PASSAGEIROS DA IMPERMANENCIA - Versao para Livro
PASSAGEIROS DA IMPERMANENCIA - Versao para Livro
PASSAGEIROS DA IMPERMANENCIA - Versao para Livro
Devanir Merengué
“O mundo que nos concerne de alguma forma é falso, isto é, ele não é nenhum estado de fato,
mas um espessamento... ele está em fluxo... como uma falsidade que sempre se desloca
novamente, que nunca se aproxima da verdade: pois – não há nenhuma verdade”.
Nietzsche
Uma outra questão refere-se a nós: como podemos, na contemporaneidade fluida em que
vivemos, existir? Como ser/não ser sujeito em um mundo que se modifica o tempo todo?
Na filosofia e nas artes o assunto, a construção do sujeito, sempre teve a devida importância. A
grande ruptura provocada por Nietzsche, ao desmontar certezas tão caras à filosofia, afetou
diretamente o pensamento de Michel Foucault nas noções de Verdade e de Sujeito. Nas artes,
muitos ousaram inventar desmanchando conceitos como identidade, ego, essência como, p.e., o
poeta Fernando Pessoa. Estes pensadores, cada um a seu modo, afetaram o século XX e são
deles algumas das ideias que utilizo para pensar a questão do sujeito no Psicodrama.
INDIVÍDUOS: UNOS?
Temos a crença de que somos indivíduos. Falamos com certeza de nossos egos, ou mais
especialmente, dos egos alheios: eles, os outros indivíduos, existem. Assim, no cotidiano, nos
referimos com frequência à nossa essência e às identidades dos outros. Indivíduo pressupõe algo
indiviso, indivisível, que possui uma unidade. Do mesmo modo, a noção de ego, a despeito da
turbulência impetrada pelo pensamento psicanalítico, indica uma organização, um núcleo, um
princípio regulador no contato com a realidade. A essência fica confundida com identidade,
como se fosse algo real e verdadeiro.
A experiência humana, no entanto, é bastante diversa dessas certezas. Temos, sim, uma carteira
de identidade, um número que indica a categoria profissional a que pertencemos, olhos
castanhos ou azuis, algumas marcas que nos distinguem de outros humanos. Mas quando nos
visitamos, navegando pela nossa subjetividade encontramos tantas possibilidades que estes
conceitos saídos das ciências humanas e da filosofia, mais ou menos apropriados por nós,
parecem todos pálidos e apenas e tão somente facilitadores para contatar outros seres humanos,
para reconhecimento junto ao Estado e aos controles burocráticos.
Significa, então, que devemos jogar fora tudo o que produzimos até hoje? O que fazer com essa
conserva cultural que possibilita algum engano, mas que nos serve de modo ou de outro?
1
O presente texto serviu de base para conferência no X Congresso Ibero-Americano, em Santiago, Chile
no ano de 2015.
Aprendemos que o eu, o ego é responsável pela cognição, por um comando central que tudo
controla. O eu seria exterioridade na medida que nos identifica para o mundo e interioridade
por indicar quem somos para nós mesmos. Somos o discurso produzido pelo conhecimento de
um tempo, devidamente acatado por nós e naturalizado como se fosse o único e o certo. Somos,
portanto, seres conservados.
Podemos buscar outros modelos, nos quais os indivíduos fariam intercâmbios reais, imaginários
ou virtuais, estariam em constantes mutações, em transformações não necessariamente
ordenadas, mas construídas em tensões, deslocamentos, em camadas. O interno e o externo, em
modelos não rígidos, estariam em conexão e submetidos aos circuitos subjetivadores que não
cessam de alimentar as possibilidades de novos fluxos. Algo muito mais espontâneo e criativo.
Nesta nova possibilidade estão presentes os inevitáveis modos de subjetivação que formatam
indivíduos, mas junto disso, a chance de resistências, variações, inquietudes na construção de si.
Mas isso aconteceria no projeto psicodramático? Vejamos.
Como sabemos Jacob Levy Moreno (1978) não nega o conceito de ego, mas prefere a ideia de
papel advinda do teatro e da sociologia. Para ele, o ego “tem significações secundárias
misteriosas e metapsicologicas”. A afirmação não traz grandes esclarecimentos e, todavia, a
compreendemos quando aposta alto no conceito de papel. Não deixa de usar, de modo pouco
discriminado, palavras como sujeito, individuo, self espalhados por seus textos.
