"A Febre Do Rato": Anarquismo Na Lógica Do "Umbico Miúdo": Caio Neves de Castro Rogério de Castro

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ENCONTROS – ANO 11 – Número 21 – 2º semestre de 2013

“A FEBRE DO RATO”:
anarquismo na lógica do “umbico miúdo”

Caio Neves de Castro1


Rogério de Castro2

Resumo: O presente texto propõe uma reflexão sobre a compreensão do


anarquismo, enquanto parcela do pensamento político e social, a partir do longa
metragem “A Febre do Rato”, dirigido pelo cineasta Cláudio Assis. Nele, os
autores problematizam a construção da personagem principal, o poeta Zizo,
considerando sua representação enquanto militante libertário, bem como suas
aproximações e distanciamentos em relação ao chamado “anarquismo
histórico”.
Palavras chave: anarquismo; militante libertário; cinema e história; pesquisa.
Abstract: This text proposes a reflection about anarchism as a politic and social
thought from the feature-length film “A Febre do Rato”, directed by filmmaker
Cláudio Assis. In this text, the authors are going to discuss the main character,
the poet Zizo, considering their representation as a libertarian militant as well
as his similarities and differences in relation to the so-called historical
anarchism.
Keywords: anarchism; libertarian militant; cinema and history; research.

“...posto que é extremamente difícil determinar o que leva os animais a se


reunirem, se não a necessidade de proteção mútua ou simplesmente o prazer,
o costume de se sentirem rodeados por seus congêneres.”
Piotr Kropotkin

A câmera, em movimentos leves, passeia pelo rio Capibaribe

mostrando em preto e branco o caos de uma cidade em crescimento

desordenado. A circulação desenfreada de pessoas e veículos, os casebres

em ruínas que beiram o mangue, tudo parece distante e decadente.

Retrato de uma Recife em putrefação, como sugere a poesia, descrente,

escrita e narrada pelo protagonista Zizo. Essas são as primeiras imagens

de “A Febre do Rato”, filme que, construído sob a ótica de seu principal

1Graduando em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense (UFF).


2 Professor de História do Colégio Pedro II. Doutorando em Educação pelo
PROPED/UERJ.

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personagem, parece rejeitar “um mundo abismo de coisas medonhas”,

conforme ele mesmo diria ao incorporar, talvez, as idiossincrasias de

Paulo Martins3.

Ao fim da poesia, corta-se para uma nova sequência, onde a visão

é ofuscada pelo plástico que cobre o ateliê de Zizo. Em meio aos objetos

espalhados, desordem criada pela direção de arte, observa-se na parede

um pôster de Mikhail Bakunin. Esse filósofo anarquista, tributário das

propostas de Pierre Joseph Proudhon, influencia, aparentemente, o

precário jornal que empresta seu nome ao filme.

Seguindo o fluxo narrativo da trama, vemos o personagem colocar

uma folha na máquina e produzir alguns exemplares de “Febre do Rato”,

onde se mesclam poesia e política. Em seguida, numa elipse temporal, a

câmera acompanha uma menina pelos becos da favela, enquanto

escutamos o protagonista anunciar seu "jornal contra as classes

dominantes". Saindo desse pequeno labirinto, a menina se depara com o

poeta panfletando sua obra, momento em que se corta a cena para um

plano em contra-plongée4 no qual Zizo declama poesias. Ressaltamos que

tal posição de câmera, gera uma sensação de grandiosidade e

superioridade do personagem em relação aos figurantes que o

circundam.

Nessa cena, pela primeira vez, observamos o poeta "sair da casca”5.

Em plena “ação direta”, discursa aos transeuntes sobre assuntos que,

3 Célebre personagem de “Terra em Transe”.


4 Posição de câmera em que se filma o objeto de baixo para cima.
5 "Chega um momento em que se tem que sair da casca e fazer frente às forças do Estado

nos bairros onde vivemos, no trabalho, nas ruas e se o Estado for vencido, com maior

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segundo ele mesmo, escravizam os indivíduos. Mais adiante, em um bar,

Zizo convida outros personagens para a celebração da "Páscoa de cabeça

para baixo", churrasco em que pretende subverter o significado da festa

cristã exaltando os prazeres mundanos do sexo e das substâncias

psicoativas. Em plano zenital6, essa sequência termina no quintal do

poeta, onde o mesmo, como de hábito, recita poesias sobre amor e

anarquia enquanto, dentro de uma caixa d’água, faz sexo com alguma de

suas amigas idosas.

