Descobrimento Do Rio Amazonas PDF

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Série 2.

ª *B R A S I L I A N A
BIBLIOTECA P EDAGÓGICA BRASILEIRA
* Vol. 203
GASPAR DE CARVAJAL, ALONSO DE ROJAS
E
CRISTOBAL DE ACU~A

Descobrimentos
.do
Rio das -Amazonas
Traduzidos e anotados
por
C. de Melo-Leitão

COMPANH IA EDITORA NACIONAL


São I;'aulo - Rio de J aneiro - Recit e - P ô rto Alegre

1941
Bl ~l - O TECA
N · ·· 7 9 -------~-----
19 ·72
INDICE

Prefacio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
Relação que escreveu Frei Gaspar Carvajal 11
Descobrimento do Rio de Orellana . . . . . . . 1.3
Descobrimento do Rio das Amazonas e suas
dilatadas províncias . . . . . . . . . . . . . . . . • . . 81
Novo descobrimento do Grande Rio diiS
Amazonas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125
Pref áci o

As narrativas das viagens de Orellana e P edro


Teixeira são tres crônicas que se completam, descreven-
do quasi o mesmo roteiro, com intervalo de um século.
São muito desiguais, iamas quasi a dizer opostas,
no seu estilo. A do frade dominicano é pesada, cheia de
repetições e orações incidentes, difícil de ler e acompa-
nhar, sendo poucas as informações que nos dá da na-
tureza e mesmo das t ribus indígenas, tendo apenas inte-
resse as que se referem às Amazonas. Ao tempo da
viagem de Orellana, segundo a narrativa de Carvajal,
eram as margens do Amazonas povoadíssimas, de povos
em constante guerra, quasi todos hostis aos viajantes.
A narração de Acufía é leve, dividida em pequenos
capítulos, dando um sem numero de notas curio~as,
o que torna o opúsculo do jesuí ta de leitura amena e
agradavel. A outra, que se atribui a Alouso de Roja~,
é também de facil leitura, semelhante, no estilo, à de
Acufía, que dela transcreveu alguns parágrafos. Pelas
trad uções que se seguem poderão os leitores fazer o con-
fronto. As dos jesuítas são quasi literais. Na de Car,
vajal eliminei centenas de - o dito -, e outras muitas
repetições, procurando dividir os longos e interminaveis
periodos em sentenças mais curtas e incisivas. Sem mo-
dernizar completamente o texto do velho cronista espa-
nhol, tentei amenizá-lo.
6 CARVAJAL, RoJAs E Ac uNA

Nasceu Gaspar de Car·v ajal em Trujillo, na Extre-


mad ura espanhola, aí pelo ano de 1504. Em principios
de 1537 partiu para o Perú com dez outros frades da sua
Ordem de S. Domingos, estando em 1538 como vigário
provincial em Lima, onde fundou o primeiro convento
dominicano da América. Quando por ali passou Gonçalo
P izarro, extremenho como Carva jal, a tomar posse cio
governo de Quito, antes confiado a B enalcazar, levou
consigo o seu conterraneo, moço e enérgico, para dizer
missa e confessar aos seus soldados . E. ao findar o ano
de 1540, quando P izarro resolveu mandar a Orellana pelo
rio Coca abaixo, em busca de comida, com os enfermos,
seguiram no mesmo bergantim Carvajal e um seu irmão
de hábito. -
Foi ele companheiro de Orellana em toda essa épica
descida do Amazonas, duas vezes alcançado pelas setas
dos indígenas, em uma das quais veio a perder um olho.
Chegando á ilha de Cubagua em meados de setembro de
1542, aí soube da morte do bispo Valverde pelos índios
da Puna e da de Fráncisco Pizarro pelos do Chile. Tal-
vez por isso tenha decidido não acompanhar Orellana á
Espanha, seguindo para Panamá e d'aí para Lima. Em
1544 o vemos como vicepríor do convento de Lima, e em
1548 o encontramos como prior do convento de Cuzco, de
onde foi enviado pelo licenciado P edro de la Gasca para
Tucurnan, com o titulo de protetor dos índios. Em 1557
foi eleito provincial de sua ordem no Perú, tendo visitado
escrupulosamente os conventos da sua província. De
1575 existe, assi nado por ele, honrosíssimo documen-
to no qual , dirigindo-se ao rei, "como cristão e religioso"
lhe solicita que olhe pela proteção e defesa dos índios.
Escreve Toribio Medina : "Sua Relação da viagem
de Orellana, embora escrita sem arte, é o reflexo fiel de
DEsconntMEN'l'Os DO Rio DAS AMAZONAS 7

suas próprias impressões e do que presenciou, e até ago-


ra o único documento que se conhece daqpele memoravel
sucesso".
O primeiro autor que historiou a viagem de Orel-
lana foi o cronista Fernandez de Oviedo, que se encon-
trava em São Domingos, quando aí aportou Orellana, já
de vela para a Espanha. Como diz Toríbio de Medina:
"Aquela viagem seguindo a corrente do maior rio do
mundo por espaço de mil e oitocentas léguas era um
acontecimento tão importante para a história da geogra-
fia, ou, como então afirmava aquele cronista, uma das
maiores coisas acontecidas a homens, que valia a pena
fazê-Ia desde logo conhecida na Europa".
O cronista da Historia da índias deu a notícia dessa
estranha ocurrência ao cardeal Bembo, favorito de Lu-
crécia Borgia, e Bautista Ramusio a publicou em 1555,
na sua coleção Delle navigatione et viaggi. Devia Oviedo
ter conhecimento, além disso, do relato do padre Carvajal,
pois de outro modo não se explica que, embora dê mais
pormenores da vi.agem do que o faz o frade dominicano,
transcreva no f inal de sua obra, com pequenas variantes,
essa crônica. Manhosamente não refere Oviedo o nome
de Carvajal, dizendo apenas que escreveu o descobrimen-
to do Marafion ad plenuni, "com algumas particularida-
des que eu soube pelo próprio capitão Orellana, além do
que, como testemunha de vista, escreveu um devoto frade
da Ordem dos Pregadores.
O li·vro Guerra de Chupas1 relatando a mesma via-
gem, permaneceu inédito até 1881. Ficou tambem longo
tempo inédita a Jornada do rio Maranon de Toribio de
Ortiguera, escrita "segundo informações de alguns que
nela tomaram parte".
8 CARVAJ AL, Ro.r As E AcuNA

As primeiras obras espanholas publicadas sobre a


viagem de Orellana (pois a narrativa de Oviedo apareceu
antes na Italia), são a Historia geral das Indias de Lopez
de Gomara e a Historia do descobrimento e conquista do
Perú, ambas apoiadas sobre os dados de Garcilaso de la
Vega.
Antonio de Herrera dedicou á expedição de Orel-
lana dois capítulos da sua H-istoria geral dos feitos dos
castelhanos nas Ilhas e T errafirme do Mar Oceano, apre-
sentando "um quadro bastante completo do sucesso, em-
bora não tenha tirado todo o partido que poderia tirar dos
documentos que teve à sua disposição, alguns dos quais
já desaparecidos".
Em português a pi:imeira obra publicada sobre a
viagem de Orellana é a R elação sumária das coisas do
Maranhão do capitão Simão Estácio da Silveira.
A partir de meados do século XVII as duas viagens
de Orellana e Pedro T eixeira se acham quasi sempre reu-
nidas.
Desta última viagem foi cronista o padre Cristobal
de Acufía. Nasceu ele em Burgos em 1597, pertencendo
a uma fami lia nobre e influente dessa cidade de Castela
a V elha. I ngressou na Companhia de J esus em 1612,
no colégio que os padres ali fundaram, protegidos pelos
bispos e pela familia dos Sanvitores.
R ecebidas por Acufía as ordens sacras, foi enviado
às missões da América para o Chile e P erú, sendo no-
meado professor de T eologia moral do colégio de Cuenca
( de Quito), confiando-se-lhe mais tarde o cargo de reitor
daquela casa.
Designado pela audiencia de Lima para, com outro
jesuíta, o padre André de Artieda, acompanhar a Pedro
T eixeira na sua viagem de volta pelo rio das Amazonas,
DESCOBRIMENTOS DO RIO DAS AMAZONAS 9

embarcou em Quito em fevereiro de 1639, chegando ao


Para em dezembro do mesmo ano,
Nesta expedição científica estudou minuciosamente
os costumes dos povos indígenas, fazendo curiosas obser-
vações e apresentando sugestões que ainda são oportunas
neste meado de século XX. No ano de 1640 já o en-
contramos em Espanha, onde apresentou a Felipe II o
seu livro, de que damos a tradução. Pouco tempo depois
fez uma viagem a Roma, como procurador da sua pro-
vincia, sendo, ao regressar, nomeado qualificador da su-
prema Inquisição. Ficou na Côrte algum tempo, vindo
finalmente para Lima, onde faleceu em 1675.
Se para a viagem de Orellana houve outros dados,
além dos fornecidos por Fr. Gaspar de Carvajal, para a
de Pedro Teixeira não fazem os autores mais que resu-
mir a obra de Cristobal de Acufia, quando não a trans-
crevem ipsis litteris. Encontram-se pela primeira vez reu-
nidas as duas viagens 110 livro JJ1arafíon y Anwzonas, do
padre Rodriguez, no qual , são escritas, "quasi com as
suas próprias palavras", as narrativas de Garcilaso de la
Vega e a de Cristobal de Acuiia é copiada integralmente.
La Condamine, embora não cite o jesuíta espanhol,
não faz mais, em sua R élation abrégée d'un voyage fait
dans l'intéríeur de l' Amérique M éridionale, que repetir
em seus minimos detalhes, o livro de Cristobal de Acufta.
A outra narrativa aqui traduzida tem por título
Descobrimento do Rio das Amazonas e suas dilatadas pro-,
víncias, não havendo certeza de seu autor. Com uma
série de argumentos de valor, Marcos Jimenez de la Es-
pada a atribui ao jesuíta Padre Alonso de Rojas, dizendo:
"O licenciado Antonio Leon Pinedo que por seu
ofício e especial encargo do Conselho das Indias no ex-
pediente da viagem do Padre Cristobal de Acufia, ao
10 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

descrever o rio das Amazonas e sua navegações e desco-


brimentos no livro Paraisa no Novo Mundo conta, embora
mais brevemente que o nosso manuscrito, a primeira via-
gem de Pedro Teixeira, ajuntando: - De que o P. Alonso
de Rojas da Companhia de Jesus escreveu uma Relação
que chegou às minhas mãos, embora sem o mapa que
vinha com ela. - Acrescente-se a tão autorizada notícia
que a relação delicada ao conde de Castrillo veio ter às
mãos de D. Martin de Saavedra por intermédio de Quito
e que nesta cidade residia, e talvez nessa ocasião já fosse
reitor do Colégio Máximo, o padre Rojas, e que o origi-
nal de que ·nos servimos tem a cifra e selo da Companhia
de Jesus, e se veja se tudo isso não induz e convida a
pôr deb-ªixo da epígrafe da viagem de Pedro Teixeira o
nome daquele religioso".
Quanto ao mapa que acompanha o citado manuscrito,
e do qual damos aqui uma reprodução, é atribuído por
Fr. Laureano de la Cruz a Bento da Costa, brasileiro e
piloto da armada de Pedro Teixeira, opinião com que se
conforma Jimenez de la Espada, acreditando que o re-
ferido mapa foi depois apenso ao manuscrito, uma vez
que o mapa original, como dizem todos os autores que a
ele se referem, já não existia.
Esse manuscrito foi publicado pela primeira vez por
Jimenez de la Espada em 1889. Achei que seria muito
interessante juntar às duas crônicas dos padres Carvajal
e Acufía esta narrativa da subida do rio, principalmente
para que se observem os capítulos de que se serviu Acufía
na stia obra e, como diz Jimenez de la Espada, são mais
uma prova de que tal narrativa é de autoria de um Je-
suíta, tendo sido encontrada por Acuíia nos arquivos da
Companhia. E talvez tivesse tido autorização expressa
do seu irmão da Companhia para dos mesmos se apro-
veitar.
RE L AÇÃO
QUE ESCREVEU FR. GASPAR DE CARVAJAL

frade da Ordem de S. Domingos de Guzman, do


novo descobrimento do famoso rio grande que
descobriu por imensa ventura o Capitão Francisco
de Orellana desde a sua nascente até sair no mar,
com cincoenta homens q1le trouxe consigo e se
lançou à sua aventura pelo dito rio, e pelo nome
do capitão que o descobriu se chamou o R io de
Orei/ano.
DESCOBRIMENTO
DO
RIO D E ORELLAN A

Tudo que eu vou contar d'aqui por diante será con)o


testemunha de vista e homem a quem Deus quiz dar parte
de um tão novo e nunca visto descobrimento, como é este
que adiante direi.
Depois que o capitão Francisco de Orellana ( 1) al-
cançou a Gonçalo P izarro, que era o Governador, quiz
este ir pessoalmente descobrir a terra onde se dizia que
havia canela e como não a encontrasse nem sítio onde pu-
desse ser util a Sua Magestade, resolveu seguir por diante.

(1) Francisco de Orellana nasceu em Trujillo da Extre-


madura em 15 11 , pertencendo a uma familia aparentada com
a de Francisco Pizarro, tendo vindo muito jovem ainda para
as Indias Ocidentais, provavelme nte para a America Central.
Em 1535 estava ele "nas conquistas de Lima, T ruji!lo e
Cuzco ", nas quais perdeu um olho. Estava ele na recem-
funda da Quito, quando teve noticia de que as cidades de·
Cuzco e Lima estavam sitiadas pelos índios, tendo partido
imediatamente em socorro de Francisco Pizarro. Em 1538
partiu para o litoral do Pacifico, fundando em sitio mais con-
veniente a cidade de Santiago de Guayaquil, da qua l o fez
P izarro capitão general e tenente de governador. Foi aí que
soube da nomeação de Gonçalo Pizarro, seu conterrâneo e
él.migo, para governador das provincias de Quito, em substi-
tuição de Sebastião de Benalcazar. Pretendendo Gonçalo
Pizarro conquistar as terras do EI Dourado e da Canela, pro-
14 CARVAJAL, ROJAS E ACUNA

Foi-lhe o Capitão Orellana no encalço com a sua gente,


alcançando-o em um povoado que se chamava Quema,
formado por umas cabanas . a c:nto e trinta léguas de
Quito, reunindo-se novamente at. Querendo o Gover-
nador mandar explorar o rio, houve parecer de que tal
não fizesse, pois não era razoavel seguir rio abaixo, dei-
xando as cabanas que ficam por t rás da vila de Pasto e
Popayán, onde havia muitos caminhos. Q uiz, porém, o
Governador seguir o rio, pelo qual andámos vinte leguas,
ao cabo das quais achámos umas povoações, onde deter-
minou Gonçalo P izarro que se fizesse um barco para
navegar pelo rio que aí tinha meia légua de largura.
Embora fosse Orellana de parecer que se não fizesse
tal barco, por boas e justas razões, mas que voltássemos

poz-se Orellana a acompanhá-lo. Tendo tomado posse do seu


g overno em primeiro de rlezembro de 1540, em fevereiro <le
1541 com quatro mil índios e 220 espanhois saiu de Quito
para aquela expedição . No vale d-e Zumaco "ou pouco mais
adiante" se reun iu Orel lana ao corpo expedicionário, sendo
receb ido por Gonçalo Pizarro com mostras de grande alegria,
nc,meando-o &eu tenente geperal. D 'aí seguiu Pizarro a pé
em busca da canela, tendo-a encontrado ao cabo de setenta
(lias de mar cha, mas tão escassa e em grupos tão disper sos
que resultou em verda deiro malogro <la expedição. Voltan do
a Zumaco, seguiram, por infor mações do Mestre de Campo
"para um r io muito gra r)de, onde vira muitos índios vestidos
que andavam em canoas ", chegando à p rovíncia que diz P i-
zarro ser dos Omaguas. Foi à margem desse rio dos Oma-
guas que se constru iu o bergant im, no qual embarcaram
Orellana, os dois frades e os cincocn ta soldados espanhois,
passa ndo pelos transes que são contados na crônica de Car-
vajal. · Esse rio de onde partiram Orellana e os seus com-
panhei ros é, para T oribio de Medina, o Napo no ponto de sua
confluência com o Aguarico. Chegados à ilha de Cubagua,
como se lê no relato de Carvajal, resolveu Orellana seguir
pa ra a Côrtc, fretando ou comprando em Trinídad um pequeno
ba rco, no qual, em companhia de Cristoba l de Segovia, Alonso
Gutierrez e F ernão Gutierrez de Celis, embar cou para a Es-
DESCOBRIMENTOS DO RIO DAS AMAZONAS 15

às cabanas e seguissemos os caminhos que levavam a terras


já povoadas, insistiu Gonçalo Pizarro em que se cons-
truísse a embarcação. Em 'Vista disso a11,1fo u o capitã9
Orellana por toda parte a tirar ferro para cravos e, dis-
tribuindo a cada qual a madeira que havia de trazer, con-
seguiu com o trabalho de todos fazer o tal barco, no qual
meteu Pizarro alguma roupa e índios enfermos e segui-
mos rio abaixo outras 50 léguas. Aí acabaram os povoa-
dos, e como já íamos muito necessitados, com falta de
comida, mostravam-se todos os companheiros muito des-
contentes e falavam em voltar, não seguindo mais para
diante, porque se tinha noticia de que havia um grande
trecho despovoado.

panha, passando por São Domingos a 22 de novembro de 1542,


chegando a Valaclolid em meados ele maio de I 543. Fazendo
presentes ao Conselho os documentos que este lhes pedia,
o mesmo, em informação a El-rei, dizia que "segundo a re -
lação de Orellana e a situação em que estão este rio e as
terras que diz ter descoberto, poderia ser terra rica onde
V. M. fosse servida e a Coroa Real ac rescen tada". E infor-
mava mais que tres ou quatro anos antes o rei de Portugal,
por industria elo tesoureiro Fernão d'Alvares, apresentara uma
armada, que se perdeu, para entrar por aque la costa; que na
casa da contratação de Sevilha se sab ia que, em vista do su-
cesso da viagem de Orellana, se preparava uma outra armada
para penetrar pelo rio. e que o próprio Rei de França prova-
velmente a ambicionaria, "parecendo portanto que convinha
ao governo de V. M. que as costas deste rio se descubram
e povoem por V. M. o mais breve que seja possível, sendo
propício ao serviço de Deus que se tragam os naturais dessa
terra ao conhecimento da santa fé católica. Recomendava o
Conselho que "se encomendasse a este Orellana tal descobri-
mento e povoamento, por já o ter descoberto e ter noticias
dela". A 13 de fevereiro de 1544 era Orellana encarregado
de ir a esse descobrime nto, levando consigo 200 infantes e
100 cavaleiros, o necessario para construir as barcas que se
fizessem precisas, oito religiosos, com a autorização de con-
quistar e povoar, em nome da Coroa de Castela e Leão, as
16 CARVAJAL, ROJ AS E ACUNA

Vendo o capitão Orellana o que se passava e a gran-


de penúria em que todos estavam, tendo por sua vez per-
dido já tudo o que possuía, pareceu-lhe que não seria
honroso voltar depois de tantos prejuízos. Dirigiu-se, por-
tanto, ao Governador, dizendo-lhe que aí deixaria o pouco
que possuía e seguiria rio abaixo. Que se a sorte o fa-
vorecesse, de modo que achasse nas proximidades comida
com que todos se pudessem remediar, disso daria pronto
conhecimento, e que se tardasse, não se preocupasse o
Governador, mas voltasse para trás, para onde houvesse
comida e ali o esperasse tres ou quatro dia s ou o tempo

regiões que se dilatavam para o sul do rio que havia desco-


ber to, numa extensão de duzentas léguas medidas pelo ar , co m
o t ítulo de governador e· capitão general d as que descobrisse,
com ci nco m il duca dos d e soldo desde o d ia da partida d a
esquadra do porto de San Lucar, e um duodécimo das renda s
dessa terra até um conto de maravedis por a no. Eram pela
mes ma cédula nomeados o vedor, contador, tesoureiro, aguazil
maior e fator, e indicado a F r. Paulo de T orres, dominicano,
•· para fiscalizar como o Governador · ia c umpr ir e guardar as
determinações reais. T inha Orellana uma serie de autorizações
m as a expedição seria toda prepa rada a sua cus ta. D epois de
um sem número de contratempos e contrariedades pa rte afinal
em princípios de junho de 1546 a conquistar a N ova Andaluzia.
D e a cordo com o itinerário projetado Orellana rumou para as
C anárias, demorando-se tres meses em Tcnerifc, daí passando
às ilhas de Cabo V erde onde se deteve mais dois m êses, tar-
da nça que lhe foi fata l, morrendo-lhe 98 pessoas <la tripula ção,
de modo que dos quatro navios com que· partira teve de aban-
do nar um. E m meados de novembro , a bandonado por mais
cincoenta homens de guerra, entre os quais o m estre de campo
e tres ca pitães, de sfralda as velas em busca da costa brasileira .
Assaltam-no contrários ventos; a sêde começa a fazer sentir-se
a bordo e to dos teriam morrido se não fossem opor tuna5
chuvas tropicais. Uma das naus, na qua l iam 77 pessoas,
u m cavalo e um bergantim que devia se rvir para subir o rio ,
perdeu-se per to das costas do Brasil, sem que nunca mais se
soubesse nada d a sua sorte. D eixando-se arrastar pelo vento
norte, depois de umas cem leguas, enco ntram agua doce, in-
DESCOBRIMENTOS DO RIO DAS AMAZONAS 17

que lhe parecesse melhor, e se ele não chegasse, que não


fizessem caso. Concordou o Go·vernaclor em que ele fi-
zesse como lhe aprouvesse.
Tomou consigo o Capitão Orellana ~ 57 homens, com
os quais se meteu na embarcação que construíra e em al-
gumas canoas que haviam tomado aos índios, começando
a descer o rio com a intenção de volver logo que encon-
trasse víveres. Mas tudo saiu ao contrário do que todos
pensávamos, pois não descobrimos comida num decurso
de 200 léguas, nem nós a encontrámos, padecendo por
isso grandes necessidades, como adiante se dirá. E assim

dicio certo de que aí desembocava o rio que buscavam e a


20 de dezembro, depois de quasi sossobrar nuns baix ios, va-
lendo-se das peças de artilharia como ânco ras, surgiam as
naves entre duas linhas, cujos habitantes forneceram aos expe-
dicionários milho, peixe e frut as da terra. Aí durante os mêses
de janeiro a março de 1546 co nstruiram um bergantim no
qual mandou Orellana alguns companheiros em busca de pro-
visões, pois já 57 homens tinham morrido de fome, depois de
comidos os cães e cavalos que levavam. A diligencia foi in-
frutifera e, mortos muitos dos tripulantes, resolveram que a
nau e o bergantim navegassem de conserva em busca do
principal braço do rio. Mas apenas tinham andado umas
vinte léguas, a enchente da maré partiu o cabo da nau e a
l~nçou em terra, espedaçando-a, acolhendo-se os naufragos a
uma ilha onde, por fortuna, os indios eram de boa paz. Em
tais circunstâncias resolveu Orellana sair outra vez em de-
manda do braço principal do rio no bergantim, deixando na
ilha 28 ou 30 soldados e, cansado de vagar inu tilmente durante
27 dias, regressou ao acampamento onde não mais encontrou
os homens que aí tinham ficado.
E' que es tes, impacientes da espera por Orellana, cons-
truiram um barco no qual foram em demanda do seu chefe:
vão intento do qual desanimaram 10 dos 28 tripulantes, deser-
tando ou preferindo ficar entre os indios. Os restantes, "em
lu tas e t rabalhos esforçados, mais do que o permitia a força
humana" deram afinal na ilha Margarida, onde encontraram
a 25 dos seus companheiros e á mulher de Orellana que lhes
18 CARVAJAL, ROJAS E ACUNA

íamos caminhando, suplicando a Nosso Senhor que hou-


vesse por bem guiar-nos naquela jornada, de maneira
que pudéssemos volver aos nossos companheiros.
Dois dias depois que partimos e no apartámos dos
nossos companheiros, qttasi nos perdemos no meio do rio,
porque o barco bateu num pau e quebrou uma tábua, de
modo que, se não estivéssemos perto de terra, ali acaba-
ríamos a nossa jor nada. Mas remediámos de pronto,
tirando água e pondo-lhe um pedaço de tábua, e logo co-
meçámos nosso caminho muito pressurosos. E como o
r io corl'ia muito, andávamos a vinte e a vinte e cinco lé-
guas, porque o rio ia caudaloso, pelos muitos outros rios
que nele desaguavam pela mão direita, para os lados do
sul. Viaján10s tres dias_ sem nenhum povoado.
V en<lo que nos havíamos apartado do loc.al onde ti-
nham ficado os nossos companheiros, e que havia acaba<lo
o pouco qut~ trazíamos como mantimento para nossa via-
gem tão incerta como a que fazíamos, confabularam o
capitão e os companheiros sobre a dificuldade em que nos
achá vamos, e a. volta, e a falta de comida. porque, como
pensávamos regressar logo, não medimos o comer. Con-
fiados que não poderíamos estar longe, resolvemos vros-
seguir, e como nem no outro dia nem no imediato se en-
contrasse comida ou sinal de povoado, seguindo o parecer

disse que o. marido não acertara com o braço principal do rio


e ass im, por anda r doente, tinha resolvido vír a terra <lc.
cristãos ; e buscando comida pelo caminho, os indios lhe fle -
charam 17 homens ; desta contrariedade e da s ua enfermidade
morret\.
"Enterrado ao pé de uma das velhas á rvores dos bosques
sempre ver<les, banhados pela corrente do magestoso r io".
diz T oribio d e Medina "desse rio que ele havia descoberto,
e ncontra va por fim re;ouso a seus afans e fadigas no meio
da quela luxuriante natu reza, que era digno sepulcro do seu
nome imorredouro".
ÜESCOBRIMENTOS DO RIO DAS AMAZONAS 19

do capitão, disse eu uma missa, como se diz no mar, en-


comendando a Nosso Senhor nossas pesroas e vidas, su-
plicando-lhe eu, embora indigno, que nos tirasse de tão ma-
nifesto trabalho e perdição, que já claramente se esboçava,
pois ainda que quizéssemos volver águas acima já não era
possível pela força da correnteza, e tentar ir por terra era
igualmente irrealizavel. Estávamos em grande perigo de
morrer ,d a grande fome que padeciamos e assim, buscando o
conselho do qu e se devia fazer, comentando a nossa aflição
e trabalhos, resolveu-se que escolhêssemos de dois males
aquele que ao Capitão e a todos nós parecia o menor, e foi
ir por diante. seguindo o rio: ou morrer ou ver o que nele
havia, confiando em Nosso Senhor que se serviria por bem
conservar as nossas virias até ver o nosso remédio. À falta
de outros mantimentos, entretanto. chegámos a tal extremo
que só comíamos couros, cintas e solas de sapatos cozidos
com algumas ervas, (le maneira que era tal a nossa fra-
queza, que não nos podíamos ter em pé. Uns de gatinhas,
outros arrimados a bordões, meteram-se pelas montanhas
em busca de raizes comestiveis, e houve alguns que co-
meram algumas ervas desconhecidas, ficando às portas da
morte, pois estavam como loucos e não tinham miolo; mas
como Nosso Senhor era servido que conti nuássemos a
nossa viagem, nenhum morreu. Com semelhante fadiga
iam alguns companheiros mui desmaiados, aos quais o
Capitão animava, dizendo-lhes que se esforçassem e ti-
vessem confiança em Nosso Senhor, que Ele que nos
havia lançado por aquele rio, teria por bem levar-nos a ·
porto e salvamento : e assim animou aos companheiros
para que suportassem aqueles trabalhos.
No dia de ano bom de quarenta e dois pareceu a
alguns de nossos companheiros que tinham ouvido tam-
bores de índios, uns afirmavam, outros diziam que não.
20 CARVAJAL, RoJAS E AcuNA

Alegraram-se, contudo, com isto e caminharam com di-


ligência muito maior que a costumada ; e como ao certo
não se avistasse nenhum povoado nem naquele dia nem
no seguinte, ,viu-se ser tudo imaginação, como de facto
era. Tanto os enfermos como os sãos desmaiavam tão
a miudo que lhes parecia que j á não podiam escapar. Mas
o Capitão os sustinha com as palavras que lhes dizia:
que nosso Deus é pai de misericórdia e toda a consola-
ção, que repara e socorre a quem o chama no tempo da
maior necessidade. De facto, na noite de segunda feira,
oito de janeiro, se ouviram mui claramente tambores, mui-
to longe cio lugar onde estávamos. Foi o Capitão que os
ouviu primeiro e o disse- aos companheiros e todos os es-
cutaram e, certificados, tanta foi a alegria que todos sen-
tiram, que lançaram ao esquecimento todo o trabalho
passado, porque estávamos em terra povoada e já não
podíamos morrer de fome.
Logo providenciou o Capitão para que velássemos por
quartos, com muita ordem, porque bem poderia ser que
os índios nos tivessem sentido e viessem de noite a atacar
o acampamento, como costumam fazer. H ouve assim,
durante aquela noite, grande vigília, não dormindo o Ca-
pitão, parecendo que aquela noite sobrepujava às demais,
tanto anciavam pelo dia por já es tarem fartos de raízes.
Mal raiou a madrugada, mandou o Capitão que se tives-
sem prontos os arcabuzes, bestas e a pólvora, e que todos
se armassem, pois em verdade até aqui vinham _os com-
panheiros descuidados de fazer o que deviam. Provi-
denciava o Capitão por si e por todos ; e assim, de manhan,
t udo muito bem armado e posto em ordem, começámos a
caminhar em demanda da povoação.
Ao cabo de duas léguas de caminho rio abaixo, vi-
mos vir em sentido contrário quatro canoas cheias de
índios a explorar a terra, e apenas nos viram, volveram
DESCOBRIMENTOS DO RIO DAS AMAZONAS 21

apressados, dando alarma, de tal modo que em menos de


um quarto de hora ouvimos nos povoados muitos tambo-
res que tocavam a rebate. Eles são ouvidos de muito lon-
ge e são tão bem afinados que têm seu contrabaixo, tenor
e tip)e.
Logo ordenou o Capitão que os companheiros re-
massem a toda a pressa, para que alcançássemos o pri-
meiro povoado antes que as pessoas se recolhessem. Efe-
tivamente começámos a ir apressados e chegámos a uma
aldeia onde todos os índios estava1.11 esperando para ele-
fender e guardar as suas casas. Mandou o Capitão que
todos saltassem com muita ordem, cada qual olhando por
todos e todos por um, e que nenhum se apartasse, que
vissem o que tinham nas mãos e cada qual fizesse o que
lhe era determinado. Tal ânimo cobraram todos à vi sta
do povoado, que olvidaram toda a fadiga passada, e os
índios fugiram, deixando toda a comida que havia, o que
não foi pouco reparo e amparo para nós. Antes que os
companheiros comessem, embora tivessem muita neces-
sidade, mandou o Capitão que percorressem toda a aldeia,
para evitar que, estando recolhendo a comida e descan-
sando, não caíssem sobre nós os índios e nos fizessem
dano. E assim se cumpriu.
Aqui começaram os companheiros a vingar-se do pas-
sado, pois não faziam senão comer do que os índios ha-
viam guisado para si e beber as suas beberagens, isto
com tanta ância que não pensavam fartar-se. Mas
não faziam isto às tontas pois, embora comessem como
homens o que necessitavam, não esqueciam de tomar cui-
dado com o que lhes era necessário para defender as suas
pessoas, andando todos .de sobreaviso, os escudos ao om-
bro e as espadas debaixo do sovaco, mirando se os ín-
dios voltavam. Assim estivemos neste descanso ( que
tal se pode chamar pelo trabalho que havíamos passado )
22 CARVAJAL, RoJAS E AcuNA

até duas horas depois do meio dia, quando os índios vie-


ram por água, a ver o que sucedia e assim andavam como
bobos. A vístando-os o Capitão, poz-se na barranca do
rio e na sua língua, pois um pouco os entendia, começou
a falar com eles e a dizer que não tivessem temor e que
se chegassem, que lhes queria falar. E assim chegaram
dois índios até onde estava o Capitão, que os amimou e
lhes tirou o medo e lhes deu o que tinha, dizendo-lhe que
fossem chamar o chefe, que lhe queria falar, e que o
mesmo nenhum receio tivesse de que lhe viesse a fazer
algum mal. Tomaram os índios o que lhes foi dado e
logo foram dar o recado ao seu senhor, que veio logo
mui luzido aonde estavall) o Capitão e os companheiros,
que o receberam muito bem e o abraçaram, mostrando o
próprio Cacique sentir grande contentamento pela boa
recepção que se lhe fazia. Logo mandou o Capitão que
lhe -dessem de vestir e outras coisas, com as quais ele
muito se alegrou, e depois ficou tão contente que disse
ao Capitão que visse de que tinha necessidade, que ele
lhe daria, ··ao que o mesmo lhe respondeu que apenas o
mandasse prover de comida, que de nada mais precisava.
E logo o Cacique mandou que os seus índios trouxessem
comida, e com muita presteza trouzeram abundantemente
o que foi necessario, de carnes, perdizes, perús (2) e
pescados de muitas qualidades. Muito agradeceu o Ca-
pitão ao Cacique e lhe disse que fosse com Deus e que
chamasse a todos os senhores daquelas terras, que eram
13, porque queria falar a todos juntos e dizer o motivo
da sua vinda. Embora dissesse que no dia seguinte vi-

(2) Não há no Brasil perús e perdizes. Certamente o que


o padre Carvajal tomava como tais aves seriam espécies de
Tinamiformes (talvez de macucaua Crypturellus undulat11.s) para
a, perdizes e de Crácidas (provavelmente o mutum-assú Crax
9lob11losa) para os perús.
DESCOBRIMENTOS DO Rio DAS AMAZONAS 23

riam todos, e que ele os ia chamar, ficou o Capitão dando


ordens sobre o que convinha a ele e aos seus companhei-
ros, dispondo sobre as vigílias para que, tanto de dia corno
de noite, houvesse muita cautela para que os índios não nos
atacassem nem houvesse descuido ou frouxidão por onde
tomassem ânimo para nos acometer de noite ou de dia.
No dia seguinte, à hora de vésperas, veio o Cacique
trazendo consigo tres ou quatro senhores, que os outros
não puderam vir por estar longe, e que no outro dia
vmam. Recebeu-os o Capitão como ao primeiro e lhes
falou longamente da parte de Sua Majestade, e em seu
nome tomou posse da terra; e assim o repetiu com os
outros que vieram depois a esta província, que, como
disse, eram treze.
Vendo o Capitão que estavam em paz consigo os
senhores e gente da terra, satisfeitos com o bom trata-
mento, tomou posse da mesma em nome de Sua Ma-
jestade. Isto feito, mandou reunir os seus companhei-
ros, para falar-lhes sobre o que convinha à sua jornada
e salvamento e às suas vidas, fazendo-lhes um longo dis-
curso, animando-os com grandes palavras. Tenninado
este arrazoamento, f icaram todos muito contentes por ver
a boa disposição do Capitão e com quanta paciência sofria
ele os trabalhos em que estava, e tam'bém lhe di sseram
muito boas palavars e com as que o Capitão lhes dizia
andavam tão alegres que não sentiam o trabalho que
faziam.
Depois que os companheiros se refizeram algum tan-
to da fome e trabalhos passados, vendo o Capitão que era
necessário providenciar para o futuro, mandou chamar a
todos os seus companheiros e lhes tornou a dizer que
bem viam que com o barco e canoas que levá vamos, se
Deus fosse servido guiar-nos até ao mar, neles não po-
di amos sair com segurança. Era, portanto, preciso pro-
24 CARVAJAL, RoJAs E AcUNA

curar com diligência fazer outro bergantim, que fosse de


maior porte, para que pudéssemos navegar, embora não
houvesse entre nós mestre que entendesse de tal ofício.
O mais difícil para nós era fazermos os cravos. Durante
esse tempo não deixavam os índios de acndir, trazer co-
mida farta e com tanta ordem como si toda a sua ,vida
tivessem servido. Vinham com as suas joias e arrecadas
de ouro, e nunca o Capitão consentiu que se tomasse coi-
sa alguma, nem mesmo que as mirássemos, para que os
índios não entendessem que lhe dávamos apreço. E quan-
to mais nisto nos descuidávamos, mais ouro punham em
cima de si.
Aqui nos deram notícia das amazonas e das riquezas
que há mais abaixo, e quem o fez foi um índio chamado
Apária (3), velho que dizia ter estado naquela terra, e
também nos deu notícia de outro senhor que estava apar-
tado do rio, metido terra a dentro, e que ele dizia possuir
enorme riqueza de ouro. Este senhor se chama Ica;
nunca o vimos porque, conforme disse, ficou desviado
do rio ...
Para não perder tempo nem gastar em balde a co-
mida, resolveu o Capitão que logo se puzes se por obra
o que se tinha de fazer, e assim mandou aparelhar o ne-
cessário e os companheiros responderam que queriam co-
meçar logo o trabalho. Houve dois homens aos quais
não se deve pouco, por fazerem o que nunca aprenderam.
Apresentaram-se ao Capitão e lhe disseram que-eles, com
o auxilio <le Nosso Senhor, fariam os cravos que fossem
precisos, e que ele mandasse outros fazerem carvão. Estes
dois companheiros se chamavam João de Alcântara, fi-

(3) "Outras vezes se lê Aparian ou simplesmente Parian ",


diz o texto de Toribio de Medina, do qual nos servimos para
a presente tradução.
DESCOBRIMENTOS DO RIO DAS AMAZONAS 25

dalgo natural da cidade de Alcântara, e Sebastião Rodriguez,


natural da Galícia. Agradeceu-lhes o Cr,pitão, prometen-
do-lhes o galardão e pagamento de tão grande obra. E
logo mandou fazer foles de borzcguins e todas as outras
fe rramen tas e que os outros companheiros de tres cm
tres dias dessem uma boa fornada de carvão. Puzeram-
se eles logo à obra, tomando cada qual a sua ferramenta,
e iam ao monte cortar lenha, t razendo-a aos ombros do
monte para a aldeia, numa distância de meia légua e fa-
ziam os fojos, com muito trabalho. Como estavam fra-
cos e não eram dextras naquele oficio, não podiam su-
portar a carga. Os que não ti nham forças para cortar
madeira, tocavam os foles, e outros carregavam água, e
o Capitão trabalhava em tu do , de modo que todos tinha-
mas a quem atender. Trabalhou-se com tanto afan na
fábrica desta obra, nessa aldeia, que em vinte dias, com o
auxílio de Deus, se fize ram dois mil cravos muito bons e
outras coisas, deixando o Capitão a construção do ber-
gantim para onde encontrasse melhor oportunidade e ~e-
lhor aparelhamento.
Demorámo-nos nesta aldeia mais do que devería-
mos, comendo o que tínhamos, donde resultou que d'aí
em diante passámos grandes necessidades, e isto para ver
se por alguma via ou de qualquer meneira podíamos ter
notícia do real. Como tal não sucedesse, resolveu o Ca-
pitão dar mil castelhanos ( 4) a seis companheiros, se se
quizessem reunir e dar noticias ao governador Go nçalo
Pizarro. Além disso lhes daria dois negros ( 5) que os
(4) O castelhano era uma moeda de ouro desse tempo,
valendo a quinquagésima parte de um marco de ouro.
(5) Escreve Toribio de Medina: "Seriamos em verdade
injustos se entre os companheiros de Ore\!ana não mencio-
nassemos também a dois negros que no curso da viagem
prestaram eficazes serviços como r emadores, e cujos nomes
não constam de nenhum documento".
26 CARVAJAL, RoJAs E AcUNA

ajudassem a remar e alguns índios, para que lhe levassem


cartas e da sua parte dessem noticia do que se passava.
Mas só encontrou tres pessoas, porque todos temiam a
morte que lhes parecia certa, pelo que haviam de de-
morar até chegar aonde tinham d eixado o Governador,
pois ele certamente já teria regressado, porque tínhamos
andado 150 léguas em nove d ias, a partir do ponto em
que havíamos deixado o Governador.
Terminada a obra, e vi sto que a comida se exgotava,
tendo morrido sete companheiros da fome passada, par-
timos no dia de N ossa Senhora da Candelária ( 6 ). Car-
regámos a comida que pudemos, porque já não era pos-
sível demorar mais naquele povoado: de um lado porque
parecia que estávamos 111olestando aos naturais e quería-
mos deixá-los satisfeitos; do out ro para que não perdês-
semos mais e gastássemos a comida sem proveito, pois
não sabíamos se não famos ter necessidade dela.
Começámos assim a caminhar por esta província, e
não tínhamos andado obra de vinte léguas quando se jun-
tou com o nosso rio, pela mão direita, um outro, não mui-
to caudaloso, no q ual assentava um principal senhor,
chamado Irrimorrany ou Irimara. Por ser ele um índio
e senhor de muita razão e ter vindo ver o Capitão, quiz
este ir à sua terra. Mas também, porque o rio vinha
muito forte e muito cheio, aqui esti vemos a ponto de
perder-nos. ( 7) N o en contro deste rio com o que per-
corríamos, pelejavam as águas e traziam muita madeira,

(6) A festa da Purificação de Nossa Senhora, também


chamada de Nossa Senh ora da Candelária ou das Candeias é
celebrada no dia dois de fevereiro.
(7) E' muito difícil seguir precisamente o roteiro de
Orellana pela narrativa do Padre Car vajal. Parece, contudo.
que este rio cuja aguas pelejavam com as do rio por onde
remava m, seria o Ucayali.
DESCOBRIMENTOS oo RIO DAS AMAZONAS 27

de uma ponta a outra, sendo muito dificil navegar por ele,


pois fazia muitos redemoínhos e nos levava de urna a
outra margem, mas com grande trabalho saimos deste
perigo sem poder ·visitar a aldeia e passárnos adiante, aon-
de tínhamos nova de outro povoado, que nos diziam
estar a duzentas léguas d'ali, sendo todo o resto deserto.
E assim as caminhámos com muito trabalho de nos-
sas pessoas, padecendo muitas necessidades e notabilís-
simos perigos, entre os quais nos aconteceu um grande
infortúnio e não pequena demora: duas canoas, onde iam
onze espanhois dos nossos, se perderam entre uma ilhas,
sem saber onde estávamos nem os poder encontrar. An-
daram dois dias perdidos e nós, pensando nunca os achar,
estáva111os cheios de tristeza; mas ao cabo desse tempo
foi Nosso Senhor servido que topássemos com eles, e
não foi pequena a alegria de todos, e tamanha, que pare-
cia que havíamos esquecido todo o trabalho passado. De-
pois de descançarmos um dia nesse lugar mandou o Ca-
pitão· que caminhássemos.
No outro dia, às dez horas, chegámos a umas povoa-
ções, nas quais estavam os índios em casa, e para não
alvorotit-los, não quiz o Capitão que chegássemos até lá,
mandando a um companheiro que fosse com outros vinte
até onde estavam os índios e que não saltassem em suas
casas nem subissem em terra, mas que com muito amor
lhe dissessem a grande penúria em que íamos, e que nos
dessem de comer e que viessem a falar ao capitão, que
ficava no meio do rio, porque este lhes queria dar o que
trazia e dizer a causa da sua vinda.
Os índios estiveram quietos e muito se alegraram <>m
ver os nossos companheiros, dando-lhes muita comida de
tartarugas e papagaios em abundância, respondendo-lhes
que di ssessem ao Capitão que fosse pousar em uma aldeia
que estava despovoada do outro lado do rio, e que no
28 CARVAJAL, RoJAS E AcuNA

outro dia de manhan o iriam vi sitar. O Capitão apreciou


muito a comida e ainda mais a boa razão dos índios e
assim fomos pousar e dormir aquela noite na referida
aldeia:, onde não nos faltaram em abundâ ncia os mosquitos,
razão pela qual no outro dia de manhan resolveu o Ca-
pitão ir para outra aldeia que se via mais abaixo. Aí
chegados, os índios não fizeram resistência, antes ficaram
quietÕs, e aí folgámos tres dias, trazendo-nos os índios
larga provisão de boca.
Um dia mais tarde saímos desta aldeia e caminhámos
pelo nosso rio à vista de boas povoações. E indo assim,
um domingo de manhan, numa divisão que o rio fazia,
!bifu rcando-se, subiram uns índios, a ver-nos, em quatro
ou ci nco canoas, carregadas de muita comida. Chegaram
perto donde estava o Capitão e pediram licença para apro-
ximar-se porque lhe queriam falar. E quando se apro-
ximaram lhe disseram que eram principais e vassalos de
Apária, e vinham a seu mando trazer-nos de comer, e co-
meçaram a tirar das suas canoas mu itas perdizes como as
da nossa E spanha, porém maiores, e muitas tartarugas,
do tamanho de adargas, e outros pescados. Agradeceu-
lhes o Capitão e lhes deu aqui lo que tinha, e depois de o
ter dado, f icaram os índios muitos contentes em ver o
bom tratamento que se lhes fazia, assim como em ver
que o Capitão lhes entendia a língua, que não foi pouco
para que saíssemos a porto de salvamento, pois se os não
entendesse teríamos por muito <li fiei! a nossa saída. Quan-
do os índios se 'q ueriam despedir, disseram ao Capitão que
fosse à aldeia onde residia o seu principal senhor, que,
conforme já expuz, se chamava Apária. Perguntando-
lhes o Capitão por qual do~ dois braços tomaria, respon-
deram que eles nos servi riam de guias, que fôs semos em
seu seguimento, e assim, dentro em pouco, vimos as po-
voações onde estava aquele Senhor.
DEscoBRIMENTOs oo Rro DAS AMAZONAS 29

Caminhando para lá, tornou a perguntar o Capitão de


quem eram aquelas povoações e responderam os índios
que alí estava o seu senhor e começararv a remar para o
povoado, a dar notícia da nossa chegada e não tardou
muito em que víssemos de lá saírem muitos índios, em-
barcando nas suas canoas, parecendo homens ele guerra
que nos quizessem atacar. Mandou o Capitão aos seus
companheiros que estivessem com as armas aparelhadas,
observando que os índios faziam, porque, se nos atacas-
sem, não nos pudessem causar dano. E com muita or-
dem, remando com todas as forças, abicámos para terra,
e os índios pareceram desviar-se.
Saltou o Capitão em terra com as suas armas, e
atrás dele todos os demais, ficando os índios muito es-
pantados, chegando-se mais para o interior. O entender
o Capitão a sua língua foi, depois de Deus, o ,que nos
ajudou a não ficarmos no rio. Porque se os não enten-
desse, nem os índios ficariam em paz conosco, nem te-
ríamos acertado com estas povoações.
Mas era Nosso Senhor servido que se fizesse tão
grande descobrimento e que o mesmo viesse ao conheci-
mento da Cesárea Magestade, Por outra via nem força
ou poderio humano seria possível este descobrimento, que
com tanta dificuldade se realizava, sem nele pôr Deus a
sua mão ou sem que se passassem muitos séculos e anos.
Depois de ter chamado os índios, lhes disse o Capi-
tão que não tivessem temor e saltassem em terra, E eles
assim fizeram, aproximando-se e mostrando em seus sem-
blantes que folgavam com a nossa vinda. Saltou o se-
nhor em terra, e com ele muitos principais e senhores que
o acompanhavam. Pediu licença ao Capitão para sen-
tar-se, ficando toda a sua gente em pé; e mandou tirar
das canoas grande quantidade de comida, tanto ele tar-
30 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

tarugas como de manatis e outros peixes, e perdizes, gatos


e monos assados (8). Vendo o Capitão o bom come-
dimento do senhor, fez-lhe um discurso, dando-lhe a en-
tender como éramos cristãos e adorávamos um só Deus,
que era creador de todas as coisas creadas, e que não éra-
mos como eles, que andavam errados, adorando pedras e
ídolos feitos. Disse-lhes sobre este assunto muitas ou-
tras coisas e também lhes disse como éramos criados e
vassalos do Imperador dos cristãos, grande rei de Espa-
nha, chamado D. Carlos, nosso senhor, de quem era o
império de todas as índias e outros muitos senhorios e
reinos que há pelo mundo e que por ordem sua íamos
àquelas terras, devendo dar contas do que aí tínhamos visto.
Estavam os índios- muito atentos, ouvindo o que o
Capitão lhes dizia e lhe recomendaram que, se fossemos
ver as amazonas, que chamam na sua língua coniupuiara,
que quer dizer grandes senhoras, que víssemos o que fa-
_zíamos, porque éramos poucos e elas muitas, e que nos
matariam. Que não parássemos em sua terra, porque
êles âli nos dariam tudo de que tivessemos mistér. Dis-
se-lhe o· Capitão que não podia fazer outra coisa senão
passar de largo, para dar notícia a quem o enviava, que
era o seu rei e senhor.
Depois de ter falado o capitão, e parecendo que os
ouvintes ficavam muito contentes, aquele senhor princi-

(8) Es_sas tartarugas, grandes como escudos (adargas), de


que nos fala Carvajal, são principalmente as femeas da espécie
Podornemys expansa, a grande tartaruga amazonica. O que os
espanhois chamam manatis são o que os portuguêses chamaram
peixe-.boi, abundante no tempo do descobrimento tanto no Ama-
zonas como na foz e porção inferior de quasi todos os rios, desde
o Rio de Janeiro até às antilhas. A espécie marinha é hoje
raríssima; a amazonica é o Trichecus immguis, muito bem des-
crito por Acuiía, como se verá adiante.
DEscoBRIMENTos DO Rro nAs AMAZONAS 31

pal perguntou quem era aquele rei, querendo in formar-se


melhor e ver se o Capitão discrepava em seu dizer. Res-
pondeu-lhe o Capitão, repetindo as suas 'palavras, e lhe
disse mais que éramos filhos do Sol e que íamos àquele
rio, como já contara. D isto muito se admiraram os ín-
dios e mostraram muita alegria, tendo-nos por santos ou
pessoas celestiais, porque ele s adoram e têm por seu Deus
ao Sol, que chamam Chise. Logo disseram ao capitão que
eles eram seus e lhe queriam servir, e pedisse do que neces-
sitavam ele e os seus companheiros, pois lhe seria dado ele
muito boa vontade. Muito lhes agradeceu o Capitão e man-
dou dar muitas coisas aos outros principais, e tão contentes
ficaram, que d'ali em diante nada lhes pedia o capitão que
logo não lhe dessem. Levantaram-se todos e disseram ao
Capitão que se demorasse na aldeia, que eles o deixariam
desembaraçado, e que queriam retirar-se, mas todos os dias
viriam trazer-nos ele comer.
Man dou o Capitão que viessem todos os senhores a
vê-lo, pois queria dar- lhes do que tinha. Vieram todos
com grande abundância de comida, e foram bem recebidos
e tratados pelo Capitão, que a todos repeti u o que já dis-
sera ao principal senhor, tomando posse em todos em nome
de Sua Magestade. Eram 26 os senhores, e em sinal de
posse mandou pôr uma cruz muito alta, com o que se ale-
graram os ín dios, e daí em diante todos os dias vinham
trazer-nos de comer e falar com o Capitão, sentindo nisto
grande prazer.
Vendo o Capi tão a boa aparelhagem e disposição da
terra e a boa vontade dos índios, mandou reunir a todos
os seus companheiros e lhes d isse q ue como ali havia bons
apetr echo s e vontade nos índios, seria bom fazer um ber-
gantim. E assim se puzeram mãos à obra. Achava-se
entre nós um entalhador, chamado Diego Mexia, o qual,
embora não fosse o seu ofício, deu ordem como se havia
32 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

de fazer; e logo o Capitão mandou repartir por todos os


companheiros que cada qual trouxesse uma quaderna e
duas estamenas (9) , a outros que trouxessem a quilha e
a outros as rodas, e a outros que serrassem as tábuas, de
modo que todos tinham bem em que se ocupar, não sem
pouco trabalho. Porqne, como era inverno e a madeira
estava muito longe, cada qual tomava o seu machado e
ia ao monte e cortava o que lhe cabia e o carregava nas
costas. E nquanto uns trabalhavam, outros ficavam de
sentinela, para que os índios não lhes fize ssem mal, e desse
modo cm sete dias se cortou todo o madeiramento para
o bergantim. T erminada esta tarefa, logo foi dada outra:
fazer carvão para mais cravos e outras coisas. E ra uma
maravilha ver com que alegria trabalhavam os nossos
companheiros e carregavam o carvão, provendo-se assim
tudo o mais que era necessário.
Não havia entre nós ninguém que estivesse acostu-
mado a tais ofícios mas, apesar-de t odas estas dificulda-
des, Nosso Senhor dava a todos engenhos para o que se
tinha de fazer, pois era para salvar as vidas. Se dali
saíssemos com o 'barco e as canoas, dando, como depois
demos,· com gente guerreira, nem nos poderíamos defen-
der nem sair do rio em salvamento. Assim pareceu cla-
ramente que Deus inspirou o Capitão para •que nesta al-
deia se fizes se o bergantim, pois adiante seria impossível.
I sto caiu muito a propósito, porque os índios nunca dei-
xaram de nos trazer de comer em abundância, como lhes
pedia o Capitão.
Deu-se tanta pressa nesta obra <lo bergantim que em
35 dias foi lavrado e lançado à agua, calafetado com al-
godão e betumado com piche, trazidos pelos índios, a pe-
dido do Capitão. Não foi pequena a alegria dos nossos

