente? Quais desses significados
e características ganham repetição em enunciados proferidos nas relações sociais e, con-
sequentemente, nas produções ficcionais? Que imagens esses significados e característica
criam, sobrepõem e sedimentam nos “corpos-imagens” quando estão a circular na realida-

99
de vivida por nós e/ou quando são fotografados e/ou filmados?
Pensando na história do Brasil (das Américas, na verdade), os corpos de mulheres
negras representados e reapresentados nas ficções e na realidade vivida por nós de alguma
forma carregam em si significados acumulados e associados a eles historicamente, que re-
mentem para um tempo “fora deles”, um tempo não contemporâneo, um passado que lhes
atribuiu, e ainda atribui, determinados e limitados significados. Sim, de alguma forma esta-
mos falando de estigmas e estereótipos. Porém, mais do que isso, estamos falando da forma
como os estigmas e os estereótipos operam e funcionam: de forma semiótica, ideológica
e discursiva ao associar a certas formas físicas significados historicamente situados que
acompanham essas formas/corpos mesmo quando apresentadas em diferentes sistemas de
linguagem e a despeito da recombinação e resignificação dessas imagens-corpos dentro de
tramas ficcionais.

A ótica da sociologia brasileira

Para problematizar a forma e representação dos (corpos) negros no cinema (na ficção
em geral), é preciso, então, fazer resgates, entender as origens dos significados atribuídos
a esses corpos realidade vivida por nós. Nesse caminho, Shohat e Stam (2006) mencionam
as teorias de hierarquia racial do século XIX, cunhadas por autores como Hegel, Gobineau
e Renan, e que influenciaram discursos midiáticos baseados e disseminadores de estereóti-
pos sobre as minorias raciais.
Já Jonatas Ferreira e Cythia Hamlin (2010) escrevem sobre a domesticação e defor-
mação de corpos de mulheres e negros historicamente, devido ao conflito e à dificuldade
em reconhecer e legitimar as particularidades desses corpos. Eles sustentam a ideia de que
a sociedade moderna, por meio do discurso científico vinculado às teorias raciais, criou e
determinou como “monstros” objetos sociais “exóticos” com relação aos padrões eurocên-
tricos.
Segundo os autores, a partir os primeiros exploradores da África nos séculos XVII e
XVIII é que o estranhamento especificamente com os corpos negros e as classificações so-
bre eles passam a ser comuns devido a estudos sociais e de anatomia sobre os africanos. As
características fenotípicas e biológicas dos seres passam a ser fator de diferenciação social,
cultural e intelectual. Esse discurso foi replicado na Europa no século XIX entre antropólo-
gos criadores da teoria racial. Tal trajetória levou a identidade e a personalidade dos “seres
monstruosos” a serem chapadas e objetificadas em prol da eficiência e da hierarquização
social.
No caso específico do Brasil (que também teve a sua ciência influenciada pelas teo-
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rias raciais), as significações introjetadas nos “corpos-imagens” das mulheres negras reme-
tem às dinâmicas das relações sociais, raciais e de gênero (incluindo aspectos sexuais) esta-
belecidas desde o período escravocrata.
Discordando e complexificando a ideia de democracia racial decorrente da miscige-
nação brasileira que os estudos de Gilberto Freyre (2006) colocam como natural e positi-
va, Darcy Ribeiro (2006) problematiza as formas de relações sexuais dos senhores brancos
com as escravizadas negras no Brasil Colonial – relações que se iniciaram devido à escassez
de mulheres brancas/europeias em solos tropicais.
Para Ribeiro, as origens das relações sexuais inter-raciais no Brasil (considerando a
relação entre homens brancos e mulheres negras e indígenas) mostram que o “português
de ontem e o brasileiro de classe dominante de hoje” diferenciam as suas relações sexuais
de duas formas: uma considerando “as relações dentro de seu círculo social” e outra consi-

100
derando a relações “para com gente das camadas mais pobres” (RIBEIRO, 2006). Segundo
o autor, esses casos se particularizam “pela desenvoltura no estabelecimento de relações
sexuais do homem com a mulher de condição social inferior movida pelo puro interesse
sexual, geralmente despido de qualquer vínculo romântico”, conferindo “relações sexuais
em circunstâncias desigualitárias” (RIBEIRO, 2006).
É possível dizer, então, que, historicamente, essas relações e percepções sociais sed-
imentaram significações e valores específicos sobre os corpos das mulheres negras, ou
seja, influenciaram as formas ordenadoras de ver e dar a ver tais corpos em circulação tan-
to na realidade vivida por nós e, consequentemente, nas produções ficcionais que refletem
essa realidade.

Apontamentos para o futuro

Essas reflexões (no duplo sentido da palavra) todas nos levam a pensar que se os
significados são atribuídos e associados aos signos de forma discursiva (lembrando que os
signos por si formam os discursos e que estamos associando o discurso ao ideológico), em
meio ao contexto social e a sociedade de classes, é possível disputar os significados a serem
imbuídos a certas formas/imagens/corpos a ponto de resignificá-los.
Ou seja, não estamos propondo entender o funcionamento operacional dos estig-
mas e dos estereótipos apenas para reafirmá-los, confirmar as suas existências, mas sim
para acharmos um caminho de reversão ou implosão dos significados que limitam as pos-
sibilidades de ser, enxergar e dar a ver os corpos humanos (destacando a nossa preocupa-
ção com a imagem e representação dos corpos de mulheres negras) na realidade vivida por
nós e, consequentemente, nas ficções literária e audiovisual.
E aqui lembramos do que colocamos ainda no nosso projeto de pesquisa de mes-
trado quanto aos objetivos gerais de nossas investigações. “A pesquisa pretende colabo-
rar para um pensamento crítico a respeito das formas de representação das imagens das
mulheres negras na literatura e nas produções audiovisuais brasileiras de massa desde o
século XIX (influência para os séculos posteriores). Imaginando-se que, contando parte
dessa história, será possível, por meio de estudos teóricos e do discurso acadêmico, reco-
nhecê-la, entender seus pontos de partida, consequências e as formas para transformá-la”.

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XICA da Silva. Direção: Cacá Diegues. DVD, Brasil, Programadora Brasil, colorido, 116min.

102
>
ASPECTOS DA
LINGUAGEM
CINEMATOGRÁFICA
< ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

103
SOBRE ALGUMAS
PROPRIEDADES DO PLANO FÍLMICO
Autor: Lucas Bastos Guimarães Baptista
Orientador: Cristian Borges
Nível: Doutorado
Bolsista: CNPq

R esumo
O trabalho busca apresentar algumas características recorrentes em tentativas de de-
finir um dos principais elementos da construção fílmica, o plano. Partindo de uma
definição que reúne algumas dessas propriedades, busca-se então seus limites através
de comparações e análises pontuais com exemplos de períodos e procedências diver-
sas. Os exemplos, oriundos sobretudo do cinema experimental, apontam para uma
espécie de física do material fílmico, seus pontos de ebulição e congelamento, sua
elasticidade e solidez.

P alavras - chave: plano, realismo, vanguarda, composição fílmica

Esta apresentação, como o título indica, discorre sobre algumas proprie-


dades do plano fílmico. Algumas questões a serem tratadas são: o que é o plano, em
sua definição mais usual; quais as características possíveis ao plano de acordo com
essa definição; quais os limites dessa definição; e a quais resultados ela pode levar se
abordada por diferentes direções.
A definição a ser tomada aqui como ponto de partida é de que “o plano, num
filme, é o que resta de uma tomada efetuada no momento da filmagem”. A tomada
é considerada como o registro fílmico em continuidade, e a existência do plano,
para a maior parte dos autores, depende dessa relação de correspondência. Esta
definição é dada por Jacques Aumont e Michel Marie, que a reformulam em seguida,
reforçando seu caráter tautológico, dizendo que “um plano é qualquer segmento de
filme compreendido entre duas mudanças de plano”.1
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Se formos descrever o que é o plano de acordo com essa perspectiva, po-


demos dizer que ele é: (1) perceptível como algo contínuo, um registro visual que se
desenvolve no tempo, que é passível de mudanças; mas (2) ainda que comporte tais
mudanças, é apreendido como um mesmo elemento, isto é, possui uma unidade.
É como tal unidade que o plano é classificado, seja por sua escala ou por sua mov-
imentação – podendo ser fixo, móvel, próximo, geral, etc. O plano mantém então
uma integridade espaço-temporal; é um tipo de bloco sendo gradualmente modela-
do pelos eventos, e se pudéssemos vê-lo de uma só vez, seria talvez algo como uma
escultura de quatro dimensões. Tendo estabelecido a definição, podemos tentar es-
clarecer quais são os seus limites.
No eixo espacial, o plano se estende pelo enquadramento, e seus limites são
as bordas da tela.

1 Jacques Aumont, Michel Marie, Dicionário Teórico e Crítico de Cinema, p. 230-231.

104
No eixo temporal, o plano se estende pela duração, e seus limites são o início
e o finatttttl da tomada. As propriedades do plano, independente de quais sejam,
devem se manifestar dentro de tais limites. Podemos então observar as diferentes
maneiras pelas quais o plano pode alterar seu conteúdo interno, de modo a afirmar
ou questionar esses limites.
Sobre o enquadramento, pelo menos duas tendências parecem existir em
relação à sua função. Uma delas é a visão que foi defendida sobretudo por André
Bazin, e que marca o contraste entre a moldura da pintura e a tela do cinema. O ar-
gumento de Bazin é que o pintor deve criar todo o conteúdo que irá apresentar ao
espectador – conteúdo que será encerrado pela moldura. O cineasta, por sua vez,
não cria seu conteúdo, mas, através de um contato fotográfico com a realidade, re-
corta o mundo visível, concentrando o olhar em uma parte dele enquanto mantém
todas as outras partes como que “mascaradas” pelas bordas do enquadramento. Por
essa razão, Bazin diz que a realidade exterior à tela estaria sempre presente, como
um potencial invisível que dinamiza o conteúdo visível.2
Tomemos como exemplo o cinema dos irmãos Lumiére. Estes breves filmes
são, em sua grande maioria, constituídos por planos fixos que permitem a pessoas
e veículos atravessarem o espaço, sem controle estrito sobre entradas e saídas de
quadro; eles enfatizam a naturalidade dos movimentos, e a liberdade do mundo
perante e em torno da câmera. As simetrias estão ausentes, pois acrescentariam
um equilíbrio estático na disposição gráfica, e os Lumiére parecem preferir o dese-
quilíbrio, a incompletude. Neste cinema, a câmera mostra a infinidade de movi-
mentos existentes. Mas ainda assim, sempre há mais do que a câmera é capaz de
capturar. O movimento é tão onipresente que parece se estender para além do pla-
no, e as constantes mudanças que ocorrem nas bordas do quadro são a prova de
que, no cinema, este pode funcionar como um catalisador daquilo que encerra. As
bordas aqui são, nas palavras de Jacques Aumont, “operadores ativos de uma trans-
formação progressiva”.3
Como um contraste, consideremos alguns dos filmes de Georges Méliès. Na
filmografia de Méliès, encontramos uma concepção espacial distinta. Em vez de lu-
gares abertos e repletos de veículos e transeuntes, encontramos estúdios onde é ex-
ercido um controle mais próximo sobre as ações. Surge em Méliés uma inversão do
princípio defendido por Bazin. No lugar da abertura ao mundo, Méliès se concentra
em figuras e eventos selecionados e cuidadosamente direcionados. Este paradigma
espacial é o que podemos chamar de “cubo cênico”. Aqui, toda a ação transcorre
numa espécie de palco cujas paredes, chão e teto são igualados aos limites da tela.
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Méliès não busca atrair o que estaria fora da cena, mas antes exercitar sua criativ-
idade dentro da cena, através de repetições, variações e combinações de gestos. É
nesse contexto que parece surgir sua preferência por efeitos especiais: o uso das
trucagens por Méliès é crucial, pois, ao multiplicar as imagens dentro de um espaço
construído, ele altera a unidade do plano em relação à tomada. É importante notar
que, mesmo no espaço composto por diferentes tomadas, podemos perceber algu-
ma unidade. Neste caso, encaramos a multiplicidade de tomadas como um único
evento.

2 Cf. André Bazin, “Pintura e cinema”, O que é o cinema?, p. 206-207.


3 Jacques Aumont, O olho interminável, p. 139.

105
Os limites espaciais do plano podem então seguir em duas direções. Eles po-
dem ser afirmados, como em Méliès, de modo a criar uma unidade cênica que de
certa forma abstrai a realidade exterior conforme estipula suas próprias regras; e
também podem ser questionados, como nos Lumière, onde as bordas são constan-
temente dinamizadas, convidando e recebendo o exterior do quadro, integrando o
interior dele a um contexto mais amplo. A contraparte centrípeta do espaço defen-
dido por Bazin seria a concepção de Hollis Frampton de que o quadro no cinema é
essencialmente metafórico, “um ícone da fronteira entre o conhecido e o desconhe-
cido, entre o que está presente à consciência e o que é inimaginável.”4
Um nível mais elevado de abstração foi alcançado pelo cinema de vanguar-
da nas décadas seguintes. Ao recusar a presença de elementos fotográficos, dando
preferência a métodos como animação e interferências diretas sobre a película, al-
guns cineastas revelaram o quanto o cinema pode se desenvolver tendo como base
apenas seu próprio dispositivo. No lugar de figuras humanas e objetos, surgem for-
mas geométricas achatadas, ou riscos sobre a película; e no lugar de números mági-
cos e cenas cotidianas, puras variações de forma, direção, cor e ritmo. Nos casos
mais extremos, não parece haver realidade “externa”: a única realidade é a dos ma-
teriais fílmicos e das formas engendradas por estes materiais.
O cinema de Jordan Belson é um exemplo de como um filme pode ser intei-
ramente composto por formas que não parecem ter qualquer ligação com o mundo
fora do cinema. O que um filme como Samadhi (1967) nos apresenta são formas gas-
osas e metamorfoses cromáticas; em determinados momentos, mesmo os limites da
tela são abstraídos, confundindo-se com a escuridão neutralizada do fundo. Tudo
o que é visível em Samadhi parece nascer e morrer sobre a tela, numa realidade
diferente daquela registrada pelos Lumière e por todo o cinema fundado na rep-
resentação figurativa. Torna-se claro, encarando os filmes de Belson, que o espaço
preferido por Bazin é dependente de uma configuração particular da câmera e uma
utilização específica do plano como unidade de composição.
Outros casos do cinema experimental servem para ilustrar uma segunda
vertente deste desvio. Assim como no filme de Belson, tanto Le Retour à la raison
(Man Ray, 1923) como Mothlight (Stan Brakhage, 1963) recorrem a técnicas distintas
da filmagem tradicional. O filme de Man Ray utiliza o que ele chamou de rayograph,
uma espécie de “fotografia sem câmera” em que os objetos são expostos diretamente
sobre papel fotossensível. O filme de Brakhage, também realizado sem a câmera, é
composto por pedaços de insetos e plantas colados sobre uma fita, que depois foi
copiada e transposta para a película, de modo que vemos os objetos como se estives-
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sem presos na estrutura transparente do filme. Em ambos os casos, os movimentos


visíveis na tela resultam da própria projeção de objetos fisicamente dispostos sobre
a película, em vez de registrados no mundo por uma câmera. Em decorrência disso,
a própria impressão de movimento não emerge de um movimento do mundo, mas
é sinônimo do movimento da projeção.
Quais seriam então os extremos do questionamento do quadro, ou seja, a
máxima abertura ao mundo exterior? Questionar o enquadramento significa di-
minuir sua autonomia, o que geralmente é sinônimo de uma atração da realidade
externa, da busca por métodos que a façam invadir e influenciar o conteúdo interno

4 Cf. Hollis Frampton, “The Withering Away of the State of the Art”, in Bruce Jenkins
(ed.), On the Camera Arts and Consecutive Matters: The Writings of Hollis Frampton,
p. 264.

106
do enquadramento, tornando a realidade “fílmica” uma extensão da “realidade como
um todo”. Mas os limites do quadro não podem desaparecer completamente – eles são
o referencial espacial absoluto –, e dessa forma, um filme ou cineasta que busque a
integração do quadro ao mundo, parece retornar aos aspectos mencionados sobre os
Lumière. O acréscimo do som, da cor, os formatos de tela mais largos, ou mesmo o 3D,
talvez sejam passos importantes nessa direção de uma maior imersão. Talvez o “mito
do cinema total” de Bazin seja o horizonte ideal dessa tendência. Para Bazin, o neor-
realismo italiano foi a abordagem exemplar das formas fílmicas em seu tempo; para
alguns críticos posteriores, foram os métodos do cinema direto; em todo caso, o que
parece aproximar essas posturas é uma atenção à integridade espacial do plano, mas
também à presença da “sociedade” no plano.5 O plano é não apenas uma unidade espa-
cial, mas também sintática, possibilitando a construção de um discurso sobre o mun-
do, através do próprio mundo. Reconhecer os elementos através de uma figuração
e de algo como uma retórica figurativa, é um critério recorrente entre os chamados
“realistas” da teoria cinematográfica. Não por acaso, os nomes que se colocam nessa
tendência dão preferência a documentários ou filmes narrativos, e evitam tratar do
cinema experimental (sobretudo o de inclinação mais abstrata) sob os mesmos critéri-
os.
Sobre as características temporais do plano, há pelo menos dois aspectos a ser-
em comentados. Em primeiro lugar, o início e o final do plano, como os pontos que
definem uma linha, podem ser, também eles, afirmados e questionados. A afirmação
seria a marcação clara, que diferencia o início de um plano do que vem antes dele, e o
final de um plano do que vem depois dele – em termos técnicos, isso seria represen-
tado pela ideia de “corte seco”. O questionamento seria a difusão dessa marcação, a
transformação desses pontos em algo nebuloso, que não marque claramente as fron-
teiras, mas que torne mais difícil a percepção da diferenciação do que vem antes e o
que vem depois – em termos técnicos isso seria representado pela ideia de “fusão”, ou
a lenta dissolução de uma imagem em outra imagem.
Em segundo lugar, o movimento, como a substância temporal do plano, tem
ainda outra propriedade, referente à semelhança ou diferença de seus componentes,
os fotogramas. O movimento pode ter sua “intensidade” diminuída ou elevada. Por
um lado, a velocidade pode ser reduzida a tal ponto que a unidade temporal se torne
imperceptível ou inexistente – esta é a tendência ao congelamento, à repetição tão
exata de um mesmo fotograma que a sucessividade da projeção parece não ter efeito.
Por outro lado, a velocidade pode ser elevada a tal ponto que a unidade espacial se
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torna imperceptível ou inexistente – esta é a tendência à explosão, ou a fragmentação


dos fotogramas, quando suas distâncias se tornam tão grandes que o efeito de flicker
da projeção é reforçado. Nos dois casos, o espaço-tempo contínuo que caracteriza o
plano é desfeito.
Ordinary Matter (1972), de Hollis Frampton, é um exemplo de como o aumento
da distância entre os fotogramas, alcançado pela alteração da velocidade da filmagem,
interfere na continuidade do movimento. O filme mostra uma caminhada acelerada
por diferentes espaços, e em cada um deles, o registro é altamente fragmentado. A
movimentação usual de uma câmera na mão, com suas intermitências e sua instabili-
dade, é potencializada pelo fato de que a velocidade do registro é alterada: a película é
exposta não a 24 quadros por segundo, mas a um número consideravelmente menor,
5 Cf. Bazin, “O mito do cinema total”, O que é o cinema?

107
de modo que, ao ser projetado, o filme subdivide o movimento em menos partes, cri-
ando saltos e intervalos abruptos. Existem no filme breves momentos contínuos, ou
sugestões de continuidade; mas na maior parte o que existe é uma série de quadros em
choque, fotogramas isolados, como num pontilhismo temporal. A estabilidade do plano
aqui é apenas uma possibilidade fugidia.
Este exemplo torna necessária a menção a uma característica que está presente
na definição inicial do plano, ainda que de maneira subterrânea. A definição de vários
autores compreende que os fotogramas são algo como as partículas elementares do
plano, mas não o mencionam em sua descrição. Por isso, devemos citar aqui um cineas-
ta como Peter Kubelka, que defende que o plano não é o elemento básico do cinema, e
sim o fotograma. Kubelka argumenta que um exame dos materiais fílmicos revela dois
fatos: primeiro, que o fotograma é a menor unidade possível, e segundo, que a com-
posição de um filme é basicamente a escolha de quais fotogramas serão apresentados,
e em qual ordem serão apresentados. Kubelka é também um dos cineastas que aceita
(ou mesmo prefere) a abstração dos conteúdos fotográficos, e a afirmação do enquadra-
mento como limite da obra. A soma desses fatores o levou à criação do que se conven-
cionou chamar de flicker film, onde apenas os valores cromáticos dos fotogramas são
manipulados, e toda a composição se resume à criação de motivos rítmicos envolvendo
a alternância dos fotogramas e o efeito de flicker.6 Ray Gun Virus (1966) é exemplar entre
os flicker films realizados por outro cineasta contemporâneo de Kubelka: Paul Sharits.
Em alguns filmes de Sharits, algumas imagens gráficas são entrecortadas brevemente
com o efeito de flicker; mas em Ray Gun Virus, o filme é dominado pelo flicker, e todos
os seus efeitos derivam da alternância de blocos sólidos de cor, organizados através de
padrões rítmicos. Nos flicker films, não há espaço cênico, não há uma divisão do espaço
do enquadramento, não há sequer a presença de formas gráficas; todo o interesse é
concentrado na luminosidade da tela como um todo, e ao pulso imposto à tela através
da projeção. A negação da realidade externa toma a forma de um cinema de controle
absoluto sobre as medidas temporais, em detrimento da complexidade espacial e da
vivacidade do registro cuja origem remonta aos Lumière.
Tendo visto algumas das propriedades que envolvem a definição inicial, po-
demos nos perguntar novamente: o que é, então, o plano? Vimos que, espacialmente,
o enquadramento pode afirmar sua autonomia como criação abstrata, se afastando da
relação de correspondência com a tomada, ou abrir mão de sua autonomia, se inte-
grando ao mundo exterior, reforçando a correspondência com a tomada, e a unidade
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espaço-temporal dos movimentos. Vimos também que, temporalmente, o plano pode


elevar e reduzir a intensidade dos movimentos, além de tornar claras ou difusas suas
fronteiras iniciais e finais.
Seria a definição inicial do plano o ponto onde ocorre o cruzamento desses eixos?
Ou é também ela uma tendência, uma espécie de campo gravitacional ao redor
do ponto central onde os eixos se cruzam? Se buscamos uma visão de conjunto desses
aspectos, a segunda opção parece mais adequada. O plano não parece ser o meio-termo
exato entre a repetição e a diferenciação, como não parece ser o meio termo exato en-
tre realismo e a abstração. O plano é, mais especificamente, uma região no espectro da
composição fílmica. Os exemplos citados do cinema experimental parecem confirmar
esta interpretação pela absorção eventual do plano como um elemento possível, mas
6 Cf. Peter Kubelka, “The Theory of Metrical Film”, in P. Adams Sitney (ed.), The
Avant-Garde Film, p. 140-141.

108
não inevitável. Sob certas condições, enquanto está dentro dessa região central, os
conteúdos do plano são mantidos como em equilíbrio dinâmico, podendo se loco-
mover em direções distintas, com alguma margem de segurança. É apenas a partir de
determinados níveis que a integridade do plano é ameaçada. Desse ponto em diante,
surgem os caminhos explorados pelo cinema experimental, levando aos casos-limite
já mencionados, como o flicker film.
Se desejamos uma definição que inclua a variedade de filmes aqui mencio-
nados, o plano talvez deva ser considerado não como um elemento unívoco, mas
como parte da matéria fílmica – uma parte entre outras. Uma matéria que possui af-
inal seus próprios pontos de congelamento e de ebulição; e ainda que não tenhamos
as marcações exatas neesta escala, sabemos que tais estados podem eventualmente
ser alcançados. Sabemos também que, mesmo se a integridade espaço-temporal do
movimento for mantida, sua matéria não necessita ser de uma solidez absoluta; ela
possui certa elasticidade, podendo ser lentamente derretida, e mesmo solidificada
novamente. A cada uma dessas abordagens, teríamos diferentes resultados, isto é,
diferentes ramificações das formas do filme, todas elas partindo de uma raiz comum.
Para compreender o que é o plano, e para compreender o que não é o plano,
o que precisamos talvez seja algo como uma “física da matéria fílmica”. Estudos so-
bre como as leis do espaço e do tempo influem sobre o cinema enquanto arte, e que
permitem, mas não exigem, a criação do plano, da cena, ou da narrativa. Talvez a
cena e a narrativa sejam níveis mais complexos dos mesmos princípios que regem a
existência do plano; talvez as tendências à abstração e ao realismo estejam presentes
também nestes níveis. Se os fotogramas são os átomos do cinema, quais as ligações
possíveis entre eles, e quais substâncias podem resultar destas ligações? Quais esta-
dos pode esta matéria alcançar, e quais modos de transição entre esses estados são
possíveis? Um estudo sobre fatos e possibilidades, em princípio, não é algo contrário
ao exercício da criatividade e do olhar crítico.

B ibliografia
AUMONT, Jacques. O olho interminável: Cinema e pintura. São Paulo: Cosac Naify,
2004.
AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário Teórico e Crítico de Cinema. Campi-
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BAZIN, André. O que é o cinema? São Paulo: Cosac Naify, 2014.
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JENKINS, Bruce (ed.). On the Camera Arts and Consecutive Matters: The Writings of
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Archives, 1987.
MITRY, Jean. The Aesthetics and Psychology of Cinema. Bloomington: Indiana Uni-
versity Press, 2000.

109
EXPERIMENTALISMOS SONOROS NO
CINEMA LATINO-AMERICANO: A ESCUTA
DA INTIMIDADE EM O PÁTIO , DE GLAUBER
ROCHA
Autora: Damyler Ferreira Cunha
Orientador: Arlindo Ribeiro Machado Neto
Nível: Doutorado

R esumo
Adiante de uma primeira fase do experimentalismo sonoro no cinema, marcada pelas
experiências de síntese sonora com gravação óptica na película e pelo interesse de
sons externos ao estúdio, o cinema experimental alimentou todo um modo de produ-
ção que atravessou décadas e se relacionou com diferentes processos e procedimen-
tos, tais como a vídeo-arte, as instalações audiovisuais e a dança. Situando-se fora
dos formatos, regras e gêneros específicos da linguagem cinematográfica, nos anos
de 1950 e 1960, as obras experimentais também estiveram marcadas pela exploração
de uma sensorialidade que apareceu em convergência com outras artes eletrônicas,
visuais ou sonoras (BENTES, 2003; MACHADO, 1997, 2010). Nesse mesmo período,
o agrupamento de técnicas de captação e registro para isolamento do acontecimento
sonoro fez da escuta um instrumento de análise e experimentação em diversas mídias
sonoras eletrônicas. Configurava-se uma nova realidade na sonoridade contemporâ-
nea: a emergência do timbre passava a ocupar um espaço central na concepção de um
novo jogo sonoro, quebrando antigas dicotomias em relação ao ruído (som não-musi-
cal) e seu uso nas artes. A questão timbrística, fruto do acúmulo de experiências com-
posicionais da música experimental desde o início do século XX, colocou-nos diante
da diferenciação entre sons reconhecíveis e irreconhecíveis (CAMPESATO, 2012; FE-
NERICH, 2012; GOEHR, 2008).

P alavras - chave: Glauber Rocha, cinema, música experimental


No contexto do cinema latino-americano, os curtas-metragens O Pátio (Glauber
Rocha, 1959, 35mm, Brasil) e Cosmorama (Enrique Piñeda Barnet, 35mm, 1964, Cuba),
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considerados obras pioneiras do experimental de suas respectivas cinematografias,


apresentam montagens sonoras que incluem trechos de peças dos compositores como
Pierre Henry, Pierre Schaeffer e Edgar Varèse. Nestes dois filmes, ambos os cineastas
escolheram usar trechos da composição da musique concrète francesa Symphonie pour
une homme seul (1950), e com o auxílio de músicos no Brasil e em Cuba, demonstraram
interesse pela estilização dos sons eletroacústicos em busca de uma nova sonoridade
para seus filmes.
Na tentativa de mapear quais seriam as obras pioneiras do cinema e vídeo
experimental, Arlindo Machado cita no artigo Pioneiros do vídeo e do cinema
experimental na América Latina (2010), várias mostras e projetos que foram organizadas
com esse mesmo intuito, dentre elas o projeto Videografías Invisibles que aconteceu
em 2005, na Espanha e Peru, a mostra Visionários: Audiviovisual na América Latina,
de 2008, no Brasil, e a mostra Fast Foward que aconteceu um ano depois, em 2006

110
e promoveu o debate e exibição de filmes e vídeos experimentais cubanos. Explorando
experiências e contextos diversos, esses pioneiros teriam se mantido distantes do circuito
comercial ao extrapolar os limites das definições entre filme de ficção ou documentário.
Apesar de o termo experimental começar a ser usado mais freqüentemente no cinema a
partir dos anos 1960, Machado (2010: 25) pontua que o seu uso já se fazia presente no cinema
underground norte-americano no final da década anterior e, teria suas conexões históricas
com a vanguarda artística européia dos anos 1920. Contudo, o trabalho realizado por Stan
Brakhage em Reflections on Black (1955) ao riscar a película para expressar a cegueira do
personagem do filme poderia ser considerado uma das experiências radicais dessa nova
empreitada fílmica, que irá se expandir atrelada a idéia de uma manipulação física do filme.
Entretanto, desde o final dos anos 1920, já eram realizadas manipulações físicas dos
materiais de registro do cinema como, por exemplo, a técnica de animação direta na película
de celulóide usada pelos cineastas Oskar Fischinger (Way Experiments, 1921-1926; Spirals,
1926; An Optical Poem, 1937), Len Lye (A Colour Box, 1935) e Norman McLaren (Boogie-
Doodle, 1941; Hen Hop, 1942). Esses cineastas usavam materiais diversos como filmes virgens
e totalmente transparentes, algumas vezes filmes velados e, portanto, pretos, e outras vezes
a película previamente filmada. Dentre os métodos de animação utilizados, ora ou outra,
os limites do fotograma eram violados e as pinceladas avançavam sobre a faixa de som da
película. Além de pintar, carimbar, riscar ou mesmo colar asas de mariposas na película
(como fez Stan Brakhage em Mothlight, filme de 1963), alguns cineastas experimentaram
desenhar os sons.

Cinema experimental e o experimentalismo sonoro



Em 1932, o cineasta alemão Oskar Fischinger usou extensos rolos de papel como
referência para criar os desenhos de ondas senoidais e serrilhadas em Ornament Sound
Experiments (Ornamentos sonoros, 35mm, 4 minutos). Neste período, Fischinger se
interessou pela criação do som sintético, antecipando alguns experimentos sonoros que
foram realizados anos depois por músicos eletrônicos. Fischinger deve ter percebido que
a produção fotoelétrica do som representava a possibilidade de reversão do princípio de
gravação de sons acústicos.
Anos mais tarde, fugindo do nazismo e em busca de financiamento para seus projetos,
o cineasta sai da Alemanha e vai para Los Angeles. No livro America’s Film Legacy, Daniel
Eagan (2010: 323-409) fala sobre as dificuldades de Fischinger para se adaptar aos estúdios
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a, b. Imagens dos Ornamentos Sonoros produzidos por Oskar Fischinger em 1932.

111
hollywoodianos, recusando-se muitas vezes a utilizar formas representacionais em suas
animações - como nuvens, o horizonte, a água e outros pedidos que lhe fossem feitos. O
cineasta acusava os estúdios de contratarem desenhistas para refazerem seus desenhos
e torná-los “menos abstratos” 1. Mesmo assim conseguiu produzir na MGM An Optical
Poem (1937), uma animação abstrata baseada na Segunda Rapsódia Húngara, de Franz
Liszt e teve como seu assistente, o jovem músico John Cage, que nessa época ainda não
havia apresentado a sua mais conhecida obra 4’33’’ (1952) e se interessava pela produção
de trilhas sonoras para filmes. Segundo William Moritz, pesquisador da obra do cineasta,
que escreveu o livro Optical Poetry: the life and work the Oskar Fischinger, John Cage teria
sido apresentado a Fischinger por intermédio da pintora alemã Galka Scheyer, que o
convidou para assistir uma apresentação do jovem compositor.

Oskar was excited by the possibility of making a film with “new


music” but told Cage he should come to the Studio and work for a
few days on the current project, An optical poem, just to understand
the process of animation, its potencial and its incredibly slow,
tedious pace. After a few days wielding the chicken feather, John
made an error and gave up animating [see Cage´s testimonial at
the end of this book for the full details]. But during the long pauses
while each new set-up was being arranged, Oskar told John about
his Ornament Ton experiments, and his Buddhist-inspired belief
that all things have a sound, even if we do not always listen or hear
it, just as a stone has an inherent movement even if it is still. Cage
credited Oskar with offering him the revelation that changed his
whole perception of music and sound. (MORITZ, 2004: 78)

Nos anos de 1930, a produção de sons sintéticos desenhados na película por Oskar
Fischinger e outros artistas não somente produziam belas formas visuais no cinema,
mas traziam a possibilidade de criar e organizar sons de uma nova maneira. Sem a
necessidade da partitura, realizada para filmes e escutada no cinema, esse novo tipo
de escritura acústica representava uma música do futuro, revelando novos sons nunca
antes ouvidos nesse meio. O músico norte-americano John Cage, juntamente com os
integrantes do movimento Fluxus, seriam reconhecidos algum tempo depois por agirem
“numa direção de expansão das relações entre som e música ao construírem o sentido de
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suas obras pela experiência - do artista e do espectador - do processo de criação, numa


1 “Advertising allowed Fischinger to work with abstract narratives and forms, an area that was
increasingly proscribed by Nazi officials as “decadent” or “degenerate” art. Fischinger used a comercial for
cigarrettes, Muratti Greift Ein (Muratti Gets in the Act, 1934), as the basis for the purely abstract Composition
in Blue (1935). When the film was screened at the Venice Film Festival, Fischinger was pressured to leave
Germany. His comercials won him a job at Paramount, where he was asked to draw an animated sequence for
The Big Broadcast of 1937, a Jack Benny comedy. Fischinger completed the sequence in color, but the film
was being shot in black-and-white. Fired when refused to change his work (which was cut from the finished
film), Fischinger was hired by MGM for An Optical Poem (1937), an abstract animation set to Liszt’s Second
Hungarian Rhapsody. (John Cage served as his assistant.) He was then hired to work on Walt Disney’s new
feature film. [...] He was dismayed to learn that other artists were adding representational forms - clouds, water,
and the like - to his purely abstract drawings, and quit the studio after nine months”. In: EAGAN, Daniel.
America’s Film Legacy: the authoritative guide to the landmark movies in the National Film Registry. New
York: Continuum, 2010.

