Fichamento de Ética e Deontologia
Fichamento de Ética e Deontologia
Fichamento de Ética e Deontologia
ETICA DA ALTERIDADE
introdução
1
1.Rupturas
2.Ao se falar em ética, qual é o sujeito que fala? Sem dúvida, em um sujeito concreto, um
eu. Mas fala a partir do geral, das instituições, da sociedade ou da teoria. É um sujeito
universal que se manifesta num discurso ético conforme as regras da filosofia
transcendental. Esta ergue-se sobre as experiências singulares e constroi-se conforme
estruturas abstractas. O eu torna-se sujeito transcendental, move-se de acordo com os
postulados formais da razão, suas operações seguem a generalidade ou objectividade. Por
esse viés, o sujeito transcendental alcança sua autonomia conforme sua natureza
intersubjectiva abstracta. O caracter abstracto permanece na passagem do conceito para a
realidade, ao se pensar instituições que garantam objectiva e universalmente a instância
ética. Lévinas substitui a subjectividade pensada como fria racionalidade pela moralidade
do homem que não se frustra ao apelo vindo do outro, presente em carne e osso. Propõe o
2
retorno ao concreto da relação inter-humana como base incontornavel para pensar a ética e
o advento de uma nova concepção de subjectividade, cuja órbita e óptica transcendem o
ser e a transeendentalidade.
uma relação em que alteridade do outro seja resguardada inclusive pelo sujeito conhecedor.
3
4. Lévinas propõe nova maneira de desenvolver os conceitos. O método transcendental
consiste sempre em procurar um fundamento. Uma ideia ou tese é justificada porque
encontrou seu fundamento. Este método enaltece a ordem do ser, do poder, do saber e da
correlação objectivadora em que se anula a alteridade. Surge a pergunta: preservar a
alteridade não será reduzir a filosofia, que procura avançar sob um sol sem sombras? Em
outros termos, é possível salvar a transcendência da alteridade e a essência do discurso
filosófico?
4
indivíduo às estruturas impessoais das engrenagens sociais e da linguagem; com o
marxismo, que submete o homem às estruturas gerais do socioeconomico coletivizador, no
qual o eu conta apenas como número; ruptura, enfim, com a psicanálise, na qual o eu fica
submerso nas tramas do inconsciente e das pulsões libidinais ou tanaticas.
2.Abertura-Opção
Como outros filósofos, Lévinas opta por não se afastar dos problemas vividos pelos
homens do seu tempo; sabe que iluminar e dar sentido às vicissitudes da caminhada
humana, sobretudo após a ¨ morte de deus¨ e a ¨morte do homem ¨, está entre as tarefas
mais sublimes e urgentes. Problemas bem concretos, como ¨vestir os nus¨, ¨alimentar os
famintos¨, ¨ socorrer os pobres ¨, ¨ acolher o próximo ¨ obrigam a unir pensar e fazer,
reflexão e acção. Como filosofo que é, não lhe basta a dimensão do concreto, do patético:
requer a especulação que investiga o sentido profundo do homem, da vida e do tempo, nas
rupturas apontadas, unindo teoria e praxis.
Bem cedo pressente que não é no ser e na totalidade que vai encontrar luzes para a questão
do sentido da existência e da convivência. É com Husserl, Heidegger e Rosenzweig que vai
abrindo caminho, distanciando-se progressivamente das eiras do ser e da totalidade. Em
Husserl, medita sobre as aporias da relação intersubjectiva, sobre as inadequações entre
noese e noema, sobre a intuição esquediça ou distraída do contexto e do horizonte que a
nutre e sustenta; em Rosenzweig, aprofunda a ruptura do esquema da totalidade hegeliana e
redescobre a especificidade do judaísmo, elevando-o à categoria filosófica.
Pode-se dizer que são três as grandes intuições filosóficas da proposta ética de Lévinas;
a afirmação da subjectividade individual como ponto extremo em que se refugia e sustenta
a moral, quando tudo o mais faliu; a relação inter-humana entre eu o outro como a intriga
fundamental que precede a ontologia, a partir da qual se estrutura a ética como
inteligibilidade o sentido, para além do ser e da totalidade; e o rigor fenomenologico-
especulativo com que elabora, com incessantes e sucessivas retomadas, a inteligibilidade da
transcendência da relação em que desponta a alteridade, renovando conceitos e
desconstruindo sentidos pelo facto de os ressituar em cenários ¨ fora de contexto ¨ que
dispensam os contornos do ser e da totalidade.