( 9) A quaderna era a peça de união da quilha do navio


com a caverna; e as estamenas as peças para formar o cavername.
DESCOBRIMENTOS DO RIO DAS AMAZONAS 33

companheiros, por haver terminado aquilo que tanto de-


sejavam. H avia tantos mosquitos nesta aldeia, que nos
atormentavam dia e noite, sem que soubessemos o que
fazer, embora com a boa pousada não sentíssemos o tra-
balho e nos animasse o desejo que tínhamos de ver o fim
da nossa jornada.
Nesse ínterim vieram ver o Capitão quatro índios,
tendo de altura um palmo a mais que o mais alto cristão.
Eram muito brancos, de cabelos bastos que lhes ch~ga-
vam até à cintura, com roupa e joias de ouro, e trazendo
muita comida. Chegaram com tanta humildade, que
todos ficámos pasmos de suas disposições e boa educa-
ção. Tiraram muita comida e a puzeram diante do Ca-
pitão e lhe disseram que eram vassalos de um grande
senhor, e que por seu mandado vinham ver que éramos
ou que 'queríamos e para onde íamos. Recebeu-os muito
bem o Capitão, e antes que lhes falasse, lhes mandou dar
muitas joias, que eles apreciaram muitíssimo. Repetiu-
lhes o Capitão tudo o que dissera a Apária, com o que os
índios ficaram muito admirados, dizendo que queriam
partir para dar resposta ao seu senhor. Deu-lhes o Ca-
pitão a licença pedida, e os presenteou com muitas coisas
para o seu principal senhor, e que lhe dissessem que o
Capitão pedia muito que o viesse ver. Foram-se eles e
nunca mais soubemos de onde eram nem de que terra
tinham vindo.
Nesse lugar nos demorámos toda a quaresma,
quando se confessaram todos os companheiros com os
religiosos que ali estávamos e eu preguei todos os Do-
mingos e Festas do Mandato, a Paixão e Ressurreição,
o melhor que Nosso Redentor me quiz dar a entender
com a sua graça, e procurei ajudar e esforçar o que pude
pela perseverança no bem a todos aqueles irmãos e com-
panheiros, lembrando-lhes que eram cristãos e que servi-
riam muito a Deus e ao Imperador em prosseguir na em-
34 CARVAJAL, RoJAs E AcUNA

prêsa e suportar com paciência to<los os trabalhos pre-


sentes, até sair com este novo descobrimento, além de
ser isto o que tocava às suas vidas e honras. Assim
nestes sermões disse o que me parecia, cumprindo com o
meu ofício, e também porque me ia a ·vida no bom su-
cesso da nossa peregrinação. Também preguei no do-
mingo de Quasímodo, e posso testemunhar com verdade
que, tanto o Capitão como todos os outros companheiros,
tinl)am tanta clemência e espírito de santidade de devo-
ção em Jesus Cristo e sua sagrada fé, que bem mostrou
Nosso Senhor que era sua vontade o socorrer-nos. P edia-
me o Capitão que eu pregasse e todos acorn panhassem em
suas devoções com muito fervor, como pessoas que tinham
muita necessidade de pedir misericórdia a Deus.
Reformou-se também o barco pequeno, que já vinha
podre, e assim tudo muito bem aparelhado e posto em
ponto, ordenou o Capitão que todos estivessem prontos
e fizessem matalotagem, porque, com a ajuda de Deus
Nosso Senhor, queria partir na segunda-feira seguinte.
Aconteceu-nos nesta aldeia uma coisa de não pouco
espantei, e foi que quarta-feira de Trevas, quinta-feira
de Endoenças e sexta-feira da Paixão nos fizeram os
índios jejuar à força, porque não nos trouxeram comida
até ao sábado de Aleluia e, perguntando-lhes o Capitão
porque não nos tinham trazido de comer, responderam
que não tinham podido tomar. Sábado e Domingo de
Páscoa e domingo de Quasímodo foi tanta a comida que
trouxeram, que jogávamos fora.
-Para que tudo corresse como convinha e com toda
ordem, foi feito alferes um fidalgo muito suficiente para
o ofício, chamado Alonso de Robles, o qual, quando che-
gámos à terra de inimigos, mandava o Capitão que ele
saltasse com alguns companheiros a recolher comida para
todos, ficando o Capitão a guardar os bergantins, que
DESCOBRIMENTOS oo Rro DAS AMAZONAS 35

eram nessa viagem todo o nosso 'bem e amparo, e os


índios outra coisa não desejavam, senãq tirá-los.
Partimos da sede do governo de Apária com o novo
bcrgantim de 19 joas (10) (o su ficiente para navegar no
mar ) , na véspera da festa do evangelista S. Marcos, a
24 de abril do referido ano. Segui mos pelas povoações
daquele senhorio de Apária, durante mais de &) léguas,
sem encontrar inclios hostis, antes o próprio Cacique veio
trazer comida e falar com o Capitão e conosco. Passá-
mos o dia de S. Marcos em um povoo.do seu, onde o ca-
cique veio trazer-nos lauta refeição e o Capitão o rece-
beu muito bem. Era intento e desejo do Capitão que
nenhum mal se fizesse aos índios, para que, se fosse pos-
sivel, ficassem àquela terra e gente bárbara respeitosos
mas sem nenhum descontentamento. Seria servido Deus
Nosso Senhor e o Rei nosso senhor para que mais por
diante, quando prouvesse a Sua Magesta<le, com mais
facilidade se estendesse a nossa sagrada república, a f é
cristã e a bandeira de Castela, e a terra se encontrasse
mais doméstica para pacificá-la e pô-la debaixo da obe-
diência do seu real serviço, como conviesse, porque ao
lado de ser isso obra de prudência e caridade, era preci-
so observar o bom tratamento para com os índios, afim
de podermos passar adiante, e que não se apelasse para
o remédio das armas senão quando de todo obr igados
pela própria defesa. Assim sendo, embora encontrásse-
mos as aldeias desertas, vendo o !bom tratamento ·que se
lhes fazia, em toda essa província nos proviram de man-
timentos. Ao cabo de poucos dias cessaram os índios e

( 10) Desse termo empregado por Carvajal, diz T oribio de


Medina : " Não podemos atinar com o que ele quer dizer com
as 19 joas do bergantim de Orellana ". Em v ista dis so deixei o
termo tal qual ( não tendo encontrado para ele tradução em portu-
guês ), nem procurar uma interpretação. E ' bem possível que
o dom in icano quizesse dizer 19 côvados,
36 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

com isto conhecemos que estávamos fo ra do senhorio e


população daquele grande senhor Apáría. Temendo o
Capitão o que pudesse acontecei· pela escassez de manti-
mento, mandou que os bergantins navegassem com mais
pressa que a costumeira. ( 11 )
U m dia de manhan, em que havíamos partido de
um povoado, vieram a nós dois índios numa canoa e che-
garam perto do bergantim em que ia o capitão e entra-
ram no mesmo. Pensando o capitão que o mais velho
conhecesse a terra e nos pudesse levar rio abaixo, mandou
que ficasse a bordo, deixando ir-se embora o outro para
a sua casa, e começámos a seguir rio abaixo. Mas esse
índio não o conhecia nem nele havia navegado, pelo que
o Capitão ordenou que o soltassem e lhe dessem uma
canoa em que volvesse para a sua terra.
Daí em diante passámo~ maiores trabalhos, mais
fome e mais despovoados do que antes , porque o rio ia
de monte a monte e não achávamos onde dormir, nem
ao menos se podia apanhar algum pescado, sendo ne-
cessário comer o nosso costumeiro manjar, que eram
ervas e, __de vez em quando, milho assado. Vindo ca-
minhando com o nosso habitual trabalho e mui ta fome,
um dia, ao meio dia, chegámos a um lugar elevado, que
pareceu ter sido povoado e apresentar possi bilidades para
buscar-se comida ou peixe. E ra a 6 de maio, dia ele S.
João Ante-portam-latinam, e ali sucedeu um caso que eu
não ousaria escrever se não ti vesse cio mesmo tantas tes-
temunhas, ali presentes: aquele companheiro, que di ri-
giu a construção cio bergantim, deu um tiro ele balhesta
numa. ave que estava em uma árvore junto cio rio, e sal-
tou a noz ela caixa e caiu na água. O utro companheiro,
chamado Contreras, lançou um anzol no rio com uma
(1 1) Até essa altura navegava Orellana pela província do5
Omaguas, de cujo natural pacífico ainda nos fala um século mais
tarde o padre Acufía.
DESCOBRI MENTOS DO RIO DAS AMAZONAS 37

vara e tirou um peixe de cinco palmos. Como o peixe


era grande e o anzol pequeno, foi preciso tirá-lo com
cautela. Aberto o peixe, em seu bucho se encontrou a
nóz da balhesta, que ponde assim ser 1'eparada, o que
nos foi depois de muita utilídade porque, depois de Deus,
as balhestas nos salvaram as vidas.
No dia 12 de maio chegámos às províncias de Ma-
chiparo, que é um grande senhor, e de muita gente, e
confina com outro senhor, de igual importância, chama-
do Omaga. Os dois são amigos e se juntam para fazer
guerra a outros senhores que estão terra a dentro e os
vêm diariamente atacar em suas casas. Este Machiparo
está assentado em uma lomba sobre o mesmo rio e possue
muitas e grandíssimas povoações que reunem cincoenta
mil homens, entre os trinta e setenta anos, porque os
mais jovens não vão à guerra. Nunca os vimos em todas
as batalhas que com eles travámos, mas somente velhos,
muito bem dispostos, com buços mas sem barbas.
A umas duas léguas desse povo vimos estar aive-
jando as aldeias, e não tínhamos andado muito quando
vimos vi r rio acima enorme quantidade de canoas, todas
aprestadas para guerra, airosas e com seus pavézes, que
são de carapaças de lagartos e de couros de manatís e
antas, da altura de um homem, pois os cobrem inteira-
mente. Vinham fazendo enorme algazarra, tocando
muitos tambores e trombetas de pau, ameaçando-nos,
que nos haviam de comer. Logo ordenou o Capitão que
se reunissem os dois bergantins, para que um auxiliasse
ao outro, e que todos tomassem as suas armas, e miras-
sem o que tinham diante de si e vissem a necessidade
que havia de defender as suas pessoas e pelejar para es-
capar, e que todos se encomendassem a Deus, que E le
nos havia de ajudar nesse transe em que estávamos.
Nesse ínterim os índios se ,vinham aproximando, feitos
os seus esquadrões, para cercar-nos e vinham com tanta
38 CARVAJAL, RoJAS E AcuNA

ordem e soberba que pareciam que já nos tinham em suas


mãos. Nossos companheiros mostravam tanta coragem
que lhes parecia que não bastavam para cada qual mil
índios, e estes foram chegando até começar a ofender-nos.
Logo ordenou o Capitão que aparelhassem arcabuzes
e balhestas. Aconteceu-nos então não pequeno contra-
tempo, o dos arcabuzeiros acharem a pólvora úmida,
nada podendo aproveitar, de modo que foi preciso, na
falta de arcabuzes, supri-los com as ba!hestas. Começa-
ram os besteiros a fazer algum dano aos inimigos, por-
que estavam perto e amedrontados. Vendo os índios
que tanto mal lhe fazíamos, começaram a deter-se, não
demonstrando cobardia mas antes parecia que lhes crescia
o ânimo, e vinha sempre-muita gente em seu socorro. E
cada vez que chegavam reforços, começavam a acometer
tão ousadamente que parecia que queriam tomar de assal-
to os bergantins. Deste modo fomos pelejando até che-
garmos à aldeia, onde havia uma multidão, posta nas
barrancas em defesa das suas casas. Aqui tivemos uma
batalha perigosa, porque como havia muitos índios por
agua e por terra, de todas as partes nos faziam crua
guerra. E assim foi necessário, embora com risco de
perecermos todos, atacar e tomar o primeiro posto aonde
os índios se opunham ao desembarque dos nossos cotn-
panheiros, pois o defendiam mui corajosamente. Se não
fossem as 'balhestas, que deram certeiros tiros (por onde
pareceu bem ser providência divina o que sucedeu com
a noz da balhesta), não se conquistaria o porto. Com
esta ajuda encalharam em terra os bergantins e saltou
nagua .a metade dos nossos companheiros, dando nos
índios de maneira tal que os fizeram fugir e a outra me-
tade ficou nos bergantins, defendendo-os da outra gente
que andava nagua e que não parava de combater, embora
estivesse ganha a terra, persistindo em seu maléfico pro-
pósito. Tomado o princípio da povoação, mandou o Ca-
DES COB RI ME NTOS DO RIO DAS AMAZONAS 39

pitão que o alferes, com vinte e cinco homens, a percorres-


sem e expulsassem dela os índios e vissem se havia co-
mida, porque pensava aí descansar cin~o ou seis dias,
para nos restaurarmos dos trabalho passados.
Foi o al ferés e correu meia légua pela al deia a
dentro, não sem estorvo, pois os índios embora recuas-
sem, iam defendendo-se como homens a quem custava
abandonar as suas casas. Visto pelo Alferes o tamanho
da aldeia e a sua grande população, resolveu não ir
adiante, mas voltar a t!ar contas ao Capitão do que obser-
vara, o que fez sem que os índios lhe causas em dano.
C,hegado no princípio da povoação, encontrou o Capitão
já aboletado nas casas, mas os índios ainda lhe faziam
guerra por agua. Disse-lhe tudo o que acontecera e
corno havia grande quantidade de comida, tanto tar taru-
gas nos currais e tanques, como muita carne, peixe e bis-
coitos, tudo em tal abundância, que daria para sustentar
um batalhão de mil homens durante um ano.
Resolveu o Capitão, em vista do 'bom porto, recolher
comida para descansar e para isso mandou a Cristobal
Maldonado que levasse uma d úzia de companheiros e
fosse a apanhar toda a . comida que pudesse. Assim foi
e, quando chegou, viu os índios tirando a comida que
tinham. Tratou Cristobal Maldonado de recolher a co-
mida e tendo já apanhado mais de mil tartarugas, voltam
os índios pela segunda vez, com muita quantidade de
gente e determinados a matá-los e atacar o posto onde
estávamos com o Capitão. Vendo Cristobal Maldo11ado
a revolta dos índios, chamou aos seus com panheiros e os
atacou, no que muito se demoraram, porque os índios
eram mais de dois mil e os companheiros que estavam
com Cr istobal Maldonado não eram mais que dez, tendo
muito que lutar para se defenderem. Afinal consegui-
ram bom sucesso e tornaram a colher a comida, mas desta
40 CARVAJAL, ROJAs E AcuNA

segunda peleja vinham já dois feridos. Como a terra


era mui to povoada e todos os dias os índios se reforma-
vam e refaziam, tornaram a atacar a Cristobal Maldona-
do tão dcnodadamente, com o intuito de apoderar-se de
todos, e nesta arremetida feri ram muito mal a seis ho-
mens, uns com os braços atravessados, outros com as
pernas, e a Cristobal Maldonado traspassaram o braço
e lhe deram um golpe no rosto. Aqui se viram em gran-
de aperto e Í1ecessida<le, porque os companheiros, feridos
e cansadíssimos, não podiam ir nem para trás nem para
diante, pensando morrer todos. Queriam voltar para
onde estava o Capitão, mas lhes disse Cristobal Maldo-
nado que não pensassem em tal coisa, porque ele não co-
gitava em volver ficando os índios com a vitória. Reuniu
os companheiros que aincfa podiam lutar e se poz em de-
fesa e lutou tão animosamente, que evitou os índios
matassem a todos os nossos companheiros.
Nesse ínterim tinham os índios vindo pela parte de
cima, para atacar por dois lados o ponto onde estava o
nosso Capitão, pois estávamos todos cansados de muito
batalhar e descuidados, j ulgando ter as costas seguras,
porque Cristobal Maldonado andava por fóra. Parece
que Nosso Senhor alumiou ao Capitão para que o en-
viasse, pois se tal não tivesse resolvido ou ele não se
achasse onde se achou, tenho por certo 1:1ue corríamos
grande perigo de vida. Estávamos todos descuidados e
desarmados, de tal maneira que os índios puderam entrar
na aldeia e andavam entre nós, e tinham malferido a
quatro dos nossos . Então os viu um nosso companheiro,
chamado Cristobal de Aguilar, que se lhes antepoz, lu-
tando muito animosamente e dando alarma. Ouviu o
nosso Capitão e saiu a ver o que era, desarmado, com
uma espada na mão e viu que os índios tinham cercado
as casas onde os nossos estavam, havendo na praça um
esquadrão de mais de quinhen tos. Começou o Capitão
DESCOBRI MENTOS DO R ro DAS AMAZONAS 41

a dar ordens, saindo os nossos atrás do Capitão e aco-


meteram aos índios da praça com tanto denodo que os
desbarataram, causando dano aos índios. 'Mas estes não
deixaram de pelejar e defender-se de modo que feriram
gravemente a nove dos nossos. Depois de duas horas de
peleja ficaram os índios vencidos e desbaratados e os
nossos mui fatigados. Assinalaram-se neste encont ro
muitos dos nossos, que antes não tinham demonstrado para
que serviam e nem nós lhes dávamos importância. Todos
mostraram 'bem a necessidade em que está vamos. Houve
um homem que se meteu em meio dos inimigos com uma
adaga e pelejou tão bem que todos nos admirámos, tendo
saído com uma coxa atravessada. Chama-se ele Blas de
Medina.
Passada a refrega, mandou o Capitão a saber o que
acontecera a Cristobal Maldonado, e já o encontraram em
caminho, que vinham, ele e todos, feridos ; e um seu com-
panheiro, chamado P edro de Ampúdia, morreu ao cabo
de oito dias das feridas recebidas.
Chegado Cristobal Maldonado, mandou o Capitão
que os feridos se curassem. Eram 18, e não havia outro
remédio mais que certo ensalmo, ( 12) mas com a ajuda
de Nosso Senhor dentro de quinze dias todos estavam
sãos, exceto o ·q ue morreu. Estando nisto, vieram dizer
ao Capitão que os índios tornavam, e que estavam perto
de nós, esperando refazer-se. Mandou o Capitão a um

( 12) Esse processo de curar por meio de orações ou breves


ainda hoje é muito espalhada entre a gente ignorante do interi or.
Sobre este trecho da narrativa anota Medina: " Prescindindo da
falta de medicinas com que lutavam os expedicionários, o certo é
que então, e mesmo muito depois, este processo de curar foi muito
usado nas Américas, o que bastante contribuiu para fomentar a
superstição de índios e negros. São muitos os reus que .por este
motivo foram processados pelos tribunais do Santo Oficio em Lima,
México e Cartagena".
42 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

cavalheiro chamado Cristobal Enriquez para que os ex-


pulsasse dali, levando consigo quinze homens. Seguiu
êste e, lá chegando, feriram numa perna a um arcabuzeiro,
de maneira que o inutilizaram e, daí em diante não nos
podemos aproveitar dele. Logo fez Cristobal Enriquez
saber ao Capitão o que se passava, pedindo mais gente,
porque os índios eram muitos e a todo momento se refor-
mavam. Mandou o Capitão dizer a Cristobal Enriquez
que, não dando mostras de retirar-se, viesse aos poucos
para onde permaneciamos, pois não estavam em condições
de pôr em risco a vida de um espanhol, nem tal convinha.
Nem ele nem seus companheiros iam conquistar a terra,
nem era essa a sua intenção, mas, pois que Deus os havia
trazido por esti:; rio abaixo, queria descobrir a terra para
que em seu tempo e quando fosse da vontade de Deus
Nosso Senhor e de Sua Magestade, a mandassem con-
quistar.
E assim, naquele dia, depois de recolhida a gente,
falou-lhes o Capitão, referindo-lhes os trabalhos passados
e animando-os para os do futuro, encarecendo-lhes que
evitassem os ataques dos índios, pelos perigos que podiam
sobrevir. Resolvemos seguir ainda rio abaixo, começan-
do-se a embarcar comida, feito o que mandou o capitão
que embarcassem os feridos, e os que não podiam ir por
seu pé fossem enrolados em umas mantas e os outros os
levassem nas costas, como se transporta carga de milho,
para que não embarcassem coxeando e os índios, vendo tal
coisa, se tomassem de coragem e não nos deixassem par-
tir. Depois disto feito, estando prontos os bergantins e
desamarrados, e os remos nâs mãos dos remeiros, desceu
o Capitão com muita ordem, seguido pelos companheiros.
Fizeram-se ao largo no rio e não estaríamos a um tiro de
pedra quando vêm mais de dez mil índios por agua e por
terra, e como os de terra não nos podiam atacar, serviam
pa_ra fazer algazarra; e os de água não deixavam de ata-
DESCOBRIMENTOS DO RIO DAS A MAZONA S 43

car com muita f úria, como homens ofendidos, mas os


nossos companheiros com as balhestas e arcabuzes defen-
diam tão 'bem os bergantins que mantinham a distância
aquela perversa gente. Passou-se isto pelo pôr do sol e
assim, atacando-nos de tempos a tempos, seguindo-nos a
noite toda, não nos davam um só momento de descanso.
Seguimos assim até ao amanhecer, quando nos vimos
em meio de muitas e grandes povoações, donde sempre
saíam índios de fresco e ficavam os que iam cansados.
Ao meio dia os nossos companheiros já não podiam remar
e íamos todos alquebrados pela noite mal passada e pela
guerra que os índios nos faziam. O Capitão, para que
a gente tomasse um pouco de repouso e comesse, mandou
que nos metêssemos em uma ilha despovoada, que estava
no meio do rio. Apenas começámos a cozinhar a comida,
vieram canoas em grande quantidade e tres vezes nos ata-
caram, de tal maneira que nos puzeram em grande aper-
tura. Vendo os índios que pela agua não nos podiam
desbaratar, resolveram acometer por terra e por agua,
porque, como havia muitos índios, havia gente para tudo.
Vendo o Capitão o 'que os índios ordenavam, resolveu
não os esperar em terra, embarcando e fazendo-se ao largo
no rio, porque pensava ali defender-se melhor. Começá-
mos a navegar, sem que os índios nos deixassem de seguir
e dar combate, porque destas aldeias se tinham reunido
mais de 130 canoas, nas quais havia mais de 8.000 índios
e por terra era incontavel a gente que aparecia.
Entre esta gente e canoas de guerra andavam quatro
ou cinco feiticeiros, todos pintados e com as bocas cheias
de cinza que atiravam para o ar, tendo nas mãos uns his-
sopes, com os quais atiravam agua no rio, à maneira de
feitiços, e depois de contornar os nossos bergantins,
chamavam a gente de guerra, e logo começavam a tocar
seus tambores e cornetas e trombetas de pau, e com gran-
de gritaria nos atacavam. Mas os arcabuzes e balhes-
44 CARVAJAL, RoJAS E AcuNA

!"as, depois de Deus, eram o nosso amparo. Levaram-


nos deste modo até meter-nos em angustura de um braço
de rio. Aqui nos puzeram em grande aperto, e tamanho,
que não sei se algum de nós escaparia, porque nos tinham
preparado uma emboscada em terra e dali nos abarcavam.
Determinaram-se os d'agua a exterminar-nos, e já esta-
vam muito perto de nós. Vinha adiante o capitão-gene-
ral, muito destacado como homem. Um dos nossos com-
panheiros, chamado Celis, ( 13) fez pontaria nele e lhe
deu um tiro de arcabuz no meio do peito e o matou. Logo
a sua gente desmaiou e acudiram todos a ver o seu senhor,
e nesse meio tempo conseguimos sair para o largo do
rio.' Mas ainda nos seguiram durante dois dias e duas
noites, sem nos deixarem repousar, que tanto durou para
sairmos das terras desse grande senhor Machiparo, (14)
e que, no parecer de todos, teria mais de oitenta leguas,
todas povoadas, que não havia de povoado a povoado um
tiro de balhesta, e as mais distantes, não se afastavam
mais -de meia legua, e houve aldeias que se estendiam por
mais de cinco leguas sem separação de uma casa para
outra, o que era coisa maravilhosa de ver. Como íamos
de passagem e fugindo, não tivemos oportunidade de
saber o que havia terra a dentro. Mas segundo a sua
disposição e aspecto, deve ser a mais povoada que já se
viu. Diziam-nos os índios da provincia de Apária que
havia um grandíssimo senhor terra a dentro, para o sul,
que se chamava Ica, e que ele possuía grandes riquezas de
ouro e prata, noticia que tivemos por certa e muito boa.
(13) Fernão Gutierrez de Celis, ensina Torihio de Medina.
·(14) Esse senhorio de Machiparo coincide com a província
de Yoriman, de que fala Acufia no numero LXI da sua narrativa,
como adiante se verá, e que ele chama " a mai.s belicosa nação
de todo o rio das Amazonas e que em primeiras entradas atemo-
rizava a esquedra portuguêsa, estendendo-se por pouco mais de 60
légua.s, "mas tão sobrada de gente ", como não havia em outro
lugar do grande rio.
DES COBRIMENTOS DO RIO DAS A MAZON AS 45

Desta maneira e com este trabalho saimos da provin-


cia e grande senhorio de Machiparo, e chegámos a outro
não menor, que era o começo de Oniguayal 1
( ou Oma-
gucei). No início e entrada da sua terra havia uma aldeia
a modo de guarnição, não mu ito grande, no alto sobre o
rio, onde havia muita gente de guerra. Vendo o Capitão
que nem ele nem os seus podiam suportar o muito traba-
lho, que era não somente a guerra mas, juntamente com
ela, a fo me, pois os índios, embora tivessemas de comer,
não nos davam tempo pela demasiada guerra que nos fa-
ziam, resolveu tomar essa aldeia e assi m mandou dirigir
os bergantins para o porto. Os índios, vendo que lhes
queriam tomar o povoado, decidiram defendê-lo com vi-
go r, e assim foi que, chegando junto ao porto, começaram
os índios a atacar de tal modo que nos detinham. Vendo
o Capitão a resistência dos índios, mandou que com
grande pressa atirassem as lbalhestas e os arcabuzes e re-
massem para encalhar em terra. Assim fizeram e con-
seguiram que os bergantins encalhassem e os nossos com-
panheiros saltassem em terra e, pelejando com denodo,
fizessem fugir aos índios.
Ass im ficou conosco este povoado, com a comida
que tinha. Era ele forte e, por ser assim, disse o Capi-
tão que aí queria repousar tres ou quatro dias e fazer
alguma matalotagem para di ant e. Assi m descansámos e
com este propósito, embora não sem guerra e- das mais
perigosas. E foi que um dia, às dez horas, vieram ca-
noas em gran de quantidade a tomar e desmarrar os ber-
ganti ns que estavam no porto. Não conseguisse o Capi-
tão que os balhesteiros rapidamente saltassem dentro,
creio que não nos poderíamos defender. Assim com a
ajuda de Nosso Senhor e com a boa manha e ventura dos
nossos balhesteiros, fizemos algum dano aos índios, que
tiveram por bem retirar-se e voltar para as suas casas.
Estivemos tres dias neste povoado, descansando, dando-
46 CARVAJAL, RoJAs E AcuiiíA

nos boa pousada e comendo à discreção. Havia muitos


caminhos que entravam pela terra a dentro e mui reais,
temendo com isto o Capitão que os índios nos viessem a
fazer dano, pelo que mandou que nos aprontássemos, pois
não queria ficar mais tempo ali.
Começaram todos a preparar-se para partir quando
lhes fosse mandado. Tínhamos andado l40
léguas desde
que saímos de Apária, e destas, duzentas foram sem ne-
nhuma povoação. Encontrámos nessa aldeia grande
quantidade de biscoito muito bom, que os índios fazem
de milho e mandioca, e muitas frutas de todas as quali-
dades.
No domingo depois da Ascensão de Nosso Senhor
saímos dessa aldeia e começámos a caminhar. Não tí-
nhamos andado obra de -duas léguas, quando vimos entrar
à mão direita outro rio mui poderoso e maior. Tão
vasta era a entrada, que fazia tres ilhas, razão pela qual
chamámos a esse rio da Trindade ( 15). Tanto nelas
como de um e outro lado dos dois rios havia muitas e
grandes povoações, e terra muito linda e fr utífera. Era
já no se1.1horio e terra de Omagua. Por serem as aldeias
tantas e tão grandes e haver tanta gente, não ·quiz o Ca-
pitão aportar, e assim passámos todo aquele dia com al-
guma guerra, porque a que nos faziam por água era tão
crua, que nos obrigavam a ir pelo meio do rio, e muitas
vezes os índios se punham a conversar conosco, e como
não os entendiamos, não sabíamos o que eles nos diziam.
À hora de vésperas chegámos a uma aldeia que es-
tava sobre uma 'barranca e, por lhe parecer pequena e

(15) Esse rio da Trindade de Carvajal coincide com o Ca-


chiguará de Acufia, ou seja o atual P urús. Os Omaguas de Car-
vajal não coincidem com os de Acufia. A terra de Omagua do
dominicano fica muito mais perto da foz e é povoada por gente
belicosa, dizendo o jesuisa que os Omaguas eram gente pacífica e
civilizada.
DEscoBRIMENTOs DO Rro DAS AMAZONAS 47

tão bem situada que se diria um recreio de algum senhor


de terra a dentro, mandou o Capitão que a tomássemos.
E assim nos esforçámos por co11quistá-la e os índios se
defenderam por mais ele urna hora; ma~ afinal foram
vencidos e nós nos assenhoreámos dessa povoação, onde
encontrámos grande quantidade de comida, da qual fize-
mos provisão.
Havia nessa povoação uma casa de diversões, dentro
da qual encontrámos mui ta louça dos mais variados
feiti os: havia talhas e cântaros enormes, de mais de vinte
e cinco arrobas, e outras vasilhas pequenas, como pratos,
escudelas e candieiros, tudo da melhor louça que já se
viu no mundo, porque a ela nem a de Málaga se iguala.
E' toda vidrada e esmaltada de todas as côres, tão vivas
que espantam, apresentando, além disso, desenhos e figu-
ras tão compassadas, que naturalmente eles trabalham e
desenham como o romano.
Disseram-nos ali os índios que tudo o que havia na-
quela casa. feito de bar ro, se encontrava terra a dentro,
feito de ouro e prata, e que eles nos levariam lá, pois era
perto. E ncontrámos nessa casa doi:,. ídolos, tecidos de
palha, de d iversos modos: eram de estatura de gigantes
e tinham metidas no moledo dos braços urnas rodas. a
modo de braceletes e outras nas pa nturrilhas, perto dos
joelhos; as orelhas eram perfuradas e muito grandes,
parecendo as dos indios de Cuzco, ( 16) porém maior es.
(16) Sohre esses índios de Cuzco escreve Garcilaso de la
Vega: "Demás de andar trasquilados, traian las orejas horaclas
por donde comunmente las horadan las mujeres para los zarcillos;
empero hacian crecer el horado con a rti ficio cn extrafia grandeza,
increible á quien no la hubicre visto ... Y porque los índios las
t raian de la manera que hemos dicho, les llamaban O rejones los
espafioles ".
Os portuguêses chamavam também aos Uerequena de orelhu-
dos, aos quais classifica Rodrigues Fen eira entre os seus homens
monstruosos por artifício, " com as extremidades das o relhas ras-
gadas e distendidas até os ombros".
48 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

Essa casta de gente reside terra a dentro e é a que


possue a r iqueza de que falámos, e é como lembrança
sua que aí conservam esses ídolos. Tambem se achou
nessa aldeia ouro e prata, mas como o nosso intento era
somente procurar o que comer e ver como poderíamos
salvar as nossas vidas e dar noticia de tão grande coisa,
não cuidávamos de obter qualquer riqueza.
Partiam dessa aldeia muitos caminhos, largos como
estradas reais, pela terra a dentro. Quiz o Capitão saber
aonde ia e para isso tomou consigo a Cristobal Maldonado,
ao alferes e outros companheiros e começou a entrar por
eles, e não tinham caminhado meia legua, quando as es-
tradas eram mais amplas e maiores. Ao aperceber-se
disto o Capitão, resolvêu voltar, pois não seria prudente
passar adiante, e volveu para onde estavam os bergan-
tins. Quando regressou, já era ao pôr do sol, e o Capi-
tão disse aos companheiros que seria de melhor aviso
partir dali imediatamente, pois não convinha passar a
noite em terra tão povoada, e que todos embarcassem.
E assim foi que, levada a comida e postos todos a bordo,
começámos a navegar já com a noite, e toda ela fomos
passando por muitas e vastas aldeias, até que raiou o
dia, tendo já caminhado mais de vinte léguas, que, para
fugir dos índios, os nossos companheiros não paravam de
remar. Quanto mais andávamos mais povoada e melhor
achávamos a terra, da qual seguíamos sempre afastados,
para não dar lugar a que os índios nos viessem assaltar.
Fomos caminhando por esta terra e senhorio de
Omagua mais de cem leguas, ao cabo das quais chegá-
mos a outra terra de outro senhor, chamado Paguana,
que tem muita gente e muito pacifica, pois chegámos, no
princípio da sua província, a um povoado de mais de
duas léguas de comprimento, aonde os índios nos espera-
DESCOBRIMENTOS DO R10 DAS AMAZONAS 49

vam em suas casas, sem fazer mal nem dano, antes nos
davam do que tinham. Desse povoado seguiam muitos
caminhos para o interior, porque o senhor não reside à
beira do rio, e os índios nos disseram que fôssemos até
lá, pois o senhor se alegraria muito com a nossa presen-
~a. Nessa terra possue tal senhor muitas ovelhas das do
Perú ( 17) e é muito rico em prata, segundo nos diziam
os índios. A terra é muito alegre e aprazível e abundan-
te em todas as comidas e frutas, tais como pinhas e peras,
que na lingua da Nova E spanha se chamam abacates, e
ameixas, guanas e muitas outras frutas excelentes. ( 18)
Saímos desse povo e fomos caminhando sempre por
um território muito povoado, pois houve dias de passar-
mos por mais de vinte aldeias, isso pela margem que
acompanhávamos, pois do outro lado não podíamos ver
mais que a vastidão do rio. Assim iamos dois dias pela
banda di reita e depois atravessávamos e íamos outros
dois dias pela esquerda, pois quando seguíamos por um
lado não víamos o outro.
Na segunda feira da Páscua do E spírito Santo, pas-
sámos à vista de uma aldeia muito grande e populosa,
com muitos bairros, cada qual com um desembarcadouro
no rio. Nesses portos ha~ia índios aos magotes, esten-
dendo-se esta aldeia por mais de duas léguas e meia.
Sendo tantos os índios, mandou o Capitão que passásse-
(17) Os antigos cronistas espanhois chamavam ovelhas ou
carneiros da terra ou d o P erú à lhama (Lama glama) e à alpaca
(Lama g!ama pacos), tJUC eles encontraram já como animais do-
méstic os e11tre os autóctones do P erú . A ser vercla(le este trecho
da narrativa de Carvaj al, os fndios deviam referir-.se a alguma
região do Perú, pois nunca se encontraram os lhamas em ne-
nhuma parte do Brasil.
(18) Aqu i va i o bom frade dominicano dando ás frutas o
nome das que com as mesmas mais se pareciam com as que eram
suas conhecidas cm espanha. Para os abacates ele dá o nome "da
língua da Nova Espanha". Quanto ás outras é impo_ssivel agora
saber quais fossem.
50 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

mos adiante, sem lhes fazer mal nem atacá-los. Mas eles,
vendo que passávamos sem lhes fazer mal, embarcaram
em suas canoas e nos atacaram, mas para seu dano, pois
as balhestas e arcabuzes os fizeram voltar para as suas
casas, deixando-nos ir rio abaixo.
Nesse mesmo dia tomámos uma pequena aldeia, onde
achámos comida, e aqui terminou a província de Pagua-
na, e entrámos em outra província muito mais belicosa e
de muita gente que nos fazia guerra incessante. Não sou-
bemos como se chamava o seu senhor, mas é de gente
meã de corpo, muito bem tratada, com seus pavezes de
pau e que defendem as suas pessoas com bravura.
No sábado, véspera da Santíssima Trindade, mandou
o Capitão fundear em i,Jma povoação onde os índios se
puzeram em defesa. Apesar disso os expulsámos de
casa e nos ·provimos de comida, achando ainda algumas
galinhas. Nesse mesmo dia, saindo d'ali, prosseguindo
a nossa viagem, vi mos uma boca de outro grande rio, à
mão esquerda, que entrava no ·que navegávamos, e de água
negra como tinta, e por isso lhe puzemos o nome de Rio
Negro. ..Corria ele tanto e com tal ferocidade que em
mais de vinte léguas fazia uma faixa na outra água, sem
misturar-se com a mesma.
Ainda nesse dia vimos outras povoações não muito
grandes. No domingo da Santíssima Trindade descan-
sou o Capitão com a sua gente nos pesqueiros de um po-
voado que estava numa lomba, encontrando-se aí muito
peixe, que foi socorro e grande alegria para os nossos es-
panhois, pois havia dias que não descansávamos. Estava
esta povoação situada em uma lomba afastada do rio, como
em fronteira de outros povos que lhe faziam g·uerra, pois
estava fortificada por uma muralha de grossos troncos.
Quando os nossos companheiros subiram para tomar co-
mida, os índios a quizeram defender e se fizeram fortes
dentro daquela cerca, que não t inha mais de uma porta,
DESCOBRIMENTOS DO RIO DAS AMAZONAS 51

havendo-se com bravura. Mas como nos víamos em ne-


cessidade, resolvemos atacá-los e, nessa determinação, aco-
metemos pela dita porta, entrando sem nenhum risco. Os
companheiros pelejaram com os índios até desbaratá-los
e logo recolheram a comida, que havia em quantidade.
Na segunda feira partimos, passando sempre por pro-
víncias e povoações muito grandes, abastecendo-nos de co-
mida o melhor que podíamos, quando esta nos faltava.
Nesse dia aportámos a uma aldeia de medíocre tamanho ,
onde a gente nos esperou. Havia lá uma praça muito
grande e no meio da praça um grande pranchão de dez
pés em quadro, pintado e esculpido em relevo, figurando
uma cidade murada, com a sua cerca e uma porta. Nessa
porta havia duas altíssimas torres com as suas janelas, as
torres com portas que se defrontavam, cada porta com
duas colunas. Toda esta obra era sustentada sobre dois
ferocíssimos leões que olhavam para trás, como acautela-
dos um <lo outro, e a sustinham nos braços e nas garras.
Havia no meio desta praça um buraco por onde deitavam,
como oferenda ao sol, a chicha, ( 19) que é o vinho que
eles bebem, sendo o sol que eles adoram e têm como seu
Deus.
E ra esse edifício coisa digna de ser vista, admiran-
do-se o Capitão e nós todos ele tão admiravel coisa.
Perguntou o Capitão a um índio o que era aquilo e
que significava naquela praça, e o índio respondeu que
eles são súditos e tributários <las Amazonas, e que não as
forneciam senão de penas de papagaios e guacamaios (20)

(19) A chicha é a bebida dos índios dos Andes e ainda hoj e


muito usada no interior da Argentina, Chile e Bolivia. O seu pre-
paro muito se aproxima do cachiri, ao qual provavelmente se refere
Carvajal, embora empregando o termo referente à bebida que era
mais sua conhecida.
(20) Não é po,.sivel saber o que seriam esses guacama;o,
Talvez araras ou jandaias.
52 CARVAJAL, RoJAS E AcuNA

para for rarem os tetos dos seus adoratórios. Que as po-


voações que eles tinham eram daquela maneira, conser-
vando-o ali como lembrança e o adoravam como emble-
ma de sua senhora, que é quem governa toda a terra das
ditas mulheres. Encontrou-se também nessa praça uma
casa muito pequena, dentro da qual havia muitas vesti-
mentas de plumas de diversas cores, que os índios usa-
vam para celebrar as suas festas e bailar quando se que-
riam regozijar diante do já referido pranchão, e ali ofe-
reciam seus sacrifícios com a sua danada intenção.
Saimos logo desta aldeia, encontrando a seguir uma
outra, muito grande, que tinha o mesmo pranchão e di-
visa. Defendeu-se muito este povo e por mais de uma
hora não nos deixou -pôr pé em terra, mas afinal conse-
guimos saltar e como os índios eram muitos e a cada hora
cresciam, não se qt1eriam render; mas em vista do dano
que se lhes fazia, resolveram fugir e então tivemos tem-
po curto, para buscar alguma comida, porque já os ín-
dios investiam contra nós. Mas o nosso Capitão não
quiz que esperássemos, pois nada podíamos ganhar na:
transação, e mandou que embarcássemos. e nos fôssemos.
E assim se fez.
Partidos daqui, passámos por outros muitos povoa-
dos, onde os índios nos esperavam em pé de guerra, como
gente belicosa, com as suas armas e pavezes nas mãos,
fazendo grande algazarra, gritando por que fugíamos,
se eles ali nos estavam esperando. Mas o Capitão não
queria atacar onde via que não podíamos ganhar honra
nem levar comida e, quando havia alguma, arriscava a sua
pessoa e a dos seus companheiros. Em algumas partes,
os índios de terra e nós da água nos fazíamos guerra,
mas como os índios eram muitos, faziam parede e nossos
arcabuzes e balhestas lhes faziam grande mal, e assim
passávamos adiante.
D ESCOBRIMENTOS DO Rio DAS AMAZONAS 53

Na quarta-feira, véspera de Corpus Christi, sete de


junho, mandou o capitfw aportar em uma pequena po-
voação que estava so'bre o rio, e foi rumada sem resis-
tência. Aí se encontrou muita comida, especialmente
peixe, que havia em tal abundância que pudemos abaste-
cer largamente os bcrgantins. Era o peixe que os índios
tinham a secar para ir vender terra a dentro. Vendo
todos os companheiros que a povoação era pequena, pe-
diram ao Capitão que descansasse alí, pois era véspera
de uma grande festa. O Capitão, como homem que
conhecia as coisas dos índios, disse que não falassem em
semelhante coisa, pois tal não pensava fazer, pois embora
o povoacio lhes parecesse pequeno, tinha uma grande co-
marca de onde poderiam vir auxílios e causar-nos dano,
e que, portanto, nos f ôssemos, como costumávamos fazer,
indo dormir nos montes. Os nossos companheiros pe-
diram como mercê que se demorasse ali. O Capitão,
visto que todos o pediam, embora contra a sua vontade,
concedeu o que lhe solicitavam, e assim estivemos nessa
povoação descansando até ao pôr do sol, hora em que os
índios voltavam para as suas casas, porque, à hora em
que saltámos, só havia mulheres, tendo os índios ido a
cuidar das suas grangearias. Assim, sendo chegada a
hora, voltaram e, encontrando suas casas em poder de
quem não conheciam, ficaram muito espantados e come-
çaram a dizer que saíssemos dali, e isto dizendo, decidiram
atacar-nos.
Mas quando eles acometiam contra nossa gente,
acharam-se diante de quatro ou cinco companheiros, os
quais tão denodadamente lutaram, que fizeram com que
os índios não se atrevessem a chegar até onde estávamos.
Assim os fi zeram fugir e, quando o Capitão sai u, já nada
havia que fazer. Já era noite e, suspeitando o Capitão
o que iria acontecer, mandou q ue fossem dobradas as
sentinelas e que todos dormissem armados, e assim se
54 CARVAJAL, RoJAS E AcuNA

fez . À meia noite, à hora em que a lua saía, voltara os


índios em tropel, atacando-nos por tres lados. Quando
foram sentidos, tinham fe rido as sentinelas e eles estavam
no meio da nossa gente, e como deram alarma, saiu o Ca-
pitão gritando: "Vcrgonha, vergonha, cavalheiros, a
eles".
Levantaram-se os nossos e com grande fúria ataca-
ram aquela gente que foi desbaratada e, não podendo re-
sistir aos nossos companheiros, fugiu. O Capitão, pen-
sando que eles haviam de vir mais uma vez, mandou
fazer-lhes uma emboscada por onde haviam de voltar, e
que os outros não dormissem. Ordenou que se tratasse
dos feridos, o que fiz , porque o Capitão andava de um
iado para outro, dando _as ordens que convinha para a
salvação <las nossas vidas, que nisto sempre se desvelava.
E a não ser ele tão sábio nas coisas da guerra, que pare-
cia que Nosso Senhor lhe ensinava o que devia fazer,
muitas vezes nos teriam morto. Estivemos deste modo
a noite toda e, clareando o dia, mandou o Capitão que
embarcássemos e nos fôssemos, e que se enforcassem
alguns prisioneiros que tínhamos feito, para que os índios
daí por diante nos cobrassem temor e não nos atacas-
sem. Embarcámos e, feitos ao largo no rio, chegavam
à povoação muitos índios e também por água vinham
muitas canoas. Mas como já íamos ao largo, não tive-
ram como pôr em obra a sua má intenção. -1

Esse dia nos metemos num monte e descansámos o


dia seguinte, prosseguindo a nossa viagem no imediato.
Não havíamos ainda amlado quatro léguas quando vimos
entrar pela mão direita um rio mui to grande e poderoso,
maior que o que percorríamos, e por isso lhe puzemos o
nome de Rio Grande (21), e passámos adiante. À mão

(21) Pelas distâncias referidas e pelo tempo gasto na viagem


até aqui, esse rio Grande de Carvajal é o rio Madeira, -
DEscoBRIMENTos oo Rro DAS AMAZONAS 55

esquerda vini~S haver umas povoações muito grandes


sôbre uma lomba que chegava até à margem do rio.
Vendo-as, mandou o Capitão que para ,lá nos dirigísse-
mos, o que fizemos. Vendo os índios que íamos para
lá, resolveram, segundo pareceu, não se mostrar mas
ficar de emboscada, pensando que saltaríamos em terra,
e para isso tinham limpos os caminhos que desciam para
o rio. O Capitão e alguns -companheiros per-ceberam a
maldade que se estava armando, e por isso passámos ao
largo. Vendo tal coisa, levantam-se mais de cinco mil
índios com as suas armas, e começam a dar gritos e a
desafiar-nos, a bater com as armas umas nas outras, fa-
zendo um tal ruído que parecia que o r io vinha abaixo.
Passámos adiante e, obra de meia légua, demos
com outro povoado maior, mas aqui nos fizemos ao lar-
go do rio. Esta terra é temperada e de muito boa dispo-
sição, mas não soubemos seu comércio, porque não nos
foi permitido. E aqui acabou esta província e passámos
a outra que nos deu não pouca canseira. Continuando
nosso caminho, sempre entre lugares povoados, um dia,
pelas oito horas da manhan, vimos num alto uma formo-
sa aldeia, que ao parecer devia ser capital <le algum gran-
de senhor. Quizéramos, embora com risco, chegar até
lá para vê-la, mas não foi possível porque tinha diante
uma ilha, e quando quizemos entrar já a entrada tinha
ficado para trás. Por este motivo passámos à vista,
mirando-a. !{avia nessa aldeia sete picotas, esparsas em
vários lugares da aldeia, tendo pregadas nelas muitas ca-
beças de mortos. Por isto puzemos a este lugar o nome
de Província das Picotas, que se estendia setenta léguas
rio abaixo. Desciam dessa aldeia para o rio vários ca-
minhos feitos a mão, tendo plantadas, de um e outro
lado, árvores fr utíferas, por onde se percebia que devia
ser um grande senhor o desta terra,
56 CARVAJ AL, Ro J As E Acu:& A

No dia seguinte encontrámos outra aldeia do mes-


mo feiti o e, corno tivéssemos necessidade de comida,
fomos forçados a atacá-la. Esconderam-se os índios,
para que saltássemos em terra, e vendo que já tínhamos
desembarcado, saíram da sua emboscada com imensa fúria.
Vinha adiante o seu capitão ou senhor, animando-os com
enorme gritaria. Um dos nossos balhesteiros fez ponta-
ria nesse senhor e o matou. Vendo os índios aquilo, de-
cidiram não esperar, mas fugir , fortificando-se dentro de
suas casas, das quais se defendiam e lutavam como cães
danados. Vendo o Capitão que não se queriam render,
que nos tinham feito dano e ferido alguns dos nossos
companheiros, mandou pôr fogo nas casas onde estavam
os índios, que assim saírãm delas, fugindo , dando lugar
a que se recolhesse a comida que nessa aldeia, louvado
Nosso Senhor, não faltou, pois havia muitas tartarugas,
muitos perús e papagaios, e uma grande fartura, pois de
pão e milho nem se fala. Saímos dali e logo fomos a
uma ilha descansar e gozar do que tinhamas tomado.
Prendeu-se nesta aldeia uma índia ele muita razão, que
disse que perto daqui, no interior, havia muitos cristãos
como nós para aí trazidos por um senhor. Disse-nos mais
que havia entre eles duas mulheres brancas e que outros
viviam com índias, das quais tinham filhos. Ao que se
presume, são estes os que se perderam de Diego de Or-
daz (22), pelos sinais que davam, que era para as ban-
das do norte.
Seguimos nosso rio abaixo sem tocar em nenhum
povoado, porque levávamos o que comer, e ao cabo de
(22) Em principios de 1531 saiu de Sevilha Diego de Ordaz,
e, tendo chegado ao rio Marafion, no intiuito de começar por aí
os seus descobrimentos, foi fo rçado a abandonar o proj eto pelas
calmarias, correntezas e baixios em que se viu P or consegu.nte
mandou abrir as velas, afim de sair depressa daquele sitio tão peri-
goso, mas Juan Carnejo, seu lagar-tenente, não teve o mesmo êxito,
encalhou a sua nau com perda de alguns homens, que se internaram
D E SCOBRIMEN TOS oo Rro DAS A MAZONAS 57

alguns dias saímos desta província, à saida da qual havia


uma imensa aldeia, por onde nos disse a índia que devía-
mos ir até onde estavam os cristãos, mas resolvemos pas-
sar adiante, que para tirá-los de onde estavam, chegará
a sua vez.
Dessa aldeia saíram dois índios numa canoa e che-·
garam até ao bcrgantim onde vinha sem armas o nosso
Capitão, e fi caram muito tempo mirando e por muito
que este os chamasse para que entrassem, e lhes desse
muitas coisas, nunca quizeram, antes, most rando o inte-
rior ela terra, volveram.
E ssa noite dormimos fronteiros dessa aldeia, dentro
dos nossos bergantins e, clareando o <lia, começámos a ca-
minhar . Saiu da aldeia muita gente. Embarcaram os ín-
dios e vieram atacar-nos no meio do rio, por onde navegá-
mos. Estes índios já teem flechas e lutam com elas.
T omámos o nosso caminho sem o esperar. F omos cami -
nhando, tomando comida onde víamos que não na podiam
defender e no fi m de uns quat ro ou cinco dias fomos
tomar uma povoação onde os índios não se defenderam.
Aqui se encontrou muito milho ( e também muita aveia),
de que os índios fazem pão, e vinho muito bom, parecen-
do cerveja, havendo dele muita abundância.

entre os índios. E' o que conta Juan de Castellanos em uma da~


suas elegias nestes versos.
"El O rdaz escapó con bucn consejo
Y fue donde llevaba sus intentos,
Mas no pudo salir el J oan Cornei o,
Con otros que pasaban de trcscientos.
Muy juntos á la tierra naufragaran
Sin dalles sinsabor reventazones,
Y ansi dicen que todos escaparon
Y entraron por jamás vistas regiones,
Hasta que deseubrieron y toparon
Grandes y poderosas poblaciones,
Adonde se hallaron y han valido
Multiplicando siempre su parti90."
58 CARVAJAL, RoJAs E Acu&A