Cabe registrar que Boca Mole, um dos convidados, vive num

casarão abandonado na companhia de uma mulher e dois homens.

Dormindo na mesma cama e tomando banho juntos, eles insinuam uma

espécie de “amor livre”, alheio à monogamia e ao pudor sexual.

Contudo, considerando a trajetória do movimento libertário7, bem

como suas diferentes “formas históricas”, destacamos que:

O movimento anarquista tem hoje 100 anos, se supomos


que nasce no momento em que os bakuninistas entraram
na Associação Internacional dos Trabalhadores; desde
então se tem estendido a vários países do mundo,
permanecendo como um movimento minoritário e mal
conhecido, mas vigoroso. Uma certa força se desprende se
sua história, mas também uma certa fraqueza, em
particular no domínio da coisa escrita. A literatura
anarquista antiga pesa como um lastro sobre o movimento
atual e nos é difícil criar uma nova. (WALTER, 2000, p.13)

razão será preciso continuar atuando, para impedir que se estabeleça um novo Estado
e para se começar a construir uma sociedade livre". (WALTER, 2000. p.77.)
6 Posição em que se filma com a câmera alta, a um ângulo de 90° em relação ao solo.
7 Como sinalizou Daniel Guérin, apesar da palavra anarquia remeter à antiguidade, foi

Proudhon quem restabeleceu seu sentido etimológico dissociando-a da idéia de caos a


qual havia sido amalgamada pelos defensores da autoridade e do Estado.
Posteriormente, com a publicação do semanário “Le Libertaire” pelo pedagogo Sébastien
Faure, o termo libertário que fora usado desde 1858, por Joseph Déjacque, tornou-se
gradativamente sinônimo de anarquismo, conduzindo à cunhagem da expressão
“socialismo libertário” para designar os defensores da acracia.

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Desse modo, o que pretendemos demonstrar é que a “ação direta”

contida na arte de Zizo, ainda que reivindique uma sociedade onde

inexista qualquer controle arbitrário, não incorpora os pressupostos do

chamado “anarquismo histórico”. Portanto, sua proximidade com os

postulados de Bakunin encontra limite nas críticas à Igreja e ao Estado,

uma vez que o protagonista, contextualizado em seu tempo e espaço,

parece desejar escrever uma nova orientação libertária.

Dedicados à edificação de uma sociedade formada por homens e

mulheres autônomos, os libertários, reivindicando para si o legado da

Internacional dos Trabalhadores (AIT), compreendem que a liberdade

individual deve permanecer em harmonia com as obrigações comuns,

fazendo com que a igualdade e a cooperação, no interior de comunidades

interligadas a partir de princípios federativos, constituam o cerne da

ideologia anarquista. Buscando compreender tais princípios políticos,

Michael Schimidt e Lucien van der Walt (2009) estabelecem o anarquismo

de massas como a principal estratégia empregada pelos anarquistas ao

longo da trajetória dessa linhagem do socialismo.

Desse modo, pleiteando uma atuação, junto aos movimentos

sociais, que favoreça a mobilização destes em torno da transformação

social, os partidários do anarquismo de massas remeteram o conceito de

revolução a um processo que não pode ser decretado por atentados ou

insurreições armadas, mas desencadeado pelo amadurecimento da

classe através do federalismo, da ação direta e do mutualismo. Nesse

sentido, reconhecer esses três conceitos fundamentais para os defensores

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da acracia, constitui um ponto central na análise das ideias e práticas

daqueles que priorizaram a organização dos explorados como meio de

promover a utopia libertária.