Por que enfraquece a ideia de ego e reforça a noção de papel? Escreve: “O surgimento do papel
é anterior ao surgimento do eu. Os papéis não surgem do eu; este pode, porém, pode surgir do
papel”. Propositadamente grifo o pode, assinalando, pois mais uma probabilidade do que uma
certeza. Moreno vê papel e ego em constante interação, mas toda sua obra gira em torno do
papel e suas possibilidades.
Os papéis buscam sentido nas relações e nelas são construídos, não existindo nada fora da
história humana. Para nosso autor, o indivíduo reage a “uma situação especifica, na qual outras
pessoas ou objetos estão envolvidos”. Os indivíduos, os papéis e os contextos estão
evidentemente em interação.
Uma sociedade oferece uma quantidade de papéis que devem ser desempenhados de modo x ou
y, dependendo de muitas variáveis e contextos. Movimentam instituições, gêneros, classes
sociais, hierarquizam relações, classificam os indivíduos, padronizam, reiteram. Os papéis
sociais dizem respeito aos saberes de uma sociedade, cujos lastros podem ser buscados na
tradição, no conhecimento cientifico, na religião. Muito mais do que indicações de boas
condutas, são prescrições disciplinares do que vem a ser bom, certo, adequado. Ou seja, não diz
respeito apenas ao conhecimento produzido pela sociedade, mas junto disso, controle,
alinhamento, expectativa do bom cumprimento dos papeis através de estratégias capilares
espalhadas pelas relações.
O indivíduo, como um ator, tomará papéis já que é impossível se vincular socialmente de outra
maneira. A tomada acontece de modo mais ou menos tranquilo, mais ou menos conflituoso.
Uma sociedade busca humanos adaptados à sua cultura, supondo facilitação no convívio através
de códigos comuns que dariam unicidade às subjetividades e aos comportamentos. Espera-se
que interiorizem esses códigos e, portanto, que pertençam à sociedade. E ainda mais: que
naturalizem os comportamentos e disseminem os valores interiorizados.
Os papéis trazem todas essas informações sociais. E controles: cada ser humano deve ser
vigilante para consigo mesmo, monitorando seus gestos, desejos, pensamentos,
comportamentos. Deve construir uma subjetividade dentro daquela história. Papéis não apenas
recobrem a superfície dos corpos, mas os limitam, delineiam, deformam, conformam, indicam,
incitam, estimulam. Deve, no mesmo modo, estar atendo ao desempenho dos demais no sentido
de que se cumpra o projeto, o bom andamento dos acontecimentos. Poderá fazer de conta que
não vê, proteger o que interessa e denunciar o lhe perturba. Desenvolve, portanto, estratégias,
subterfúgios, saídas, variações, escapes. Os atores dispõem de múltiplos papéis em muitas
relações o que lhes possibilitam encontros e conflitos.
O pensamento moreniano desloca a questão: a invés de insistir com o conceito de ego investe no
de papel, resolvendo momentaneamente nossa questão central. Mas, antes de retomar o
problema em Moreno, vamos tentar como tem sido definido Sujeito.
O SUJEITO
“Deixa-me tirar a gravata e desabotoar o colarinho. Não se pode ter muito energia com a
civilização à roda do pescoço... “ Álvaro de Campos/ Fernando Pessoa
O conceito existe desde os gregos antigos, mas a partir de Kant, especialmente, começa a
ganhar a conotação que foi dada nos dias de hoje, ou seja, de consciência, do ego que determina
a ação em contraponto ao objeto, algo passivo. Em continuidade, o conceito foi mais ou menos
autorizado, recuperado, relido. A partir do século XIX, entretanto, sofre severas críticas em
Marx, que coloca o motor da história nas classes e na produção, em Nietzsche, onde o sujeito
mascara a vontade de poder ou em Freud, cujas forças inconscientes determinam todo o
processo. Ou seja, o indivíduo não comanda, mas é determinado, um sujeito-sujeitado.
Nesta construção de si, os indivíduos são atravessados, portanto, pelos saberes, pelos poderes e
pela relação que fazem com eles mesmos. Em uma entrevista, fala Foucault: [...] “no curso de
sua história os homens jamais cessaram de se construir, de deslocar continuamente sua
subjetividade, de se construir em uma série infinita e múltipla de subjetividades diferentes, que
jamais terão fim e que não nos colocam jamais diante de alguma coisa que seria o homem”.