112
tentativa de aproximar a obra de arte da vivência cotidiana” (CAMPESATO, 2012: 19).
Em “Vidro e Martelo: Contradições na estetização do ruído na música” (2012, ECA/
USP), Campesato traz à tona um debate iniciado no texto de Lydia Goehr, no qual a
pesquisadora norte-americana parte da distinção das trajetórias estéticas e científicas
que carregam consigo os conceitos de experimento e experimental como marco de duas
tendências antagônicas da modernidade. Para Goehr (2008), no início da modernidade
a noção de experimento, para a ciência e a política, teria simbolizado uma tentativa de
controle total sobre aquilo que se buscava investigar. Entre os séculos XIX e XX, uma
ampla gama de inovações técnicas se desenvolveu em paralelo ao surgimento da ciência
experimental. Campesato nos lembra ainda que neste contexto, “o som é levado ao
laboratório onde passa a ser estudado ao lado de outros fenômenos naturais como a
luz, a gravidade e o eletromagnetismo” (2012: 23). A experimentação e controle do som
como fenômeno acústico e, conseqüentemente, do espaço que ele percorre, o inseriu
dentro de uma lógica da ciência experimental, tirando-o de certa perspectiva mágica e
enigmática afirmada pela história da música até então, quando o som era considerado
um elemento efêmero, incorpóreo e fugaz. Em contrapartida, o conceito de experimental
trazido pela estética, pela filosofia ou pela ciência, trouxe “um novo início ao fim da arte
moderna” e estaria mais associado a uma idéia de incorporação; do risco; da abertura às
indeterminações nos modos de conhecer o mundo (GOEHR apud CAMPESATO, 2012:
30-31). Para a autora, esses dois momentos teriam sido ilustrados pelo “pai” da ciência
moderna, Francis Bacon, e pelo “pai” da música experimental, John Cage.
Vanderlei Baeza Lucentini, em Incursões da Música Eletroacústica no Cinema, artigo
publicado na Revista Novos Olhares (2005, Vol.3, n.2), irá localizar que mesmo antes da
realização da primeira experiência no cinema de síntese sonora com gravação óptica,
o cineasta russo Dziga Vertov teria antecipado algumas técnicas de gravação utilizadas
décadas mais tarde pelos compositores eletroacústicos. Neste artigo (2005: 215), Lucentini
destaca que no documentário Enthusiasm: Symphony of the Donbass (1931) Vertov realizou
a primeira experiência russa em gravação de som direto fora dos estúdios de cinema, além
de na pós-produção deste filme ter utilizado técnicas como a manipulação da velocidade
do som, a gravação de sons em movimento reverso, a assincronia simples entre som e
imagem, a sobreposição sonora e a criação de uma simbologia para conduzir a montagem
sonora. Outro artigo, Disorganized Noise: Enthusiasm and the Ear of the Collective
(Yale University, 2005) traz referências concretas da relação de Dziga Vertov com a
experimentação e a organização de sons do seu primeiro filme sonoro. O pesquisador de
língua eslava John Mackay apresenta trechos de uma partitura musical2, na qual Vertov
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organizou a localização dos sons da realidade dos personagens (sons do tique-taque do


relógio/sons dos sinos) em relação à música realizada para o filme, uma composição em
parceria com o músico russo Nicolai Timoveef. Como destacado por Arthur Omar em
O Cinema no Século, em Entusiamo Vertov “transforma os ruídos em música e a música
será tratada como ruído” (OMAR, 1996:285), no processo de fusão dos sons de uma das
maiores cidades industriais da URSS, Dombass. O carvão, o aço e o ferro, as sirenes, os
tique-taques dos relógios de ponto e tudo que trazia a atmosfera de poder das máquinas
industriais dessa cidade deveria ser incorporado na música deste filme. Patrocinado para
promover o plano qüinqüenal do governo de Stálin, a gravação deste filme foi cheia de
polêmicas, e, na pesquisa de Mackay (2005) é levantado uma série de depoimentos de
2 Atualmente, os materiais citados estão arquivados em Moscou, no Russian State Museum of
Literature and Art (RGALI, f.2091 - files 414, 415, 417). Ver também o artigo de John Mackay, Disorganized
Noise: Vertov’s Enthusiasm and the ear of the Collective, publicado em Kinokultura Journal, n.7, jan 2005.

113
Vertov relatando as interferências do Estado e os protestos dos operários das indústrias
que aconteceram na cidade durante as gravações.
Outra referência importante sobre o assunto é Enthusiasm: From Kino-Eye to
Radio-Eye, artigo escrito por Lucy Fischer e publicado em Film Quarterly (Vol. 31, n.2,
p.25-34, Winter 1977-1978), no qual a autora descreve outras nove categorias de conceitos
(além dos seis citadas acima) adotados pelo cineasta para organizar a interação entre
som e imagem na primeira parte deste filme. Anos mais tarde, na década de 1950, com
o agrupamento de técnicas de captação e registro para isolamento do acontecimento
sonoro, a escuta se transformou em instrumento de experimentação em diversas
mídias sonoras eletrônicas. No cinema não seria diferente e, uma maior acessibilidade e
portabilidade dos equipamentos de captação e registro de som se configuraram em novas
possibilidades para produção sonora. Com a diminuição do tamanho dos gravadores
de fita magnética, tornando-os realmente portáteis no final dos anos 1950, os cineastas
puderam considerar mais facilmente a captação de todos os sons do mundo, externos
ao estúdio (RAMOS apud TEIXEIRA, 2004: 88). Assim, muitos deles se aproximaram de
músicos experimentais em busca de uma nova sonoridade contemporânea, interessados
pelos sons do mundo como elemento estético a ser explorado no cinema. A questão
timbrística, fruto do acúmulo de experiências composicionais da música experimental
desde o início do século XX, colocava-os diante do poder de diferenciação entre sons
reconhecíveis e irreconhecíveis. Nessa nova realidade, o som na linguagem cinematográfica
passa a ser assimilado esteticamente a partir da idéia de uma exploração da sensorialidade.

***

Desde as primeiras exibições produzidas pelos irmãos Lumière em 1895, o cinema
também surgiu como exploração de uma realidade efêmera, fugidia e impalpável; do
interesse pelo ordinário presente na produção do movimento aparente das folhas de
uma árvore ou ainda como um lugar transitório entre ciência e espetáculo como escreveu
Jacques Aumont no primeiro capítulo de O Olho Interminável ([1989] 2004). Neste
primeiro momento apenas fruto do acúmulo de inovações técnicas visuais, o cinema não
conhecia o som em sincronia com a imagem, seus limites eram frouxos e infinitamente
mais permeáveis. Como fala Aumont (2004: 37-41), “filmar com o cinematógrafo
tinha mais a ver com a habilidade, com feeling e hábito”, já que o enquadramento era
aproximativo, requeria muitos deslocamentos para ajustar a visada.
Se por um lado, este cinema dos primórdios chamava atenção e promovia espanto
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pelo seu caráter efêmero e impalpável, por outro não deixou de estar profundamente
marcado pela idéia de experimento científico. Como sugere Arlindo Machado (2010: 25),
“no cinema a ênfase neste tipo de produção [também]3 estaria na experiência a partir do
seu sentido científico, como descoberta de novas possibilidades” (idem, ibidem). Situando-
se fora dos formatos, regras e gêneros específicos da linguagem cinematográfica, nos anos
de 1950 e 1960, as obras experimentais também estariam marcadas pela exploração de
uma sensorialidade que apareceu em convergência com outras artes eletrônicas, visuais
ou sonoras. Neste contexto, a imagem videográfica também sofreu intensa investigação
de sua natureza técnica.

Como no cinema experimental, o vídeo iria permitir ao autor


percorrer e controlar, com custos e tempos reduzidos, todas
3 grifo meu.

114
as etapas de produção da obra, de forma não especializada, da
criação à realização. Essa participação do cineasta ou do artista
plástico em todos os processos de realização da obra marcou todo
o moderno cinema autoral e teria sua continuidade no novo meio.
(BENTES, 2003: 116)

Em Vídeo e Cinema: rupturas, reações e hibridismos (2003), Ivana Bentes nos fala que
o surgimento desse novo meio - o audiovisual irrompe de um processo de hibridismo
entre artes plásticas, o documentário e o cinema experimental. Habitando regiões
fronteiriças entre o cinema experimental e o vídeo, alguns cineastas trilharam um
caminho que se deteve acerca do audiovisual como uma linha de continuidade, no qual o
vídeo apareceria como seu potencializador. Os cineastas experimentais que trabalhavam
com a não-linearidade, a colagem, o “direto” e o acaso, princípios que se tornariam
característicos do vídeo-arte e da linguagem do vídeo, teriam antecipado uma estética
do vídeo. Contudo, segundo Machado (Pré-Cinemas e Pós-Cinemas, 1997), uma linha de
continuidade bem mais longa poderia ser traçada entre cinema e vídeo, se pensarmos em
processos e procedimentos ao invés de suportes. No ensaio citado acima, Ivana Bentes
destaca alguns cineastas brasileiros (Glauber Rocha em Di (1977), Câncer (1972) e Idade da
Terra (1981); Arthur Omar; as experiências em Super-8, os documentários experimentais
da década de 1970 de Eduardo Coutinho e João Batista de Andrade) e estrangeiros (cinema
underground, cinema estrutural norte-americano, os trabalhos de John Cage, Nam June
Paik e Merce Cunninghan entre outros) que transferiram seu capital estético para o meio
audiovisual, realizando no vídeo uma série de experimentações consolidadas no cinema.
Adiante de uma primeira fase do experimentalismo sonoro no cinema, marcada
pelas experiências de síntese sonora com gravação óptica na película e pelo interesse de
sons externos ao estúdio, o cinema experimental da década de 1960 alimentava todo um
modo de produção que atravessou décadas e se relacionou com diferentes processos e
procedimentos. A fim de compreender esse momento, destaco a seguir a relação entre
o som, a dança e o cinema, na qual as três formas de expressão parecem, cada vez mais,
confundir-se, convergindo para uma forma híbrida. A partir da abordagem de uma
possível dança implícita na organização e manipulação do som no meio audiovisual,
destaco Variations V (1966), filme de Stan Van der Beek, verdadeiro experimento
intermidiático que foi realizado a partir de imagens de projeções em vídeo realizadas
pelo próprio Stan Van der Beek e imagens criadas no ato da gravação do filme, a partir de
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distorções do sinal analógico de uma TV, realizadas por Nam June Paik. Essas imagens
distorcidas foram sobrepostas as projeções de vídeo ao fundo, numa disposição criada
para que as imagens envolvessem os corpos dos dançarinos que atravessavam o cenário.

115
c. Imagem da gravação de Variations V, 1966.4

Os sons usados neste filme foram gerados por doze pólos eletrônicos de captação
dispostos entre os dançarinos e desencadeados pelos seus movimentos. Essas antenas
foto-elétricas com cinco pés de altura desencadeavam os sons como sombras, quando os
dançarinos interrompiam a luz. Imediatamente, esses sons captados eram alterados ou
ralentados pelos músicos experimentais norte-americanos John Cage e David Tudor. Nesse
tipo de engajamento corporal som e movimento estavam tecnicamente co-dependentes a
partir do corpo do bailarino, num processo colaborativo de defasagem entre som e dança.
O filme, que teve a coreografia assinada pelo coreógrafo Merce Cunningham, explorava
uma relação de proximidade cinética entre os dançarinos e o seu ambiente. A partir do que
chama de atividades de não-dança, Cunningham demonstrava interesse pelo movimento
ordinário dos corpos e criou, juntamente com os outros artistas, um ambiente imersivo no
qual o som e a projeção dos vídeos envolviam os corpos em ação. Neste filme, Cunningham
e os outros bailarinos aparecerem realizando ações do cotidiano. Cunningham inicia o filme
envasando uma grande planta, Carolyn Brown esmaga um pote, Barbara Lloyd coloca uma
toalha sobre a cabeça, Gus Solomons balança o corpo para frente e para trás e novamente
Cunningham termina a peça andando de bicicleta, numa citação daquele que teria sido o
primeiro ready-made de Duchamp (The ready made as movement, de Mark Franko, 2000).
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A toalha e o pote tinham microfones acoplados, assim como outros objetos que ao serem
tocados produziam sons. A ordem que determinava quando os elementos seriam acionados
foi criada lançando moedas o que dava trinta e cinco possibilidades que definiam a estrutura
e os componentes no processamento dos sons. A pontuação de sons específicos mudaria
de acordo com cada performance corporal, que corresponderia as sombras criadas pelos
bailarinos e objetos dispostos no espaço.
Nam June Paik e John Cage haviam se conhecido em 1958 quando freqüentaram o
International Summer Course for New Music, o curso de verão ministrado em Darmstadt,
na Alemanha, pelo compositor Karlheinz Stockhausen. O encontro entre os dois artistas,
além de Variations V, rendeu uma série de trabalhos anteriores, nos quais o que estava em
jogo era a incorporação do acaso e de um silêncio ruidoso (ou como Wisnik prefere nomear
4 Filme completo disponível no site do coreógrafo Merce Cunningham, acessado em 04/01/2016.
http://www.mercecunningham.org/film-media/dance-capsules/

116
em O Som e o Sentido (2003) “quase-sons”, “quase-ruídos”). Variations V, gravado em
Hamburgo num estúdio de televisão, empregava certo tipo de experimentalismo que
aparecia através das manipulações físicas e do controle sobre os aparatos eletrônicos.
Utilizando novos procedimentos criados a partir do manuseio e exploração da fita
magnética, o som também surgia da experiência de interação e do controle do movimento
dos corpos, talvez herança distante de um controle do movimento aplicado no início do
século passado.
A captação e o registro do movimento teriam sido um dos desafios que a
fotografia e a ciência se impôs ao longo do século XIX, e o levantamento dos diversos
processos e procedimentos à respeito culminaram na substituição da cronografia pela
cronofotografia, e, consequentemente, no aparecimento do cinema. Em “A Captação
do Movimento: do instântaneo ao fotodinamismo”, Maria Rosario Fabris (2004) comenta
que o método utilizado por Étienne Jules Marey para captação do movimento, situava-
se entre duas possibilidades de registro - a fusão e a atomização, que teriam surgido
do emprego das estratégias de levantamento exato e de um tipo de contração espaço
temporal. No final do século XIX, Marey, pesquisador francês e titular da cadeira de
História Natural dos Corpos Organizados no Collège de France, após o surgimento
do filme sensível de celulóide e a colaboração de Georges Demeny, conseguiu criar
um sistema - o cronofotógrafo, que lhe permitia reunir mais de quarenta imagens por
segundo (DAGOGNET apud FABRIS, 2004: 55). Para Fabris, antes de tudo, esse sistema
usado por Marey evidenciava uma diferença essencial do sistema utilizado pelo fotógrafo
inglês Muybridge - mais direcionado a ilusão aparente de movimento (já contemplado
pela seqüencialidade obtida na captação de instantâneos com intervalos regulares),
pois possibilitava o conhecimento do corpo a partir de uma imagem completa. Com o
desenvolvimento da cronofotografia, o cientista condensava uma série de posições de
um corpo em deslocamento numa mesma imagem, revelando à visão os movimentos
mais complexos, ínfimos e invisíveis, até então, aos olhos do mundo. Como sugere Kitler
em Grammophone. Film. Typewriter (1986), o fonógrafo, as experiências de Marey, o
desenvolvimento da escuta psicanalítica e o cinema teriam surgido desse processo de
sistematização do acesso ao experimental e, uma das conseqüências das transformações
ocorridas neste período seriam a “captação do sujeito” e o desaparecimento daquilo que
Kittler chamou der Sogennate Mensch (que poderíamos traduzir como o assim-chamado-
homem). Segundo Kitler (1986: 72), ao fonógrafo poderíamos também atribuir uma
identificação com o real no nível do registro de todos os sons produzidos, seja pela laringe
ou pelas máquinas de um ambiente, antes de qualquer ordem semiótica e simbólica.
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No contexto das manipulações dos aparatos eletrônicos no pós-guerra, a


exploração de uma relação de proximidade cinética entre os corpos e o seu meio ambiente
volta a ressurgir atrelada a idéia de uma imersão em elementos mínimos e visava atingir
o espectador naquilo que existe de mais íntimo, a sua corporeidade. Revelar uma nova
maneira de organizar os sons, ainda não perceptíveís no cinema, assim como vimos nas
experiências realizadas por Dziga Vertov, de Oskar Fischinger e de John Cage, talvez
significasse também para estes artistas estar mais próximo da possibilidade de encontrar
um som que não estivesse submetido à figuratividade da imagem, que ainda não estivesse
controlado e submetido ao sistema de representação do cinema.

O experimentalismo sonoro no cinema latino-americano

117
No rastro destes artistas pioneiros, os curtas-metragens O Pátio, de Glauber
Rocha (1959, Brasil) e Cosmorama, de Enrique Piñeda Barnet, (1964, Cuba) apresentam
montagens sonoras que incluem peças dos músicos experimentais Pierre Henry, Pierre
Schaeffer, Bela Bartók e Edgar Varèse. Considerados obras pioneiras do experimental
de suas respectivas cinematografias, os dois curtas usaram trechos da mesma música
concreta realizada por Pierre Henry e Pierre Schaeffer Symphonie pour une homme seul.
Com o auxílio de músicos do Brasil e de Cuba, Glauber e Enrique Piñeda demonstraram
interesse pela musicalização dos sons, em busca de uma sonoridade diferente para os
seus filmes.
Em entrevista realizada com a co-produtora do Pátio e também atriz Helena Ignez
(realizada em 25/10/2015, em São Paulo), busquei elucidar como Glauber conseguiu
a música composta em 1950, ainda mundialmente de difícil aquisição em 1957. Foi
confirmado pela atriz nesta entrevista que o cineasta conseguiu a composição com o
músico Hans-Joachin Koellreuter que, na época, ministrava seminários na Escola de
Música da UFBA em Salvador. A atriz foi sua aluna durante os três anos de curso de
Artes Dramáticas e o cineasta a acompanhava em diversas aulas neste período, entre
1957 e 1959. Foi neste contexto que Glauber ouvia peças de compositores de música
eletroacústica, dodecafônica e outros músicos que na época já experimentavam novos
procedimentos para organização dos sons a partir do manuseio da fita magnética.
Deduz-se (ainda sem confirmação completa) que teria sido este suporte que Glauber
usou para realizar a edição de som do filme, que nos créditos não aparece direcionada
para nenhum outro técnico que tenha participado das gravações e da pós-produção.
Na escuta dos sons deste filme em relação a composição da música Symphonie
pour un homme seul, foram identificados os trechos usados por Glauber dos movimentos
Apostrofe (nono movimento), Erotica e Scherzo (quarto e quinto movimentos). Entretanto,
percebi que o início da montagem sonora e da Symphonie pour un homme seul diferiam.
A partir do levantamento de referências, apareceu a crítica “Ouvir O Pátio”, escrita pelo
cineasta Luiz Felipe Labaki e publicada na Revista de Música Eletroacústica Linda (ano
2, oitava edição), que identificava além da Symphonie, trechos de outras duas músicas:
Ionisation, peça do músico franco-americano Edgar Varèse escrita em 1933; Tam Tam
IV, peça do músico concreto Pierre Henry (1951) e outro trecho, os últimos três minutos
do filme, utilizam uma ambiência sonora ou música ainda não identificada. Contudo, o
uso da Symphonie é predominante na banda sonora, e, é a única relação destacada pelo
cineasta nos créditos dos filmes. Glauber ao invés de usar trilha sonora nos créditos
escreveu montagem sonora em música concreta, evidenciando assim ter o conhecimento
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de algumas diferenciações entre o ato de organizar sons da música concreta e o


procedimento de serialização de notas da música dodecafônica, na época diferenças
expressas no âmbito musical a partir de um embate entre formalismo (escola serialista,
dodecafonismo) e referencialismo (música eletroacústica praticada por John Cage, David
Tudor, Pierre Schaeffer, Pierre Henry, entre outros).
O que desejo ressaltar aqui é o fato de Glauber usar a música experimental para
criar uma tensão em relação aos elementos imagéticos. Sob o horizonte do ensaio de
Ismail Xavier (2001), sabemos que, desde o início desse curta-metragem, o cenário
geometrizado, por vezes, demarca dois ou três planos espaciais diferentes na mesma
imagem. Podemos constatar assim, um primeiro plano espacial no qual o mar e o céu
se fundem até o infinito; um segundo plano espacial no qual vemos o terraço em forma
de tabuleiro de xadrex e, por vezes, quando a câmera avança no espaço do tabuleiro ao
nível do chão cria-se um terceiro plano espacial que emoldura o rosto dos personagens.

118
O espaço geométrico será reproduzido não somente na referência ao plano do tabuleiro
de xadrex, mas através dos três planos paralelos que são usados no filme com o intuito
de trazer “o fundo para a frontalidade ao mesmo tempo em que a devolve ao fundo”
(COSTA, 2000: 45). Os ritmos da montagem e os enquadramentos de Glauber acabam
construindo um espaço imagético construtivista, abstrato e racional, como bem notado
por Cláudio Costa em sua análise sobre o Pátio.
Todavia, se podemos notar no enquadramento da imagem uma expressividade
que aponta na direção de aspectos da estética concreta, enquanto reformulação de
um espaço racional e objetivo, como destacou o próprio cineasta (O Cinema do Século,
p.329). O caos ruidoso de sons fisiológicos e cotidianos que ouvimos em Pátio traz um
pouco da atmosfera de Symphonie pour un homme seul. A música teve a sua primeira
exibição em 18 de março de 1950, na École Normale de Musique em Paris e inaugurava
os caminhos da musique concrète, movimento que propunha uma música feita a partir
de sons eletroacústicos, do nosso cotidiano, com os quais se afirmava uma prática
composicional que tinha por objetivo bloquear qualquer invólucro conceitual, seja ele
formal ou simbólico, distante de uma estruturação interna preconizada pela música
clássica tonal (FENERICH, 2012). Varèse, Schaeffer, Henry e John Cage, fizeram músicas
distintas, mas dividiam em comum uma característica da música experimental praticada
por eles, apontando em direção a organização dos ruídos do mundo em som musical.

Essa postura que se apresenta de maneira mais radical em Cage já


podia ser identificada muito antes nos gritos futuristas ou mesmo
nas especulações de Edgar Varèse (1983-1965). A partir da segunda
metade do século XX, seguindo um processo já visível na obra de
Debussy, é notório um esforço para recolocar o som dentro da
música a partir daquilo que está em seu interior (suas qualidades,
seu timbre). Uma das propostas mais consequentes vem de Pierre
Schaeffer que vislumbra um método forjado no final da década de
1950 que posteriormente ele passaria a se referir como pesquisa
musical. (CAMPESATO, 2012: 94)

Essa nova maneira de pensar e organizar os sons, voltada para uma ampliação da
escuta pode ter seduzido Glauber. No início d’O Pátio, o homem (Solon Barreto) e a mulher
(Helena Ignez) pouco se tocam e movimentam-se pelo tablado destacando alguns gestos
retorcidos do corpo, como que contidos por uma dimensão racional. Nos primeiros
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minutos haverá ainda uma priorização nos primeiros planos da figura masculina e do
recorte geométrico da imagem. A figura masculina caminhará pelo tablado, por vezes,
isolado da figura feminina para contemplação do mar ou de bananeiras, além de reagir
ao som de um ruído insistente e latejante que parece incomodar os seus ouvidos (o
personagem tampa os ouvidos com a mão). A sonoridade intensa será interrompida,
ao menos duas vezes, pelos longos segundos de silêncio. Assim como a Symphonie de
Schaeffer foi criada para representar as sonoridades de um homem só, Glauber parece ter
se apropriado desta intenção.
Afora isso, aos oito minutos do filme toda a mise-en-scène se contaminará por um
forte estremecimento na inserção de Erotica, um dos movimentos da musica concreta
que usa trechos vocálicos ligados ao prazer sexual feminino. A partir da inserção deste
trecho, a movimentação dos atores sofrerá uma modificação. Vemos um plano mais

119
longo de Helena Ignez se movimentando langorosamente, com uma corporeidade mais
sensual, enquanto as vocalizações tornam-se mais intensas e volumosas, se desdobrando
em uma voz em loop que parece recitar as palavras ao contrário. Os corpos, que antes
estavam sozinhos no espaço (figura d), voltam a se reencontrar até sumirem por uma
escada.


d. Frame do curta-metragem O Pátio (1959), de Glauber Rocha.

Em “A Inscrição da Intimidade na Symphonie pour un Homme Seul”, o músico


eletroacústico e pesquisador Alexandre Fenerich destaca que Pierre Schaeffer e Pierre
Henry se utilizaram de sons vocálicos não verbais ao longo de toda a composição,
operando assim sob dois pólos da imagem corporal. Para Fenerich, o conceito da escuta
da intimidade se apresenta como fundamental para delimitar a influência de elementos
sensoriais trazidos a partir do uso do movimento Erotica, trecho da Symphonie pour un
homme seul que mais contém vocalizações e sons fisiológicos da intimidade feminina.
Num dos pólos temos uma imagem do corpo corporificado, a partir da focalização dos
estímulos corporais, e num outro pólo, temos uma descorporificação da imagem pela
ausência da presença do corpo no concerto eletroacústico (FENERICH, 2012:108).
Glauber, ao usar a música no seu curta, promove a inscrição de zonas de intimidade no
espaço geometrizado através da presença desses sons vocálicos corporais, que foram
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gravados com proximidade ao microfone. A respiração, os gemidos e os sopros ressoam


como corpos sonoros, virtualizados na dimensão do corpo daquele que escuta. Outro
personagem importante dessa relação entre cinema experimental e experimentalismo
sonoro na América Latina, Arthur Omar (1996: 281) também se deteve sobre essa
dimensão dos sons no cinema, que como corpos sonoros se formariam dentro do
espectador-ouvinte no próprio ato de abstração acionado pela audição de uma música.

Algo muito parecido acontece com a experiência musical, a meu


ver. A música dos filmes, e talvez mesmo a música em geral,
não atua como uma simples coisa auditiva, no sentido de você
parar para ouvir e observar determinadas relações sonoras, etc.
No filme, a música está no ato mesmo de ouvir. Cria-se o que

120
poderíamos chamar aqui de corpo sonoro. Você está aqui com o
seu corpo normal, a música penetra no ouvido, mas ela não foi
feita para uma excitação puramente sensorial. Ela atua na sua
presença global, e ela atua de que maneira? Criando virtualmente
o que estou chamando de corpo sonoro. É um corpo que se forma
de dentro de você e pode atuar em frações de segundos, ele pode
durar na fugacidade de um simples acorde, ele pode esvanecer e
se diluir antes mesmo do desaparecimento do próprio som que o
originou. (OMAR, 1996: 280)

Como uma evidência oculta, neste Omar aproximou a experiência cinematográfica
da experiência musical na palestra Cinema: música e pensamento, transcrita para o livro
O Cinema no Século (1996), para destacar que o cinema está trabalhando com uma
música interna do filme. O cinema afirmaria um lugar onde o sujeito se defronta com a
imagem para provar, experimentar, um movimento para dentro. Mais do que embarcar no
mundo que passa, o cinema seria no fundo um pretexto para um entrar dentro de si, uma
temporalidade que opera uma vibração da atenção. Migrando da matéria cinematográfica
para os outros meios, Arthur Omar promove essa reflexão a fim de encontrar o motor da
presença que existe na experiência cinematográfica, aquilo que seria anterior a instância
da imagem, no sentido “imagético” do termo. Algo semelhante do que acontece quando
visamos encontrar uma musicalidade interna daquilo com que o espectador está se
defrontando, “uma música-sem-som somente possível no cinema, seria o som da imagem”
como descreveu Omar.
Outro experimental cubano, o cineasta Enrique Piñeda Barnet se interessou pela
musicalização dos sons na realização do seu curta-metragem Cosmorama (1964). Também
curioso acerca da investigação sobre como seria possível representar no cinema a vibração
de formas abstratas das imagens plásticas concebidas pelo pintor Sandu Darié, Enrique
Piñeda buscou trechos de músicas dos compositores Pierre Schaeffer, Pierre Henry e Bela
Bartók, além de recolher trechos de arquivos sonoros com sons dos rios e outros diversos
sons das ruas de Paris, de Roma, de Havana e outros cidades do mundo com intuito de
construir atmosfera única, que nos fizesse imaginar as formas espaciais das cidades em
direção a imensidão aquática do mar. Na entrevista realizada em 2009 para o Diário de La
Juventud Cubana e intitulada Cosmorama, la arquitectura de una obra maestra, o cineasta
cubano revela que encomendou ao seu editor de som 14 bandas sonoras e a resposta do
sonidista Roberto Bravo foi que pensar em sobrepor tantos sons assim era uma loucura,
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que ninguém conseguiria ouvir os sons. Piñeda Barnet lembra ainda que pediu a ajuda do
músico cubano Carlos Fariñas, para inserir algumas notas entre os trechos de músicas
dos compositores citados acima, com o intuito de dar-lhes um toque de cubanía. O curta-
metragem que é considerado marco inicial do cinema experimental e videoarte cubano,
foi revelado ao mundo com a ajuda do animador canadense Norman McLaren, depois
que o cineasta enviou-lhe uma cópia para divulgação. Diferente de Glauber Rocha, Piñeda
usa trechos da música concreta Symphonie pour un homme Seul que priorizam os sons
das cidades ao invés das vocalizações da intimidade feminina buscadas pelo brasileiro.
Contudo, o fato destacado aqui são as diversas possibilidades que se abrem aos cineastas
que se interessaram pela musicalização dos sons no cinema. Assim como Glauber Rocha
e Enrique Piñeda Barñet, muitos outros cineastas da América Latina vislumbraram a
criação de novos sons, nunca antes ouvidos, no cinema. Uma dessa figuras importantes

121
para criação de uma música para filmes é o cineasta brasileiro Alberto Cavalcanti,
que assim como Piñeda buscou alianças em Londres, numa temporada no General
Post Office Film Unit, para realizar sua pesquisa sobre a expressividade dos ruídos no
cinema.

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122
DE UM PONTO AO OUTRO:
O OLHAR EM ELEFANTE, DE GUS VAN SANT

Autor: Thiago Siqueira Venanzoni


Orientadora: Rosana Soares
Nível: Mestrado
Bolsista: FAPESP

R esumo
A proposta visa debater a questão do(s) olhar(es) inscrito(s) no discurso do filme Ele-
fante, de Gus Van Sant. A partir da proposta metodológica em torno do olhar surge a
compreensão de uma relação de visibilidade e invisibilidade trazida pelas imagens em
narrativa, em seu discurso, que pode também ser compreendida a partir dos concei-
tos de Eu (Mesmo) e Outro, sendo o Mesmo visível e o Outro invisível na dinâmica da
cena social. Para tanto, Prado (2013) vai dar a essa ideia de visibilidade pelo dispositi-
vo o seu par, a convocação. Há várias possibilidades de compreender essa convocação
a que fala o autor, mas nos interessa a ideia de convocação, bem como a de dispositivo
(aqui já trabalhada), em sua relação com a linguagem, ou seja, sua relação estrutural.
Uma lembrança importante feita por Prado nos diz que a linguagem é convocatória
em sua gênese, desde o princípio. E para ressaltar esse ponto nos remete a Lacan em
sua conceitualização do Desejo, ao dizer “todo discurso é dirigido ao Outro” (LACAN
apud PRADO, 2013, p.36). A linguagem, em sua materialidade, se torna o único lugar
possível de apreensão do mundo.

Palavras-chave: Elefante, discurso, outro, olhar, imagem

Em abril de 1999, no estado norte-americano do Colorado, dois alunos


entraram em sua escola, o Instituto de Columbine, e começaram a atirar em alunos e
professores que lá estavam. O evento foi anunciado como massacre, “O massacre de
Columbine”, e traduziu-se em narrativas convocatórias por todo o mundo ocidental.
A violência contra os próprios semelhantes não poderia ser tolerada. As estratégias
de relatar foram bem uniformes entre si, apostando na tragédia do acontecimento
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para conseguir o engajamento do espectador. Não demorou para que os dois alunos
fossem tratados como loucos, psicóticos e não sociáveis, e, dessa forma, passassem a
operar num registro discursivo que abandonou uma crítica mais estrutural a modos
de vida em questão.
É interessante pensar na forma de inserção do jornalismo como discurso
promulgado pelas formações dos saberes, ou seja, próximo ao que Foucault chamou
de normatização. Dificilmente encontraremos, dentro desse gênero discursivo
jornalístico, algo que escape de um compartilhamento do dado da cultura e que fuja a
um imaginário já presente e recorrente. Um dos enfoques mais comumente atribuídos
a esse caso está exemplificado em manchetes como a da revista Time, “The monsters
next door. What made them do it?” (Fig.1). A nomeação de monstros, aberrações que
fogem de uma normalidade civilizatória, opera uma construção representativa desse

123
acontecimento e dos sujeitos em cena na narrativa. Mais do que isso, se refere a um
Outro próximo que não deve ser incluído na cena social; o inimigo que mora ao lado e
não sabe-se bem o que fazer com ele.

Fig.1 – Capa de 3 de maio de 1999. Fig.2 – Capa de 25 de outubro de 1999.