Em setembro de 1866, trabalhadores de diferentes países se

reuniram em Genebra, divisando a libertação da classe operária a partir

do concurso mútuo e da troca de experiências. Esse primeiro congresso

da Associação Internacional dos Trabalhadores, deveria impedir que a

burguesia assumisse o protagonismo das revoluções futuras, tal como

ocorrera em 1830 e 1848.

Dentro deste cenário, Karl Marx convocou em 1870 uma

conferência privada na capital inglesa. Na companhia dos exíguos vinte

e dois delegados presentes, dentre os quais treze compunham o Conselho

Geral, o autor de “O manifesto do Partido Comunista” afirmou o

centralismo como orientação hegemônica, abrindo caminho para a

adoção, dois anos mais tarde, da organização partidária como estratégia

esposada pela AIT durante o Congresso de Haia (ENCKELL, et al, 2004).

Por considerar que a universalização da Internacional deveria

reconhecer e respeitar as diferentes realidades políticas, econômicas e

sociais de suas seções, caminhando pari passu com essas

especificidades, os relojoeiros do Vallon reuniram os dissidentes do

Congresso de Haia na região do Jura suíço, dando origem ao Congresso

de Saint-Imier. Assim, endossando a independência das federações como

elemento fundamental para a emancipação dos trabalhadores;

assumiram a supressão do poder político em favor da ação direta,

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elegendo como estratégia a solidariedade de classe em lugar da

organização partidária.

Portanto, o princípio da autonomia entre as seções, presente no

Congresso de Saint-Imier, a opção pelo protagonismo da classe face sua

própria emancipação, assim como o reconhecimento da solidariedade

enquanto meio de interação entre os explorados, demonstram que, desde

seus primeiros momentos, o anarquismo de massas adotou o

federalismo, a ação direta e o mutualismo como estratégias essenciais

para a luta de classes.

Por outro lado, avessos a todo controle econômico e social, esses

“organizacionistas” assumiram o papel de “centelhas incendiárias” da

revolução, colaborando para a conscientização e a aglutinação dos

trabalhadores. Assim, enxergando os movimentos sociais como

“materiais comburentes”, elegeram essa esfera como ferramenta capaz de

promover os “círculos concêntricos” necessários para a difusão das

“ondas” revolucionárias.

Como esclarecem Schimidt e van der Walt (2009), os libertários

enfatizam a visão de que apenas os movimentos de massa apresentam

condições de produzir a revolução. Geralmente estabelecidos em torno de

reivindicações mais imediatas, caberia aos anarquistas radicalizá-los,

transformando-os em alavancas para o socialismo.

Nesse sentido, percebemos que a construção da personagem Zizo,

tanto se orienta pelas generalizações acerca dos postulados libertários,

quanto termina por reforçar os recorrentes anacronismos sobre tal

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ideologia, sobretudo quando seu diretor, Cláudio Assis, define as práticas

do protagonista como condutas próprias de um militante anarquista.

Ao reconhecer a rejeição ao Capital e ao Estado como elementos

suficientes para inseri-lo no campo libertário, o diretor, tal como o

personagem, desconsidera que a “ação direta”, por si, não caracteriza a

proposta de organização e enfrentamento adotada pela maioria dos

anarquistas. Preocupado com a desconstrução da cultura e da sociedade

liberal, Zizo não menciona o “mutualismo” e o “federalismo” como

instancias indispensáveis para a construção de uma sociedade livre. A

opção anti-autoritária de sua militância, ao desconsiderar a importância

da organização da classe para o enfrentamento contra a ideologia que a

escraviza, talvez permita, na melhor das hipóteses, apontá-lo como

“anarco-individualista”.