(Foucault, 2010).
Em Michel Foucault a negação da ideia de homem não é um simples capricho, mas antes uma
estratégia. As várias noções de homem, ou de sujeito, impetradas pelos saberes sempre
impuseram uma Verdade tenha ela origem na filosofia, nas ciências humanas, nas religiões...
não importa qual o saber constituído. Na medida em que declaramos verdadeira uma noção de
homem, imediatamente autorizamos os poderes, o controle, a punição aos desviantes, aos
loucos, os criminosos, àqueles que não seguem às normas. Toda noção de verdade pressupõe
normatização e normalização. Existe em Foucault uma enorme preocupação em não ter uma
verdade, mas tentar descrever esses saberes e esses poderes, mostrando como acontecem os
modos de subjetivação que, segundo ele, seriam constituintes dos sujeitos.
Como a verdade se constrói? Quais as condições para que ela fosse gerada? Quais as regras
dessa verdade? Quais discursos foram impostos a partir dela? O que separa o verdadeiro do
falso?
“Come chocolates, pequena; come chocolate! Olha que não há mais metafísica no mundo
senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Come,
pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! ”
Fernando Pessoa
Não parece ser intenção de Moreno construir uma teoria visando algo político nas relações
humanas. O sentido de político dado aqui, por mim, é amplo: visa compreender os poderes
presentes nos vínculos humanos, os modos como os indivíduos articulam seus interesses
consigo mesmos e com aqueles que os cercam. Assim, todas as relações humanas são políticas,
pois todas transitam pelo desejo do indivíduo - ou de grupos - na busca de afirmação, de
positividade social.
Uma releitura política do pensamento moreniano como a esboçada aqui, imergindo seus
conceitos na filosofia transgressiva de Michel Foucault sofre, inevitavelmente, transformações.
Assim é, por exemplo, a ideia genérica de conserva cultural como sendo o resultado da imensa
produção humana, mas sobre a qual os humanos tenderiam a não se arriscar, não sendo
espontâneos e criadores necessitaria ser revista.
A construção do indivíduo, como narrado por Moreno (1978), é um sujeito cindido entre a
sociedade e a imaginação. Esta última, chamada também de fantasia, aparece como uma
espécie de resistência à invasão social que busca adaptar esse indivíduo. No esquema é possível,
portanto, produzir uma espécie de reserva de intimidade se assegurando de um mínimo de
espontaneidade criadora. Devemos notar que o processo, como descrito por Moreno como algo
individual e solitário, embora presentificada em uma relação.
Devemos notar que embora centrado no conceito de papel, Moreno não deixa de criar uma
“psicologia do desenvolvimento” e da produção de um suposto indivíduo.
Para Foucault somos objetivados e subjetivados. O primeiro termo diz respeito ao constante
movimento da Biopolitica, conceito produzido por Foucault para demonstrar como o Estado
opera diretamente sobre as populações e seus corpos, esquadrinhando indivíduos
normatizando, organizando em infinitas estatísticas, aferindo preferências de consumo e
opiniões que resultarão em novos saberes; dentro das ciências, servindo às políticas públicas, as
campanhas de marketing e, assim, “construindo” sujeitos através de discursivos e práticas. Diz
respeito às analises históricas, as teorias psicológicas, sociológicas e políticas que dizem quem é
o indivíduo. Toda e qualquer campanha que incida sobre corpos que, em tese, devem responder
ao Estado ou a qualquer instituição cujo intuito é promover e controlar a vida.
Os indivíduos buscam o Psicodrama por se sentirem por demais controlados pelos papéis que
precisam desempenhar na sociedade. Que se sintam por demais desadaptados. Ou que papéis
imaginários, ou seja, aqueles que ainda não ganharam corpo, que não existem na sociedade, que
reclamem um lugar na existência. Ou ainda reclamando a experiência da vida com muita
insatisfação. Em resumo, podemos pensar que se sintam assujeitados aos modelos familiares e
sociais.