5
3.Peso e solidão de ser
Uma das intuições básicas do autor em foco consigo no peso e ma solidão do homem
imantado ao ser e por ele rodeado. As tentativas de libertação e de êxodo ensaiadas ao
longo da história da tradição ocidental não o livraram do peso de sua solidão. A solidão
revela-se uma marca profunda na estrutura ontológica do sujeito. Mas contem sua face
positiva: desvela a sua unicidade e autonomia irredutíveis a qualquer totalização. é a
riqueza maior dessa solidão ontológica, contraída na própria hipostase , que marca o
próprio acontecimento de ser. A subjectividade traduz-se como separação e segredo. Sem
dúvida, ser é melhor que não ser. Mas, a libertação referente ao puro existir anónimo torna-
se logo ¨ acorrentamento a si ¨ que é o fenómeno da identificação na qual se percebe
mônada separada do indeterminado, porém solitária. A subjectividade apresenta-se, pois,
como uma vitória sobre o ser, sua superação, como uma excendência em relação à
ontologia, mas que não é transcendência.
Vê-se o esforço de Lévinas para encontrar um lugar, isto é, um ¨ não – lugar ¨ para a
subjectividade, fora da ordem do ser como puro existir anónimo. A primeira ruptura na
ordem do ser e da totalidade acontece como um eu. Mas o eu, no seu processo identificador,
percebe-se ancorado radicalmente no puro existir mesmo nas tentativas de voos exodais. É
incapaz de transcendência por si só.
O esforço despendido na hipostase para superar a neutralidade impessoal do puro existir
permanece no existente subjectivado como expansão ou como essência em que se procura
desenvolver as possibilidades do próprio ser a partir de seus recursos e da inexaurível
realidade do ser. Trata-se do egoísmo natural, anterior à moral, que anima os eus, a
sociedade, as instituições e as culturas, a partir da própria aspiração do querer e do
conhecer. Lévinas vê em todo este impulso o segredo da civilização ocidental, por ele
descrita como essencialmente egoísta e penetrada pela violência, onde a própria ética,
derivada dessa ontologia, permanece subserviente ao mesmo ser expansivo.
Essa solidão ontológica é também necessária para demarcar a ruptura da totalidade pela
individuação o possibilitar uma relação de alteridade, para além de qualquer horizonte
totalizante. Neste sentido, a solidão significa, igualmente, a autonomia do eu em relação ao
ser; indica, por parte do eu, o domínio do seu ser, a independência subjectiva na
6
dependência ontológica. Para poder suportar a responsabilidade na relação ética é mister
um existente bem aprumado no ser e no seu, capaz de solidão e de independência.
4. Evasão
Os primeiros ensaios levinasianos fenomenologizam um eu enclausurado no círculo do ser
e da identidade. As tentativas empreendidas para forçar as portas de sua prisão e o fracasso
dos esforços mostram um eu que esbarra por todos os lados com o puro existir e com sua
identidade. A alternativa da evasão afigura-se inviável, pois a consciência intencional
percebe-se adequada tudo, nada lhe é ¨ exterior¨ nem conduz para além dos horizontes do
ser. Nem o tempo, considerado como presença sincrónica constituída em que outro é
correlato do meu tempo, abre perspectivas de superação da ordem transcendentalmente
constituída.
Por outro lado, sair do tempo, refugiar-se na projecção do eterno, é fugir da
responsabilidade que se verifica nos embates do círculo social quotidiano. Por nenhum
desses caminhos, historicamente pensados e palmilhados, Lévinas reconhece uma chance
de humanização. A ética que neles aparece não é responsabilidade inscrita na
subjectividade, não é encontro inter-humano pessoal, apenas uma forma a mais na
salvaguarda do eu. Nem filosofia nem a teologia apresentam uma saída capaz de operar
uma ruptura profunda no homem, capaz de romper o bloco identidade-ser-totalidade que o
leva a transcender-se. A moral que sobre elas se constrói deixa incólume o eu erguido
sobre seu ser sua expansão. Como na física, tudo se transforma, mas uma realidade
permanece igual: a energia; do mesmo modo, diz Lévinas, opera a ordem ética que nasce da
cultura do pensamento ocidental: há transmutações de energias, mas o eu, idêntico, como
Narciso enamorado da sua imagem, permanece o mesmo.
5. Relação de alteridade
Em todas as tentativas de evasão, o eu que permanece às voltas com sua identidade e seu
ser percebe nestes pólos o sentido último do viver individual e social.