O anarquista é aquele que nega a autoridade e rejeita seu


corolário econômico: a exploração. E isso em todas as
áreas de atividade humana. O anarquista deseja viver sem
deuses nem mestres; sem patrões nem diretores; sem leis
e preconceitos; sem obrigações e moralidades coletivas. Ele
deseja viver em liberdade, viver sua concepção pessoal de
vida. Em seu interior, ele é um refratário, um excluído,
alguém que está à margem, à parte, um não adaptado. É
por obrigação que vive em companhia daqueles cujos
hábitos repugnam seu temperamento, é como um
estranho no ninho. Ele só se submete àquelas condições
indispensáveis – e sempre com pesar – para não arriscar
ou sacrificar tola e desnecessariamente sua vida, uma vez
que as considera como armas de defesa pessoal na luta
pela existência. O anarquista deseja viver sua vida, o tanto
quanto possível, moral, intelectual e economicamente
independente do resto do mundo, sem preocupação com
explorados e exploradores; sem a intenção de dominar ou
explorar os outros, mas pronto a reagir por quaisquer
meios àqueles que vivem a intervir em sua vida ou a proibi-
lo de expressar sua opinião através da pena ou da fala.
(ARMAND, s.d.)

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Segundo o “Pequeno manual do anarco-individualista”, o

anarquista é um inimigo do Estado e de todas as instituições que alienem

os indivíduos. Contudo, ao contrário dos “organizacionistas”, envolvidos

com o “anarquismo de massas”, os “individualistas” enfatizam o ato

isolado em detrimento da ação coletiva, sem determinar qualquer padrão

moral de comportamento. Assim, como mestres de suas aspirações,

pretendem apreciar a vida à sua maneira, sem se deixar conduzir por

paixões ou impulsos que o subordinem.

Em outras palavras, o que observamos é que Zizo, ainda que se

apresente como anarquista, apenas dialoga com algumas nuances do

pensamento libertário, incorporando, a sua maneira, os postulados de tal

parcela do pensamento político e social. Portanto, a margem do acúmulo

conseguido pela classe trabalhadora ao longo de seu esforço de

organização, entende a acracia como “estilo de vida”8, ignorando a

trajetória do anarquismo e suas diferentes “formas históricas”. Para

empregarmos um trocadilho, termina por “anarquizar” o que

historicamente se entende como anarquismo.

8 “O anarquista individualista não é jamais um escravo de uma fórmula ou receita. Ele


não aceita opiniões. Propõe apenas teses. Se adotar em algum momento certo estilo de
vida, é para que se lhe assegure maior liberdade, maior felicidade, maior bem estar, não
tendo em vista seu próprio sacrifício. Ele altera e transforma seu modo de vida quando
percebe que, se continuasse a adotar aquele curso de ações, perderia parte de sua
autonomia. Ele não quer se deixar dominar por princípios estabelecidos a priori; é nas
experiências, no a posteriori, que se baseia sua conduta, que nunca é definitiva, mas
está sempre sujeita a mudanças e transformações, de acordo com as novas experiências
e com a necessidade de novas armas para combater o seu meio. Sem que nada seja um
a priori absoluto. O anarquista individualista responde apenas por seus atos”.
ARMAND, Émile. O pequeno manual do anarquismo individualista. S.d. Disponível em
http://libertyzine.blogspot.com.br/2007/07/o-pequeno-manual-do-anarquismo.html

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Retomando a narrativa de “A Febre do Rato”, a trama nos apresenta

Pazinho, coveiro que vive uma crise amorosa com a travesti Vanessa.

Mesmo que este afirme nada entender a respeito de sua arte, Zizo

reconhece em Pazinho um termômetro para as poesias que recita. Em

uma das cenas, mais uma vez ambientada em um bar, esses dois

personagens conversam defronte o cemitério, comentando o poeta, com

tristeza, como as pessoas perderam a vontade de lutar e transformar o

mundo. Ao encerrar a sequência, Zizo quebra com o realismo da ação,

apontando para a câmera e encarando o espectador. Nesse momento,

quando a trama ganha um ponto de “suspensão”, ele afirma, veemente,

que nos dias de hoje impera a lógica do “umbigo miúdo”.

Curiosamente, conforme pretendemos demonstrar, a “lógica do

umbigo miúdo” enquanto crítica do personagem ao “individualismo

burguês”, aproxima-se da conduta anarco-individualista. Afinal, ao

afirmar sozinho o caráter revolucionário da arte, sem preocupar-se em

organizar aqueles que também se sentem vilipendiados, o personagem

toma distância do princípio bakuninista segundo o qual a liberdade do

outro eleva a nossa própria ao infinito9.