A referida revista reafirma seu lugar na matéria de capa em uma das edições
de outubro do mesmo ano de 1999 (Fig. 2). Nela, o semanário apresentou um relato
de como seria uma semana na vida de estudantes do ensino médio. Pretende trazer,
ainda, o que realmente ocorreu desde o massacre. É usado o termo "really" grifado.
Os percursos da imagem e da palavra dessa matéria dão ênfase ao fato de haver
diversidade nesses espaços e apresentam um convívio com poucas tensões entre os
diferentes. Nesse laço discursivo ficam excluídos do meio social os tais “monstros”,
nomeados assim. Uma pesquisa em outros materiais jornalísticos sobre o caso revelam
enunciados que flertam com os gêneros narrativos da literatura histórica, sobretudo
a partir da instauração da modernidade, com o melodrama e a verossimilhança do
realismo, como exemplos1. Há uma construção, portanto, da verdade como sendo essa
apresentada nos semanários. ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

Os textos jornalísticos podem ser examinados como produções de


sentidos que circulam em torno de um contrato de comunicação
em que se projetam um enunciador totalizador e um enunciatário
carente. O enunciador opera convocações narrativas para que o
enunciatário se transforme rumo a uma

melhor situação de ser, ter, saber e poder mais (PRADO, 2009, p. 63).

1 Não é o mesmo que dizer que o melodrama nasce com a modernidade, pois já se notava na ópera ro-
mana estruturas narrativas que se assemelham ao melodrama. É dizer, então, que o melodrama se transforma
em gênero cônscio a partir de certa literatura afeita ao moderno e suas formações discursivas a partir do século
XVI, como nos sugere a arqueologia foucaultiana. Acionar o gênero melodrama entraria, assim, na ideia de
uma normatividade do saber.

124
A construção de uma verdade totalizante como sendo única configura-se,
ainda hoje, como um dispositivo bastante eficaz na narração de um fato. Como
função na narrativa, tal construção mostra-se reducionista em sua lógica. Como
parte da formação discursiva na linguagem, mostra-se reducionista como o próprio
ato de nomear. Não seria diferente com o lugar enunciativo em que a função lógica
se encontra. Narrar um fato é parte de uma relação que se estabelece com outras
formas narrativas e se torna uma condição de existência do fato. No caso, os jovens
visibilizados em Columbine como um dado-a-ver da cultura é o que se percebe de
imediato no modo discursivo do enunciador totalizante.
José Luiz Aidar Prado (2013) relaciona, ainda, a visibilidade como sendo o par
de uma convocação. Uma retomada importante feita pelo autor trata da linguagem
como convocatória em sua gênese. Para ressaltar esse ponto ele nos remete a Lacan em
sua conceitualização do Desejo, ao dizer “todo discurso é dirigido ao Outro2” (LACAN
apud PRADO, 2013, p. 36). A linguagem, em sua materialidade, torna-se o único lugar
possível de apreensão do mundo. Não há contato direto com o mundo, ele é sempre
mediado pela linguagem. "A criança, quando é convocada pela mãe para o dom, ou
seja, para as relações de objeto, para o amor do outro, sofre uma descompressão
ontológica (...), sendo tragada para dentro da linguagem" (PRADO, 2013, p. 36). Prado
conceitua descompressão ontológica, termo sugerido pelo filósofo Bento Prado
Júnior, em relação a uma mediação que passa a ser o próprio imaginário. Não se
trata mais de uma subjetividade alarmada como essência, mas de uma estrutura. No
caso, há uma convocação em si mesma. Logo, não se faz possível pensar nenhuma
convocação na cena do capitalismo global fora de uma relação diretamente do sujeito
e com o objeto, sendo ela própria o meio. Trata-se de “uma era em que comanda
a superprodução semiótica, ou seja, o imaterial sincretizado, em que busca reduzir
a experiência ao consumo nos textos audioverbovisuais do subsistema hegemônico
mídia-publicidade” (ibid., p. 36). Apenas para ser minimamente justo, pode-se pensar
na fruição estética como uma forma de escape à relação sujeito e objeto na cena do
capitalismo tardio. Algo que relacionaremos ao filme tratado neste artigo.
Localiza-se a partir dessa estrutura convocatória o que se apresenta em relação
ao discurso da imagem e é observado nos jovens da cidade de Jefferson na capa da
revista Time, nos telejornais e em contraponto com o filme Elefante. Não se trata de
dizer que há apenas um engate discursivo de um público frente a materialidades.
Isso levaria a pensar, não de forma equivocada, que um público mais conservador
se identifica com o que nos mostrou a mídia hegemônica. Um público progressista
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reconheceria o filme de Gus Van Sant como uma leitura mais propositiva. Essa visão
realinharia as paridades no discurso, como se houvesse relação de igualdade entre
um e outro. Portanto, mais do que propor esse caminho, a convocação mostra-se
como uma condição própria do visível. Não podemos ver pela invisibilidade já que a
sua primariedade é a visibilidade. Isso equivale a dizer que a invisibilidade só pode
ser vista pela visibilidade.

2 Outra ressalva importante é em relação ao conceito de Outro para a psicanálise em Lacan, e o que
se empreende para dizer do visível. Não são termologias muito distantes, ao contrário, sendo possível cons-
truir laços conceituais entre ambas, mas em Lacan ela diz respeito ao Desejo: "o desejo é sempre o desejo
do Outro (cf. 1962-1963/2004, p. 67). Ou seja, o Outro corresponde a uma autoridade frente ao analisado da
clínica.

125
Sobre isso, Prado apresenta uma questão trazida tanto em Agamben3 quanto em
Žižek referindo-se a algo presente na vida política desde a modernidade. Em relação
4

ao primeiro autor, o sujeito excluído é inserido como exceção a uma ordem simbólica
da cena social e vale somente por uma vida nua, ou seja, uma vida sem função. No
segundo filósofo, aparece a distinção entre os iguais e os diferentes, num certo contexto,
quando ele descreve a falta ou o excesso implicados sempre num universo simbólico.
Esse desequilíbrio produz tanto o efeito de haver muito de alguma coisa como não o
bastante de outra. Se pensarmos no caso de Columbine, o outro, nesse ponto simbólico,
é sempre aquele que não merecia estar vivo, mas está, para a infelicidade dos cidadãos
de bem (que nunca se têm em bastante número). Nota-se claramente esse descompasso
quando olhamos detidamente nos media a construção dos iguais, ou dos mesmos, e dos
diferentes, dos outros. O que se estrutura “a partir de seus discursos modalizadores
biopolíticos” (PRADO, 2013, p. 26).

Discurso modalizador é o que promove uma ação com base nos verbos
modais: poder, querer, dever, fazer, ser. Quando o enunciador dá uma
receita para emagrecer, por exemplo, trata-se de um discurso de dever
fazer para se atingir o corpo modelo/ideal. As modalizações biopolíticas
se referem a projetos de boa vida a partir de modalizações dos analistas
simbólicos, entre os quais jornalistas, médicos e psicólogos (ibid., p. 26;
grifo do autor).

Assim, o capitalismo global ou neoliberalismo, no âmbito da linguagem traz uma


nova injunção do supereu que produz a captura dos indivíduos em “apelos à emoção e à
percepção corporal, construídos pelos analistas simbólicos, especialistas nas tecnologias
discursivas, pois (...) a economia libidinal da pós-modernidade se sustenta no novo modo
de funcionamento do supereu, baseado no imperativo do gozo” (PRADO, 2013, p. 41).
Como se nota nesse trecho, a busca se mobiliza, nesse novo momento, em torno de dois
mecanismos de enorme eficiência: a emoção e o corpo. Não por acaso a questão do gozo
é fundamentada como operante na estrutura do capitalismo global. Não importa tanto a
que o indivíduo se identifica, mas como o faz nos discursos recorrentes visibilizados. O
autor imputa a esse processo uma qualidade do gozo, pois é preciso que os sujeitos em
cena, autorizados, gozem para que o campo social funcione. Dessa forma, entende-se o
gozo como um imperativo pois ele é quem dá a permissão ao ser vivente na cena social
estruturada pelo capitalismo global. Por outro lado, essa estrutura não permite que
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outros modos radicais de estar no mundo sejam sequer considerados ou reconhecidos.


Devem ser expulsos da cena social. Ou seja, “trata-se de um lugar idealizado, projetado
numa certa concepção de vida e do mundo desejado, do corpo próprio” (ibid, p. 10).
A visibilidade, nesse percurso trazido, se torna a partilha de uma identidade ideal.
A constituição de um Eu passa pela hegemonia estética de uma construção social, que
se resume em materialidades, práticas concretas presenciadas em discursos dos media,
como o jornalismo.
Mostram-se mapas rumo ao sucesso, não a sua contraparte em mal-
estar. Isso deve permanecer invisível, junto com a vida e o corpo dos

3 in AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. São Paulo: Boitempo, 2002.
4 in ŽIŽEK, Slavoj. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

126
gordos, dos mulçumanos, dos terroristas, das transexuais, das lésbicas
não consumistas, das ativistas pobres, dos deprimidos e tantos outros.
Com o fim de universalizar o consumo advindo com a sociedade
não repressiva, tal subsistema constrói regimes de visibilidade e de
pseudointeração em que se apresenta somente o lado glamouroso da
arte de se equilibrar num chão movediço, que brilha nos corpos soltos,
bonitos, jovens, rejuvenescidos e turbinados, preocupados em cuidar
da qualidade de vida, da beleza, da saúde e do prazer efêmeros; tais
sentidos de brilho intenso buscam se incorporar nas personalidades
discursivizadas a partir de significantes do sucesso e da riqueza em seus
emblemas (PRADO, 2013, p. 35).

Prado conceitua esse conjunto de práticas, que podemos aqui também nomear
como um dado-a-ver na cena social, como politização. Dentro desse campo político e
estético, portanto, “é preciso deixar de vivenciar essa relação hegemônica ao consumo
como espontânea e ordenadora da forma de vida em que estamos imersos e ligar-nos a
outras formas de existências abstratas em que se rompa essa identidade primária” (ibid.,
p. 33). O autor ressalta ainda um outro aspecto exercido pelas práticas discursivas em
seu modo de estruturar a linguagem: trata-se do cinismo. A crítica, em dado espaço de
construção, carrega consigo o cinismo por desconhecer e desautorizar a sua oposição.
Dessa forma, traduz a verdade como sendo única.

Contra isso, o cinismo hegemônico dirá: essa comunidade externa não


existe, só há o mercado e a economia, pois superamos o perigo dos
totalitarismos e das utopias coletivas. Hoje cada sujeito é impulsionado
a dedicar-se a microuniversos de ideias ligadas a uma estética da vida
(prazer, qualidade de vida, qualidade ambiental, budismo pop, etc.)
guiada pelos programas biopolíticos hegemônicos que circulam nos
espaços midiatizados (ibid., p. 33-34).

Outra questão que se aponta a partir da construção cínica é o da representação


autêntica de algo ou de um fato. O ideal é construído por um universo simbólico que
assume, em parte, o imaginário do Eu. A invisibilidade precisa permanecer lá, escondida,
não estetizada. Pode-se dizer, enfim, que a representação como um ideal a ser alcançado,
compartilhado, não só é impossível na sua gênese, mas também atende às demandas da
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hegemonia e reconstrói o lugar estabelecido, mostrando-se com a face do poder e da


verdade.
Ainda que a representação ideal sempre recaia num lugar de visibilidade e do
que pode ser visto, do dado-a-ver, isso não significa que haja algo que não possa ser
visto, o irrepresentável. Busca-se a partir da crítica em Elefante pensar a noção de
reversibilidade. Portanto, investiga-se em que momentos o filme constrói o lugar do
Outro sem reestabelecer o lugar do Mesmo na hegemonia, sem voltar ao visível já dado.
E, ainda, em que momentos se ocupa de ficar apenas no lugar do Outro, reconhecendo-o,
saindo quase que por completo do lugar do Mesmo. Esses são nortes importantes para
tratar do que se chama de opacidade no discurso cinematográfico, tendo a imagem
como possibilidade crítica.

127
O princípio de partida, como proposto por Ismail Xavier (2008), é de que o cinema
denota um “realismo”, algo do visível, em função do seu movimento no tempo. Ele se
fez num processo de aprimoramento do que havia sido introduzido com a fotografia,
uma baliza estática, mas que já localizava algo da realidade em seu discurso. E colocava
alguns pontos trazidos pela opacidade em seu laço com a transparência. A crítica da
imagem, portanto, funcionará como uma baliza para deter a opacidade como modo de
discursivizar um dado. Não se trata mais de um dado-a-ver, de mediadores na cultura e
dos media, mas de um dado-a-olhar. Ou seja, não diz respeito ao que é visto, mas sim a
como o dado é olhado, encarado, chamado e, parte própria dessa dinâmica, como ele é
narrado. Vale, por fim, pensar como o acontecimento, nessa proposta, não é exatamente
o visível do filme, a sua transparência, mas a sua opacidade.

Olhar a imagem, um olhar na invisibilidade

Dentro dessa perspectiva, a hipótese negativa tende a desoperalizar o registro


discursivo que se constrói como hegemônico na linguagem, ou seja, as convocações
que são visibilizados como verdade. Gus Van Sant busca lançar um olhar a partir desse
modo de ver, saindo do relato meramente descritivo da realidade e do âmbito da
factualidade, o que ele chama de “uma condição dramática”5. A crítica presente neste
artigo se estabelecerá entre aquilo que Pier Paolo Pasolini chamou de semiologia da
verdade e o cinema de fluxo. No caso, tal semiologia é a constituição do próprio cinema
como método, enquanto o cinema de fluxo é uma categoria bastante afeita aos estudos
contemporâneos do cinema. Ao trazer conceitos do dito cinema moderno para o debate
de um modus contemporâneo, no caso, as obras de Gus Van Sant, pretende-se dar conta
do debate sobre o cinema e o olhar como se pretende neste percurso.
O cinema-poesia do cineasta italiano colocava em debate uma saída frente à ideia
de texto. Trazia a questão se o cinema poderia ser visto como texto ou não, pensando nas
categorizações da linguística. Esse é, em outra chave, um modo de encarar a imagem que
edifica uma crítica fundamental, não apenas em matéria de film studies, mas, e sobretudo,
nos estudos da imagem e em seu estatuto cultural. A pergunta que mobiliza boa parte
dessa crítica equivale, em alguma medida, ao pensamento pasoliniano quando deixa de
pensar a imagem como um texto. A dúvida que motivou Pasolini a realizar sua crítica de
cinema não parece mais possível de ser feita considerando o que já foi inserido na história
do pensamento contemporâneo. No entanto, ela ainda é relevante ao restabelecer um
outro lugar que o cineasta considera ser próprio do cinema em suas potências discursivas.
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Vale ainda a pergunta “as imagens comunicam?”. Mais do que assumir as imagens na
linguagem e, com essa afirmativa, entender que elas comunicam, tentaremos evidenciar
em Gus Van Sant a correspondência entre imagens.
Para Pasolini, entretanto, essa ideia não parece tão clara no âmbito do que
nomeou como a escrita do real, o traço, a morte. Em seu método, o cineasta não recusa a
montagem, como quer a modernidade em sua junção entre arte e vida, mas propõe uma
condição mais ampla do que se estabelece como espaço do filme. Observa-se o tecido
discursivo que se insere costurado à manta feita pelos fios da experiência, a linguagem.
Logo, corpos, ações, escolhas, tudo está colocado em decorrência da linguagem.

5 Em entrevista concedida no ano de 2003. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nyy-


COR3kL_g. Acesso em: 27/07/2016.

128
O mundo, desde o início, se dá como linguagem a decifrar e ser
moderno não implica como recusa da montagem em nome do real em
duração da tela (...) mas é nítido que, embora as operações da montagem
marquem a presença de uma subjetividade ordenadora, tal presença
não deve, para Pasolini, dissolver uma “impregnação do mundo” muito
própria à técnica do cinema como “escrita do real” (traço da prosa do
mundo inscrita na película); daí sua resistência ao que considera uma
exacerbação subjetivista encontrada em algumas tendências mais
desconstrutivas do cinema moderno (XAVIER, 1993, p. 103).

Esse trecho de Ismail Xavier mostra de modo bastante apropriado o que pensa
Pasolini sobre o cinema como parte da linguagem, numa busca ontológica que esboça
a crítica dos aspectos de autoria frente ao seu império. Mais do que isso, é possível
estabelecer como o cinema tem potencial de engajamento social, o que, para Pasolini, era
uma questão de responsabilidade e deveria acompanhar o realizador. Não exploraremos
a ideia de um cinema militante em Pasolini, pois o objeto deste estudo não possibilita
essa afirmação, e talvez ela nem seja uma questão de fato. Vale neste momento o retorno à
busca proposta em Pasolini por um estatuto do cinema que esteja ligado à vida vivida, ao
empirismo, à experiência (pensando na gramática da fenomenologia). Uma aproximação
com o objeto mundano é necessária para que dele se consiga exprimir uma narrativa,
um discurso apropriado, “seu empirismo é um corpo a corpo com a vida real” (ibid.):

Pasolini não separou arte e vida. Ancorado na concepção do real como


linguagem, foi herético por que tal identidade não a pensou nos termos
de um espelhamento lógico – homologias dos sistemas, encaixe de
peças descarnadas – mas a pensou como combate pelo qual o artista
compromete, instalado no terreno da luta, toda a sua experiência,
exigindo de si mesmo a coerência dos sinais que emite, pela presença
corporal do mundo, pelo cinema que produz, pela “linguagem em ação”
(XAVIER, 1993, p. 104).

Favorece esta proposta pensar como a questão da experiência em Pasolini


pode ser justificada dentro de uma compreensão mais ampla. Mais do que imaginar
o realizador como um sujeito da dialética hegeliana, respondendo ao primado da
consciência, pretende-se reconhecê-lo como um sujeito forjado no mal-estar e barrado
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pela linguagem, como pretende a tradição psicanalítica. Ou seja, o sujeito descende de


um olhar inconsciente, de um chamamento para uma outra cena. E, nesse sentido, tal
cena pode ser a militância que marca Pasolini, ou a abstração distanciada da câmera
de Gus Van Sant em Elefante. Ela revela a presença desse olhar do sujeito da falta. E,
entre outras demandas, um escape do sujeito ao imperativo do gozo do visível, como já
trabalhado neste artigo.
Uma função muito atribuída à contemporaneidade do cinema é a ideia de
fluxo e ela pode ser uma chave para pensar a questão do olhar no filme a ser analisado.
Elefante é todo constituído por uma câmera que observa as personagens postas em cena.
Nunca está no lugar de uma delas, mas opera em um movimento aproximado ao objeto
filmado, os corpos. Sua narrativa compreende uma tentativa plena de realidade e uma

129
ausência de construção performativa clara das personagens, colocando-as sempre
em ambiguidade. Não é possível, então, justificar uma dramatização atribuída a
esse movimento, nem mesmo o realismo, já que não se encontra os traços clássicos
desse modo. Dessa forma, é interessante apresentar alguns detalhes do filme e assim
responder à hipótese de que a demanda é um chamamento do qual Gus Van Sant
se aproxima, encara e narrativiza. A aproximação é com o olhar do Outro em igual
medida ao Mesmo para então localizar uma espacialidade e uma temporalidade.
Oliveira Junior (2010) acredita que a grande questão no filme é sua dimensão tempo
e espaço.

Em Elefante, a questão será: como reconstruir um evento


traumático (o massacre de Columbine) senão assumindo
que ele é inexplicável e inesgotável em sua causualidade
tão múltipla quanto desconhecida, e que tentar explicar o
evento parece menos urgente e viável do que acompanhar as
consequências de deslocamento nas novas relações de espaço
e tempo a ele associadas? (OLIVEIRA JUNIOR, 2010, p. 142).

Diante disso, é possível considerar um caminho na teoria do cinema


contemporâneo como parte desse contrato. O cinema ou a estética de fluxo, como
a nomeia Stéphane Bouquet6, corresponde a uma quebra da mise-èn-scene clássica,
em que o filme se apresenta como tal ao espectador. Observa-se desde a marcação
de planos, a presença no estúdio, da trilha, a atuação das personagens, entre outros
atributos que correspondem ao cinema como prática da modernidade. No dito cinema
contemporâneo, identificado com o uso da estética de fluxo, haveria a necessidade de
se mostrar mais do que o enquadramento, do que o plano. A ideia é trazer o aparato
cinematográfico e, entendemos, a imagem para o centro da questão. No caso do
filme Elefante, uma câmera observa as personagens e as acompanha. Mas os planos
também se invertem para apresentar os distintos corpos, em várias perspectivas. Há
uma cena, por exemplo, que é mostrada três vezes, em três perspectivas distintas, a
partir da história de três personagens com narrações que se equivalem nesse olhar
(Fig. 3, Fig. 4 e Fig.5).
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Fig. 3 – Ponto de vista (I). Fig. 4 - Ponto de vista (II).

6 Cf. “Plan contre flux”. In: Cahiers du cinéma, n°566.

130

Fig. 5 - Ponto de vista (III).

Percebe-se, nessas imagens, o distanciamento entre a câmera, o olho, os corpos


e as personagens no âmbito aparato cinematográfico. Em igual medida, é estabelecida
uma aproximação em relação ao olhar de cada uma das personagens e distinções entre
eles, entre o estar naquele espaço e em seu tempo. Há um jogo em relação ao tempo, já
que na narrativa do filme as imagens são apresentadas em momentos distintos, como
se aquele momento retornasse sempre àquele lugar e fossem eles, tempo e espaço, uma
coisa apenas. Trata-se de um traço relacional entre os corpos. Dessa forma, o filme e Van
Sant extinguem o realismo e a dramatização, despolitizando-a em sentido hegemônico
e conduzindo a um outro registro político em construção no filme

(...) um dispositivo que converte lugares e ações em puros


deslizamentos de espaço-tempo: montado o dispositivo e assegurada
a correspondência plástico-conceitual da obra, o espaço e a ação se
constroem na sua continuidade mesma, por topologia e por passagem
de forças (...). A violência se imiscui nessa dinâmica, se automatiza
em sua face neutra, é imanente à estrutura. A montagem desregula
o sistema causa-consequência de modo a garantir que nenhuma das
ações violentas se articule efetivamente a um motivo. A dramatização
não tem mais lugar (OLIVEIRA JUNIOR, 2010, p. 143).

A intensidade de Gus Van Sant, no seu encontro traumático, pode ser percebida
apenas pelo excesso e pela abstração do aparato, pois só assim se reverbera em
consciência. Pode-se dizer isso com base em entrevistas de seu realizador à época
do lançamento do filme. Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, em
2004, Elefante ganhou muita atenção da crítica e, por essa razão, estampou algumas
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manchetes.
Isso se deveu sobretudo por ser um cinema que poderia ter associação direta,
para certa crítica, a Van Sant representado num traço da autoria. Ele menciona, por
exemplo, que sua intenção era “falar o que está por trás disso, em uma reação contra o
jornalismo”7. Ele não esperava chegar em respostas, mas apresentar uma abertura, uma
verdade dentre várias. Comenta, ainda, que o título do filme responde a um elefante
gigantesco que é o sistema educacional nos Estados Unidos8. Alguns desses enunciados
dizem respeito ao olhar empreendido em narrativa, o que consideramos aqui uma
entrada, um espaço amplo, um excesso. O realizador parece querer chegar ao limite

7 Cf. http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR60541-6011,00.html.
8 Mais do que isso, a imagem do elefante que ninguém vê seria o próprio cotidiano em sua armação lógica,
inserido no visível que a linguagem autoriza?

131
para tentar nos mostrar algo a mais.
O filme tem seu início com o céu (Fig. 6), sem muitas nuvens, aberto sob
aquele lugar, aquele tempo, e se encerra da mesma forma (Fig. 7), sem que haja outra
condição prévia à narrativa do que o aceite. Ele apenas se encontra lá, oferecendo
um certo enquadramento das relações. A abertura é o próprio céu, aberto, amplo.
Ele não é atuante, parte decisiva da narrativa, assim como o aparato cinematográfico
visto em Elefante. Não incidem determinações sob os corpos, que estão apenas
localizados nessa espacialidade e temporalidade.

Fig. 6 – Céu que abre o filme. Fig. 7 – Céu que fecha o filme.

O mesmo, a abstração e o excesso, dá-se em relação às marcas da


produção. Uma delas nos leva às personagens em Elefante, descritas e construídas
a partir de relatos dos alunos do colegial norte-americano. Alguns desses alunos e
alunas são as próprias personagens em cena, não necessariamente atuando como si
mesmas, mas como parte da cena que Van Sant pretende apresentar. Não é o mesmo
que afirmar, em função disso, ter havido uma busca pela referencialidade ou pela
realidade na obra. Para-além, trata-se de uma abertura similar ao método referido
anteriormente do olhar como fenomenologia: existe uma aproximação com o objeto
(corpo e espírito), uma tradução à consciência e um distanciamento para assim
narrar. Em outras bases, é a dinâmica arte e vida antes referida e que se encaixa
na estética relacional do contemporâneo. Essa ideia contribui para identificar, mais
uma vez, o excesso traduzido pelo corpo-a-corpo com o objeto mostrado9. Não se
pode pensar, entretanto, que há um mundo ideal, sem a mediação de um momento
anterior. Mas há a possibilidade de pensar uma abertura que transcreva uma relação
sensível com o mundo e altere seu estatuto, altere o que podemos nomear como
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hegemônico. Sem partirmos de um essencialismo, mas sim da enunciação – lugar


onde o sujeito está –, essa é a forma encontrada para pensar o deslocamento ou
fruição estética posto em crítica nesse filme.
Gus Van Sant não se aproxima, ainda assim, de uma esfera documental
ou referencial. Sua montagem não oferece apelo ao gênero, logo, há sempre uma
tentativa de sair de um gênero discursivo identificado com a factualidade, tal como
justificou-se em relação ao discurso jornalístico. O excesso de aprisionamento na
9 Logo no prefácio da obra Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty procura resumir o que é a feno-
menologia: “Pode parecer estranho que ainda se precise colocar essa questão meio século depois dos pri-
meiros trabalhos de Husserl (...) é uma filosofia para a qual o mundo já está sempre ‘ali’, antes da reflexão,
como uma presença inalienável, e cujo esforço todo consiste em reencontrar este contato ingênuo com o
mundo, para dar-lhe enfim um estatuto filosófico” (MERLEAU-PONTY, Fenomenologia da percepção.
São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 02).

132
realidade, visto como imanência na estética do fluxo, estabelece-se por meio do próprio
discurso cinematográfico. Na visada aqui referida, tal discurso está na dinâmica do olhar
entre o realizador e o filme como objeto.
Uma declaração de Van Sant durante entrevista10 na época do lançamento do filme
é de que a aproximação com mente dos jovens em cena só se realizaria por meio de uma
ficção. Aqui ele poderia dizer que apenas o cinema, em sua função discursiva, seria capaz
de realizar essa sua vontade. Somente o modo discursivo abriria brecha para a narração
da demanda condicionada do Outro em cena. É interessante pensar ainda que a ideia de
realizar o filme surge a partir do documentário de mesmo título, Elefant (título em inglês),
realizado pela emissora pública do Reino Unido, BBC, em 1989. O documentário remete
à violência entre jovens da Irlanda do Norte. Mas, ainda assim, o filme de Van Sant não se
estabelece nesse vínculo do documental, recaindo na abertura do olhar de um Outro da
imagem apresentado na temporalidade e na espacialidade trazidas pela narrativa.
Poderia ser dito, ainda, que a forma como a narrativa do filme é construída coloca
os espectadores o tempo todo no jogo da ficcionalidade. A câmera cria distância em
relação às personagens, mas o aparato, as imagens, os planos, o fora-de-campo entram
a todo momento aproximando daquele espaço-tempo. Por isso afirmamos que, nesse
filme, a estética do fluxo nos diz do olhar, atravessando o que se poderia pensar como uma
verdade inalienável do real.
O segundo plano é desfocado em vários momentos do enquadramento da imagem,
construindo um fundo chapado, sem profundidade. Ele dá conta dessa estética e de nos
mostrar o tempo e espaço demarcado na imagem, o olhar como forma, como discurso (cf.
Fig. 11, Fig. 12 e Fig. 13).

Fig. 8 – Segundo plano desfocado.


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Fig. 9 – Fundo chapado.

10 Ver mais em Gus Van Sant interview https://www.youtube.com/watch?v=nyyCOR3kL_g. Visto em 02/08/2016.

133
Fig. 10 – Segundo plano desfocado.

A enunciação fílmica se estabelece, portanto, na escola como um lugar de


conflitos velados, de enunciados difusos presentes em cada uma das personagens
e nos contatos entre elas. Não há apenas um confronto, mas muitos, e não existem
prevalências entre as personagens pois Van Sant recusa a performance decisiva,
representacional de qualquer uma delas. A narrativa seria levada, nesse caso, à redução
do gênero discursivo, seja melodrama, ou mesmo o drama. Isso se nota, sobretudo, pelo
discurso da imagem. Em um dado momento, quando a narrativa poderia conduzir a um
suspense – ao clímax do que se poderia chamar clássico –, a montagem nos conduz
ao corte abrupto, impedindo a transferência da identificação com qualquer uma das
personagens em cena. Ainda que se mostrassem em oposição, duas das personagens
morreriam baleadas na cena. Não é permitido, no filme, envolver-se com nenhuma das
personagens na forma do romance clássico: nem com o casal, nem com o assassino, nem
com o filho que enfrenta problemas com o pai alcoólatra. Todas essas representações,
já inesgotavelmente associadas ao drama, são suspensas em Elefante, pois a sua busca é
pela negação do realismo como modo narrativo.
Ainda nessa mesma sequência, que se desenvolve sem associação à anterior –
ela apenas acontece –, a imagem se coloca em distância, dando a amplidão do lugar em
enquadramento. A câmera, durante todo o filme, sempre assegura um lugar coadjuvante
frente aos movimentos dos corpos. Há uma conversa entre amigos e o tiro, disparado
por um deles, acertando o outro de forma inesperada. Ainda que se espere um porvir
frente ao que ocorreu, ele nunca chega. A imagem que se segue é a da personagem
que atirou, sentada. Depois disso, ele caminha ao encontro do casal que se escondia. O
aparato cinematográfico segue seu ritual e, sem intervir, apresenta os corpos em cena.
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Há muitas falas em que a opacidade se manifesta, já que os sons se intensificam


no fora de cena. Parte do aparato cinematográfico se detém na construção mais ampla
da cena e também traduz o percurso narrativo ao se colocar à disposição do Outro,
da invisibilidade. Estabelece-se uma busca pelo Outro na cena social como forma de
igualá-lo ao Mesmo.

A reversibilidade do Real

A questão que sobressai em toda a narrativa do filme, já buscada aqui em outros


momentos, é o lugar do jovem dentro de uma relação com a própria vida. Como
poderíamos dizer após esse caminho traçado, trata-se de um discurso sobre a vida.
Portanto, o enfrentamento em relação à normatividade da vida, da qual o discurso

134
jornalístico é parte, mostra-se válido não só na fala do realizador, mas também no
olhar empreendido como construção fílmica, aquilo que consideramos o discurso
cinematográfico. O corpo do jovem tem uma inscrição clara ao ser localizado como
monstro num determinado momento e, na outra ponta, como o natural a ser endossado.
Isso é o que fazem as narrativas do cotidiano do qual o filme tenta claramente escapar.
No processo de deslocamento estético do filme encontra-se a presença de um corpo
suspenso, abstrato, sem definições claras. Encontra-se, ainda, um semblante que se
estabelece em outras possibilidades de representação, a máscara que se coloca na
visibilidade. Estamos, portanto, diante da reversibilidade do Real, diante do próprio
semblante, pensando na conceituação de Alain Badiou (2007).
Primeiramente, devemos apontar em relação à obra de Badiou que toda ideologia
(verdade) seria uma máscara, um semblante. E, por sua vez, o autor diria a partir de
um Real, de uma Verdade: “O poder da ideologia é apenas o do Real, na medida em
que ela transita nesse desconhecimento” (BADIOU, 2007, p. 83). Na teorização do olhar
empreendida até o momento, o desconhecimento seria o encontro faltoso. No caso de
Van Sant, ele se faz notar como sintoma no excesso de realidade que a narrativa propõe
a todo momento. Considerar sobre o ponto entre a paixão pelo Real e a montagem do
semblante faz pensar no retorno do Real que se estabelece no campo estético. Ele apenas
nos traz rastros, pistas, nunca o Real em si11. O semblante, por sua vez, pode ser entendido
como esse retorno à linguagem, ao espaço de dizer, após o encontro com a falta. Diz
Badiou, em relação ao sintoma, que “Lacan tornou esse aspecto particularmente claro
ao mostrar que o Eu [Moi] é construção imaginária” (idem).

O sistema real das pulsões não é legível nessa construção, a não


ser mediante o percurso de todas as espécies de descentramento
e transformações. A palavra "inconsciente" designa precisamente
o conjunto das operações pelas quais o Real do sujeito não é
conscientemente acessível, a não ser na construção íntima do
Eu [Moi]. Nesse sentido, a psicologia da consciência é ideologia
pessoal, o que Lacan nomeia como “o mito individual do
neurótico”. Existe uma função de desconhecimento que faz com
que o abrupto do Real opere apenas em ficções, montagens,
máscaras (BADIOU, 2007, p. 83, grifo do autor).
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O que Gus Van Sant nos apresenta em Elefante, com seu escape da normatividade,
seriam evidências dentro da condição primária de um encontro faltoso do trauma. Isso
ser verifica tanto no distanciamento em relação à mise-èn-scene, como a conhecemos em
sua forma clássica e na consequente opção por uma estética do fluxo, quanto por fazer
dos relatos dos próprios jovens da cena do colegial norte-americano peça construtiva,
ferramenta das personagens. Haveria também uma inquietação em função da uma
impossibilidade de tornar o Outro visível, ou ainda, em ser o Outro. Essa inquietação diz
respeito à falta, em seu semblante. É evidente que o realizador não alcança seu objeto
impossível, mas se autodenuncia em um caminho.
11 Lembrando que na topologia lacaniana, do Real, do Simbólico e do Imaginário, o Real nunca pode
ser mostrado, sendo ele uma experiência traumática impossível de ser encarada, como a da própria morte. Só
conseguimos notá-lo, portanto, por meio do semblante, de rastros e pistas.