Encontrou-se neste povoado uma adega desse vinho,


com o que não pouco se alegraram os nossos companhei-
ros. Achou-se também muito boa roupa de algodão.
Havia nessa aldeia um adoratório, dentro do qual estavam
penduradas muitas divisas de armas de guerra e, por cima
de todas, duas mitras muito bem feitas, como as dos 'bis-
pos: eram tecidas não sabemos de que, pois não eram de
lan de algodão e tinham muitas côres.
Passámos adiante dessa povoação e fo mos dormir
do outro lado do rio, no monte, como era o nosso costu-
me, e ali vieram muitos índios atacar-nos por agua, mas
mau grado seu, tiveram de retroceder.
Terça-feira, 22 de junho, vimos muitas povoações do
lado esquerdo do rio, pois indo nós pelo meio, víamos
branquear as casas. Quizemos ir até lá mas não pude-
mos pela muita correnteza e pelas ondas, mais trabalhosas
que as do mar.
Quarta-feira tomámos um povoado que estava no
meio de um arroio pequeno, numa grande planície de mais
de quatro léguas. Constituía este povoado urna única
rua, com uma praça no meio, estando as casas de um e
outro lado, e aí achámos muita comida. A este povoado,
chamámos, por estar assim disposto, povoação da Rua.
Quinta-feira passámos por outros povoados ele ta-
manho médio, mas não cuidámos de parar ali. Todos
eles são arraiais de pescadores do interior.
íamos desta maneira caminhando e procurando um
lugar aprazível para folgar e celebrar a festa do bem-
aventurado São João Batista, precursor de Cristo, e foi
servido Deus que, dobrando uma ponta que o rio fazia,
víssemos alvejando muitas e grandes aldeias ribeirinhas.
Aqui <lemos de chofre na boa terra e senhorio das
amazonas. ( 23)
(23) Sitúa o padre Carvajal o começo "da boa terra e se-
nhorio das Amazonas " na foz do Jamundá. Sabem todos que a
DESCOBRIMENTOS Do Rro DAS AMAZONAS 59

Estavam estes povos já avisados e sabiam da nossa


ida, e por isso nos vieram receber no caminho por
água, mas não com boa intenção. Chegando perto, como
o Capitão os quízesse trazer à paz, começando a falar-
lhes e a chamá-los, riram-se eles e faziam burla de nós;
aproximavam-se e diziam que andássemos, pois ali abaixo
nos esperavam, para prender-nos a todos e levar-nos às
amazonas.
O Capitão, ofendido com a soberba dos índios,
mandou que atirassem neles com as balhestas e ar cabu-
zes, para que pensassem e soubessem que tínhamos com
que os ofender. Com o dano que lhes causámos, vol-
taram para a aldeia a dar noticia do que tinham visto.
Não deixámos de caminhar e aproximar-nos das aldeias,
e antes que chegássemos, a uma distância de mais de
meia légua, havia pela línha dagua, aquí e alí, muitos
esquadrões de índios, e como íamos andando, eles se
juntavam, acercando-se das suas povoações. Havia no
meio desta aldeia uma multidão, fazendo um bom esqua-
drão e o capitão deu ordem que os bergantins encalhas-
sem onde estava aquela gente, para buscar comida.
E assim foi que, quando começávamos a chegar à
terra, principiaram os índios a defender a sua aldeia e a
flechar-nos, e como a gente era muita, parecia que cho-
viam flechas. Mas os nossos arcabuzeiros e balhesteiros
não estavam ociosos, porque não faziam senão atirar, e
embora matassem muitos, não o sentiam, porque, com
todo o dano que lhes fazíamos, andavam uns pelejando
lend •. das amazonas está intimamente ligada aos muiraquitã.s e é
curioso que quasi todas as "pedras verdes ", até hoje conhecidas
provenham de uma região Que se estende das ribeiras do Purú
às cercania.s do Jamundá. E screve a esse respeito Gastão Cruls:
.. Ainda em Belém confirmou-me essa asserção o Dr. Carlos Este-
vão de Oliveira, autor de memória ainda ipédita sobre o mesmo
tema".
60 CARVAJAL, RoJAS E Acu&A

e outros bailando. Aqui estivemos por um triz para


perder-nos todos, porque como havia tantas flechas, os
nossos companheiros porfiavam por defender-se delas,
sem poder remar. Foi isto causa de que nos fizessem
tanto mal que antes que saltássemos em terra já tinham
ferido a cinco dos nossos, <los quais eu fui um deles, le-
vando uma flecha na ilharga, que me chegou ao vazio e
se não fossem os hábitos, ali teria ficado.
Vendo o perigo em que estávamos, começou o Ca-
pitão a animar e a apressar os dos remos para que en-
calhassem, e os nossos companheiros se lançaram à agua
que lhes dava pelos peitos. Travou-se aquí mui grande
e perigosa batalha, porque os índios andavam misturados
com os nossos espanhois, que se defendiam tão corajosa-
mente, que era uma- coisa maravilhosa de ver-se. An-
dou-se neste combate mais de uma hora, pois os índios
não perdiam ânimo, antes parecia que o redo'bravam,
embora vi ssem mortos a muitos dos seus, e passavam
po r cima deles, e não faziam senão retrair-se e tornar
a atacar.
Quero que saibam qual o motivo de se defenderem
os índios de tal maneira. Hão de saber que eles são
súditos e tributários das amazonas, e conhecida a nossa
vinda, foram pedir-lhes socorro e vieram dez ou doze.
A estas nós as vimos, que andavam combatendo diante
de todos os índios como capitãs, e lutavam tão corajosa-
mente que os índios não ousavam mostrar as espáduas,
e ao que fugia diante de nós, o matavam a pauladas. Eis
a razão por que os índios tanto se defendiam.
Estas mulheres são muito alvas e altas, com o ca-
belo muito comprido, entrançado e enrolado na cabeça,
São muito membrudas e andam nuas em pelo, tapadas
as suas vergonhas, com os seus arcos e flechas nas mãos,
fazendo tanta guerra como dez índios. E em verdade
houve uma destas mulheres que meteu um palmo de
D ESCOBRI MENTOS oo Rrn DAS AMAZONAS 61

flecha por um dos bergantins, e as out ras um pouco


menos, de modo que os nossos berganti ns pareciam por-
co espinho. .
\
Voltando ao nosso propósito e combate, foi Nosso
Senhor servido dar força e coragem aos nossos compa-
nheiros, que mataram sete Ott oito destas amazonas, razão
pela qual os índios afrouxaram e foram vencidos e des-
barataclos com farto dano de suas pcssôas. Como viesse
de outras aldeias muita gente de socorro e haviam de vol-
tar, pois já se começavam a chamar, mandou o Capitão
que a toda a pressa embarcasse a gente, pois não queria
pôr em ri sco a vicia de todos. E assim embarcaram, não
sem sossobra, porque já os índios começavam a lutar, e
vinha por agua imensa frota de canoas. Assim sendo,
nos fi zemos ao largo e deixámos a terra.
Desde o ponto em que deixámos Gonçalo Pizarro,
já caminhámos mil e quatrocentas léguas, antes mais do
que menos, e não sa'bemos ainda o que falta daqui até
ao mar. Nestas aldeia agarrámos um índio trombeteiro,
que andava entre a gente, d e cerca <le trinta anos de ida-
de, e que começou a contar ao Capitão muitas coisas do
interior da terra. E o Capitão o levou consigo.
Feitos ao largo do rio, nos deixámos ir à garra, sem
remar, porque os nossos companheiros estavam tão can-
sados que não tinham forças para suster os remos. Indo
pelo rio, teríamos caminhado um tiro de balhesta quando
descobrimos uma al<leia, não pequena, onde não parecia
haver gente, e por isto toe.los os companheiros pediram ao
Capitão que fosse até lá, para a tomarmos, pois na outra
a ldeia os índios não nos tinham deixado. D isse-lhes o
Capitão que não queria, pois embora lhes parecesse não
haver gente, dele nos tínhamos mais de precaver <lo que
de onde claramente a víamos. Juntámo-nos todos, e cu
com os demais companheiros, e lhe pedimos como mer-
cê. E mbora já t ivéssemos passado essa aldeia, o Capi-
62 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

tão, fazendo-lhes a vontade, mandou retroceder os ber-


gantins, e como íamos costeando a terra, os índios escon-
didos em emboscada, entre as arvores, repartidos por
seus esquadrões, para nos surpreender nesta cilada, co-
meçaram a atacar-nos e flechar-nos tão bravamente, que
não nos víamos uns aos outros. M as como nossos es-
panhois vinham, desde Machiparo, providos de bons pa-
vezes, não nos fizeram tanto dano, quanto nos fariam se
não viéssemos protegidos por essa defesa, e de toda essa
gente só a mim feriram, que me deram um flechaço num
olho, que passou a flecha para o outro lado. Desta fe-
r ida perdi um olho e não estou sem fadiga e falta de
dôr, posto que Nosso Senhor, sem que o mereça, me
quis conservar a vida para que me emende e o sirva me-
lhor do que até aqui. ..Neste meio tempo já haviam sal-
tado em terra os espanhois que vinham no barco pequeno,
e como os índios eram tantos, os tinham cercado. Se
não fosse o Capitão socorrê-los com o bergantim grande,
perdiam-se e os índios os levariam. E assim o teriam
conseguido antes que chegasse o Capitão se eles não lu-
tassew com tanta coragem. Mas já estavam cansados e
postos em grande apertura.
Recolheu-os o Capitão e como me visse ferido, man-
dou embarcar a gente. E assim se embarcaram, pois os
índios eram muitos e mui encarniçados e os nossos com-
panheiros não podiam com eles. Temia o Capitão per-
der algum, e não os queria arriscar em semelhante aven-
tura, pois sendo a terra povoa,da, convinha conservar a
vida de todos , pois de uma aldeia a outra não distava
mais de meia légua, por toda a·quela margem direita do
rio, que é o lado sul. Para o interior, a umas duas lé-
guas mais ou menos, apareciam grandes cidades, que es-
tavam alvejando. Além disso a terra é tão boa e fe rtil
e tão ao natural como a de nossa Espanha, pois entrámos
nela por São João e já começavam os índios a queimar
DESCOBRI MENTOS DO RIO DAS AMAZONAS 63

os campos. E ' terra temperada, onde se colherá muito


trigo e se darão todas as árvores frutíferas. Além disso
está aparelhada para criar todo gado, porque há nelas
muitas ervas corno em nossa Espanha, tais' como o oregão
e car dos pintados e rajados, e outras muitas ervas boas.
Os montes destas terras são azinhais e soverais com bo-
lotas, porque nós as vimos, e carvalhais (24). A terra
é alta e faz lombas, todas de sávanas, com erva que ape-
nas chega aos joelhos, e há muita caça de toda espécie.
Tornando à nossa viagem: mandou o Capitão que
fôssemos para o meio do rio para fugir cios povoados,
que eram tantos que causava espan to. Chamámos a esta
província de São João. porque em seu dia entrámos
nela, e eu tinha pregado pela manhan, vindo pelo rio,
em louvor de tão glorioso precursor de Cristo, e tenho
por averiguado que por sua intercessão me outorgou
Deus a vida.
F omos para o meio elo rio e os índios por agua em
nosso seguimento, porque o Capitão mandou atravessar
para uma ilha que estava despovoada. e até ser noite não
nos deixaram os índios. Chegámos à ilha depois das

(24) De vez em quando, enganado pelo que via de longe,


deixa o frade dominicano dar largas á sua fantasia. O orcgão
( O rega num vulgare) é uma planta dos .p aises do Mediterrâneo, da
famil ia Labiadas, empregada como tempero; ao mesmo gênero per-
trnce a mangcrona (O. majorana), da qual se obtém um ólio aro-
mático, por distilação. Os cardos de Europa, que Carvajal supunha
ver nas margens do Amazonas, " pintados e rajados", são ervas
da famil ia Compostas, tribu Cináreas, de capít ulos homogênios e
reccptúculos pilosos e folhas espinho,·as. Essa tribu é representada
no Ilrasil pelos gêneros Arctr'.um, Cynara, Silybum e Centa11rea,
donde o engano do cronista.
Quanto aos azinhais e soverais com bolotas é mais difícil adi-
vinhar o que pretendia descrever Carvajal. Essas plantas são de
familia sem representantes no Brasil e é impossível saber quais
seriam as " bolotas " que ele viu.

6
64 CARVAJAL, RoJAS E AcuNA

dez horas da noite, ordenando o Capitão que não sal-


tássemos, pois poder-ia ser que os índios viessem sobre
nós. Assim passámos a noite em nossas embarcações.
De manhan mandou o Capitão que caminhássemos com
muita órdem até sair desta província de São João, que
tem mais de 150 léguas de costa, povoadas, como disse.
No outro dia, 25 de junho, passámos por entre umas
ilhas que pensámos que estivessem despovoadas, mas de-
pois que nos achámos no meio delas, foram tantas as
povoações que aí apareciam e vimos, que fi cámos abis-
mados. Quando nos viram, vieram sobre nós pelo rio,
sobre duzentas pirogas, cada qual com vinte a trinta
índios, e algumas com quarenta. Vinham mui chiban-
tes, com diversas insígnias e traziam muitas trombetas e
tambores, e órgãos que· tocam com a boca, e arrabís de
tres cordas. Vinham com tanta ordem e tamanho es-
trondo e gritaria que estávamos espantados. Cercaram-
nos ambos os 'bergantins e atacaram-nos como h omens que
pensavam levar-nos. Mas as coisas lhes saíram às aves-
sas, porque os nossos balhesteiros e arcabuzei ros tal dano
lhes fizeram, que se deram por felizes em poder fugir.
Em ten'a era coisa maravilhosa ele ver-se os esquadrões
que estavam nas povoações, todos tocando e dançando
com umas palmas nas mãos, mostrando grande alegria
ao ver que passávamos dos seus povoados. Estas il has
são altas, em'bora não muito, e de terra raza, ao que pa-
rece muito fé rteis, e tão alegres à vista, que embora fôs-
semos cheios de trabalhos, não deixávamos de alegrar-nos.
Fomos costeando a ilha maior, que terá umas seis
léguas de comprimento e está situada no meio do rio.
Quanto à sua largura, não poderemos dizer. Foram
sempre os índ ios atrás de nós, até expulsar-nos desta
província de São João , que, como já disse, tem 150 lé-
guas, todas percorridas por nós com muito trabalho e
fome, deixando de parte a guerra, pois como fosse muito
DESCOBRIMENTOS DO RIO DAS AMAZONAS 65

povoada, não foi possivel saltar em terra. P or toda esta


ilha foram sempre as canoas e pirogas em nosso segui-
mento, atacando-nos quando se lhes antolhava ; mas como
não lhes agradavam os nossos tiros, nos \am acompanhan-
do de vez em quando.
Na ponta desta ilha havia muito mais gente, saindo
muitas pirogas de fresco, que nos atacaram. Aqui achan-
do-se o Capitão em tão grande apertura e desejando
a paz com esta gente, para ver se poderíamos tomar um
pouco de descanso, resolveu falar com os índios e pe-
dir-lhes paz, e para abraud:Hos mandou deitar em uma
cabaça algnm resgate e atirá-la nágua. Os índios a to-
maram, mas o tiveram em tão pouca estima, que faziam
burla dele. l\!Ias po1; isso não deixaram ele seguir-nos
até expulsar-nos ,de suas povoações que, como já disse-
mos, eram muitas.
Esta noite chegámos a dormir já fóra ele qualquer
povoação, em um carvalhal, que havia em uma grande
planície, perto do rio, onde não nos faltaram temerosas
suspeitas, pois vieram muitos índios a espiar-nos, e no
interi or elas terras havia muitos povoados e caminhos que
entravam por ela. Por esse motivo o Capitão e todos
estavam em vigília, esperando o que nos pudesse vir.
Nesse pouso o Capitão tomou o índio que havia
agarrado acima, porque já o entendia por um vocabulá-
rio que havia feito e lhe perguntou ele onde era natural.
Disse o índio que da povoação onde fôra feito prisionei-
ro. P erguntou o Capitão como se d1amava o senhor dessa
terra, e o índio .respondeu que se chamava Couynco, e
que era grande senhor, estendendo-se o seu senhorio até
onde estávamos. Perguntou-lhe o Capitão que mulheres
eram aquelas que tinham vindo ajudá-los e fazer-nos
guerra. Disse o índio que eram umas mulheres que re-
sidiam no interior, a umas sete jornadas da costa, e por
ser este senhor Couynco seu súdito, tinham vindo guar-
(i6 CARVAJAL, RoJAs E AcUNA

dar a costa. Perguntou o Capítão se estas mulheres eram


casadas e o índio disse que não. Perguntou o Capitão
de que modo vivem. Respondeu o índio que viviam no
interior, e que ele tinha lá estado muitas vezes e visto o
seu trato e residências, pois como seu vassalo ia levar o
tributo, quando o senho r o mandava. Perguntou o Ca-
pitão se estas mulheres eram muitas. Disse o índio que
sim, e que ele sabia, pelo nome, setenta aldeias, e os con-
tou diante dos que aí estávamos, e que em algumas ha-
via estado. Perguntou o Capitão se estas aldeias eram
de palha. Disse o índio que não, mas de pedra e com
portas, e que de uma aldeia a outra iam caminhos cerca-
dos de um e outro lado e de distância em distância com
guardas, para que não possa entrar ninguém sem pagar
direitos. Perguntou-lhe o Capitão se estas mulheres pa-
riam. Disse o índio que sim. Perguntou o Capitão como,
não sendo casadas, nem residindo homens com elas, em-
prenhavam. Ele disse que estas índias cohabitam com
índios de tempos em tempos, e quando lhes vem aquele
desejo, juntam grande porção de gente de guerra e vão
fazer guerra a um grande senhor que reside e tem a sua
terra junto à destas mulheres, e à força os trazem às suas
terras e os têm consigo o tempo que lhes agrada, e depois
que se acham prenhas os tornam a mandar para a sua terra
sem lhes fazer outro mal ; e depois quando vem o tempo de
parir, se têm filho o matam e o mandam ao pai; se é filha,
a criam com grande solenidade e a educam nas coisas de
guerra. Disse mais que entre todas estas mulheres há uma
senhora que domina e tem todas as demais debaixo da sua
mão e jurisdição, a qual senhora se chama Conhorí. Disse
que há lá imensa riqueza de ouro e prata, e todas as senhoras
principais e de maneira possuem um serviço todo de ouro
ou prata, e que as mulheres plebeias se servem em vasi-
lhas de pau, exceto as que vão ao fogo, que são de barro.
DESCOBRIMENTOS DO RIO DAS AMAZONAS 67

Disse que na capital e principal cidade, onde reside a


senhora, há cinco casas muito grandes, que são adora-
tórios e casas dedicadas ao sol, as quai~ são por elas cha-
madas caranaí, e que estas e.asas são assoalhadas no solo
e até meia altura e que os tetos são forrados de pinturas
de diversas cores, que nestas casas t em elas ídolos de ouro
e prata em figura de mulheres, e muitos objetos de ouro
e prata para o serviço do sol. Andam vestidas de finís-
sima roupa de lan, porque há nessa terra muitas ovelhas
das do Perú. .Seu trajar é formado por umas mantas
apertadas dos peitos i;ara 'baixo, o busto descoberto, e
um como manto; atado adiante por uns cordões. Trazem
os cabelos soltos até ao chão e postas na cabeça coroas de
ouro, ela largura de dois dedos.
Disse maís que nesta terra, segundo compreende-
mos, há camelos que os carregam, e disse que há outros
animais, que não conseguimos entender, que são do ta-
manho de um cavalo, com pêlos do comprimento de um
gêmeo e com a pata fendida ; ha poucos deles, ·que vivem
amarrados. Disse que há nesta terra duas lagoas de
água salgada, de que elas fazem sal. Disse que há uma
ordem para, em pondo-se o sol, não fique índio macho
em nenhuma destas cidades, devendo sair e ir para as
suas terras. Disse mais que muitas províncias de índios
que lhes são limítrofes, elas as têm sujeitas e os fazem
pagar tributo e que eles as sirvam; e que há outras com
as quais vivem em guerra, especialmente com a que já
dissemos, e os trazem para ter relações com elas. Disse
que estes são altos de corpo e muito brancos, e muito
numerosos, e qne tudo o que nos referiu, ele viu muitas
vezes, como homem que ia e vinha diàriamente.
T udo o que este índio disse, já nos haviam contado
a umas seis léguas de Quito, porque ali falam muito
nestas mulheres, e para vê-las vêm muitos índios 1.400
léguas rio abaixo. Assim nos diziam lá em cima os ín-
68 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

dios, que quem tivesse de descer à terra destas mulheres


tinha de ir rapaz e voltar velho. Disse que a terra é fria
e que há pouca lenha, sendo muito abundante em todas
as comidas. Também disse muitas outras coisas, e cada
dia vai descobrindo mais, porque é um índio de muita
razão e muito entendido, e assim o são todos os outros
daquela terra. (25)
No dia seguinte, pela manhan, saímos desse carva-
lhal não pouco alegres, pensando que já tínhamos deixado
atrás toda a zona povoada o que tinhamas ocasião para des-
cansar dos trabalhos passados e presentes, e assim começá-
mos nossos acostumado caminho. Mas n'ão tínhamos an-
dado muito, quando vimos à mão esquerda grandes provín-
cias e povoações, que estavam na terra mais vistosa e ale-
g re que vimos e descobrimos em todo o rio, porque era terra
alta, de lombas e vales muito povoados. Dessas províncias
veio atacar-nos no meio do rio e fazer guerra grande
cópia de pirogas. Estas gentes são grandíssimas e mais
altas que os nossos homens mais altos, e andam tosquia-
dos e todos tisnados de negro, pelo que as chamámos Pro-
víncia dos Negros. Sairam mui luzidos e nos atacaram
muitas vezes, mas não nos fizeram dano e se foram sem

(25) Foi esta narração do indio, que Carvajal procurou trans-


crever com fidelidade, o motivo principal das censuras de muitos
historiadores a Orcllana, todos repetindo quasi sempre, embora nor
outras palavras, o que pouco depois do sucedido escreveu Lopez de
Gomara: "Entre os disparates que disse, o 1naior foi afirmar que
havia amazonas neste rio, com as quais lutaram ele e os seus com-
panheiros. Que as mulheres ali andem com armas e pelejem não
é muito pois em Paria, que não é muito longe, e em outras partes
das Indias, era esse o seu costume. Nem creio que nenhuma mu-
lher queime e corte a mama direita para atirar com o arco, pois
com ela o fazem á maravilha, nem creio que matem ou desterrem
seus próprios filhos, nem que vivam sem marido, sendo luxurio-
.síssimas. Outros, além de Orellana, deram curso a semelhante fan-
tasia depois que se descobriram as Indias, e nunca tal se viu nem
tão pouco se verá neste rio ".
DESCOBRIMENTOS DO RIO DAS AMAZONAS 69
ele. Não tomámos nenhuma destas povoações, por não
querer o Capitão, pela muita gente que havia. Perguntou
o Capitão ao índio q ue gente era aquela 1.; quem a gover-
nava. Disse que aquela terra e as .povoações riue se pa-
reciam, com outras muitas que não víamos, eram de um
grande senhor, cha111aclo Arripuna, que scnhoreava mui-
ta terra, que se estendia rio acima oitenta jornadas, até
uma lagoa que estava elo lado do norte, onde governava
outro senhor, chamado T inamostón. Mas disse que este
é um grande guerreiro e que sua gente come carne huma-
na, coisa que náo fazem os demais desta terra que até
agora percorremos. Esse senho r não é <la lagoa, mas de
outra, e é ele que tem consigo e em sua terra os cristãos
dos quais_acima tivemos nutícia, porque ele os tinha visto.
Disse que ele possue grande riqueza de prata, e com ela
se servem cm toda a terra, 111as que o uro não no alcan-
çam. E na verdade a terra faz dar crédito a tudo o que
se diz. pela sua vista e parecer.
Dois dias mais tarde chegámos a um pequeno po-
voado onde o.s índios se defenderam, mas nós os desba-
ratámos e lhes tomámos a comida e passámos adiante, a
outra que estava junto dele e era maior. Aqui se defen-
deram os índios e lutaram durante meia hora, tão bem e
com tanta coragem, que antes que p udéssemos saltar em
terra mataram dentro cio bergantim grande a um compa-
nhej ro, que se chamava Antonio de Carranza, natural
de ºBurgos. Nessa aldeia empregavam os índios alguma
erva venenosa, pelo ·q ue se conheceu na fe rida do nosso
companheiro, que ao cabo de 24 horas deu a alma a
Deus. (26)
( 26) A morte de Antonio Ca rranza ocorreu em princípios de
julho, já depois de terem passado as ilhas que ficam em frente
da lagoa grande de Vila Franca. E sse período de Carvajal é de
um .grande interesse por ser a primeira referência ao emprego do
curare pelos índios, sendo uma importante achega para a geografia
dos venenos empregados pelo.s índios em suas setas.
70 CARVAJAL, ROJAs E AcuNA

Voltando ao nosso assunto, direi que se tomou o


povoado e recolhemos todo o milho que coube nos 'ber-
gantins, porque, como vimos a erva, resolvemos não sal-
tar em terra nem em povoado se não fosse com dema-
siada necessidade, e assim fomos com cautela maior do
que tinhamos tido até ali.
Caminhámos com muita pressa, desviando-nos dos
.lugares povoados, e um dia de tarde fomos dormir num
carvalhal que havia na boca de t1111 rio que entrava pela
mão dir eita no de nossa navegação e tinha uma légua de
largura. (27) Mandou o Capitão atravessar para dor -
mir nesse lugar, porque parecia não haver povoação junto
à costa desse r io e podermos dormir sem haver susto, em-
bora o interior parecesse muito povoado. Parámos nesse
carvalhal, mandando õ Capitão pôr umas varandas nos
bergantins, a maneira de fossos , para defendê-los das fle-
chas, e não nos valeram pouco.
Não havia muito que estávamos nesse pouso quando
vem uma grande quantidade de canoas e pirogas, a obser-
var-nos, sem fazer-nos outro mal, e deste modo não fa-
ziam senão ir e vir. Aí estivemos dia e meio, e pensá-
vamos· demorar mais tempo.
Aqui se passou uma coisa não de pouco espanto e
adivinhação aos que a vimos, e foi que a horas de vés-
peras, veio pousar numa árvore debaixo da qt1al estáva-
mos acampado s um pássaro do qual nunca ouvimos mais
que o canto, que fazia com muita pressa e distintamente
dizia ui, e isso disse tres vezes, velozmente. Também sei
dizer que a este pássaro ou a ou tro, ouvimos em nossa
companhia, desde a primeira povoação onde fizemos os
cravos, e era tão certo que, notando que estávamos perto
de qualquer povoado, no quarto d'alva no-lo dizia desta
maneira - ui; e isto muitas vezes. Quer dizer que era
tão certa esta ave no seu canto que já o tí nhamos por
(27) Era chegada a expedição de Orellana á foz do T apajoz.
D ESCOBRIMENTOS Do Rro DA S AMAZONAS 71

tão real como se o víssemos; e assi m era que quando o


ouviam, alegravam-se os nossos companheiros, especial-
mente se havia falta de comida, e todos se aprontavam
para o combate. /\qui nos deixou esth a ve, que nunca
mais a ouvimos. (28)
Logo ordenou o Capitflo que pa rtíssemos deste pouso,
porc1ue lhe parecia que havia muita gente e que de noite,
segundo parecia, tinham resolvido atacar-nos. Mandou
o Capitão que passássemos a noite amarrados aos ramos,
porque não se achou lugar para dormir em ter ra, e foi
isto per missão divina, que se pensassem cm saltar cm
terra, poucos ficariam ou ninguem que pudesse dar novas
da viagem, segu ndo pareceu. E' que os índios vieram
cm nossa persegu ição por terra e água , e assim nos an-
davam buscando com grande ala rido, e chegaram onde
estávamos e estiveram falando, porque os víamos e ou-
víamos. N ão permitiu Nosso Senhor ·que nos atacas-
sem, pois se tal fizessem não ficaria ninguem. Assim
temos por certo que Nosso Senhor os cegou, para que
não nos vissem. E sti vemos <lesle 111odo até raiar o dia,
quando o Capitão mandou qtte começássemos a caminhar.
Aqui percebemos que estávamos não muito longe do
mar, porque chegava o infl uxo da maré, do que não pou-
co nos alegrámos, por saber que já n5.o podíamos deixar
de chegar ao rnar. Começando a caminhar, <laí a um
pouco descobrimo um braço de um rio não muito gran-
de, pelo qual vimos sair dois esquadrões de pirogas, com
grande grita e alar ido, e cada esquadrão se dirigiu para
um elos bergantins, começando a o fender-nos e lutar como
(28) E ' bem p rova vel que esse pássaro que os companheiros
de O rellana sempre ouviam nas prox imidades <los povoados, com
esse 1ti, fosse o jacamim, que é representado no Amazonas por seis
espécies, todas facilmen te domesticaveis e criadas pt>los índios como
d ,;rimbabos. O não terem mais os e, panhois ouvido o seu canto
do Tapaj ó.s para baixo corrobora esta suposição, pois está de acordo
com a distribuição geográfica dos jacarnins brasileiros.
72 CARVAJAL, RoJAs E AcuN'A

cães encarniçados. Se não fossem as varandas que


atrás tínhamos construído, sairiamos desta escaramuça
bem dizimados. Mas com esta defesa e com o dano que
nosso balhesteiros e arcabuzeiros lhes faziam, pudemos
defender-nos com a ajuda de Nosso Senhor. Mas afinal
não escapámos sem dano, porque nos mataram outro com-
panheiro, chamado Garcia de Sório, natural de Logoro-
nho. Na verdade não entron a flecha meio dedo, mas
como trazia peçonha, não durnu 24 horas, e deu a alma
a Nosso Senhor.
Fomos pelejando dessa maneira desde que amanhe-
ceu até depois das dez horas, que não nos deram um mo-
mento de folga, antes cada hora havia mais gente, tanta
que o rio andava coalhado de pirogas, isto porque está-
vamos em terra muito·povoada, de um senhor que se cha-
mava N urandaluguaburabara. Havia sobre o barranco
cópia de gente, olhando a guaçabara. A medida que nos
iam seguindo, iam ape; tando u cerco, e já estavam muito
assinalados com os tiros dos arcabuzes, que foram parte
para que aquela gente endiabrada nos deixasse. Um foi
dado pelo Alferes, que matou com um tiro a dois índios, e
com o· medo do estrondo mui tos caíram nágua, não esca-
pando nenhum, porque foram todos mortos, dos hergan-
tins; o outro tiro foi dado por um biscainho chamado
Perucho. Foi este coisa muito de ver, e por isso os
índios nos deixaram, fugindo sem socorrer aos que tinham
caído nágua, e dos quais, como já disse, nenhum escapou.
Acabado isto, mandou o Capitão que atravessássemos
para a margem esquerda do rio, para fugir <lo povoado
que aparecia, e assim se fez. Fomos caminhando por esse
lado algumas léguas, por terra muito ;boa, não existindo
nenhuma povoação ri beirinha, parecendo que estavam
todas terra a dentro, como depois soubemos ser o caso.
Fomos assim costeando : vimos povoações onde não nos
DESCOBRIMENTOS DO Rro DAS AMAZONAS 73

podíamos aproveitar delas, que mais pareciam fortalezas


no alto de morros, a umas duas ou tres léguas <lo rio.
Não soubemos quern era o senhor que dominava esta
terra, dizendo-nos apenas o índio qu~ naquelas fortale-
zas r esi stiam, qua ndo lhes faziam guerra.
Contínuando-se a viagem, mandou o Capitão que
saltássemos e111 terra para descansar um pouco e ver a
disposição daquela terra. que tanto agradava às nossas
vistas. Assim parámos dias nesse pouso, de onde o Ca-
pitão mandou que se fosse terra a dentro uma légua para
ver e saber que terra era. Foram e 11ão caminharam uma
légua, quando ton1z,ram riara dizer como a terra ia sem-
pre melhorando, que era toda de montes e campinas, apa-
recendo muito rasto de gente que vin ha por ali à caça,
não sendo prudente passar adiante, com o que concordou
o Capitão.
Aqui começámos a deixar a boa terra de campos e
terras altas, entran do numa terra baixa, de muitas ilhas,
embora não tào povoadas C011JO as de cima. Deixou O
Capitão a terra firme, metendo-se entre as ilhas, pelas
quais foi caminhando. tomando <lc comer onde víamos
qne o podíamos fazer sem dano. E como as ilhas eram
muitas e intdo grandf's, nunca pudemos voltar a tomar
terra firme de um e outro lado até ao mar. Caminhá-
mos entre tais ilhas 11mas duzentas léguas, por entre as
quais, e aínda umas cem mais, sobe a maré com muita
fúria, havendo pois trezentas léguas de maré e mil e qui-
nh entas sem ela, de modo que podemos contar por este
rio, desde o ponto de oude sairnos até ao 111ar mil e oito-
centas léguas , antes para mais que para menos.
Indo qaminhando por nosso acostumado caminho,
como íamos muito necessitados e em penúria, fomos to-
mar uma aldeia que estava em um esteiro. Na hora de
preamar mandou o Capitão para lá dirigir o bcrgantim
grande, acertou em tomar bem o porto, e os companhei-
74 CARVAJAL, RoJAS E AcuNA

ros saltaram em terra. O menor não viu um pau que


estava coberto pela água, e deu tal golpe que uma tábua
se fez em pedaços e o barco anegou. Vimo-nos em gran-
díssima apertura, como em todo o rio não tivemos maior ,
e pensámos morrer todos, pois de todos os lados nos per-
seguia a sorte. Quando os nossos companheiros salta-
ram em terra, deram nos índios e os fizeram fugir, e
crendo que estavam seguros começaram a recolher a co-
mida. Os índios, como eram muitos, voltaram sobre eles
e de tal modo os atacaram que os fizeram recuar para
onde estavam os bergantins, com os índios em sua per-
seguição. Pois nos bergantins pouca segurança tinham,
porque o grande estava em seco, por haver baixado a
maré, e o pequeno cheio dagua. Assim estávamos sem
ter outro remédio senão o auxílio de Deus e o de nossas
mãos, que era o que nos havia de valer para tirar da neces-
sidade em que estávamos. (29 )
Mandou o Capitão di vidir a gente, metade a lutar
com os índios e a outra metade a calafetar o bergant im
pequeno. Ordenou que o bcrgantim grande se puzesse
em alto, de modo que flu tuasse, nele ficando somente o
Capitão com os dois religiosos que vínhamos em sua
companhia, e outro companheiro para guardar o dito be r-
gant ím, defendendo-o do s índios pelo lado do rio. Assim
estávamos todos, de maneira que tínhamos guerra por
terra e a sorte pela agua. Prouve a Nosso Senhor Jesus
Cristo ajudar-nos e favorecer-nos como sempre fez em
toda esta viagem, trazendo-nos como gente perdida, sem
saber aonde estávamos nem ao nde iamas, nem o que havia
de ser de nós.
Aqui se conheceu muito particularmente que usou
Deus de sua misericórdia, pois sem que ninguem comprcen-

(29) Embora Carvaja! sempre fale em bergantim grande ,


be:rgantim pequeno, sabe-se por out ras relações que ao bergantim
g rande tinham dado o nome de Vit ória e ao menor o de S . Pedro.
DEscoBRIMENTos Do Rro DAS AMAZONAS 75

desse como fez a mercê divina e com sua imensa bondade


e providência se remed iou e socorreu, de modo que se
calafetou e se poz uma tábua no bergantim. Ao mesmo
tempo se manteve a gente de guerra, não deixando de
pelejar durante as tres horas gastas na obra ela nau.
0' imenso e soberano Deus, quantas vezes nos vimos
em transes da agonia, tão perto da morte que, sem a tua
misericórdia, era impossível alcançar forças nem conse-
lho dos vivos para ficar com as vidas!
Tirámos desta aldeia alguma comida, e veio tão justo
o dia com a necessidade, 'que a noite cerrada e o fim do
nosso embarque chegaram juntos. Esta noite dormimos
nos bergantins, no meio do rio. No dia seguinte apor-
támos em um monte, onde concertámos o bergantim pe-
queno, d~ modo que pudesse navegar, levando nisso cer-
ca de 18 dias, tornando-se a fazer cravos, nos quais de
novo os nossos companheiros não trabalharam pouco.
Mas havia muita falta ele alimento. Comíamos o milho
por grãos contados. E foi assim que um dia, pela tar-
de, viu-se que vinha pelo rio uma anta morta:, cio tama-
nho d e uma mula, mandando o Capitão que alguns com-
panhei ros a trouxessem, indo buscá-la em uma canoa.
Trouxeram-na e foi repartida por todos, de modo que a
cada qual lhe coube o que comer para cinco ou seis dias,
que não foi pequeno, mas muito remédio para todos.
Esta anta acabava de morrer, porque estava quente e não
t1·azia nenhuma ferida.
Acabado de concertar o bergantim e feitos os cra-
vos para concerto do grande, partimos desse pouso e
fomos caminhando em busca de praia ou lugar onde o
pudéssemos tirar e concertar o necessário. No di a de
São Salvador, que é a Transfiguração de Nosso R eden-
tor J esus Cristo ( 30), encontrámos a praia que buscá-
(30) Comenta Toribio de Medina que a partir de 25 de junho
a cronologia da viagem se toma difícil, porque Carvajal "se limita
de ordinário a dizer há alguns dias". Aqui ele dá uma data pr e-
76 CARVAJAL, R oJAS E AcuNA

vamos, aonde se reformaram os dois bergantins. Fize-


ram -se os cabos com ervas e vel as com as mantas em
que dormíamos, e lhes puzeram os mastros. Demorou-
se nesta obra quatorze dias, de contínua e ordinária 11eni-
tência, pela muita fome e pouca comida que havia, pois
só se comia o que se mariscava à beira dúgua, que eram
uns caracois e uns caranguejos vermelhinhos, do tama-
nho de rans. (31). Metade dos companheiros ia a esse
afan e a outra metade ficava trabalhando. Deste modo
e com esta di ficuldade concluímos a obra, com grande
alegria para os nossos companheiros.
Daí saimos no <lia oito do mês ele agosto, hem ou
mal providos, segundo as nossas possibilidades, pois nos
faltavam rn nitas coisas ele que carecíamos. Mas como
estávamos em lttgar onclê não as podíamos obter, passá-
vamos os nossos trabalhos como melhor podíamos. F o-
mos à vela, guardando a maré, bordejando de um e outro
lado, sendo muito largo o r io, emhora fôssemos entre
ilhas, pois não estávamos em pequeno perigo qnanclo es-
perávamos a maré. Como não tínhamos âncoras, está-
vamos amarrados a umas pedras. Mantínhamo-nos tão
mal que nos sucedia muitas vezes garrar e voltar rio
acima em uma hora mais do que tínhamos andado no dia
todo. Quiz nosso Deus, não olhando para os nossos pe-
cados, tirar-nos destes perigos e faze r-nos tantas mercês
que não permitiu que morrêssemos de fome nem pade-
cêssemos naufrágio, do qual estivemos muito perto mui-
tas vezes, já todos nágua e pedindo a Dens misericórdia.

cisa, mas que não concorda com o seu relatório. A festa da Trans-
figuração de N. S. Jesus Cristo passa a seis de agosto. Diz ele
que chegaram a essa praia no dia da Transfiguração, que aí esti-
veram quatorze dias e que tornaram a partir a oito de agosto.
Uma das duas datas é, portanto, errada.
(31) Ainda aqui não é passivei ter a menor idéia sobre esses
caracois e ca ranguejos vermelhinhos, do tamanho de rans.
D ESCOBRIMENTOS DO RIO DA S AMAZONAS 77

E pelas vezes que abalroámos, pode-se crer que Deus


com seu poder absoluto nos quiz livrar para que nos
cn1en<lássemos ou para outro mistério q,·e Sua Divina
Magesta<le tinha guar<la<lo e que nós os homens não al-
cançamos.
Fomos caminhando continuamente por sítios povoa-
dos, onde nos provemos ele alguma comida, embora pou-
ca., porque os índios a tinham retido, mas encontrúmos
algumas raizes, chamadas inhames, que a não encontrá-las
todos morreríamos de fome.
Em todas estas aldeias nos esperavam os índios sem
armas, porque é gente muito mansa e nos davam sinais
de que tindam visto cri$tãos. Estes índios estão na boca
do rio por onde saímos e onde tomámos úgua, cada qual
um cântaro, e a uns meio almude ele milho torrado, a ou-
tros menos, e a ontros raízes, de modo que assim nos
puzemos em condições ele navegar pelo mar aonde a ven-
tura nos g11iasse e lançasse, porque não tínhamos piloto,
nem agulha, nem carta de navegar , e nem sabíamos por
que parte e qoe ponto nos dirigirmos.
A todas estas coisas supriu nosso mestre e redentor
J esus Cristo. ao qual tínhamos por verdadeiro piloto e
guia, confiando em sua Sacratíssima Magestade, que E le
l!OS levaria a terra de cristãos.
Toda gente que há nesta parte do rio é gente de
mu ito en tendimento e engenho, pelo que vimos e pare-
ciam por todas as obras que fazem, tanto de escultura
como desenhos e pinturas de todas as côres, dos mais
vivos tons, que é coisa maravilhosa de ver.
Saímos da boca deste rio por entre duas ilhas, se-
paradas uma da outra por quatro léguas de largura do
rio, e o conjun to, como vimos acima , terá de ponta a
ponta mais ele cincoenta léguas, entrando a água doce
pelo mar mais de vinte e cinco léguas. Cresce e min-
gua seis ou sete braças.
78 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

Saímos aos vi nte e seis dias do mês de agosto, dia de


São Luiz, e tivemos tão bom tempo, que nunca, nem pelo
rio nem pelo mar, tivemos aguaceiros, o que não foi pe-
queno milagre que Nosso Senhor Deus obrou conosco.
Começámos a caminhar com os doi s bergantins,
umas vezes à vista de terra. No dia da Degolação de
São João Batista, (32) à noite, se afastou um bcrgan-
tim do outro, ele tal modo que nunca mais nos pudemos
ver, e pensávamos que se tivessem perdido. Depois ele
nove <lias de navegação, meteram-nos os nossos pecados
no golfo de Pária, pensando que era aquele o nosso ca-
minho, e quando nos encontrámos lá dentro quizemos
tornar a sair para o mar. Foi tão dificultosa a saída,
que nisto demorámos sete dias, durante os quais os nossos
companheiros nunca tiraram os remos das mãos, e todos
estes sete dias não comemos senão umas frutas pareci-
das com ameixas a que chamam fogos. Assim com mui-
to trabalho saímos pela boca do dragão, que tal se pode
chamar para nós, porque por pouco não ficámos lá
dentro.
Saímos desse cárcere; fomos caminhando dois dias
pela costa adiante, ao cabo dos quai s, sem saber onde
estávamos, nem aonde íamos, nem o qu e havia de ser
ele nós, aportámos na ilha de Cnbágua e cidade ele Nova
Cadiz, onde encontrámos nossa companhia e o pequeno
hergantim, que chegara dois dias antes, porque eles che-
garam a nove de setembro e nós a onze, no bergantirn
grande, onde vinha o Capitão. Tanta foi a alegria que
uns e outros recebemos, como não posso descrever, pois
eles nos tinham por perdidos e nós a eles.
De uma coisa estou informado e certo: que tanto a
eles como a nós fez Deus gran des mercês e muito assi-
naladas, em trazer-nos por este tempo, que em outro os

(32) A 29 de Agosto.
DESCOBRIMENTOS oo RIO DAS AMAZON AS 79

troncos que andam pela costa não nos deixariam nave-


gar, porque é a costa mais perigosa que já se viu.
Fomos tão bem recebidos dos habitantes desta cida-
de como se fôssemos seus filhos, por<.J.U6 nos abrigaram
e nos deram tudo o que necessitávamos.
Desta ilha resolveu o Capitão ir dar contas a Sua
Magestade deste novo e grande descobrimento, o qual
temos que é o Maranon, porque ha desde a foz até à ilha
d e Cubagua 450 léguas, porque assim o vimos depois
que chegámos. Em toda a costa, embora haja muitos
rios, são petiuenos.
Eu, frei Gaspar de Carvajal, o menor dos religiosos
da Ordem de nosso religioso Pai São Domingos, quiz
relatar os trabalhos e sucessos do nosso caminho e nave-
gação, tanto para dizer a verdade cm toda esta narrati va,
como para tirar motivo a que muitos queiram contar
esta nossa peregrinação ao contrário do qne vimos e
so fremos. E como a prodigalidade gera fastio, assim,
superficial e sumariamente contei o que aconteceu ao
Capitão Francisco de Orellana e aos f idalgos de sua com-
panhia e companheiros que saímos com ele do real de
Gonçalo Pizarro, irmão de D. Francisco Pizarro, marquez
e governador de Perú.
Seja Deus louvado. Amen.

6
DESCOBRIMENTO
DO
RIO DAS AMAZONAS
E
SUAS DILATADAS
PROVINCIAS (*)

(*) Juntamos a_s notas sobre as


duas crônicas da viagem de Pedro T ei-
xeira porque em muitos pontos são idên-
ticas, referindo-se aos mesmos persona-
gens, tratando de igual modo dos ad-
dentes e riquezas do rio, dos costumes
dos índios, e a de Acuíia transcrevendo
mais de um trecho da Relação.
MAPA DO RIO D,\:-, ,\~l.\Z1)KAS
Atríbu1<lo ao I'iloto <la ,.rma,la ile Pc<lro 'I cíxe'ra
Ao Excelentíssimo Sr. D. Garcia Mendez de
Haro, conde de Castillo, dos Conselhos de
Estado e Guerra de Sua Magestade, genti-
Ihomem de sua Câmara e do seu Conselho
e Presidente no Real das Indias.

EXCMO. SENHOR :
Chegou a minhas mãos, pela via de Quito, a relação
e planta do rio das Amazonas, tão dilatado q ue, segun-
do nele se vê, continua a sua corrente por mil e seiscen-
tas léguas, desembocando nas províncias do Brasil; e
juntamente a intenção dos portuguêses continuarem esta
navegação à s províncias c.Je Quito, aonde chegaram al-
guns. Fiz reparo, Senhor, nos inconvenientes que se po-
deriam seguir com os que se experimentam no rio Ori-
noco e outros navegáveis das Indias, tendo tanta diver-
sidade de nações, tão inimigas <la monarquia de Sua
Magestade, infestado as suas costas. E o escrevi ao
Vice-rei <le Lima e ao 1)residente da Audiência de Quito
a Sua Magestade, cuja carta junto por cópia a esta re-
lação. E foi tal minha advertência, que correspondeu
com uma real cédula sobre a matéria, que encontrei de
Sua Magestade, mandada observar pelo conde de Chin-
chon, como ele e o presidente me escreveram. Ainda
que o atrativo da fertilidade do desc.oberto fosse maiór,
comparada com o dano, não é apetecível. Dedico a V.
Excia. esta relação como ministro superior da América
e como tão capaz, pelo talento que Deus se serviu de
84 CARVAJAL, RoJ As E AcuNA

dar-lhe, d e aplicar remédio igual ao estado presente da


Monarquia, perturbada pela cegueira da ambição huma-
na, tão ávida nestas partes. O curioso do assunto des-
culpará o incômodo que dou a V. Excia. a quem Deus
guarde os fel izes anos que desejo e hei mistér. Santa
Fé, 23 de junho de 1639. D. Martin de Saavedra y
Guzman.
Carta que D. Martin de Saavedra y Guzman,
cavaleiro da ordem de Calatrava, do Con-
selho de S. M., seu Governador e capitão-
general do Novo Reino de Granada e pre-
sidente da real Audiência e Chancelaria que
nele reside, escreveu a S. M. sobre os par-
ticulares do descobrimento e navegação do
rio das Amazonas.

SENHOR:
Embora, pelo ofício em que estou servindo a V. M.,
não me toque o que lhe suplico mande ver nesta, eu, por
minhas ob rigações em seu real serviço e pelo contí nuo
desvelo que por elas tenho e em que vivo, não pude dei-
xar de representar o que me pareceu do descobrimento
que .se fez para a navegação do rio das Amazonas ou
Maranhão, desde o g-overno dos Q ueijos e da Canela,
perto da cidade de Quito, até desembocar no mar e pa-
ragem do Brasil, com g rande 'quantidade de ilhas em sua
entrada, povoadas por diversas nações, algumas de qua-
tro e seis léguas de circuito. As circunstâncias deste
descobrimento e as utilidades que se prometem naquela
província, diz a Relação que chegou a minhas mãos e
remeto a V . M., e outras cartas que vi de particulares e
quasi concordam todas na substância. Confesso a V. M.
que, vendo o cuidado que o rio Arinoco dá neste reino
e as populações que na sua boca possui o ini migo, que
86 CARVAJAL, RoJAS E AcuNA

navegou quarenta léguas rio acima a saquear e queimar


a cidade de S. Tomé da Guiana, sem haver nesses postos
mais riqueza que o tabaco e paus de tinta, deu-me cui-
dado este descobrimento. Pois é çerto que o inimigo já
terá notícias dele, sendo aquela a paragem onde de ordi-
nário assiste com armadas e urcas, ocupando posto e sen-
do tão forte o de Pernambuco. Menos ocasião e cami-
nhos quizera ver a'bertos para penetrar no coração desta
terra firme, que se acha tão desarmada e nela se vive
com tão pouca vigilância e cuidado. Com o socorro que
enviei a S. Tomé e á Trindade, não ficaram na cidade
nem vinte arcabuzes e poucos menos em sua comarca,
descuido digno <le reparo em tão dilatadas províncias.
Mais descansada folgara · eu em ver a real fazenda de
V. M. para descobrimentos e conquistas; menos atentos
os êmulos da Monarquia em não perder as ocasiões de
divertí-la, sendo ponto de mais reparo no estado presen-
te a conservação e que se reparem os danos que o tempo
e o menoscabo dos índios vão causando, bem como a na-
turesa dos espanhois que passam para estes reinos, tanto
nos gastos que fazem como no pouco que para eles tra-
balham, e a falta de armas e munições que se experi-
menta. Escrevi ao conde de Chinchon, logo que soube
<la nova, como a quem toca a disposição do que ali se
há de obrar, qual era a minha opinião, que em substância
é parte do que represento a V. M., cuj a Católica e Real
Pessoa guarde Deus como precisa a Cristandade. Santa
Fé, 29 de maio de 1939.
Depois de haver escrito a V. M., revendo algumas
cédulas, achei uma que me tira o escrúpulo com que dava
a V. M. este aviso, e na qual se ordenou ao marquez de
Cafíete que impedisse estes descolirimentos, em vista dos
inconvenientes que havia em permitir aos portuguêses o
livre comércio. Dela remeto cópia a V. M. e também a
DESCOBRIMENTOS DO Rro DAS AMAZONAS 87

remeterei ao conde de Chinchon e Presidente de Quito,


para o caso de que não tenham notícia dela. D. Martin
de Saavedra y Guzman. ( 1)

( 1) D. Martin de Saavedra y Guzman, cavaleiro de Cala-


trava, foi o nono presidente gover nador e capitão geral do novo
Reino de Granada, s·e ndo recebido em 5 de outubro de 1637.
Era natural de Córdoba. Começou a servir ao r ei como sol-
dado, em Barcelona, em 1614. Mor reu em Madrid em 1654.
Cedula ao vice-rei cio Perú para que não permita
que se comumque ou passe que o governa-
dor de Santa Cruz descobri u para o Brasil.
- El Rei.