Como demonstra Kropotkin (1989), enquanto a ajuda mútua

representa para os grupos animais uma ferramenta fundamental à

sobrevivência das espécies, constitui nas sociedades humanas um

9 “A liberdade de cada um só se realiza, pois, com a igualdade de todos. A realização da


liberdade na igualdade direito e de fato é a justiça. Existe apenas um dogma, uma única
lei, uma única base moral para os homens, é a liberdade. Respeitar a liberdade do
próximo é um dever; amá-lo, ajudá-lo, servi-lo é uma virtude”. (BAKUNIN, 2002, p.74.)

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elemento central na conquista de uma humanidade pautada pelo

princípio ético de erradicar as diferenças sociais. Portanto, o proselitismo

ficcional de “Febre do Rato” difere radicalmente dos objetivos que

nortearam a imprensa operária durante as primeiras décadas do século

passado. Como decorrência de um projeto coletivo de luta, tal iniciativa

teve origem nos agrupamentos especificamente anarquistas ou nas

associações sindicais, constituindo sintoma, e não causa, do desejo de

transformar a sociedade. Nesse sentido, reconhecemos a agitação social

como limite da “ação direta” empreendida por Zizo.

Finalmente, durante a “Páscoa de cabeça para baixo” os

personagens, completamente embriagados, dançam, fumam, comem

carne e fazem piada sobre o céu e o inferno. Subitamente, Zizo interrompe

a festa, pedindo atenção para sua poesia. Como avalia Migliorin:

O plano é longo, o poeta está em cima de uma mesa e, mais


uma vez, interrompe os festejos para centralizar as
atenções e ser ouvido pelo grupo. Durante o poema, como
sempre de qualidade duvidosa, ele se aproxima da câmera,
ganhando do filme a mesma atenção que os amigos lhe
prestam. Entretanto, algo perturba a centralidade e
importância do poeta. Preso em seu lábio, um resto de
comida, como um gomo de laranja talvez.
O resto, ali, não é uma metáfora, mas apenas mais uma
das formas de A Febre do Rato interromper qualquer
idealização ou pureza do artista/revolucionário. O resto na
boca é como um rasgo naquela imagem, um rasgo nesse
personagem tão caro ao cinema político. (MIGLIORIN,
2012, Cinética)

Entretanto, durante tal “celebração” a narrativa adquire um novo

fluxo. Enquanto todos assistem a exibição do filme “Maconha”,

autobiografia de Zizo, o poeta conhece Eneida, por quem se apaixona

perdidamente. Terminada a “Páscoa de cabeça para baixo”, o

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protagonista abandona as relações íntimas “livres”, “aprisionando-se” a

uma espécie de amor idealizado, ludicamente retratado com o

esvaziamento da caixa d'água. A partir de agora, não há mais espaço para

suas amigas idosas.

As sequências que seguem ilustram esse amor romantizado. O

casal conversa amenidades às margens do Capibaribe e se diverte com

amigos na praia, de tal modo que a relação se realiza, plenamente, apenas

no campo das ideias ou no ato da masturbação, aflorada pelas fotografias

da menina e a poesia do protagonista. Em nenhum momento da trama,

o poeta considera que o “amor livre”, tão propalado pelos anarquistas,

longe de significar o desregramento sexual, consiste, na verdade, na livre

escolha entre parceiros. Assim, se considerarmos as perspectivas de

Émile Armand, Zizo acaba “refém” de uma paixão10, denegando sua

“verve” anarco-individualista.

De volta ao Capibaribe, o poeta procura reforçar o caráter

transgressor de sua arte, colando adesivos debaixo do viaduto e

rabiscando o rato, símbolo de sua publicação, nas paredes da cidade.