135
Badiou indica que essa pode ser uma chave para pensar as vanguardas da arte no
século XX: “Pensado como implementação pelo semblante de sua própria distância do
Real, o distanciamento pode ter tido axioma da arte no século (...). Trata-se de fazer ficção
do poder da ficção, de ter como Real a eficácia do semblante” (BADIOU, 2007, p. 83-84).
Van Sant não está exatamente identificado com a arte do século XX da qual o filósofo
francês faz referência, e nem mesmo com a vanguarda do discurso estético, que é a outra
possibilidade relatada por Badiou. Entretanto, como já refletimos anteriormente, há em
Elefante um distanciamento da factualidade. O deslocamento estético, ou seja, do olhar,
estaria em relação equidistante com as narrações do fato das quais diversos discursos
se apropriam, como o jornalístico. Gus Van Sant e o filme, em sua autonomia discursiva,
deixam bastante claro que se trata de uma verdade entre muitas. Demonstram também
o desejo em ser uma ficção sobre o acontecimento, de realizar na ficcionalidade sua
apresentação da juventude escolar nos Estados Unidos. Referenciando diretamente o
que nos apresentou Badiou, trata-se do semblante (ficção, montagem) nesse modo de
reversibilidade do Real.
O filme deixa claro a ficcionalidade como caminho para esse desejo, ainda que
busque a impossibilidade da representação do Outro como marca de seu processo e de
seu excesso de realidade. Ele nos faz pensar que o olho é, em seu grau zero, inscrição
discursiva, já que as narrativas da realidade, dentre as quais consideramos o discurso
jornalístico, são igualmente ficções. Elas o são ainda que não se assumam assim nem em
seu cinismo. A realidade é imaginária, como persiste Lacan. Mais do que um conhecimento
do outro, o semblante em sua ficcionalidade é uma identificação. O discurso da arte em
suas possibilidades estéticas parece dizer sobre si, nesse contato com a ausência do Real,
que poderia ser traduzido como angústia, e em sua narrativização, como semblante.
Portanto, mais do que um dizer sobre o Outro, é uma representação do outro imaginário.
Trata-se da paixão como o movente das verdades do mundo, dos saberes suspensos.

Bibliografia
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BADIOU, Alain. O Século. Aparecida: Ideias & Letras, 2007.
BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica,
2015.
ELIAS, N.; SCOTSON, J. L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
FOSTER, Hal. O retorno do Real. São Paulo: CosacNaify, 2014.
OLIVEIRA JUNIOR, L. C. G. O cinema de fluxo e a mise en scène. 2010. Dissertação
ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

(Mestrado em Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São


Paulo, São Paulo. 2010.
PRADO, J. L. A. Convocações nas revistas e construção do a mais nos dispositivos
midiáticos. MATRIZes, São Paulo, Vol. 3, No.2, p. 63-78, 2010.
______________. Convocações biopolíticas dos dispositivos comunicacionais. São
Paulo: EDUC, 2013.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
_______________. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
SOARES, Rosana de Lima.   Realismos audiovisuais: visibilidades intertextuais em
documentários televisivos. Doc On-Line: revista digital de cinema documentário,
Campinas, Vol.18, p. 216-240, 2015.
SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.

136
SODRÉ, Muniz. A narração do fato: notas por uma teoria do acontecimento. Petrópolis:
Vozes, 2012.
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo:
Paz e Terra, 2008.

Filmografia
ELEFANTE. Direção: Gus Van Sant: HBO Films, 2003. 1 DVD (81 min), NTSC, color.
Título original: Elephant.

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137
PERDIDOS E MALDITOS:
POLÍTICA, PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA E MEMÓRIA
Autora: Daniela Giovana Siqueira
Orientador: Eduardo Morettin
Nível: Doutorado
Bolsista: FAPESP

R esumo
Este texto reflete as bases de meu projeto de pesquisa, que se propõe a estudar quatro
filmes produzidos por cineastas do Estado de Minas Gerais entre os anos de 1968 e
1972, abordando para isso as relações entre análise fílmica e pesquisa histórica. O ob-
jetivo principal é o de perceber o lugar ocupado por esses filmes no debate cultural da
época e, sobretudo, como essas obras expõem a subjetividade política de seus direto-
res conformando, assim, uma cena de dissenso. Para alcançar seu propósito, esta pro-
posta toma por base de análise os filmes A Vida Provisória, de Maurício Gomes Leite
(1968); Crioulo Doido, de Carlos Alberto Prates Correia (1970); Perdidos e Malditos, de
Geraldo Veloso (1970) e O Homem do Corpo Fechado, de Schubert Magalhães (1972).

Palavras-chave: história do cinema brasileiro, crítica cinematográfica, cineclubismo

O Brasil aprendeu a conhecer o seu cinema por meio de um trabalho histórico


que elegeu o eixo Rio de Janeiro-São Paulo como expressão do nacional, legando para
os demais estados do país a ‘designação’de regional. Sobre o conjunto conhecido
da produção brasileira, o trabalho historiográfico estabeleceu parâmetros políticos
e estéticos, operou recortes, delineou percursos. Um esforço que trouxe várias
conquistas. Contudo, ainda é preciso ampliar o espectro conhecido da produção
cinematográfica, identificando por meio de pesquisas, filmes feitos nas mais diferentes
localidades do continental território brasileiro.

Cineclubismo
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O Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais (CEC) foi fundado


por jornalistas e críticos de cinema. A ata da primeira reunião, realizada em 15 de
setembro de 1951, traçava com clareza o tom das atividades a serem realizadas
pelo grupo: exibição regular de filmes aos sábados, promoção de debates sobre os
principais filmes em cartaz e oferta de cursos de iniciação e extensão cinematográfica
que acabaram contribuindo para a formação de parte considerável da crítica de
cinema em Belo Horizonte nas décadas de 1950 e 1960.
As sessões de sábado ocorriam mediante parceria em diferentes salas
exibidoras. Seguiam um ritual sagrado: apresentação do filme; exibição; e debate
entre os críticos, sócios e espectadores. Discussões que continuavam noite adentro

138
pelos bares do Edifício Maletta, reduto da boemia de esquerda, no centro da Capital.
Em meados dos anos 60, instaura-se uma polêmica geracional dentro do
cineclube do CEC, sobre a necessidade ou não de se realizar filmes. De um lado, o grupo
dos fundadores capitaneados por Cyro Siqueira, árduos defensores do rigor da crítica.
De outro, uma segunda geração de cineclubistas, cada vez mais excitada pelo desejo de
produção, da qual fazem parte os cinco diretores que serão aqui citados.

A crítica cinematográfica

Um dos marcos da história da crítica de cinema no Brasil, a Revista de Cinema


nasceu em 1954, como consequência das efervescentes atividades do CEC. A necessidade
de expressar um trabalho de crítica menos ligeira que a veiculada pelos jornais diários,
fomentou a criação do periódico que se dedicou a um texto de refinado apuro teórico-
crítico, reconhecido internacionalmente, por nomes como Giulio Cesare Castello,
que em 1960 era titular da cadeira de crítica cinematográfica, do importante Centro
Seperimentaledi Cinematografia em Cineccità, Roma.
Apontada pelo pesquisador Ismail Xavier como um elo essencial da crítica
brasileira, a revista circulou entre os anos de 1954-1957 e de 1961 a 1964, tendo
produzido 29 edições. A perspectiva era nacional, pois seus criadores ressentiam-se
de uma publicação mais profunda na abordagem cinematográfica, capaz de fortalecer
o movimento crítico no Brasil. O cineasta Glauber Rocha, em sua fase como crítico de
cinema, escreveu que, na publicação mineira, “convergiam Hollywood, neorrealismo,
Nouvelle Vague e o cinema pré-grande Segunda Guerra. Era a única e melhor revista
de cinema do Terceiro Mundo, tão boa quanto as melhores revistas mundiais”. Para o
ensaísta Newton Silva a revista era “um documento do pensar brasileiro sobre o cinema,
na década de 50, ampliado e amadurecido na década de 1960”. (MIRANDA e CICCARINI,
2014, p. 10)
Os quatro filmes que configuram o conjunto documental dessa pesquisa e que
dão base para nossa proposta de discussão são obras que foram produzidas sob o período
ditatorial militar no Brasil e representam a primeira experiência de seus diretores com a
realização de um longa-metragem.
Durante quase cinquenta anos esses filmes não tiveram presença registrada pela
historiografia do cinema brasileiro. Trazê-los à discussão neste momento cumpre com
um exercício de memória. Um combate ao esquecimento programado de obras que
viveram em sua própria “pele”, ou seja, na superfície de sua película cinematográfica, a
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ação perversa da cadeia produtiva do cinema.


No filme A Vida Provisória (1968), o diretor Maurício Gomes Leite também assina
o argumento e o roteiro que foi filmado no Rio de Janeiro, tendo sido produzido por
Luiz Carlos Barreto. No drama político, tudo se passa em torno de um dia na vida de um
jornalista. Duas surpresas solicitam-no com a mesma intensidade para direções diversas:
uma, a partida da mulher que ama com o marido diplomata; outra, um acontecimento
político que transforma o jornalista em peça importante para os destinos do país, que
vivia a eminência de um golpe militar. Amigo de um influente político, o personagem
principal recebe deste a incumbência de levar documentos confidenciais do Rio de
Janeiro para Brasília, sem, contudo, obter êxito na tarefa, morrendo ao final, vítima de
um espancamento.

139
No mundo caótico do personagem, não há lugar para paz, uma vida normal, a não
ser pela fuga. Tudo está, irremediavelmente, sob o signo do provisório. Sobre seu filme,
Maurício Gomes Leite afirmou: “(...) é uma crítica filmada ou um documento sobre as
obsessões políticas, estéticas e particulares de seu autor”. (LEITE, 1975, s.p)
Morando em Belo Horizonte, o diretor Carlos Alberto Prates Correia realiza em
1970 o filme Crioulo Doido, portanto, um ano antes da explosão do cinema black norte-
americano com diretores como Spike Lee e Melvin Van Peebles a frente do movimento
Blaxploitation. Carlos Prates Correia elege como protagonista um negro em ascensão
social, mostrando sua entrada no circuito econômico de uma cidade. De único costureiro
a patrão e proprietário da mais moderna alfaiataria. O casamento com a moça branca
interesseira. A compra de terras que lhe confere o título de fazendeiro. A posição como
principal agiota da cidade. Como afirma Antonio Paiva Filho (2004, p. 72) “provocação
demais, até hoje, para o racismo que vigora no país”. Um filme de humor contido, amargo,
sem respeito a conveniências.
Perdidos e Malditos, lançado em 1970 é definido pelo diretor Geraldo Veloso como
um filme minimal, de história bastante longa. O filme foi rodado em preto e branco,
em bitola 16 mm, numa relação de quase um plano filmado para um plano montado.
É marcado formalmente pelo uso de 25 planos-sequência e transforma a exaustiva
economia em um registro da dilatação do tempo. Para Ruy Gardnier:

a lógica expressiva de Geraldo Veloso em Perdidos e Malditos é a dissecação


da vida social burguesa, continuamente moldada por poses mais do que
gestos, e a instauração de um plano existencial para além da vida ordinária,
no qual o que conta não é uma reputação, mas as contínuas experiências
que a sociedade repugna: amor livre, drogas, feitiçaria, escatologia...
(GARDNIER, 2004, p.82)

Filmado em quatro dias em meio a locações cedidas por conhecidos e com


uma equipe formada por técnicos e atores amigos, os 75 minutos de narrativa deixam
transparecer também um registro sobre o fazer cinema independente no Brasil naquele
momento.
O último filme desse conjunto documental é O Homem do Corpo Fechado de
Schubert Magalhães de 1972, que conta a história do vaqueiro João de Deus, que depois de
tentar viver pacatamente e sempre sair perdendo, aceita reverter o jogo. O avô Cansanção
‘fecha’seu corpo e ele se emprega como jagunço do Coronel Trajano. Após um serviço
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para o coronel, João de Deus apaixona-se por Dinorá, sobrinha do fazendeiro. Raptando-a
certa noite, eles fogem para o norte do sertão, dando início a uma caçada empreendida
pelo Coronel Trajano ao casal, que vai ocupar toda a segunda metade da trama.
A direção já demostra o somatório das experiências cinematográficas de Schubert
credenciando suas escolhas como a de trazer para o universo místico de Guimarães Rosa
– um dos maiores escritores brasileiros - o desenvolvimento dos conflitos à moda do
Western hollywoodiano com muitas cavalgadas, lutas corporais e duelos.
A aproximação com o gênero Western e a filmagem em cores referendam
preocupações do diretor em fazer um produto mais palatável para o espectador médio da
época. O uso da cor com esse fim está intimamente associado ao movimento que buscou
aliar proposta cultural ideológica com penetração junto a um público mais amplo,

140
caracterizando boa parte do cinema brasileiro no final da década de 60, a exemplo do
sucesso de bilheteria do ano de 1969, o filme Macunaíma, do cineasta Joaquim Pedro de
Andrade.
O princípio metodológico desta pesquisa é o de mobilizar a teoria em função
dos objetos, dando ênfase às respostas que os filmes fornecem às questões da época,
não promovendo com isso divisões estanques, primeiro o contexto e a teoria e depois a
análise das obras. Assim, as pontuações narrativas, estéticas e históricas levantadas pelo
método da análise fílmica iluminam a perspectiva teórica que nos orienta.
Para isso propomos uma aproximação com os escritos de Jacques Rancière
(2006, p. 75) que afirma “o trabalho essencial da política é a configuração de seu próprio
espaço. É fazer ver o mundo dos sujeitos e suas próprias operações. A essência da política
é a manifestação do dissenso, como presença de dois mundos em um só”.
As trajetórias dessas cinco obras são marcadas pela perversão histórica da
cadeia produtiva do cinema no Brasil, que também se verifica na América Latina, que
fez com que esses filmes experimentassem uma difícil fase de captação de recursos para
serem produzidos, passassem por um sistema excludente de distribuição, perdendo em
exibição, e, por fim, fossem preservados em condições adversas. Esse caminho impede o
exercício pleno da política como pensada por Rancière, pois não permite a coexistência
de dois mundos na partilha do mercado cinematográfico, que ainda se efetiva pela
lógica hegemônica internacional.
Essa perversão não é um privilégio deste conjunto, mas o que este trabalho
quer ressaltar é que passado o tempo de produção e exibição de um filme, a construção
historiográfica passa a ser o novo terreno a ser considerado para o exercício da
política. No caso brasileiro, a historiografia tradicional elegeu seus filmes para debate,
privilegiando uma produção centrada no eixo Rio de Janeiro-São Paulo e dividindo
as décadas de 1960 e 1970 unicamente entre escolhas de produção político-estéticas
opositoras: o Cinema Novo e o Cinema Marginal.
Em uma leitura histórica, ao se referir a esses dois troncos, Jean-Claude Bernardet
afirma:
Eles têm razão de ser, pois refletem polêmicas da época. Mas acredito
que são recortes hoje ultrapassados e que, em vez de enriquecer a nossa
compreensão dos filmes, a embotam. (...) É como se não conseguíssemos
pensar fora desse sistema de categorias. Tal sistema tem o efeito
de promover semelhanças e afinidades entre filmes e diretores, em
detrimento de diferenças e particularidades e também de outras
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afinidades. A perda é evidente, para os filmes e para nós. (BERNARDET,


2004, p. 12)

Nosso esforço tem sido o de identificar esses filmes por eles mesmos, a partir do
que trazem como resultado da subjetivação de seus realizadores, num respeito primeiro
à obra, percebendo por meio de uma análise estética e narrativa como eles se enunciaram
em seu tempo e espaço. Ajudando a compor, no presente, uma história geograficamente
mais ampla do cinema brasileiro, debatendo com isso o lugar do chamado regional
dentro do que se convencionou chamar de cinema nacional no Brasil.
Um trabalho de pesquisa que se propõe estar na contramão do esquecimento,
facultando a presença desses títulos na política, abrindo-se para a perspectiva do
dissenso.
Para Jacques Rancière:

o dissenso político não é uma discussão entre pessoas falantes que irão

141
confrontar seus interesses e valores. É um conflito sobre quem fala e
quem não fala, sobre o que tem que ser ouvido como voz de dor ou
sofrimento e o que tem que ser ouvido como argumento sobre justiça.
(RANCIÈRE, 2001, p.2)

Afirmamos que a historiografia é, portanto, um terreno possível para identificar


os que falam e os que não falam na História, verificando com isso os esquecimentos da
memória. Pois, como nos lembra Forastieri da Silva (2001, p. 26), “podemos considerar o
estudo historiográfico como o estudo da história dos escritos historiográficos, métodos,
interpretações e as respectivas controvérsias”.
No entanto, gostaria de completar o raciocínio sobre os esquecimentos
historiográficos ressaltando que esta pesquisa só pode ser realizada, a partir do conjunto
fílmico que lhes apresento, pois os títulos sobreviveram à ação do tempo, conservando-
se a despeito da precária manutenção dispensada a eles ao longo dos anos.
Ao estabelecer filmes como fonte primária, torna-se imperativo o acesso à
obra, caso contrário, o método da análise fílmica fica impossibilitado de ser exercido.
Perde-se com isso, o que “bate na tela”, ou seja, as imagens e os sons gerados pela ação
cinematográfica.
Assim, defendemos a importância das pesquisas sobre cinema refletirem sobre o
estado dos objetos que suportam fisicamente as obras que são trabalhadas. Um filme é
uma obra que necessita de um suporte material para existir. Quando essa base material
se desfaz, junto com ela desfaz-se também os sons e as imagens, abrindo espaço para
mais uma camada de esquecimento.
A atenção que dispensamos à preservação audiovisual enriquece nossa relação
com a cultura cinematográfica e torna possível a ampliação do contato de nossa
sociedade com os registros gerados por ela ao longo do tempo. Pois, afinal, que tipo de
memória está sendo socialmente construída para o futuro?
Nossas pesquisas podem ampliar o conhecimento historiográfico sobre o cinema
que é produzido no Brasil. Que elas possam se voltar ao esforço de construção de uma
sociedade mais forte, porque mais conhecedora de si mesma.

Bibliografia
BERNARDET, Jean-Claude. “Cinema Marginal?” In: PUPPO, Eugênio. Cinema marginal
brasileiro e suas fronteiras: filmes produzidos nos anos 60 e 70. São Paulo: Heco Produções,
ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

2004.
GARDNIER, Ruy. “Perdidos e Malditos”. In: PUPPO, Eugênio. Cinema marginal
brasileiro e suas fronteiras: filmes produzidos nos anos 60 e 70. São Paulo: Heco
Produções, 2004.
LEITE, Maurício Gomes. “A vida provisória ou a crítica filmada”. Jornal de Brasília,
Brasília, s.n, 14 de agosto de 1975.
MIRANDA, Marcelo e CICCARINI, Rafael. (org.). Revista de Cinema: antologia,
volumes 1 e 2. Rio de Janeiro: Azougue, 2014.
PAIVA FILHO, Antonio. “Crioulo Doido”. In: PUPPO, Eugênio. Cinema marginal
brasileiro e suas fronteiras: filmes produzidos nos anos 60 e 70. São Paulo: Heco
Produções, 2004.
RANCIÈRE, Jacques. “Ten Theses on Politics”, Theory & Event, v.5, n.3, 2001.

142
_________________. Política, policía, democracia. Santiago: LOM Ediciones,
2006.
SILVA, Rogério Forastieri da. História da historiografia: capítulos para uma história
das histórias da historiografia. Bauru: Edusc, 2001.

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143
>
O
FAZER
CINEMATOGRÁFICO
<
O FALSO “ FOUND FOOTAGE ” DE HORROR:
UMA DESAMBIGUAÇÃO NECESSÁRIA

Autor: Marcos Leandro Kurtinaitis Fernandes


Orientadora: Maria Dora Mourão
Nível: Doutorado

R esumo
Abordando uma tendência estilística bastante presente no cinema fantástico da últi-
ma década e meia, aquela dos filmes com aparência documental erroneamente desig-
nados found footage horror, o artigo se propõe a apontar a impropriedade deste uso,
explicitando irreconciliáveis diferenças entre filmes desse tipo e aqueles que efetiva-
mente se configuram como filmes de found footage, buscando situar de forma mais
precisa tais obras no campo da teoria e crítica do cinema de horror, da paródia e do
pseudodocumentário. O artigo ainda explora a hipótese de existir, de fato, um cinema
de horror de found footage, conjecturando sobre quais obras mereceriam esta clas-
sificação e em que medida ela se articularia com nossa pesquisa mais ampla sobre o
cinema de apropriação e montagem em geral.

palavras - chave
gêneros cinematográficos; found footage; terror; pseudodocumentário

Uma das tendências estilísticas e formais mais prolíficas, culturalmente


relevantes e comercialmente bem-sucedidas do cinema fantástico da última década
e meia é, sem dúvida alguma, a daqueles filmes com aparência documental ou de
realização caseira, amadora, que se tornaram erroneamente conhecidos pela expressão
found footage horror, mas que também têm sido chamados, mais apropriadamente,
de horror mockumentaries (RHODES, 2002) ou verité horror and sf (GRANT, 2013).
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Em artigo sobre os dois primeiros filmes da série Atividade Paranormal (Paranormal


Activity, Oren Peli, 2007; Paranormal Activity 2, Tod Williams, 2010), sucessos da atual
safra de falsos documentários de terror, o teórico David Bordwell, que critica o uso
da expressão found footage aplicada a tais casos por conta da confusão criada por
tal emprego, prefere o termo “discovered footage” (BORDWELL, 2012) para designar
esse recurso narrativo. A troca, porém, de “encontrada” por “descoberta” não tem
maior significância, para além de impedir a confusão com uma técnica (o found
footage autêntico) bem mais antiga e de desenvolvimento totalmente diverso. Rodrigo
Carreiro, por sua vez, acerta ao se referir a esse tipo de filme como “falso found footage”
(CARREIRO, 2013, grifo nosso) e elucida ainda mais a natureza das criações desse tipo
ao defini-las como “falsos documentários de horror codificados como found footage”
(CARREIRO, 2013). Embora neste ensaio essas expressões apareçam mais ou menos

146
como sinônimas, intercambiáveis, parece-nos que se referir a tal conjunto de filmes pela
expressão “falso documentário de horror” ou mockumentary de horror é a forma mais
correta e neutra, como será demonstrado.
A principal característica desses filmes ficcionais de horror realizados com os
recursos do documentário é a construção da narrativa a partir do ponto de vista de
câmeras de vídeo inseridas na própria trama fílmica, expediente a que Laura Cánepa
e Rodrigo Carreiro se referem pela expressão “câmera intradiegética” (CÁNEPA &
CARREIRO, 2014). Como explica Barry Keith Grant em ensaio sobre esse tipo de produção
cinematográfica:
In the recent cycle of what I am calling the verité horror and sf film,
the camera exists within the diegesis, often with much of the story
unfolding in real time, as if it were there recording actual not fictional
events, as in the documentary tradition of cinema verité. This camera,
or cameras, may be wielded by one of the characters (...) or mechanically
operated, [but] (...) it is always diegetically motivated and acknowledged.
(GRANT, 2013, p. 153)

Embora o uso dessa câmera intradiegética não constitua uma novidade em si no


panorama do cinema narrativo ficcional, muito menos a adoção momentânea – ou
mesmo integral, como no film noir A Dama do Lago (Lady in the Lake, Robert Montgomery,
1947) – da visão subjetiva, é uma relativa novidade que o recurso seja empregado por
tantos filmes recentes, em toda sua duração. Principalmente desde a virada do século
XXI e do sucesso mundial de A Bruxa de Blair (The Blair Witch Project, Daniel Myrick e
Eduardo Sánchez, 1999), o recurso à câmera intradiegética se tornou muito mais comum
e frequente do que se poderia esperar, motivando até mesmo a criação deste que agora
pode ser visto tanto como um novo subgênero do cinema de horror quanto como uma
nova forma particular de pseudodocumentários de temática fantástica.
Somente neste último ano, diversas novas produções vieram se somar ao já
volumoso conjunto de filmes de longa-metragem deste subgênero do cinema de horror
– ou gênero adjetivo, conforme terminologia de Rick Altman (ALTMAN, 1999). Uma
rápida pesquisa em torno dos lançamentos cinematográficos de fantasia, horror e ficção-
científica dos últimos doze meses serve como evidência da aparentemente inabalável
vitalidade dessa técnica e seu inesgotável emprego no cinema fantástico atual. Durante
tão curto período, mais de duas dezenas de filmes fantásticos realizados com recurso
à câmera intradiegética foram lançados. Apenas a título de ilustração, dentre os que
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alcançaram alguma repercussão junto ao público, podem ser citados: Pandemic (John
Suits); A Forca (The Gallows, Travis Cluff e Chris Lofing); Wolf House (Ken Cosentino e
Matt D. Lord); The Trick or Treaters (Mike Chester), A Visita (The Visit, M. Night Shyamalan);
O Herdeiro do Diabo (Devil’s Due, Matt Bettinelli-Olpin Tyler Gillett); Infectado (Afflicted,
Derek Lee); Assim na Terra Como no Inferno (As Above, So Below, John Erick Dowdle); The
Taking of Deborah Logan (Adam Robitel); O Último Sacramento (The Sacrament, Ti West);
Abdução (Alien Abduction, Matty Beckerman); Projeto Almanaque (Project Almanac, Dean
Israelite); A Pirâmide (The Pyramid, Grégory Levasseur); A Casa dos Mortos (Demonic, Will
Canon); e Área 51 (Area 51, Oren Peli), além do assumidamente paródico (tanto do cinema
de horror, quanto do filme documentário e até mesmo do próprio suposto found footage)
O Que Fazemos nas Sombras (What We Do in the Shadows, Jemaine Clement e Taika Waititi).
A lista segue com Eles Existem (Exists), incursão do mesmo Eduardo Sánchez de A Bruxa

147
de Blair pela mitologia do Pé-Grande, repetindo a fórmula de seu sucesso de quinze anos
atrás, além de novos capítulos de séries cinematográficas que se valem desse subterfúgio
desde o seu início, tais como: [Rec] 4: Apocalypse (Jaume Balagueró); V/H/S: Viral (Nacho
Vigalondo e outros), terceiro filme de uma série de longas-metragens compostos de
segmentos curtos independentes, de diferentes realizadores, também integralmente
criados a partir de supostas imagens encontradas; e as sexta e sétima (!) partes da saga
Atividade Paranormal: Atividade Paranormal: Marcados pelo Mal (Paranormal Activity:
The Marked Ones, Christopher Landon) e Atividade Paranormal 5: Dimensão Fantasma
(Paranormal Activity: The Ghost Dimension, Gregory Plotkin), que aqui no Brasil recebe
em seu título o numeral que corresponde à sua posição na cronologia central da série,
uma vez que dois dos filmes que a integram são oficialmente considerados uma prequel
e um spin-off dessa narrativa.
O mais recente lançamento do gênero, sintomaticamente, faz da exploração desse
recurso a sua principal razão de ser e o centro de sua campanha publicitária: dirigido
pelo estreante em longas-metragens Steven DeGennaro, chama-se Found Footage 3D (!),
e sua sinopse indica que a trama acompanha amigos cineastas que se dispõem a realizar
o primeiro filme de horror de found footage em terceira dimensão e acabam se tornando
eles mesmos os protagonistas ao serem atacados por uma entidade sobrenatural!
Chama a atenção, também, o fato de que alguns desses filmes mais recentes se inserem
na lógica da circulação de imagens pela internet em redes sociais, ambientando suas
tramas quase totalmente no mundo virtual, caso de Amizade Desfeita (Unfriended,
Leo Gabriadze), em que, durante toda a duração do filme, assistimos a uma tela de
computador, com todos os personagens interagindo e toda a ação sendo representada
em janelas de chats e de websites, e The Den (Zachary Donohue), em que a maior parte
das cenas colocadas na tela teria sido supostamente retirada de web cams e câmeras de
telefone celular. Embora o fenômeno claramente seja predominante no cinema norte-
americano, alguns desses filmes de horror de falso found footage que conquistaram
lançamento internacional nos últimos meses já têm sido produzidos em países com
bem menos tradição no cinema fantástico, caso do egípcio Warda (Hadi El Bagoury) e do
romeno Be My Cat: A Film for Anne (Adrian Tofei). Aparentemente, esta tendência está
vinculada de maneira intrínseca ao zeitgeist e não dá sinais de que arrefecerá tão cedo...
Independentemente da qualidade estética – geralmente baixa – dessas obras
e de sua contribuição ao cânone do gênero de horror e mesmo ao deste subgênero
de falso found footage de terror, a mera quantidade delas produzida em tão pouco
tempo já é suficiente para suscitar indagações a respeito da persistência e relevância
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dessa tendência tão recente. Aproveitando, portanto, que este último ano viu surgir
nova leva expressiva de falsos documentários de horror, fantasia e ficção-científica,
particularmente daqueles que recorrem ao dispositivo narrativo do found footage
para justificar sua opção estilística maneirista (cf. CÁNEPA e CARREIRO, 2014) pela
câmera intradiegética, o presente artigo toma esse universo como ponto de partida
para comentar sua relação com tradições do found footage propriamente dito e do
pseudodocumentário – categoria que parece descrever com mais precisão esse tipo de
filme e afastar a confusão sobre o que de fato é found footage.

2. Falso found footage de horror versus autêntico foud footage film


Esses filmes de horror que se apresentam como falsos found footage films parti-
lham algumas características que, de maneira geral, não se fazem presentes nos fou-

148
nd footage films autênticos. Dentre essas, merecem destaque, além do uso de câmeras
intradiegéticas operadas por personagens ou instaladas nos ambientes em que se de-
senrola a narrativa: o uso de recursos do cinema documental, como narração em off,
depoimentos para a câmera, reconstituições, letreiros e grafismos explicativos etc.; a
inclusão na narrativa de formas de justificar diegeticamente o encontro e a montagem
das imagens e sons de que o filme se compõe; as narrativas lineares, mas descontínuas,
elípticas, episódicas; a presença de atores desconhecidos do grande público; a ausên-
cia de trilha sonora extradiegética; a incorporação dos tempos mortos e da espera; e a
má qualidade proposital das imagens, tanto do ponto de vista dos enquadramentos e
movimentos de câmera quanto da textura e definição, condizentes com aparelhos de
gravação disponíveis para amadores e manuseados por eles. Todas essas são caracterís-
ticas comuns a quase todos os filmes designados pela expressão found footage horror,
mas não há nenhuma delas que seja típica do found footage film autêntico.
Conforme este artigo busca esclarecer, o uso da expressão found footage para de-
signar os filmes de terror cujas narrativas se desenvolvem a partir do uso de câmera
intradiegética é absolutamente enganoso e equivocado. Propagado acima de tudo por
blogs e comentaristas de cinema em posts de internet, o que seria compreensível dada
a desvinculação desse tipo de publicação de quaisquer pretensões científicas, seu em-
prego se tornou de tal forma comum e disseminado que já pode ser encontrado agora
também em alguns artigos acadêmicos (como, por exemplo, HELLER-NICHOLAS, 2014
e ACKER, 2015). E é aí que mora o perigo. Se a essência da atividade crítica e teórica
no campo do audiovisual é descrever e analisar em palavras aquilo que anteriormente
existe apenas em imagens e sons, a precisão da terminologia deve ser uma das bases
sobre as quais essa atividade se erige. No caso, parece-nos ainda mais nefasta a impre-
cisão dos termos porque tende a tornar senso comum uma descrição impertinente e
a obscurecer ainda mais os reais significados de uma prática do fazer cinematográfico
– o found footage autêntico – que já é ela mesma alvo de uma série de imprecisões e
indefinições mesmo no campo acadêmico, e cujo conhecimento pelo público em geral
é praticamente inexistente.
O uso impróprio da expressão found footage para designar filmes que emulam
imagens e sons captados de forma documental ou amadora com o objetivo de se apre-
sentarem como gravações encontradas e causarem maior impacto a partir da aparência
de “autenticidade” de suas imagens, é problemático, sobretudo, por aproximar ditos
filmes de uma tradição com a qual eles pouco ou nada têm a ver. Mesmo do ponto de
vista de sua aparência, tais filmes, com muitos planos-sequência e encadeamento cau-
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sal e linear de imagens que quase sempre vêm supostamente de uma mesma fonte, e até
mesmo, em diversos casos, com narrativas que se desenrolam em “tempo real”, pouco
se assemelham a found footage films de fato, que costumam ser bem mais fragmentados
e heterogêneos, assemelhando-se mais a “colagens audiovisuais” do que a documentá-
rios observacionais.
Muito mais do que um gênero ou subgênero ou gênero adjetivo, a expressão found
footage propriamente utilizada designa uma técnica de criação audiovisual que consis-
te na apropriação, reedição e inserção em um novo discurso ou narrativa de imagens
e sons criados previamente e com outro fim, geralmente por terceiros. Um exemplo
recente de emprego dessa técnica pode ser encontrado não nos falsos found footage de
horror de que trata este artigo, mas sim nos incontáveis vídeos de internet que pro-
movem compilações, remontagens, mashups e paródias de cenas de filmes, geralmente