Marquez de Cafiete, parente, meu vice-rei e gover-


nador e capitão general das províncias do P erú, ou à
pessoa ou pessoas a cujo cargo esteja o seu governo.
Assim por cartas que me escrevestes, como por ou-
tras que recebi de diferentes pessoas dessas províncias,
soube que D. Lourenço Suarez de Figueroa, governa-
do r de Santa Cruz, passou tão adiante no descobrimen-
to daquelas terras, que chegou aos confin s do Brasil, e
ainda diz que se poderá ter comércio com elas, por have r
caminhos dispostos e fáceis. E porque isto parece um
caso de grande consideração, por muitos inconvenientes
que se apr esentam e entendo que poderiam resultar em
abrir-se esta porta, pois além de por ali poderem entrar
os portuguêscs e meter suas mercadorias e escravos, tão
sem poder resistir-lhes, em terras tão largas, sendo aque-
las tão pobres e essas tão ricas e prósperas , não se pode
duvidar que todos queiram entrar a desfrutá-las, dei-
xando desamparadas as costas e aind a atraindo aos ini-
migos a comodidade daquela passagem ( além de que se
pode e deve evitar que estas nações se juntem, procuran-
do que cada qual se conserve no que descobriu e possui);
or deno que atenteis muito nisto, tendo concordado e con-
versado com pessoas mtii zelosas e inteligentes as razões
DESCOBRIMENTOS DO Rrn DAS AMAZONAS 89

propostas e as mais que se oferecerem, tanto no esptn-


tual como em matéria de Estado e bom governo, me
envieis relação muito particular que pareça conveniente
e do que se deve fazer para impedir essa passagem, dei-
xando aos portuguêses na ignorância em que até agora
se acham, para que o não intentem ; e no entretanto olhai
muito por aquilo, sem dar lugar a que se comuniquem
as terras por alí, nem se prossiga o descobrimento. E logo
me avisarei cio remédio que se pode pôr no que já está
feito. Datado de Madrid, a 26 de junho de 1595. Eu,
El-Rei. Por mandado de el Rei nosso Senhor. João de
!barra.
Relação do descobrimento do Rio das Amazonas,
hoje S. Francisco de Quito (2) e declara-
ção do mapa onde está pintado.

§ 1.º
A cidade de S. Francisco de Quito nos reinos do
Perú, não só famosa por sua situação e por estar edi-
ficada sobre montes, na mais alta cordilheira que corre
por todo êste novo orbe, como tambem por cabeça de
sua provinda e assento da real Audiência, é hoje, por
(2) Diz F r. Laureano da Cruz o seguinte: "Despachada
pelo governador do Maranhão a armada que deixámos apres-
tando, com 40 canoas de bom tamanho, 1200 indios remeiros
e de combafe, sessenta e tantos portuguêses e mais quatro caste-
lhanos dos seis que desceram com os religiosos, tudo a cargo
do general Pedro Teixeira, pessoa de toda satisfação, levan.do
por guia a Deus Nosso Senhor e ao irmão fr. Domingo Brieva,
e por cap-elão ao P. fr. Agostinho das Chagas, filh o de uma
das provi ncias de Nosso Pai S. F rancisco de Portugal e Pre-
sidente do convento de Santo A ntonio do Grão Pará ; pre-
paradas todas as coisas necessárias pa ra tão comprida viagem,
e reunidos na praça do Curupá, que é a última que tem aquele
Estado e está mais próxima da boca do nosso grande rio, -
que já não tem outro nome senão o que os portuguêses com
muita razão lhe puzeram de São Francisco de Quito, por o terem
descoberto e navegado os religiosos filhos de Nosso Pai S.
Francisco e da provincia de Quito, e já daqui em diante não
o chamaremos de outra maneira, pois tão justamente lhe
convém o nome de rio de S. Francisco de Quito, - aos 17
dias de outubro de 1637 saiu a armada por tuguêsa da praça
de Curupá".
DESCOBRIMENTOS no Rro DAS AMAZONAS 91

eleição do céu, das mais felizes ciuades do mundo. Nova


Menfis que Deus escolheu por metrópole de um dilatado
império, pelo que se descobriu nas vastíssimas regiões
das Amazonas. Por tê-lo sob a sua jurr:;dição e gover-
no desta cidade famosa, hoje chave da nova Cristandade,
é a que designa os mi nistros evangélicos que levam a fé
de Cristo por aq uelas extensas províncias, submetendo
ás chaves de S. Pedro mais almas que as que até agora,
na Am érica, reconhecem a Deus. É a que há de dar
capi tães valorosos que submetam todas essas províncias
e os governadores que as dirijam.
Prova ,de sua felicidade e de que, senhora, há de
submeter a todas as nações agora descobertas, e que cor-
rendo o rio grande das Amazonas mais de 2.500 léguas,
nenhuma outra cidade das Indi as está próxima, pois
chegaria a bei jar seus muros se o não impedissem áspe-
ras montanhas.
Mas chegará perto; o prinápal cn1barcadouro do
rio dista da cidade de Quito oito dias de caminho, curta
distância em regiões tão extensas.
Bem se poderia gloriar Babilônia dos seus muros,
Ninive da sua grandeza, Atenas das suas letras, Cons-
tantinopla do seu imperio, que Quito as vence por chave
da Cristandade e por conquistadora elo Mundo. A esta
cidade, pois, pertence o descobrimento do rio grande de
que falamos agora.

§ 2.º

O rio das Amazonas, hoje S. Francisco de Quito,


corre do Poente para Oriente, isto é, como diz o nave-
gante. de Oeste para Léste.
Desde a providencia dos Queixos, no reino de Quito,
até desaguar no mar do Norte, faz sempre o seu curso
92 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

vizinho á Equinocial, da banda do sul, por dois graus,


3, 4, 5, 6 e dois terços, na maior altura.
Tem de extensão, desde a dita província dos Quei-
xos até ao mar, onde desagua por uma boca, 1.600 léguas
castelhanas; isto é, pela margem que se aproxima da
equinocial, porque pela margem oposta serão mais léguas,
por ter mais voltas e seios o rin, que caminha todo ele
serpeando por tão longo espaço. E assim, no mapa que
vai com esta Relação, se entende por longitude pela mar-
gem que está vizinha á Equinocial.

§ 3.º

Ignora-se qual seja a sua extensão desde a sua nas-


cente até chegar ao descobrimento da província dos
Queixos. Ha quem pense que a sua origem está nas
províncias do Cuzco e sua serras ; outros dizem ·que per-
to do Potosi. A causa desta variedade é porque em seus
princípios é muito sinuoso e dividido em vários braços e
não se conhece o principio ao qual se juntam os outros
rios. Se tem sua origem ou princípio no Cuzco ou
Potosi, será toda sua extensão, desde a nascente até à
foz, de mais de 2. SOO léguas.
De largura é muito variavel no descoberto, porque
por umas partes se espraia uma légua, por outras duas,
por outras tres, e pela boca, quando chega a desaguar
no mar, pagando-lhe tributo, parece que quer dissimular
a sua vassalagem e não converter-se inferior ao 111ar, e
se convflrte em um novo Oceano, espraiando-se 84 léguas.
O ponto mais estreito onde este rio recolhe as suas
aguas, tem meia légua, na altura de llois graus e dois
terços, lugar que sem dúvi da previu a Providência divina,
estreitando este dilatado mar ( chamemo-lo assim), dan-
DESCOBRIMENTOS DO RIO DAS AMAZONAS 93

do nome de rio á congregação de suas aguas. Dissímulo


que usou para que nessa angustura se pudesse fabricar
uma fortaleza, em sitio que impeça a passagem a qual-
quer armada inimiga, mesmo que venl'la muito pode-
rosa. (3)
Dista este estreito 300 léguas do mar onde desagua
o rio, e da foz se pode dar aviso ao forte (se ali se cons-
truisse) com canoas e embarcações pequenas, da vinda
dos inimigos, em 10 ou 12 dias.

§ 4.º

A profund idade do rio é grande, como se verá no


mapa pelos números que estão assinalados dentro do rio.
Em alguns pontos não se a<:ha fundo desde a boca, quan-
do desagua 110 mar, subindo até ao rio Negro, distância
de quasi 600 léguas.
O ponto mais razo é de 40 braças, número ·que o
mapa assinala até ao rio Negro, não porque em todos os
pontos tenha 40 hraças de profundidade, pois que são
muitas mais, e assinalam-se estas para significar a sua
profundidade e dar a entender que o mais razo será de
40 braças. Assim, por toda esta distância podem nave-
gar baixeis de alto bordo, como já o tentaram navegar
navios inimigos, desejosos de descobrí-lo; navegação que
a estreiteza elo rio não impede, pois, como já dissemos,
é muito espraiado e partido e participa das brisas do mar.
Depois da sua junção com o rio Negro, baixa muito
o das Amazonas, subindo para o Ocidente, e tem de fundo
as braças que os números do rio assinalam.

(3) Veja-se o número XXI da narração de Acufia -


Estreiteza e fundo do rio.
94 CARVAJAL, RoJAs E AcUNA

§ S.º

T odo este rio está semeado de ilhas, urnas grandes,


pequenas outras, em tal número que não se podem con-
tar, de modo que não se navega distância de uma légua
sem encontrar ilhas. O mapa as assinala com umas
Oes verdes. As maiores ilhas deste rio são de 4 ou 5
léguas de comprimento, outras de 3, outras de duas, ou-
tras de uma e outras muito pequenas. E a estas banha
o rio, por ocasião da cheia, por grandes que sejam.
Os índios habitam estas grandes em diferentes po-
voações e aldeias. Cultivam as pequenas, aproveitando-
as para semear iucas e- milho em grande quantidade. E
para que com as avenidas e cheias não se perca o fruto
e o trabalho da semeadura, usam da seguinte artimanha:
Cavam na terra uns silos ou covas muito profundas
e ali põem a iuca e a tapam muito bem, quando as aguas
banham a ilha; e depois que se retiram e a terra fica a
descdberto, a tir~m e comem, porque não apodreceu com
a humidade.
Sempre a necessidade foi inventora, e se ensinou à
formiga a fabricar celeiros nas entranhas da terra, para
g uardar seu grão e alimento, não é muito que desse
manha ao índio bárbaro para que prevenisse seu dano e
guardasse seu sustento. Pois não é certo que a Providên-
cia divina cuida mais dos homens que dos pássaros? ( 4)

( 4) Cristoba l de Acufía no número XXII de sua narra-


tiva segue a mesma ordem deste § 5.0 e tr ansc rev e, quasi
ipsis litteris, a comparação entre os cuidados dos índios e as
formigas.
ÜESCOflRIM!WTOS DO RIO DAS AMAZONAS 95

§ 6.º

Desaguam neste rio, na famosa dlstância referida


de 1.600 léguas, muitos outros rios e muito caudalosos
os que vem pagar-lhe o tribulo das suas correntes na
primeiras trezentas leguas. Subindo até ao fim das 1.600
descobertas, são também inúmeros os rios que desaguam.
O mapa assinala os principais com os seus nomes, nas
duas margens do r io.
Os mais caudalosos são tres, dos quais dois pela
banda do sul. A um chamam o rio da },,fodcira, pela
muita que ordináriamente arrasta, tendo de boca, ao de-
saguai", Iégiia e meia; ao outro chamám Timguaragua
( S) e tem de boca uma légua. Da band'1 do norte está
um rio grandíssimo, com légua e meia de boca e as águas
tão negras, que se disting11em das outras. efeito que deu
nome ao rio chamando-o Negro .(6)

(5) O Tunguragua é o q ue hoje se considera como a


verdadeira continuação do Amazonas. A ele se refore Ber-
nardo Berredo nestes termos: "Pela mesma handa do sul,
oitenta léguas mais abaixo elo rio Curaray, desemboca no das
Amazonas o de Tunguragua, que desce <la provincia dos
Maynas com o nome usurpado de Ma ranhão; e arrogando no
título a própria magestade, até se faria respeitar <leste sendo
seu leg ítimo soberano, se detendo ele algumas légua s antes o
ordinário curso, lhe não deixasse politicamente consumi r o
grande cabedal das suas aguas, de que se alime nta tanta vai:1-
gló ria; porque -empobrecido na profusão do largo ter ritório
de uma légua, confessa logo vassalagem ao Maranhão, 0 11
Amazonas, paga ndo -lhe também, para merecer o perdão da
sua rebe ldia, além do título comu m, o de muitos e regalado~
peixes ele várias qua licla<les ".
(6) O nome de Rio Negro, corno vimos pela crônica de
Carvajal, for a posto po r Orellana ; era o primeiro desta série
de rios Negro e Preto da nossa corografia, todos des ig nado,
pela côr sombria das suas aguas (nen h um, porém, de aguas
tão escuras), devida ao excesso de humus.

7
96 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

O piloto mór, de quem depois falaremos, tendo na-


vegado dois ou tres dias por este rio Negro, disse que,
segundo as notícias que poude obter de alguns inclios,
nasce este rio em umas se rras vizinhas do N ovo Reino
de Granada e que em sua origem se divide em dois bra-
ços: um deles, com o nome de rio Negro, desagua de-
pois de longo curso, no das Amazonas; o outro vem a
desaguar no mar do Norte, à vista da ilha da Trindade,
e pensam que este rio sej a o famoso Orinoco. (7)
Os demais rios que, perdendo os seus nomes, mor-
rem no das Amazonas, são comuns e quasi iguais. O
mapa assinala os seus nomes nas bocas dos mesmos, mar-
cando a distancia que há ele rio a rio na margem, quando
desaguam no rio granc!e,

§ 7.º
E' este o famoso rio das Amazonas que corre e 'ba-
nha as terras mais fe rteis e povoadas que possui o reino
do P erú e sem usar de hipérboles, o podemos qualificar
pelo maior e mais célebre rio do Orbe. Porque se o
Ganges rega toda a India e por caudaloso escurece o mar
quando nele desagua, fazendo com que se chame Sinus
Gangeticus e· por outro nome golfo de Bengala; se o
E ufrates, como rio caudaloso da Síria e parte da Pérsia
é a delicia daqueles reinos; se o Nilo rega a maior parte
da África, fecundando-a com as suas correntes, o rio
das Amazonas rega extensos reinos, fecunda mais veigas,

(7) Vemos que a noção de uma comunicação entre as


bacias do Amazonas •e do Orinoco era já corrente entre os
índios, que certamente amiude percorriam o Cassiquiare. O
Padre Acufia contesta essa noção de seu irmão de Companhia
e ainda no século passado muitos geógrafos a davam como
fantasista. . · ; ',
DESCOBRIMENTOS DO RIO DAS AMAZONAS 97

sustenta mais homens, aumenta com suas aguas a mais


caudalosos_oceanos, só lhe falta, para vencê-los em feli -
cidade, ter a sua origem no Paraíso, cqmo afirmam gra-
víssimos autores que aqueles rios tiveram.
Do Ganges dizem as histórias que nele desaguam
trinta famosos rios e que tem areia de ouro; inumera-
veis rios desaguam no <las Amazonas, que tem areia de
ouro e rega terras que atesouram inúmeras riquezas.
O Eufrates assim se chama a lctificando, como no-
tou Santo Ambrosio, porque com suas correntes alegra
os campos, de modo que os rega este ano, asseguran-
do abundante colheita para o seguinte.
Do rio das Amazonas afirmam os que o descobri-
ram, que seus campos parecem Paraísos e suas ilhas jar-
dins, e que se a arte aju dar a fecu ndidade do solo serão
paraisos e jardi ns bem tratados. (8)

§ 8.º

L ucano celebra a fel icidade da terra regada pelo


Nilo nestes versos:

Terra suis contenta banis., non indiga mercis


Aut Jovis; in solo tanta est fid11cia Nilo! (9)

Não necessitam as províncias vizinhas do rio das


Amazonas dos estranhos bens; o rio é abundante de pes-

(8) Este par ágrafo sétimo é integralmente copiado pelo


padre Ac uiía, quasi sem d iscrepância de uma vírgu la, no seu
número XVIII.
(9) "A terra satisfeita com seus bens, não se sent e
necessitada de mercadorias ou de J upiter, tal é a sua confian~a
exclusiva no Nilo " . Estes versos são do livro V I II de Pharsalia.
Eles são igualmente copiados pelo padre Acufia, no mesmo nú-
mero em que copia o parágrafo anterior.
98 CARVA JAL, RoJAs E AcuNA

ca, os montes <le caça, os ares de aves, as árvores de


fru tos, os campos de messes, a terra de minas, como
depois veremos. '
Este novo Ganges, 1:xiis, este alegre Eufrates, este
fecundo Nilo é o que Deus descobriu neste século pa ra
glória da Coroa de Espanha e para bem ele in fin itas almas.

§ 9.º

A causa d o clescohrimento foi a seguinte :


Muitas vezes houve o desejo e a inquietude de des-
cohrí-lo, tanto pelo ~11ar como pelos reinos ele Quito e
rn nca chegaram a navegá-lo todo. Os muitos que o ten-
1

taram não chegaram a cumprir os seus desejos.


Afinal o zelo pela salvação das almas poude mais
que a cobiça do ouro.
Lançando-se rio abaixo alguns religi osos em compa-
nhia de soldados espanhois, cujo caudil ho era o capitão
João tle Palácios, chegaram à provincia dos Encabelados,
muito numerosos, onde se alojaram, clesejosos os reli -
giosos de fazer a sua conversão e os espanhois de aj u-
dá-los.
D'ali , por justos motivos, voltaram a Quito alguns
dos religiosos, outros ficaram com os espanhois. Em
certo encontro que co111 eles tiveram os imlios, foi morto
o capitão J oão de Pafácios.
Achando-se sem chefe, desampararam a proví ncia,
dividindo-se em dois bandos . Alguns dos religiosos e
parte elos soldados voltaram para Quito; outros seis sol-
dados com dois religiosos leigos, chamados Fr. André de
Toledo e F r . Domingos de Brieva, deixaram-se levar pela
correnteza do rio, numa canoa, sem outra intenção, ao
0ESCOBRJ MENTOS DO RIO DAS AMAZONAS 99

que penso. mais que levados por divina inspiração e obri-


gados pela falta ele mantimentos. ( 10)

§ 10.º
Foi bem claro que Deus favorecia esta viagem, por-
que os ajudou com alguns sucessos milagrosos.
O primeiro foi que, na dú vida de (!uai a margem do
rio que seguiriam, deitaram sortes com muitos santos. es-
critos em papel e por duas veses saiu S. Jorge à mão
direi ta, que dá para as bandas do sul.
(10) Esta viagem, conhecida por Viagem dos L eigos, deu
lugar a azeda disputa entre a Companhia de Jesus e os Fran-
ciscanos sobre o mérito do descobrimento do rio das Amazonas.
Em 1641 o padre Fr. Jo,é 1.faldonado, natural de Quito e Comis-
sário geral de tod as as í ndias pela Ordem Franciscana, fez im-
pri mir em Madrid um opúsculo, contando a viagelll dos dois
irmãos leigos franciscanos, com título l?elaçõo do Desco brimento
do rio das A111a.w11,1s, po,· outra 110-me do M aranhão, feit o pela
Religião de nosso Pai S . Francisco par intermédio das Religiosos
da Província de S. F rancisco de Quilo. Para- informe da Católica
Magestade do R ei Nosso S c11hor e seu Rtal Conselho das fodi,.1s.
A esta relação de Fr. Ma!donado contestou o Provincial cios
jesuitas em Quito, cm 1643, com outra, intitul ada Rc/a.ção a.polo-
gétiw, tanto do cwtigo como do 11ovo desco/1rimcnto do ria das
Ama.zonas ou Ma.ranhão, feita pelos religiosas da Companhia. de
J crns de Quito, e 11ova 111c11/c adeantado pelos da Seráfica relig ião
da m esma. Provinria, escrita pelo padre Barnuevo.
Fr. L a u rea no da Cruz conta co mo estavam os r eligiosos
em compan hia elo Capitão J oão de Palácios na província dos
Encabelados, e com o uma imprudência desse capitão fo i causa
d o ressent imento desses índ ios, "gente tão fidalga, que nem
dos próprios pais toleram u m pipar ote". E assim resume a
viagem dos do is irmãos leigos da sua re ligião:
"Postos já a saldo e dando graça~ a Nosso Senhor, tra-
t ám os de ir para o real de Anete, por ser melho r sítio have ndo
ali casas e comida, coisa que não hav ia na ilha ( onde se
tinham refug ia do depois do ataque dos índios e morte de
Palácios) . Estávamos já de partida, quando s urgiram a lguns
100 CARVAJAL, RoJAs E A cu NA

O segundo foi que, abrindo-se a canoa, embarca-


ção pequena e velha, Fr. Domingos, religioso de reco-
nhecida virtude, a tocou com a mão, invocando o favor
divino, e a deu concertada, de sorte que puderam nave-
gar nela.
soldados com uma novi dade que me causou m uito cuidado;
e foi o caso que havia entre eles um portugu ês, chamado
Francisco Fernandes, mar inhe iro, que. dizia ter es tado no
Grão P a rá, lá na cos ta do Brasil, e que o nosso rio de N apo
sem dúvida ia sair naqu elas paragens; e q_ue, estando U,
tinha tido noticias que em meio daqueles rios estava o Eldo-
rado e a Casa d o Sol; e que se descessem por nosso rio ,
dariam naquelas grandezas ; com o que inclinou os ânimos de
algu ns audaciosos. Eu procurei o quanto pude dissuadi-los, e
para evitar os perigos a que se queriam arrojar, fiz duran te
a noite, quando tod os dormiam, que um soldado atirasse rio
abaixo uma canoa grande -que tínhamos, e assim se fez. Com
o que, no outro dia, faltando a canoa em que os soldados
queriam ir, esmoreceu um pouco a sua determinação. Mas
não parou nisto nem foi possível detê- lo s, antes, combinados
seis deles, aprontaram o utra canoa, embora peq uena , e com
os índios qu e lhes deram, se prepararam para partir. O irmão
Fr. D omin gos de Brieva e Fr. Andr é de Toledo, com melhor
espírito e mais coragem que eu, movido s pelas noticias que
lhes tinham dad o de muitas naç ões de gentios que havia em
nosso rio de Napo ou do Ma ranhã o abaixo, ach ando esta.
ocasião, nã o a quizeram perder; e aprovei tando -se de uma
cláusu la de nossa patent e na qual o R. P. Provincial ord•enava
que os r eligiosos da m issão que quizessem ir para Q uito
fossem, e os que q uizessem fic ar ficassem, com a bênç ão de
De ns -e grandes esperanças do desco brime nto daquelas nações
e s ua conversão, partiram por nosso grande rio aba ixo a 17 ele
outubro do dito ano ( 1636), véspera do eva ngelista S. L ucas,
com os seis soldados e dois índ ios na ca noa pequena.
Caminharam pois os cfois religiosos pelo grande rio N apo
ou Mc1ranhão jun to com seus companheiros e. no segundo dia
de sua navegação encont raram numa praia a canoa grande que
eu fiz lançar pelo rio aba ixo. Embarcaram nela, deixando a
outra que levavam, e prosseguiram sua viagem. Fugiram logo
os dois índios que lhes haviam dado, e só eles e bem des-
providos passaram adiante, em busca do seu descobrimento.
Já tinham caminhado os servos de Deus 200 léguas sem gente
Dr.;scoBRI MENTOS DO Rro DAS i\MAZONAS 101

O. terceiro: - chegando ao fol'te de portuguêses, do


qual depois falaremos, li vres de perigos sem conta, a
canoa afundou na praia do mar sem poder ser mais apro-
veitada, corno quem diz - até ali fui utiL e como já os
deixava e111 terra de cristãos e çom outras embarcações,
ela, por in ulil, ia a pique. ·
O quarto: - entrando em terra <le inúmeros bárba-
ros, e muitos deles car ibe¾, não não lhes fizeram mal, mas
antes lhes deram sustento para sua viagem.
O quinto: - afi rmam os soldados que Fr. Domingos,
levados pelos índios para visitar seus enfermos, invocava
sobre eles o dulcíssimo nome de J esus e com o contacto
de suas mãos os punha sãos.
Não duvido que Deus fizesse estes milagres; o que
será ele estranhar é que aqueles infieis não vissem

nenhuma (por estar em os povoados dos gentios que há por


a li afastados do r io), quando chegaram á provincia dos
Omaguas, onde foram providos de mantimentos de que iam
muito necesRita<los. Foram continuando sua viagem, r eco-
nhecendo as povoações de gen tios que iam enco n trando pelas
margens <lo nosso grande rio, e passando adiante sem estorvo
nem contradição a lguma, perto das conquistas de Portugal
(sem ter encontrado o E ldorado nem a Casa do So l) , che-
garam a uma provincia que chamamos Trapajosos, onde os
seus moradores, cubiçosos e atr evidos, despiram os pobres e
!ll'es tiraram o pouco que levavam. Desta maneira continua-
ra m a viagem, a té que, poucas léguas adiante, ao cabo de
t rês meses de navegação, chegaram a uma praça de portu-
guêscs que se chama Curupá, que é a (>rimeira de suas po-
voa ções e a que está mais per to de onde desemboca nosso
grande rio no mar. F oram a li muito bem recebidos, e o
capitão-mór <laq ueia praça, chamado J oão Pereira de Cáceres.
pessoa de m uita caridade, os fez vestir a todos e regalá-los.
E para memó ria deste descob rimento quasi milagroso daqueles
servos de Deus, mandou que se t,irasse fora dagua aquela
canoa em que tinha m vindo e a puzcssem j unto da ig reja.
Não foi passivei, embora com muita ge nte se procurasse tir á-la,
e assim fi cou naquela mesma práia onde aportaram.".
102 CARVAJAL, RoJAs E A~UNA

indicio, a meu ver claro, de que Deus quer dil atar sua fé
entre aquelas gentes.

§ 11 .°

Chegaram os religiosos e soldados, depois de muitos


dias de navegação, ao Grão Pa.l'li, povoação de portuguê-
ses, e dali passaram ao lvla.ranhão, cabeça do governo. E
resultou de sua chegada que o governador português da-
quelas províncias enviou uma armada de 47 canoas, com
general, sol dados e muitos índios, ao descobrimento certo
do rio, os quais chegaram a Q uito, como depois diremos.
Na boca do rio das Amazonas, na margem que fica
da parte do Sul, em meio grau de latitude, há uma povoa-
ção de portuguêses, que chamam a cidade do Grão Pará.
Tem esta cidade para sua defesa um castelo erguido sobre
uma penedia, na boca do rio em frente ao mar, e uma en-
seada em forma de ferradura.
O forte tem parapeitos que dão para o rio e para a
enseada, coberto de telha até à retirada das peças, para
defesa das carretas em que estão postas vinte peças de ar-
tilheria: duas de até 90 li bras de bala, 18 de oito, dez e
doze libras de bala; e na praça d'armas, embora pequena,
hà casa ele residência para o capitão e outra, separada, para
a munição, feita de pedra.
Está construido todo o for te com muralha de terra-
pleno sobre base de cantaria e com fosso; na porta há
ponte levadiça, mas tem reduto de duas portas com
troneiras.
Há dificuldade na entrada dos navios. neste porto, e
ordi náriamente esperam a maré para não tocar nos reci-
fes que fazem saliência na ponta da enseada.
DESCOBRIMENTOS DO Rrn DAS AMAZONAS 103

§ 12.0
\
Subindo o rio acima 40 léguas, há outra povoação pe-
quena de portuguêses, do lado do Sul, que chamam Camu-
tá, a qual não tem defesa nem forte.
Mais acima, a cem léguas dele, está o castelo dos por-
tuguêses, onde chegaram os dois religiosos e seis soldados,
que dissemos que desceram pelo rio. Está construida essa
fortaleza cm um lugar alto, à margem do rio, com plata-
for ma e nela ·q uatro peças de artilharia de ferro coado,
urna de quatro, outra de cinco, outra de sete e out ra de
oito libras ele bala, postas em carretas de madeira, baixas
e voltadas para o rio, com parapeitos até aos peitos.
Logo se segue a praça d'armas e uma casa de muni-
ção, oncle vive o condestavel da artilharia. Todo o sitio
está cercado por uma muralha com cimentos de pedra.
Pela parte de fora tem fosso, e na entrada ponte le-
vadiça de madeira, de modo que, levantada a ponte, está
bem defendido o for te.
F ora dele vivem os soldados portuguêses e os índios
amigos, e ali perto do forte ha outras povoações de índios,
sujei tos aos soldados.
Até êste castelo chegou muitas vezes o inimigo holan-
dês e se fort ificou na margem contrária, que fica da 'ban-
da do Norte; e quando os soldados portuguêses os viram
alojados, deram sobre eles mais de dez vezes em diversos
,nnos e os venceram e tiraram os fortes que haviam cons-
tn1ido, fazendo prisioneiros os que ficaram vivos. De
modo que houve ocasiões em qtte tiveram em seu poder,
cativos, mais de 1. 600 holandêses.
Entre os despojos colheram uma nau grande com 20
peças de artilharia, onde vi nha o grande piloto Matanwti-
yo, que por ordem dos governadores das ilhas rebeldes
104 CARVAJAL, RoJAS E AcuNA

vinha de propósito para descobrir êste rio e chegou com a


sua nau até à província dos Tapajós, que dista do Pará
tíuzentas léguas.

§ 13.º

Do Grão Pará, correndo a costa do mar, para as \i;.tn-


das do Sul, pelo rumo de Leste Sueste, distante 130
léguas, há uma cidade chamada S. Luis do M.aranhiio,
numa ilha que está na boca do rio Maranhão, que desagua
110 mar.
Está êste lugar na altura de dois graus e dois terços,
ao Sul. Esta cidade_ é metrópole de todas as povoações
que o português tem nestas partes, e onde assiste o gover-
nador.
H á na cidade do Maranhão tres conventos de religio-
sos, um de S. Francisco, outro de Nossa Senhora do Car-
mo e outro da Companhia de Jesus. ,Na cidade do Grão
Pará há dois conventos, um de frades F ranciscanos, e outro
de Carmelitas.
Em todo êste Governo e suas povoações não há mais
de seis clérigos sacerdotes, que administ ram os sacramen-
tos, como operários para tão copiosa messe. Como é pos-
sível que possam os ministros do Evangelho, zelosos da
salvação das almas, tolerar tal desamparo? Em todas as
d~mtrinas e povoados são os religiosos os curas.
Há tres anos que saiu do Grão Pará para a Espanha131
um padre da Companhia, chamado Luis Figueira, homem
grave e antigo, o qual foi in for mar ao rei do estado destas
províncias e particularmente de algumas ilhas que estão
no ri o das Amazonas, para que acudam com ministros
evangélicos que ensinem a fé aos naturais delas, que são
quasí infinitos, e só com muitos ministros se pode acudir
DESCOHRIMENTOS DO Rrn DAS AMAZONAS 105

a todas. Tinha êste padre ordem de Sua Magestade para


informá-lo do estado das províncias, e assim foi fazê-lo
pessoalmente.

§ 14.0

N estas povoações de portuguêses há poucas mulheres


que sejam ele sua qualidade. Se viessem de Espanha,
seriam bem recebidas.
Os índios que estão reduzidos nas terras que os por-
tuguêses possuem, e os que são amigos e podem, converti-
dos, receber a fé católica, são mais de um milhão. Falam
diferentes linguas e entendem todos uma língua geral que
corre toda a costa do Brasil. Mui tas nações de índios do
rio das Amazonas, subindo pelo rio mais de 400 léguas,
também entendem esta lingua.

§ 15.0

A cidade cio Maranhão foi primeiro fundação ele fran-


cêses, aos quais venceu e expulsou daquele ponto Jerôni-
mo de Albuquerque e depois Gaspar de Sousa. Os dois
entraram na cidade e mataram 600 homens ao inimigo
e o despojaram. E vieram ao Brasil porque souberam
que o inimigo estava estaheleciclo naquelas paragens e dali
infestavam as costas cio Brasil, fazendo presas de impor-
tância. !Desde êsse tempo não volveu o inimigo a possuir
a terra.
Havia na ilha do Maranhão, que tem dezoito léguas
de circuito, mais de 60 aldeias de índios e em cada qual
mais de 300 guerreiros, quando o português aí penetrou.
Alguns anos depoi s vieram os portuguêses conquis-
tando os índios da costa até ao ponto onde costumavam vir
106 CARVAJAL, RoJAS E AcUNA

navios holandêses e francêses, mas não tinham povoações,


e assim foi facil aos portnguêscs edificar cidade na boca do
rio das Amazonas.
Da parte dos índios houve oposição e com eles tive-
ram encontros e batalhas os portuguêses, com morte de
muitos soldados e grande número de índios. Desde a fun-
dação do Grão Pará até hoje, há uns dezoito anos, estão
aquelas províncias com a Coroa de P ortugal.

§ 16.º

Com a chegada dos dois religiosos ele S. Francisco e


dos seis soldados, com as noticias que deram do i-io que
tinham navegado, determ inou o Governador ( 11) enviar
gente práti ca que o descobr isse inteiro e chegasse até à
cidade de Quito. P ara isto nomeou por general dêstc
descohrímento a Pedro Teixeira (12), o qual com 47 ca-
noas de muito porte e com 70 soldados portugnêses e
1 . 200 índios de voga e guerra, que com as mulheres e os

( 11) Quando os dois leigos francisca nos ch egaram ao


Maranhão e ra pela segunda vez Goveniador geral <lo Mara nhão
Jácome R aimund o de Noronha, que ocupara esse cargo de
29 de maio a 28 de novem bro de 1630 e para ele fôra nova-
mente eleilo em 9 de outubro <lc 1636, nele se conservando
até 27 de janeiro de 1638.
(12 ) Nasceu Pedro Teixeira em Castan heda, a du;is
léguas ele Coimb ra. Pouco se sabe de sua vida até que acom -
panh o u a expedição ele Caldeira Cas telo Branco, para fund a r
o Pará. Em 1616 se ap odera de uma nau hol;rndêsa e a
destrói, enviando os seus canhões para o Pará. Em 1625
derro ta e desaloja o holandês de se us fortes rio Xingú e ex-
pulsa os inglêses da ma rgem esquerda do Amazonas. Em 1626
sobe êste r io e o Tapaj ós para castigar os nat ur ais e escra -
vizá- los. Em 1629 toma a fortaleza ele Taurcge ou Tocujós
(inglêsa segundo .Markham, e holandêsa segundo o P. Fi-
g ueira) . Em 1637 so be o Ama zonas, c he gando até Qu ito, via-
D EscoBRIM ENTo s DO Rro DAs AMAZONA S 107

meninos de serviço seriam ao todo 2 . SOO pessoas, parti-


ram do Grão Pará no descobriment o do rio em principias
de agosto do ano de 1637.
Durou a navegação até chegar a Quito tanto tem-
po ( 13), porque vinham com grande vagar descobrindo os
rios e marcando os portos.
O piloto-mor, que tem medida todas as jornadas e di s-
tâncias, diz que se poderá navegar o r io, subindo por ele,
em dois mêses.
Todo este r io das Amazonas, nas ilhas, nas margens
e terra a dentro, está povoado de índios ·e tantos em núme-
ro, que para dar nma ideia da sua multidão disse o piloto-
mor desta armada, Bento da Costa., homem prático nestes
descobrimentos, que navegou o rio e todos os que nele

gem que é r-elatada por Alonso de Rojas e Cristobal de Acnfía


e, servindo-se <lestes documentos, por 1.krnardo Pereira Ber-
reclo. A 28 de fevereiro de 1640 tomou posse do cargo ele
capitão-mór do Pará e seu governador, exercendo o mesmo
até 26 de maio <lo a no seguinte, passando o governo a F ran-
cisco Cordovil Camacho, no intento d-e seg uir para P ortugal.
Diz Barredo: "Deixou Pedro Teixeira o governo do Gr ão
Pará com merecida mágua daqueles mo radores, que se lh rs
fez inconsolav-el dentro de poucos dias com o fata l golpe da
sua perda; porque, quando d ispunha sua jornada para Lisboa,
lhe embaraçou uma doença tão aguda, q ue lhe t irou a viela;
mas s e foi esta breve na duração do Mu ndo, a imortalizaram
as suas ações para as memórias dele".
(1 3) Começou a viagem de P edro T eixeira a 28 de o u-
tubro de 1637 (tendo saído <lo Maranhão para a cidade de
Belé m a 25 de julho ) . Nesta viagem gastava ele parte da
sna fort una, dizendo Berredo que "tin ha ajudado m uito para
os seus apressos os cahedais do mesmo Coman dan te, genero-
samente distribuídos", chegando a Quito um ano depois: em
fins de outubro, segundo Berredo, em 24 de junho, afirma
Jimenez de la Espada, mas pela narração do padre Acufia a
v-erdade está com Berre<lo, pois o vice-rei não demoraria cinco
mêses para ordenar a imediata volta " pela carê ncia que tinha
o R ei d e bons soldados para defender as costas <lo Brasi l·•.
108 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

entram até chegar a Quito, marcando a terra e anotando


suas propriedades, que são tantos e sem número os índios,
que se do ar deixassem cair uma agulha, há ele dar em ca-
beça ele índio e não no solo. Tal é a sua quantidade, que
não podendo caber em terra firme, se arrojaram para as
ilhas.
Não só o rio elas Amazonas está tão povoado de gen-
te, mas tambem os rios que nele desaguam, pelos quais
navegou o dito piloto tres e quatro dias, e disse que cada
rio é um reino muito povoado e o rio grande um mundo
inteiro, maior que o até agora descoberto em toda a Amé-
rica. De modo que tem por certo que são mais os índios
destes rios que todô o resto das índias descoberto; porque
as províncias são sem conta e o interior ela terra está tão
povoado como as margens, de sorte que si todos os sacer-
dotes que há ho je nas f n<lias se ocupassem no trabalho
de tão extensa vinha, estariam bem ocupados e faltariam
ministros. ( 14)

(14) Comparando-se as narrativas de Carvajal e dos


Jesuitas já observamos uma se nsivel diminuição dos índios
nas margens do Amazonas, principalmente em sua porção
próxima do mar. Em meados do século XVII escrevia An-
tonio Vieira: "Sendo o Maranhão conquistado no ano de 1615,
havendo achado os portuguêses desta cidade de S. Luis àté
ao Curupá mais de quinhentas povoações de indios, todas mui
numerosas e algumas delas tanto que deitavam quatro e ciriro
l,llil arcos, quando eu cheguei ao Maranhão que foi no ano de
1652, tudo is to estava desp ovoado, consumido e reduzido a
mui poucas aldeo tas, de todas as quais não poude André Vida!
ajuntar oitocentos índios de armas, e toda aque la gente se
acabou, ou nós a acabámos em pouco mais de trinta anos,
sendo constante estimação dos mesmos conquistadores, que
depois de sua ent rada até âquele tempo eram mortos dos
ditos índios mais de dois milhões d'almas.
DESCOBRIMENTOS oo RIO DAS AMAZONAS 109

§ 17.°

Até agora não há outros cristãos nestes rios, senão


os poucos que os portuguêses c-onverteram no Maranhão
e Grão Pará e nas demais povoações.
A muitos destes doutrinam os Padres da Companhia,
que andam em perpétuas missões, visitando-os, converten-
do-os, batisanclo-os, porque de outra maneira não podem
acudir a todos nem estar em pouso fixo, pela falta que há.
de obreiros. Além daqueles postos que visitam, tem algu-
mas situações próprias.
Perguntado Frei Domingos, religioso de quem acima
falámos, se no Pará e terras havia visto 11111itos cristãos,
respondeu :
" Desenganem-se, não há cristãos neste grande mundo
descoberto sinão os que são doutrinados pelos 'benditos
padres ela Companhia de Jesus". (15)
Todo este copioso rebanho está sem pastor, vendido
aos seus vícios e sujeito ao demônio, condenando-se cada
dia in fini tas almas por falta de obreiros envangélicos, dei-
xando o campo livre a Lúcifer, para que reine em tão vas-

(15 ) Na Relação Apologética. escreve o padre Rodrigo


Barnuevo (ao qua l já nos referimos), contando a viagem dos
leigos franc isca nos e de sua chegada á cidade d-e S. Luís;
"Ali enco n traram padres da Companhia de Jesus, ocupados
também na boca do rio, na doutrina e ensino dos seus infiéis;
de cujo r e itor nos trouxe carta Fr. Domingos de Brieva a
este colégio de Quito. E perguntando se havia cristandade
ent1·e aqueles índios, respondeu, dizendo; Desen ganem-se,
padres, que não há cr istandade senão onde doutrinam os padres
da Companhia". A comparação d•estes dois trechos é mais
um argumento (a liás não aproveitado po r Jimenez de la
Espada ) em favor da autoria do relatório que vamos tradu-
zindo ser de um J esu íta.
110 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

tas províncias e seja adorado daqueles miseráveis, que


vivem nas trevas e nas sombras da morte, sem que haja
quem os alumie com a luz do santo Evangelho.

§ 18.º

As nações que habitam no rio pri ncipal e seus tribu-


tários são muitas e di ferentes em costume s; em sua maio-
ria não são beli cosas. Algumas têm coragem, mas nen.h u-
ma delas é muito brava nem fera. Isto se entende para o
descoberto, porque não há notícia elas demais nações que
habitam a terra firm e. T odos são idólatras que adoram
deuses falsos. Não têm ritos nem ceremôn ias para vene-
rá-los, nem templos de -seus ídolos, nem sacerdotes.
Temem aos feit iceiros, aos qua is consultam, e estes
ao Demônio, de quem recebem oráculos, e com embustes
enganam aos miseráveis índios.
Quasi todas estas nações andam nuas, os homens de
todo o corpo, as mulhe res ela cintura para ci ma, tapando o
restante com umas como tangas.

§ 19.0

Os índios 0111.agua.s vestem camisetas e mangas de ai - ·


godão pintadas com pincel e de dive rsas côres, azul, ama-
relo, alaranjado, verde e vermelho, muito finas, ele onde se
conclue que há madeira ou hervas de tin ta. ( 16)
Nas margens do rio das Amazonas um cios seis solda-
dos que desceram o rio com os religiosos de S. Francisco
( 16) Entre a viagem de Orellana e a de P edro Teixeira
emigraram os omaguas muito mais para lés te. Carvajal ainda
os refere no Alto Amazonas, em território castelhano. Os
dados de Acufia concor dam com os de Mauricio de Heriart?,
que os situa setenta léguas acima da foz do rio Negro. O s
DESCOBRIMENTOS DO Rro DAS AMAZONAS 111

sabia falar a lingua dos Omaguas e assim, encontrando-


se com índias em uma canoa, lhes poz gargantilhas de ave-
lório e outros <lixes e lhes disse em sua, língua que não
lhes fariam mal, porque não eram gente de armas. Que
isto repet issem aos seus maridos e lhes trouxessem comida.
R esponderam elas que já tinham ouvido dizer que os
homens barbados não lhes faziam mal, e que elas iriam
fazer com que lhes trouxessem comida.
Foram-se e dentro em 'breve vieram até onde estavam
este soldado e os seus companheiros, mais de quinhentos
homens e mulheres, carregados de milho, mandiocas e tar-
tarugas.
Disseram estes índios ao soldado que os entendia, que
nas bandas do Norte, aonde iam uma vez por ano, havia
umas mulheres, e ficavam com elas dois mêses e se dessa
união tinham parido filhos, os traziam consigo, e as fil has
ficavam com as mães. E que eram umas mulheres que
não tinham mais de um seio, muito grandes de corpo, e
que diziam que os homens barbados eram seus parentes, e
que os levassem alí. ( 17)
A estas índias chamam comumente Amazonas. .

Omaguas ou Cambebas, com as suas cabeças achatadas "que


mais pareciam mitras de bispos que cabeças de gente" já
quasi extintos, ainda se encont ram nas mesmas paragens em
que os viram os companheiros de Pedro Teix•eira, conforme
verificámos pelo mapa inédito de Raimundo Lopes. Anotando
o manuscrito de Heriarte, diz o Visconde de Porto Seguro:
"Não duvidamos entretanto que esses tais Aguas ( que outros
dizem J u rimaguas, e de que ainda no século passado hav ia
tipos em Alvellos) e os mais que seguiam p elas margens do
Amazonas acima (todos usando por armas as palhetas e a s esga-
ravatanas) fossem já originariamente de raça u11w1w ou oinagua,
embora da mesma raça não fossem mais puros representantes, ou
Omaguas verdadeiros, como diz Acufía, os que ,enhoreavam as
margens do grande rio, mais acima da foz do J utaí ".
(17) Vimos na narrativa de Carvajal que um indio prisio-
neiro contou a Orellana que a umas set-e jornadas da margem
do Amazonas havia uma nação de mulheres, com setenta

8
112 CARVAJAL, ROJAs E AcuNA

§ 20.0

Esses mesmos soldados e os dois religiosos, quando


desceram o rio, chegaram a umas mui dilatadas províncias,
cujos habitantes são chamados pelos portuguêses Estrapa-
josos. (18)
aldeias, de casas feitas de pedra, tendo como raínha Conorí.
servindo-se as mais nobres em baixelas de ou ro e prata, co'11
adoratórios ou caranaíns com ídolos de ouro e prata, e tra-
jando "mantos apertados, de finissima la n ele alpaca, o busto
descoberto, os cabelos soltos até ao chão e as cabeças com
corôas de ouro da largura de dois dedos. Que estas mulheres
iam á força conquistar os indios com os quais tinham relações,
guardando consigo as fi lhas e matando ou ent regando aos
pais os filho s varões.
E' em Alonso de R ojas que encontramos pela primeira
vez essa referencia á falta de um seio e do seu parentesco
com os europeus (homens barbados).
E' claro que a designação de Amazonas foi dada a essas
mulheres pelos cro nistas e pelos europeus que de tais mu-
lheres ouviam falar, não havendo na boca de nenhum indio
essa expressão, como, por lamentavel equívoco, refere Porto
Seguro ·· ao anotar Heriarte.
(18 ) Frei L aureano da Cruz, relatando a viagem dos dois
irmãos leigos diz que estes Tapajós, muito cuhiçosos e atrevidos,
despira m aos pobres e lhes t iraram o pouco que levavam".
Parece que os dois irmãos ou não concordavam em seus re-
latos, pois com Pedro Teixeira apenas subiu um deles, ou
contavam de modos diferentes a mesma his tória.
Os Tapajós o ra são esc ritos pe los cronistas T apa josos,
ora Estrapajosos, ora Tapajozes. Deles conta H eriartc cm
1662 : Esta província dos Tapajós é mui grande e_ a primeira
aldeia está assentada na boca de um rio Ci!Udaloso e grande,
que ·comumente se chama dos Tapajós. E' a maior aldeia e
povoação que por este di st rito conhecemos até agora. Bota
de si 60 mil ar cos, q uando manda dar guerra, e por ser muita
a quantidade de indios T apajós, são temidos dos mais índios
e naçõ es e assim se teern feito soberanos daquele distrito.
São corpulentos, e mui grandes e fortes. Suas armas são
arcos e fle chas, como as dos mais indios destas partes, mas
DEsconRIMENTos Do Rro DAS AMAZONAS 113

Estes agasalharam aos religiosos e soldados e por


sinais lhes disseram que fossem com eles por um rio
aci ma, em cuja margem encontraram vma grande aldeia.
Meteram-nos em uma casa muito grande, com madeiras
lav radas, forradas de mantas de algodão. entretecidas de
fios de diversas côres, onde puzeram uma rede para cada
qual dos seus hóspedes, feita de folhas de palmeira e bor-
dada de diversas cores, e lhes deram para comer caça,
aves e peixes.
Nesta aldeia viram os soldados caveiras de homens,
arcabuzes, pistolas e camisas de pano. Disto deram de-
pois noticia aos portuguêses e lhes disseram que aqueles
índios tinham morto alguns holandêses que chegaram até
áquelas provincias , sendo deles aquelas caveiras e
armas. (19)

§ 21.º

Vivem estas nações em contínuas guerras umas com


as outras. Usam flechas, dardos e outras armas seme-
lhantes a estas.
Os Omaguas jogam bem o dardo, porque são muito
dextras neste gênero de arma.

as flechas são ervadas e venenosas, de modo que até agora se


lhe não tem achado contra, e é a causa por onde os outros
índios os temem; porquanto em fer indo com as flechas não
há remédio de vida. São em extremo bárbaros e mal incli-
nados. Teem ídolos pintados a quem adoram e a quem pagam
dízimo das sementeiras, que são de grande§ milharadas, e é
o seu sustento, que não usam tan to de mandioca para farinha,
como as demais nações".
( 19) Es.sas caveiras, roupas e armas, que segundo o P.
Rajas, pertenciam aos holandêses, mortos pelos Tapajós, para e
P. Acufia, como se vê no ntÍmero LXXVI do seu Novo Desco-
brimento eram de tripulantes de uma grande nau ínglêsa,
114 CARVAJ AL, RoJ As E AcuNA

Os Trapajosos usam flechas e veneno tão fi no e


eficaz, que não ha contraerva.
Muitas destas nações, senão a maio1·ia, são caribes,
muito apreciadoras de carne humana, e assim comem os
seus pr isioneiros, sendo este o 111otivo pi-incipal das suas
guerras. Mas também lutam para tirar as terras uns
cios outros.

§ 22.0

:Muitas vezes, no tempo que durou a navegação


desta pequena armada, vieram a ela índios em grande
quantidade, com canoas ·pequenas, mostrando-se afaveis
com os portuguêses. Embora a princípio os temessem,
pela novidade ela gente, que nunca tinham visto, e aos
quais chamavam filhos do sol (20), depois que comunica-
vam com os soldados e deles recebiam algumas bugigan-
gas, como facas, anzois e muitas vezes pedaços de pano
rasgado, que punham como reliqnia no pescoço, lhes tra-
ziam depois sortimento de milho, mandioca, bananas,
canas doces e muito peixe, t udo isto em abundância e li-
beralmente, sem pedir pagamento.
Os índios nunca atacavam os espanhois no rio nem
fo r a dele, e se alguma vez saltavam cm terra os soldados
e entravam pelos montes cerca ele uma légua a descobrir
a terra., iam adiante índios amigos, aos quais atacavam
os ela terra, mas em chegando os soldados, fugiam os ini-

(20) Essa designação de filho s do sol que Alonso de Rojas


diz ter ouvido dos inclios com referência aos portuguêsr.s,
conta Carvajal q ue foi Orellana qllem a tr ibuira aos espan h{>is
tal ascen<lenda quando, no ponto onde foi constrnido o btr-
gantim 1;r:::H:•.', vi c-,·::111 Yc·-L, ·, ar:v s c..,ci,1ués. A um deles
"disse ma is o Capitão que éramos fi lhos do sol".
DESCOB!HM~~N TOS DO RIO DAS AMAZONAS 115

migos e depois, chamados, vinham de paz: e ofereciam


sustento com liberalidade. (21)

§ 23.0

Todas as marge11s destes rios estão inteiramente po-


voadas de árvores tüo altas, que sobem até às nuvens.
J\ terra a princi pio é chan, e depoi s se vão erguendo
umas altíssimas serras; aqui e a li se descobrem os cam-
pos com vales ou savanas, sem árvores, e a lgumas
capoeiras.
Tudo o que o pilot-o mor percorreu terra a dentro
do r io, e montanha limpa de mato e povo;vb de árv(1res
muito boas, altas e g rossas. -Há uma grande var iedade
de madeiras de que se podem fahricar navios em qual-
quer parte da distânci a deste rio.
As especies de árvores são muitas: cedros, ceihos e
outras de desmesurada grossura.
Há em algumas margens pau campeche, granadilha,
um a madeira corada (ttte parece brasil e grande quati-
clacle de salsaparrilha.
Há muitas resinas nas árvores, em tanta abund ân cia,
que com ela breiam as canoas e se podem calaf etar muitos
navios.