O conhecimento gerado pelo trabalho psicodramático fica resguardado entre paredes e mesmo
nos trabalhos ditos públicos, não é tão fácil conectar o desasujeitamento suposto acontecido
nestes contextos com outras instâncias dos saberes e dos poderes. Assim, as verdades aí
desmontadas continuam aprisionadas com pouca ou nenhuma ressonância para além dos
participantes. Mas talvez este problema seja o menor deles: os psicodramatistas não enxergam
necessidade de maiores conexões em planos artístico, intelectual, cientifico, político visando
justamente questionamentos das verdades de uma cultura ou de uma sociedade. Tudo se passa
como se não houvesse inúmeros conexões a um universo permeado por múltiplos dispositivos
de controles, de forças e de conhecimentos.
O caráter de espetáculo do Psicodrama não pode ser confundido com a sociedade do espetáculo,
na qual vale mais o artificio do que questionamentos dos saberes e poderes vigentes? Como
sabemos a sociedade do espetáculo, como compreendida por Dubord (1997), tem a extrema
preocupação com o encenado, com o intuito de manipular. Do mesmo modo que podemos
discernir um teatro crítico da realidade de um teatro conformista, é possível investigar a
capacidade da intervenção psicodramática em efetivamente desmontar as belas verdades que
aprisionam os indivíduos.
Foucault discute amplamente em seus textos e aulas o que vem a ser a sociedade disciplinar.
Tentando resumir: uma sociedade disciplinar está focada nos critérios, nas regras, nos controles
pela qual os indivíduos devem cumprir. A disciplina incide, em última análise, sobre seus
corpos, premiando os “bons” e punindo os “divergentes”. Durante séculos as prisões, as escolas,
os hospitais psiquiátricos, as fabricas e outras tantas instituições disciplinares se utilizaram
destes dispositivos, cuja meta é produzir indivíduos sujeitados. Como a ideia de poder em
Foucault é positiva, os indivíduos reagem de algum modo se utilizando de um sem fim de
estratégias de resistência.
No final do século 20 e começo do século 21, no entanto, a sociedade disciplinar passa por
mudanças consideráveis. Para além da disciplina, a instauração de controles sutis e prazerosos
com processos e dispositivos muito distintos. Não mais presente a atitude punitiva, o olho que
tudo controla. Este controle é mais disperso, invisível, imperceptível visando produzir desejo,
intuir necessidade, buscar um humano “profundo” e oferecer aquilo que o indivíduo ainda não
sabe que precisa. E vai dizer qual é a sua necessidade, como ele “verdadeiramente é”,
oferecendo modelos de prazer e de sucesso. Com o advento das sofisticadíssimas sociedades de
controle (Deleuze, 1992), os indivíduos estão globalmente conectados através de redes, telas em
ininterrupto funcionamento. Os que estão desconectados são chamados disciplinarmente de
excluídos.
Com todas estas transformações, tem sido difícil sustentar a noção de sujeito e indivíduo como
vínhamos fazendo até a pouco tempo. A genética insiste em um determinismo biológico dentro
do qual a subjetividade humana seria produzida com pouca contribuição dos controles políticos
e sociais. Parece improvável, no entanto, que seres humanos estejam tão à mercê dos controles
sempre e em todo lugar.
O projeto moreniano faz sentido apenas e tão somente por não ser um projeto conservador. O
pensamento conservador não vê brechas para mudança, baseando-se apenas em assegurar o que
foi conquistado pela humanidade, o que, a mim, parece pouquíssimo e acomodado. Nesse olhar
conservador a noção de sujeito como algo fixo é plenamente sustentado. A busca tentada aqui é
por algo que, justamente, rompa com este entendimento.
O Psicodrama trabalha com uma verdade suposta ou com a narrativa trazida pelo indivíduo. Ou
dizendo de outro modo, faz a narrativa do que supostamente acontece com ele, seus temores e
conflitos. Fala, entendo eu, de e a partir de um sujeito-sujeitado. Não tem clareza de que está
fixado em muitos dispositivos disciplinares e de controles. Seria a tarefa do psicodramatista
ajudá-lo a detectar as armadilhas que produzem o sofrimento do qual se queixa.