149
clássicos do cinema ou blockbusters recentes. Trata-se de uma técnica de criação audio-
visual que, conforme já explicitado, tem a sua própria evolução histórica, o seu próprio
cânone, as suas próprias categorias, e que nada ou quase nada tem a ver com o que é cha-
mado de found footage de horror.
Com antecedentes nas artes plásticas (collages, assemblages, ready-mades e outros
formatos surgidos a partir da segunda década do século XX graças à contribuição de van-
guardas como o cubismo, o surrealismo e, principalmente, o dadaísmo e as experiências
de Marcel Duchamp), na literatura (a poesia dadaísta e os cut-ups de William Burroughs,
por exemplo) e na música (desde a construção pautada em samples da música concreta de
Pierre Schaeffer e John Cage até toda a cultura do hip-hop e da música eletrônica), o uso
do found footage no cinema se presta aos mais diversos fins no contexto dos mais diversos
gêneros, mas pouco tem a ver com a forma como o recurso é emulado por esses atuais
documentários de horror codificados como falsos found footage films.
Seu uso mais frequente e comum se dá dentro do cinema documental, naquilo que
Jay Leyda chama de “filmes de compilação” (LEYDA, 1964). Apesar de dedicar seu influen-
te volume ao estudo de filmes classificados como documentários – e de não questionar
essa categorização de forma alguma – Leyda, ao mergulhar no universo dos filmes cria-
dos a partir da compilação de fragmentos de outros filmes, naquele momento ainda bem
mais restrito ao uso documental, não consegue evitar incluir em seu levantamento obras
que hoje seriam tomadas como ensaísticas (Noite e Neblina, Alain Resnais, 1955), paródi-
cas (Yellow Caesar, Alberto Cavalcanti, 1941), ou mesmo como found footage films típicos
(como os de Len Lye, Trade Tattoo, 1937, e Swinging the Lamberth Walk, 1940). O marco ini-
cial dessa prática de construir documentários exclusivamente por meio da apropriação e
montagem de imagens e sons captados anteriormente por outrem se encontra na obra da
cineasta soviética Esfir Shub, que realizou obras históricas empregando não só filmagens
autênticas do período anterior à Revolução Russa, mas também recontextualizando ou-
tras extraídas de filmes jornais e sobras de documentários e ficções, resultando em filmes
como A Queda da Dinastia Romanov (Padenie Dinastii Romanovykh, 1927), apontado por
Leyda como o primeiro documentário de compilação, Lev Tolstói e a Rússia de Nicolau
II (Rossiya Nikolaya II i Lev Tolstoy, 1928) e Espanha (Ispanija, 1939), sobre a Guerra Civil
Espanhola.
Ainda no campo do cinema documental, contribuições posteriores às investigações
de Leyda ao cânone do filme de compilação, seja ele de teor mais ensaístico ou puramente
factual, incluem obras de autores tão diversos quanto o húngaro Péter Forgács – reali-
zador de O Turbilhão: Uma Crônica Familiar (The Maelstrom: A Family Chronicle, 1997),
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O Êxodo do Danúbio (The Danube Exodus, 1998) e Miss Universo 1929 (Miss Universe 1929
– Lisl Goldarbeiter. A Queen in Wien, 2005), dentre muitos outros que conseguem trans-
formar a narrativa documental em algo próximo de um romance memorialista ilustrado
por imagens –, o norte-americano Bill Morrison, mais conhecido por ensaios audiovi-
suais não-narrativos, focados na degradação do próprio suporte físico da mídia fílmica
(como Decasia, 2002), mas que também realiza obras efetivamente apresentadas como
documentários tradicionais (caso de Dawson City: Frozen Time, 2016), e o alemão Harun
Farocki, que se diferencia de outros documentaristas de compilação por buscar sua ma-
téria-prima em fontes pouco usuais, como imagens de câmeras de vigilância, registros
institucionais, gravações científicas e de pesquisa, vídeos de treinamento etc. Dentre os
seus trabalhos, que incluem também obras inteiramente filmadas, sem uso de found foo-
tage, há filmes de compilação tradicionais, como A Expressão das Mãos (Der Ausdruck der
Hände, 1997), Imagens da Prisão (Gefängnisbilder, 2001), A Saída dos Operários da Fábri-

150
ca (Arbeiter verlassen die Fabrik, 1995) e Videogramas de uma Revolução (Videogramme
einer Revolution, 1992), mas também outros bem mais excêntricos, em que são usados
apenas registros de reuniões corporativas, como Doutrinamento (Indoctrination, 1996) e
A Entrevista (Die Bewerbung, 1996), ou de manobras militares, como Imagens do Mun-
do e Inscrições da Guerra (Bilder der Welt und Inschrift des Krieges, 1989) e Reconhecer
e Perseguir (Erkennen und Verfolgen, 2003). A Sociedade do Espetáculo (La Société du
Spectacle, 1974), espécie de ilustração ou “versão audiovisual” do seminal livro de Guy
Debord publicado em 1967, realizada pelo próprio autor, é outro caso curioso de obra na
fronteira entre o documentário típico e o de caráter ensaístico realizada integralmente
a partir da apropriação e montagem de imagens de arquivo. E também parte considerá-
vel dos filmes realizados por Jean-Luc Godard nas duas últimas décadas, embora ainda
contenha uma dose de imagens captadas pelo autor, pode ser tomada como exemplo de
documentários – ou filmes-ensaio – essencialmente “de found footage”, caso da série de
televisão História(s) do Cinema (Histoire(s) du Cinema, cujos segmentos foram realiza-
dos de maneira intermite em 1989, 1995 e 1999), do curta-metragem A Origem do Século
XXI (De l’Origine du XXIe Siècle, 2000), em que o cineasta justapõe imagens de arquivo
das atrocidades dos nazistas a cenas do clássico musical Gigi (Vincente Minnelli, 1958)
e de seu próprio Acossado (À Bout de Souffle, 1960), além da terceira e última parte de
seu Filme Socialismo (Filme Socialisme, 2010), integralmente feita a partir de apropria-
ção e montagem de imagens alheias, assim como o seu segmento no filme coletivo 3x3D
(2013), intitulado Les Trois Désastres.
Alguns outros exemplos paradigmáticos de documentários de found footage au-
têntico podem ser encontrados na obra de cineastas como Mikhail Romm (Lenin em Ou-
tubro, Lenin v Oktyabre, 1937; O Fascismo de Todos os Dias, Obyknovennyy Fashizm, 1965),
Emile de Antonio (No Ano do Porco, In the Year of the Pig, 1968), Philippe Mora (Swastika,
1974), Vincent Monnikendam (Moeder Dao, de Shildpadgelijkende, 1995), Thom Ander-
sen (Red Hollywood, 1996, codirgido por Noël Burch; Los Angeles Plays Itself, 2003;
The Thoughts That Once We Had, 2015), Johan Grimonprez (Dial H-I-S-T-O-R-Y, 1997),
Jay Rosenblatt (Human Remains, 1998), Sergei Loznitsa (Cinejornal, Predstavlenye, 2002;
Bloqueio, Blokada, 2006), Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi (Oh! Uomo, 2004),
Susana Souza Dias (Natureza Morta, 2005), Luc Bourdon (A Memória dos Anjos, La
Mémoire des Anges, 2008), Mila Turajlic (Cinema Komunisto, 2010), Göran Olsson (The
Black Power Mixtape 1967-1975, 2011), Matt Wolf (Teenage, 2013) e Rüdiger Suchsland
(De Caligari a Hitler, Von Caligari zu Hitler: Das deutsche Kino im Zeitalter der Massen,
2014). Também alguns recentes documentários biográficos sobre ídolos musicais me-
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recem destaque nesse sentido, por se constituírem exclusivamente de imagens e sons


de arquivo, sem quaisquer inserções de imagens efetivamente captadas pelo realizador,
como Amy (Asif Kapadia, 2015), sobre a cantora Amy Winehouse, vencedor do Oscar da
categoria, Super Duper Alice Cooper (Sam Dunn, Reginald Harkema e Scot McFadyen,
2014) e Eat That Question: Frank Zappa in His Own Words (Thorsten Schütte, 2016).
No contexto brasileiro, os documentários ensaísticos São Paulo Sinfonia e Caco-
fonia, de Jean-Claude Bernardet (1995), e Um Dia na Vida (2010) de Eduardo Coutinho,
além de Nós Que Aqui Estamos, Por Vós Esperamos (1999) e Ato, Atalho e Vento (2014),
ambos de Marcelo Masagão, e dos recentes Cinema Novo (Eryk Rocha, 2016), Histórias
que Nosso Cinema Não Contava (Fernanda Pessoa, 2016) e No Intenso Agora (João Morei-
ra Salles, 2017), podem ser citados como autênticos filmes de found footage. Os traba-
lhos de cineastas como Eduardo Escorel (35 – O Assalto ao Poder, 2003; 32 – A Guerra
Civil, 2008; Imagens do Estado Novo 1937-45, 2016) e Silvio Tendler (Glauber, o Filme

151
– Labirinto do Brasil, 2003; Utopia e Barbárie, 2009; Tancredo: A Travessia, 2016), embo-
ra amplamente apoiados na montagem de imagens de arquivo, não são aqui apontados
como autênticos found footage films na medida em que não se utilizam exclusivamente
desse recurso, alternando as imagens apropriadas com depoimentos em vídeo captados
pelo realizador. Já em campo mais próximo do que seria categorizado como “filme expe-
rimental”, mas ainda em registro essencialmente documental, Carlos Adriano destaca-se
como artista e crítico brasileiro quase exclusivamente interessado nas aplicações do fou-
nd footage, exploradas em Remanescências (1997), A Voz e o Vazio – A Vez de Vassourinha
(1998), Porviroscópio (2006), Das Ruínas a Rexistência (2007), Santoscópio – Dumontagem
(2008), Sem Título # 1: Dance of Leitfossil (2014), e Festejo Muito Pessoal (2016).
Quanto ao found footage film não documental, seus estudiosos são quase unânimes
ao apontar o filme Rose Hobart, de 1936, como marco inicial da prática. De autoria de
Joseph Cornell, um artista plástico ligado à colagem e à produção de livros-objetos, este
primeiro found footage film não documental utiliza uma amostragem reduzida de cenas
de outra obra, A Leste de Bornéu (East of Borneo, George Melford, 1931), particularmente
aquelas em que se faz presente a atriz protagonista do filme que batiza seu trabalho,
remontadas em nova sequência e às quais é sobreposta uma trilha sonora retirada de
outro contexto. Mas foi Bruce Conner, a quem William Wees se refere como “probably
the best known filmmaker to mix and match fragments of found footage” (WEES, 1993,
p. 13), quem estabeleceu o paradigma do found footage film com seu A Movie, de 1958,
uma justaposição de imagens (jornalísticas, educativas, científicas, ficcionais de baixo
orçamento e de pornografia leve) que produz uma série de associações – ora irônicas,
ora nonsense – por meio da montagem. Seus outros filmes mais conhecidos incluem
Cosmic Ray (1962), Report (1967), Take the 5:10 to Dreamland (1976) e Mongoloid (1978),
um videoclipe da banda Devo. Além de Cornell e Conner, que podem ser considerados
os criadores do found footage film autêntico, outro cineasta integralmente dedicado à
criação por esta técnica, cuja obra é referência inescapável ao se falar em found footage,
é o californiano Craig Baldwin, autor curtas, médias e longas-metragens constituídos
exclusivamente de trechos de antigos filmes publicitários, educativos, de propagandas
e de ficção-científica de baixo orçamento, ora estruturados e apresentados como
mockumentaries (O no Coronado, 1992; Spectors of the Spectrum, 1999; Tribulation 99, 1992;
Mock Up on Mu, 2008), ora como documentários ensaísticos (Sonic Outlaws, 1995), ora
como curtas experimentais (Rocketkitkongokit, 1986).
Dentre os inúmeros found footage films que não são, de fato, documentais, há ainda
uma imensa lista de longas, médias e curtas-metragens afiliados ao cinema experimental
e, com frequência maior em tempos recentes, de videoinstalações e vídeo-artes mais
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próximas do universo das artes plásticas, mas ainda em diálogo aberto com o cinema e
sua história. São exemplos do primeiro caso trabalhos de artistas como Arthur Lipsett
(Very Nice, Very Nice, 1961; 21-87, 1964), Chick Strand (Waterfall, 1967; Elasticity, 1976;
Loose Ends, 1979; Cartoon Le Mousse, 1979), Ken Jacobs (Tom, Tom, the Piper’s Son,
1969; Perfect Film, 1986), Jack Chambers (The Hart of London, 1970), Hollis Frampton
(Public Domain, 1972; Gloria!, 1979), Ernie Gehr (Eureka, 1974), Stan Brakhage (Murder
Psalm, 1980), Abigail Child (Covert Action, 1984), Peter Delpeut (Lyrical Nitrate, 1990),
Peter Tscherkassky (L’Arrivée, 1999; Outer Space, 1999), Simon Pummell (Bodysong,
2003), György Pálfi (Senhoras e Senhores: Corte Final, Final Cut: Hölgyeim és Uraim,
2012), Tony Palmer (The Beatles and World War II, 2014), Charlie Lyne (Fear Itself, 2015),
e Manu Luksch, Martin Reinhart e Thomas Tode (Sonhos Conectados, Dreams Rewired,
2015). No segundo caso estão obras de artistas visuais em sentido amplo, como Raphael

152
Montañez Ortiz (Cowboy and “Indian” Film e Newsreel); Gustav Deutsch (Film ist. 7-12
e Film ist. A Girl & a Gun, montagens ensaísticas de cenas do cinema clássico exibidas
como vídeoarte em galerias e museus); Matthias Müller (Maybe Siam, Locomotive, Home
Stories e Krystall, que realiza verdadeiro inventário iconográfico da presença de imagens
de espelhos no cinema); Michael Joaquin Grey (The Blink, um mashup das imagens de
esporte do clássico nazista Olympia, de Leni Riefenstahl, com a canção Leaving on a Jet
Plane interpretada pela cantora Björk); e Candice Breitz (Mother + Father, na qual seis
monitores de vídeo exibem imagens “recortadas” de close-ups de atrizes de Hollywood
como Julia Roberts, Susan Sarandon, Diane Keaton e Joan Crawford, extraídas de filmes
nos quais elas interpretaram mães, estabelecendo “diálogos” a partir da montagem e da
instalação dos monitores.
Embora nosso levantamento seja incompleto e nossa diferenciação entre found foo-
tage films puros ou não, documentais ou experimentais, “de cinema” ou “de galeria”, seja
algo arbitrária e sirva a fins essencialmente didáticos, esse brevíssimo catálogo de found
footage films propriamente ditos, pela sua abrangência temporal e pelo amplo espectro
de gêneros, formatos e propostas que cobre, já deve ser indicação suficiente da tamanha
impertinência do emprego da expressão found footage para se referir a filmes de terror
que seguem a linha estilística e a estrutura narrativa de Holocausto Canibal, A Bruxa de
Blair ou Atividade Paranormal. Nesses filmes, afinal, não há imagens de fato encontradas
e apropriadas – são todas elas de obra dos próprios realizadores, ainda que eles se em-
penhem em captá-las de modo a lhes conferir uma aparência propositalmente acidental
e/ou amadora. É apenas a narrativa do filme que lhes atribui o caráter de found footage.
Em tais filmes,
the narrative is framed as if the footage was somehow discovered
after the death or disappearance of those who shot it, and has sub-
sequently made its way into the cinema where we are able to see
it now, prompting some to refer to these films as ‘found footage
horror’. (GRANT, p. 155)
Vale notar que, mesmo em seu uso histórica e teoricamente fundamentado, a ex-
pressão found footage carrega uma imprecisão – ou mesmo malícia – implícita no uso da
palavra “found” para designar o material audiovisual alheio tomado como matéria-pri-
ma, quando só raríssimas vezes ele é, de fato, “encontrado”. Como diz Eduardo Valente, o
uso da expressão found footage
soa engraçado porque, na maioria das vezes, trata-se muito pouco de ‘achar
um filme’ a partir de um material desconhecido [...] mas sim de ir em
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busca de um material pré-existente para fazer um determinado filme.


Ou seja: em grande parte do cinema de found footage o found se refere
bem menos a tal material ter surgido sem nenhum aviso prévio do que
ao ato de se encontrar em filmes de outrem, e/ou de antão, os significa-
dos que se desejava previamente construir. (VALENTE, 2007)
Ainda que mesmo no found footage autêntico a natureza “encontrada” das imagens
e sons que compõem a obra seja controversa, ou mesmo assumidamente enganosa, é
apenas a maneira como a presença da câmera intradiegética na narrativa é justificada o
que aproxima os falsos documentários de horror codificados como found footage films
dos found footage films propriamente ditos. O que neste tipo de filme é técnica intrínseca
à sua construção, naquele é meramente artifício narrativo.
Como lembra Barry Keith Grant (GRANT, 2013), o emprego da visão subjetiva ou de

153
imagens provenientes de câmeras intradiegéticas no cinema de horror tem antecedentes
em algumas cenas de filmes marcantes sobre serial killers, como os clássicos Psicose (Psy-
cho, Alfred Hitchcock, 1960) e A Tortura do Medo (Peeping Tom, Michael Powell, 1960), os
quais
use subjective camera techniques to encourage viewer identification with
the killer, a technique that would be taken further in the spate of slasher
films of the late 1970s and 1980s initiated by the surprise box-office suc-
cess of Halloween (Carpenter, 1978). (GRANT, 2013, p. 156)
No entanto, somente depois de algumas décadas apareceram filmes de serial
killer interessados em dar ao espectador o tempo todo a sensação de participar dos
crimes na condição de um voyeur muito próximo, ou mesmo de um cúmplice, como o
belga Aconteceu Perto da Sua Casa (C’est Arrivé Près de Chez Vous, Benoît Poelvoorde,
Rémy Belvaux e André Bonzel, 1992), também citado por Grant como “a faux documen-
tary about a documentary film crew making a film about a serial killer with whom they
eventually become complicit” (GRANT, 2013, pp. 156-7) Algo parecido acontece tam-
bém em Henry – Retrato de um Assassino (Henry, John McNaughton, 1988), que não é
falso documentário e menos ainda falso found footage film, mas no qual, depois de dado
momento da narrativa em que o protagonista se apropria de uma câmera amadora de
vídeo, são incluídas cenas de mortes tais como supostamente gravadas por essa câme-
ra, operada intradiegeticamente por um cúmplice do serial killer que dá nome ao filme.
Embora também não possa ser considerado um falso found footage – pois não há uma
câmera intradiegética na narrativa – e nem um mockumentary, pois também não há preten-
são de aparentar um documentário autêntico, um filme que não pode deixar de ser men-
cionado aqui é Colin (Marc Price, 2008). Apesar de não justificar o que é visto na tela como
captação alheia “encontrada”, ele é inteiramente narrado em visão subjetiva – no caso, a
visão de um rapaz mordido por um zumbi durante uma típica epidemia de mortos-vivos,
que vai lentamente se transformando em uma criatura canibal rediviva. Aqui, portanto, o
processo de identificação entre os pontos de vista do protagonista e do espectador é radi-
calizado, talvez mais até do que em qualquer exemplo do chamado found footage de horror.
Mas o emprego de uma justificativa narrativa que apresente todo o conteúdo fílmico
como fruto de uma filmagem realizada pelos personagens e depois apenas supostamente
“encontrada” pelos realizadores tem seu marco inicial em um infame e cultuado longa-
metragem do ciclo de cinema italiano de exploitation do final dos anos 1970: Holocausto
Canibal (Cannibal Holocaust, Ruggero Deodato, 1980). Ainda que o termo found footage não
tenha sido usado para se referir a esse tipo de artifício narrativo até 1999, quando come-
çaram a surgir as primeiras análises críticas de A Bruxa de Blair – marco zero, portanto,
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do uso impróprio da expressão aqui explicitado –, não há dúvidas de que aquele letreiro
inicial do filme de Deodato, informando ao espectador que as imagens que ele verá teriam
sido supostamente filmadas por uma equipe de cinegrafistas que depois se perdeu na selva
amazônica, constituem o primeiro emprego da técnica de filmar uma obra de horror como
se ela fosse um found footage. Justiça seja feita, é importante ressaltar, porém, que a obra A
Bruxa de Blair foi precedida em um ano por outro falso documentário de horror codificado
como found footage, que, embora mais convencional e explícito no seu desenvolvimento
da narrativa, já apresentava a mesma justificativa para a presença da câmera intradiegética
e também uma trama bastante similar: The Last Broadcast (Stefan Avalos e Lance Weiler,
1998). Mas, como não obteve repercussão junto ao público comparável à do seu “irmão”
mais novo e mais famoso, ficou mesmo com A Bruxa de Blair o mérito de ter sido pioneiro
da atual onda de falsos found footage de horror. Afinal, como afirma novamente Barry Keith

154
Grant, “Blair Witch solidified the convention of narrating through the diegetic camera
and, like Cannibal Holocaust, of ‘explaining’ the film as found footage made by filmmakers
who have gone missing.” (GRANT, 2013, p. 157)
A partir da reutilização daquele artifício em A Bruxa de Blair, seu emprego no cinema
fantástico – e particularmente no cinema de terror – se tornou cada vez mais frequente,
dando origem ao tipo de filme discutido aqui, que tem entre os seus exemplares mais ilus-
tres, além dos já citados: O Último Filme de Horror (The Last Horror Movie, Julian Richards,
2003); Diário dos Mortos (Diary of the Dead, George Romero, 2007); o espanhol [Rec] (Jau-
me Balagueró, 2007), suas três continuações e seu remake norte-americano, Quarentena
(Quarantine, John Erick Dowdle, 2008), que também teve uma continuação; Cloverfield –
Monstro (Cloverfield, Matt Reeves, 2008); Home Movie (Christopher Denham, 2008); Troll
Hunter (Trolljegeren, André Øvredal, 2010), filme norueguês cujo remake está em produção
em Hollywood; o costa-riquenho El Sanatorio (Miguel Alejandro Gomez, 2010); O Último
Exorcismo (The Last Exorcism, Daniel Stamm, 2010), cuja continuação, de 2013, abriu mão
do recurso ao falso found footage; Fenômenos Paranormais (Grave Encounters, The Vicious
Brothers, 2011); Apollo 18 (Gonzalo López-Gallego, 2011); The Bay (Barry Levinson, 2012);
e The Zombie Vlogs (J. Colby Doler, 2013), que tem duração de média-metragem, típica do
documentário. Apesar de o uso desse recurso narrativo ter se consolidado em anos recen-
tes no âmbito do cinema de terror, ele também tem sido empregado em outros gêneros:
em filmes de ficção-científica como Poder Sem Limites (Chronicle, Josh Trank, 2012), uma
visão mais “realista” da mitologia dos super-heróis sob a forma de gravações caseiras fei-
tas por rapaz que adquire superpoderes; Viagem à Lua de Júpiter (Europa Report, Sebastián
Cordero, 2013) e o já citado Projeto Almanaque; em comédias como Projeto X – Uma Festa
Fora de Controle (Project X, Nima Nourizadeh, 2012) e a francesa Babysitting (Nicolas Be-
namou e Philippe Lacheau, 2014); e até em dramas como Zero Day (Ben Coccio, 2003) e o
britânico Exhibit A (Dom Rotheroe, 2007).
Após essa exposição, resta a dúvida: seria possível, afinal, falar-se em found footage
film de terror? Com algum esforço de pesquisa e alguma flexibilidade nas categorias, pode
até ser possível encontrar exemplos de obras que poderiam ser chamadas com proprie-
dade de found footage films de horror. Mas elas certamente passam longe do estilo de fil-
mes como A Bruxa de Blair ou Atividade Paranormal. Apenas, portanto, para indicar que
a expressão pode ter um sentido preciso e bem diverso daquele em que ela é comumente
usada, vale a pena o exercício especulatório de se apontar alguns trabalhos que poderiam
ser considerados justamente algo próximo de um found footage horror do que aqueles que
assim são descritos erroneamente. Exemplos do que seria um documentário de horror
de found footage poderiam ser apontados entre filmes do chamado ciclo “Mondo” de ex-
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ploitation e de todos os demais shockumentaries que se seguiram por décadas a fio após o
inesperado sucesso de Mundo Cão (Mondo Cane, Franco E. Prosperi, Gualtiero Jacopetti e
Paolo Cavara, 1962), como aqueles da série Faces da Morte (iniciada em 1978, com Faces
of Death, de Conan Le Cilaire, e encerrada em 1996, com Faces of Death VI, do mesmo
diretor), que combinam imagens documentais autênticas a outras encenadas – found foo-
tage autêntico e falso, portanto –, sem distingui-las, de eventos particularmente bizarros,
chocantes ou repugnantes.
Dentre os found footage films típicos, alguns se aproximam do gênero horror por sua
temática e determinados elementos de sua estrutura narrativa. O exemplo mais evidente
de um found footage de horror autêntico desse tipo seria o longa-metragem The Atomic
Cafe (Jayne Loader, Kevin Rafferty e Pierce Rafferty, 1982), documentário ensaístico
construído em torno da presença no imaginário da segunda metade do século XX do temor
generalizado de uma guerra atômica. Constituído apenas de imagens e sons extraídos de

155
filmes de propaganda do auge da Guerra Fria, The Atomic Cafe consegue, com um material
tão restrito, produzir uma narrativa que é, em igual medida, informativa, cômica, crítica e
apavorante, produzindo no espectador reações de perplexidade, comicidade, indignação e
também de terror autêntico. Alguns dos filmes de Craig Baldwin, particularmente Spectors
of the Spectrum, Tribulation 99 e Mock Up on Mu, também podem ser classificados como
pertencentes ao gênero horror, o que se dá, em larga medida, por seus temas – controle
da mente via transmissões radiofônicas e televisivas, invasão alienígena e satanismo,
respectivamente – e pelas fontes de algumas das imagens de que se apropriam para criar
as narrativas, que incluem filmes de horror e de ficção-científica de baixo orçamento das
décadas de 1940, 1950 e 1960.
Também pelo efeito de medo que provocam no espectador e pela fonte do material
audiovisual de que se apropriam, há até mesmo algumas obras do universo das artes plás-
ticas criadas segundo a técnica do found footage que, por esses motivos, podem ser consi-
deradas exemplos de found footage de horror: a videoinstalação Horror Chase, de Jennifer
e Kevin McCoy, que consiste em um remix randômico de uma cena do cult movie de horror
Uma Noite Alucinante (Evil Dead 2, Sam Raimi, 1987) projetado a partir de uma maleta;
e Murder, do alemão Thomas G., que se resume à projeção em velocidade invertida de
um trecho de menos de três minutos do filme O Iluminado (The Shining, Stanley Kubrick,
1981), justamente aquele em que o menino “iluminado” caminha pelo quarto de hotel em
que a sua mãe dorme recitando a palavra “redrum” após deixar sobre o criado-mudo uma
faca de cozinha. Com o recurso de isolar a cena e projetá-la com imagens e sons reverti-
dos, essa vídeoarte, exibida em São Paulo na exposição Colateral 2: Quando a Arte olha o
Cinema, que ocupou o espaço expositivo do Sesc Paulista entre janeiro e março de 2008
(FÜRSTENBERG, 2008), evidencia o aspecto aterrorizante implícito na ação daquela cena
do filme de Kubrick, uma vez que o garoto passa a repetir a palavra “murder” (assassinato)
enquanto se aproxima de sua mãe adormecida com uma faca de cozinha em mãos. Perce-
be-se, portanto, que ao utilizar como matéria-prima sequências reconhecíveis de filmes
marcantes do cinema de horror e ao provocar no espectador uma reação bastante seme-
lhante àquela típica dos filmes do gênero, esses trabalhos expostos em galerias e museus
estão mais próximos de autênticos found footage de horror do que aqueles filmes que têm
recebido esta designação.
Levando-se em conta que o found footage de horror seria tão mais bem-sucedido em
seu objetivo de causar medo no espectador quanto maior a aparência de veracidade de suas
imagens e sons, o melhor e mais autêntico found footage de horror seria um filme em que
o material supostamente encontrado não pudesse ser questionado em sua veracidade, em
que o found footage não fosse forjado, mas real. Nesse sentido, talvez seja possível encontrar
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um exemplo de found footage de horror real em um filme que não costuma ser descrito
nem como found footage – embora clara e assumidamente o seja – e nem como filme de
horror: O Homem Urso (Grizzly Man, Werner Herzog, 2005). Aquilo que filmes como Troll
Hunter apenas simulam – as imagens de uma equipe documental em confronto direto com
forças da natureza incontroláveis e amedrontadoras –, O Homem Urso apresenta de fato. E,
assim, é capaz de produzir medo mais autêntico, de provocar, portanto, as reações típicas
do horror com mais eficácia do que a grande maioria dos filmes de horror propriamente
ditos consegue.
Por todos os motivos explicitados até aqui para apontar a impertinência da aplicação
da expressão found footage ao universo dos filmes de horror que se apresentam como
supostas filmagens caseiras “descobertas” por seus realizadores profissionais, muito mais
correto do que classifica-los como found footage horror ou verité horror é defini-los apenas

156
como mockumentaries ou pseudodocumentários. Isso implica em tomá-los, acima de
qualquer outra categorização, como sátiras ou paródias.1 Afinal, trata-se essencialmente
de obras que, ainda que inconsciente ou indiretamente, satirizam a profusão de imagens
captadas e divulgadas por diletantes anônimos ou em busca de seus “quinze minutos de
fama” na sociedade atual e a obsessão dessa mesma sociedade atual por imagens íntimas
e “autênticas” da vida banal, ao mesmo tempo em que o fazem parodiando convenções
e estrutura do cinema documentário. Os filmes do assim chamado subgênero do found
footage horror, portanto, estão sempre a retrabalhar e subverter – aparentando seguir
e respeitar – as convenções do realismo e da ficção, ao mesmo tempo celebrando e
satirizando aspectos culturais bastante relevantes e típicos do nssso tempo. Fazer esse
apontamento implica, portanto, em aparentá-los não à longa tradição da apropriação e
manipulação de imagens alheias – com a qual tais filmes guardam poucas semelhanças de
fato no tocante à sua estrutura, aparência e forma e absolutamente nenhuma no tocante
à sua natureza, aos seus objetivos e ao seu método de construção – e sim à tradição dos
falsos documentários, com a qual partilham muitas das suas características essenciais.

3. Mockumentary de horror: falso documentário e suas incursões fantásticas


O termo pseudodocumentário, ou mockumentary, ou ainda documentário ficcional,
quase-documentário, “documentira” (MACHADO & VÉLEZ, 2005), “spoof documen-
tary” (ROSCOE, 2001, p. 1), ou simplesmente documentário falso – ou faux, ou fake, já
que há menções em diversas línguas e algumas enfatizam a opção por um ou outro es-
trangeirismo –, entre muitas outras expressões usadas pela crítica e pelos teóricos, de-
signa o gênero do cinema de ficção que se vale da aparência e da estrutura documentais
para se apresentar como uma obra ambígua, cuja proposta pode ou não buscar provocar
no espectador a sensação de estar assistindo a um documentário autêntico. Geralmente,
é utilizado como um veículo para sátira ou paródia, mas também se presta àqueles filmes
que se valem da aparência documental para reivindicar maior engajamento do especta-
dor, seja por meio de empatia, medo ou dúvida.
Nas palavras de Jane Roscoe e Craig Hight, que se referem em seu tratado a mock-
dockumentaries, enfatizando o uso do hífen, esse tipo de filme “appropriates documen-
tary codes and conventions and mimics various documentary modes” (ROSCOE, 2001,
p. 1). Ao fazê-lo, mockumentaries podem se apresentar como documentários históricos,
combinando imagens de arquivo (reais ou recriadas) com depoimentos, ou simular um
documentário observacional, seguindo personagens por determinados eventos, assim
como ter a aparência e estrutura de um programa de entrevistas, uma reportagem tele-
visiva ou qualquer outro formato audiovisual documental. Nesse sentido, o falso found
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footage de horror discutido até aqui pode ser visto como nada mais que um tipo de mo-
ckumentary que emula um modo específico (e sequer é aquele modo típico dos documen-
tários de compilação, de found footage films autênticos): o observacional puro, uma edi-
ção de imagens e sons captados em determinado contexto por observadores imparciais,
uma espécie de depuração máxima dos métodos e fins do cinema verité e do direct cinema.
Nesse campo, e particularmente naqueles casos em que a intenção do autor ao se
1 Levando em consideração os apontamentos de GEHRING (1999) e HUTCHEON (1985) sobre a
confusão histórica e incontornável entre os termos “paródia”, que lida com estruturas e convenções exageradas
ou subvertidas, atacando a compreensão estabelecida, normal, de um texto ou gênero, e “sátira”, que repete a
estratégia em relação a normas sociais, atacando padrões de comportamento e valores, este ensaio, em todo caso,
sem prejuízo de sua precisão, opta por manter indistintas as denominações, tendo em vista que “despite the major
differences between them, (…) the two genres [parody and satire] are often used together” HUTCHEON (1985,
p. 43).