(21) T ambém n este pon to são antagônicas as not ícias de


Carvajal so bre os <'Spanh r,is d a desc ida ck Orclla na, r·ccchidos
em t oda a }larte, desde que deix aram os Omaguas, com a ni-
m osiclade, e cm cont ín uas lulas e sobressaltos, e a subida da
esquadra de Pedro T eixeira, Ião bem agasalhada por toda a
par!e. O rp1e parece mais ce1·to é qne o rln!11inican o exagero11,
para da r maior 1·ealce à proeza do seu capitão, po is era tal a
segurança na subida, q ue Pedro Teix-ei r:, poude mandar
adian te um simples batelão, uo feliz estralagema de que nos
dá conta Acufia.
116 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

A construção de naus é muito facilitada nestas mon-


tanhas, tanto pela grande abundância de madeiras e de
breu, como pelo muito algodão que se colhe, haver grande
abundancia de pencas de que se faz a pita, e palmeiras
com que se podem fazer enxárcias tão fortes como as de
cânhamo.
Das árvores, por serem muito grossas, se lavram com
facili-da<le as canoas. Nas províncias do Maranhão e Grão
Pará se constroem muito grandes. O modo de lavrá-las
é o seguinte: cortam o tronco da árvore, dando-lhe o
tamanho que querem e toda a largura do tronco, e depois
de terem decotado os ramos, o vão escavando por dentro,
deixando-lhe de boca meia vara, e por ali o esvaziam.
Logo enchem a cavidade de agua quente e o cercam por
fora de fogo, com o quar a madeira de tal modo amolece,
que, pondo-lhe dentro uns paus, o vão abrindo o quanto
querem, deixando o fundo com quatro ou seis dedos de
espessura e os lados com dois ou tres, ele modo que estas
canoas chegam a ter de largura, as mais estreitas duas
varas e as mais ordinárias nove palmos. E depois que
lhe deram toda a largura que querem, tiram a agua e o
fogo e a · madeira torna a endurecer. Algumas destas
embarcações podem comportar cem homens. Entre as
árvores deste rio ha uma que os portuguêses chamam
curapiniona, de tanta estima como o pau brasil; madeira
niuito galante, porque toda ela é ondeada, como camalote,
com ondas negras, e da qual se lavram canoas e escritórios
mui curiosos (22).

(22) Há aqui algumas informações interessantes, mas nem


todas confirmadas. Deixando de parte esses cedros e ceibos, que
Rojas referia pela semelhança com tais árvores suas conhecidas,
nunca mais se registou a presença no Brasil do pau campeche
(a leguminosa llaernato:rylon campecheanum) da América Central.
Há no Amazonas duas salsaparrílhas, ambas do gênero Smila.r,
DESCOBRIMENTOS DO R10 DAS AMAZONAS 117

§ 24.0

Têm os índios muita carne de monte, como sejam


antas, veados, porcos montêscs, icotcas (23), pacas,
coelhos e outros animais comestíveis.
H á nas montanhas grande cópia de macacos de di-
ferentes espécies e alguns tão grandes que a um, depois
de morto, não o poude carregar um negro.
No Maranhão há alguns cavalos e éguas. Espera-se
que estes gados se multipliquem, de modo que encham os
campos que são muito ferteis. Do Brasil trouxeram os
portuguêses no principio das fundações, cabras e porcos,
<le que há hoje grande quantidade. T rouxeram também
um carneiro e uma ovelha, e embora a ovelha tivesse
parido, não se criou o cordeiro, porque com o viço da
terra estava tão gorda, que não lhe deu leite e o deixou
morrer; e assim não multi plicaram.
Há muitas aves silvestres e árvores do rio, regaladas,
para o sustento humano, como sejam peruas <lo monte,
pauxi s e perdizes do tamanho de galinhas, em grande
abundância. A algumas matam, flechando-as; a outras

da familia L ilíáccas. sendo a salsaparrilha verdadeira do Ama-


zonas, , egundo Ducke, a Smila:r papyrocea. O nome de salsapar-
rilha é dado à raiz seca de várias espécies sul-americanas ck
Sn1ilax. O breu, tão abundante no Amazonas, é fo rnecido por
vá1·ias árvores das familias Anacanliftccas e Leguminosas, mas
principalmente por á rvores da família Bur,eráceas do gênero
Protium, conhecidas vulgarmente na Amazônia por breu-branco.
E ssa cur11J>iniona é a mui1·apinima (Brosii,mm g11ianensr ) árvore.
da familia Moráceas, ainda hoje muito apreciada 1ielo seu acha-
ma.lotado. Há uma leguminosa, a Z ollernia paraensis, de aspecto
semelhante, a que chamam na Amazônia muirapinima preta.
(23) Icoteas está aí por cutias, de que há no Amazonas
pelo menos três espécies bem distintas: Dasyprocta crocottota, D .
fuligi11osa e D. 11igrica11s.
118 CARVAJAL, ROJAS E ACUNA

kvantando-as dos seus pousos, vêm revoando cair no rio


e ali as apanham com a mão. No Pará e Maranhão há
muitas galinhas de Espanha.
T odas estas províncias são abundantes de mantimen-
tos e capazes, se nelas se semeassem as sementes de
E spanha, de tudo produzir com abundância.
As frutas são muitas e diferentes; todas as que sã o
próprias das índias aí são melhores e mais regaladas que
em outras partes. Em algumas províncias há cana doce
muito alta e muito grossa e por todo o rio há infinidade
de cacáu, tan to que se podem encher naus. Há muito
tabaco, e beneficiado é muito bom.
Todas as províncias ribeirinhas são tão temperadas,
que não há calor que enfade nem frio (!Ue fatig ue, nem
variedade que seja molesta, mas uma primavera contínua.
De manhã faz algum frio e o ano todo é uniforme, porque
uã o variam os tempos por estas terras. Debaixo da
linha os dias são iguai s.
Os campos que não estão com sementeiras produzem
flores e os outros têm g rande quant idade de batatas, sem
cultivo algum da terra, que por si as produz.
A montanha em certos lugares é espêssa e aberta, e
por t odo o rio suas margens são sombreadas de árvores e
palmeiras, q ue dão cocos cm abundancia. Das palmeiras
fazem os índios vinho regalado.

§ 25.0

Há muitas frutas silvestres na montanha e nas mar-


gens do rio, e nos troncos das árvores se colhe g ran de
quantidade ele mel de abelha. A cera é preta e, beneficia-
da, passa à côr amarela. No Maranhão e Pará não se
DEscoB RIMEN TOS DO Rro DAS AMAZONAS 119

gasta de outra para missas. Acha-se mel em todo o rio,


que é um regalo navegar-se por ele.
Todos os anos são aprazíveis e a ter~·a é um retrato
da que Deus prometeu ao seu povo, e se tivesse os gados
ela Judéa, diriamos que a regavam arroios de leite e mel.
Afirmou o piloto-mor que, por muitos elogios que
digam do rio e suas províncias, são ainda mais os bens
que há nelas, e se a arte ajudasse a natureza, poderiam
lavrar-se jardins onde nem a diversidade ele temperaturas
nem as inclemências dos tempos poderiam ofender aos
homens.
Na província chamada Culiman (24), vizinha dos
Omaguas, que tem mais de 200 léguas, é certo haver ouro
e muito. Isto se deduz porque os índios trazem placas de
ouro penduradas nas orelhas e narizes, das quais os por-
tuguêses resgataram algumas, no valor de mais de 50
dttcados, com os índios que vinham ás praias, porque não

(24) Aí está Culiman por Solimões, que Maurício de


H eriarte escreve Sorimõcs, descrevendo-a com estas palavras:
"Nesta provincia dos Sorimões haverª tr_if!ta légua_s. Todas
sao terras baixas e de muitas légllas. Estão povoadas de
aldeias de bárbaros em que dizem estão as Amazonas, e que
os índios que vivem nestes lagos t êm comércio com ela s :
o q ue parece fá bula, pois, entrando neles e andando-os, se nã:J
acharam tais Amazonas, sinão quantidade de bo tos, a que os
ind ios chamam parajaguaras. A canafistula, que é o que há
nesta província, é infinita, e muita salsaparrilha, e canela.
" E' esta província mui povoada de gentios com muitas
aldeias, abastecidas de mantimentos e de muitas madeiras, de
q11e fazem canoa s pe<menas e as vendem a outras nações.
Há muita quantidade de cedros. Os naturais são de natureza
m á, não con sentem, nem querem paz com outras nações. São
mui agudos de e11genho, mt!ito curiosos em lavrar obras de
madeira, com ferramenta de pedra, e ossos de animais. Trazem
chapéus feito s de palma. Andam nús como os demais. As
armas são palhetas, frechas, e dardos de arremesso. O go-
verno. clima e qualidade da terra como o da província dos
Aguas".
120 CARVAJAL, RoJAS E AcuNA

entraram terra a dentro. Perguntando-lhes de onde ti-


ravam aquele ouro, responderam que de umas serras
próximas, onde o havia em muita abundância, que, se
cavassem a terra com os picões que traziam nas mãos,
tirariam o que quizessem. A própria côr da terra desta
província e de outras, indica que é terra de ouro. Entre
as outras placas acharam u,ma, que um índio trazia nas
orelhas, pendente de um fio de ouro muito fino e m uito
bem trabalhado, cujo lavor só poderia ser feito por quem
conhecesse a arte de ourives. Não se poude saber quem
fosse o artífice, por não haver intérprete que perguntasse
aos índios; presume-se que haja por aquelas províncias
alguns naturais que trabalham de ourives.
Acharam também O§ soldados em alguns pontos
prata. e sinais dela e de muito cobre, e se presume ser
terra de muitos minerais. Mas por estar em poder de
bárbaros, não se aproveitam as suas r iquezas.
Por todas as partes corre este famoso rio manso e
ledo, de modo que todo ele é navegavel, sem corrente que
impeça ás embarcações. E por mais que se estreitem as
suas aguas, nunca o rio esquece a sua mansidão, antes
melhor, pela parte mais estreita, que é de meia légua,
onde vão encanadas as aguas de inumeraveis rios, a cor-
rente é mais mansa, sem que haja sumidouro das águas
nem marulhada que assombre: condição ordinária dos
grandes rios, que quanto mais fundo têm, mais dissimu-
lam o ruído, seguros da sua riqueza e caudal, de que
fazem ostentação van os pequenos riachos, pois desde que
se despenham das montanhas as torrentes, baixam fa-
zendo barulho e dizendo que têm caudal de água.
Admira ver a grandeza deste rio que, como rei dos
outros, nunca se quer clescompôr e antes guarda sua
magestade com passos graves. Se já não é para dizermos
que não elevar-se em vagalhões, não ferverem as águas,
DEscoBRIMENTos oo Rrn DAS AMAZONAS 121

nem contenderem os rios quando se encontram com este


grande das Amazonas, nem quando se apertam no estreito,
o fazem para convidar os ministros evangélicos, facilitan-
do-lhe a passagem, para que o naveguem e visitem as suas
províncias, oferecendo levá-los sobre os seus ombros com
tod_a a segurança e regalá-los com a fecundidade dos seus
campos.

§ 26.º

Os índios têm as suas aldeias em todas as margens


deste rio. sendo umas grandes, outras pequenas. Outros
vivem ordinariamente afastados, em diferentes barrancas.
Os portuguêses encontraram uma aldeia tão grande de
uma e outra banda do rio, que, navegando o <lia todo á
sua vista, começando a navegação trcs horas antes do
amanhecer até ao pôr do sol, não puderam dar fim aos
edifícios nem achar lugar em que alojar-se que não esti-
vesse ocupado com casas, e umas em seguida às outras.
Os que descobriram o comprimento desta povoação não
puderam saber se era muito larga. Disse o piloto que
pareceu estreita.
As casas e edi fícios de todos os índios são de madeira,
lavrada s com curiosidade e cobertas de palha; não há
nenhuma de pedra nem coberta de telha. Por dentro
estão limpas e com asseio; não usam joias senão as que
dissemos da província dos Tapajós.
Em torno destes galpões viram os portuguêses muitas
caveiras de homens; suspeitaram que fossem de gente
que eles tivessem morto e comido.
As redes onde dormem são de folhas de árvores ou
de palha.
122 CARVAJAL, RoJAs E Acu.NA

§ 27. 0

O piloto-mor, principal descobridor deste rio, diz que


convém muito que S. M. mande edificar no lugar es-
treito, já assinalado. e ponha nele guarnição para impedir
a passagem do inimigo holandês, para que não suba o rio
e se apodere das suas províncias . Porque como a nave-
gação é sem perigo, manso o rio, abundantes os manti-
mentos e os índios pouco belicosos, será facil ao inimigo
navegar este rio e aproveitar-se das riquezas e frutos da
terra (25 ) .

'§ 28.º

Esta fortal eza servirá de custódia material de tão


extensas províncias. Para a custódia espiritual convida
Deus, por Isaías, aos ministros evangélicos, para que a
guardem e a defendam :
/te, a.ngeli veloces, ad gentem convulsmn et dilacera-
tam: ad populum terribilem, ad gentem e:rpectcmte111, (26).

(25) Foi neste ponto estreito, aproveitando as sugestões


de Pt>rlro Teixeira, que os Portuguêses construiram o forte
de Óbidos.
(26) O versícu lo em parte copiado pelo P. Rojas é o
segundo do capítulo XVIII, e se refere especialmente à con-
versão da Etiópia, sendo ap licado pelo J esuíta ao Novo- Mundo.
Diz ele, segundo a tradução da vulgata: "Ite angeli veloces
ad gent"em con vulsam <'t d;hcerat,1111: ad populnm terribikm,
post quem 11011 est alius: ad gentem expectantem et conculca-
tam, cujus diripuerunt flumina terram ejus". E que o pa<lre
Matos Soares traduz: "Ide mensageiros velozes, a urna nação
divid ida e despedaçada; a um povo terrível, o mais terrível de
todos; a uma nação que está esperando, e que é calcada aos
pés, cuja terra é cortada pelos rios".
D EscoBRI MENTos Do R ro DAS AMAZONAS 123

Por anjos certo é que de ordinário se entendem nas


divinas letras os apóstolos e mini stros do Evangelho. A
frase ad gentem expectantem sub Linea s1t11t admite o se-
guinte sentido: "Anjos meus - diz Deus aos operários
de suas vinhas - que cultivais o campo da minha ig reja e,
missionários do Evanvelho, o levais por provincias remo-
tàs, apressai os passos, acelerai os vôos ad gentem ex-
pectantem sub Linea sunt; isto é, corno explica Mendoza,
ad gentem super quam est L inea, ut destruat. Visitai
velozes a gente que está no extremo perigo de sua salvação,
condenada sem dúvida a eternos castigos, se os não socor-
rem os ministros evangélicos". O u quererá di zer ; " Ide
velozes, anjos meus, ás inumeraveis provincias sobre as
quais deitei os meus cor<leis para edificar uma nova Igreja;
livrai-a da infideli dade em que vive e fa bricai nela o edi-
fício da fé; ide á gente que vive debaixo da Linha e para
visitar suas províncias se passa muitas vezes a equinocial ;
ide ad gente1n convulsam et dilaceratam, a u ma gente
miseravel, entregue as mãos dos seus vícios, a quem des-
troem as paixões, às nações que aguardam o nosso so-
corro".
Quem nào executará a ordem de Deus, como a apre-
senta o seu profeta? A quem não enternecerão os
suspiros da gente que espera? Quem, se tem zelo pela
glória 1Divina, consentirá que o demônio cause tão mise-
ravel destroço nas almas? Quem rião apressará os vôos
como anj o, que para socorrer a gente que viv e debaixo da
Linha, deve ter velozes os passos, segundo a ordem de
Deus: ite angeli veloces?
E para que não haja demoras que retardem os dos
ministros, Deus tudo facili ta, porque os infieis estão es-
perando de portas abertas, para recebê-los; a navegação
do rio os convi da com sua facilidade, as águas com seus
124 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

peixes, a terra com seus regalos e a temperatura com sua


doçura. E uma vez que Deus com tanto afeto exorta a
esta missão, confio em sua Divina Magestade que hão de
Yir infinitos missionários que tirem da sombra da morte
estas almas e as levem ao céu, fazendo o ofício de anjos.
NOVO DESCOBRIMENTO
DO GRANDE
RIO DAS AMAZONAS
PELO
Patlre CRTSTOBAL DE AcuNA, S. J.
Ao Excelentissimo Senhor
CONDE DUQUE DE OLIVARES (27)

A quem, Senhor, devemos acudir, com este Novo


Mundo descoberto, sinão àquele que, para aliviar aos do
seu Amo, sobre os seus próprios ombros gostoso susten-
taria, si pudesse, todo o resto do Orbe? Que outro
Atlas não se fatigaria sob tamanha carga, senão quem,
com esforço mais que varonil, afronta maiores e desmedi-
dos pesos? Quem, por mais zeloso que se mostre do
engrandecimento do seu Rei, não esmoreceria, receiando
novas dificuldades, senão aquele que, quanto maiores se
apresentem, mais lhe apetecem, para que mais brilhe o seu
amor, mais realce a sua fideli dade? E quem, para dizê-lo
de uma vez, senão o Excelentissimo Senhor Conde Duque,
poderá patrocinar tão g randi osa empresa, da qual depende
a conversão de infinitas almas, o engrandecimento da
Real Coroa, e a defesa e guarda de todos os tesouros
do Perú?
Por isso deponho em mãos de V. Excelencia este
Novo descobrimento do grrmde Rio das Amazonas, a que
fui por ordem de sua Magestade e o que com o maior
cuidado averiguei, com toda exatidão copiei em breves

(27) Gaspar de Guzman, conde de Olivares e duque de


San Lucar, nasceu em Roma a 6 de janeiro de 1587 e morreu
exilado em Toro a 12 de julho de 1645, tendo sido o primeiro
ministro onipotente de Felipe IV de 1621 até 1643.
128 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

folhas, embora fosse digno de volumes inteiros; para que


por tão sublime artífice seja acrescentada esta preciosa
pedra à Coroa do nosso g rande Rei Felipe Quarto, a
quem !Deus nos guarde.
Bem pode V. Excelencia aceitar esta dádiva, certo de
que em tudo é grande, e ainda mais do que sem dúvida
parece, que se assim não fôra, nem eu a ofereceria, nem
mereceria de tais mãos ser aceita. Porque, se o dilatado
Imperio da Etiópia alcança tão glorioso renome por ocupar
a sua jurisdição novecentas léguas de extensão: se a gran-
de China, por encerrar, em duas mil de circuito, quinze
Reinos diferentes, espanta ao mundo por sua grandeza;
e se a vastidão que se proclama do Perú, se reduz a cerca
de mil e quinhentas léguas, que se medem desde o novo
Reino de Granada até âos últimos confins do Reino do
Chile; com que sobr'ada razão, sobre tudo o que foi des-
coberto, adquirirá o título de grandioso o Rio das Amazo-
nas, pois na extensão de quasi quatro mil léguas de
contorno, encerra mais de cento e cincoenta nações de
línguas diferentes, bastando cada qual por si para formar
um dilatado reino, e todas juntas um novo e dilatado
Império, o ·qual, favorecido e amparado, sob a égide de
V. Excia., poderá parecer grande aos olhos de Sua
Magestade, a cujos pés e aos de V. E xcia. ofereço, para
esta conquista, tanto a minha pessoa como a de outros
muitos da minha religião, se de nós se quizer servir V.
Excelência, cuja vida o Céu faça prosperar com os au-
mentos que a sua pessoa, zelo e fidelidade merecem.

De V. Excelência criado

CRISTOBAL DE AcUNA (28)

(28) Veja-se a biografia resumida de Cristobal de Acuíía


no prefácio.
Ao leitor

Nasceram, curioso leitor, tão irmanadas nas coisas


grandes, a novidade e o descrédito, que mais parecem
gêmeos de um parto; e pelo mesmo motivo que a admi-
ração repara com cuidado no que é novo, periga o crédito
no entender dos mais discretos. E embora seja verdade
que a eficácia da curiosidade natural nos inclina a conhe-
cer as novidades, a incerteza da sua veracidade priva o
entendimento de maior deleite, de que sem dúvida gozaria
se, persuadido do certo, pudesse deixar de lado toda
perplexidade no duvidoso.
Desejando, portanto, trazer à vista de todos o novo
descobrimento do grande rio das Amazonas ( a que fui
por ordem de Sua Magestade, como depois verás), e
temendo que, embora seja apreciado pelo novo, não deixe
sofrer restrições quanto á sua exatidão, quiz assegurar-te
de ambos.
O primeiro, com o prometer-te um novo Mundo,
Nações novas, Reinos novos, modo de viver novo e, para
dizer-te em uma palavra, um Rio de água doce, navegado
por mais de mil e trezentas léguas, desde as suas nascentes
à _sua foz, e cheio de novidades.
O segundo, ao pôr-te diante dos olhos as obrigações
da minha pessoa, de Religioso da Companhia de Jesus, de
Sacerdote, de Legado de Sua Magestade, e outras, que
130 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

nem te importam saber nem a mim o contá-las. E se com


tudo isto te persuadires, serei recompensado do amor com
que trabalho: ouve aos que de fora, com testemunhos
jurados, dão valor a esta Relação.
Vale.
Certificado do Capitão-Mor deste desco-
brimento Pedro Teixeira

Pedro Teixeira (29), Capitão-Mor atualmente nesta


Capitania do Grão Pará, e cabo da gente de Guerra, que
foi no descobrimento do Rio das Amazonas, de ida e
volta, até à cidade de S. Francisco de Quito, nos reinos do
Perú:
Certifico e afirmo com juramento, pelos Santos
Evangelhos, que é verdade, que por ordem de Sua Ma-
gcstade, e por particular provisão despachada pela Real
Audiência de Quito, veio em minha companhia, desde a
dita cidade até à do Pará, o Reverendo Padre Cristoval
de Acufia, Religioso da Companhia de Jesus, com seu
companheiro, o Reverendo Padre André de Artieda, na
qual viagem ambos se houveram, no tocante ao serviço de
sua Magestade, para que foram enviados, como seus bons
e fieis vassalos, observando e anotando tudo o que era
necessário para dar narração exata e completa do desco-
brimento, a que se deve dar inteiro crédito, melhor que a
nenhum outro, dos que foram na dita jornada. E no
tocante às obrigações do seu Hábito e serviço de Deus,
acudiram sempre como costumam fazer os da sua Religião:
pregando, confessando e doutrinando a todos os do exér-
cíto, esclarecendo-os em suas dúvidas, reconciliando-os em
suas renzilhas, animando-os em seus trabalhos e pacifí-

(29) Veja-se a nota 12.


132 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

cando-os em suas discussões, como verdadeiros pais de


todos ; passando. os mesmos incômodos e trabalhos que
qualquer dos soldados particulares, tanto na comida como
em tudo o mais.
E não só fizeram os ditos padres esta jornada à sua
custa, sem que sua Magestade para a mesma lhes desse
nenhum socorro, como, ao contrário, tudo o que traziam,
tanto de sustento como de medicina, era comuns de todos
os necessitados, aos quais sempre acudiram com grandís-
sima caridade e amor.
E por ser verdade tudo o que aqui se contém, dei
este certificado, assinado por minha mão e selado com selo
das minhas armas.
Nesta cidade do Pàrá, aos tres de março de mil seis-
centos e quarenta anos.
O Capitão-Mor,
PEDRO TEIXEI RA
CERTIFICADO

Do Reverendo Padre Comissario


das Mercês
Frei Pedro de la Rua, Religioso de Nossa Senhora·
das Mercês, Comissário geral ele minha Ordem nos Es-
tados do Maranhão e Pará: ( 30)
Certifico a todos os que a presente virem, como os
Reverendos padres Cristoval de Acuõa e André de
Artieda, seu companhei ro, Religiosos da Companhia de
Jesus, vieram desde a Provincia de Quito, em compa-
nhia da armada portuguêsa, que de volta cio descobrimen-
to do Rio das Amazonas desceu por ele até à cidade do
Pará, costa do Brasil e governo do Maranhão, acudindo

(30) A ordem de Nossa Senhora das Mercês foi fundada


em Barcelona no ano de 1233, para libertação dos escravos.
E ' de ver o cuidado do padre Acufia para demonstrar a ver:.t-
cidade da sua narrativa ( talvez escarmentado pelas críticas
severas feitas ás not icias sobre a viagem de Orel!ana), pedindo
certificados do principal chefe da famosa expedição e do frade
comissário das Mercês, ambos seus companheiros de viagem.
Em companhia de P edro T eixeira iam, além dos d ois Jesuitas,
alguns frades de Nossa Senhora das Mercês, t endo como
comissário Fr. Pedro de Santa Maria de la Rua e o capelão
da armada, o padre franciscano F r. Agostinho das Chagas.
Fr. Anton io de Brieva a êles se reuniu no porto de Napo,
tendo sofrido, já perto de Curupá, a fratura de uma perna,
por ter caído uma árvore em cima dela.
134 CARVAJAL, RoJAs E AcUNA

durante todo o tempo que durou a viagem, como ver-


dadeiros filhos de sua religião, confessando, pregando e
consolando a todos os do exército, e acudindo-os em
todas as suas enfermidades e necessidades, como verda-
deiros pais de todos.
Cumpriram igualmente com o que por parte da Real
Audiência de Quito, em nome de sua Magestade se lhes
havia recomendado, no tocante a fazer averiguações das
coisas principais do dito rio das Amazonas, o que fez o
Reverendo Padre Cristoval de Acuiía, com o cuidado
que se verá pela relação, ao qual julgo que se deve dar
inteiro crédito, por ser pessoa desi nteressada, e que só
por amor ao serviço de Deus e do Rei empreendeu tão
trabalhosa jornada.
De t udo isso posso dar fé, como testemunho de vista,
porque viemos juntos durante toda a viagem.
E por ser verdade, dei esta, fi rmada com o meu
nome e selada com o selo da minha Religião.
Nesta cidade do Pará, aos dezenove de março de
mil seiscentos e quarenta anos.

Comissário,
FREI PEDRO DE SANTA MARIA E DE LA RUA
CLÁUSULA

Da provisão real dada pelá a udiencia de


Quito, em nome de sua magestade, para
este descobrimento
Na conformidade do que foi acordado por meu
presidente e Ouvidores, de que devia mandar dar esta
minha carta e provisão Real, para todos vós e a cada um
em particular; e tive por bem e vos mando, que sendo
com ela requeridos, pelos ditos Padres Cristoval de
Acufia e André de Artieda, Religiosos da Religião da
Companhia de Jesús, ou por qualquer deles, vejais os
autos acima insertos, e em seu cumprimento lhes dareis
( fazendo-lhes de tudo o mais breve aviamento) boa
passagem de que tiverem mistér para o melhor exito de
sua missão e bons resultados que dela espero hão de
advir, sem que nisso lhes seja posto estorvo nem impedi-
mento algum, qualquer que seja o motivo ou a razão,
pois do contrário me considerarei por desservido.
E vos recomendo e rogo, senhor Padre Cristoval
de Acufia, que, em cumprimento do provido por meu
presidente e Ouvidores, e na conformidade da nomeação
feita em primeiro Jogar por vosso P relado e do que em
sua petição vem declarado, que, tendo sido entregue esta
minha carta, por parte do meu Fiscal, tomeis conheci-
mento do que nela se contém, e a guardeis, cumprais e
136 CARVAJAL, RoJAS E AcuNA

executeis; e em seu cumprimento partais desta minha


côrte com o vosso dito companheiro, para a dita província
do Pará, em companhia do Capitão Pedro Teixeira, e
mais gente de milícia que com ele vai, tendo, como haveis
de ter, particular cuidado em descrever com a maior
clareza que vos fôr possível, a distância de léguas,
povoações de Indios, rios e paragens particulares que há
desde o primeiro ponto de embarque até à dita Cidade e
porto do Pará; informando-vos com a maior certeza que
puderdes, de tudo isso, para dar notícia cabal, como
testemunha de vista, ao meu R eal Conselho das Indias;
e que se vejam as necessidades das ditas Provincias,
como mando que o façais, comparecendo pessoalmente
com esta minha carta, de parte da minha Audiência de
Quito, ante o meu Presidente e O uvidore s do dito R eal
Conselho; e sendo necessário informar disso à minha
Real pessôa, o fareis, enviando relação de tudo ao Acór-
dão da minha Audiência de Quito.
E na vossa falta confio no dito Padre André de
Artieda, com o cuidado e pontualidade e zelo com que
os de v:ossa Religião costumam servir-me; e como é
negócio tão importante ao serviço de Deus nosso Se-
nhor e ao nosso, o bem e conversão de tantas almas,
como se tem notícia que há nas ditas províncias recente-
mente descobertas, se assim o fizerdes me darei por bem
servido de vós e da vossa Religião.
Dada em Quito aos vinte e quatro dias do mez de
Janeiro de mil seiscentos e trinta e nove anos.
O Licenciado D. Alonso Perez de Salazar.· - Dou-
tor D. Antonio Rodriguez de San Isidro y Manrique. -
O Licenciado D. Afonso de Mesa y Ayala. O Licen-
ciado D. João de Valdés y Llano. - O Licenciado D.
Geróni mo Ortiz Zapata. - Secretario D. João Cornejo.
RELAÇÃO

NUMERO I

Notícias deste grande rio


Quase com as primeiras vistas daquela parte da Amé-
rica, que hoje tem o nome de Perú, nasceram cm nossa
E spanha, embora por notícias confusas, ardentes desejos
do descobrimento do grande rio das Amazonas, chamado,
por erro comum, entre os poucos versados em Geografia,
rio do Maranhão : não só pelas muitas riquezas, dos
quais sempre se suspeitou, nem pela infinidade de gentes
que habitavam as suas margens, nem pela fertilidade das
suas terras e pelo aprazível do seu clima, mas principal-
mente por entenderem, com fundamentos não pequenos,
que era ele o único canal, como que a rua direita que,
correndo pelo coração do Perú, se sustentava de todas as
vertentes que suas altíssimas cordilheiras tributam ao
mar do Norte.
NUMERO II

Francisco de Orellana descobre este grande no

Acenderam-se tais desejos no coração de Francisco


de Orellana (31-), que no ano de mil quinhentos e qua-
renta, com alguns companheiros, em frágil embarcação,
se fiou nas correntes -deste grande rio ( que desde então
tomou também o nome de Orellana) .
Passando á Espanha, pela relação que fez das suas
grandezas, a Cesárea Magestade do Imperador Carlos
Quinto mandou dar-lhe tres navios com gente e todo o
necessário, para que volvesse a povoá-lo em seu Real
nome.
Para isto partiu no ano de quarenta e nove, mas
com tão adversa fortuna que, morrendo a metade dos
soldados nas Canárias e Ilhas de Cabo Verde, com os
mais, que cada dia iam diminuindo, chegou à boca deste
grande Rio tão falto de gente, que forçoso lhe foi aban-
donar dois navios, que até aquele porto havia conservado.
Não se sentindo com fo rças para mais, prosseguiu a sua
aventura em duas lanchas de bom tamanho, por ele fa-
bri~adas, e com toda a sua gente entrou rio acima.
Passadas poucas léguas, reconheceu que não havia
de ter bom fim, e passando todos para uma única em-

(31) Veja-se sobre a viagem de descida de Orellana o


relatório de Fr. Carvajal.
DESCOBRIMENTOS DO RIO DAS AMAZONAS 139

barcação, retiraram-se pela costa de Caracas, até chegar


à Margarita, onde todos sucumbiram e com eles as es-
peranças de que sua Magestade entrarse na posse do
que tanto se desejava e de si prometia (32) .

(32) Sobre a segunda e malograda viagem de Orellana


escreve Berredo: "Persuadiu de sorte as encarecidas precio-
sidades do famoso rio das Amazonas ao Imperador Carlos V,
que depois de alguns anos, não só lhe fez mercê da sua
Conquista com o governo dela, mas também para facilitar-lhe
lhe mandou pôr prontos tres navios com a boa equipagem de
maior numero de quinhentos homens, em que entravam muitos
de conhecida distinção pela do nascimento.
Com esta esquadra saiu do porto de San Lucar em 11 de
maio de 1549, tão lisonjeado das suas esperanças, que só
aqueles, que o seguiam, tinha por venturosos; porém fazendo
escala nas ilhas Canárias e de Cabo Verde, a sua gente sentiu
de tal sorte a corrução dos ares, que lhe faleceu muita parte
dela; e continuando na mesma derrota já com tamanha perda,
experimentou a última, logo no principio da subida do rio,
que buscava; porque depois de forcejar quanto lhe foi possivel
para vencer as suas correntes em duas lanchas, a que se
achava reduzido, não só tornou a retroceder até à sua boca,
mas com tanta desgraça, que retirando-se pela costa de Ca-
racas á ilha Margarita, dizem que ali morrera com o maior
numero dos poucos companheiros, que lhe haviam ficado" -
Garcilaso de la Vega diz que Orellana morreu no mar e
Gabriel Soares que "veio a falecer na mesma boca deste rio,
de sua doença, d'onde sua mulher se tornou com a mesma
armada à Espanha".
Não é exato que Carlos V tivesse fornecido as tres naus,
mas apenas permitiu que ele aprontasse à sua custa uma
armada, prometendo mercês depois do descobrimento.
NUMERO III

Entra por este no o tirano Lope de Aguirre

Tornaram-se a avivar estas esperanças vinte anos


depois, que foi o de quinhentos e sessenta, com a entrada
que por ordem do Vice-rei do Perú fez neste grande Rio
o General Pedro de Orsua ( 33), arrostando as suas
águas com um bom exército, para ser testemunha de
vista das suas grandezas, que só se conheciam por no-
ticias a seu respeito pÜblicadas.

(33) O vice-rei do Perú era D. André Furtado d e Men-


donça, marquez de Canhete, que nomeou a Pedro de Orsua
Conquistador das Ama zonas, saindo este da cidade de Cuzco
no ano de 1560, com gra nde exército, entre os quais se con-
tavam D. Fernando de Guzman, havia pouco chegado à Amé-
rica, e Lopo de Aguirre. Diz Berredo: "Era Pedro de Orsua
um cavalheiro muito estima do no Perú pelas boas partes, de
que se compunha o seu merecimento; e chamados t ambém
aqueles espanhois das novas esperanças desta expedição, quan-
do chegou a Quito, se achava já com mais de quinhentos,
em que entravam muitos de cavalo, todos tão luzidos como
bem armados; mas prudentemente advertido das trabalhosas
marchas, com que atravessando Gonçalo Pizarro a província
de Quixo, tinha buscado o Maranhão pelo rio da Coca ou
dos Cofanes, procurou descobrir outro caminho menos arris-
cado, e o conseguiu com grande fortuna; porque depois de
fabricar as embarcações, que lhe pareceram neces sárias, en-
trando pelo rio Yutaí (a que Padre Manuel Rodrigues chama
Yetaú) por um braço, que se comunica com o Yuritá, passou a
este, que o meteu no mesmo Maranhão ou Amazonas na altura
já ~e cinco graus ao sul da linha.
DESCOBRIMENTOS oo Rro DAS AMAZONAS 141

Mas teve tão mal sucesso, que foi morto á traição


pelo tirano Lopo de Aguirre ( 34) o qual se proclamou
não só como general, mas também como rei, prosseguindo
a viagem começada. Mas não permitiu Deus que ele
acertasse com a boca principal, por onde este rio desagua
no Oceano (que desdiria da f idelidade de Espanhois
descobrir um tirano, coisa de tanta importância ao nosso
rei e senhor) ; mas, deixando-se levar por braços do mes-
mo, veio a desembocar pela Costa em frente da Ilha da

(34) Conta Berredo: "Amotinando-se contra ele a maior


parte de seus soldados, capitaneados por D. Fernando de
Gusmão e L opo de Aguirre, traidoramente lhe tiraram a vida;
e passando logo a desatino mais abominavel, aclamaram rei
ao tal D. Fernando, que desvanecido com tão alto título, o
recebeu de tão poucos súditos, s-em mais outro domínio, que
o daqueles penhascos.
"Foi a principal causa da sublevação uma bela dama, de
que se acom panhava Pedro de O rsua; porque namorado da
sua formosura o infame Aguirre, influiu os -ânimos daqueles
espanhois a uma ação tão feia, para saciar o seu apetite; e
assistido depois dos mesmos cúmplices, deu novos exercícios á
sua aleivosia, cometendo a segunda de matar também ao ri-
dículo rei, que tinha aclamado.
"Porém nestas maldades não pararam ainda as de tão vil
homem; porque constituído, em prêmio delas, no governo
absoluto, assassinou por vezes mais de duzentos daqueles
mesmos, que lhe obedeciam; e com os que ficaram, por mais
unidos à sua tirania, desembocando o rio das Amazonas, se
transportou à Margarita, que saqueou com novas crueldades;
mas passando logo a outras ilhas, para continuá-las, foi ven-
cido e morto pelos seus moradores; tendo tamb ém por última
cometido já a maior de todas na inocente vida de uma menina,
a que ele mesmo havia dado o ser, com o pretexto bárbaro,
de que lhe não chamassem filha do traidor, como se as me-
mórias, depois de registadas nos bronzes das estampas, não
ficassem sendo de eterna duração ".
142 CARVAJAL, RoJAS E AcuNA

Trindade, em terra firme das Indias de Castela, onde,


por ordem de sua Magestade, lhe tiraram a vida, e lhe
cobriram as casas de sal, como hoje se mostram naquelas
regiões. ( 35)

(35) Entre as malogradas expedições de Orellana e de Pedro


de Orsua, houve uma tentativa portuguêsa, por parte de Luis
de Melo da Silva, filho do Alcaide-mór de E lvas Antonio de
Melo. Levado pelas tempestades, a sua nau arribou na ilha
Margarita, onde ele encontrou ainda alguns dos soldados de
Orellana, e tais foram as informações que os mesmos lhe
deram das riquezas daqucllas terras, que ele se foi a Portugal,
com o fim de organizar uma armada para vir explorar o r io
das Amazonas. Demos agora a palavra a Berredo: "El-Rei
D. João, que conhecia bem que para a conquista e povoação
de tão vasto país necessitava este fidalgo de ma iores esforços,
que os de seus cabedais, quiz mostrar de sorte a distinção
com que o tratava, que generosamente o ajudou também com
tres navios e duas caravelas; e vendo-se ele com um poder
mais proporcionado ao projeto da sua expedição, lhe d~u logo
principio, tão cheio de ânimo como de esperança.
"Com esta armada se fez à vela Luiz de Melo do rio de
Lisboa; mas como poucas vezes saem verdadeiras as felici-
dades, que asseguram só as lisonjeiras promessas do mundo,
antes de montar a chamada barra do Maranhão, naufragou
nos seus baixos ; com sucesso, porém, menos infeliz que o de
Aires da Cunha; porque das suas embarcações salvando-se
ainda uma caravela, que tomou a nado com alguns compa-
nheiros, se recolheu nela a Portugal; e continuando-lhe a
grandeza de EI-Rei, lastimado também da sua desgraça, o
despachou logo para a índia, do nde, recolhendo-se para a sua
pátria, depois de muitos anos, no mês de Janeiro de 1573, tão
cheio de glória militar como de riquezas, com o constante
ân imo de as empregar generosamente no descobrimento do
mesmo Maranhão, se perdeu na nau S. Francisco, de que era
capitão Pedro ou Francisco Leitão da Gamboa, que o mar
tragou sem dúvida, porque não houve mais notícias dela".
NUMERO IV

Outros intentam este descobrimento

Esses mesmos desejos do descobrimento deste rio


levaram o sargento-mór Vicente dos Reis Vilalobos,
Governador e Capi tão General dos Quixos, jurisdição da
província de Quito, a que se oferecesse com bom acom-
panhamento, a principiá-lo por aquela parte : em cuja
conformidade des_pachou a Católica pessoa do nosso grande
Rei Felipe Quarto, que ainda vive (e viva felizes anos!),
uma cédula à Audiência e Chancelaria de S. Francisco de
Quito, para que se determinassem as condições que fossem
convenientes para o dito descobrimento, mas tendo nesse
ínterirn terminado o dito Governador as suas funções, não
foi levado a efeito.
Também não tiveram melhor êxito os ardentes desejos
de Afonso de Miranda, a quem sucedeu no cargo, por
frustrá-los a morte.
Esta igualmente suspendeu as alevantadas emprezas
em que o Governador José de Villamayor Maldonado,
Governador muito antes dos dois, do mesmo Governo dos
Quixos, consumiu o melhor da sua vida, buscando com
ardente zelo submeter a Deus e ao rei a inf inidade de
Nações dêste Rio, das quais se tinham confusas notícias; e
pondo-as em execução por muitas partes, na medida dos
seus desejos,

10
NUMERO V

Bento Maciel intenta este descobrimento

Esta mesma ância despertava não somente os ânimos


dos Castelhanos, pelas partes do Perú, mas se estendia ás
costas do Brasil, moradia dos P ortuguêses, que quizeram,
com o zelo que sempre manifestam em engrandecer a sua
Coroa, começando da foz deste Rio, buscar a sua nascente
e indagar das suas grandezas.
A isto se ofereceu Bento Maciel Parente (36), que
era então Capitão-mór do Pará e é atualmente Governador
do Maranhão. Em cuja conformidade se lhe despachou
uma real Cédula, no ano de vinte e seis, para que levasse
a cabo os seus intentos, os quais cessaram por querer sua
Magestade servir-se da sua pessoa na guerra de Pernam-
buco.
(36) Bento Maciel Parente tomou posse do cargo de
capitão-mór do Pará em 18 de julho de 1622. Em 20 de
maio de 1623 chegou a Belém "pela escala de Pernambuco
uma caravela, que levava a seu bordo o capitão Luis Aranha
de Vasconcelos com especiais ordens do Ministério de Madrid,
para sondar o rio das Amazonas e reconhecer todos os sítios
que ocupavam nele os holandêses, e mais nações da Europa
com intruso domínio". A 18 de junho saiu de Belém Bento
Maciel Parente, levando como auxiliares aos capitães de in-
fantaria Pedro Teixeira, Aires de Sousa Chichorro e Salvador
Melo, em socorro de Luis Aranha que estava em perigo no
Curupá. Aí chegado, construiu um forte que guarneceu com
50 soldados, intitulando-se "deste mesmo tempo por diante
primeiro descobridor e conquistador dos rios Amazonas e
Curupá". Não foi ele adiante desse ponto, não porque o
tivessem chamado para a defesa de Pernambuco, mas por
voltar ao seu cargo em Belém.
NUMERO VI

Manda-se a Francisco Coelho que faça esta

Parece que não se aquietava o coração do nosso Rei


até ver realizada coisa que tanto se desejava, e que de si
tanto prometia. E embora malograssem todos os projetos
e expedições, que para esse fim ordenava a prudência
humana, nem por isto deixava de insistir no principal
intento, para o que despachou, aí pelos anos de trinta e tres
ou trinta e quatro, uma cédula real a Francisco Coelho de
Carvalho (37), que nessa ocasião estava como Governador
do Maranhão e Pará, com a ordem expressa de que desde
logo se fizesse o dito descobrimento, e que não havendo

(37) Foi Francisco Coelho de Carvalho o primeiro Go·


vernador nomeado para o Estado do Maranhão, depois das
escusas de D. Diogo de Cárcano, castelhano naturalizado, e
de D. Francisco de Moura (que "pedia demasiadas assistên-
cias) . Antes de ir assumir o seu Governo esteve Francisco
Coelho em Pernambuco, na defesa contra os holandêses. Só
em 1626 tomou ele posse do seu cargo, chegando a S. Luís
em 3 de julho, a bordo de um navio "a que seguiam quatro
caravelões ". A 15 de abril de 1627 saiu da cidade de S. Luis
a bordo de um patacho, indo a visitar a capitania do Grão
Pará. Em 1628 novamente mandou visitar a capitania por
seu filho Feliciano Coelho. Foi este que por mais de uma
vez entrou pelo rio das Amazonas, nunca passando, porém,
do forte de Gurupá. Morreu F rancisco Coelho em Cametá
a 15 de setembro de 1636.
14ó CARVAJAL, ROJAS E ACUNA

a quem enviar, fosse el_e em pessoa a pô-lo em execução,


tanto era o desejo de sua Magestade de que se efetuasse
o que por todas as partes se intentava e por nenhuma
chegava à devida execução. Mas tão pouco a teve nesta
ocasião, por não se julgar o Governador com forças su-
ficientes para poder dividi-las, quando o H.olandês in-
festava cada dia as suas costas, e apenas tinha gente para
poder resistir aos seus ataques.
Mas não é de admirar que humanas traças malo-
grassem, quando o divino desígnio já tinha disposto o
modo quase milagroso com que se havia de fazer este
grandioso descobrimento, que foi como aqui direi.
NUMERO VII

Navegam este Rio dois Religiosos leigos de São


Francisco

A cidade de São Francisco de Quito, que é uma das


mais famosas de toda a América, está edificada sobre
montes, na mais alta Cordilheira que corre por todo aquele
novo Orbe, a menos de meio grau da banda do Sul da
linha Equinocial, e Capital de uma província, que é a mais
ferti l, mais farta, mais aprazível e de melhores ares que
nenhuma outra do Perú, e que na multidão de naturais,
cortezias, boa educação e Cristandade deles, a todas se
avantaja.
Saíram desta cidade, durante os anos de trinta e cinco,
trinta e seis e principios de trinta e sete, alguns R eligiosos
de São Francisco, por ordem dos seus superiores, em
companhia do Capitão João de Palácios ( 38) e outros
soldados, para que proseguissem, estes no temporal e

(38) Corria o ano de 1636 quando os missio nários fran-


cisca nos de Quito, depo is de infelizes e infrutíferas tentativas
de catequese dos índios Cenhos e Becabas do alto Putumaio,
se recolheria·m ao co nvento. Dois deles, o provincial F r. Lou-
renço Fernandes e um irmão leigo, Fr. Domingos de Brieva,
se hospedaram na casa do tenen te general da provinc ia dos
Cofanes, ca pitão Gabriel Machacon, residente na cidade de
Alcalá do rio do O uro ou Ag uarico. Poucos dias depois da
partida do P. Comissá rio, aí esteve outro leigo, Fr. Pedro
Pecador, que, sabendo que Machacon t inha n as margens do
148 CARVAJA L, ROJAS E ACUNA

aqueles no espiritual, no descobrimento deste rio, começa-


do, havia mais de trinta anos, pelos padres da Companhia
de Jesús, e pelos Cofanes, onde os naturais mataram
cruelmente ao Padre Rafael Ferrer, como paga da dou-
trina que lhes ensinava.
Chegaram os ditos religiosos de São Francisco à Pro-
víncia dos Encabelados, muito numerosa em gente, mas
muito pequena para o ardente zêlo com que estes servos
de Deus, como sempre costumam, a pretendiam reduzir
ao grêmio da Igre ja. Demoraram-se entre os naturais
alguns mêses, e vendo o tempo que perdiam, pois Deus
não havia ainda sazonado a messe, uns voltaram para o
seu convento de Quito, ficando os outros em companhia
dos poucos soldados que quizeram permanecer ao lado do
seu Capitão, que poucos dias depois viram por seus olhos
sucumbir às mãos daqueles a quem iam fazer tanto bem.
Forçoso lhes foi abandonar a terra e, enquanto todos os
demais se dirigiam para Quito, dois religiosos Leigos,
chamados Frei Domingos de Brieva e Frei André de
Toledo ( 39), com seis soldados, em uma pequena embar-
cação, se deixaram levar pela correnteza, rio abaixo, sem
outra intenção, ao que se pode imaginar, se não levados
por divino impulso, que a tão fracos instrumentos tinha
confiado o primeiro descobrimento deste Rio.

Napo um capitão e regedor de Alcalá, chamado João de Pa-


lácios, filho de Pedro Palácios, conquistador dos Cofan~5,
pediu licença ao seu anfitrião para acompanhar Palácios, en-
contrando-se na província dos Encabelados, com esse capitão
e mais cinco religiosos de S. Francisco: Fr. João Calderon.
comissário, Fr. Laureano da Cruz, Fr. Domingos de Brieva,
Fr. Pedro da Cruz e Fr. Francisco de Pinha,
(39) Veja-se a nota 10.
NUMERO VIH

Chegam os religiosos ao Maranhão

Deus favoreceu o intento destes dois religiosos; e


depois de muitos dias de navegação, em que bem experi-
mentaram a sua providência, chegaram á cidade do Pará,
povoação de Portugal, que está situada a quarenta léguas
de onde este rio desemboca no Oceano, e jurisdição do
Governo do Maranhão, havendo passado sem dano algum
por ímensas províncias de Bárbaros ( e muitas deles Ca-
ribas, que comem carne humana), dos mesmos r ecebendo
o necessário sustento para chegar ao cabo de sua empresa.
Passaram logo à cidade de S. Luiz do Maranhão,
onde residia o Governador, que era então Jácome Rai-
mundo de Noronha (40), eleito, ao meu ver, mais por
providência divina que pela voz do povo, pois nenhum
outro artaria com tantas dificuldades nem se oporia a tá.o
contráríos pareceres, se não tivesse o zêlo e deveres que
lhe competiam, de servir desinteressadamente neste desco-
brimento ao seu ,Deus e ao seu Rei.
A ele, pois, deram os religiosos notícia de sua viagem,
que foi como de pessoas que cada dia vinham fugindo das
mãos da morte, e o mais que puderam esclarecer foi di-
zerem que vinham do Perú, haviam visto muitos índios
e que se atreveriam a voltar por onde tinham descido,
haven<Io quem qui-z.esse seguir esta derrota.
( 40) Era Ja come Raimundo de Noronha provedor mór
da Fazenda Real, quando morreu Francisco Coelho. Sabendo
deste sucesso por Antonio Portilho, se fez eleger pela câmara
de S. Luiz, tomando posse do governo a 9 de outubro, nele
permanecendo até 27 de janeiro de 1638, quando foi substituido
NUMERO IX

E' nomeado para essa conquista a Pedro Teixeira

Ficaria confuso neste estacjo o nosso descobrimento


e mal poderia sua Magestade tomar resolução do que
conviria ao seu Real serviço, se o Governador, corno já
disse, não tomasse a peito aclarar estas sombras e, contra
o parecer de todos, enviar gente rio acima, até à cidade
de Quito, para que cotn mais atenção e menos receios
notassem tudo o que nele encontrassem digno de atenção.
Para semelhante empreza nomeou por cabeça e cau-
dilho de todos a Peclro Teixeira (41), por sua Magestade
Capitão dos descobrimentos, pessoa a quem o céu havia
sem dúvida escolhido para esta ocasião, pois só a sua
prudência e a noção dos seus deveres permitiram levar a
cabo o que ele cometeu e fez, em serviço do seu rei nesta
jornada, não só com gastos e perdas ele sua fazenda, mas
também com muito dispêndio de sua saúde, embora nada
disso fosse coisa nova em quem, durante os largos anos
que serviu a sua Magestade, nunca buscou outros inte-
resses que o dar honrada conta de tudo o que se lhe
encarregou, que foi muito, e em ocasiões de não pouca
importância.

por Bento Maciel Parente, donatário da Capitania do Cabo


do Norte, por doação de Felipe IV, datada de 14 de junho
de 1637.
(41) Veja-se a nota 12.
NUMERO X

Pedro Teixeira começa a sua viagem


Saiu, pois, este bom caudilho dos confins do Pará
( 42) aos 28 de outubro de mil seiscentos e trinta e sete
anos, com quarenta e sete canoas de bom tamanho ( em-
barcações de que adiante falaremos) e nelas setenta sol-
dados portuguêses, mil e duzentos indios de voga e guerra, .
que, juntos ás mulheres e moços de serviço, passariam de
duas mil pessoas.
Durou a viagem cerca de um ano, tanto pela força
das correntes, como também pelo tempo que, em preparar
subsistência para tão numeroso exército, era forçoso se
gastasse, e principalmente por caminharem sem guias
certos, que os pudessem dirigir sem rodeios nem dilações
pelos caminhos mais curtos.
E como tiveram de seguir este caminho tão comprido,
e pelos incômodos que nele se passavam, começaram os

( 42) Para a expedição de subida do rio das Amazoníls,


levando como guia, em bora inexperto, ao irmão leigo Fr. Do-
mingos de Brieva, foi nomeado comandante, com todos os
poderes de General do Estado e patente de capitão-mó r Pedro
Teixeira, tendo por mestre de campo ao ca pitão de infantaria
Antonio de Almeida Azamhuja, e mais o sargento-mór Felipe
de Matos Cotrim e os capitães de infantaria Pedro da Costa
Favela e Pedro Baião de Ab reu . Em 25 de julho estava
Pedro Teixeira em Belém, de onde passou a Cametá. E' este
ponto que Acufia chama "confins do Pará".
152 CARVAJAL, RoJAS E AcuNA

índios amigos a demonstrar pouca vontade de prosseguir,


e de fato alguns voltaram para as suas terras.
Receoso o Capitão-mor de que os mais fizessem o
mesmo, e o deixassem impossibilitado de continuar viagem,
usou de manha, já que nem o rigor nem a fôrça bastavam
para conservar os que estavam vacilantes.
Embora se encontrasse em meio do caminho, fingiu
estar muito próximo do termo e, aprestando oito canoas
bem guarnecidas de remeiros e soldados, mandou-as ir
adiante, como se fossem preparar alojamento para o res-
tante do exército, mas em verdade nã o eram senão desco-
bridoras do melhor caminho, no qual, mil vezes duvidosos
do certo, titubeavam.
NUMERO XI

Adianta-se o coronel Bento Rodrigues


Pedro Teixeira nomeou cabo desta esquadrilha ao
coronel Bento Rodrigues de Olivei ra ( 43), filho do
Brasil e pessoa que, criada toda a sua vida entre os natu-
rais, bem lhes conhece os pensamentos e, com pequenas
mostras, adivinha o que têm no coração, com o que é
conhecido, temido e respeitado de todos os índios daquelas
conquistas, e no presente descobrimento foi de não pequena
importância a sua pessoa para levá-lo a termo com a
felicidade que se conseguiu.
Chegou, pois, o coronel com a sua esquadra, depois
de vencidas muitas dificuldades, ao porto de Payamino,
dia de São João, aos vinte e quatro de junho de mil
seiscentos e trinta e oito anos, que é a primeira residência
de Castelhanos que, por aquelas partes, sujeita á jurisdição
de Q uito, assenta nas margens deste grande rio, embora
pelo ,Napo ( do qual depois se fará menção) houvesse
tido toda a armada melhores portos, mais edificações e
menos perdas, não só de índios como de bens.