Lévinas levanta uma pergunta radical: ¨ Será que eu me devo ao ser? ¨ Será que a
perseverança, ingénua e natural, no ser não é antes uma questão biológica que moral e,
consequentemente, tudo o que se edifica sobre o natural não merece ainda o nome de ético
ou humano? E se o ser não for sua própria razão de ser, se não fora fonte de todo direito e
de todo sentido, que outro fundamento apontar ou como se justificar?
7
A história da filosofia atesta a incessante tentativa humana de êxodo da eira do si e do ser.
Metafísica foi o termo mais usado para significar este movimento de transcendência. Ao
retomar o termo metafísico, Lévinas desloca-o do eixo tradicional, cria-lhe um novo
estatuto, situa-o na relação inter-humano e confere-lhe novo sentido. Mantém a
característica de transcendência e ascensão que ele contém, impondo-lhe um movimento
ônico. A novidade do gesto que a metafísica implica não corresponde ao elã do desejo
platónico, preenche de carência e de abundância, ou da consciência intencional husserliana
em busca do preenchimento de sua visada.
O eu não se deve ao ser mas ao outro. Voltar-se para e pelo outro significa
responsabilidade. Manifesta desinteressamento de si e do seu ser, dispõe-se ao outro, o
primeiro que se apresenta, sem ser objecto de escolha, aliás, sem ser objecto absolutamente.
Descortina-se a relação como ética pelo transcender-se do eu, abrindo a ordem da bondade.
A ética torna-se o eixo fundamental precisamente porque contém e revela a possibilidade e
a realidade do além do ser e da identidade do mesmo como transcender para o outro numa
relação responsável que Lévinas chama de alteridade.
O desejo é a modalidade pela qual a ideia do infinito se produz no eu. Porém ¨ não como
um desejo que a posse do desejável sacia, mas como o desejo do infinito que desejável
suscita, em vez de satisfazer. Desejo perfeitamente desinteressado – bondade ¨. O desejo
marca a subjectividade com abertura do infinito que desadequa a consciência a dequadora,
pondo-a em relação com um ideado inadequàvel e informalizàvel.
Em todas as obras, Lévinas aprofunda a significação desse tema, procurando firmar o
estatuto da relação de alteridade, na qual se decide a ruptura do ser, ao ¨ revirar talvez –
antes da letra – a validade universal e o caracter original da intencionalidade.
A relação entre o eu e o infinito corresponde a afirmação de que a identidade é animada
pela alteridade, o outro no mesmo que torna irreal a concepção da consciência como
identidade ou como coincidência consigo mesmo . Lévinas conclui: ¨ A Subjectividade é a
parceira do enigma e da transcendência que desconcerta o ser ¨. A relação com o outro em
si é face a face, directa, sem mediação e sem horizonte prévio, não subordinada a nada . A
verdadeira luz não vem do mesmo, está no em si do rosto, que tem luz própria e se exprime
no vestígio do infinito .A relação transcendente surge como revelação epifania do rosto. A
relação de alteridade com o outro prolonga, na área social quotidiana, relação com o
infinito.
8
A nova relação vai vigorar na originalidade do discurso que prorrompe no face a face de
forma magistral. O discurso é a possibilidade de uma relação com que permanece
essencialmente transcendente. Se na relação com o infinito inapreensivel o eu fica
abstractamente inquieto diante de quem o supera, agora, na esfera social quotidiana,
percebe-se questionado pelo rosto, por sua presença concreta em si indesviàvel.
A abertura operada no mesmo atingi o desejo, cuja especificidade é colher o que vai além
da correlação estabelecida pela dinâmica da carência e da saciedade, é acolher o infinito.
Lévinas vira o negativo em positivo pelo desejar a colher, indicando a nova ordem ética;
em vez de dominação, bondade. Donde a insistente a firmação de que acolher é relação
melhor do que compreender intencional e objectivamente. Este novo acto implica um
movimento e envolvimento de todo o ser na profundidade do desejo, que , conduzindo para
o bem , abre a ordem moral. Nesta ordem, o rosto não é mais visto teoricamente, mas
acolhido, isto é, o mesmo, abrindo-se na ordem do ser expansivo identificado, se transcende
e responde para além de sua medida e liberdade, isto é, com infinda responsabilidade. Esta
nova relação com o rosto em que o mesmo, relativizando a ordem do ser expansivo, se
transcende é a ética da alteridade e inaugura o humanismo do outro homem.