157
valer dos códigos e convenções do documentário é “enganar”, ou pelo menos gerar dú-
vida no espectador, é bastante frequente o uso de found footage autêntico para obtenção
desse resultado que apela à credulidade do espectador e o status de confiabilidade antes
tradicionalmente assegurado às imagens documentais. São exemplos paradigmáticos,
tanto do gênero quanto de seu uso especifico de found footage autêntico, filmes como
Verdades e Mentiras (F for Fake, Orson Welles, 1973), Zelig (Woody Allen, 1983) e Operá-
tion Lune (também conhecido como The Dark Side of the Moon, William Karel, 2002),
que fornecem amplo material para reflexão sobre o emprego de imagens e sons alheios
na construção de narrativas totalmente diversas. Há, portanto, uma relação direta e lon-
geva entre o gênero do pseudodocumentário e o uso de found footage, mas ela não é o
foco das presentes considerações, uma vez que não costuma dar origem a filmes do tipo
aqui em foco, os quais sequer utilizam found footage de fato, conforme já demonstrado.
Ainda assim, o estudo em paralelo do desenvolvimento da técnica do found footage e da
evolução do mockumentary enquanto gênero revelam como ambos compartilham um
parentesco com as formas paródicas. Em tratado sobre paródia cinematográfica e suas
tradições, Dan Harries aponta o caráter paródico do mais paradigmático dos found foo-
tage films típicos, A Movie, de Bruce Conner, lembrando que “the title is itself parodic in
its over-determined declaration of its status.” (HARRIES, 1999, p. 20)
Exemplos desse tipo de sátira audiovisual atualmente conhecido como falso
documentário remontam ao menos ao final dos anos 1950. Um curto segmento do
programa da televisão britânica Panorama, conhecido como The Swiss Spaghetti Harvest,
exibido em 1º de abril de 1957 e criado pelos produtores como uma piada de “dia da
mentira” para a revista eletrônica, apresentando como (falsa) reportagem imagens de
uma suposta colheita de espaguete na Suíça, é em geral apontado como o primeiro
exemplo de um mockumentary. Mas vale lembrar também que a famosa transmissão
da Guerra dos Mundos pelo rádio perpetrada por Orson Welles em 1938 é um legítimo
antepassado do gênero, ainda em sua versão radiofônica. Ao mesmo tempo, apesar de
muitos se referirem também ao docudrama de curta-metragem The War Game (Peter
Watkins, 1965) – chamado por Barry Keith Grant de “documentário hipotético” e “sf
documentary” (GRANT, 2013, p. 158) – como um exemplo de mockumentary, o filme
comumente apontado como primeiro longa-metragem cinematográfico de falso
documentário é o britânico David Holzman’s Diary (Jim McBride, 1967), que simula
o estilo do cinema verité para retratar a tentativa de um “Zé Ninguém” de criar um
documentário sobre a sua própria vida banal.
Apesar desses antecedentes, o termo mockumentary foi usado pela primeira vez
para descrever o filme Spinal Tap (This Is Spinal Tap), dirigido por Rob Reiner em 1984.
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Ali, emula-se um filme do direct cinema sobre uma banda de heavy metal fictícia, a tal
Spinal Tap, com o intuito de ridicularizar uma cena que musical que estava então no
auge, a do chamado hair metal – ou “metal farofa”, no Brasil – de bandas poseurs de
visual exagerado e canções ideias para serem acompanhadas por multidões em shows
de estádios. O resultado dos procedimentos utilizados por Rob Reiner foi tão preciso
que, apesar do absurdo evidente de várias das situações retratadas no filme, a Spinal Tap,
banda fictícia, emplacou uma carreira autêntica na cena musical que satirizava – uma
trajetória já percorrida por conjuntos musicais surgidos desde os anos 1960 a partir
de personagens de quadrinhos (The Archies), de programas de televisão (The Monkees,
The Blues Brothers) e longas-metragens (The Rutles, outra versão paródica dos Beatles,
uma década depois dos Monkees), depois seguida por artistas como The Commitments e
The Wonders nos anos 1990 e reproduzida até mesmo no Brasil, pela Massacration, do

158
humorístico Hermes e Renato, da MTV.
Apesar de ainda ser o exemplo mais conhecido de um caso desses, o filme de Reiner
é apenas um em uma longa linhagem de mockumentaries sobre bandas ou artistas que
nunca existiram. Alguns dos mais notáveis são: The Rutles – All You Need is Cash (Eric
Idle e Gary Weis, 1979), em que o ex-membro do Monty Python reencena praticamente
todos os momentos icônicos dos filmes dos Beatles; Hard Core Logo (Bruce McDonald,
1996), cultuado filme canadense sobre uma banda punk; CB4 (Tamra Davis, 1993) e Fear
of a Black Hat (Rusty Cundieff, 1994), ambos sobre o mundo do hip-hop; Get Ready to be
Boyzvoiced (Espen Eckbo, Henrik Elvestad e Mathis Fürst, 2000), uma piada norueguesa
com as boy-bands; e Poucas e Boas (Sweet and Lowdown, Woody Allen, 1999), que não
sustenta todo o tempo uma aparência documental, mas, em recurso típico da obra do
novaiorquino, inclui diversos segmentos com atores dando depoimentos para a câmera.
Todos esses mockumentaries musicais têm em comum o fato de articularem uma
crítica ao mercado fonográfico, seja a um nicho específico, seja, de maneira mais ampla,
às ferramentas de manipulação da mídia e de construção de imagem de que esse mercado
se vale para criar ídolos-commodities. Mas, como apontam novamente Roscoe e Hight, as
intenções dos realizadores do mock-documentary sempre passam por utilizar-se da estrutura
e aparência documentais “to present a fictional text, with varying degrees of intent to
parody or critique an aspect of culture or the documentary genre itself” (ROSCOE & HIGHT,
2001, p. 54, grifo nosso). Assim, ao mesmo tempo em que satiriza um aspecto cultural
mais amplo, da cena musical, Spinal Tap também satiriza um modo documental típico –
chamado estilo “fly on the wall”, do cinema direto – e o próprio gênero documentário como
um todo, em sua pretensão de objetividade e imparcialidade. Isso é verdade para todos os
outros, desde sua eleição de qual estilo documental a ser parodiado – o investigativo, o
de programas do tipo “por trás da fama”, ou qualquer outro que seja – até sua ironia em
relação à forma como documentários em geral constroem sua verdade. Nota-se já aí de
que forma o termo mockumentary nasce imbricado à noção de paródia, já que a junção da
palavra “mock” – pilhéria, gozação – faz referência à satirização do documentário, mais
do que à de simples emulação dos seus códigos e convenções. E, muito embora isso seja
mais evidente nos falsos documentários cômicos, que são assumidamente paródicos e
satíricos, é também verdade para praticamente todos aqueles falsos documentários de
horror, codificados como found footage ou não.
Como bem entendem Laura Cánepa e Rodrigo Carreiro (CÁNEPA & CARREIRO,
2014), “mockumentary” implica em uma paródia de documentário, mais do que pura
e simplesmente em um documentário ficcional, falso, encenado. Alisa Lebow (LEBOW,
2006, p. 229), que defende a inclusão nessa categoria do falso documentário dos filmes
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de ficção que “borrow documentary realistic techniques”, de docudramas e de “mimetic


documentaries”, prefere evitar o termo mockumentary justamente para ampliar sua
abrangência e enfatizar outras posturas que podem ser adotadas, deixando de lado a
ênfase na posição crítica e satírica assumida por esse tipo de obra audiovisual. A escolha
terminológica feita por ela e pelos colaboradores do mesmo volume de artigos sobre o
gênero (JUHASZ, 2006) é assim justificada:
This volume is predicated on a category, the fake documentary, that
the editors have chosen over and above the term mockumentary (...)
It is considered that mocking is only one possible stance that the fake
documentary can take. (LEBOW, 2006, p. 223)
Jane Roscoe e Craig Hight, por sua vez, oferecem duas razões fundamentais para
preferir o termo mock-documentary às outras variações:

159
1 – because it suggests its origins in copying a pre-existing form, in an effort
to construct (or more accurately, re-construct) a screen form with which the
audience is assumed to be familiar;
2 – because the other meaning of the word ‘mock’ (to subvert or ridicule by
imitation) suggests something of this screen form’s parodic agenda towards
the documentary genre. This is an agenda which we argue is inevitably
constructed (however inadvertently by some filmmakers) from mock-
documentary’s increasingly sophisticated appropriation of documentary
codes and conventions. (ROSCOE & HIGHT, 2001, p. 1)
Ambas as razões apresentadas pelos autores como justificativa para a sua escolha
terminológica, portanto, dizem respeito a acentuar o caráter inescapável de paródia
dos falsos documentários. Nesse sentido, as presentes considerações têm por objetivo
conjugar as trajetórias do falso documentário e da paródia no cinema de horror, razão pela
qual a visão de Roscoe e Hight acaba sendo privilegiada, pois ajuda a evidenciar o caráter
fundamentalmente paródico do falso documentário.
Mesmo Barry Keith Grant, interessado apenas nos falsos documentários que buscam
provocar medo no espectador, que recorrem ao formato em busca de uma autenticidade
maior do que aquela geralmente conferida às imagens ficcionais – e sem intenção
paródica, portanto – não consegue evitar descrever filmes do gênero como paródicos
do cinema documental em si. Referindo-se justamente ao primeiro longa-metragem
pseudodocumental, aquele de Jim McBride, David Holzman’s Diary, o autor o descreve
como “a perfect parody of observational cinema” (GRANT, 2013, p. 172, grifo nosso). Ainda
que tendam a ser minimizadas quando a intenção fundamental do autor não é a sátira, as
emanações críticas e paródicas implícitas à imitação de formas deslocadas de seu contexto
original de produção e recepção se fazem presentes em todas as obras que simulam códigos
e convenções alheios aos de seu próprio gênero. A relação, portanto, entre mockumentary e
paródia é sempre necessária, inescapável, intrínseca.
Como já previamente demonstrado pela menção aos “falsos documentários de horror
codificados como found footage” tão populares atualmente, há inumeráveis filmes que se
valem da aparência de documentário sem buscar obter efeito cômico ou criticar abertamente
as convenções e pretensões do gênero, que se apresentam como audiovisuais de não ficção
em busca de maior dramaticidade e suspense para sua narrativa fictícia. Assim, todos os
exemplos de falsos found footage de horror e ficção-científica citados anteriormente são
também, automaticamente, mockumentaries de horror, ainda que possam ser considerados
atípicos, justamente por tentarem mascarar sua natureza intrinsecamente paródica. Dessa
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forma, na expressão mais comum atualmente dos mockumentaries sobressai aquela em que
o formato é aplicado de maneira a “present horror in the most realistic manner possible”
(GRANT, 2013, p. 155). Para atingir tal fim, o caráter zombeteiro e irônico daquela apropriação
dos códigos e convenções documentais para apresentar um conteúdo claramente irreal e
absurdo acaba sendo sublimado ou minimizado pelos filmes que o fazem no intuito de
produzir medo e sustos. Se Atividade Paranormal dificilmente pode ser considerado uma
paródia de documentário, é essencialmente porque sua aparência e estrutura seriam bem
incomuns a um documentário, mesmo do tipo mais puramente observacional, do que
por uma ausência dessa apropriação crítica e satírica de formas culturais que caracteriza
a paródia, uma vez que o filme, sim, imita e subverte códigos de produção audiovisual
documental ou pessoal. Uma vez que a aparência e estrutura de Atividade Paranormal
estão bem mais próximas de uma montagem de gravações amadoras, forma atípica no
gênero documentário, o filme é, assim, atípico também no campo da paródia, que tende
a privilegiar topos e fórmulas recorrentes. Mas, ainda que sua forma não seja tipicamente

160
documental, aproximando-se até mais da aparência de um filme caseiro, amador, não se
pode perder de vista o caráter essencialmente paródico com que convenções – não só
do documentário, nesse caso, mas da produção de imagens no mundo contemporâneo
amplamente considerada – são reproduzidas e manipuladas no contexto de uma obra de
ficção fantástica, subvertendo e comentando sua aplicação típica como instrumentos de
promoção da segurança ou de registro e exposição da intimidade.
Aquela longa lista dos filmes recentíssimos que podem ser classificados como falsos
documentários de horror, bem como a existência de outros anteriores que se utilizaram
do formato documental para projetar maior autenticidade e incrementar seus efeitos
dramáticos,2 permitem que se aplique o termo mockumentary em designações de “gêneros
adjetivos” (ALTMAN, 1999) aparentemente contraditórias: “mockumentary de horror”
e “mockumentary dramático”. A contraditio in terminis, entretanto, é apenas aparente:
mesmo que os falsos documentários desse tipo não tenham nenhum traço de ironia ou
comicidade em seu texto, em sua narrativa, eles continuam podendo ser “lidos”, subtextual e
metalinguisticamente, como paródias de fórmulas, temas, códigos e convenções do gênero
documentário. A expressão é, inclusive, utilizada por teóricos do falso documentário e do
verité horror como Gary Rhodes, que se refere a Aconteceu Perto de Sua Casa e A Bruxa de
Blair como “horror mockumentaries” (RHODES, 2002), no que é seguido por Barry Keith
Grant (GRANT, 2013).
O que se vê nos últimos anos é justamente o mockumentary sendo dominado pelos
“verité horror and sf”. O fantástico, que não se fez muito presente na trajetória do falso
documentário até os anos 2000, tem sido dominante desde então. Para se referir a esses
filmes por uma denominação um pouco mais abrangente que “horror mockumentary”
ou “verité horror and sf”, poderia falar-se ainda em “mockumentary sobrenatural” ou
“mockumentary fantástico”. Jane Roscoe e Craig Hight preferem restringir rigorosamente
o universo do mockumentary ao dos filmes de ficção de aparência documental – excluindo
de suas considerações, portanto, toda a “zona cinzenta” de documentários hipotéticos,
docudramas, documentários encenados etc. – e tal escolha se torna particularmente
evidente e relevante no caso dos falsos documentários de fantasia, horror e ficção-
científica.3
2 Entre os quais se incluem, além dos exemplos já citados de falsos found footage não pertencentes ao
gênero fantástico, outros mockumentaries não codificados como found footage tais como: The War Game (Peter
Watkins, 1965), Special Bulletin (Edward Zwick, 1983) e Catástrofe Nuclear (Threads, Mick Jackson,1984), que
anteveem uma cobertura documental do holocausto nuclear; Without Warning (Robert Iscove, 1994), que simula
a transmissão telejornalística de outra hipótese apocalíptica, da colisão de meteoros gigantes com a Terra; Leave
Yourself Alone (Nicole Eckenroad, 2014), que acompanha uma jovem aspirante a atriz em estilo cinema verité.
Além desses, podem ser mencionados também outros cujo pertencimento ao gênero mockumentary é questionável
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ou só parcial, como: This Girl’s Life (Ash Baron-Cohen, 2003), que não reproduz integralmente a aparência de um
documentário, embora narre a história de uma atriz pornô que grava o seu próprio cotidiano; Catfish (Henry Joost e
Ariel Schulman, 2010), que supostamente revela o submundo dos encontros amorosos marcados pela internet, mas
até hoje é alvo de debates quanto à sua veracidade, sendo considerado um documentário autêntico por uns e um
falso documentário por outros; e a segunda parte de Histórias Proibidas (Storytelling, Todd Solondz, 2001), que se
divide em dois segmentos, um deles codificado como drama e o outro como documentário, batizados ironicamente
“realidade” e “ficção”.
3 Os quais incluem ainda, além dos já citados, outros como American Zombie (Grace Lee, 2007), Monstros
(Monsters, Gareth Edwards, 2010), Outpost 37 (Jabbar Raisani, 2014), The Great Martian War 1913-1917 (Mike
Slee, 2013), telefilme britânico que simula montagem de imagens de arquivo de uma guerra contra uma invasão
marciana nos primórdios do século passado, na tradição da Guerra dos Mundos de Wells-Welles, ou Shadow
People (Matthew Arnold, 2013, também conhecido como The Door), apresentado como um destes reality shows

161
Todos esses pseudodocumentários de horror, ficção-científica ou fantasia, bem como
todos aqueles codificados como found footage mencionados anteriormente, são exemplos
do que Rhodes chamaria de “horror mockumentaries” e que Grant batizou “verité horror
and sf”. Ignorando as sutis, mas relevantes, diferenças de abordagem entre o cinema
verité francês e o direct cinema norte-americano – que dizem respeito à (in)visibilidade
do aparato, da equipe e do processo – Barry Keith Grant lembra que seu termo “‘verité
horror and sf’ refers, of course, to the specific style of observational documentary known
as cinema verité.” (GRANT, 2013, p. 157) Dessa forma, o autor comenta mockumentaries
fantásticos como se partilhassem todos um mesmo estilo, como se imitassem todos um
mesmo modo documental – de forma alguma o que se observa atualmente. Porém, mais
grave que essa indistinção entre os estilos específicos de documentários simulados por
cada um desses falsos documentários de horror, fantasia e sci-fi, é a recusa do autor em
reconhecer que esses filmes, não são apenas pretensas obras do cinema verité, mas no
fundo paródias de cinema-verdade – assim como Spinal Tap já era uma paródia do estilo fly
on the wall do direct cinema – simplesmente por se apropriar das convenções desse estilo
para fins cinicamente opostos: não para revelar o real em maior profundidade, mas para
mascarar ainda mais eficientemente o irreal com aqueles recursos audiovisuais.
Esse reconhecimento de todos os mockumentaries fantásticos como paródias de
documentários – mesmo quando não sejam também paródias de filmes de terror ou de
ficção-científica – é importante para evidenciar de que forma a apropriação das convenções
de um gênero se dá de maneira crítica e satírica em todos os casos, independentemente
das intenções do autor e do grau de paródia manifesto no texto da narrativa. Até mesmo
a própria ideia que sustenta as pretensões de veracidade e autenticidade evocadas pela
presença da câmera intradiegética nos verité horror and sf – a de que alguém poderia filmar
obsessivamente uma situação sobrenatural de vida ou morte, até a própria morte – já em
si um exagero paródico da convenção de objetividade e compromisso com a verdade do
cinema documental, além de um comentário crítico à civilização de imagens onipresentes
em que vivemos.
É assim que podemos diferenciar filmes que são paródicos subtextualmente,
por sua apropriação das convenções formais de determinado gênero, daqueles que o
são textualmente, ao imitarem e repetirem, com variações determinantes, motivos,
personagens, ambientes e situações de gênero ou obra – as paródias propriamente
ditas e reconhecidas como tal. Mais uma vez, é bastante elucidativo o caso de A Bruxa
de Blair, exemplo de paródia de documentário codificada como falso found footage que
se propõe a ser um filme de terror autêntico, não-paródico, mas cujo sucesso motivou o
aparecimento quase imediato de outros mockumentaries que o tomavam como texto-base
para paródia, como A Bruxa de Blair – A Paródia (The Bogus Witch Project (Victor Kargan et
alli, 2000), The Tony Blair Witch Project (Mike E. Martinez, 2000) e The Bare Wench Project
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(Jim Wynorski, 2000), que teve até continuações. Tais versões são triplamente paródicas:
de filmes de terror em geral, de documentários em geral e de pseudodocumentários de
horror codificados como falsos found footage, caso do próprio A Bruxa de Blair, que, por
sua vez, só se presta a reapropriações paródicas como essas justamente por manter oculto
o seu próprio caráter paródico. Uma hipótese para essa insistente recusa em reconhecer
todo e qualquer mockumentary de horror como uma paródia pode ser aventada na menção
ao fato de que “paródia” é uma categoria evitada tanto por realizadores quanto por críticos
por seu baixo prestígio acadêmico, social e intelectual. A paródia de horror, por sua vez,
seria então um assunto duplamente desqualificado.
Quase todos os mockumentaries de horror – codificados ou não como found footage
– são paródicos, críticos e reflexivos, ainda que não percebam e/ou não assumam isso,
televisivos sobre crimes reais, no qual reencenações de “eventos verídicos” são intercaladas a depoimentos das
pessoas envolvidas para a câmera.

162
porque se preocupam apenas com a catarse, com a reação física do espectador aos seus
sustos, hipoteticamente incrementada pelo suposto realismo das imagens e sons e pela
pretensa identificação entre espectador e câmera. Afinal, como aponta GRANT, “verité
horror and sf films align the spectator’s identification more with the camera itself than with
any particular character.” (GRANT, 2013, p. 154) Mas, ao privilegiar desta forma a catarse,
filmes como Troll Hunter acabam expondo sua falha fundamental – a dificuldade de criar
o sentido genuíno de ameaça, esse terror supostamente realista – e negando sua maior
qualidade, que pode justamente estar nos elementos satíricos e críticos implícitos. No caso
de Troll Hunter, a cientista ecológica preocupada em desenvolver uma forma mais humana
e piedosa de tirar a vida dos trolls, ou a teoria conspiratória de que o governo norueguês
estaria se esforçando para ocultar da população a verdade sobre os trolls, ou a crítica ao
desperdício de dinheiro público, ou a caracterização caricatural de “macho rude e sábio”
do caçador de trolls são todos ricos elementos narrativos que acabam subaproveitados
pelo filme, e que talvez ganhassem a atenção e o desenvolvimento merecidos se o caráter
paródico fosse privilegiado – ou pelo menos tomado em pé de igualdade em relação aos
elementos catárticos de aventura e terror.
Como observa Gary Rhodes, nos falsos documentários de horror, “technical
imperfections are understood to be part of the form, and part of what reality on film looks
like” (RHODES, 2002, p. 57), razão pela qual uma das já citadas características típicas
desses filmes é a precariedade – quase sempre fabricada, forjada, simulada, exagerada
– da sua captação de imagens e sons. Em termos gerais, quanto mais tecnicamente
perfeitos forem as imagens e sons de um mockumentary de horror, menos realista, menos
documental, e, portanto, menos eficaz em produzir medo e sustos genuínos ele será.
Mas muitos dos mais famosos mockumentaries de horror, por mais que se esforcem para
parecerem frutos de filmagens amadoras, não nos convencem nem por um segundo de
seu caráter supostamente documental, por serem “perfeitinhos” demais, muito bem
acabados, muito inteligíveis. É o caso, por exemplo, de Cloverfield – Monstro ou de O Último
Exorcismo, que perdem força precisamente por retirarem ênfase de seu caráter paródico
e simultaneamente não conseguirem sustentar um grau de autenticidade condizente com
o “medo real” que tentam provocar. Em contrapartida, aqueles filmes que assumem a
impossibilidade de se apresentarem como autenticamente documentais em sua aparência
e deixam que a mise-en-scène exiba sua natureza fabricada – como demonstra a análise
de Laura Cánepa e Rodrigo Carreiro (CÁNEPA & CARREIRO, 2014) do filme Diário dos
Mortos – permitem com isso que os significados ocultos da obra, seu conteúdo subtextual
crítico e satírico, venham à tona com mais força e enriqueçam a narrativa e a experiência.
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Mas mesmo no caso daquele filme de Romero, o caráter crítico e paródico da narrativa é
secundário em relação à sua apresentação como um filme de terror genuíno, preocupado
em gerar sustos no espectador, mais que reflexão. Assim, pode-se dizer que em linhas
gerais o efeito buscado pelos mockumentaries de horror ao tentarem imitar aparência,
modos e convenções do documentário é de fundo emocional, e não intelectual.
Em outras palavras, o típico found footage de horror, ou verité horror ou horror
mockumentary, está sempre mais preocupado com os efeitos catárticos que pode provocar
no corpo do espectador, tão bem descritos por Linda Williams (WILLIAMS, 2000), Jack
Morgan (MORGAN, 2002) e Noël Carroll (CARROLL, 1999), do que em levar-lhe à reflexão
crítica sobre formatos audiovisuais e sobre modos de produção de imagens – e “fatos
verídicos” – no mundo contemporâneo. Mas, ao privilegiar assim as reações corpóreas
e emocionais em detrimento de estímulos intelectuais, os mockumentaries de horror se

163
afastam daquelas duas características intrínsecas ao gênero do falso documentário: o
caráter paródico e o potencial de gerar reflexão critica. Retomando a afirmação categórica
de Jane Roscoe e Craig Hight, Barry Keith Grant argumenta que

If (...) ‘all mock-documentary texts contain the potential for critical


reflexivity’ (...), verité horror and sf films differ markedly in that
they rarely do so. Indeed, the opposite could be argued about this
cycle of films, for they exploit our psychic investment in the power
and truth status of documentary images to generate emotional
affect. (GRANT, 2013, p. 160)

Surge dessa observação de Grant uma diferença fundamental, portanto, entre


mockumentaries em geral e horror mockumentaries em particular: enquanto aqueles são
assumidamente paródicos e intrinsecamente reflexivos, estes novos “filhos” do subgênero
buscam minimizar o seu teor satírico e se furtar à reflexão crítica.

4. Conclusão
Espera-se que a exposição realizada neste ensaio tenha deixado às claras tanto a
impertinência de se classificar os filmes de horror que se apresentam como compilações
de imagens e sons supostamente captados pelos protagonistas da narrativa como found
footage films quanto a natureza essencialmente pseudodocumental – e, consequentemente,
satírica e paródica – dessas obras.
O found footage é uma técnica cuja presença no panorama atual da realização
audiovisual é cada vez mais relevante e incisiva. Apesar disso, sua disseminação junto ao
grande público e, principalmente, sua incorporação ao cânone dos gêneros audiovisuais
ainda são incipientes. Há muitos filmes de found footage autênticos sendo realizados, mas
sua circulação permanece ainda restrita, na maior parte dos casos, aos festivais de cinema,
em especial àqueles dedicados aos filmes documentais e/ou experimentais. Igualmente
incipiente é ainda a pesquisa acadêmcia e a produção textual crítica a respeito desses
filmes. Os reais significados e aspectos dessa produção, bem como suas características
e os termos utilizados para descrevê-la são questões ainda em disputa no ambiente da
crítica cinematográfica e da teoria fílmica. Por esse motivo, quem se dispõe a estudar tal
produção se move ainda em terreno arenoso e trabalha com ferramentas frágeis. Nesse
cenário, impedir a disseminação ainda maior de imprecisões terminológicas é uma tarefa
salutar.
ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

Por sua vez, os filmes de horror de aparência documental que fazem o uso de câmera
intradiegética são cada vez mais comuns, circulam cada vez mais pelo mundo e atingem
uma parcela do público cada vez maior. Em decorrência dessa explosão, são também
cada vez mais comentados e criticados – profissionalmente ou não – e cada vez mais
objeto de análise acadêmica. Nesse contexto, é importante que sejam vistos, descritos e
analisados pelo que de fato são – pseudodocumentários de temática fantástica, paródias
de documentários, sátiras à produção generalizada de obras audiovisuais amadoras e à
superexposição da intimidade em vídeos de internet – e não por aquilo que aparentam ou
pretendem emular (os autênticos filmes de compilação ou found footage).
Com tais categorias em maior evidência do que jamais experimentaram, found
footage filsm e mockumentaries de horror precisam ser urgentemente separados e não
confundidos, de modo que a disseminação da imprecisa categoria found footage horror não
provoque ainda mais estragos ao consolidar-se como forma de descrever um subgênero
que acabará por ocultar e confundir ainda mais a teoria e a crítica sobre uma categoria da

164
criação audiovisual que ainda clama por estudos mais aprofundados e definitivos. Trata-
se, portanto, de uma desambiguação absolutamente necessária. Afinal, como atesta a
sabedoria popular, “uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”.

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166
GESTOS, CORPOS E CÂMERA:
UM DIÁLOGO COM GILBERT SIMONDON

Autora: Andréa Carla Scansani


Orientadora: Patrícia Moran
Nível: Doutorado

R esumo
Este trabalho é animado pela determinação de pensar a imagem cinematográfica ten-
do como ponto de partida a relação dos corpos que filmam e dos que são filmados
através da observação do que é presente e palpável no momento da filmagem. Para
tanto, faz-se necessário pensar as diferentes naturezas implicadas, o que as conecta
e os possíveis resultados desta equação. A descrição pura e simples não é suficiente
para expor as complexidades envolvidas, pois a imagem gerada pelo mecanismo da
câmera é alimentada por elementos dos mais diversos. O carácter técnico, frequen-
temente dissociado da intuição e presença artística, necessita ser abraçado por um
pensamento que faça a articulação entre estes universos. Sendo assim, nossa argu-
mentação se dará em três etapas: a primeira colocará em questão o papel da câmera e
da natureza da fotografia; a segunda traçará um breve [e não conclusivo] diálogo com
o pensamento sobre o objeto técnico do filósofo francês Gilbert Simondon e a terceira
fará uma aplicação destas considerações num único plano de um clássico do cinema
brasileiro que dispensa apresentações: Os Fuzis de Ruy Guerra (1963). O que está de-
senvoolvido aqui serve-nos mais como uma introdução a desdobramentos futuros do
que como um pensamento definitivo sobre as questões propostas.

Palavras-chave: câmera, corpo, fotografia, Gilbert Simondon

A realização cinematográfica estabelece seu processo de concretização a


partir do momento no qual ideias, esboços e ensaios são transformados em imagens
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[e sons] pela ação de toda uma equipe reunida para este fim. Esses indivíduos, cada
qual com sua competência sobre sua área de atuação, carregam a latência da obra
cinematográfica e têm como convergência espaço-temporal o momento no qual a
câmera é acionada. A cada nova tomada, um estado de presença singular é criado.
Os corpos, aguçados pela atenção na especificidade da tarefa a ser desempenhada
naquele exato momento, movem-se, em maior ou menor sincronia, na manufatura
das camadas que construirão a obra audiovisual. Independente do tipo de produção,
do tamanho da equipe, ou mesmo da finalidade da criação, a câmera age como um
receptáculo aglutinador de gestos. Os saberes das mais variadas áreas envolvidas na
composição fílmica lhe são oferecidos como a uma espécie de catalisadora do cinema.
Entretanto, o que é de fato depositado em seu corpo? Como uma câmera pode traduzir
ideias escritas sobre papel ao mesmo tempo que capta uma intenção discreta, por
vezes imperceptível, do corpo de um ator? Para qual ou quais substâncias a câmera se
abre? Do que é constituído este corpo fílmico?

167
A partir desses questionamentos propomos um percurso pelo fazer
cinematográfico sob a óptica da câmera - instrumento da fotografia - onde esta possa
servir de ligação entre as diferentes materialidades com a qual o cinema trabalha. O
aprendizado fotográfico constitui-se no duplo percurso das Ciências e das Artes. É um
saber híbrido, produto da interdisciplinaridade e de modos díspares de pensamento.
É concebível olhar para a fotografia como um campo de conhecimento contínuo,
metafórico e artístico, do mesmo modo que é possível analisá-la a partir de seus
parâmetros técnicos formulados por óptica, química, eletrônica, informática etc. Ao
explorar teoricamente estas duas vias seu aparente caráter dicotômico parece acentuar-
se. Em contrapartida, a prática fotográfica requer a adoção concomitante do modo
científico e artístico de pensar. É inimaginável atribuir-se a designação de fotógrafo a
alguém sem conhecimentos básicos, mesmo que intuitivos, acerca das possibilidades
técnicas de seus instrumentos, ao mesmo tempo que a sensibilidade estética é seu maior
trunfo. Para um fotógrafo a cisão entre estes dois grandes campos é inexistente. Ambos
são acionados simultaneamente, ainda que possam alternar sua relevância e assumir
posições de maior ou menor destaque em determinado momento. Num claro jogo entre
figura e fundo, entre conteúdo e forma, a composição cinematográfica ganha corpo.
É através da câmera e dos gestos de seu operador, ou operadora, que é encadeada a
dança da filmagem. A composição deste corpo meio humano meio mecânico é o que nos
interessa investigar. Um corpo ativo e alerta que toma decisões técnicas e estéticas na
rapidez e comando do instinto. Um corpo que, na maioria dos casos, é formado por mais
de uma pessoa: uma que se move conduzida pela imagem a ser capturada pela câmera
e outra - ou outras - que a acompanha salvaguardando as distâncias e proximidades
deste olhar. Um corpo único formado pelo corpo maquinal da câmera, pelo corpo do seu
operador e de seu ou seus assistentes. Pensar esta composição múltipla e híbrida como
um único objeto técnico à disposição do cinema é o desafio.
Para estabelecer os vínculos desta perspectiva sugerimos percorrer alguns
caminhos propostos por Gilbert Simondon, em O modo de existência dos objetos técnicos.
Nesta sua tese secundária de doutoramento, de 1958, Simondon questiona a redução
da tecnologia à categoria de mero instrumento e reitera a necessária fusão entre
pensamento e prática. O objeto técnico para Simondon exerce uma influência direta nos
corpos dos indivíduos e, sua ação utilizadora, desencadeia uma alteração transversa,
uma espécie de permuta contínua. Deste modo, o objeto técnico passa a ser visto como
uma conexão entre os corpos e não como um objeto mecânico dissociado da realidade
humana. O autor, desta forma, auxilia-nos a considerar a câmera o objeto técnico
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cinematográfico central e a analisá-la como força de coesão na realização audiovisual,


pois coloca em perspectiva o funcionamento híbrido de uma filmagem. A realização
cinematográfica compreendida como um conjunto técnico, tal qual descrito por
Simondon, oferece-nos os instrumentos para pensar suas partes - elementos, objetos e
indivíduos - e as relações que delas emanam. Ao sustentar o valor da visão simultânea
da teoria e da prática, do pensamento inventivo e da intuição, utiliza com frequência
o modelo figura-fundo cunhado pela Gestalt numa aproximação precisa do modo de
operar da fotografia. Assim sendo, Simondon mostra os caminhos para uma reflexão
sobre a estrutura cinematográfica e os diversos tipos de pensamento e intuição que a
compõem. Com seu apoio, é possível pensar como seres que trabalham na imanência, na
manipulação direta do mundo material e concreto, dão corpo e substância à uma obra
através do conhecimento técnico e dos afectos que lhes permeiam.

168
Imaginemos agora Ricardo Aronovich, o fotógrafo e operador de câmera de Os
Fuzis [São Paulo S.A., etc.] e seus assistentes Affonso Henriques e Hugo Kusnetzoff. Estes
últimos sob comando do primeiro [que por sua vez está sob as orientações de Ruy Guerra]
estão preparados para filmar a cena do beco, onde Nelson Xavier e Maria Gladys [Mário e
Luísa] terão seu momento mais íntimo e intenso de todo o filme. O duelo entre desejo e
raiva, o abismo entre dois corpos na ânsia do toque e na impossibilidade de união. Um dos
planos dessa cena é pensado para ser filmado sem cortes em um único rolo em 35 mm,
portanto com a duração de aproximadamente quatro minutos. A luz já está montada, os
atores estão concentrados e prontos para iniciar a dança. Toda a equipe não especificada
aqui também está atenta aguardando a condução de Ruy Guerra: que provavelmente
indaga: "câmera"? Ao que Aronovich responde após acioná-la e certificar-se de que seu
mecanismo se estabilizou: "foi". É apenas após a confirmação do funcionamento perfeito
da câmera que todos começam a desempenhar seu papel.
Ao assistirmos uma de suas mais complexas cenas, onde Maria Gladys e Nelson
Xavier travam um duelo de amor e dor [fotogramas selecionados abaixo] vemos que
algumas escolhas pré-filmagem são necessárias. Primeiro a iluminação tem que deixar
o espaço livre para a movimentação, que por mais ensaiada que possa ter sido, necessita
de sua dose de improviso para conquistar a força de sua autenticidade. Dentro desta
primeira necessidade priorizou-se o mínimo de visibilidade na correção de foco que
mesmo existente é sutil e razoavelmente precisa. Para que isso pudesse ocorrer numa
cena noturna, a quantidade de luz tem que estar de acordo com o diafragma utilizado
que, neste caso, não pode ser muito aberto para não comprometer a profundidade de
campo. Portanto este conjunto técnico tem que funcionar de acordo com estas escolhas.
Por exemplo: o foquista sabe exatamente quando será necessário tocar na câmera para
corrigir o foco, visto que conhece a objetiva utilizada, sua hiperfocal para dado diafragma
e a profundidade de campo relativa a cada distância entre o corpo da câmera e o corpo dos
atores. O operador por sua vez, ao mesmo tempo que verifica o desempenho técnico da
câmera [através de seus ruídos ou sinais luminosos internos], ele afere a mão do foquista
com seu olhar no visor, ele enquadra pensando não apenas na cena em si mas em tudo
o que está [e deve permanecer] fora de quadro [boom, assistente, eventuais tripés, luzes
parasitas etc.]. Além destas questões que não dizem respeito exatamente à narrativa ou
mesmo à atuação, o operador está atento ao desempenho técnico do ator. O que chamo
de desempenho técnico aqui será a capacidade do ator de se posicionar sem infringir, por
exemplo, a distância mínima na qual a lente poderá focá-lo, ou dar prioridade às áreas
onde os pontos de luz agem de forma a contribuir com a cena.
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169
Todos estes pensamentos passam pela mente e pelo corpo do operador. Se ele vê o boom
se aproximando ele, sutilmente desvia-se sem comprometer o que está sendo filmado. Se o
ator se esconde na sombra, ele busca um novo ângulo que possa favorecer seu rosto. Se há algo
tecnicamente comprometedor o operador tem que ter a capacidade de avaliar sua gravidade e
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render-se ao erro se necessário o que, por vezes, pode acarretar em grandes acertos para o filme.
Este fundo complexo e abarrotado de informações é o que dá forma à figura, é tão
importante quanto a própria interação dos atores que é a parte mais visível da imagem.
No entanto, o que é mais encantador num plano como esse é exatamente a potência deste
conjunto técnico em criar diálogos entre os corpos. A câmera respira a cena tanto quanto Nelson
Xavier e Maria Gladys. Ela deseja, espera, foge, conduz e deixa-se levar. A câmera neste exemplo
nunca age por conta própria, ela é movida pelos atores ou pelas emoções dos personagens. Como
no momento no qual Aronovich faz uma curta panorâmica para a esquerda em ritmo rápido,
quase um chicote, para chegar à Luísa que tentou bruscamente fugir de Mário. Os dois, câmera e
Luísa param quando encontram a parede sempre áspera do beco. Neste exato momento a câmera,
a nosso ver, é o sentimento da personagem. Não é seu olhar, não é um instrumento da narrativa,
mas uma tradução de seu desespero de querer escapar e de querer se entregar e ver que não tem
saída. Poderíamos analisar todos os momentos desta cena, no entanto cremos que nosso ponto

170
está colocado. O diálogo promovido para pensar a fotografia cinematográfica a partir
da técnica tem como propósito problematizar as relações dos mais variados corpos,
dessemelhantes, materiais ou não, envolvidos no cinema: uma arte necessariamente
tecnológica e indiscutivelmente humana.