( 43) D este Coronel Bento Rodrigues sabe-se apenas o


que informa Acufía. O estra tagema de que usou Pedro Tei-
xeira teve começo em 27 de feve reiro de 1638, pouco além
da ilha grande das Areias.
NUMERO' xn

O capitão deixa o exército na província


dos encabelados

Ia o Capitão-mor seguindo sempre os rastos e avisos


que o seu Coronel lhe deixava nas dormidas, com o que,
de novo animado, cada dia pensavam que o imediato seria
o último da jornada. Sustidos com estas esperanças,
chegaram a um rio ( de que já falámos acima), povoado
todo de naturais: de paz em tempos passados, mas já
rebeldes pela morte do Capitão Palácios ( 44).
Pareceu este sítio aprazível para deixar alí acampada
toda a força do exercito, nomeando por capitão e cabo

(44) Conta Fr. Diego de Cordoba y Salinas: Muito


consolados no Senhor se achavam nesta provinda (dos En-
cabelados) os cinco religiosos e dois leigos, catequizando a
uns e batizando a outros. Os indios queriam e estimavam
aos religiosos, e, mesmo a forma, os levavam a suas casas e
os regalavam com muito carinho. Sucedeu nesse ínterim
outra não menor contra dição do Demônio para impedir os
frutos que tanto o perturbavam, e foi que o capitão João de
Palácios maltratou a um índio principal, o qual, ofendido, con-
vocou aos demais, e todos vieram sobre os espanhois com as
armas nas mãos. O capitão, mais imprudente que valente, se
lançou a eles com espada e rodela, mas em breve lhe tiraram
a vida, e a nós a esperança de poder ir adiante naquela
conversão".
DESCOBRIMENTOS DO Rro DAS AMAZONAS 155

de todos a Pedro da Costa Favela ( 45), para que, com


a companhia que levava sob as suas ordens, ali se conser-
vasse até nova ordem; e ficou também com a sua o capi-
tão Pedro Baião, pessoas que mostraram nesta ocasião o
valor com que -durante tantos anos haviam exercitado a
milícia, e a fidelidade com que obedeciam às ordens dos
seus superiores, pois a pé quedo esperaram onze mezes,
sem nunca intentar outra coisa, apesar-de ser a terra
doentia, os mantimentos nenhuns, si não os que buscavam
com as armas, e êsses tão minguados que apenas parece
podiam ser suficientes para conservá-los com vida.
Mas bem convencido estava o Capitão-mor dos que
deixara em semelhantes riscos, que só a morte os poderia
afastar do cumprimento das suas ordens.

(45) Pedro da Costa Favela e Pedro Baião tinham sido


nomeados por J ácome R ai mundo d_e Noronha para acampa·
nharem a Pedro Teixeira como chefes de duas companhias
de infantaria.
NUMERO XIII

O capitão-mor chega a Quito

Com esta confiança e poucos companheiros, continuou


Pedro Teixeira em seguimento do seu Coronel, que já
se encontrava desde alguns dias na cidade de Quito. ( 46)

( 46) Neste ponto a narrativa de Berredo, com os dados


do Padre Manuel Rodrigues, completa a de Acuna. Diz ele
que Pedro Teixeira chegou á província dos Encabelados em
3 de julho, deixando aí parte de suas t ropas e continuando com
poucos companheiros até Paiamino, onde des embarcou em 15
de agosto. E continua: "Neste lugar achou as canoas do Co-
ronel Bento R odrigues de Oliveira com as alegres novas da
sua jornada, que seguindo logo pelos mesmos passos com um
total desprezo das as perezas, -e esterilidade do País, qu e lho
dificul tavam, chegou à cidade de Baeça, on de foi socorrido por
ordem já da R eal Audiência de Quito, que executou tão gene-
rosamente o seu Comissário, que se chamava N. Pinto, que não
satisfeito de dispender só o cabedal alheio, gastou muito do
próprio, a ssim na profusão da hospedagem de oito dias, assi3-
tida sempre de plaus íveis festejos, como na abunclância de man-
timentos para todo o caminho, em Que não mos trou menos a
grandeza de ân imo; e montados já os portuguêses ern cavalos
e mulas, saíram desta povoação em 14 de outubro,
"Com poucas Jornadas chegou Pedro Teixeira à aldeia de
Pupas, doutrina de religiosos franciscanos, junto da qual havia
também uma povoação de Castelhanos, onde o esperava o co-
ronel Ben to Rodrigues de Oliveira com todo o corpo do seu
destacamento depois de ter gozado por muitos dias dos ~galos
de Quito; e' aqueles moradores, para darem mais evidentes
provas do seu contentamento nas muitas festas com que os
DESCOBRIMENTOS DO RIO DAS AMAZONAS 157

Aí foram bem recebidos e agasalhados, tanto dos


Seculares como dos Eclesiásticos, mostrando todos o
prazer que sentiam em ver, em seu tempo, e por vassalos
de Sua Magestade não só o descoberto, senão também
navegado, desde a sua foz até suas primeiras nascen-
tes, ao afamado r io Amazonas.

receberam aos novos hospedes, entrou a de touros, que correram.


dois dias, acrescentando a generosidade de permitirem aos
nossos índios que matassem todos com as suas frechas; o que
fazendo eles com grande destreza, se multiplicavam os aplausos
do povo".
"Já em Baeça tinha Pedro Teixeira recebido cartas de D.
Afonso Peres de Salazar, Presidente da Real Audiência de
Quito, do Bispo daquela Diocese, e dos Prelados principais;
das Religiões, com os parabens da singular vitória, que havia
conseguido na sua jornada, e vivas expressões dos alvoroço~,
com que o esperavam, para a festejarem com as demonstrações
que ela merecia; e vendo-se agora cinco léguas só da mesma
cidade, avisando-a da sua vizinhança, lhe chegou logo a cortezã
resposta, de que continuando a sua marcha, fizesse alto no
santuário de Na. Sa. de Guapulo, que fica na distância de meia
légua, para as formalidades da sua entrada; mas estava ela tão
ajustadamente prevenida, que ocupando o sítio sinalado, com toda
a boa ordem da disciplina militar, revestidos de capas de aspe:-
ge~, os sacerdotes daquele templo o receberam com o sagrado
hino do Te Demn, acompanhado da sonora harmonia de um grande
número de instrumentos e vozes; e conduzindo-o pelo meio dela
para a Capela Mór (onde achou uma rica cadeira de veludo
cannezim, franjada de ouro, com almofadas da mesma qualidade)
depois de fazer devota oração, lhe puzeram patente, com a ~is
reverente solenidade, a Imagem milagrosa, que se rebuçava c9m
seis véus.
"Saindo da igreja Pedro Teixeira, para continuar o seu cami-
nho, achou junto á porta excelentes cavalos com preciosos jaezçs :
onde montando logo a maior parte dos seus soldados, celebraram
muito os castelhanos a dextreza de todo.s. Mas pouco se tinha
adiantado quando teve maiores fundamentos para a sua g lória,
porque encontrou a nobreza de Quito ricamente vestida, cortej~ndo
o Tribunal da Câmara, que em corpo de ceremônia lhe deu os
158 CARVAJAL, ROJAS E ACUNA

Não foi menor a parte que nestes regozijos tive-


ram todos as Religiões daquela cidade, que são muitas
e mui respeitaveis, oferecendo-se cada qual por si, com
obreiros fieis, para desde logo entrarem a trabalhar na
grande e inculta vinha de imensos bárbaros, dos quais se
lhes dava notícia por seus novos descobrimentos.

parabens de sua chegada por uma discreta oração cheia de


elogios, que recitou um dos seus ministros.
"Era o P residente de.ste T ribunal D. João Vasques da Cunha,
cavalheiro do Hábito de Calatrava; e tendo já posto a Pedro
Teixeira no melhor lugar dele, com as ultimas cláusulas das boas
vindas, o foi encaminhando para a cidade; na qual cresceu de
sorte o festivo concurso de um e outro sexo, que se fez trabalhoso
o despejo das ruas para a passagem de tamanho triunfo até à Real
Audiência, que é o supremo Tribunal do Reino de Quito, que obe-
dece ao governo geral do Perú. E entrando nele bem assistido
de cortejos, os acrescentou muito o seu Presidente, porque saindo
alguns passos da sua cadeira ( que se cobria de um custoso doccl
de veludo carmezim, guarnecido de ouro) depois de o abraçar c9m
afetuo~as demonstrações, engrandeceu com elegantes termos a he-
roicidade da ação, tratando-a também como parto legitimo do valor
Português, para maior glória de Pedro Teixeira; ao qual condu-
zindo para outra casa, se esteve informando, pelo espaço de mai.s
de uma hora, de todos os sucessos do seu descobrimento ; mas nã0
o divertindo este cuidado, do que devia ter na acomodação de tão
honrados hospedes, ao mesmo tempo que o.s despediu, e recom~n-
dou muito a quem pertencia.
NUMERO XIV

Resolução do vlce-re1 do Perú

Recebida naquela Real Audiência de Quito a notí-


cia, que bastava para dar plano concreto do muito que às
duas Magestades Divina e humana importava acudir com
brevidade ao bom ê:xito de negócio tão importante, não
se atreveram os senhores Presidente e Ouvidores a resol-
ver coisa alguma, sem primeiro dar conhecimento ao
Vice-rei do Perú, que era então o Conde de Chinchón ( 47).
Este, depois de consultar sobre o assunto a gente
mais ponderada da cidade de Lima, Côrte daquele Novo

( 47) J erônimo Fernandez de Cabrera Bobadilla y Mendo_za,


conde de Chinchon, chegou a Lima, como vice-rei do Perú em
14 de janeiro de 1629, governou até 18 de dezembro de 1639, vol-
tando então para a Espanha, onde sua esposa tornou conhecida a
quina como remédio antifebrífugo.
A chegada da armada portuguêsa a Quito deixava perplex;i
a Audiência, não tanto por medo de que os baixeis de Holanda e
Inglaterra subissem até lá, mas porque já temiam a rebelião w. r-
tuguêsa (pouco depois uma realidade) e que novamente divididas

11
160 CARVAJAL, ROJAS E Acmh

Mundo, resolveu por carta sua ao Presidente de Quito


( que era o licenciado D. Alouso Perez de Salazar), da-
tada de dez de novembro de seiscentos e trinta e oito,
que o Capitão Pedro Teixeira voltasse logo com toda
a sua gente à cidade do Pará, pelo mesmo caminho por
onde tinha vindo, dando-se-lhe todo o necessário para a

as terras dessa Nova Andaluzia entre as duas coroas, tivessem o~


súditos lusitanos fácil acesso ao vice-reino do Perú. Levaram ao
conde de Chinchón as consultas da Real Audiência e o relatório
de Pedro Teixeira o Jesuíta P. Pedro Dorado e o pi loto-mór
Bento da Costa (autor do mapa que publicamos). Diz Monte-
sinos no O/ir Peruano: "Consultou o vice-rei a matéria com pes-
soas inteligentes. Cometeu o informante ao licenciado D. Fernando
de Saavedra, alcaide da Côrte mais antigo e pouco depois ouvidor
da Audiência dos Reis, e após nova consulta sobre o caso ao Licen-
ciado Montesinos, que lhe declarou algumas coisas, em verdade
repugnantes, que vinham na relação e informou de certas notícias,
roteiro e mapa, tomou a .sua resolução". Foi esta a de que Pedro
Teixeira voltasse imediatamente para o Pará.
Em Quito continuava a população em grandes festejos aos
portuguêses, com gerais luminárias, fogos de artificio e touradas.
Enquanto se esperava a resposta de Bobadilla y Mendoza, o
capitão Pedro da Costa, que ficara com o grosso do exército, co-
municava que os Encabelados haviam morto alguns soldados e que
a sua gente tinha feito prisioneiros uns 50 índios. querendo fazer
justiça. Mas como não havia certeza de que estes fossem os cul-
pado.s, não os tinha castigado. Dizia mais que alguns soldados
tinham morrido sem confissão, pedindo que lhe mandassem, para
dizer missa e confessar, F r. Agostinho das Chagas.
DEscoBRIMENTOs no Rro DAs AMAZON As 161

viagem, pela falta que tão bons capitães e soldados fa-


riam sem dúvida naquelas fronteiras, que de ordinário
são infestadas pelo inimigo Holandês, mandando junta-
mente que, se fosse possível, se dispuzessem as coisas de
modo que fossem em sua companhia duas pessoas dignas,
às quais se pudessem -dar fé pela Coroa de Castela, de
todo o descoberto e do mais que na viagem de volta se
fosse descobrindo.
NUMERO XV

O general D. João de Acufia se oferece para a


jornada

Poz a todos perplexos a execução desta última or-


dem de Vice-rei, pelos muitos inconvenientes que à pri-
meira vista apresentava.
Não faltavam, contudo, seculares zelosos do serviço
de sua Magestade, que à porfia desejava cada qual ser
um dos nomeados para tamanha empreza. Mas quem
entre todos se mostrou mais ancioso por novas ocasiões
em que prosseguir no serviço do seu rei, o que já fizera
por mais de trinta anos, e os seus antepassados por toda
a vida, foi D. João Vasques de Acufia, Cavaleiro do Há-
bito de Calatrava, tenente de Capitão General do Vice-
Rei do Perú e atualmente corregedor, por sua Magestade,
de espanhois e naturais, na mesma cidade de Quito e sua
comarca, o qual oferecia não só a sua pessoa mas igual-
mente os seus bens para, à própria custa, pagar soldados,
comprar mantimentos, dispôr munições, fazer todos os
gastos necessários para tão longa viagem, só com o in-
teresse, que sempre teve, de que seu Rei e Senhor fosse
servido.
Não surtiu efeito o seu bom desejo, por não dar
licença quem podia e a negou, atendendo à falta que po-
deria fazer, deixando o cargo que exercia atualmente.
DESCOBRIMENTOS oo Rro DAS AMAZONAS 163

Não quiz Deus que tão honrados desejos ficassem de


todo frustrados, dispondo as coisas de modo que, já que
ele não ía, fosse em seu lugar o padre Cristobal de
Acufía, Religioso da Companhia de Jesus, seu irmão,
tendo como grande felicidade poder por este modo ofere-
cer ao serviço de Sua Magestade coisa que tanto esti-
mava, e tão de perto lhe tocava, o que aconteceu como
adiante se. conta. ( 48)

( 48) A versão de Frei Laureano é levemente diferente. Diz


ele, que, conhecida em Quito a determinação do Vice-Rei, o 1Jadre
provincial da Compauhía de Jesús, padre Franci.sco de Fuentes
" havia oferecido por uma petição para tal mis.são os padres Cris-
tobal de Acufia e Andrés de Artieda ", o primeiro reitor do Colégio
de Cuenca e o segundo professor de Teologia no seminário de Quito,
"aos quais os senhores da Real Audiência despacharam com as suas
provisões e recados necessários". Antes (ou ao mesmo tempo)
o licenciado Perez de Salazar, presidente daquela Audiênda, pre-
tendera essa espinhosa missão para um filho seu, e para o corre-
gedor João Vasquez de Acuiía. Diz mais Fr. Laureano: "O que
negociaram os servos de Deus ( os F randscanos) não soube, mas
soube por certo que o general D. J oão de Acufia foi de Quito
para Potosi como corregedor e o licenciado D. Alonso Perez de
Salazar para Charcas, como J?n,sidente. Com o que se poz silên-
cio a este negócio ".
NUMERO XVI

A real audiência nomeia o padre Cirstobal de


Acufia para esta jornada

Vendo o licenciado Suarez de Poago, fiscal da Real


Chancelaria de Quito, já de partida a Armada Portuguê-
sa e considerando, como fiel Ministro de Sua Magestade,
as muitas vantagens e nenhuns inconvenientes que d'aí
podiam advir, achou de bom aviso que dois religiosos da
Companhia de Jesus a acompanhassem, notando com
cuidado tudo o que fosse digno de reparo neste grande
rio, com cuja notícia passassem à Espanha, para dar
uma relação segura de tudo ao Real Conselho das Indias
e, sendo necessário, ao Rei Nosso Senhor, em sua Real
Pessoa.
Como o pensou o Fiscal, assim o propoz ao Real
Acórdão, e a todos parecendo boa a proposta, dela se
deu conhecimento ao Provincial da Companhia de Jesus,
que nessa ocasião era padre Francisco de Fuentes, o
qual, estimando a honra que se fazia à sua Religião, em
confiar-lhe coisa de tamanha importância, e cubiçoso de
que por esta via se lhe abrisse a porta por onde entrassem
os seus filhos, a levar a nova luz do Santo Evangelho a
tão grande número de almas, que neste grande rio jazem
na sombra da morte, nomeou em primeiro lugar, para
esta empreza, ao padre Cristobal de Acuiía, religioso
professo, e atual reitor do colégio da Companhia na cidade
DESCOBRIMENTOS oo RIO DAS AMAZONAS 165

de Cuenca, jurisdição de Quito; e em segundo logar,


por seu companheiro, ao padre Andrés de Artieda, lente
de Teologia no dito Colégio da mesma cidade de Quito.
Aceita pelos senhores da Real Audiência a nomea-
ção dos dois Religiosos da Companhia de Jesus, se lhes
mandou uma Provisão Real ( cuja cláusula puzemos no
começo desta narrativa), na qual se lhes ordena que,
sendo com ela requeridos, partam imediatamente da cida-
de São Francisco de Quito, em companhia do Capitão
Mor Pedro Teixeira, e chegando à do Pará, passem à
Espanha, a dar conta ao rei, nosso Senhor, em sua real
pessoa, de tudo o que cuidadosamente tiverem notado no
decurso da viagem.
NUMERO XVII

Saem os padres de Quito

Obedecendo logo ao que se lhes ordenava, aos 16


dias do mez ·de Fevereiro de 1639 deram princípio a
tão longa viagem, que durou por espaço de dez mezes,
até chegaram á cidade do Pará, em cujo porto entraram
aos 12 de Dezembro do mesmo ano. ( 49)
Aí chegaram depois de haver calcado com suas plan-
tas os alcantilados cerros, que com o licor das suas veias
alimentam e dão o primeiro sustento a este grande Rio,
e caminhado sobre as suas ondas até onde, dilatado em
oitenta légua ,de boca, paga caudaloso tributo ao mar
Oceano; ,depois de haver notado com muito particular
cuidado tudo o que nele há digno de reparo; depois de
haver marcado sua ,altura (29), assinalado por seus
nomes os rios que lhe são tributários, reconhecido as na-
ções que se sustentam em suas margens, visto a sua
fertilidade, apreciado os seus recursos, experimentado o
seu clima, comunicado com os seus naturais e, finalmente,

( 49) Iam mais em companhia de Pedro Teixeira, além dos


dois Jesuitas, os Religiosos da Ordem Calçada de N ossa Senhora
das Mercês, Pedro de la Rua Cirne, J oão das Mercês e Diogo ·da
Conceição, tendo como seu superior a Fr. Afonso de Armej o, que
veio a falecer em viagem, sendo substituido por Fr. Pedro de La
Rua, fundador dos conventos da mesma Ordem nas cidades de
Belém e São Lui.s.
DESCOBRIMENTOS DO R io DAS AMAZONAS 167

depois de não haver <lespreza<lo nada do que nele se


contém e de que foram testemunhas.
Assim. como a pessoas com tantas obrigações de
serem pontuais no que se lhes há encomendado, peço a
todos os que lerem este relato, que me dêem o justo cré-
dito, pois eu, uma destas testemunhas, c cm nome e por
parecer de ambas, tomei a pena para esc,·evê-lo.
Digo isto porque poderá ser que outras narrativas
venham à luz, talvez não tão aj ustadas à verdade como
convinha. E sta o será e tanto, que de modo algum nela
porei coisa que não possa, de fronte erguida, testemunhar
com mais de cíncoenta Espanhois - Castelhanos e Portu-
guêses, que fizeram a mesma viagem, a firmando o certo
por certo e o duvidoso como tal, para que em assunto
tão grave e de tanta importância, ninguém se atreva a
acreditar mais do que o que se afirma nesta narração.
NUMERO XVIII

O Rio das Amazonas é o maior do orbe

É o formoso Rio das Amazonas, que percorre e


banha as mais ricas, férteis e povoadas terras de todo o
Império do Perú o que de hoje em diante podemos, sem
usar hipérboles, qualificar como o maior e mais célebre
do Orbe. Porque se o Ganges rega todo a India, e por
caudaloso escurece o mar quando desagua nele, fazendo
com que êste perca o nome e se chame Sinu-Gangético,
ou por outro nome Golfo de Bengala; se o Eufrates,
como Rio afamado da Síria e parte da Pérsia, é a delícia
daqueles reinos; se o Nilo rega o melhor da Africa, fecun-
dando-a com as suas correntes, o rio das Amazonas rega
mais extensos Reinos, fecunda mais veigas, sustenta mais
homens e aumenta com as suas águas mais caudaloso
Oceano; só lhe falta, para vencê-los em felicidade, ter
sua origem no Paraíso, como daqueles rios nos afirmam
graves Autores.
Do Ganges, dizem as histórias que nele desaguam
trinta caudalosos rios e que em suas praias se vêem areias
de oiro; no Amazonas desaguam inumeráveis rios, há
areias de oiro e rega terras que atesouram em si infinitas
riquezas.
O Eufrates assim se chama, como notou Santo
Ambrósio, porque com suas correntes alegra os campos,
DEscoBIUMENTOS oo Rro DAS AMAZONAS 169

de modo que os regados este ano teem assegurada abun-


dante colheita no ano seguinte.
Do Rio das Amazonas se pode afirmar que as suas
margens são em fertilidade Paraisas, e se a arte ajudar
à fecundidade do solo, será todo ele uma série de aprazí-
veis jardins. A felicidade da terra, regada pelo Nilo,
foi celebrada por Lucano nestes versos:

Terra Suis contenta bovis, non indigna mercis


A ut J ovis; in solo, ta11,ta est fiduci.a Nilo ( 50) .

Não necessitam as províncias ribeirinhas do Rio das


Amazonas dos estranhos bens; o Rio é abundante em
pesca, os montes em caças, os ares em aves, as árvores em
frutas, os campos em messes, a terra em minas e os natu-
rais, que a habitam, em grandes habilidades e agudos en-
genhos para tudo o que lhes importa, como iremos vendo
no decorrer desta história .

(50) Compare-se com o parágrafo sétimo da narrativa de


Alonso de Rojas.
NUMERO XIX

Nascimento do rio das Amazonas

Dou, portanto, princípio a ela pelo nascimento e


origem deste grande Rio das Amazonas, até agora sem-
pre oculto, querendo cada terra fazer-se mãe de tal filho,
atribuindo às suas estranhas os primeiros sustentos que
lhe dão o ser, chamando-o pelo nome de Rio Maraiion .
erro tão difundido naquelas regiões, que a cidade dos
Reis, Empório de todas as de América, se gloria de que
as Cordilheiras de Guanuco dos Caballeros, à distancia
de setenta léguas do ponto onde está situada, dão berço
a êste afamado Rio e cortam os primeiros cueiros nu-
ma lagôa que aí se encontra. ( S1)
E em verdade não está muito fora do caminho, pois
embora não seja esta a origem do Rio das Amazonas, é
pelo menos a de um dos mais famosos que ele converte
em sua própria substância e, alimentado por suas águas
corre mais brioso o seu curso.
Quer também o novo Reino de Granada aumentar
o seu crédito, imputando às vertentes do Macoá, o pri-
meiro nascimento deste Rio, que em sua origem chamam
os naturais de grande Caquetá, embora sem nenhum fun-
damento, pois em mais de setecentas léguas não se miram

(51) E' esta nascente, no lago Lauricocha, a que lhe atribue


Berredo e foi durante muito tempo tida como a real.
DESCOBRI MENTOS oo Rro DAS AMAZONAS 171

estes dois rios, e quando se encontram, como reconhecendo


ao seu maior , torcendo o Caquetá seu curso, vem pagar
vassalagem ao das Amazonas.
Por outras muitas partes quer o Perú honrar-se com
o princípio e nascimento <leste grande Rio, celebrando-o
e festejando-o como ao Rei dos demais. Mas de hoje
em diante não o permitirá a cidade de São Francisco de
Quito, pois a oito léguas de seu assento tem encerrado
este tesouro, nas fraldas da Cordilheira, que divide a
jurisdição dos Q uitos, ao pé dos cerros, chamados um
Guamamá e o outro Pulca, distantes entre si menos de
duas léguas, dos quais dá este por mãe ao recem-nascido
uma grande lagôa e aquele uma outra, que não é tão ampla,
embora de muita fundura e perfurando um cerro, que
invejoso do tesouro que de si oferecia, com a força de
um terremoto se lançou em cima, pretendendo afogar em
seus inícios tão grandes esperanças, como daquele lago
se prometiam ao mundo. Destas ,duas lagoas, que ficam
vinte minutos abaixo da linha Equinocial, para o lado do
Sul, tem seu princípio o grande Rio das Amazonas. (52)

(52) E' difícil, às vezes, saber quais as que atualmente cor-


respondem às designações de Acufia
NUMERO XX

Seu curso, latitude e longitude


Este rio faz o seu curso de Oeste para Leste, como
dizem os navegantes, isto é, de Poente para o Oriente,
sempre vizinho da linha Equinocial da banda do Sul, por
dois graus, tres, quatro, cinco e dois terços na maior al-
tura. Tem de comprimento desde a sua nascente até
que desagua no mar, mil trezentos e cincoenta e seis
léguas castelhanas, bem medidas, e segundo Orellana mil
e oitocentas. Caminha sempre serpeando em voltas mui
dilatadas, e como senhor absoluto de todos os outros
rios que nele desembocam, tem repartidos os seus br3.ços,
que são como fiei s executores seus, por meio <los quais
lhes vai encontro, e cobrando deles o devido tributo de
suas aguas, os volve a incorporar no Canal principal.
E é coisa digna de notar que tal seja o hóspede que re-
cebe, tais os introdutores que lhe manda; de modo que
com braços ordinários recebe aos rios mais comuns, acres-
centando outros maiores, para os de mais conta; e alguns
que são tais, que quasi se lhe podem pôr ombro com
ombro, ele próprio, em pessoa, com toda a sua corrente
lhes sai a oferecer a hospedagem. De amplitude e lar-
gura varia muito, porque por umas partes se espraia uma
légua, por outras duas, e por outras muito mais, guar-
dando tanta estreiteza em tantas léguas, para com maior
liberdade, dilatado em oitenta de boca, pôr-se barba a
barba com o mar Oceano.
NUMERO XXI

Estreiteza e fundo do Rio


O maior estreito onde este Rio recolhe as suas águas,
é de pouco mais de um quarto de légua na altura de dois
graus e dois terços. Lugar sem duvida previsto pela
Divina Providência, estreitando este dilatado mar doce,
para que em sua augustura se pudesse construir uma for-
taleza que impeça o passe a qualquer Armada Inimiga,
por muitas forças que traga, se por acaso entrar pela
boca principal deste grande Rio; porque entrando pelo
Rio Negro, no mesmo se terá de pôr a defesa. Está
esta angustura a trezentas e sessenta léguas do lago de
onde em oito dias, com embarcações ligeiras, à vela e a
remo, se pode dar aviso muito antes que o Inimigo as
aviste.
A profundidade deste Rio é grande, e em certos pon-
tos é tal que não se acha fundo; desde a embocadura
até ao Rio Negro, que é uma distância de quasi seiscentas
léguas, nunca lhe faltam trinta ou quarenta braças de
altura no canal ,principal; d'aí para cima vai variando
mais, ora com vinte, ora com doze, e ora com oito, muito
em seu começo, fundos suficientes para qualquer embar-
cação, que embora a corrente o impeça, não faltam de
ordinário todos os dias tres ou quatro horas de brisas
fortes, e ás vezes o dia inteiro, com que as vencer.
NUMERO XXII

Ilhas e sua fertilidade e frutas

Todo este Rio está povoado de ilhas, umas grandes,


outras pequenas, tantas em número que não se podem
contar, porque se encontram a cada passo; as ordinárias
são de quatro ou cinco léguas; há outras de dez e de vinte;
e a que habitam os Tupinambás ( dos quais depois fala-
remos), tem mais de seis léguas de circunferência; há
também muitas outras muito pequenas, que servem aos
naturais para as suas lavouras, tendo nas maiores a sua
habitação. Estas ilhas de menor porte, e ás vezes, as maio-
res ou uma grande parte das mesmas, são inundadas todos
os anos pelo Rio, fertilizando-as assim com as suas lamas,
de modo que nunca podem alegar título de estéreis, mes-
mo que por muitos anos continuados se lhes peça a produ-
ção ordinária, que são o milho e a iuca, ou mandioca,'
alimento comum de todos e do qual há -grande abundância;
e embora parecesse estar exposta a grandes diminuições e
perdas em tão poderosas avenidas, a natureza, mãe comum
de todos, <leu a estes bárbaros meio fácil para a sua con-
servação. Colhem a iuca, que são umas raízes, das quais
se faz o caçabe, pão ordinário de todas aquelas costas
do Brasil, e cavando na terra uma cova ou córtes pro-
fundos, as enterram neles, deixando-os muito hem tapa-
dos durante todo o tempo que duram as enchentes, pas-
sadas as quais arrancam as raízes e as beneficiam para
DESCOBRIMENTOS oo RIO DAS AMAZONAS 175

seu sustento, sem que por isso percam um ponto do seu


valor. E se a natureza ensinou a formiga a guardar nas
entranhas da terra, como em celeiro, o grão que há de ser
o seu alimento durante todo o ano, não é muito que desse
atilamento ao Indio, por mais bárbaro que seja, para
prevenir seu dono e guardar o seu sustento; pois é certo
que a Divina P rovidência mais cuida dos homens que
dos animais brutos.

JZ
NUMERO XXIII

Gêneros de bebidas que usam

E' êste, como já disse, o pão quotidiano, que sempre


acompanha às demais viandas. E não só serve de comi-
da, mas igualmente de bebida, a que são em geral mui
inclinados todos os naturais, para o que fazem umas
grandes tortas delgadas que, cozidas no forno, ficam
como biscoitos, de modo que duram muitos mêses; guar-
dam a estas no mais alto de suas casas para conservá-las
livres das umidades da terra, e quando as querem apro-
veitar, deitando-as dentro dágua as desmancham; e cozi-
das lhes dão o ponto que necessitam: repousam este caldo,
e frio é de ordinário o vinho que eles usam, que ás vezes
é tão forte que, como se fosse vinho de uvas, os embriaga
e lhes faz perder o juizo. Com este vinho celebram
as suas festas, choram os seus mortos, recebem os seus
hóspedes, fazem as suas semeaduras e as colhem. E fi-
nalmente não há ocasião em que se reúnam, que não
seja este o azougue que os ajunte e liga que os detenha.
Fazem também, embora não seja tão comum. outros gé-
neros de vinhos, nunca lhes faltando de que lancem mão.-
por muito inclinados que são à embriaguês; eles o fazem
de quaisquer frutas silvestres, tão abundantes nas árvores,
e que desfeitas em agua lhes dão com o seu sumo tal
sabor e força, que muitas vezes excede a cerveja, bebida
tão usada em todas as Nações estrangeiras. Uns guar-
DESCOBRIMENTOS DO R10 DAS AMAZONAS 177

dam estes vinhos em enormes talhas de barro, como as de


nossa Espanha; outros em pequenas pipas, que fazem de
uma só peça, em troncos escavados, e outros em grandes
vasilhas, tecidas de ervas, dando-lhe por fora e por den-
tro um tal betume que não se perde gota do líquido que
nelas se recolhe.
NUMERO XXIV

Frutas que teem

São muitas as viandas que acompanham a este pão


e vinho, não só de frutas como bananas, pinhas, goiabas,
abios, castanhas muito saborosas, que chamam no Perú
castanhas da serra e na verdade mais se parecem com estas
do que com aquelas, embora as chamem assim por nas-
cerem em uns cocos que se parecem com o ouriço da cas-
tanha. Tem palmeiras de diversas qualidades, umas pro-
duzindo sazonados cocos e outras gostosas tâmaras que,
embora silvestres, são de ótimo sabor; e outras muitas
espécies de frutas, todas próprias de terras quentes. Pos-
suem também raízes muito alimentícias, como sejam ba-
tatas, mandioca mansa, a que os Portuguêses chamam
macacheira, carás, trufas da terra e outras, que assadas
ou cozidas, são tão gostosas como substancia. ( 53).
(53) As bananeiras são plantas paleotropicais, ma.s já os des-
cobridores as encontraram crescendo espontaneamente ou cultivadas
pelos indígenas. Não é passivei identificar essas pinhas de que f~la
Cristobal de Acufia. Há na América tropical 110 espécies do gê-
nero P sidium conhecidas vulgarmente pelo nome de araçás e algu-
mas pelo de goiabas. A espécie mais comum, largamente cultivada,
é o Psidiitm guajava. As castanhas da Serra do Perú são as se-
mentes da Lecitidácea Allantoma cylindrica. Na Amaionia é mais
comum a castanha do Pará, chamada na Amazônia simplesmente
castanheira ou tocari ; é como a da serra, da me_sma familia Leciti-
dáceas, segundo alguns autores, pertencendo a duas espécies, se-
gundo outros a um só, a Bertholetia excelsa. 1l macacheira, m<!-n-
dioca doce ( ou aipim dos sulista.s ) é a raiz da M anihot aipi Pohl,
da familia Euforbiáceas. O nome de carás é dado a um grande
número de plantas da familia Dioscoreáceas, do gênero Dioscorea,
de tubérculos comestiveis. · ·
NUMERO XXV

Peixe Boi e Pescados deste Rio


Contudo do que mais se alimentam e que, dizem,
lhes faz pratos, é o incontavel pescado, que com incrivel
abundância colhem todos os dias, às mãos cheias, neste
Rio. Mas entre todos o que como Rei aí domina, e do
qual está povoado todo o Rio, desde as suas nascentes
até que desagua nos mares, é o Peixe-boi, peixe que de
tal só tem o nome, pois não há pessoa que, quando o come,
não o tenha por carne temperada; é do tamanho de um
bezerro de ano e meio e na cabeça, se tivesse chifres e
orelhas, não se diferenciaria dele; tem por todo o corpo
alguns pelos, não mui to compridos, a modo de cerdas
moles, e se move dentro dagua com dois braço curtos,
que em forma de pás lhe servem de remos, de baixo dos
quais mostra a fêmea os seus peitos, com que nutre com
leite os filhos que pare. ( 54)
(54) A descrição de Acuií.a é das mais perfeitas e nenhum
há que se lhe avantaje, até chegarmos a Vv'allace. No livrinho de
Goeldi, tão afamado, não se tem nenhuma idéia desse animal. O
peixe boi amazonico é o Sirênio Tri chec1is 1nanat11s ( e não Mana-
tus inunguis). O último congresso internacional de Zoologia, dando
razão ao que já escrevia Alexandre Rodrigues Ferreira, resolveu
que o nosso peixe boi é do gênero Trichechus, ficando o gên~ro
Manatus para o africano. A boa descrição de Wallace pode ser
lida no livrinho de José Veríssimo - A pesca na Amazônia. A
descrição mais completa que se conhece é a de Alexandre Rodri-
gues Ferreira, publicada no Volume 60 da Revista do Instituto
Geográfico e Histórico da Baía.
180 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

Do couro, que é muito grosso, fazem adargas os


guerreiros, e tão fortes, que bem curtido, não o atraves-
sa uma bala de arcabuz.
Este peixe só se sustenta de erva que pasce, como
se fosse boi verdadeiro, donde adquire a sua carne tão
bom gosto, e é de tanta sustância, que com pequena quan-
tidade fica uma pessoa mais satisfeita e com mais fôrça"
que se comesse o dobro de carneiro.
Debaixo dágua sustém pouco o anhélito e assim,
onde quer que ande, levanta a meúde o focinho para
cobrir novo alento, donde vem a sua total destruição, pois
ele mesmo se vai mostrando ao seu inimigo; vêem-no os
Indios e o seguem em pequenas canoas, e esperam que,
querendo respirar, tire fora dagua a cabeça, e cravando-o
com os seus harpões, que fazem de conchas, lhe tiram a
vida; dividem-no em porções médias, que assadas em
grelhas de pau, duram , sem estragar-se, mais de um mês.
Não fazem dele chacinas para o ano todo ( e que são
de muito preço) por não haver sal em abundância, que
o que empregam para temperar as suas comidas é muito
pouco, e feito de cinzas de certa qualidade de palmeiras,
que mais é salitre que sal.
NUMERO XXVI

Tartarugas do Rio e como as guardam

Mas já que não lhes é dado conservar estas chacinas,


não lhes falta indústria para terem carne fresca durante
todo o inverno, que, embora não seja tão gostosa como
aquela, é mais san e não menos proveitosa.
Fazem para isto uns currais grandes, cercados de
paus, e cavados por dentro, de modo que, como lagoas de
pouco fundo, conservem sempre em si a água de chuva.
Feito isso, no tempo em q_ue as tartarugas saem a
desovar nas praias, eles também deixam as suas casas, e
emboscando-se nos postos conhecidos, por elas mais fre-
quentados, esperam que, saindo à terra, venha cada qual
ocupar-se em fazer a cova onde pretende deixar os ovos;
saem nesta ocasião os Indios, cercam-nas pelo lado da
praia, por onde devem fazer a sua retirada para a água, e
de chofre acometendo sobre elas, em breve tempo se
vêem senhores de grande quantidade, sem outro trabalho
que o de as virar de pernas para o ar, com o que, sem
se poderem mexer, as mantêm todo o tempo que querem,
até que ensartadas todas em vários cordéis, por uns furos
que lhes fazem no casco, lançadas na água, remando eles
em suas canoas, as levam a reboque sem nenhum trabalho,
até metê-Ias nos currais que fizeram, onde as soltam,
dando-lhes por prisão aquele estreito cárcere, e alimentan-
182 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

do-as com ramos e folhas de árvores, as mantêm vivas


por todo o tempo que necessitam.
São estas tartarugas tão grandes e maiores que ro-
delas de bom tamanho ; é sua carne como de vitela ; as
fêmeas teem no bucho, quando as matam, mais de du-
zentos ovos cada uma, um pouco maiores e q\1asi tão bons
como os de galinha, embora de mais dificil digestão. Es-
tão nesse momento tão gordas, que de duas se tira uma
botija de manteiga, a qual, temperada com sal, é tão boa,
mais gostosa e dura muito mais que a cozida de vacas;
serve para frigir peixe e para quaisquer gêneros de gui-
sados, em que aqui se usa a melhor e mais delicada man-
teiga. ( 55).
Apanham estas tartarugas em tal abundância, que não
há um destes currais que não tenha de cem tartarugas
para cima, com o que nunca sabem estes bárbaros que
coisa seja a fome, pois uma só basta para satisfazer uma
família, por muita gente que tenha.

(55) Muito se tem escrito sobre a tartaruga do Amazon;i,s,


Podowemis exPansa, Quelõnio pleurodiro da familia Pelomedú-
sidas. Entre os trabalhos melhores e mais minuciosos, podem ser
lidos com proveito a Memória sobre o Iua.-aretê de Alexandre Ro-
drigues Ferreira, publicada nos Arquivos do Museu Nacional i o
trabalho de João Martins da Silva Coutinho, publicado no Volume
I V do Boletim do Museu Goeldi e o livro de José Verissimo, já
citado - A pesca na Amazônia.
NUMERO XXVII

Modos de pescar que usam

Com facilidade maior gozam os moradores deste


Rio de todas as qualidades de peixes que encerra, pois
nunca receando que lhes falte para o dia seguinte,
pe nsam em prover-se no an terior, senão que se sus-
tentam ,com o que hoje apanham, dispondo-se para
comer amanhã nova colheita.
O modo de pescar é diferente, conforme as variações
do tempo e as enchentes ou vazantes das águas. Assim,
quando estas baixam tanto que já os lagos secam, sem ter
comunicação com o Rio, usam de uma espécie de trovisco,
que naquelas costas chamam timbó, da grossura de um
braço, pouco mais ou menos, e tão forte, que machucados
dois ou tres destes paus, e batendo com eles a agua que
ainda naqueles lagos mantém os peixes, apenas estes
chegam a provar do seu vigor, todos se deixam apanhar
com as mãos. ( 56)
Mas o modo ordinário com que em todos os tempos
e ocasiões se apoderam de quanto peixe vive neste
abastecido rio, é com as flechas que com uma mão arre-

(56 ) O nome de timbó é dado a várias leguminosas dos gé-


neros Tephrosia; e Lonchocarpus e ainda hoje é muito empregado
para intoxicar os peixes, num processo de pesca -condenado,
184 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

messam de uma pázinha que sustentam, e cravadas no


peixe, lhes faz o ofício de boia, para conhecer onde, depois
de ferida, se retira a presa, a que com presteza se arrojam,
e agarrando-a, a recolhem nas canoas. Este modo de
pescaria não se limita a uma ou outra qualidade particular
de peixe, mas em geral se estende a todos, que nem uns
por grandes, nem os outros por pequenos, são privilegia-
dos, passando todos pela mesma rasoura. (57)
Com ser estes peixes, como já disse, de tão diversas
qualidades, são muito bons de gosto, e muitos deles de
particularíssimas propriedades, como é a de um peixe, que
os Indios chamam Peraque, que é a modo de uma
enorme enguia, ou por melhor dizer, como um pequeno
congro, o qual tem a propriedade que, enquanto estivér
vivo, quantos lhes tocam tremem do corpo inteiro enquanto
dura o contacto, como se tivessem um calafrio de quartans,
cessando tudo no instante em que dele se apartam. (58)

(57) E' a pesca chamada com sararaca, bem descrita por


José Veríssimo.
(58) O Poraquê é um peixe Teleosteo, da ordem O.stario-
ficos, familia Ginótidas ( Gymnotus electricus) ao qual se referem
todos os cronistas da Amazônia e descrito em magnificas páginas
por Humboldt. Ultimamente tem sido assunto de uma série de
pesquisas, para estudo dos seus órgãos elétricos.
NUMERO XXVIII

Caças do monte e aves de que se sustentam

Podia bem ser que a estes naturais, enfastiados de


comer somente peixe, embora tão bom, lhes apetecesse,
de vez em quando, alguma carne, e assim lhes proviu a
natureza aos seus caprichos, povoando-lhes a terra-firme
com muitas qualidades de caças, como sejam: antas,
que são do tamanho de uma mula de um ano, e muito,
parecidas com ela na côr e disposição, e o gosto da carne
não difere do de vaca, embora um pouco adocicada. ( 59)
Ha também porcos montezes, não javalís ( os dois
gêneros muito diversos) que teem o umbigo nas costas,
e de que estão povoadas quasi todas as Indias; sua carne
é muito boa e muito san, como também o é a de outra/
espécies destes mesmos animais, que se encontra em
muitas partes, muito semelhante aos nossos porcos ca-
seiros. (60) Há veados, pacas, cotias, iguanas, Yagotis

(59) As antas são os Tapíridas neotrópicos. O pa~re Acuúa


conhecia do Perú a anta negra, andina, com a qual comparava a
nossa (muito parecida com a mula na côr), de espécie diferente,
o Tapirus terrestris.
(60) E' muito interessante este trecho do padre Acuíía, em-
bora dê os nossos porcos do mato como providos do umbigo no
dor.so, erro aliás ainda repetido por Marcgrav, que pelo mesmo
tempo (1442) escrevia: "O taiassú dos brasileiros é um porco sil-
186 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

e outros animais, próprios das Indias, de boas carnes e


de bom gosto, que pouco ficam a dever ás mais regaladas
de Europa. (61)
Ha perdizes nos campos e criam em suas casas al-
gumas galinhas das nossas, cuja semente desceu do Perú,
e de uns a outros se foi estendendo por todo o Rio. Este,
nos muitos lagos que forma, sustenta infinidade de patos
e outras aves aquáticas, para quando eles as queiram
aproveitar. E o que mais admira é o pouco trabalho que
custam todas estas coisas, como se pode deduzir do que
cada dia experimentávamos em nosso Real, de onde, de-
pois de chegarmos à dormida, e depois de ocupados os
Indios amigos, que nos acompanhavam, em fazer barracas
suficientes para todo o alojamento, no que se consumia
muito tempo, se repartiam uns por terra com cães, em
busca de caça, e outros por agua, só com os seus arcos e

vestre, tendo o umbigo nas costas". Acufia é mais preciso quando


chama a atenção de que javali e taiassús .são gêneros diversos.
Hoje os nossos dois porcos do mato estão colocados em distintos
gêneros : o catete é Pecari tajacu e o queixada Taya.sm pecari.
Infelizmente até ao presente ainda não tivemos um mastozoólogo,
que pudesse resolver os problemas da nossa fauna, e o pouco que
se tem escrito é lamentavelmente confuso.
( 61) Os veados que Acuêia deve ter visto na Amazônia ~e-
riam o galheiro Odocoileus suacuapara e algumas variedades do
mateiro Mazama rufa de chifres simples. Para as cutias veja-se
a nota 23. As pacas, facilmente reconheciveis por seu pelágio pin-
talgado, pertencem a três espécies, sendo as brasileiras subespécies
do Cuniculits Paca (L.). A iguana ou sinimbú (Iguana iguana)
é um lagarto grande, alcançando até mais de metro e meio de com-
primento, verde, facilmente reconhecivel por sua crista espinhenta
que lhe percorre todo o dorso. Como o tejú é muito apreciada
por sua carne. E' o tipo de Saurio.s da família lguânidas. Os
Yagotis de Acuíia são os jabotis, Quelónios terrestres, Criptodiros,
da família Testudinidas (Testudo tabu/ata) de amplíssima distri-
buição geográfica,
D EscoBRI MENTos no Rio nAs AMAZONAS 187

flechas, e em poucas horas os víamos vir estes carregados


de peixe e aqueles com caça su ficiente para que todos
ficassem fartos. E isto não era um dia ou outro, mas
todos quantos durou a viagem, que foi tão demorada como
já disse. Maravi lha digna de admiração e que só se pode
atribuir à Paterna Providencia daquele Senhor que, só
com cinco pães e poucos peixes, sustentou cinco mil
homens, ficando-lhes o braço são e as mãos cheias para
maiores liberalidades.
NUMERO XXIX

Clima e temperatura do no

O clima do Rio e de todas as Províncias que lhe são


circunvizinhas é temperado: de modo que nem há . calor
que enfade nem frio que fatigue, nem variedade que seja
moléstia; porque, embora se reconheça algum gênero de
inverno, não é causado pela variação dos Planetas e do
Sol, que sempre nasce e se põe a uma mesma hora,
mas pelas inundações das aguas, que com as suas umi-
dades impedem por alguns mêses as lavouras e frutos da
terra; e é por isso que de ordinário nos regemos naquelas
partes do Perú, de climas tão diferentes, para conhecer
e distinguir o verão do inverno; de maneira que todo o
tempo em que a terra nos produz frutos chamamos verão
e, ao contrário, o inverno aquele em que por algum motivo
estão impedidas as colheitas. Estas são duas por ano
neste Rio, não só de milho, um de seus principais alimen-
tos, como também de outras sementes próprias da terra.
E' verdade que as mais próximas das Cordilheiras de
Quito gozam de mais calor que o restante do Rio, pelas
muitas brisas que de ordinário refrescam os pontos mais
próximos das costas do mar, s~ bem que este calôr, quando
maior, seja igual como o comum de Guayaquil, Panamá
ou Cartagena, refrescando-se em grande parte com os
contínuos aguaceiros de quase todos os dias, trazendo a
todas estas terras a grande vantagem de conservar por
DESCOBRIMENTOS DO RIO DAS AMAZONAS 189

muito tempo os seus mantimentos incorrutos, como expe-


rimentámos nas Hóstias, com as quais todos os dias
dizíamos Missa, e que depois de cinco mêses e meio de
sairmos de Quito, estavam tão frescas como se tivessem
poucos <lias de feitas. Por se terem acabado por este
tempo, não experimentámos o quanto poderiam durar,
coisa que admira aos q ue percorremos diferentes climas
das Indias e sabemos por experiência a facilidade com que
em terras quentes se corrompem mesmo coisas de maior
sustância. Não são os sois deste Rio, com avizinhar-se
tanto da Equinocial, nocivos, nem se conhecem serenos
que façam dano, do que posso dar bom testemunho, pois
raras vezes, em todo o tempo em que por ele naveguei,
deixei de passar as noites inteiras ao relento, sem que
nunca me causassem nem uma dor de cabeça, ao passo que
em outras partes um pequeno raio de Lua costuma me
causar mui desmedidas. E' bem verdade que nos primeiros
dias, quase todos os que vínhamos de terras frias, tivemos
quatro febres, que com outras tantas sangrias nos deixa-
ram livres. Nem tão pouco há neste Rio ares corrutos,
que tão de repente deixam estropiados aqueles a quem
mais ferem como à custa da sua saúde, e às vezes de sua
vida, sente~ muitos em quase todo o P erú. E se não
fosse a praga de mosquitos, tão abundantes em muitas
paragens, se poderia chamar à boca cheia um dilatado
Paraíso.
NUMERO XXX

Disposição da terra e drogas medicinais

Desta apacibilida<le do seu clima nasce sem dúvida a


frescura de todas as suas margens que, coroadas de várias
e formosas árvores, parecem que à porfia estão de con-
tínuo desenhando novas paisagens, em que a natureza se
esmere e a arte aprenda.
Embora pelo comum seja terra baixa, possue também
altos bem proporcionados, campinas desembaraçadas ·de
arvoredos e cobertas de flôres, vales que sempre conser-
vam a umidade e, mais ao longe, montes tão elevados
que com razão podem passar com o nome de Cordilheiras.
Nestes incultos bosques têm os naturais conservada,
para as suas doenças, a melhor botica de simples, que há
no mundo descoberto. Porque aqui se colhe canafístula
mais grossa que em parte alguma, a salsaparrilha mais
perfeita (62), as gomas e resinas salutíferas mais abun-
dantes, o mel de abelhas silvestres mais a cada passo, e
tanto, que raramente se chega a uma paragem onde não
se encontre a gente gastando-a, não só em medicinas, para

(62) A verdadeira canafistula (Cassia fist1da) é uma árvore


indiana, hoje muito cultivada no Brasil como planta ornamental.
Os cronistas davam esse mesmo nome a várias cássias refe-
rindo-se Acufia provavelmente a espécies desse mesmo gênero, tal-
vez a Cassia amazônica e C. sPruceana. Para as salsaparrilhas ver
a nota 22.
DESCOBRIMENTOS DO Rro DAS AMAZONAS 191

o que é muito saudável, mas também sustentando-se dela,


por ser de gosto delicioso, e aproveitando a cera que,
embora negra, é boa e arde tão bem como qualquer outra.
Aqui o azeite de andiroba, que é uma árvore, inestimavel
para curar feridas (63). Aqui o de copaíba (64), árvore_
também, e ao qual não iguala o melhór bálsamo. Aqui se
encontram mil quali<la<les de ervas e árvores de parti-
cularíssimos efeitos; e há ainda por descobrir outras
muitas, que poderiam descrever um segundo Dioscórides
e terceiro P línio e todos teriam bem que fazer para ave-
riguar as suas propriedades.