O rosto, presença imediata, não é mudo, exprime-se com luz da verdade própria. Sua
Linguagem é ensinamento sublime: ¨ não mataras ¨. Este mandamento inscreve-se na sua
alteridade: por um lado, revela sua intocabilidade e, por outro, produz a exigências de
mudança nos registos de interpretação do ser. Paradoxalmente, no rosto há significancia de
pólos extremos: altura e miséria, magistério e indigência. O ensinamento abre e conduz a
inteligência do mesmo para a nova ordem ética; a indigência constitui-se em apelo que abre
e conduz ao absoluto do bem, na forma concreta da responsabilidade – bondade.
O rosto revela-se e exprime-se como um desafio ao poder do mesmo. A violência só se
refere ao outro, não às relações com a natureza, em seus diversos níveis e formas. O rosto,
em sua expressão: ¨ não mataras, é pura resistência ao domínio do mesmo que, se forçar a
posse, vira assassinato. Porém, o outro em sua alteridade, na morte, escapa à posse do
mesmo, só lhe resta o cadáver, o puro existir indeterminado. A alteridade é inatingível
porque transcendente, diferente infinitamente de tudo o que é fenómeno. Por outro lado, o
rosto exprime ¨ nulidade e miséria ¨, mortalidade sempre iminente a ser socorrida pela. A
liberdade, em vez de ser limitada, recebe investidura e cresce na responsabilidade.
Num ensaio em que Lévinas debate com Merleau – ponty a questão do fundamento da
cultura, afirma que a ética da alteridade está na origem de toda civilização e confere o
sentido derradeiro de toda questão e busca:¨ Antes da cultura e da estética, a significação. A
9
moral não pertence à cultura: ela é que permite julga-la , ela é que descobre a dimensão da
altura . A altura ordena o ser ¨
10
subjectividade, que ela constitui, por assim dizer, o núcleo mais profundo da própria
identidade, ela é o vestígio do para que transe o seu ser.
Pode-se dizer, pois, que há uma heteronomia que marca metafísica e constitutivamente a
subjectividade: heteronomia (ao inverso de Kant) que não é alienação mas libertação do
homem. Não é alienação, porque a eleição vem do bem e o bem precede a liberdade,
conferindo-lhe sentido. A subjectividade sofre a eleição do bem, sofre-a na sua carne,
significando a exposição sujeição radical a outrem. Eleição que precede uma possível
assunção pela liberdade, e por vir do bem, a violência que poderia haver no facto da não
liberdade é resgatada pela significancia de um sentido melhor que o da perseverança ou da
expansão do ser, o sentido melhor do ser para que se traduz como desinteressamento de si
em favor do outro, até a responsabilidade como refém, até a substituição um pelo outro.
Assim, a moralidade, melhor dito, a responsabilidade pelo outro que expõe ao acusativo
(passividade), torna-se a estrutura do humano, para além e mais profundamente que a
individuação do eu em mim. é este, sem duvida, o sentido maior da obra Autrement qu’être
ou Au-delà de l’essence : ¨ Cada indivíduo é virtualmente um eleito, chamado a sair, por
sua vez ou sem esperar a sua vez do conceito do eu, de sua extensão no povo, chamado a
responder de responsabilidade: eu, isto é, eis-me aqui para os outros
11
Conclusão
Lévinas põe em questão a ideia de qual o mal é defeito. Pergunta se o ser não comporta
outro vicio que sua limitação e o nada. Não existe na própria posictividade do ser algum
mal radical? Precisamente, o outro transcendente separado, ao pôr em questão o movimento
egoísta do eu, atinge na sua ontologia, revira-o, desnucleia-o sem destrui-lo. O ser precisa,
de alguma forma, passar pela justificação, Philippe Nemmo, no livro L’excès du mal,
mostra uma brecha para transcendência no próprio excesso do mal. A partícula ¨ex ¨ da
palavra excesso abre e aponta para o ¨trans¨ do ser; a condição insuportável do mal aponta
para incondição; o ¨ex¨ significa o como que abre para a transcendência, para a
excendência. Não se trata de ideia, de atitude piedosa, mas da intencionalidade ligada à
própria modalidade do mal na forma da dor que dilacera o ser expondo-o à incondição.
Para Lévinas, o mal é ser. O mal desenrola-se à guisa do ser que se expande e procura
perseverar no ser. A irresponsabilidade está em seguir o jogo do ser, seja isso dito e
justificado como cuidado para com o ser próprio. A ética que se funda no ser, mesmo na
civilidade, prolonga esse jogo, perpetua, de formas variadas, o império do egoísmo, às
custas do outro.
12
13