Com ares de desespero, desobedece11 os padrões estabelecidos, gritando

10 “O anarquista individualista quer viver, quer poder apreciar a vida individualmente,


encarar a vida em todas as suas manifestações. (...). Ela sabe muito bem que quem se
deixa levar pelas paixões ou dominar pelos impulsos é um escravo. Ele quer conservar
o “controle de si” para se lançar às aventuras das pesquisas independentes e do livre
exame”. (ARMAND, op.cit.)
11 “A desobediência civil é um tipo particular de propaganda por ação que implica a

infração deliberada ou aberta das leis, para chamar a atenção. Muitos anarquistas não
gostam porque é uma provocação deliberada à repressão, o que é contrário ao princípio
anarquista de evitar todo contato voluntário com as autoridades; mas em certos
momentos os anarquistas têm encontrado na desobediência civil uma forma útil de
propaganda”. (WALTER, op. cit., p.84.)

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e falando sobre o cheiro do mangue, o som do tamanco das lavadeiras e

o gosto das prostitutas.

Tal desejo de subverter a ordem tem seu ápice durante as

comemorações da independência do Brasil. Nessa oportunidade, quando

a trama alcança seu epílogo, Zizo reúne os amigos para sair em passeata

contra o autoritarismo do governo. Estes, intuindo as aspirações do

poeta, acompanham a comitiva sem conseguir, aparentemente,

compreender a integralidade da proposta. Portanto, Zizo encontra, mais

uma vez, seu limite na agitação, passando ao largo da orientação

libertária que visa organizar as diferentes categorias de excluídos para a

luta social.

Preocupado em “dar uma bicuda nas leis” e uma “lapada na

ordem”, o poeta se insurge contra os militares, que, na cena, representam

a autoridade coercitiva do Estado. Em torno do seu carro, adornado com

bandeiras brasileiras que trazem nádegas em lugar da esfera estrelada, o

grupo reivindica e recruta os transeuntes, defendendo que além de teto e

comida, necessitamos de anarquia e sexo.

Em meio ao caos, ele clama por liberdade em cima do automóvel.

Numa justaposição de imagens, Zizo discursa sobreposto aos pés de uma

marcha militar. Nesse momento, o personagem afirma: "somos

anarquistas sim!" Nova elipse temporal e, num plano que começa em

contra-plongée, Zizo discursa às margens do Capibaribe, enquanto a

câmera se movimenta para mostrar a atenção que lhe devotam os

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aderentes à marcha. Entre estes, alguém segura uma placa com os

dizeres "anarquia não pode ser dogma", mais uma justificativa, talvez

inconsistente, do significado dado ao conceito de “anarquia”.

Dando sequência à cena, Eneida, acompanhada por Pazinho e

Vanessa, aproxima-se da pequena aglomeração. O poeta pede à "musa

da independência" que se junte a ele no teto do automóvel. Emocionado,

declama para sua amada, fazendo com que todos comecem a se despir.

Ao fim do poema, o beijo entre o casal não chega a acontecer. Com o

início da ação policial, os manifestantes se dispersam, ao passo que Zizo,

preso pelos guardas, termina atirado de algemas no Capibaribe. A

câmera, meio submersa na água suja, mostra os ratos nadando perto da

lente ao som de uma melodia tensa. Em seguida, o filme se fragmenta.

Entre planos de espaços vazios e personagens sozinhos, Eneida e Pazinho

conversam no cemitério, especulando, descrentes, sobre a volta do poeta.

A sequência final mostra os amigos de Zizo reunidos com sua mãe,

Dona Marieta, em torno da caixa d’água. Enquanto confraternizam,

comentam sobre Pazinho e seu desejo de herdar a máquina de escrever

do poeta. Justamente o coveiro, que afirmava nada entender de poesia,

manifesta interesse em dar continuidade à obra de Zizo. Todos riem e,

num clima amistoso, temperado pela união dos personagens em torno do

protagonista, a trama é bruscamente interrompida pelos créditos finais.

Com tal análise, pretendemos buscar uma reflexão acerca do

anarquismo e suas nuances. Cremos que, com isso, terminamos com

mais pontos a serem problematizados do que "verdades" fechadas.

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Importa menos a classificação de Zizo enquanto anarquista ou não, do

que a densidade ao discutir o tema. Afinal, essa conclusão, se é que

existe, cabe a cada "umbigo".

Referências

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