(63) A andiroba verdadeira é uma árvore alta, de casca cin-


zenta, flôres pequenas, amarelas e vermelhas, com cápsulas quadri-
loculares, da familia Meliáceas ( Carapa guyaiie11sis). A ela se
referem quasi todos os croni.stas.
(64) O nome copaíba é estensivo a várias espécies de Legu-
minosas do gênero Copa.jfera (C. martii, C. nmltíjuya, C. guiancn-
sis, C. reticulata, C. glycycarpa). Do óleo de copaiba escreve Bar-
bosa Rodrigues: ·· Existe o óleo desde o branco aquoso, pas.sando
pelo amarelo até o muito escuro e consistente, oferecendo cada es-
pécie uma nuance e uma consistência. O melhor e o mais resinoso
é o escuro. E' um óleo acre, amargo, de cheiro característico, com
resina liquida e nauseante, que no mais escuro, no fim de algum
tempo se solidifiai no fundo dos vasos, com um aspecto de cera.
Os índios empregam de preferência os mais escuros ". P ara o
mesmo autor copaíba significa árvore de vagens pequenas.

13
NUMERO XXXI

Madeiras e apetrechos para navios

As árvores neste Rio são sem conta, tão altas, que


sobem às nuvens, tão grossas que causam espanto; um
cedro medi com as minhas mãos que tinha trinta palmos de
circunferência. Produzem quasi todas tão boas madeiras,
que não se podem desejar melhores, porque são cedros,
ceibos, pau ferro, pau vermelho e outros muitos, já co-
nhecidos daquelas regiões e experimentados como os
melhores do mundo para fabricar embarcações, as quais
neste Rio, melhor e com menos despesa que em qualquer
parte, se poderão lançar nagua, acabadas e perfeitas, sem
que se necessite da nossa Europa mais que o ferro para a
cravação. Porque aqui, como digo, estão as madeiras,
a pedir por boca; aqui a enxárcia tão forte como a de
cânhamo, de certas cascas de árvores, das quais se fazem
amarras, que por si sós seguram as naus em tormentas
desfeitas; aqui o piche e breu tão perfeitos como os da
Arábia; aqui o azeite, tanto de árvores como de peixe,
para dar-lhes ponto e abrandar a sua dureza; aqui a exce-
lente estopa, a que chamam ernbira, que tanto para cala-
fetar as naus como para corda de arcabuz não se conhece
outra melhor; aqui o algodão para o velame, é a semente
que melhor produzem os campos; e aqui, finalmente, a
multidão de gente, de que depois diremos, com o que nada
falta para fabricar quantos galeões se queiram pôr em
estaleiro.
NUMERO XXXII

Quatro gêneros de coisas proveitosas que há


neste Rio

Há neste grande Rio das Amazonas quatro gêneros


que, cultivados, serão sem dúvida suficientes para enri-
quecer não a um mas a muitos Reinos. O primeiro são
as madeiras, que além de haver muitas de tanta curiosida-
de e estima como o melhor ébano, há tantas das comuns
para embarcações, que se poderiam mandar para outras
regiões, certos sempre de que, por muito que se tirem,
nunca se poderão exgotar. O segundo gênero é o cacau,
de que suas margens estão tão cheias que algumas vezes
as madeiras que se cortavam para o alojamento de todo o
exército eram quasi exclusivamente as das árvores que
produzem este tão estimado fruto da Nova E spanha, e de
todos os lugares onde sabem o que seja o chocolate. Esse
fruto beneficiado é de tanto proveito, que a cada pé de
árvore correspondem de renda todos os anos, fora todos
os gastos, oito reais de prata ; e bem se vê com que pouco
trabalho se cultivam estas árvores neste Rio, pois sem
nenhum benefício da arte, só a natureza as enche de abun-
dantes frutos. O terceiro é o tabaco, que se encontra em
grande quantidade e muito crescido entre os moradores
ribeirinhos; e se se cultivasse com o cuidado que pede esta
semente, seria cios melhores do mundo, porque na opinião
dos entendidos, a terra e clima formam tudo o que se
194 CARVAJAL, RoJAs E Ac u NA

pode desejar para grandiosa colheita. As maiores, que a


meu ver, se deveriam empreender neste Rio, são as de
açucar, qu e é o quarto gênero que, como. o mais nobre,
mais proveitoso, mais seguro e de maiores rendi mentos
para a Coroa Real, e do qual há tempos tanto diminui u
o tráfico no Brasil, mais se deveria tomar a peito, e pro-
curar desde logo instalar muitos engenhos, que em breve
tempo restaurassem as perdas daquela costa. Para o que
não seria mistér nem muito tempo nem muito trabalho,
nem, o que hoje se receia, muita costa; pois a terra para
cana doce é a mai s famosa que há em todo o Brasil, como
podemos testemunhar, os que percorremos aquelas regiões:
porque é toda: ela um maçapê contínuo, que é o que os
lavradores desta planta tanto estimam e com as inunda-
ções do Rio, que nunca duram senão poucos dias, ficam
tão fertilizadas que antes seria para temer o demasiado
viço.
E não será novidade naquela terra levar cana doce,
pois por todo este dilatado Rio, desde as suas nascentes,
sempre a fomos encontrando, que parece dava desde logo
mostras do muito que depois se multiplicará, quando se
queiram fazer engenhos para tratá-la. Estes serão de mui
pequeno custo, por haver, como disse, as madeiras à mão
e a água em abundância, e só se precise de cobre, o que
com muita facilidade fornecerá nossa Espanha, certa do
bom pagamento que por ele havia de receber. (65)

(65) E ' este um do.s capitulos mais notaveis do livrinho de


Acufía por mostrar o alto tino desse jesuita, que em pleno século
XVII dava conselhos que ainda são da mais palpitante atualidade.
Tanto os gêneros Theobroina ( da familia E sterculiáceas) como
Nicotiana (da familia Solanaceas) são próp rios da América tropical.
São hoje bem conhecidos, para que prec:scm esclarecimentos de
uma nota. Não se sabe mais qual seja a pátria de origem da cana
de açúcar; as que Acufía encontrava já eram cultivadas, não sendo
elas conhecidas dos indigenas.
N U MERO X XXIII

De outros gêneros de estítna que aí se encontram

Não só estes gêneros podia prometer este novo mundo


descoberto, com que enriquecer a todo o Orbe, mas tam-
bém outros muitos, que, embora em menor quantidade,
não deixariam de auxiliar com o seu quinhão para o enri-
quecimento da Coroa Real, como são o algodão, que se
colhe em abundância, o urucú, com que se obtém um
vermelho perfeito, que os estrangeiros estimam grande-
mente; a canafístula, a salsaparrilha, os óleos que com-
petem com os melhores bálsamos para curar feridas, as
gomas e resinas perf umadas, a pita, de que se tira o mais
estimado fio, e da qual há grande abundância , e outras
muitas coisas que cada dia a necessidade e a ambição virão
trazendo à luz.
NUMERO XXXIV

Riquezas deste Rio

Não trato das muitas minas de ouro e prata de que


se tem noticia no descoberto, e que forçosamente se desco-
brirão adiante, que, se meu juízo não me engana, hão de
ser mais e mais ricas que todas as do Perú, mesmo que
entrem nelas as do afamado cerro de Potosi. E não
digo isto aereamente, e sem fundamento, apenas levado,
como alguém possa pensar, pelo desejo que mostro de
engrandecer este Rio, mas estribado na razão e na expe-
riência; esta eu a tenho do ouro que encontrámos em
alguns Indios deste Rio, e das notícias que deram das suas
minas; aquela me obriga a fazer o seguinte raciocínio:
O Rio das Amazonas recebe em si as vertentes das
terras mais ricas da América, pois pela banda do Sul de-
saguam nele caudalosos rios, que descem uns das proxi-
midades do Potosi, outros de Guanuco, Cordilheira pró-
xima da cidade de Lima, outros do Cuzco, e outros de
Cuenta e Gibaros, que é a terra mais rica em ouro que há
na terra descoberta.
De modo que por esta parte quantos rios, quantos
mananciais, quantos arroios, quantas fontesinhas vertem
para o Oceano no espaço de seiscentas léguas, que vão
desde Potosi a Quito, todos rendem vassalagem e pagam
párias a este rio, como também o fazem todos os que
DESCOBRIMENTOS DO R10 DAS AMAZONAS 197

descem do novo Reino de Granada, não inferior em ouro


a todos os demais.
Se este Rio, portanto, é a rua direita e o principal
caminho por onde se sobe ás maiores riquezas do Perú,
bem posso afirmar que é o dono principal ele todas.
Além cio que, se o Lago ,Dourado tem o ouro que a
opinião lhe atribue; se as Amazonas habitam, conforme
o testemunho de muitos, entre as maiores riquezas do
Orbe; se os Tocantins em pedras preciosas e abundância
de ouro são tão afamados cio Francês ; se os Omaguas
com os seus haveres alvorotam o Perú, e um Vice-rei
logo mandou a Pedro de Orsua com grosso exército à
procura deles; neste grande Rio tudo se encontra: aqui o
Lago Dourado, aqui as Amazonas, aqui os Tocantíns e
aqui os ricos Omaguas, como adiante · se dirá. E aqui
finalmente está clepositaclo o imenso Tesouro que a Ma-
gestade de Deus tem guardado para enríquecer com ek
a do nosso grande Rei e senhor Felipe Quarto.
NUMERO XXXV

O descoberto tem quatro mil léguas de circuito

Tem de circuito este dilatado Império, segundo boa


Cosmografia, cerca de quatro mil léguas; e não penso que
exagero, porque, se só de comprimento, medidas com
cuidado, tem mil trezentas e cincoenta e seis, e conforme
Orellana, que foi o primeiro que o navegou, mil e oito-
centas; e para cada rio que entra nele de uma e outra
banda, segundo boas informações dos naturais, que po-
voam as suas bocas, mais de duzentas léguas de cada lado
e, por muitas partes, nem mesmo em mais de· quatrocentas
se chega a qualquer povoação dos Espanhois, encontrando
sempre Nações diferentes, fô rça é que lhe concedamos de
largura pelo menos quatrocentos léguas no ponto mais
estreito, que com as mil trezentas e cincoenta e seis, ou,
segundo Orellana, mil e oitocentas de comprimento, lhe
darão de circuito, segundo bôa Arimética, muito pouco
menos das quatro mil que já disse.
NUMERO XXXVI

Multidão de gente e de diferentes Nações

Todo este novo mundo ( chamemo-lo assim) é habi-


tado de bárbaros de distintas províncias e Nações, das
quais posso dar fé, chamando-as por seus nomes, e assi-
nalando as suas situações, umas de vista, outras por
infonnações dos Indios que nelas haviam estado. Passam
de cento e cincoenta, todas de línguas diferentes, tão
dilatadas e povoadas de moradores como as que vimos
por todo este caminho, como depois diremos.
São tão seguidas estas Nações, que dos últimos
povoados de umas, em muitas del as, se ouvem lavrar os
paus nas outras, sem que tamanha vizinhança os obrigue
a fazer as pazes, conservando perpetuamente contínuas
guerras, em que cada dia se matam e se cativam inúo1eras
almas; desaguadeiro ordinário de tanta multidão, sem o
qual já não caberiam naquela terra. Mas embora entre
si se mostrem belicosos e de brios, nenhuns têm para com
o Espanhol, como se observou em toda a viagem, na qual
nunca o bárbaro se atreveu a usar contra os nossos de
outra defesa sinão a de que estão sempre prevenidos os
covardes: a fuga que têm muito à mão, por navegar em
umas embarcações tão leves que, encostando à terra, as
carregam nos ombros, e arrojando-se com elas a um lago,
dos muitos que tem o Rio, deixam burlado a qualquer
inimigo que com a sua embarcação não possa fazer outro
tanto.
NUMERO XXXVII

Armas de que usam os Indios


Suas armas são, em uns, azagaias means e dardos
lavrados de madeiras duras, bem aguçados nas duas
pontas, e que atirados com dextreza atravessam com fa-
cilidade o inimigo.
Em outros são estólicas, armas em que os guerreiros
do Inca, grande Rei do Perú, eram mui dextras; são
estas estólicas uns paus achatados, de uma vara de com-
primento e tres dedos de largura, em cujo remate, na
parte de cima, fixam um dente de osso, onde se prende
um~ flecha de nove palmos, com a ponta também de
osso, ou de madeira muito dura que, lavrada em forma
de harpão, fica como garrocha, pendente daquele a quem
fere; eles a seguram a esta com a mão direita, na qual
têm a estólica pela parte inferior e, fixando-a no dente
superior, a disparam com tal força e acerto, que a cin-
coenta passos não erram tiro. (66)

(66) E~sa interessante arma dos Omaguas é descrita pelos


cronistas portuguêses com o nome de palheta, ou com o nome im-
próprio de ba\estilha. Alguns preferem essa designação estólica,
usada pela primeira vez por Acuna. Parece ser o mesmo que os
índios do Xingú chamam triboi. E' · pena que nem Acuiía nem
Rodrigues Ferreira, que nos deixou uma estampa magnífica de um
Cambeba usando a sua palheta, tivess.Êm registado o nome que
lhe dão os Cambebas, nem essa designação triboi se tenha gene-
realizado.
DESCOBRIMENTOS DO RIO DAS AMAZON.t,.S 201

Com estas armas pelejam, com estas flecham a


caça, e com estas são senhores <le qualquer pescado, por
mais que se lhes queira esconder entre as on<las; e o que
mais admira, com estas fisgam as tartarugas, quando,
fugindo de ser reconhecidas, só de quando em quando,
e por um tempo muito breve, mostram a cabeça em cima
das aguas, atravessando-!hes o pescoço, unico ponto
em que, por estar livre das conchas, se pode fazer tiro.
Usam também para a sua defesa de escudos, que
fazem · de canas bravas, fendidas ao meio e tecidas aperta-
damente umas com as outras, que embora mais leves,
não são tão fortes como as outras que já referi, de
peixe-boi.
Algumas destas nações usam de arcos e flechas,
armas que entre todas as demais é sempre respeitada,
pela força e presteza com que ferem.
Abundam as ervas venenosas., de que fazem em
algumas nações uma 1){:~onha tão eficaz. que ervadas
com ela as flechas, em chegando a tirar sangue, tiram
juntamente a vida.
NUMERO XXXVIII

Seu comércio é pela agua, em canôas

Todos os que vivem às margens deste grande Rio


estão congregados em grandes aldeias e, como Venezia-
nos ou Mexicanos, todo o seu trato é por agua, em pe-
quenas embarcações, que se chamam canoas; estas ordi-
nariamente são de cedro, de que a Providência de Deus
abundantemente os proviu, sem que lhes custe o traba-
lho de cortá-lo ou tirá-lo do monte, enviando-o pelas
avenidas do Rio, que, para suprir a esta necessidade, o
arranca das mais distantes Cordilheiras do Perú, e o
põe às portas de suas casas, onde cada qual escolhe o
que mais à conta lhe parece.
E é de admirar, vendo que entre tanta infinidade de
Indios cada qual necessita, pelo menos para sua famíl ia,
de um dois paus, dos quai s lavra uma ou duas canods,
como de facto as tem, a nenhum lhes custa mais trabalho
que chegando à margem, deitar-lhe um laço quando vai
passando, e amarrá-lo aos umbrais de suas portas, onde
fica preso, até que, havendo já baixado as aguas, e apli -
cando cada qual a sua indústria e trabalho, lavra a em-
barcação de que tem necessi dade.
NUMERO XXXIX

As ferramentas que usam

As ferramentas de que se utiliz am para trabalhar,


não só as suas canoas, mas também as suas casas e o mais
de que hão mistér, são machados e enxós, nã~ temperados
por bons oficiais nas fe rrarias de Viscaia, mas forjadas
nas frágoas de seus enteJ1dimentos, tendo por mestra,
como cm outras coisas, a necessidade. Esta lhes ensinou
a cortar no casco mais duro da tartaruga, que é a parte
do peito, uma prancha de um palmo de comprimento e
pouco menos de largura, que curada no fumeiro, e af iada
numa pedra, é presa num cabo, e com ela, corno bom
machado, embora não com tanta presteza, cortam o que
desejam.
D este mesmo metal fazem as suas enxós, servindo-
lhes de ca'bo para elas uma queixada de peixe-boi, que a
natureza formou com a sua volta, de propósito para tal
fim.
Com estas ferramentas lavram tão perfeitamente,
não só as suas canoas, mas também mesas, táboas, assen-
tos e outras coisas, como se tivessem os melhores instru-
mentos de nossa E spm1ha.
Em algumas nações são êstes machados de pedra
trabalhada a poder de braços, que adelgaçam de modo
que, com menos receios de quebrar-se, e mais depressa
que com os outros de tartaruga, cortam q ualq_uer árvore,
por grossa que seja.
204 CARVAJAL, RoJAs E AcuN A

Seus escopros, goivas e cinzeis para obras delicadas,


que as fazem com grande primor, são dentes e colmilhos
de animais, os quais encabados em seus paus, não fazem
menos bem o seu oficio que os de fin o aço.
Quasi todos teem em suas províncias algodão, uns
mais, outros menos; mas nem todos dele se aproveitam
para vestir-se, mas antes quasi todos andam nús, tanto
os homens como as mulheres, sem que a vergonha natu-
ral os vexe, a não querer parecer que estão no estado
de inocência.
NUMERO XL

Dos seus ritos e Deuses que adoram

Os ritos de toda esta Gentilidade são quasi em geral


os mesmos; adoram Idolos que fabricam com as suas
mãos, atribuindo a uns o poder sobre as aguas, e assim
lhes põem por divisa um peixe na mão; a outros escolhem
por donos das lavouras e a outros por protetores de suas
batalhas. ·
Dizem que estes Deuses desceram do Céu, para
acompanhá-los e fazer-lhes bem: não usam de nenhuma
ceremônia para adorá-los, mas antes os têm esquecidos
a um canto até ao momento em que necessitam deles:
assim, quando têm de ir à guerra, levam na proa das
canoas o Idolo em que depositam as esperanças de vitó-
ria; e quando saem a faze1· as sua? pescarias, deitam a
mão àquele a quem entregaram o domínio das aguas; mas
nem em uns nem em outros fiam tanto, que não reconhe-
çam possa haver outro maiôr.
Deduzo isto do que nos sucedeu com um destes
bárbaros, se bem que êste não o mostrava ser na grandeza
·do sen discurso; o qual havendo ouvido algumas coisas
do poder do nosso Deus, e visto por seus olhos que, su-
bindo rio acima o nosso exército, e passando por meio
de tantas nações tão belicosas, voltava sem sofrer nenhum
dano, o que, julgava, era força e poder do Deus que o
206 CARVAJAL, ROJAS E ACUNA

dirigia, veio com grandes âncias pedir ao Capitão Mór, e


a nós, que em pagamento da hospedagem e bom agasa-
lho que nos fazia, não queria outra mercê, senão que lhe
deixássemos alí um Deus dos nossos, que como tão po-
deroso em t udo, o conservasse e aos seus vassalos em
paz e com saúde, e igualmente lhes pudesse acudir com
o necessário mantimento de que necessitavam.
Não faltou quem o quizesse consolar, deixando em
sua aldeia arvorado o Estandarte da Cruz, coisa que cos-
tumavam fazer os Portuguêses entre os Gentios, não
com zêlo tão bom como a ação em si parece mostrar,
servindo-lhes o Santo Madeiro, erguido como elevado
símbolo, de capa para encobrir as suas maiores injusti-
ças, como são os contínuos cativeiros dos pobresinhos
Indios, que, como a mansos cordeiros, levam em rebanhos
para as suas casas, para vendê-los a uns e servir-se com
rigor dos outros.
Levantam pois os P ortuguêses, como digo, a Santa
Cruz, e em paga do bom acolhimento que os naturais
lhes fazem em suas aldeias, a fixam no mais alto do
lugar, dizendo-lhes que a devem conservar sempre in-
tacta; sucede por acaso, ou que a Cruz tenha caído com
o tempo e se desfeito, ou que maliciosamente eles, por
ser Gentios e não reconhecer estima nela, a derru'baram:
com o que logo lhes dão os Portuguêses a sentença, e os
condenam a todos os daquela aldeia como escravos per-
pétuos, não só durante a sua vida, mas para todos os
seus descendentes.
Por este motivo não consenti que se levantasse a
Santa Cruz, e juntamente por não dar ao bárbaro, que
nos pedia um Deus, ocasião de idolatrar, atribuindo
àquele madeiro o poder e Divindade do que nele nos
redimiu.
DEscoBRIMENTos no Rio DAS AMAZON As 207

Entretanto o consolei com assegurar-lhe que o nosso


Deus sempre lhe faria companhia, que lhe pedisse aquilo
de que necessitasse, e tivesse confiança nele, que um dia
o traria ao seu verdadeiro conhecimento.
Bem persuadido estava este Indio de que não eram
os seus Deuses os mais poderosos da terra, pois queria
livremente que lhe deixassem outro maior, a quem
obedecer.

14
NUMERO XLI

Um Indio se fazia Deus

Do mesmo parecer que o anterior, mas de maior


malícia, se mostrou outro bárbaro, o qual, não reconhecen-
do poder nem Divindade em seus ídolos, ele próprio se
fazia Deus de toda aquela terra.
Tivemos dêste notícia algumas léguas antes <le che-
gar à sua habitação, e mandando-lhe a nova de ·que tra-
ziamos conosco o verdadeiro Deus, e mais poderoso que
ele, lhe pedimos que nos esperasse quieto.
Assim o fez, e apenas chegaram as nossas embarca-
ções a fundear em suas práias, quando, ancioso de saber
do novo Deus, saiu em pessôa a perguntar por ele.
Mas embora se lhe declarasse quem era, como o não
poude ver com os seus olhos, ficou em sua cegueira, fa-
zendo-se filho do Sol, aonde afirmava ir em espírito
todas as noites para melhór dispôr no dia seguinte do
Governo universal que lhe incumbia.
Tal era a malícia e soberba deste bárbaro.
Melhor discurso e entendimento mostrou outro
quando, interrogado por que motivo, estando os seus
companheiros retirados no monte, receosos da aproxi-
mação dos Espanhois, só ele, com alguns de seus paren-
tes vinha tão sem temor meter-se em suas mãos.
DESCOBRIMENTOS oo RIO DAS AMAZONAS 209

Respondeu que considerava que dessa · gente que


havia subido uma vez por meio de tantos inimigos, e
tornava a descer sem nenhum prejuizo, poderiam seus
homens, como senhores de todo este grande Rio, voltar
uma e muitas vezes a navegá-lo e examiná-lo; e que
havendo de ser assim, não queria andar sempre sobressal-
tado dentro de casa, mas vir logo de bom grado reconhe-
cer por amigos aos que os outros teriam de receber à
força.
Bom discurso, e que a Divina Magestade pem1itirá
que um dia vejamos posto em execução.
NUMERO XLII

Dos feiticeiros que há

Prosseguindo com o fio de nossa história e voltando


aos ritos destas Nações: é :para notar a grande estima
em que todos teem aos seus feiticeiros, não tanto pelo
amor que lhes demonstram, como pelo receio em que
sempre vivem dos danos que lhes podem fazer. Teem
para usar de suas superstições e falar com o demônio,
o que lhes é muito ordinário, uma casa que só para isto
serve, onde com certo grau de veneração, como se fos-
sem relíquias de Santos, vão recolhendo todos os ossos
dos feiticeiros que morrem, ossos que conservam pendu-
rados no ar, nas mesmas redes em que dormiam em vida.
Estes são os seus Mestres, seus pregadores, seus conse-
lheiros e seus guias; a eles recorrem em suas dúvidas,
para que os esclareçam, e deles necessitam em suas
maiores inimizades, para que lhes dêem ervas veneno-
sas com que tomar vingança dos seus inimigos.
No enterrar os seus -defuntos mostram diferenças,
porque uns os conservam dentro de suas próprias casas,
tendo sempre em todas as ocasiões presente a memória
da morte, que se com êste fim o fizessem, as teriam sem
dúvida mais ajustadas; outros em grandes fogueiras não
só queimam os cadáveres, como tudo o que em vida pos-
suiram. E tanto uns como os outros celebram as suas
exéquias por muitos dias com prantos contínuos, inter-
rompidos com grandes bebedeiras.
NUMERO XLIII

São estes Indios de natural manso

São em conjunto todos estes Gentios de boa dispo-


sição, bem encarados e de côr não tão tostada como os
do Brasil, teem bons entendimentos e rara habilidade
para qualquer trabalho manual.
São mansos e de natural dócil, como se verificava
com os que às vezes vinham ao nosso encontro, que com
grande confiança conversavam, comiam e bebiam entre
os nossos, ssm nunca recear-se de nada.
Davam-nos as suas casas para morar, recolhendo-se
todos juntos em uma ou duas das maiores da aldeia ; e
com receber infinitos agravos de nossos Indios amigos,
sem que fosse possível evitá-los, nunca correspondiam
com más o'bras.
Tudo isso junto com a pouca afeição por tudo que
toca ao culto dos seus deuses, como o demonstram, pro-
metem grandes esperanças de que, se lhes dessem notícia
do verdadeiro Creador dos Céus e da terra, com pouca
dificuldade abraçariam a sua Santa Lei.
NUMERO XLIV

Trata-se especialmente das coisas do Rio e de


suas entradas

Falei até aqui, em geral, de tudo o que toca a este


grande Rio das Amazonas. Já é ocasião de ir descendo
em particular a declarar as suas entradas, dizer quais os
seus portos, averiguar das aguas de que se alimenta,
desentranhar as suas terras, assinalar as suas alturas,
notar as propriedades de suas nações e finalmente não
deixar coisa digna de saber-se, que, como testemunha
de vista e pessoa enviada por sua Magestade para só-
zinho inq uirir de tudo, poderei, talvez melhor que os
outros, dar razão, com bastantes fundamentos, do que
tomei a meu cargo.
Não trato aqui da principal entrada deste Rio pelo
mar Oceano nas costas do Grão Pará que essa, já há
muito tempo, como conhecida e caindo debaixo da linha
Equinocial nos últimos confins do Brasil, é percorrida
e sabida de todos os que querem navegar naquelas para-
gens.
Nem tão pouco faço menção, de propósito, daquela
por onde o tirano Lope de Aguirre saiu em frente da:
Trindade, por ser ela transversal, e que diretamente não
se entra por ela neste Rio, senão que tendo a outras por
mãe principal, de lance em lance, se vem a dar em bra-
)os, que dele derivam a sua ori~em,
DESCOBRIMENTOS DO RIO DAS AMAZONAS 213

Só é meu intento tirar a limpo e assinalar com o


dedo todas as portas por onde, das bandas do Perú,
podem os moradores daquelas Conquistas ter entrada
certa para este grande Rio: ao qual, como já disse, por
uma e outra banda de suas margens vem ter grande nú-
mero de outros caudalosos, por cujas correntes, quem as
seguir, f orçosamcnte virá a ter a esta principal; mas
como não se sabe com certeza de que cidades ou provín-
cias tragam suas nascentes, não se pode tratar coisa se-
gura de suas entradas.
Mas o poderei fazer de umas oito, em que nenhum
conhecedor daquelas terras poderá achar dificuldade:
tres destas para o lado do novo Reino de Granada, que
está ao Norte deste Rio ; do lado do Sul veremos outras
quatro, e uma debaixo da mesma linha Equinocial.
NUMERO XLV

De tres entradas que há pelo novo Reino

A primeira entrada que, pela parte que dá para o


novo Reino de Granada, está descoberta para este imen-
so pélago de aguas doces, é pela provincia de Micóa, que
pertence ao Governador de Popayan; seguindo as corren-
tes do grande rio Caquetá, que é o dono e senhor de
todas as vertentes que lhe chegam de parte de Santa Fé
de Bogotá, Timaná e o Caguan, e muito afamado entre
os naturais, pelas grandes Provincias de Gentios que
vivem às suas margens.
Este Rio tem muitos braços por dilatadas Nações,
e tornando a in corporá-los no principal, forma grande
quantidade de ilhas, todas habitadas de infinitos bár-
baros. (67)
Corre sempre pelo rumo do das Amazonas, acom-
panhando-o, embora de longe, e lançando nele, de vez
em quando, alguns braços, cada um dos quais bem po-
deria ser corpo de qualquer outro caudaloso Rio; até que,
recolhendo todas as suas forças, na altura de quatro
graus, peito por terra se lhe entrega. Por um destes

(67) O rio Caquetá ao receber o Apaporis penetra em terri-


torio brasileiro, sendo aí conhecido pelo nome de rio ]apurá ou
Iapurá. Em sua parte inferior dá ele uma série de furos para o
Solimões, formando uma rica rede de canais e lagos, confundin-
do-se as aguas dos dois rios a partir do furo Auatiparaná, sendo
pouco precisa a sua foz.
DESCOBRIMENTOS DO Rro DAS AMAZONAS 215

braços que mais se avizinha da Provincia das Aguas, de


cabeça chata, é por onde se há de sair para gozar das
grandezas do nosso grande Rio das Amazonas, porque
sucederá, a quem se deixe levar pelos que mais se incli-
nam para a banda do Norte, o que aconteceu há. anos
passados ao Capitão Fernão Perez de Quesada, que,
tendo entrado por este ri o com trezentos homens, e
deixando-se levar para a parte de Santa Fé, deu na Pro-
víncia do Algodonal, e mesmo indo com tal reforço de
gente, foi obrigado a retirar-se com mais pressa do que
a que tinha levado na entrada.
A segunda porta, que podemos assinalar a este Rio
pela parte do Norte, é pela cidade de Pasto, jurisdição
também do Governo de Popayan, de onde, atravessando
a Cordilheira com alguns inconvenientes de mau caminho
e a pé, que a cavalo é impossível, chegando ao P utumayo,
e navegando Rio abaixo, se virá a sair no das Amazo-
nas, à altura de dois graus e meio, a tresentas e trinta
léguas do Porto de Napo. (68)
Por este mesmo caminho, saindo, como disse, da ci-
dade de Pasto, e, passada a Cordilheira, aproximando-se
dos Lucúmbios, que não estão muito longe do Rio, cha-
mado Aguarico, por outro nome Rio do Ouro, se pode
sair por ele a este principal, quasi debaixo da linha, no
princípio da Província dos Encabellados, que é a noventa
léguas do dito porto de Napo.
E esta é a terceira entrada que se pode tentar pela
parte do Norte. (69)

(68) O rio Içá ou Putumaio vem lançar-se no Amazonas


antes do ]apurá, sendo pequeno o seu percur.so em território bra-
sileiro.
( 69) Acufía vai descrevendo as tres entradas do Amazonas
de Nórte para o Sul, tratando por isso, em ultimo lugar do rio
Agua rico ( de aguas ricas) assim chamado pelos conquistadores por
transportar muito ouro de aluvião, sendo também chamado rio do
Ouro.
NUMERO XLVI

Outras entradas

A porta para este grande rio, que está debaixo da


E quinocial, cai no Governo dos Quixos, mais próxima de
Quito, na cidade dos Cofanes, de onde, pelo rio da Coca,
logo se colhe o canal principal do nosso das Amazonas,
embora, pelas muitas correntes que traz, até encontrar-se
com o de Napo, não é tão boa a navegação como será
pelas outras partes que participam a banda do Sul. (70)
A primeira de todas, embora não seja a melhor, é
pela cidade de Ávila, no mesmo Governo dos Quixos, de
onde, com tres dias por terra, se vem a dar no rio Paya-
mino, pelo qual a Armada Portuguêsa saiu a aportar na
jurisdição de Quito.
Desemboca este rio entre o Napo e o Coca, naquela
paragem que chamam as Juntas dos Rios, a vinte e cinco
léguas do porto de Napo.
Abrimos a esta mesma Armada, para a volta de sua
viagem, uma porta melhor que a que havia descoberto na
subida, com muito trabalho e perdas: que é pela cidade
de Arquidona, também no Governo dos Quixos e jurisdi-

(70) Esse rio da Coca, pequeno afluente do Napo, ê o pri-


meiro que aparece no mapa de Bento da Costl!, formando uma
forquilha com o rio P aiamino, do qual não refere o nome, mas
onde há essa indicação: "Por aqui saiu a armada portuguêsa ".
DESCOBRIMENTOS oo Rrn DAS AMAZONAS 217

ção de Quito, donde com um só dia de caminho, a pé por


ser inverno ( que em tempo <le verão podia ser feito a
cavalo) demos no porto de Napo, rio caudaloso e no qual
os moradores de todo aquele Governo tem depositado o
seu tesouro, tirando de suas margens, todos os anos, o
ouro de que necessitam para os seus gastos.
E' muito abastecido de peixe e suas ribeiras de ca.ça,
com boas terras, que agradecidas a pouco trabalho dos
lavradores, rendem transbordantes frutos.
E é este o principal caminho por onde, com maior
comodidade e menos trabalho, poderão descer ao rio das
Amazonas todos aqueles que, pela província de Quito, o
queiram navegar.
Porque, embora por 1á se diga que, perto da aldeia
de Ambato, que está a dezoito léguas da cidade de Quito,
a caminho do rio Bamba, há entrada para um rio que sai
neste principal, se não a impede algum salto que haja nas
correntes, é muito adequado este vale para vir a sair para
o dito rio, setenta e sete léguas abaixo do porto de Napo,
com o que se economisará todo o caminho dos Quixos.
NUMERO XL VII

Outras entradas a este Rio

Pela parte da Provincia de Macas, que cai debaixo


da mesma jurisdição e Governo, de cujas serras desce o
rio Guraray, seguindo a sua caudal, se pode também sair
ao das Amazonas, na altura de dois graus, a cento e cin-
coenta léguas do Napo, distância bem povoada de di feren-
tes Nações. (71)
E é esta a sétima entrada deste Rio.
A oitava e última é por Santiago das Montanhas,
província dos Maynas, terras banhadas por um dos mais
caudalosos rios que pagam tributo ao das Amazonas, aí
com o nome de Maranon e em sua foz, e em muitas
léguas antes, de Tumburagua.
E' este Rio tal que, em mais de trezentas léguas, de
onde aos quatro graus desagua no principal, se receia a
sua navegação, tanto por sua profundidade como por suas
precipitadas correntes. Mas com as grandes notícias dos
muitos bárbaros que aí existem, maiores dificuldades são
aplainadas pelos que zelam pela honra de Deus e bem das
almas, em busca das quais nele entraram, em pri ncípios
do ano de mil seiscentos e trinta e oito, dois Religiosos da

(71) O rio Curaraí é mais importante que o rio Aguarico,


indo desembocar também no rio N apo, mais a Léste.
DESCOBRIMENTOS DO Rro DAS AMAZONAS 219

minha Religião, pelos Maynas, dos quais tive muitas


cartas em que não acabavam de enaltecer a sua grandeza
e as inúmeras P rovíncias de que cada dia iam tendo inaio-
res notícias.
Junta-se este Rio com o principal das Amazonas a
duzentas e trinta léguas do porto de N apo.
NUMERO XL VIII

Rio de Napo

Tem sua origem este, tantas vezes por mim referido,


Rio de Napo, nas fraldas de um páramo a que chamam de
Antezana, que fica a dezoito léguas da cidade de Quito,
e embora tão vizi nho da linha, é de maravilhar que ele,
como outros muitos que em várias Cordilheiras coroam
aqueles povoados, sempre cobertas de neve, servem para
abrandar o calor que, forçosamente, segundo afirma
Santo Agostinho, a zona Tórrida havia de fazer aquelas
terras inhabitávei s, fi cando com este refrigério, das mais
aprazíveis e temperadas de todo o mundo descoberto.
Corre este Rio de Napo, desde as suas nascentes,
entre grandes penhascos, com o que não é navegável até
que, no porto onde os moradores de Arquidona têm os
ranchos dos seus I ndios, mais humano e menos t umultuoso,
consente sobre os seus ombros ordinárias canoas que
servem ao trá fego e ainda por quatro ou cinco léguas não
olvida o seu orgulho. Daí em diante, humilde, até incor-
porar-se com o Rio da Coca, que está a umas vinte cinco
léguas, com muito fundo e grande serenidade, oferece
boa passagem a melhores embarcações. Aí está a con-
fluência dos rios onde Francisco de Orellana, com os seus,
fabricou o barco em que navegou por este Rio das Ama-
zonas.
NUMERO XLIX

Aqui mataram ao Capitão Palácios

A quarenta e sete léguas desta confluência, para a


banda do Sul, está Anete, aldeia que pertenceu ao Capitão
João de Palácios, morto às mãos dos naturais, como já
dissemos.
E a dezoito léguas deste sitio desemboca, do lado do
N orte, o rio Aguarico, bem conhecido, tanto por seu clima
menos são, como pelo ouro que dele se tira, do que tomou
também o nome de Rio do Ouro.
,E em sua foz, de um e outro lado, principia a grande
Província dos Encabelados, que, correndo pela banda do
Norte por mais de cento e oitenta léguas, e gozando sem-
pre das aguas que o grande R.io das Amazonas espraia
por vastos lagos, desde as suas primeiras notícias acendeu
ardentes -desejos de submetê-Ia à toda a jurisdição de
Quito, pela imensa multidão de Gentios de que está po-
voada. E de facto, cm várias ocasiões, se começou a
executar, embora a última, em que o intentava o Capitão
J oão Palácios, lhe saísse tão mal como já vimos. (72)

(72) Estes índios, diz Maurício de Heriarte, são os "Ica-


guate,, a que chamam os Encabelados por trazerem os cabelos
mui compridos em demasia, que ás vezes lhe arrastam pelo chão,
assim os homens como as mulheres, atados com cordas de moritim
222 CARVAJAL, RoJAS E Acu&A

aurea ( ?) • Usam de milho, mandioca e chontas ( ?) ". Segundo o


mesmo autor os jovens não trabalham, tratando só " de fazer filhos
para aumentar a sua geração". E continúa: "São estes índios de
pouco valor. As armas são dardos de arremesso, adargas com que
se cobrem, grandes lanças, feitas todas de pau. Síio grandes ladrões
traidores. Seus instrumentos são tambores de pau, as casas pe-
quenas, com as paredes de casca de árvores. Anelam nús aincb
que alguns tragam camisetas ; as mulheres cobertas as partes ver-
gonhosas com panos que fazem de uma estopa que tiram das ár-
vores. São amigas de concertar a cabeça com fita.s que fazem
de moritim. São mui sujos em seu comer, e mais que todos os
outros: dormem em redes de mori tim e de tu cum, feitas de dife-
rentes modos que as dos mai.s índios do rio. Comem carne huma-
na, são mui vingativos mas de pouco ânimo. Usam enterrarem-se
em covas com todo o seu cabedal, que é bem pouco, por serem po-
bres e pregui çosos, o que tudo levam para servirem na outra vida.
Põem-lhe de comer todos os dias na cova, dizem que para ter for-
ças para andar, isto por espaço de um ano, e todos os mais deste
rio fazem o mesmo: ao cabo do qual lhe pisam os ossos, e os
queimam, e feitos cinza, os bebem em vinhos, com o que ti q1m
o dó".
NUMERO L

Aqui ficou a Armada Portuguêsa, Provincia dos


Encabelados

Nesta Província, à hoca do rio dos Encabelados, que


fica vinte léguas abaixo da do Agu·arico, onde ela tem o
seu princípio, ficaram estacionados, por espaço de onze
mêses, quarenta soldados <la Armada Portuguêsa, e mais
de trezentos Indios amigos, dos que levavam em sua
companhia.
Embora em começo encontrassem boa acolhida nos
naturais da terra e, em retri_buição, deles recebessem os
mantimentos necessários, não durou por muito tempo
tanta confiança em peitos nos quais ainda fervia a sanha
com que haviam derramado o sangue do Capitão Espanhol,
e como este por seu lado também pedia vingança contra
os seus agressores, receosos de que se lhes havia de cas-
tigar o seu atrevimento, por um nonada se alvorotaram,
e matando tres dos nossos Indios, se puzeram em armas
para defender suas pessoas <; terras.
Não se descu idaram os P ortuguêses, que como mal
sofridos e pior acostumados a semelhantes liberdades dos
Indios, quiseram Jogo pôr por obra o castigo desta revolta.
Tomaram as armas, e com a sua coragem costumeira, co-
meteram de tal sorte que, com poucas mortes, apanharam
vivas mais de setenta pessôas, a que mantiveram presas


224 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

até que, mortas umas e fugidas as outras, não ficou


ninguém.
Posto neste estado o esquadrão P ortuguês, que, se
quizesse comer, era obrigado a buscar das mãos do inimi-
go, ou perecer, ,determinaram fazer correrias terra a
dentro, e por bem ou á fo rça livrar-se desse vexame.
Entravam uns e os outros ficavam no Real, e tanto
estes como aqueles não deixavam de ser molestados pelo
inimigo que, reuni ndo os seus, acudia a fazer todo o dano
que lhe era possível, como o fez em muitas embarcações,
destroçando umas e fazendo em pedaços as mais frágeis.
E não foi este o maior dano que dele se recebeu, senão
o que em suas emboscadas causavam aos nossos Indios,
degolando os que puderam ter em mãos, embora pagassem
com tresdobradas vidas dos seus as que tiraram aos nossos :
castigo pequeno para os rigorosos que os Portuguêses
costumam executar em semelhantes casos.
Os primeiros Espanhois que os descobriram, cha-
maram a estes Indios com o nome de Encabelados, pelos
cabelos compridos que usam tanto os homens como as
mulheres, e que em algumas passam dos joelhos.
Suas armas são dardos, sua habitação casas de palha,
feitas com curiosidade, e seus mantimentos os ordinários
de todo o Rio.
Mantêm contínuas guerras com as nações circunvizi-
nhas, que são os Senos, Becabas, Tamas, Chufias e Ru-
mos. (73)

(73) Essas inúmeras nações de gentios de que fala Acufia


rápidamente, com a entrada dos civilizados, ou fugiram para o in-
terior ou foram exterminadas, <le modo que hoje é muito difi!'.il,
em alguns casos mesmo impossivel, identificar essas tribus a que
se refere o jesuíta na sua narrativa. Destas várias nações circun -
vizinhas dos Encabelados já Heriarte apenas .se refere aos Rombos
( Rumos de A cu fia), como sendo indios corpulentos, fortes e bem
DEscoBRIMENTos DO Rro DAS AMAZONAS 225

Correm defronte desta província dos Encabelados,


pela banda <lo Sul, as dos Auixiras, Iurufuncs, Zaparas
e Iquitos, que terminam encerrados entre as aguas deste
Rio e o de C uraray, onde também ambos se convertem
em um, que é a quarenta léguas dos Encabelados, a quasi
dois graus de latitude. (74)

RIO TUNGURAGUA

A oitenta léguas <le Curaray, da mesma banda, de-


semboca o famoso rio Tunguragua que, como já di sse
acima, baixava pelos Maynas com o nome de Maranon;
faz-se de tal modo respeitar do das Amazonas, que, tendo
este reunido todo o seu caudal, <letém algumas léguas
antes o seu curso ordinário, dando lugar a que aquele,
espraiado por mais de uma légua de boca, lhe entre a
beijar a mão, pagando-lhe não só o tributo ordinário que
rnhra de todos, senão outro, muito abundante, de muitas
qualidades de peixe, que até à boca deste rio não se co-
nhecem no das Amazonas.
d;spostos, de mulheres bem parecidas, " mais brancas que os outros
índios. As armas são dardos de arremesso, e rodelas ou pavezes
mui grandes, que fazem de couros de anta secos ao sol, que são
fortíssimos : apenas os passa urna bala de escopeta. Quando vão à
guerra se armam com cortiça dos arvoredos. Andam nús. Seu
mantimento é milho, caçaba e mandioca. Comem caça, que há por
alí muita, para cujo efeito criam cães ".
(74) Conta Berredo que vinte léguas abaixo da foz do Agua-
rico, nessa provinda dos Encabelados, fez P edro Teixeira fundar
uma povoação. "que lambem servisse de baliza aos Domínios da.,
duas Coroas ( de Castela e Portugal), conforme as instruções d0
seu regimento ", povoação a que chamou Franciscana. Com o ce-
remonial do costume, diz o escrivão : " ... pelo que eu Escrivão
tornei terra nas mãos e a dei na mão do Capitão Mór, e em nome
de E! Rei Nosso Senhor Felippe IV o houve p.o r metido, e inves-
tido na dita posse pela Coroa de Portugal no dito _sítio, e mais
terras, rios, navegações e comércio".
NUMERO LI

Província dos Aguas

Sessenta léguas mais abaixo de T unguragua começa


a melhor e mais dilata:ela P rovíncia ele quantas encontra-
mos em todo este grande Rio, que é a elos Aguas, chama-
dos comumente Omaguas, nome impróprio que lhes
puzeram, tirando-lhes o nativo, e ajustado à sua resiJen-
cia, que é a parte ele fora, que isto quer dizer Aguas. (75)

(75) Sobre esses Aguas de Acuíia já escreve Berredo :


"Aos Cambebas chama o Padre Cu nha (seguido também do
Padre Samuel Fritz) Omaguaz ou Maguaz ; é certo que equivo ..
cadamente por lhe trocar o nome pelo de outra nação". Os Cam-
bebas, que por seu natural manso, se adataram ao contacto do.5
Europeus, são referidos por todos os via jantes e deles dá Alexan-
dre Rodrigues Feneira uma magnífica fi gura, e larga descrição.
Maurício de He riarte também ao.s mesmos se refere com pormeno-
res. Diz ele: "Usam de muito tabaco e bom, que é o seu contrato.
E' gente cuidadosa, trabalhadora e forte. Costumam andar ves-
tidos com -camisas e calções, a seu uso: as mulheres com manta,s
e camisões, em que mostram ser mais honestas que os mais indios
do rio. São as mulheres grandes fi andeiras e teccdeiras. Fazem
as roupas que vestem e muitas que levam por trato a outras pro-
víncias. Os corpos enterram, porquanto estes índios não comem
carne h1•111ana. nem outro gênero de carne. Seu sustento é peixe-
boi e de mais gênero de peixe, frutas e mandioca que se come crua,
cozida e assada. Não usam de fari nh a senão de caçabe. Teem
infinitos escravos que lhes fazem as lavouras 11as margens do rio,
com ferramentas de pedra e de casca de tartarugas. São estes
índios mui feios por terem as cabeças chatas. São corpulentos,
D ESCOBRI MENTOS DO Rro DAS AMAZONAS 227

T em esta província mais de duzentas léguas de


comprimento, continuando-se as suas aldeias tão a rneude,
que apenas se perde uma de vista e já se descobre outra.
S ua largura parece ser pequena, pois não passa da
que tem o Rio, cm cujas ilhas, que são muitas, e algumas
muito grandes, têm as suas moradias; mas considerando
que todas ou estão povoadas ou cultivadas, pelo menos
para o sustento destes naturais, se poderá fazer uma idéa
dos muito Indios que vivem em tão dilatada distância.
Esta gente é a mais inteligente e de melhor governo
que há em todo o R io, proveito que lhes t rouxeram os·
que estiveram. não há muitos anos, no Governo dos
Quixos, de onde, forçados pelo mau tratamento que se
lhes fazia, se deixaram vir rio abaixo, até encontrar com
a força dos de sua Nação; e neles introduzindo algo que
haviam aprendido com os Espanhois, lhes puzcram al-
guma disciplina.
Anelam todos vestidos com decência. tanto os homens
como as mulheres, as quais, do muito algodão que culti-
vam, tecem não só a roupa de que necessitam, como outra
muita que lhes serve para o comércio com as Nações

for tes e tidos por todos por valentes e assim são temidos de
todos os índios comarcanos. Governam-se por Principais nas al-
deias ; e no meio <lesta prnvincia, que é dilatada, há um principal,
ou rei deles, a que todos obedecem com grandíssima suj eição, e Ih-!
chamam Turucari, que quer dizer o seu Deus; e ele por tal se tem.
As armas que usam são arcos, frechas e palhetas, e lanças grandes
com que vão dar guerra aos naturais da terra firme, e deles sa.cri-
ficam alguns e dos mais se servem em suas lavouras. Conservam
os naturais os dentes sãos e sem dor, com uma erva, que entre si
têm, com que os untam. Fazem grandes canoas de cedro, em que
vão dar guerra aos índios naturais da terra firme. Os instrumen -
tos com que fazem suas festas, sacrifícios e baile.s, a que são muito
inclinados, são trombetas de tristíssimo som, feitas de tabocas <!
uns tambores de pau cavado por dentro, e com un.s paus cobertos
de resina os tocam como atabales, que se ouvem muito longe".
228 CARVAJAL, RoJAS E AcvNA

vizinhas, que estimam com razão o trabalho de tão hábeis


tecelans; fazem panos mui vistosos, não só tecidos de
diversas cores, mas pintados com estas com tal habilidade
que é dificil distinguir uns dos outros.
São tão submissos e obedientes aos seus principais
caciques, que estes não prec isam mais de uma palavra
para ver logo executado o que ordenam.
São todos de cabeça chata, o que causa fealdade nos
varões, embora as mulheres melhor o encubram com o
muito cabelo; e está neles tão apegado o uso de ter as.
cabeças achatadas, que desde que nascem os filhos, os
metem na prensa, tomando-as pela frente com uma táboa
pequena, e pela parte cio cérebro com outra tão grande,
que, servindo de berço, recebe todo o corpo do recem-
nascido, o qual, posto de costas sobre esta, e fortemente
apertado com a outra, fica com o cérebro e a frente tão
planos como a palma da mão ; e como estas apcrturas
não dão Jogar a que a cabeça cresça mais que dos lados,
vem a desproporcionar-se, de modo que mais parece Mitra
de Bispo mal formada que cabeça de pessoa.
Têm por uma e outra banda do Rio contínuas
guerras com as províncias estrangeiras, que, pela do Sul,
entre outras, são os Curinas, em número tal, que não só
se defendem da infinita multidão dos Aguas, como ainda
sustentam as armas contra as demais nações que, pelo
lado de terra, lhes dão continuados combates.
Pela banda do Norte teem estes Aguas por inimigos
aos Teamas que, segundo boas informações, não são
menos ne111 menos corajosos que os Curínas, pois também
sustentam guerras com os contrários que teem pelo lado
de terra.
NUMERO LII

Destino dos escravos que cativam

Servem-se estes Aguas dos escravos que cativam em


suas batalhas para tudo o que precisam, tomando-lhes
tanta afeição, que com eles comem num prato, e pedir-lhes
que os vendam é coisa que lhes dá muito pesar, como por
experiência o vimos em muitas ocasiões.
Chegávamos a uma aldeia <lestes Indios e eles nos
recebiam não só em paz, mas com danças e provas de
grande regozijo, com grande liberalidade oferecendo para
o nosso sustento tudo o que tinham.
Compravam-se-lhes panos, tecidos e pintados, que
com vontade davam; tratavam da venda das canoas, que
são os ligeiros cavalos em que andam, e sempre saíam
satisfeitos.
Mas em falando nos escravos e apertando-os para
que os vendessem, hoc opus hic labor est, aqui era o des-
compadrar, aqui o entristecer-se, aqui as traças de
ocultá-los, e aqui o procurar-se safar de nossas mãos;
mostras certas de que mais os estimam e mais sentem
vendê-los que desfazer-se de tudo o mais que possuem.
E ninguem diga que o não quererem vender os Inclios
aos seus escravos, nasce de os ter para comer em seus
banquetes; que é um dito com muito pouco fundamento,
inventado pelos Portuguêses, que andam metidos nesta
230 CARVAJAL, RoJAs E AcutiíA

aleivosia e com isto querem desc ulpar a sua mJustiça.