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Referência filmográfica

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de fotografia e câmera: Aronovich, Ricardo; assistência de câmera: Affonso Henriques
e Hugo Kusnetzoff. 1963. ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

171
A ANUNCIAÇÃO:
SIDNEY OLCOTT E O PRIMEIRO CINEMA

Autor: Pedro de Andrade Lima Faissol


Orientador: Cristian Borges
Nível: Doutorado
Bolsista: CAPES

R esumo
Ao longo do texto, veremos que o filme From the Manger to the Cross (Sidney Olcott,
1912) parece inaugurar uma tendência realista entre as Paixões cinematográficas. Sem
fugir demasiadamente das convenções do gênero (unidades dramáticas autônomas –
os chamados tableaux vivants –, interpretação não-psicológica, predomínio de planos
abertos etc.), Olcott incorpora novos elementos ao filme. Além de ter sido o primeiro
realizador a filmar nas locações em que de fato se passaram os eventos ligados à vida
de Cristo, num gesto que denota um forte desejo de autenticidade, Olcott foi também
o primeiro realizador a incorporar trechos dos Evangelhos às cartelas. Ao longo da
análise da cena da Anunciação, veremos as implicações desses aspectos supracitados,
assim como da figuração de “segundo grau” do Anjo Gabriel, com a inserção de sua
imagem projetada num fundo negro.

P alavras - chave: primeiro cinema, From the manger to the Cross, Anunciação, Rea-
lismo

Os primeiros filmes feitos sobre a vida de Cristo eram peças filmadas. A esse
gênero de montagem teatral, muito popular em toda a Europa durante a segunda
metade do século XIX, deu-se o nome de Paixão1. Dessa forma também foram chamadas
as primeiras filmagens das peças que tratavam da vida e da morte de Jesus Cristo. As
Paixões cinematográficas remontam ao início do chamado “primeiro cinema”. Já em
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1897/1898, há registros de pelo menos quatro pequenos filmes sobre a vida de Jesus: a
Paixão de Léar, a Paixão de Lumière, a Paixão de Horitz e a Paixão de Oberammergau2
– todas as quatro são filmagens de peças teatrais.
Após a virada do século, com a participação de estúdios maiores, como a Pathé
e a Gaumont, ou simplesmente com o desenvolvimento natural do gênero, os filmes

1 Bom deixar claro que, apesar de o nome dado privilegiar a crucificação, as encenações não se limitavam
à paixão de Cristo: além desse episódio decisivo, as Paixões incluíam também diversos outros momentos
descritos nos Evangelhos, como, por exemplo, a Anunciação, o Nascimento, a Fuga para o Egito, o Batismo,
os Milagres de Cristo, a Última Ceia, a Ressurreição, a Ascenção etc.
2 Filmes dirigidos, respectivamente, por Kirchner, Georges Hatot & Louis Lumière, Doc Freeman e Henry
C. Vincent.

172
de Cristo ganham um pouco mais de autonomia em relação às peças originais. Passa-se
a usar, a partir de então, operações formais próprias ao cinema (irrealizáveis num palco
de teatro). Além do uso mais eloquente da montagem, as Paixões da primeira década
do século XX passam a explorar muito os efeitos de trucagem – usados em abundância
para representar, por exemplo, a aparição de um anjo, a ressurreição de Cristo ou a
caminhada de Jesus sobre as águas3. Esses efeitos todos podem ser conferidos nas
inúmeras versões do célebre filme da Pathé, La Vie et la Passion de Jésus Christ (Ferdinand
Zecca & Lucien Nonguet, 1902-1905)4, ou ainda no filme produzido pela Gaumont em
1906: La Vie du Christ, de Alice Guy.
Apesar de algumas mudanças perceptíveis entre as peças filmadas do final do
século XIX e as produções de estúdios já estabelecidos no início do século XX, as Paixões
costumam ser vistas pelos estudiosos do primeiro cinema como um gênero à parte,
não pertencendo exatamente “a um cinema narrativo, nem ao cinema de atrações,
mostrando aspectos de ambas as tendências” (COSTA, 2005, p. 171). Como veremos
mais adiante, elas possuem características muito próprias, e a análise em conjunto das
Paixões deve ser feita com a prudência de um historiador. As primeiras Paixões, diz a
pesquisadora Flávia Cesarino Costa, não devem ser tomadas como “formas acabadas
que se oferecem à análise, mas como rastros de um outro contexto” (COSTA, 2005, p.
170). Era costume naquela época, afinal, a realização e a comercialização de cada rolo
separadamente, e isso às vezes gerava uma exibição misturada dos filmes, uma vez que
“era o projecionista quem fazia a edição ordenando as cenas da estória” (VADICO, 2005,
p. 93).

“Ao analisar uma cópia de uma destas Paixões existentes no


Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, Tom Gunning observa
que ela é, na verdade, uma colagem de várias Paixões e que, neste
sentido, funciona como um palimpsesto do primeiro cinema:
revela o nível de participação dos exibidores na forma final
do filme, uma vez que cada um criava a sua própria versão, ao
mesmo tempo em que nos mostra as ‘energias contraditórias
deste primeiro período” (COSTA, 2005, p. 171).

Além disso, um outro problema que se enfrenta ao analisar uma Paixão do início
do primeiro cinema é que elas não eram vistas como uma obra de entretenimento (o
mesmo pode ser dito sobre as peças da Paixão que herdaram aos filmes sua estrutura
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narrativa e seu maquinário cênico). Conforme relata Ferdinando Gizzi, a “natureza


ambígua” das Paixões cinematográficas, ao mesmo tempo “entretenimento de massa e
meio para devoção religiosa” (GIZZI, 2015), deve-se às próprias peças que serviram de
base para a adaptação cinematográfica. Após a segunda metade do século XIX, as peças de
maior sucesso entre o público europeu, justamente as Paixões de Obeammergau e Horitz
(ambas adaptadas para o cinema), mantinham uma relação indefinida “entre o teatro e

3 Um pouco antes da virada do século, contudo, antecipando a supracitada tendência do início do século XX
(que consiste em “resolver” o milagre através de efeitos de trucagem), Georges Méliès já filmava Le Christ
marchant sur les flots (1899), um pequeno filmete de Jesus caminhando sobre as águas.
4 A inconsistência da data se justifica pelo fato de que os rolos, cada um contendo um episódio diferente da
Paixão, eram produzidos e comercializados separadamente. Além disso, devido ao sucesso comercial do filme, a
Pathé posteriormente refilmou algumas cenas. É possível verificar, ainda hoje, versões híbridas desse filme com
cenas misturadas de diferentes épocas.

173
o ritual religioso” (GIZZI, 2015). Isso explica a opção por atores amadores5 e sobretudo
por um modelo de encenação herdado das chamadas peças de ‘Mistério’ da Idade Média,
mantendo tão somente “frágeis relações com o naturalismo do teatro burguês” (BURCH
apud COSTA, 2005, p. 169).
As Paixões filmadas, além de terem incorporado esse rígido modelo teatral6,
teriam ainda permitido que esses pequenos filmes fossem levados para o interior de
Igrejas, como objetos devocionais, colocados ao lado de pinturas religiosas, relíquias,
esculturas e outros objetos de culto. Ou seja, após o advento do cinematógrafo, pela
sua mobilidade e capacidade de eternizar o registro, as Paixões se tornaram ainda mais
comprometidas com os propósitos devocionais. E o controle da Igreja sobre os filmes era
feito obviamente para atender aos propósitos da Instituição. A censura era sem dúvida
implacável, mas não se tratava apenas de um impedimento institucional. A própria elite
cultural, já devidamente instruída pelo imaginário iconográfico cristão, muitas vezes
exigia uma conformação ao ideal figurativo adotado por essa longa tradição. Isso era
traduzido numa série de restrições à representação de Jesus, de Maria, dos apóstolos etc.
A imagem dos personagens históricos que integravam as narrativas evangélicas,
portanto, povoava o imaginário do público muito antes do advento do cinema. Além de
todo o universo iconográfico da arte cristã (bizantina e ocidental), como também dos
cartões-postais religiosos do período vitoriano – muito populares no século XIX – o
pesquisador Luiz Vadico lembra o importante papel desempenhado pelas Lanternas
Mágicas. Apesar de lhes faltarem o movimento, “esses slides já possuíam estrutura de
mostração que pode ser percebida como uma espécie de narrativa, eram compostos por
blocos de imagens, como: O Nascimento de Jesus, A Fuga para o Egito, A Visita no Templo
etc.” (VADICO, 2005, p. 84). Ou seja, a representação de Jesus no cinema estava muito
distante de ser um campo livre de experimentações, e o seu horizonte iconográfico estava
subordinado a uma longuíssima tradição muito pouco disposta a receber novidades.
Vejamos a seguir um relato de 1896 escrito nas páginas da revista católica Revue de l’art
chrétien7.

“No domínio da arte, deve-se sem dúvidas evitar a rotina, mas na


arte religiosa há uma tradição que deve ser respeitada. Todo cristão
é formado por um ideal da figura divina de Cristo, da Virgem
Maria (...). Nossa mente vislumbra com certa clareza os seus traços
durante a leitura dos Evangelhos (...). E se você me perguntar do
que é feito esse ideal, eu creio que é das obras de arte.” (HELBIG,
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1896, p. 256).

É claro que as restrições impostas pela orientação clerical não se limitavam à questão
da imagem dos personagens evangélicos. A pesquisadora Flávia Cesarino Costa enfatiza
em seu livro a incidência dessas restrições à própria linguagem das Paixões. Durante as
5 Segundo Gizzi, na tentativa de preservar a “pureza, a ingenuidade e a sinceridade” (GIZZI, 2015).
6 O cinema ainda acrescentou uma cartela no início de cada quadro-vivo (os chamados tableaux vivants), o que
apenas tornava a estrutura do filme mais e mais engessada – cada bloco temático completamente autônomo em
relação aos demais.
7 Embora válida para os propósitos da pesquisa, importante ressalvar que a frase a seguir fora usada originalmente
com uma finalidade específica, para criticar as ilustrações bíblicas de James Tissot. Segundo Jules Helgig, o
realismo e a “sensibilidade moderna” das ilustrações de Tissot estariam em contradição com a tradição figurativa
da arte religiosa.

174
duas primeiras décadas de cinema, os realizadores das Paixões filmadas queriam “tratar
de um assunto de apelo popular, mas tinham que enfrentar também uma infinidade de
restrições morais e religiosas” (COSTA, 2005, p. 169). Eles ficavam, portanto, “entre a cruz
e a espada”, e não raro se viam “constrangidos a imaginar encenações que não criassem
problemas”. Isso significava, por exemplo, “evitar caracterizações psicológicas, fugir
de atuações mundanas, manter a artificialidade da interpretação dos atores como um
sinal de reverências ao assunto”. A pouca verossimilhança das Paixões filmadas, conclui
Cesarino Costa, tinha “mais a ver com tais restrições do que com alguma concepção de
montagem tomada isoladamente e fora do contexto do filme.” (COSTA, 2005, p. 169).
A censura da Igreja, a herança teatral, as referências iconográficas, enfim, uma
série de fatores limitou a liberdade dos realizadores ao adaptar para o cinema as histórias
evangélicas. E uma das consequências disso tudo é que a linguagem dos filmes de Cristo
não se desenvolveu da mesma forma, com a mesma intensidade, que outros filmes da
mesma época. Sem medo de fazer prevalecer uma visão teleológica do cinema, Charles
Keil não hesitou em afirmar que as convenções do gênero conduziram as Paixões a
um “retardamento estilístico” (KEIL apud COSTA, 2005, p. 170). Como resume bem o
pesquisador Luiz Vadico, especialista no campo do cinema religioso, a tendência dos
diversos produtores em “não polemizar com vários segmentos religiosos manteve mais
ou menos fixas as características destes filmes” (VADICO, 2005, p. 83).

From the Manger to the Cross

Supõe-se que o filme From the Manger to the Cross (Sidney Olcott, 1912), produção
americana da Kalem Company, inaugure uma tendência realista entre as Paixões do
período. Importante dizer que a conquista desse suposto realismo não vem à custa de
grandes rupturas formais. Contrariando a tendência da época, “já em plena vigência de
códigos narrativos que psicologizavam os personagens” (COSTA, 2005, p. 170), From the
Manger to the Cross se mantém fiel às convenções estabelecidas pelo gênero das Paixões:
interpretação não-psicológica, estrutura narrativa composta de uma sucessão de
“quadros vivos” autônomos, predomínio de planos abertos, uso de pantomimas etc. Essas
limitações, contudo, não impedirão Olcott e sua equipe de incorporar ao filme alguns
elementos novos. Além de filmar todas as cenas nas locações em que supostamente se
passaram os acontecimentos da vida de Cristo, o filme será a primeira Paixão a acrescentar
às cartelas as citações integrais dos Evangelhos. Tais elementos trarão ao filme, como
veremos a seguir, implicações teológicas decisivas.
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A adesão aos parâmetros fixados nas antigas Paixões revela, segundo Charles Keil,
a “astúcia” do realizador, que sabia bem que a caracterização psicológica era problemática
e perigosa. Sidney Olcott, prossegue Keil, estava ciente de que a representação de
Cristo através de uma forma tão conscientemente ligada aos poderes da mímese e da
verossimilhança – tecnologicamente aperfeiçoados pelo cinema – poderia transgredir as
regras religiosas (KEIL apud COSTA, 2005, p. 170). Por isso que, como veremos a seguir,
ao invés de se dedicar à caracterização da imagem de Jesus (questão demasiadamente
polêmica para a época), Olcott prefere chamar a atenção para as cenas de multidão e para
outros recursos não explorados pelas Paixões anteriores.
Para que fique claro o deslocamento proposto por Olcott, analisaremos a seguir
a cena da Anunciação de From the Manger to the Cross. O episódio do Anúncio de Maria
(e a um só tempo – graças à ação do Espírito Santo – a concepção miraculosa de Jesus,

175
a chamada “conceição virginal”), além de ser um dos momentos privilegiados de nossa
pesquisa, será também a ocasião perfeita para compreendermos a referida “astúcia”
do realizador, já que as principais características do filme estão todas já presentes na
cena supracitada. Para esse estudo mais detalhado, separamos nove fotogramas da
cena. Destrincharemos os principais pontos do filme a partir da análise de cada um dos
fotogramas reproduzidos a seguir.

Fotograma #1:
Na primeira cartela da sequência selecionada, verifica-se a manutenção da
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estrutura do filme ainda fixada em blocos temáticos. Tal como nas Paixões do início do
Primeiro Cinema, From the manger to the cross se estrutura em uma sequência de “quadros
vivos”. Nesse caso, porém, percebe-se que Olcott combina numa mesma “unidade
dramática” dois episódios distintos (a Anunciação e a Infância de Cristo), normalmente
tratados separadamente. De todo modo, o mais importante aqui é destacar o uso tardio
dos chamados tableaux vivants.

Fotograma #2, Fotograma #4:


Além de cumprir a tendência descritiva das Paixões anteriores, a cartela do
Fotograma #2 antecipa o que é entrevisto no Fotograma #4: a cidade de Nazaré.
Selecionamos esses dois fotogramas, analisando-os em conjunto, pois fazem parte de
uma mesma intenção: colocar o espectador diante das locações em que se desenrolaram

176
os acontecimentos relacionados à vida e à morte de Jesus Cristo. No quarto fotograma,
vemos Maria transportando sobre sua cabeça um goolah (jarro tradicional da época)8
em um plano bastante aberto. A personagem em primeiro plano e a cidade no fundo do
quadro: essa lógica composicional se repetirá sistematicamente, e por vezes com ainda
mais ênfase, ao longo de todo o filme. Essa é apenas a primeira cena de uma longa série de
cenas filmadas em exteriores com algum personagem em primeiro plano. A composição
é toda concebida para valorizar, no fundo do quadro, as locações reais que serviram
de palco para a história de Cristo. Afinal, como já adiantamos, o filme foi todo filmado
na Palestina (Jerusalém, Nazaré, Belém, entre outras) e no Egito, conforme a descrição
geográfica das passagens citadas nos Evangelhos 9.
A busca sistemática de Olcott pelas locações verdadeiras, gesto que denota um forte
desejo de autenticidade, chega a beirar a obsessão. Um dado biográfico de sua carreira
nos ajuda a compreender, sob sua perspectiva, o sentido dessa busca: além de ter sido o
primeiro diretor da Kalem Company a fazer filmes em locações externas, Olcott “viajava
frequentemente em busca de locais que aumentassem o realismo de suas produções”
(VADICO, 2005, p. 154). A fonte d’água entrevista no Fotograma #4, por exemplo, é a
mesma que, segundo a tradição, “a Virgem Maria ia com Jesus buscar água” (VADICO,
2005, p. 169). E o mesmo acontece em diversos outros momentos do filme: a inclusão do
episódio “Chamado dos Pescadores”, por exemplo, não era usual nas Paixões antigas, ela
aparece em From the Manger to the Cross simplesmente porque – segundo Luiz Vadico
–, diferente das tantas locações destruídas ao longo dos séculos10, “lá estava o Mar da
Galiléia” (VADICO, 2005, p. 163). Luiz Vadico chega ao ponto de admitir que a escolha das
cenas mostradas pelo filme estava “mais vinculada à disponibilidade de locais do que a
questões eminentemente evangélicas ou narrativas” (VADICO, 2005, p. 163).

“Houve preocupação real em se filmar os pontos nos quais


a ‘tradição’ narra ter acontecido diversos episódios que se
encontram nos Evangelhos (...). A grande preocupação da câmera
era mostrar a paisagem e os lugares, as construções antigas, as
cidades pitorescas, e os lugares ‘autênticos’ onde ocorreram os
episódios evangélicos” (VADICO, 2005, p. 162).

Os fotogramas abaixo dão uma dimensão da forte ênfase dada às cidades. Trata-
se, respectivamente, de Jesus Cristo refletindo no Monte das Oliveiras e de João Batista
pregando na Judeia. Observe que as cidades ao fundo ganham tanto (ou ainda mais)
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destaque quanto os personagens históricos mostrados em primeiro plano.

8 A inclusão dessa pequena caminhada da virgem transportando um jarro d’água (sempre antecedendo a cena da
Anunciação) era comum nas Paixões da época. A intenção é clara: reforçar a “domesticidade” de Maria. Trata-se,
afinal, de uma mulher do século. Esse aspecto mundano da virgem era realçado no Primeiro Cinema para criar
um importante contraste com a sacralidade do anjo no momento do Anúncio.
9 Não se trata de um dado extra fílmico: ainda na sequência dos créditos iniciais, o espectador é enfaticamente
advertido, por uma longa cartela, que se trata de um filme inteiramente rodado nas locações autênticas.
10 Sabe-se que a Jerusalém dos tempos de Cristo foi praticamente toda destruída pelos exércitos romanos no
início do século II. “Roma determinou que a cidade [Jerusalém] fosse completamente arrasada, que não sobrasse
dela nem as muralhas e que em seu lugar fosse construída uma nova cidade Élia Capitolina, que por sua vez mais
tarde seria destruída por outros povos.” (VADICO, 2005, p. 162).

177
O quadro é todo concebido para o espectador olhar as locações, ver as cidades
que testemunharam a vida de Cristo – e que, portanto, ainda guardam as marcas de sua
remota presença. A decisão de Olcott de filmar diretamente nas locações reais, abrindo
mão do controle que os grandes estúdios proporcionavam aos filmes, decerto diz muito
sobre o filme que Olcott tinha em mente ao realizar From the Manger to the Cross: era sem
dúvida o reflexo de sua visão realista da (ainda iniciante) arte cinematográfica.
Por vezes, como podemos ver nos fotogramas a seguir, os elementos contidos
no fundo do quadro se revelam bastante imponentes ou ostensivos. As pirâmides do
Egito e a Esfinge de Gizé servem como exemplos perfeitos do impacto que a ruína de
uma civilização antiga pode reter em sua superfície. Vejamos os fotogramas abaixo, era
a primeira vez que o cinema de ficção se apropriava diretamente desses monumentos.

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Ao invés de forjar enquadramentos que correspondam a uma tradução plástica, no


interior da própria imagem, de uma tensão colocada em jogo pela trama do filme, Sidney
Olcott simplesmente acrescenta no fundo do quadro alguns vestígios das verdadeiras
locações (fazendo coincidir os relatos evangélicos com as imagens encenadas) para nos
causar uma forte impressão de realidade. Tal impressão de realidade, bom que fique
claro, deve seu impacto à gênese fotográfica do cinema: a força do índice! É assim, nesses
termos, que devemos ancorar o realismo de Olcott. Não se trata de verossimilhança,
naturalismo ou psicologização dos personagens. O coeficiente de realidade do filme se
deve à sensação muito concreta de estarmos diante das cidades que de fato serviram de

178
palco para a vida de Cristo – e que ainda hoje abrigam os seus rastros.
A vocação indicial11 herdada pelo cinema supostamente minimizaria o seu
papel mediador, e Olcott parece tirar proveito dessa ideia para tentar preencher o seu
filme com a luz que incide diretamente na Cidade Santa (e em outros locais sagrados
para o Cristianismo) e imprime no material fotossensível as suas próprias marcas, os
seus vestígios. Um pouco à maneira do que diz Roland Barthes em A câmara clara,
o espectador de cinema seria também tocado, tal como numa fotografia antiga, pela
“emanação do referente” (BARTHES, 1984, p. 121). Apesar de toda a distância temporal
que nos separa da época de Jesus, a luz captada pelo filme teria o potencial de nos atingir
[espectadores crentes] “como os raios retardados de uma estrela.” (BARTHES, 1984, p.
121). É sem dúvida esse tipo de emoção que Sidney Olcott parece tentar provocar ao
longo de todo o filme.
Antes de concluirmos esse item da análise fílmica e voltarmos à cena selecionada,
convém fazermos agora um rápido esclarecimento. A crença de que o cinema era capaz
de apreender a realidade sensível diretamente, imediatamente (sem mediação), e –
sobretudo – objetivamente (sem passar pela mão do homem), é muito antiga. Antigos
também são os relatos que comprovam o efeito de realidade que as primeiras projeções
públicas causaram no imaginário do espectador. E decerto não precisamos perpetuar o
mito da primeira exibição de A chegada de um trem à estação (1896) para comprovar essa
asserção. Vejamos o que diz Jacques Aumont acerca da “força alucinatória” dos efeitos
de realidade junto ao público do início do Primeiro Cinema.

“(...) a história do pavor diante da locomotiva faz dos espectadores seres


um pouco rudes, sensíveis a um efeito de real global e bem primitivo.
Ora, foi, de modo um pouco mais sutil, por efeitos de realidade que
eles foram tocados. Insisto sobre a verdadeira força alucinatória desses
efeitos: um vê, por exemplo, as barras de ferro ‘incandescerem’ (em
Ferradores), outro vê as cenas reproduzidas ‘com cores da vida’; de
todos os relatos que li, não há um sequer que lamente, ao contrário,
só ter visto uma imagem cinza. Manifestamente, são esses efeitos que
prevalecem.” (AUMONT, 2004, p. 31).

Obviamente que os chamados efeitos de realidade eram sentidos pelo público


(e fabricados pelos realizadores) desde o primeiríssimo cinema. From the Manger
to the Cross é o primeiro filme com traços realistas apenas no universo das Paixões
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cinematográficas. Mas o que realmente particulariza o filme de Olcott no âmbito das


grandes obras religiosas é que, pela primeira vez, os efeitos de realidade eram usados
com propósitos devocionais.

Fotograma #3, Fotograma #5, Fotograma #7:


Os intertítulos ilustrados nos fotogramas 3, 5 e 7 tomam de empréstimo o
11 A característica inerente à fotografia (herdada pelo cinema) que garante à imagem fotografada, na qualidade
de índice, ser diretamente afetada pelo objeto ao qual ela se refere (o referente).

179
texto evangélico para narrar o episódio da Anunciação. Como já dissemos antes, não
há registro algum anterior a 1912 de um filme que tenha preenchido as suas cartelas
com citações diretas das Escrituras. “Até onde se tem notícia este é o primeiro filme
a fazê-lo” (VADICO, 2005, p. 168). O recurso às fontes originais da Bíblia se tornaria,
posteriormente, uma constante no cinema silencioso. Após From the Manger to the Cross,
importantes produções sobre a vida de Cristo também usaram essa mesma estratégia –
como se pode verificar no próprio Rei dos Reis (1927), de Cecil B. DeMille, a mais lembrada
Paixão de Cristo do período silencioso.
Esse dado, aparentemente desimportante, diz muito sobre a intenção do
realizador e de sua equipe. Reproduzir trechos integrais dos Evangelhos para contar uma
história, para além do sentido religioso do próprio texto, é também uma operação (não
a única) que consiste em se excluir da obra. Olcott e o roteirista do filme, Gene Gauntier,
supostamente abrem mão de suas participações como “comentadores” ou “dialoguistas”
das cenas para dar ao filme, além de muita concisão e eficiência narrativa, um acréscimo
de sacralidade. Uma história que se conta por si só – eis a impressão causada pelo emprego
desse recurso. O filme é repleto de operações que convergem em torno de uma mesma
ideia: o apagamento das impressões digitais do autor. Sem os traços aparentes do autor,
da equipe do filme e/ou da indústria que fabricou a história de Cristo, fica mais fácil
reconhecer as suas marcas indiciais. Conforme veremos mais adiante, a incorporação
das Escrituras ao filme é apenas mais uma dentre um conjunto maior de operações com
esse mesmo objetivo.

Fotograma #6, Fotograma #8:


A Anunciação de From the Manger to the Cross opta por uma figuração discreta
do Anjo Gabriel. Ao invés de escalar um ator para interpretar o Anjo, como era comum
nas Paixões do Primeiro Cinema, Olcott projeta a sua imagem num grande fundo negro,
dando ao Anjo o aspecto fantasmagórico (e, no caso, de baixa visibilidade) de imagem
projetada. Como se verifica no fotograma #8, a imagem do Anjo não é muito clara. Como
se trata de uma imagem projetada, o Anjo é uma aparição de “segundo grau”, já que sua
aparição não faz parte da mesma realidade ontológica que a da Virgem. Além disso, Olcott
dispensa todo o arsenal simbólico que costuma acompanhar a sua figuração. Claro que
as cartelas explicativas (com os intertítulos que correspondem às citações integrais das
Escrituras) ajudam o espectador a remontar o sentido espiritual da cena. Contudo, não se
deve ignorar a impressionante concisão da cena. Será que tamanha economia cênica basta
para reencenar – e fazer reavivar no espectador crente – o episódio da Anunciação? Ou
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será que Olcott e sua equipe estão confiando demasiadamente na capacidade dedutiva de
um espectador já devidamente informado pela narrativa evangélica? Para que possamos
avançar na análise, vamos agir um pouco por comparação. Escolhemos como objeto de
comparação dois filmes realizados logo após o filme de Olcott. Muito coincidentemente,
esses dois filmes têm o mesmo título: Christus. O primeiro, de 1914, realizado pela Etna
Film, é dirigido pelo italiano Giuseppe de Liguoro. O segundo12, feito dois anos depois,
em 1916, é da autoria de Giulio Antamoro.

12 Produção da Società Italiana Cines.

180
Christus (1914), de Giuseppe de Liguoro

No filme de Liguoro13, o dispositivo usado para representar a “aparição” do anjo


Gabriel é claro, unívoco: a trucagem. E a figuração do anjo é carregada de todos os
simbolismos que denotam uma representação idealista do mundo celestial (como se
vê na vestimenta do anjo, como também na sua auréola e asa). A nuvem cenográfica,
que serve como uma espécie de pequeno tablado para a aparição do anjo, é uma
derivação explícita das peças das Paixões. A nuvem é um signo, ela significa o mundo
celestial do qual faz parte o anjo – artifício que explicita a origem cênica dessa forma
de dramaturgia. O tecido preto, colocado no fundo do quadro, é usado sem dúvida
para minimizar as referências ao mundo doméstico (e, por conseguinte, mundano) da
virgem no momento da aparição. Tudo na cena evoca uma artificialidade construída14.
Uma cena montada por um diretor que não está interessado em explorar a vocação
supostamente realista do cinema.
Já no filme de Giulio Antamoro, o milagre da Anunciação é operado por
intermédio de uma citação explícita. Antamoro monta uma cena exatamente idêntica
a uma das mais célebres pinturas do quattrocento italiano: Annunciazione, de Fra
Angelico15. Até a divisão do quadro em duas partes, demarcando muito nitidamente
a separação entre o mundo terrestre da virgem e o mundo celestial do anjo, é uma
herança da fixidez pictórica. No final da cena, quando o anjo “aparece” para Maria (via
efeito de trucagem), para que não haja dúvidas de que se trata de uma referência à obra
de Fra Angelico, Antamoro acrescenta ainda uma chamativa moldura etiquetada com
a referência explicitada16.

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13 Uma ressalva importante: a versão que se vê acima, aparentemente a única que sobreviveu ao tempo, foi
colorizada num convento francês em 1928.
14 Era muito comum nas Paixões da época, segundo Luiz Vadico, a auréola da Virgem ser “desenhada em
cartão, e colocada sobre a cabeça da atriz”. Quanto aos anjos, eles eram normalmente “representados com asas
imensas e acompanhados por ‘brilho’ de papelão” (VADICO, 2005, p. 194).
15 Nesse momento, parece-nos oportuno ressaltar que se trata de uma referência intertextual completamente de
acordo com o que se esperava de uma obra religiosa. Não à toa, o filme rendeu a Antamoro e sua equipe elogiosos
comentários. Ferdinando Gizzi nos lembra que alguns críticos da época idolatraram a atriz que interpretou a
Virgem nesse filme devido a sua “simplicidade, hierática modéstia de seus gestos que a transformaram em
modelo vivo, digno da arte de Rafael” (LARCHET apud GIZZI, 2015). Conforme mencionamos mais acima,
as Paixões do Primeiro Cinema não estavam ainda livres de uma herança iconográfica muito devedora da arte
canônica, e esse tipo de intertextualidade decerto ajudou na recepção do filme junto ao público da época.
16 Sabe-se, contudo, que o afresco de Fra Angelico, localizado nas paredes do convento de São Marco, em
Florença, não possui qualquer tipo de moldura para delimitar a pintura do restante do espaço.

181
Christus (1916), de Giulio Antamoro Annunciazione (1440-1450), de
Fra Angelico

É muito perceptível que, nesses dois filmes que nos serviram de comparação, a
cena da Anunciação pega de empréstimo as operações consagradas pelo teatro e pela
pintura, não explorando as especificidades do cinema. Em comparação a esses dois
filmes, Olcott parece confiar muito mais na potência do cinematógrafo. Ao optar por
não figurar explicitamente a aparição do anjo Gabriel, colocando o espectador diante de
Maria a olhar atônita para uma discreta imagem projetada ao fundo, Olcott demonstra
uma grande confiança no invisível. A abstração é alcançada, contraditoriamente,
pela concretude com que o mundo é investido na cena, transferindo à imaginação do
espectador o sentido espiritual do episódio bíblico.

Fotograma #9:
Uma característica visível em todo o filme, que ganha uma importância ainda
maior nas operações miraculosas, é a frontalidade com que os atores por vezes se
colocam diante da câmera. Essa característica, que pode ser conferida no fotograma
#917, também denota a confiança do diretor na imagem (imagem como portadora de
uma Verdade). A imagem de Cristo – como também dos outros personagens históricos
que integram a narrativa evangélica – só seria perfeitamente acolhida diretamente,
frontalmente. É por isso que Olcott e sua equipe evitam angulações ou quaisquer outros
recursos que se notabilizam pela inteligência do “enquadrista” ou do metteur en scène.
Trata-se sempre, enfim, de um mesmo princípio: reduzir tudo aquilo que se coloca entre
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o espectador e o Sagrado, apagando as impressões digitais do homem que fabricou a


obra.

Bibliografia
AUMONT, Jacques. O olho interminável [cinema e pintura]. São Paulo: Cosac & Naify,
2004.
BARTHES, Roland. A câmara clara – nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984.
17 O gesto pantomímico da virgem também chama a atenção no referido fotograma. Como dissemos no início
da análise, o suposto realismo do filme não vem à custa de grandes rupturas formais. Apesar de incorporar ao
filme elementos decisivos, Olcott se mantém fiel às convenções estabelecidas pelo gênero das Paixões.