O Psicodrama, entretanto, vem sofrendo transformações com o passar do tempo. Nas últimas
décadas parece ser apenas uma técnica visando resultados imediatos e não a reflexão sobre a
nossa existência. Caso esta percepção tenha algo de real, o Psicodrama estaria cada vez mais
sendo engolido pelo pragmatismo contemporâneo, perdendo seu caráter mais poético que faz
fronteira com a filosofia e as artes. Por este resgate que tenho lutado nos últimos tempos (2015).
O Psicodrama produz uma “verdade poética”, ou seja, nada mais, nada menos que ficção. Aqui
não existe certeza, apenas um indivíduo, ou melhor dizendo, alguém que em um papel é pura
narrativa, versão, possibilidade. No entanto, não basta fazer ficção, já que o Psicodrama
enquanto máquina vai se modificando, como disse, de acordo com os tempos. Qual o
Psicodrama que se faz na contemporaneidade? Nada se mantém enrijecido, tudo vai se
transformando, sendo atravessado por novos saberes e novos poderes. Quais seriam estes
atravessamentos? Sendo subjetivado no que se transforma? Como o Psicodrama contemporâneo
trata dessas ficções? As perguntas interessam, pois estão na base do processo de construção do
sujeito.
É uma escolha política a eleição da filosofia e das artes como exemplo de caminho a seguir.
Não qualquer filosofia ou arte porque, como sabemos, completamente encharcadas,
esquadrinhadas, controladas pelos poderes. Busco algo que se coloque fora do conhecido, que
tenha algo de estrangeiro, de inominável e que nos obrigue a um experimento do outro, como
algo não sabido. Muitos filósofos e artistas respondem a essa busca de diferença, da não
repetição, produzindo sensibilidades para além dos padrões oferecidos, das individualidades à
disposição do pensamento único, das verdades tidas como universais. Como mero exemplo
penso em Fernando Pessoa, pois figura reconhecível para leitores da língua portuguesa.
Ao escolher Fernando Pessoa foco uma vivência radical: um homem que se divide em vários,
que não se contenta com um ponto de vista, mas se transmuta todo o tempo em outros
produzindo não apenas literatura, mas vida. Não interessa compreender razões, buscar a gênese
na biografia do poeta português, mas sim pensar seu modo de funcionamento, a radicalidade de
sua experiência para discutir a construção do sujeito e a produção de subjetividades que não
estejam amparadas exatamente em coisas sabidas. Existe em Pessoa algo arriscado ao se colocar
todo o tempo fora de si. A produção de um grande número de heterônimos, seres com “vida
própria”, defendendo posições tantas vezes opostas entre si, é de uma diferença completamente
inusitada na história da literatura (Merengué, 2013).
Em Pessoa a questão de um ego único, assumidamente, não existe. Faz disso um jogo divertido
e angustiado, no qual a intenção é não se submeter a nenhuma verdade, mas a uma
multiplicidade de coisas, sentimentos, possibilidades. E, por isso escreve coisas como: “Não
sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho todos os sonhos do
mundo”.
Em Pessoa existe o devir: a abertura aos acontecimentos. Resiste aos saberes e poderes
buscando algo que esteja fora do permitido, do indicado, tentando ultrapassar as verdades
sabidas. Para isso o poeta se permite produzir personagens, estratégia para se safar dos
tentáculos da normalização que desliza por toda palavra, toda ação, todo desejo.
A ideia de morte do homem em Michel Foucault está alicerçada nessa luta, do mesmo modo que
a morte de Deus em Nietzsche: ao retirar a metafisica lança o indivíduo em um universo pleno
de espontaneidade e criação. Não mais etiqueta, muletas que impeçam a fluidez de um universo
e um tempo em eterna mudança, que retorna na não repetição, mas é sempre possibilidade.
A contemporaneidade inventa um homem, assim como outros tempos assim também o fizeram.
Mas apenas uma imensa crença na vida, e não uma crença fora dela, um mergulho intenso no
momento, e não fora dele, permite a invenção de um sujeito não sujeitado, um homem que
caminha por um fio estendido sobre o abismo, como diria Nietzsche.
“Partir! Nunca voltarei. Nunca porque nunca se volta. O lugar a que se volta é sempre outro”.
A espontaneidade criadora é puro fluxo. É onde seria bom estar? Na contemporaneidade fluida
de um tempo que muda e muda, apenas e tão somente a fidelidade a um devir infinito de vida,
faz de nós passageiros de um rio que corre pelos séculos...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras.
1998.