182
COSTA, Flávia Cesarino. O primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação. Rio de
Janeiro: Azougue, 2005.
ELSAESSER, Thomas (org.). Early Cinema: Space Frame Narrative. Londres: BFI, 1990.
GIZZI, Ferdinando. “The Depiction of the Passion of Christ in Early Cinema:
between Artistic Tradition and Modern Representational Issues”, In: Theatralia et
cinematographica: Czech and Slovak Journal of Humanities, 1/2015, pp. 45-66.
VADICO, Luiz Antonio. A imagem do ícone – Cristologia através do cinema: um estudo
sobre a adaptação cinematográfica da vida de Cristo. Tese de doutorado da Universidade
Estadual de Campinas, 2005.

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183
O ATOR DO TEATRO AO CINEMA:
KULESHOV, EISENSTEIN e PUDOVKIN

Autora: Sabrina Tozatti Greve


Orientador: Cristian Borges
Nível: Mestrado
Bolsista: FAPESP

R esumo
Este trabalho pretende destacar a apropriação de algumas técnicas teatrais de inter-
pretação para o cinema, contemplando a pesquisa de Kuleshov, Eisenstein e Pudov-
kin.

P alavras - chave: Ator; Cinema; Pudovkin; Eisenstein; Kuleshov

Em O que é o cinema?, Bazin defende que “a tela modificou, com efeito, nosso
senso de verossimilhança na interpretação” (BAZIN, 2014, p. 196), exigindo do ator
uma interpretação no limite da realidade. E, se ainda nos primórdios do cinema o
estilo de interpretação do ator já apontava certo exagero na tela, fruto da herança
da interpretação teatral; com o advento do cinema falado a questão do exagero de
expressão aliada ao tom declamatório dos atores tornou-se um problema. Eisenstein
resume bem a questão levantada na época, citando as palavras do ator inglês George
Arliss: “Sempre acreditei que, no cinema, a interpretação devia ser exagerada, mas vi
imediatamente que a discrição era a coisa principal a ser aprendida, por um ator, para
transferir sua arte do palco para a tela” (EISENSTEIN, 1990, p.23). Pudovkin, por sua
vez, chegou a cunhar o termo “cinematografização” (em oposição a “teatralização”)
na tentativa de diferenciar e descobrir um novo paradigma de interpretação para os
atores no cinema. Sua teoria era que, se no teatro o ator deveria aprender técnicas
específicas de expressão para o palco, no cinema o ator deveria aprender as técnicas
específicas relativas ao fazer cinematográfico.
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Mesmo com ressalvas em relação aos métodos teatrais de interpretação, as


pesquisas em relação ao trabalho do ator no teatro serviram de referência para o
desenvolvimento da interpretação cinematográfica. E juntamente com a evolução do
cinema, a questão do estilo de interpretação do ator também passava por reviravoltas
no âmbito teatral: o diretor e ator K. Stanislavski rompia com os parâmetros de
interpretação conhecidos até então, investindo na criação de um Sistema para o ator
em busca de maior verdade. Em contrapartida, seu ex-discípulo Vsévolod Meyerhold,
criava uma proposta de pesquisa divergente do seu mestre, estabelecendo assim dois
caminhos distintos no aprimoramento da arte do ator.
Concomitantemente às pesquisas de Stanislavski e seus discípulos; Lev
Kuleshov, Sergei Eisenstein e Vsevolod Pudovkin, juntamente com suas pesquisas em
relação à montagem e ao cinema falado, iniciavam também suas primeiras reflexões

184
específicas a respeito da interpretação cinematográfica. Destaco aqui algumas teorias
desses cineastas russos, pioneiros na tentativa de sistematizar o trabalho do ator no
cinema.

Lev Kuleshov (1899 – 1970)

Kuleshov defendia que todos os elementos para a construção de um filme


deveriam estar interligados de maneira lógica e ininterrupta, e o resultado de um bom
roteiro só atingiria sua excepcionalidade por meio de uma interpretação coerente
dos atores. O famoso experimento de Kuleshov, mais tarde conhecido como “efeito
Kuleshov” – que resultou na “construção de um espaço-tempo narrativo marcado pela
procura da impressão de realidade e da identificação” (XAVIER, 2005, p. 47) –, surge
durante o workshop films-without-film 1, em meio às reflexões sobre o cinema griffithiano
e os filmes de Chaplin. Como se sabe, o experimento causou uma forte repercussão na
Rússia, confirmando a primazia da montagem no resultado final da interpretação dos
atores.
Impulsionado por essa nova visão em relação ao trabalho do ator no cinema,
Kuleshov desenvolveu diversos exercícios para “des-teatralizar” a performance dos
atores em seus filmes. Ronald Levaco, organizador e tradutor para o inglês dos escritos de
Kuleshov, em nota introdutória ao livro, afirma que Kuleshov se interessa pelo conceito
de Biomecânica desenvolvido no teatro por Meyerhold e, assim como seu discípulo
Eisenstein, vê possibilidades de aplicação do conceito no trabalho do ator para o cinema,
juntamente com alguns princípios de montagem. Se porventura, nas palavras de Levaco,
o resultado dessa relação criou “um estilo de interpretação ascético”, por outro lado, as
teorias de Kuleshov eram uma “tentativa pioneira em estabelecer um código de atuação
ou método de expressão para a tela” (KULESHOV, 1974, p. 11).
Assim como Meyerhold rompia com o teatro de Stanislavski, que passou a
ser considerado como um teatro de realismo burguês (e portanto decadente naquele
contexto), Kuleshov ambicionava criar uma montagem cinematográfica “que poderia
transformar e libertar o cinema da condição de ser uma mera cópia da realidade,
determinada pelas tradições naturalistas e realistas do teatro burguês” (KULESHOV,
1974, p. 27). Através da repetição, da consciência corporal e da sensibilidade em relação
ao ritmo musical, Kuleshov criou uma série de exercícios para que o ator alcançasse
verossimilhança/verdade em sua gestualidade para o cinema. Assim como Meyerhold
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defendia o domínio do gesto e a ideia de que, se o ator assumisse uma postura física de
tristeza, ele naturalmente ficaria triste, Kuleshov também acreditava que o sentimento
só brotaria no ator através dos exercícios físicos. Esse treinamento físico do corpo se
estendia também para o trabalho de expressão facial. Nesse ponto, Kuleshov afirmava
que “o sistema de Delsarte2 pode ser muito útil, mas apenas como um inventário das
possíveis alterações no mecanismo humano e não como um método de atuação”
(KULESHOV, 1974, p. 107).

1 O workshop, criado em 1920, era uma espécie de ensaio de filmagem, uma vez que não havia câmeras, e
tinha como premissa desenvolver a sensibilidade da direção em diretores e atores. Entre os integrantes desse
workshop, estavam: Khoklova, Obolensky, Boris Barnet, Eisenstein e Pudovkin.

2 François Delsarte (1811-1871), foi um ator e cantor francês que, segundo Odete Aslan (no livro O Ator no
século XX. São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 40): “estudou o corpo, músculo por músculo, falange por falange,
estabelecendo relações entre os movimentos do corpo e os do espírito”. Ele criou todo um sistema gráfico ges-
tual onde os sentimentos poderiam ser representados a partir da plasticidade do corpo e da face.

185
Se os resultados práticos dos seus exercícios nem sempre pareciam convincentes
na tela, não podemos negar a importância do seu pioneirismo na apropriação de técnicas
teatrais a serem adaptadas para o cinema. Sergei Eisenstein, participante do workshop
films-without-film e posteriormente, discípulo de Meyerhold, também se apropriou do
conceito da biomecânica na busca de uma sistematização para o trabalho do ator no
cinema. Mas, ao contrário de Kuleshov, Eisenstein não descartou totalmente alguns
princípios conquistados por Stanislavski.

Sergei Eisenstein (1898 – 1948)

“Como sempre, a mais rica fonte de experiência é o próprio Homem.”3

Como sabemos, antes mesmo de se tornar cineasta, Sergei Eisenstein teve um


percurso considerável no teatro: iniciou sua carreira como cenógrafo e figurinista (criou
desenhos para 75 peças aproximadamente, nem todas apresentadas), e dirigiu alguns
espetáculos teatrais com relativo sucesso, entre eles: O processo, de Gógol (1920), Escuta,
Moscou? (1923) e Máscaras de gás (1924), essas dois últimos com dramaturgia própria.
Inclusive, seu primeiro trabalho cinematográfico foi exibido no teatro: o curta-metragem
O Diário de Glumov, parte integrante do seu espetáculo O Sábio, baseado em Ostróvski
(1923).
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Como discípulo e aluno de V. Meyerhold (ator, diretor e ex-discípulo de


Stanislavski), Eisenstein se aprofundou no conceito de Biomecânica e produziu seus
primeiros manifestos que constituíram a base de toda sua teoria desenvolvida tanto no
teatro como no cinema posteriormente: O movimento expressivo e A montagem de atrações
(1923). O primeiro manifesto é pouco citado na análise da teoria e obra eisensteiniana por
justamente ser escrito concomitantemente com Tretiakóv e não ter sido publicado nos
livros de Eisenstein. E nesse texto estariam as bases de uma biomecânica eisensteiniana,
onde ele desenvolve seu próprio sistema de treinamento para o ator, ou melhor, “o seu
entendimento de como se dá o processo de criação e de atuação do ator, sempre tendo
em vista a realização dos movimentos mais expressivos” (OLIVEIRA, 2008, p. 8)

3 Frase de Eisenstein presente no ensaio “Sincronização dos Sentidos”, publicado no livro O Sentido do Filme
(Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 50), que remete à sua própria citação da frase de Gorki, em A Forma do
Filme: “Tudo está no homem – tudo é para o homem” (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 141).

186
.

Exemplos de exercícios de biomecânica, por Meyerhold

Superando seu mestre, Eisenstein criticava o trabalho de Meyerhold, afirmando que


suas performances não eram suaves, seus movimentos eram muito marcados, tinham a
precisão de uma máquina; e ele procurava uma precisão mais fluida e orgânica no trabalho
do ator. E, mesmo reforçando que o objetivo do ator em cena não seria “a ‘sinceridade’ do
movimento do ator, mas sua imitação, sua mímica contagiante” (OLIVEIRA, 2008, P. 105),
premissa esta que também estava presente nas ideias de Meyerhold, Eisenstein questiona
o efeito estético que a pura reprodução perfeita da gestualidade poderia causar:

O movimento pelo movimento não evoca uma reação de emoção direta


– a gesticulação no ballet pode até criar um efeito estético, baseado na
admiração dos movimentos, ou um efeito erótico, mas não evoca uma
emoção dramática condicionada pela luta dos motivos e baseada no
movimento expressivo (ESEINSTEIN and TRETYAKOV, 1979, tradução
minha).

Ou seja, Eisenstein não concordava que a simples reprodução mecânica de um ges-


to suscitaria a emoção necessária na ação dramática. No caso, o trabalho físico, sobreposto
a qualquer trabalho de reflexão interior, não seria absolutamente eficaz no resultado final.
E embora Eisenstein critique muito o método “monolítico” desenvolvido pelo Teatro de
Arte de Moscou de Stanislavski, ele considera que há espaço para reinterpretar alguns
aspectos positivos desse método, uma vez que “qualquer ator ou diretor é, na realidade,
capaz de deduzir estes aspectos a partir de sua experiência ‘interior’, se ele consegue deter
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o processo para examiná-lo” (EISENSTEIN, 1990, p. 29). Ele acreditava que seria possível
resolver “as contradições colocadas tanto pelo teatro naturalista quanto pelo teatro con-
vencional – representados, respectivamente, pelas figuras de Stanislavski e Meyerhold”
(OLIVEIRA, 2008, p. 137). Para tal, o cinema poderia obter a síntese necessária a partir de
ambos. E esta síntese poderia ser guiada através do “domínio de todas as sutilezas da cria-
ção da montagem em todas as suas aplicações.”
As reflexões sobre as influências de Eisenstein em relação ao trabalho do ator, para
além do conceito da Biomecânica, focam sobretudo no trabalho da commedia dell’Arte
(premissa importante para o conceito de tipagem, por exemplo), do teatro Kabuki, do teatro
de Grand-Guignol, da sua experiência com a FEKS (Fábrica do Ator Excêntrico), do circo,
do music-hall e do teatro simbolista, referências estas também de Meyerhold. Porém, em
O Sentido do Filme, seu primeiro livro publicado, Eisenstein aponta um aspecto pouco
analisado e que se mostra também muito produtivo no trabalho de criação do ator:

187
a questão da imaginação (ou o mágico “se”4 de Stanislavski). Como elemento
catalizador na construção da personagem e da mise-en-scène, Eisenstein relaciona o
exercício da imaginação com os princípios da montagem através da “técnica interior do
ator”, por ele denominada. É curioso observar o destaque que Eisenstein dá ao trabalho
da imaginação, uma vez que é um processo interno, totalmente antagônico ao trabalho
da Biomecânica (e consequentemente do movimento expressivo), e é uma das matrizes
da teoria de Stanislavski.
Antes de pormenorizar em que consiste a técnica interior do ator, vale uma
digressão sobre o papel da imaginação no trabalho do ator. Em A Preparação do Ator,
Stanislavski diz que “cada movimento feito em cena, cada palavra dita é o resultado da
vida certa das imaginações criadas pelo ator” (STANISLAVSKI, 1991, p. 96). A metodologia
para ativar a imaginação pode ser feita através do raciocínio lógico, e “muitas vezes
o trabalho da imaginação é preparado e dirigido dessa forma consciente, intelectual.”
Com o domínio das circunstâncias externas, ou seja, o entendimento lógico da cena em
si (quando, onde, por quê, como), o ator estaria apto a criar uma existência de ‘faz-de-
conta’ (o mágico “se”) e sua imaginação o levaria à respostas físicas concretas, em ações
físicas propriamente ditas. Isso resultaria em uma série ininterrupta de imagens no
imaginário do ator, parecida com “um filme cinematográfico”:

Enquanto a nossa atuação for criadora, essa fita desenrolar-se-á e projetar-se-á na tela da
nossa visão interior, tornando vívidas as circunstâncias por entre as quais nos movemos. Além
disso, essas imagens interiores criam um estado de espírito correspondente a elas e despertam
emoções [...] (STANISLAVSKI, 1991, p. 90).

Pois bem, a questão da utilização da imaginação é um princípio que Eisenstein


vai se apropriar para desenvolver suas reflexões a respeito dos métodos da montagem
e como esta pode servir de base no processo de criação do ator e do diretor. Para ele,
o princípio da técnica interior do ator está relacionado com a montagem. Em sua
análise, existe uma diferença intrínseca entre representação e montagem, sendo que a
representação seria apenas uma exposição-testemunho de uma imagem criada pelo autor,
uma espécie de informação documental desprovida de qualquer efeito emocional, efeito
este só possível através da montagem que “ultrapassa em muito os limites da colagem
de fragmentos de filme”. Ele ainda destaca:

[...] os métodos de montagem comparados, de criação pelo espectador


ANAIS DA V JORNADA DISCENTE PPGMPA

e criação pelo ator, podem levar a conclusões fascinantes. Nesta


comparação, ocorre um encontro entre o método de montagem e a
esfera técnica interior do ator; isto é, a forma do processo interno através
do qual o ator cria um sentimento palpitante, exibido em seguida na
autenticidade de sua atuação no palco ou na tela” (EISENSTEIN, 1990,
p. 23).

Esse sentimento genuíno não seria alcançado pelo método do “esforço e suor”
(através dos exercícios da biomecânica, por exemplo), mas sim através do processo da

4 O mágico “se” ou “se criativo” consistiria basicamente no ator colocar-se na situação das circunstâncias
propostas da peça, ou seja, como ele se comportaria, o que faria, como se sentiria, como reagiria se fosse a
personagem.

188
imaginação, único recurso capaz de descrever as várias situações e quadros
concretos apropriados ao tema da cena. Embora Eisenstein em nenhum momento
cite as reflexões de Stanislavski5, é possível fazer esse paralelo a partir do registro da
importância da imaginação no trabalho do ator em seus livros, conforme descrito acima.
Tanto para Eisenstein, como para Stanislavski, o princípio básico da técnica interior
do ator é a imaginação e depois a justaposição das imagens imaginadas que possuam
correlatos emocionais para o ator, o diretor e o espectador. 
O exemplo concreto criado por Eisenstein, que estabelece uma metodologia de
como o sentimento interior do ator deverá trabalhar pra a realização de uma cena, parte
de uma situação hipotética sobre uma personagem que vai cometer suicídio. Primeiro,
antes de se preocupar em sentir, o ator deveria imaginar meticulosamente as situações
que levariam a personagem a essa situação limite, como por exemplo um julgamento
público em um tribunal. A partir da imaginação, Eisenstein se atém aos detalhes de
quadros que poderiam suscitar algum sentimento no ator e, consequentemente, fizesse
com que ele se apoderasse da emoção necessária para a realização da cena. O cineasta
observa que o modo como esse processo opera difere de ator para ator, e descreve como
seria seu processo imaginário de criação:

O tribunal. Meu caso está sendo julgado. Estou no banco dos réus. A
sala está repleta de pessoas que me conhecem – algumas casualmente,
outras muito bem. Capto o olhar de meu vizinho fixado em mim. Somos
vizinhos há 30 anos. Ele percebe que o vi olhando para mim. Seus
olhos resvalam sobre mim com afetada abstração. Ele olha fixamente
para a janela, fingindo fastio... Outro espectador na sala do tribunal
– a mulher que vive no apartamento acima do meu. Encontrando
meu olhar, ela baixa os olhos aterrorizada, enquanto olha para mim
pelo rabo de olho... Com um movimento claro, meus companheiros
de bilhar, e sua mulher – encarando-me com insolência... Tento me
encolher olhando para os pés. Não vejo nada, mas à minha volta ouço
sussurros de censura e o murmúrio de vozes. Como um golpe atrás do
outro, caem as palavras da súmula do promotor... (EISENSTEIN, 1990,
p. 31).

A narrativa acima é uma das situações imaginadas na tentativa de se apossar


emocionalmente da situação proposta, produzindo um matiz de sensação. A partir das
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imagens criadas pela imaginação, através da técnica do “mágico se”, o sentimento do ator
viria à tona sem esforço e genuinamente através de um processo interno. O sentimento
vivo “seria suscitado pelos próprios quadros, por sua agregação e justaposição.” Em
consequência, a execução da cena por parte do ator ocorreria em paralelo ao processo
de montagem, uma vez que o diretor também teria que imaginar juntamente com o ator,
todas essas etapas de criação na atmosfera da cena. O processo de criação da montagem
e do sentimento do ator é o mesmo, a diferença estaria apenas no campo da aplicação
do resultado final. As “visões” criadas pelo “olho interior” do ator “são completamente

5 Eisenstein comenta que não teria a intenção de dizer nada de novo em relação aos métodos de treinamen-
to ou criação do ator. Nota-se, a título de curiosidade, que a primeira publicação do sistema de Stanislavski
ocorre em 1938, no livro O trabalho do ator sobre si mesmo- Part I. O ensaio Palavra e Imagem escrito por
Eisenstein é publicado em 1942, no livro O Sentido do Filme.

189
homogêneos com as características típicas do plano cinematográfico” e colabora
nas escolhas de decupagem feitas pelo diretor. Segundo Eisenstein, a imaginação não
evoca quadros completos, apenas fragmentos e detalhes, e estas “visões tem uma ordem
positivamente cinematográfica – com ângulos de câmera, tomadas de várias distâncias
e rico material de montagem” (EISENSTEIN, 1990, p. 31-33).
A técnica interior do ator ainda propõe uma construção que vai além da
representação da cópia dos resultados de sentimentos, sendo capaz de fazer os
sentimentos surgirem, nascerem e se desenvolverem diante do espectador com
certo frescor. A busca de Eisenstein era produzir, em suas palavras, “uma impressão
verdadeiramente viva da personagem”, tanto no texto quanto na interpretação do
mesmo. A tarefa do ator seria expressar aspectos do caráter ou conduta da personagem
através da justaposição interna de imagens, criando assim uma imagem integral na sua
interpretação, esta concebida primeiramente pelo autor, depois pelo diretor e por fim,
pelo próprio ator.
Eisenstein defendia que a montagem tinha a força de incluir a razão e o
sentimento em seu processo criativo e conduzir o espectador a passar pelo mesmo
processo. Sua teoria era que o método

[...] pelo qual o poeta escreve, o método pelo qual o ator forma sua
criação dentro de si mesmo, o método pelo qual o mesmo ator interpreta
seu papel dentro do enquadramento de um único plano, e o método pelo
qual suas ações e toda a interpretação, assim como as ações que o
cercam, formando seu meio-ambiente (ou todo o material de um filme),
fulguram nas mãos do diretor através da mediação da exposição e da
construção em montagem, do filme inteiro (EISENSTEIN, 1990, p. 44).

Se pensarmos nos estudos desenvolvidos por tantos pesquisadores sobre a arte


do ator, essa relação do processo criativo do ator através do conceito da montagem é
extremamente original e única. Alia objetividade racional com impulsos internos que
buscam o verdadeiro sentimento no ato da representação, uma equação muito complexa
de sistematizar. Stanislavski debruçou-se anos sobre esse dilema, aproximando-se desse
aspecto em seu método das ações físicas, onde, a grosso modo, o ator deveria descobrir
ações em cena que o conduzissem a uma emoção autêntica e que tivesse um objetivo
definido, logo uma intenção concreta e real. E Meyerhold, contra qualquer forma de
psicologismo, investiu nos desdobramentos do conceito da Biomecânica, criando um
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sistema onde a plasticidade dos movimentos era a maior fonte de expressão do ator.
A proposta de Eisenstein em se apropriar do processo interno da imaginação
do ator para a escolha dos planos feitas pelo diretor é uma visão que pode estabelecer
um diálogo muito mais profundo entre ator e diretor. Uma vez que a tentativa de se
chegar ao sentimento verdadeiro da personagem é conduzido através da seleção dos
detalhes que as imagens imaginadas criam, o ator estaria de certa maneira trabalhando
concomitantemente com as escolhas de decupagem do diretor, e consequentemente no
roteiro e na montagem final do filme. Ou seja, a técnica interior do ator pode sugerir não
apenas um mero exercício de construção de personagem, mas um novo processo de
trabalho no qual a função do ator ultrapassaria a simples execução das cenas. Eisenstein
propõe com essa técnica uma espécie de simbiose entre ator e diretor, ou em outras
palavras: uma fusão entre interioridade e expressão, intuição e racionalidade.

190
Outro cineasta que também defendeu a colaboração do ator nas diversas etapas
do fazer cinematográfico foi Vsevolod Pudovkin, radicalizando ainda mais esse processo
ao defender a presença do ator inclusive na sala de montagem. Segundo ele, a conclusão
da interpretação do ator no filme também estaria atrelada à escolha dos planos na
montagem final. E se Kuleshov e Eisenstein (parcialmente) rejeitam Stanislavski,
Pudovkin, ao contrário, investe suas pesquisas na total apropriação dos fundamentos
do Sistema de Stanislavski. Segundo Ismail Xavier, “há no mundo cinematográfico de
Pudovkin lugar para a ‘psicologia’, assim como há lugar para uma concepção mais flexível
do trabalho do ator, que inclui uma adaptação de Stanislavski para o cinema”(XAVIER,
2005, p. 53).

Vsevolod Pudovkin (1893 – 1953)

“O contato imediato entre a arte do cinema


e a arte do palco veio naturalmente através do ator.” 6
Pudovkin

Durante as filmagens de A Mãe, Pudovkin começa a experimentar alguns métodos


de trabalho para, em um primeiro momento, apenas subtrair os gestos farsescos e
teatrais de seus atores. Ele descreve que, em uma determinada cena, quando a atriz
representa com forte carga emocional e gestualidade teatral, ele pede para repetir,
porém sem fazer nenhum movimento ou gesto, apenas mantendo o estado emocional
que ela havia encontrado. Tal intuição fez com que ele percebesse que a imobilidade
imposta à atriz provocava uma sensação quase física de sofrimento e, a partir dessa
constatação, ele sugere que a atriz escolha apenas um gesto, dentre os vários que ela
havia feito anteriormente. A escolha de um único gesto aliado à forte carga emocional
proposta pela atriz, mas sem os exageros teatrais, convenceram-no de tal maneira que
ele se arriscou a filmar sem ensaio, para justamente não perder o frescor da cena. Esta
experiência torna-se parâmetro para uma das principais premissas do trabalho de
Pudovkin, que parte primeiramente das diferenças de tamanho de expressão entre o
teatro e o cinema:

Cada movimento expressivo do homem está sempre condicionado


pelo antagonismo de dois momentos: a força externa que tenta
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realizar mecanicamente o movimento e a constrição da vontade


que retém o movimento; de modo que das duas ações nasce uma
determinada forma. (...) o ator no teatro aumenta o movimento
em amplidão, tornando-o mais claro e visível para o público da
sala. O cinema não requer nada disso do ator. A comoção interior,
porquanto contida pelas constrições da vontade ao máximo grau,
pode ser vista pelo espectador por meio da câmera. (PUDOVKIN,
1956, p. 100 -101)

6 Frase extraída do artigo “Stanislavsky’s System in the Cinema”, publicado originalmente no jornal Iskusstvo
Kino em 1951 e traduzido em 1952 para a revista britânica Sight & Sound, publicada pelo British Film Institute
(BFI). Disponível em: http://www.unz.org/Pub/AngloSovietJ-1952q3-00034.

191
A partir dessa experiência, Pudovkin se convence de que “o ator cinematográfico
está mais próximo do método de preparação praticado pela escola de Stanislavski”
(PUDOVKIN, 1956, p.131). Desde então, ele começa a explorar a importância da
interiorização dos sentimentos para conquistar a total veracidade nas atuações,
sobretudo no close up.

Vera Baranovskaya em A Mãe (1926)

Assim como Stanislavski, Pudovkin acreditava que o caminho para esta


interiorização e expressão do ator estava no desenvolvimento do poder da imaginação,
pois “ser completamente levado pela imaginação é o verdadeiro estado de inspiração
vivida pelos artistas durante os melhores momentos de sua vida criativa” (PUDOVKIN,
1956, p.38). O diretor deveria auxiliar o ator a remover qualquer obstáculo que
bloqueasse sua imaginação, criando estratégias que impulsionassem verdadeiramente
sua criatividade. Para tal, ele destaca dois campos de trabalho que devem estar
interligados: “um está conectado com a expressão externa dos pensamentos e
sentimentos dos atores, seu comportamento, e o outro está conectado com o seu estado
emocional” (PUDOVKIN, 1956, p. 39). Pudovkin destaca ainda que a síntese desse
procedimento encontra-se no método de Stanislavski nomeado como “ações físicas”,
onde o resultado da ação é expresso a partir de um sentimento, sempre relacionando o
movimento físico ao pensamento e à emoção.
Outros aspecto importante de reflexão para Pudovkin era a diferença que ele
identificava no conceito de Stanislavski sobre da arte de “viver um papel” e a arte de
“o representar”. O primeiro estaria impulsionado por uma força interior e o segundo
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por uma mecânica teatral e exterior. Partindo dessa premissa, Pudovkin defende o
primeiro tipo de ator para o cinema, mas acrescenta uma outra nomenclatura: em
vez de “viver o papel”, o ator deveria “absorver o papel”. Tal diferenciação seria o
processo mais acertado de elaboração da forma pois, mais do que a verdade, Pudovkin
busca a verossimilhança no trabalho do ator. 7 Porém, ele concorda que “a asserção
fundamental de Stanislavski sobre a necessidade para o ator de descobrir o vínculo
interior permanece válida”. Ele cita, inclusive, a questão do paradoxo do comediante de

7 Sobre a questão da verdade e da verossimilhança, tal distinção de nomenclatura talvez se deva à insistência
de Pudovkin na defesa de que o cinema propicia problemas mais sutis e mais complexos do que o teatro e que
“o cinema deve ser considerado como a arte que proporciona as maiores possibilidades de aproximação da
reprodução realística da realidade”. (PUDOVKIN, 1956, p. 33)

192
Diderot8 como anteparo a essa questão: por mais que o ator pudesse comover o público
e rir para o colega na coxia simultaneamente, sublinhando a questão do paradoxo que
separa o criador da criatura, em algum momento o ator deverá fundir-se, identificar-se
verdadeiramente com a emoção da personagem. E esse processo seria imprescindível
no processo de criação de toda arte.
Além de apropriar-se de algumas técnicas de interpretação de Stanislavski (nas
quais a conquista de uma “atuação orgânica e unitária” era urgente), transpondo-as do
teatro para o cinema, Pudovkin também defendia a inserção do ator em todas as etapas
do fazer cinematográfico. Se Eisenstein, como foi dito acima, defende a inclusão do ator
no processo de manufatura do argumento e uma possível colaboração nas escolhas de
decupagem do diretor, Pudovkin vai ainda mais longe ao defender “a necessidade e a
importância da participação direta do ator na montagem do filme” (PUDOVKIN, 1956,
p. 85).
Partindo da observação do trabalho dos atores no palco, Pudovkin destaca que,
quando o ator inicia seu trabalho de composição da personagem, além da questão da
“absorção do papel”, dois outros elementos são de suma importância: a sua expressão
(voz, gestos, mímica) e a consciência da unidade ideológica da obra. Sobre o primeiro
elemento, em suas opções de ritmo, modulações vocais e gestuais, o ator no teatro seria,
de certa forma, seu próprio montador perante o público. Pudovkin exemplifica que,
caso o ator quisesse destacar determinada fala ou gesto no palco, ele poderia usufruir
anteriormente de uma pausa longa a fim de dar a devida atenção à expressão escolhida,
além da ampliação do gesto para ser visto, obviamente. Em relação às inflexões da fala,
o ator poderia acentuá-las ou diminuí-las, conforme quisesse atrair o público pelo lado
intelectual ou emotivo. No cinema, tais procedimentos poderiam ser simplesmente
substituídos por um primeiro plano. Sendo assim, o ator deve ter consciência das
opções da montagem, pois a escolha dos planos podem-no auxiliar em suas escolhas de
expressão da personagem. Em outras palavras, o domínio e consciência da montagem,
assim como dos movimentos de câmera durante a filmagem, são fundamentais para a
atuação do ator no cinema. Sendo assim:

O ator cinematográfico deve poder sentir a necessidade e a


oportunidade de uma determinada posição da câmera na filmagem
de um dado momento de seu papel, assim como ator teatral sente
que num certo ponto, no decurso de sua representação, tornar-se-
lhe necessário fazer um gesto amplo, dirigir-se para a ribalta e subir
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dois ou três degraus da construção cênica. O ator dede compreender


que justamente por tais deslocamentos da câmera cria-se o pathos
indispensável que conduz do naturalismo disforme à obra de arte”
(PUDOVKIN, 1956, p. 69).

Pudovkin estava tão convicto de suas afirmações sobre a importância da


presença do ator na montagem que a forma definitiva da representação da personagem
só estaria concluída neste momento:

O ator deve estar tão igualmente próximo da montagem quanto o

8 “(...) o comediante não é a personagem, ele a representa e a representa tão bem que vós a tomais como tal;
a ilusão só existe para vós; ele sabe muito bem que ele não a é” (DIDEROT, 1979, p. 352).

193
diretor. Deve poder referir-se à mesma em cada fase do seu trabalho.
Deve amá-la como o ator teatral ama a forma total do espetáculo, desejar
seu êxito, ou seja, desejar a conexão de cada momento do seu trabalho
com o todo. (PUDOVKIN, 1956, p. 86, grifo do autor).

Tal ideia também estava intimamente ligada à questão da descontinuidade


durante a representação no cinema que, ao contrário do teatro, interrompia o fluxo de
atuação do ator. Na tentativa de propiciar melhores condições de atuação para os atores,
sobretudo a partir do cinema sonoro, os diretores escolhiam planos abertos e longos
para contemplar o diálogo de três atores em cena, por exemplo. Tal opção resgatava
uma certa teatralização que o cinema já havia abandonado em sua fase silenciosa, e isso
poderia representar um retrocesso a todas as possibilidades que o cinema ainda tinha
a oferecer. A preocupação principal de Pudovkin era a conquista da unidade realística
da imagem, definida quando “ela é imaginada com o máximo de precisão, o máximo de
clareza, o máximo de profundidade e com o máximo de plenitude” (PUDOVKIN, 1956,
p. 96-111). E isso só seria possível alcançar a partir do momento em que o ator tivesse
consciência de todas as etapas da construção de um filme.
Se, por um lado, Pudovkin faz uma autocrítica ao afirmar que, até então, o
conceito de montagem “induzia os diretores ditadores a mutilar e a devastar a obra
do ator no interesse de suas descobertas formalísticas” (PUDOVKIN, 1956, p. 86),
por outro lado, ele abre um outro precedente que não chega a desenvolver. A visão
de Pudovkin sobre o ator estabelece necessariamente uma via de mão dupla: se o
diretor deveria ter uma noção das necessidades do ator no ato de criação; o ator, por
sua vez, deveria também ter um olhar de diretor (e montador) na sua atuação. Ele
defendia que o ator poderia dar um acabamento necessário à forma planejada de sua
atuação na montagem, conduzindo o espectador também pelo seu ponto de vista, não
apenas pelo ponto de vista do diretor. Porém, os mecanismos para tal façanha não são
contemplados em seus textos, tampouco a menção a qualquer experiência concreta de
um ator na sala de montagem. Em sua defesa, ele afirma que a questão da participação
do ator no filme demandaria uma ampliação da cultura do ator, e somente através de
um processo colaborativo em todas as etapas de um filme, o ator teria a oportunidade
de aprender a essência da criação cinematográfica. De toda forma, suas ideias denotam
um respeito ímpar em relação à função do ator em um filme, sendo talvez as primeiras
a elevarem o ator ao status de co-criador na obra cinematográfica.
Cabe observar que, tanto Pudovkin, como Kuleshov e Eisenstein, partem de
princípios de montagem para criarem metodologias na construção de um sistema de
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interpretação cinematográfica, um aspecto importantíssimo e pouco compartilhado


com o ator durante o processo de filmagem. Inspirados em sistemas teatrais já
consolidados, seja por Stanislavski ou por Meyerhold, os três cineastas elaboram
métodos contundentes que, se não são de todo aplicáveis, mereciam ser revisitados.

Bibliografia

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___________________.Stanislavsky’s System in the Cinema, O artigo foi publica-
do originalmente no jornal Iskusstvo Kino em 1951 e traduzido em 1952 por T. Shebuni-
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