Porque ao menos nesta Nação tudo averiguei de dois
Indios dos que tinham subido com os mesmos Portuguêses,
e eram naturais do Pará, os quais, fugidos de Quito,
viera m a ser escravos dos Aguas, com os quais estiveram
oito mêses, e foram a algumas guerras em sua companhia:
te111po bastante para conhecermos seus costumes.
:Êstes asseveraram que nunca os tinham visto comer
os escravos que traziam. O que costumavam fazer com os
mais principais e valentes, era matá-los em suas festas e
reuniões gerais, receando maiores danos, se os conservas-
sem com vida, e, arrojando os corpos no Rio, guardavam
como troféu as cabeças em suas casas, que eram as que
por todo o cam inho ví nhamos encontrando.
Não quero com isto negar que há neste R io gente
Caribe, que em certas ocasiões não tem horror de comer
carne humana.
O que quero persuadir, é que não há em todo ele
açougues públicos, nos quais todo o ano se pesa carne
de Indios, como o propalam os que, a pretexto de evitar
semelhante crueldade, usam com eles de uma ainda maior,
fazendo com seus rigores e ameaças escravos aos que não
o são.
NUMERO LIII

Sítio frio onde se poderá colher trigo

A cem léguas, pouco mais ou menos, das primeiras


povoações destes Aguas (que caem tres graus da Equi-
nocial) e vêm a ser o coração desta dilatada Província,
chegamos a uma aldeia onde estivemos tres dias, com
tanto frio, que os nascidos e cria<los nas terras mais frias
de Espanha, tivemos necessidade de juntar roupa à or-
dinária.
Causa admiração tão repentina mudança de tempe-
ratura, e perguntaJ1 do aos naturais se aquilo era coisa
extraordinária naquela povoação, me asseguraram que
não, porque todos os anos, durante tres luas, que assim
conta111 eles, e é o mesmo que dizer tres mêses, experimen-
tavam aqueles frios, e que, conforme o que afirmaram,
são os de Junho, Julho e Agosto. Mas eu, ainda não bem
satisfeito com o que me diziam, quiz com melhor funda-
mento fazer inquisição da causa de frio tão penetrante,
e achei que era uma grande serra, ou páramo, que da
banda do Sul e terra a dentro está situa·da, pela q ual passam
os ventos todos aqueles tres mêses, e gelados pela força
das neves de que está coberta, causam tais efeitos na terra
circunvizinha.
E sendo isto assim, não há dúvida de que neste sítio
se dará trigo mnito bom, e todas as demais sementes e
frutas qu e produz a comarca de Q uito que, embora situa-
da debaixo da linha, semelhantes ares, passados por novos
çerros, a habilitam a tais maravilhas.
NUMERO LIV

Rio Putumayo e nações que há nele e no Y etaú

A dezeseis leguas destas aldeias, da banda do Norte,


desemboca o grande rio Putumayo, bem conhecido no
Governo de Popayan, por ser tão caudaloso que, antes
de desaguar no das Amazonas, entram nele trinta cauda-
losos rios: chamam-no os naturais destas paragens Uçá.
Desce das Cordilheiras de Pasto para o novo Reino
de Granada, tem muito ouro e, segundo nos afirmaram,
está povoado de Gentios, por cuja causa se retiraram
com alguma perda os Espanhois que por ele desceram há
poucos anos.
Os nomes das Províncias que o habitam são: Y u-
runas, Guaricús, Yacariguaras, Pariannas, Ziyus, Atuaís,
Cunas, e 0!j,,que mais em seu começo, de um e outro lado
o povoam, como senhores deste Rio, são os Omaguas,
aos quais os Aguas das ilhas chamam Omaguasyetê, o
que quer dizer Omaguas verdadeiros. (76)
A cincoenta léguas desta boca, do lado contrário,
encontrámos a de um formoso e ca udaloso rio, que tra-
zendo sua origem de perto de Cuzco, morre no das Ama-
zona~ à altura de tres graus e meio; chamam-no os natu-

(76) São estes Omaguas verdadeiros ou Omaguasietê de


Acuíía os Omaguas de Carvajal e de Heriarte. Monteiro de No-
ronha, em 1768, ainda refere, como vivendo nas margens do Putu-
maio, os Passé, Xomana, Miranda, .Tumbira, Pirana, Içá, T ecuna_
e Cacatapirá.
DESCOBRIMENTOS ·oo RIO DAS A MAZONAS 233

rais Yetaú, e tem entre eles muito renome, tanto por


suas riquezas como pela multidão de nações que susten-
ta, como são os Típunas, Gunarús, Ozuanas, Morúas,
Naunas, Conomonas, Marianas e os ultimas, que mais
se avizinham dos Espanhois que povoam o P erú, são os
Omaguas, que dizem ser gente riquíssima de ouro, que
trazem, em grandes placas, pendentes das orelhas e na-
rizes, e se não me engana a memória, segundo o que li
na história do tirano Lope de Aguirre, era esta a provín-
cia dos Omaguas, a cujo descobrimento ia P edro de
Orsua, enviado pelo Vice-rei do Perú, pela fama, que
havia corrido, de seus muitos haveres. Mas o não en-
contrar-se com ela nasceu de que, tomando a sua entra-
da por um braço do Rio que sai algumas leguas mais
abaixo, quando desembocou no das Amazonas, já fica-
vam estas Nações tão acima, que lhe foi impossível voltar
a elas, receoso do ímpeto das correntes, e principalmen-
te pelo pouco prazer com que seus soldados hesitavam.
Este rio Yetaú é muito rico em pesca e caça e, se-
gundo as informações dos seus habitantes, p or ele se
pode navegar com facilidade, por ser de suficiente fundo
e as suas correntes moderadas. (77)

(77) No mesmo roteiro de Monteiro de Noronha, vemos que


esse capitão-mor ainda encontrou, em 1768, nas margens do Jutaí
(o Yetaú de Acuiía) os Papajana, Uaraicú e Marauá.
NUMERO LV

F im da Prov:íncia dos Aguas e do n o Cuzco

Seguindo o curso de nosso R io principal, demos às


quatorze léguas, na ultima aldeia da dilatada província
dos Aguas, que acaba em um lugar muito populoso e de
muitos soldados, que como primeira força, por esta parte
resistem ao ímpeto dos seus inimigos, dos quai s no es-
paço de cincoenta e quatro léguas, nenhuns povoam as
margens deste rio. de modo que dele se avistem os seus
ranchos, mas um pouco retirados para den tro, em T erra-
firme de onde, por pequenos braços, saem a buscar o de
que necessitam.
E stes são da banda do Norte os Curis e Gusyrabas,
e áa do Sul Cachiguarás e Tucuriys. Mas embora não
pudéssemos avistar a estas Nações, como digo. demos
com a boca do Rio que com razão podemos chamar elo
Cuzco, pois segu ndo um regimento desta navegação, que
vi ele Francisco de Orellana, está Norte-S ul com a mes-
ma cidade de Cuzco. Entra no das Amazonas em cinco
grau s ele altura, e às vinte e quatro leguas da ultima
aldeia dos Aguas. Chamam-no os naturais Yuruá. e essa
aldeia, estendendo-se até as suas margens. f ica como isolada
entre os dois Rios. E é este por onde P edro ele Orsua des-
ceu do Perú, se a minha fantasia não me engana.
NUMERO LVI

Prov.íncia onde se achou ouro

Vinte e oito léguas mais abaixo do rio Yuruá, na


mesma banda do Sul, em terra de altíssimas barrancas
principia a mui povoada nação dos Curizaris, que, se-
guindo sempre uma das margens, se estende por espaço de
oitenta leguas, tão continuadas as suas aldeias, que mal
se passavam quatro horas sem de novo encontrar outras
e, às vezes, durante todo um meio dia não cessávamos de
mirar os seus ranchos.
Encontrávamos a maioria destas sem · gente, que
com falsas novas de que vínhamos destruindo, matando
e escravizando, quasi todos se tinham retirado para os
montes, além do que eles são de seu natural mais esqui-
vos que outros ·quaisquer deste Rio.
Entretanto não mostram menos governo e polícia,
como se poude observar, tanto pelos muitos mantimentos
de que estavam prevenidos, como também pelos móveis
de suas casas, que para o beneficio das coisas tocantes à
vida eram dos melhores de todo o Rio.
Teem nas barrancas, onde moram, barro muito
bom para toda qualidade de vasilhas, e, aproveitando-se
dele, fazem grandes olarias, nas quais fabricam talhas,
panelas, fornos onde cozem as suas fari nhas, caçarolas,
jarros, alguidares e até sertans bem feitas, tendo tudo isto
prevenido para comércio com as outras Nações que, obri-
236 CARVAJAL, ROJAS E AC UN A

gadas pela falta que sentem destes gêneros em suas terras,


vêm fazer grandes carregamentos deles, recebendo em pa-
gamento as coisas de que estes precisam. (78)
A primeira aldeia desta Nação, vindo Rio abaixo,
chamaram os Portuguêses, na subida, aldeia do Ouro,
por nela terem encontrado e comprado algum, que em
pequenas lâminas os Indios traziam pendentes <los nari-
zes e orelhas, que foi tocado em Q uito e se achou ser
de vinte e um quilates.
Como os naturais viram a cubiça dos soldados, e que
tão a peito se tomava fazer diligência para que lhes en-
tregassem mais daquelas plaquinhas, logo as recolheram
todas, sem que aparecesse mais nenhuma, o que também
se observou na volta.
De modo que, embora víssemos muitos Indios, só
um trazia duas nas orelhas, bem pequenas, com as quais
fiz escambo.

(78) Mauricio de Heriarte assi m se refere ao rio do Ouro:


"Nessa província está um rio a que chamam o rio do Ouro, por
dizerem os índios que por ele abaixo vinham pedaços pequenos de
ouro. E' pequeno e povoado de uma nação de índios lguanais,
gente muito bem disposta, algum tanto branca, e de boas feições,
e teem boa quantidade de aldeias ainda que pequenas. Teem estes
contrato de louça que levam a vender a outras partes. As armas
destes índios são palhetas, frechas e dardos de remesso ervados.
Criam quantidade de galinhas. Vivem quietos por estar sós neste
rio e não haver nele outra nação que lhe.s dê guerra ".
NUMERO LVII

Minas de Ouro

Na subida da Armada não se poude averiguar com


fundamento coisa alguma de quantas se encontraram
neste Rio, porque nunca tiveram línguas, com os quais
pudessem fazer indagações, e se de algo pareceu aos P or-
tuguêses que poderiam dar conta, era do que por sinais
tinham entendido, as quais eram tão incertas, que cada
qual as aplicava ao que tinha em seu pensamento.
T udo isto cessou na volta, querendo Nosso Senhor
favorecer a esta jornada, com provê-la de ordinário de
bons línguas, por meio dos quais se averiguou tudo o que
se contém nesta relação.
A que a mim me deram das minas de onde se tirava
este ouro é a que aqui direi.
Defronte desta aldeia, um pouco mais acima, da
banda do Norte, entra um ri o chamado Yurupazi, subin-
do pelo qual, e atravessando em certa paragem por terra
tres dias de can1i11ho até chegar a outro que se chama
Yupurá, por ele se entra no Yquiari, que é o rio do
O mo, onde <lo pé de uma serra que ali está o tiram os
naturais em grande quantidade; e ·este ouro é todo em
pontas e grãos de bom tamanho, dos quais formam, à for-
ça de batê-los, as placas que, já disse, penduram das ore-
lhas e narizes.
Os naturais que traficam com os que tiram este ouro
se chamam Managíts, e os que habitam o Rio e se
238 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

ocupam em tirá-lo, Yumaguaris, que quer dizer tirado-


res de metal; porque Yuma é o metal , e Guaris os que
o tiram, e chamam a qualquer metal com este nome geral
de Yuma, e assim para qualquer ferramenta <las nossas,
como eram machados, machetes e facas, usavam <leste
mesmo vocábulo Y uma.
Dificultosa parece a entrada a estas minas, pelos in-
convenientes que mostra em mudar <le rios e abrir ca-
minhos por terra, e assim não me satisfiz até descobrir
outra mais facil, de que adiante diremos.
NUMERO LVIII

U sam orelhas e narizes furados

Todos estes bárbaros estão nús, tanto homens como


mulheres, sem que lhes sirva a sua riqueza mais que de
um pequeno atavio com que adornar orelhas e narizes,
que quasi todos trazem fu rados, e nas orelhas são tai s
que a muitos thes cabe o punho pelo buraco, que na parte
de baixo, onde costumam pender os brincos, trazem
ocupado por um maço de fol has apertadas.
P elo lado da frente de todas estas aldeias altas, é
terra chan e fechada, assim ,de outros rios como dos bra-
ços que o Caquetá estende por suas margens, que isola-
da em grandes lagos corre por muitas léguas, até que
todos incorporados no Rio Negro se juntam com o
pri ncipal.
Estas ilhas estão povoadas por muitas nações, mas
a que mais se estende, por ser a mais populosa, é a dos
Zuanas.

16
NUMERO LIX

Entrada para as mmas de ouro

A quatorze leguas desta aldeia, que chamamos do


Ouro, da banda do Norte, sai a boca do rio Yupurá,
que é por onde se entra no do Ouro e esta é a mais se-
gura e direta entrada para chegar com brevidade a avis-
tar a terra que tão liberal oferece os seus tesouros.
A altura da boca deste rio é de dois gr.aus e meio,
como é também a de uma aldeia que, quatro leguas mais
abaixo, da 'banda do Sul, está situada sobre uma grande
barranca, no desembocar de um caudaloso e claro rio
q ue os naturais chamam Tapi, e tem em suas margens
imensa multidão de Gentios que se chamam Paguanas.
São todas estas terras que, como disse, por espaço
de oitenta leguas ocupa esta Nação <los Curuziraris,
muito altas, de lindas campinas e ervas para: o gado, ar-
voredo não muito cerrado, lagos abundantes e que pro-
metem muitas e boas comodi dades aos que as povoarem.
NUMERO LX

Lago D ou rado

Vinte léguas abai xo do rio Tapí, desagua no das


Amazonas o Catuá que, formando na boca um grande
lago de aguas verdes, tem as suas origens a muitas lé-
guas de terra adentro, da banda do Sul, com suas mar-
gens tão povoadas de Bárbaros como todas as demais,
posto que lhe leve vantagem, pelo número de diversas
Nações, um outro rio, que com o nome de Araganatuba,
seis léguas mais abai xo desagua da parte do Norte,
pelo qual também comunica o Yapurá, de que falámos.
Chamam-se estas nações Yaguanaís, Mucunes, Ma-
piarús, Aguaynaús, Hutrunas, Mariarús, Yamaruas, Ter-
rús, Yiguiyas, Guanapuris, Piras, Mopiritús, Ignaranís,
Atttriaris, Magaguas, Mafipias, Guayacaris, Anduras,
Caguara:ús, Maraymumas e Guanibis. (79)
Entre estas nações, que todas são de diferentes lín-
guas, segundo as noticias que se tem pelo novo Reino de
Granada, está o desejado Lago Dourado, que tão inquie-
to traz o espírito de toda a gente do Perú. Não o afir-
mo com certeza, mas um dia permitirá Deus que saía-

( 79) O roteiro de Monteiro de Noronha, de 1768, ainda cita


as seguintes tribus ou nações : P ela margem esquerda os Maria-
rana, Ucpuri, P oiana, Coeruna, Gepuá, Caratú, J ueruna, M a riaia,
Araruá, Pcriat í, Miranha, Ca níiari, J apurá e Macú; e pela m~r-
gem direita os Mar~uá, Caiuucena, Pariana e algumas outras.
242 CARVAJAL, ROJAS E ACUNA

mos desta perplexidade. E não a haja com o nome de


um R io que desemboca da banda do Norte, a dez e seis
léguas da Araganatuha, e se chama como ele, devendo-se
deduzir que ambos são um só, que por dois braços dis-
tintos desagua no das Amazonas. A vinte e duas lé-
guas desse último braço termina a populosa e rica nação
dos Curuziraris, ]X)voadores de um elos melhores peda .
ços de t erra que encontrámos em todo este Rio.
NUMERO LX I

Provincia de Y oriman

D uas léguas mais a'baixo começa a mais conhecida


e belícosa Nação de todo o rio das Amazonas, e que, em
sua primeira entrada, atemorizava a E squadra Portu-
guêsa: - a de Y oriman. E stá da banda do Sul, ocupan-
do não só a terra firme de suas margens mas também
grande parte de suas ilhas. Embora não conte se não
pouco mais de sessenta léguas de extensão, como se
aproveita das ilhas e terra-firme, é tão sobrada de gente
que em parte alguma vimos reuni dos mais bárbaros cio
que nela. São comu mente mais bonitos e de porte mais
gracioso que os outros. Andam nús, e logo se percebe
que confiam no seu valor, pois · com grande segurança
entravam e saíam do nosso acampamento, vindo todos
os <lias ao R eal mais de duzentas canoas cheias de me-
ninos e mulheres, com frutas, peixes, farinhas e outras
coisas que trocávamos por avelórios, agulhas e facas.
Está a primeira aldeia desta Província na foz de
üm cristalino rio , que mostra ser mui caudaloso pela
fo rça com que impele ,as aguas do principal. Estará
sem dúvida, como todos os outros, mantendo em suas
margens outras inúmeras nações, das quais não soube-
mos os nomes, por passarmos por sua boca sem parar_.
NUMERO LXII

Uma aldeia de mais de uma légua de extensão

A vinte e duas léguas da primeira aldeia de Yori-


nan está situada a maior que encontrámos em todo Rio,
ocupando as suas casas mai s de uma légua de extensão
e como não vive em cada casa uma família só, como
acontece ordinariamente em nossa Espanha, mas que pelo
menos se abrigam debaixo de cada teto quatro ou cinco,
e muitas vezes ainda mais, disso se poderá deduzir a
multidão de toda esta aldeia, que nos esperou pacífica
em suas casas, sem fugir ninguém, dando-nos todos os
mantimentos que precisámos, e que já faziam falta ao
exército.
Aqui estivemos cinco dias, durante os quais se fi-
zeram para matalotagem mais de qui nhentas fânegas de
farinha de mandioca, com o que houve o que comer para
todo o resto da viagem. Prosseguimos esta, topando mui-
to a meude com povoações desta mesma nação. Mas
onde existe sua maior fôrça é trinta léguas mais abaixo,
em uma grande ilha, cercada por um braço que arroja o
rio principal, em 'busca ele outro rio que lhe vem pagar
tributo; e também pelas margens deste novo hóspede são
tantos estes naturais que, com razão, mesmo que não
seja mais que por sua quantidade, se fazem temidos e
rc:::peitados de todos os outros.
NUMERO LXIII

Rio dos Gigantes

Dez léguas adiante do rio referido termina a pro·


vincia de Yorinan; e passadas outras <luas, desemboca
na banda do Sul um famoso rio, que os Indios chamam
Cachiguará.
É navegavel, embora em parte com algumas Pf!·
dras; tem muito peixe, grande cópia de tartarugas, abun-
dância de milho e mandioca, e todo o necessário para
facilitar a sua entrada.
É povoado este rio por vanas nações, que come-
çando por sua foz, e continuando por ele acima, são as
seguintes:
Os C'!chíguarás, que tomam o mesmo nome do rio,
Cumayaris, Guaquiaris, Cuyariyayanas, Curucurus, Qua-
tanfís, Mutuanis, e por fi m e remate de todos estão os
Curiguerês, que, segundo as informações dos que os te-
nham visto, e que se ofereciam para levar-nos a suas
terras, são gigantes de dez e seis palmos de altura,
muito valentes, que andam nús, trazem grandes argolas
de ouro nas orelhas e nariz, e para chegar às suas aldeias
são necessários dois mezes contínuos de viagem desde a
boca do Cuchiguará. (80)

(80) E ste rio dos Cuchiguarás ou dos Gigantes é, segundo


Chandless, o Purús. Os Curiguerês, de que fala Acufla, pelas in-
formações que lhe davam os indios ribeirinhos, são os mesmos
Curiqueans, aos quais .se refere igualmente o padre Simão de Vas-
246 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

P elo das Amazonas abaixo, da banda do sul, ocor-


rem os Caripunás e Zurinas, a gente mais hábil, que há
em todo ele, em trabalhos manuais. Sem mais ferra-
mentas que as que eu citei acima, fazem bancos em for-
ma de animais, com tanto primor, e tão apropriados para
o descanso do corpo, que nem a comodidade nem o en-
genho os podia imaginar melhores.
F azem estólicas, que são as suas armas, de madei-
ras muito bonitas, tão caprichadamente que com razão
as cubiçam as outras nações.
E o que mais é, tiram de um tosco pedaço de ma-
deira um Idolozinho, tão ao natural, que com eles te-
riam também que aprender muitos dos nossos Escultores.
E não só todas estas obras servem para seu entre-
tenimento e comodidade, mas também lhes são de muito
proveito, obtendo por elas, em troco, entre as outras na-
ções, tudo que precisam.

concelos, em 1663, na sua Crônica da Companhia de Jesus no Es-


tado do Brasil, e que Olavo Bilac compara a muito, morubixabas
atuais que "apesar do tempo e dos vernizes, se os não trazeis por
beiços e narizes, os batoques guardais na.s almas brutas",
NUMERO LXIV

Rio Besururú e suas nações


A trinta e duas léguas donde desagua este no
Cuchiguará o faz, também da bando do Norte, um ou-
tro, chamado entre os naturais de Basururú, que dividido,
pela terra adentro em grandes lagos, a tem toda partida
em muitas ilhas, todas povoadas por infinitas nações.
São terras altas, e que nunca se anegam, por maio-
res que sejam as inundações ; são muito ferteis em man-
timentos, tanto de milho, mandioca e frutas como de
caça e peixes, com o que os naturais vivem fartos e se
multipli cam cada dia mais. (81)
Chamam-se em geral todas as nações, que habitam
este dilatado rio, Carabayanas, e em particular as pro-
víncias, em que estão divididas, são as seguintes:

(81) Bernardo Pereira Berredo corrige a geografia do padre


Acufia (cuja narrativa resume nos seus Anais Históricos do Estado
do Maranhão), desde o Papurá até ao N cgro nos dois parágrafos
seguintes: "726. Quatorze léguas mais abaixo, dous graus e meio
ao Norte da Linha, entra o Papurá, tão abundante de cacau como
de baunilhas; quatro léguas ao sul, na mesma altura, o de Tefé
(a que o .padre Cunha dá nome de Tapy), povoados ambos ·de
numerosa gentilidade ; e vinte e seis léguas adiante, pela mesma
banda, o rio Cuará, um dos mais caudalosos, que desembocam no
das Amazonas; mas até agora se não tem navegado, respeitando-se
sempre o grande poder do seu gentilismo, que se faz formidavel.
" 727. Pouco mais abaixo corre o Marmiá ; e vinte e dÚas
lrg11as da sua povoação, dcscançou cinco dias a nossa armada, ·aa
principal de todas, com tanta abundância de mantimentos, que .se
forneceu dos necessários para o resto da sua viagem com grande
fortuna. Continuando pela parte do Norte fica o Cudajá; e na
distância de quarenta e duas léguas, seguindo outra vez o rumo
do Sul 1 entra também no das Amazonas o rio Yanapuary com es-
248 CARVAJAL, RoJAS E A c uNA

Caragoanas, Pocoanas, V rayaris, Mafucaruanas,


Quererús, Cotacarianas, Moacaranas, Y aribarus, Yaru-
caguacus, Cumaruruayanas e Curuanaris.
Usam estes Indios de arco e flecha; ha entre al-
guns deles ferramentas de ferro, como sejam machados,
machetes, :podões e facas. Perguntando com cuidado,
pelos lí nguas, de onde lhes vêm, respondem que as com-
pram dos naturais que po r ali estão mais próximos do
mar, aos quais as dão uns homens brancos como nós,
que usam as nossas mesmas armas, espadas e arctabu-
zes, que na costa do mar teem sua residência e que so
se distinguem de nós no cabelo, que todos os têm ama-
relos, sinais suficientes para podermos concl uir com cla-
reza que são os Holandêses, que para as bandas do Rio
Doce, ou Felipe, há dias tomaram posse.
No ano de trinta e oito deram com copiosa força
na Guiana, jurisdição do novo Reino de Granada, e não
só se apoderaram dela, como foi tão improviso que, não
podendo os nossos tirar o Santissimo Sacramento, fico u
cativo em mãos de seus inimigos que, como sabiam quão
estimada é esta prenda entre os Católicos, esperavam por
ela grande r esgate, para o 'que se preparavam, quando
saímos daquelas partes, boas companhias de soldados,
que com ânimo cristão iam a dar as suas vidas para
resgatar ao seu Senhor, com cujo auxílio sem dúvida
se lograriam tão bons desejos.
paçosa boca de cristalinas aguas. Ao Cuarí chama o padre Cunha
Catuá; ao Mamiá Yoriná; ao Cudajá Araganatuba; e ao último
Cuxiguará ( que o padre Samuel, na sua carta geográfica, nomeia
Cuchiuará) todos tão abundantes de cacau como de tapuias ".
O rio Cudajá de Berredo ou Araganatuba de Acufía não é mais
que um furo mais importante do J ap urá ao Solimões, tendo em
seu curso os lagos Amaná e Cudajá. O Ianapuarie de I3crredo
(o Cuchiguará a que já nos referin10s na nota anterior) é o Purús.
N o roteiro de Monteiro de Noronha citá ele para o Coari os índios
Catauixi e J una (expulsos pelos Mura) ; no Purús ou Catauixi e
Itatatpiia, além dos Irizu e Tiari, já quase extintos,
NUMERO LXV

Rio Negro

Menos de trinta léguas completas abaixo de Basu-


rurú, do mesmo lado do Norte, na altura de. quatro graus,
sai ao encontro do das Amazonas o maior e mais for-
moso rio, que em mais de mil e trezentas léguas lhes
presta vassalagem.
E tão poderoso em sua entrada, que é de légua e
meia de largura, parece que se envergonha de reconhecer
outro maior, e embora o das Amazonas, com todo o seu
caudal, lhe deite os braços, não se querendo submeter,
ombro com ombro, sem respeito algum, apossando-se
da metade de todo o rio, o acompanha por mais de doze
léguas, di stinguindo-se claramente umas aguas das ou-
tras, até que, não sofrendo o das Amazonas tanto arro-.
gância, revolvendo-o em suas t urvas ondas, o faz entrar
no caminho e reconhecer por amo o que ele queria vas-
salar.
Chamaram os Portuguêses, e com muita razão, a
este grand1: rio o Negro, porque em sua boca e muitas
léguas para dentro, a muita profundidade que tem e a
limpidez da agua que para ele flue de imensos lagos,
fazem parecer tão negras as aguas profundas, como se
250 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

de propósito fossem tinlas, embora fora do seu natural


sejam cristalinas. (82)
Nas cabeceiras faz o seu curso de Oeste para Leste,
embora as voltas sejam tantas. que cm distâncias muito
curtas m uda de rumo com frequência; o que traz por
muitas léguas, antes de entrar no das Amazonas, é o
de Poente pra Oriente. Chamam-no os naturais que o
habitam - Curiguacurú.
Mas os Tupinambás, dos quais depois falaremos,
lhe puzeram o notne de Uruna, que em sua língua quer
dizer agua negra.
Como também chamaram ao principal das Amazo-
nas Paranaguaçú, que significa rio grande, para distin-

(82) Do rio Negro e ela , tta comunicação com o Orinoco


encontramos frequentes refe rências em todos os cronistas do Ama-
zonas. Vemos que Acuíia di z que Lopo de Aguirre por ela foi
ter à ilha Margarita, onde encontrou a morte. Berredo escreve :
" Sessenta léguas mais abaixo do Ianapuarí ( o Purús atual), qua-
tro graus ao Norte, desemboca o grande rio Negro ( onde ternos
hoje uma fortaleza), comunicado já com outro caudaloso, chamadC'
Branco (que confina com Suriname, Colônia Holandêsa) povoado.;
ambos de muitas nações de gentilismo, e algumas delas missiona-
da 5 pelos Rclig-íosos de N ossa Senhora do Monte do Carmo; po-
rém sendo a mais populosa a do_s Manaus, não admitiu até ao pre-
sente a prégação do santo Evangelho. Pouco adiante, pelo mesmo
rumo, o rio Matari (Missão dos pad res Mercenários), que tem a
_sua fonte cm uns formosos lagos; e ainda que não faz menção
dele o padre Cristovam da Cunha, o conheceu bem o padre Samuel,
como se vê da sua carta". Aliás o mapa de Bento da Costa,
piloto de Pedro T eixeira, embora não dê os nomes, já desenha de
modo muito aceitavel, não só o rio N egro, como o Branco e os
ramos de oeste do Negro, reconhecendo-se o Uaupés e o Cassi-
quíare. Na Participação do Rio Negro de Alexandre Rodrigues
Ferreira se tem ótima e minuciosa descrição do estado deste rio
em fins do século XVIII. Parece que Acufia não tinha conheci-
mento do relatório de Carvajal, pois atribui aos portuguêses o
nome do rio Negro, que o dominicano diz ter sido dado por
Orellana.
DEs coRRI MENTos oo Rro nAs AMAZONAS 251

gui -lo de outro menor, mas muito caudaloso, que chamam


Paranamirí, isto é, rio pequeno, que desagua da banda
do Sul, uma légua antes do rio Negro, e que afirmam
ser muito povoado de diversas nações, a última das quais
anda vestida e usa chapéu, sinal certo de que confinam
com os Espanhois do Perú.
Os que residem nas aguas do Rio Negro são gran-
des Províncias, a saber: Caniçuaris, Aguayras, Y acun-
carais, Cahuayapitis, Manacarús Yanmas, Guanamás,
Carapanaris, Guarianacaguas, Acerabarís, Curupatabas; e
os que primeiro povoam um braço que este rio lançã,
por onde, segundo informações, se vem a sair no Rio
Grande, em cuja boca, no mar do Norte estão os Ho-
landêses, são os Guanaranaquazanas.
Usam t0<.las estas nações de arco e flecha, muitas
delas ervaclas com peçonha.
São todas as deste rio terras altas, de ótimo solo,
e que, cultivadas, prometem quai squer frutos, mesmo os
de Europa em alguns Jogares; tcem muitas e boas cam-
pinas, cobertas de sazonados pastos, para poderem nelas
pasta r inúmeras cabeças de gado.
Produz grandes árvores de boas madeiras para qual-
quer tipo de emharcações e ecli fícios que, não só com
ela~. mas também com pedra muito bôa, abundante neste
rio, se podem construir.
Suas margens são povoadas de toda a qualidade de
caça e seus peixes, em verdade, são tantos como no das
Amazonas, por serem stias aguas tão claras, tanto que
nos lagos que forma, terra a dentro, sempre se colhem
às mãos cheias.
Ha em sua foz bons sítios para fortalezas, e muita
pedra para fabricá-las, com que se poderá defender a
entrada ao inimigo que quízer ir por ele ao principal, em-
bora eu julgue que, não nesta paragem, mas muitas lé-
guas mais para dentro, no braço que desemboca no rio
252 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

grande que, já disse, desagua no Oceano, é onde mais


seguramente se devia pôr toda a def esa, com o que ficaria
de todo tomado o passo ao inimigo para todo este novo
mundo, o que, cubiçoso, há de tentar dentro de algum
tempo.
Não me atrevo a afirmar se o rio grande, onde
desemboca êste braço do Negro, é o Doce ou o Felipe,
embora muito me incline para este último, segundo boas
demarcações, pois é este o primeiro rio de consideração
que, passadas algumas léguas, entra no mar depois do
cabo do Norte. O que posso determinadamente asse-
gurar é que de modo algum é o O renoco, cuja boca
principal cai em frente da Ilha da T rindade, mais de
cem léguas abaixo dond e desagua o rio F elipe, pelo qual
saiu no mar do Norte Lope de Aguirre. E como ele
o navegou, qualquer outro poderá entrar, por onde uma
vez abriu caminho.
NUMERO LXVI

Os Portuguêses tentam entrar pelo no Negro

Estava a Armada Portuguêsa, na v1agem de volta,


acampada na boca do rio Negro, aos 12 -de Outubro de
seiscentos e trinta e nove, quando, considerando-se já
na porta de suas casas, volveram os olhos, não para os
aumentos q11e traziam, que êsses eram nenhuns, mas
sobre as perdas que haviam tido no espaço de mais de
dois anos em que andaram neste descobrimento, que não
eram poucas.
Inteirados, por ontro lado, que os serviços presta-
dos à sua Magesta.de nestas {:Ot\(\_\.Üstas nenhuma re~om-
pensa teriam em terras onde os que mais sangue der-
ratnar:1111 em semelhantes ocasiões, estão hoj e aniciuil:.'t-
dos e morrendo de fome, por não poderem comparecer
diante de quem os poderia prc111iar, determinaram atrair
para o se1t desej o as boas graças do Capitão-Mor.
Procuraram persuadi-lo de que, uma vez que a pró-
pria pobreza os obrigava a buscar algum recurso com
que ir vivendo e as notícias dos muitos escravos que os
naturais 1)0SS\\Íam no ,nterior deste rio Negro, não per-
mitisse deixar passar a ocasião que se oferecia, sem que
delas se a proveitasse, dando ordem para que a gente
seguisse esta der rota, pois com os muitos escravos que
se arrancassem deste rio, quando não levassem outra coi-
sa, seriam bem recebidos pela gente do Pará, e sem eles
seriam tidos, sem dúvida, por homens inúteis, pois pas-
254 CARVAJAL, RoJAs E A cvNA

sando por tantas e tão diferentes Nações, e havendo en-


contrado tantos escravos, voltavam com as mãos vazias;
ainda mais havendo homens, nestas Conquistas, que sa-
bem, às portas de suas casas, fazer os escravos de que
se servem.
Dava mostras o Capitão Mor <le atender ao que pe-
diam, talvez por aqueles serem muitos e ele um só, e
assim deu permissão para que se puzessem velas nas em-
barcações, porque havia vento de popa favoravel para
a entrada solicitada.
Estavam todos alvoroçados com esta determinação,
e ninguém se prometia menos de um elevado número
de escravos, e houve quem não se contentasse com menos
de trezentos, que lhe tocariam como quinhão.
Cuidado e não pequeno me poderia dar esta resolu-
ção, se eu não conhecesse o nobre e-spírito do nosso Cau-
dilho, desinteressado de semelhante aventura, e estava
eu mui confiante de que ele seguiria em primeiro Jogar
o que fosse para bem do serviço de ambas as Ma-
gestades ...
Com esta confiança, depois de ter dito Missa, reeo-
lhendo-me à parte com o meu companheiro, desejosos de
impedir por todos os meios intentos tão desviados. fi ze-
mos o seguinte papel.
NUMERO LXVII

Requerimento feito ao Exército

O s padres Cristoval de Acufía e André de Artieda,


Religiosos da Companhia de Jesús, pessoas às quais el-Rei,
nosso Senhor, por uma Real provisão despachada por
sua Real A udiência da Cidade de São Francisco de Qui-
to, nos Reinos do Perú, aos vinte e quatro dias do mez
de Janeiro do presente ano de mil seiscentos e trinta e
nove, manda e -encar rega que, tendo vindo em compa-
nhia desta Armada Portuguêsa, por todo êste g rande Rio
das Amazonas, novamente descoberto, tomemos noticia
suficiente, e a mais clara que possa ser, das nações que
nele habitam, rios que se lhe juntam e o mais que seja
necessario para que no Real Conselho das Indias se faça
uma idéa perfeita desta empresa, e que assim tendo feito,
com a maior brevidade possivel passássemos à Espanha
a dar conta de tu<lo à sua Magestade, sem que pessoa
alguma nos possa impedir a execução de todo o referido;
Como mais largamente constará pela dita Real pro-
visão, que vem em nosso poder, e, sendo necessário, es-
tamos prontos para mostrá-la a todos, como fizemos a
alguns dos principais chefes deste exército;
Tendo ouvido pelo falar de muitos, e pelas velas
que se dispõem para a navegação, que o Capitão-Mor
Pedro T eixeira e os mais Capitães e Oficiais mores des-
ta armada, em cuja companhia viemos por mandado de
Sua Magestade, intentam dilatar mais a viagem, en-

17
256 CARVAJAL, RoJAS E AcuNA

trando-se pelo rio Negro, em cuja boca atualmente nos


achamos, com o intuito de dele arrancar peças escravas,
e levá-las como tais para as suas fazendas do Pará e
Maranhão, como costumam fazer em todas as entradas
que do rio Pará fazem aos naturais que habitam em seus
confins;
E porque nisto se há de gastar forçosamente muito
tempo, ao dizer de pessoas experimentadas em semelhan-
tes entradas, e haverá outros muitos inconvenientes ;
Por acudir à obrigação que nos corre, e para desen-
cargo nosso perante a Real pessoa de sua Magestade, em
seu nome, falando com o devido acatamento, requeremos
ao Capitão Mor P edro T eixeira, ao Coronel Bento Ro-
drigues de Oliveira, ao Sargento Mor Felipe de Matos,
aos Capitães Pedro da Costa e Pedro Bayon, a aos de-
mais oficiais vivos, que atualmente se acham governan-
do este exército na boca deste Rio Negro;
Que, como sua Magestade já tem notícia, pela Real
Audiência da Cidade de Quito, e por seu Vice-rei do
Perú, do despacho de nossas pessoas para os fin s acima
referidos, e da brevidade com que se esperava havería-
mos de chegar à sua Real presença, pois, segundo o dito
Capitão Mor Pedro Teixeira e outros muitos de sua
companhia asseguraram aos senhores da dita Real Au-
diência de Quito, que havíamos de estar no Pará dentro
de dois mêses e meio, e d'aqui a seis dias se cumprirão
oito mezes que saímos da elita Cidade de Quito e ainda
faltam seiscentas léguas, deste porto até ao Pará, de cuja
demora podem resultar muitos e graves inconvenientes,
como sejam, demorar sua Magestade a forti fícação deste
rio, que há tantos anos deseja que se descubra, esperan-
do a brevidade com que nós haviamos de chegar com as
informações dele, e neste ínterim apoderar-se o inimigo
de suas principais entradas, coisa de que resultará gran-
de prejuizo para a sua Real Coroa;
DEscoBRIMENTos no Rro DAS AMAZONAS 257
E juntamente tão bons e esforçados Capitães, como
aqui vão, sem dúvida farão grande falta à fortaleza do
Pará, aonde, se o inimigo chegasse, estando eles ausen-
tes, seria muito certa a sua perda;
Além disso, os Indios deste rio Negro, onde se
pre1cncle entrar, são, na opinião de todos, gente muito
belicosa, e de arco e flecha ervada, com que n os pode-
rão fazer muito dano, ainda mais vendo a pouca força
dos Indios amigos que nos restaram ; muitos dos quais
estão enfermos, e outros são rapazes sem experiência de
guerra, e todos sem nenhuma vontade de fazer a elita
entrada, de que pode reimitar a perdi ção total deste exér-
cito, além do que, indo com pouco gôsto, poderá aconte··
cer qtte nos fu jam, como fizeram na maioria os que sui·-
ram do Pará, principalmente vendo-se às portas de suas
casas ;
Aqui acrescentamos que os escravos que se pretende
arrancar, há muita dificuldade se se pode fazer em boa
conciência ( exceto os que forem necessários para lín-
guas) porque esta terra é nova, e embora haja cédula
<le sua Magestade ( como se diz) para fazer escravos,
isto só na jurisdição circunvizinha do Pará e Maranhão
e com as outras qualidades que se requerem, e os deste
rio não se sabe a que jurisdição pertencem;
E dado o caso que nenhuma das razões tenha força,
e se conseguisse o fim que se deseja <la elita j ornada,
que é arrancar grande quantidade de escravos, estes
mesmos. pelas poucas fo rças que temos atualmente para
guardá-los e defendê-l os, poderá ser que sejam a ruina
t otal e destruição de todos;
Por tudo isso e pelo mais que pudesse apresentar
em dessc rviço de ambas as Magestacles Divina e huma-
na, e prej uizo da salvação de tamanha imensidade ele
almas como ·h á neste rio ;
De novo uma e outra vez volvemos a requerer ao
d ito Capitão Mor Pedro Teixeira, Coronel, Sargento-
258 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

Mor, Capitães e Oficiais vivos que atualmente governam


este exército, que não dando lugar a dilação, que não se-
jam do serviço de Deus e de sua Magestade, com toda
a brevidade se procure que continuemos a nossa viagem
do P ará, para dali passar à E uropa, a cumprir com o
fim e obrigações de nosso mandato, e se possa acudir
com presteza, tendo-o assim sua Magestade por bem, à
salvação de tantas almas como se descobriram neste novo
Mundo, e que miseráveis jazem nas sombras da morte;
E se o dito não fosse suficiente para obrigar a que
todos juntos prossigamos nossa viagem com a dita bre-
vidade, requeremos de novo, com a Real provisão, que
para ele trazemos ao dito Capitão Mor Pedro Teixeira,
e aos outros oficiais do exército, que para isso tiverem
mão, dando-nos o aviso necessário e passagem para ga-
rantia de nossas pessoas, se nos consinta prosseguir sem
demora a nossa viagem, que embora seja com risco de
inimigos, tudo pospomos para cumprir com o que sua
Magestade nos manda em sua Real Provisão ;
E fazendo o contrário, protestamos de todos os in-
convenientes e danos que da demora que houver na dita
jornada se seguirem, e de dar conta di sto ao Real Con-
selho das Indias, e á Real pessôa de El-Rei nosso Se-
nhor, como se ordena que o façamos;
E finalmente para salvaguarda de nossas pessoas, e
demonstr'.ação de que desejamos cumprir efetivamente
com o que nos mandam, pedimos se ordene ao Escrivão
nomeado deste exército, nos dê testemunho de tudo o
que neste requerimento se contém, e do que a ele nos
fôr respondido, etc.
NUMERO LXVIII

Continua a viagem do n o Madeira

Feito este papel e comunicado ao Capitão Mór, que


muito se alegrou por já ter quem se puzesse do seu lado,
e reconhecendo a fôrça dos argumentos, mandou ime-
diatamente recolher as velas, cessar com os preparativos
e dispôr tudo para que no dia seguinte, tornando a sair
pela boca do rio Negro, continuássemos todos a nossa
viagem pelo das Amazonas abaixo.
Assim o fizemos, e a quarenta e oito léguas demos
com o grande rio da Madeira, assim chamado pelos por-
tuguêses, pela muita e grossa que trazia quando por ele
passaram, mas o seu verdadeiro nome entre os naturais,
que o habitam, é Cayari. (83)

( 83) Pela margem esquerda do Amazonas encontramos, de-


pois dos Manaus, como grupo principal, os Aruaque, concordando
,nesse ponto o Mapa Agosti ni e o inédito de Raimundo Lopes. No
rio Madeira o grupo principal é, segundo Agostini, o dos Mura,
as, inalando Lopes os Araras que se estendem muito para Leste.
Heriarte ao falar do Madeira apena.s diz : Neste rio há um barro
mui cheiroso de que fazem os moradores igaçavas, que são como
talhas grandes e pequenas, que a vender levam por outras partes
a troco de algodão e fio para atarem as frechas, e por milho e
tabaco e outras coisas que lhes são necessárias. No roteiro de
Monteiro de Noronha cita ele como nações ribeirinhas do Ma-
deira os Araras, Urupá, Pama, Turá, Matanami, Orupá, T ocumá,
Mami, Cauaripuna, Iqui, Jauareticua ra e os terriveis Mura, de
cuja_s frechas ervadas já fala Carvajal
260 CARVAJAL, RoJAs E A cuNA

Desce da banda do Sul e, segundo o que averiguá-


mos, se forma de dois caudalosos rios que j untam algu-
mas léguas para dentro, pelos quais, segundo boas de-
marcações e segundo as informações dos Tupinarnbás,
que por ele desceram, é por onde, e ma is depressa que
por qualquer outra parte, se há de descobrir saída para
os mais próximos rios da comarca de Potosi.
Das nações deste rio, que são muitas, as primeiras
se chamam Zurinas e Cayanas, e logo se vão seguindo
os Urutihans, Anamaris, Guarinumas, Curanaris, Ere-
punacas e Abacatis.
E desde a boca do rio, correndo pelo das Amazonas
abaixo o povoam os Zapucayas, U rubu tingas, que são
muito babeis em fabr icar coisas de madeira; atrás des-
tes se seguem os Guaranaguacas, Maraguas, Quimaús,
Buraís, Punouys, O regatús, Aperas e outros cuj os no-
mes não pude averiguar com certeza.
NUMERO LXIX

Ilha grande dos Tupinambás


A vinte e oito léguas da boca deste rio, caminhando
sempre pela mesma banda do Sul, está uma formosa
ilha, que tem sessenta de comprimento e por conseguinte
mai s ele cem de circuito, toda povoada pelos valentes
T upinamhás, gente que das conquistas tio Brasil, em
terras de Pernambuco, saíram derrotados há muitos anos,
fugindo do rigor com que os P ortuguêses os iam subju-
gando. (84)
Saíram em grandíssimo número, que, despovoando
ao mesmo tempo oitenta e quatro aldeias onde estavam
situados, não fi cou de todos eles nenhuma criatura que
não trouxe sem cm sua companhia.
Seguiram, tendo sempre à mão esquerda as fraldas
da Cordilheira que, vind o desde o estreito de Magalhães,
(84) Aqui Berredo completa a narrativa de Acuí'ía e dela
diverge no que se refere às lendas contadas pelos tupinambás.
Diz ele : "Mais abaixo ( cio rio Madeira), pela parte do Norte,
desemboca o de Saracá, depois ele ter já desaguado nele o de
Urubú (a que o padre Cunha chama Barururú) , habitado de muito
gentio, que se comunica com os holandêses de Snriname; e a este
último antepõe também o mesmo padre (sem dúvida que equivo-
cadamcnte), não só ao da Madeira mas ainda ao N('gro. P ouco
adiante ele Saracá, correndo para a banda do Norte, passou a ar-
mada a boca do rio Atumá, e com mais um dia ele viagem a dos
J amundazes. Nessa altura se deixou persuadir a singeleza do padre
Cunha de varias novelas, sugeridas todas por uns chamados índios
Topinambazes. Maurício de Heriarte chama aos Tupinambás Tu-
pinambaranas, dando as mesmas informações que o padre Acufia.
N o mapa de Raimundo Lopes os Tupinambás .só aparecem já a
Léste do Maranhão.
262 CARVAJAL, RoJAS E AcuNA

cinge toda a América, e passando pelas cabeceiras de


quantos rios correm dela para o Oceano, chegaram ,hl-
g uns a encontrar-se com os Espanhois que habitam nas
nascentes do rio da Madeira.
Estiveram com eles algum tempo,, e como um espa-
nhol açoitou a um (teles, por lhe terem morto uma vaca,
aproveitando-se da ocasião do Rio, arrojaram-se todos
por suas correntes, vindo a dar na ilha que atualmente
habitam.
Falam estes Indios a língua geral do Brasil, que
também é corrente entre quase todos os das conquistas
do Maranhão e P ará.
Dizem também que, como saíram tantos, não po-
dendo por aqueles desertos sustentar-se todos juntos, se
foram dividindo em tão dilatado caminho, que será pelo
menos de novecentas léguas, ficando uns a povoar umas
terras e outros outras, dos quais sem dúvida estarão bem
cheias todas aquelas Cordilheiras.
São gente de grande coragem na guerra, e bem o
mostraram os que chegaram a estas paragens, onde agora
residem, pois sendo eles, sem comparação, muito menos
numerosos que os nah1rais deste R io, de tal modo os
devastaram e submeteram a todos aqueles com quem
tiveram guerras, que destruindo nações inteiras, a outras
obrigaram a deixar suas casas com medo, indo como pe-
regrinos para estranhas terras.
,São de corações nobres e afidalgados, embora, como
já quase todos que há atualmente sejam filhos e netos dos
primeiros povoadores, se vão adaptando às baixezas e ma-
nhas dos da terra, com cuj o sangue estão misturados.
Mostraram-nos todos bom acolhimento, dando prova
de que em breve se haviam de reduzir a viver entre os
Indios amigos do Pará; coisa que será sem dúvida mui-
to útil vara conquistar todas as outras Nações deste Rio,
se se tivêr de povoar; pois só ao nome de Tupinambás
não há nenhuma delas que não se renda.
NUMERO LXX

Notícias que os Tupinambás deram

Destes Indios Tupinambás, como gente de mais 111-


teligência e que não necessita de intérpretes, por ser
corrente entre eles, como já disse, a língua geral, que
muitos dos mesmos Portuguêses falam com perfeição,
por nascidos e criados naquelas costas, tivemos algumas
notícias que aqui transcreverei, como ele gente que, tendo
percorrido e submetido toda a circunvizinhança de sua ju-
risdição, se podem ter por certas.
Dizem que perto de sua residência, pela banda ck>
Sul, em Terra-firme, vivem entre outras, duas nações,
uma de anões, tão pequenos como criancinhas de peito,
e que se chamam Guayazi s, a outra ele gente onde todos
teem os pés para trás, de modo que quem, não os conhe-
cendo, quizesse seguir as suas pegadas, caminharia sempre
em direção contrária à deles. Chamam-se Mutayús e são
tributários destes Tupinambás; teem machados de pedra
para a derrubada das á rvores, quando querem cultivar a
terra, o que fazem com esmero, e de contínuo estão ocupa-
dos em sua lavoura. (85)
Da banda de frente, que é a cio Norte, dizem que
estão enfileiradas sete Províncias bem povoadas, mas de
(85) Desses índios mon.struosos fala também o padre Simão
de Vasconcelos, tanto dos Coiazis, "anãos de estatura tão pequena
que parecem afronta dos homens", como dos Matuiús, que Bilac
traduz como "de pés virados, marcha avessa e rude, dedos atrás,
calcâneos para a frente". Alexandre Rodrigues Ferreira, em sua~
264 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

gente sem valia, e que só se sustentam de frutas e ani-


maizinhos silvestres, sem nunca fazerem guerras entre
si nem com outros, de modo que são desprezados.
Também afirmam que com outra nação que confi-
na com esta estiveram em paz muito tempo, havendo en-
tre elas comercio do que cada qual tinha com abundân-
cia em sua província, e o principal de que se proviam os
Tupinambás era de sal, que os amigos lhes traziam para
seus escambos, e que afirmavam vir-lhes de outras ter-
ras vizinhas elas suas, coisa que, se se descobrisse, seria
de grande utilidade para a conquista e povoação deste Rio.
E conquanto aqui não se encontre, se há de desco-
brir em grande abundância num rio elos que descem dos
lados do Perú, de onde, no ano de trinta e sete, estando
eu já na cidade de Lima, saíram dois homens que, de
lance em lance, aportaram por aquelas paragens a um
certo ponto de onde, baixando por um dos rios, que
desaguam neste principal, deram com uma grande mon-
tanha de sal, da qual os moradores tinham o estanco,
sustentando-se ricos e fartos com as pagas que por ele
recebiam, dos que de 111ais longe vinham buscá-lo.
E não ~- novidade no Perú e em todas as suas Co r-
dilhei ras haver montanhas de sal de pedra excelente,
pois é este o que se consome em todo ele, tir.ando-a de
suas jazidas com aceradas barretas, em pedaços tão gran-
des, que cada qual pesa de cinco a seis ar robas.
Ocupa esta Província dos Tupinambás setenta e !'.eis
léguas de extensão, terminando em uma boa aldeia que
está situada a tres graus de altura, como também estava
a primeira dos Indios Aguas, aos qu ais acima já fizemos
menção.
Observações gerais e particulares sobre os Mamais, ainda per-
gunta: " Será certo, que entre as muitas nações de gentios que
habitam o Juruá, confluente do rio dos Solimões, existe a dos
Cauanaz, espécie de pigmeus, de estatura tão curta que não pas -
sam de cinco palmos?
NUMERO LXXI

Duas noticias das Amazonas

Com o referido também por estes Tupinambás, con-


firmámos as largas notícias que trazíamos por este Rio
sobre as afamadas Amazonas, das quais tomou o nome
desde os seus primórdios, não o conhecendo por nenhum
outro, senão por este, todos os Cosmógrafos que dele
até hoje trataram. (86)
E fôra coisa de admiração que sem mui graves fu n-
damentos, houvesse usurpado o nome de Rio das Ama-
zonas, podendo qualquer um lançar-lhe em rosto de que
por ele se queria tornar famoso, sem outra razão que o
vestir-se do alheio.
Não me persuado de sua nobreza, nem é crível que,
tendo este rio tantas grandezas a que pudesse lançar
mão, só quizesse vangloriar-se com um título que não
lhe competia, baixeza ordinária de quem, não podendo
por seus braços alcançar a honra que deseja, a procura
mendigar do vizinho.
Os fundamentos que há para assegurar Província
ele Amazonas neste rio são tantas, e tão fortes, que seria
faltar à fé humana o não lhes dar crédito.
E não trato das grandes informações que, por or-
dem da Real A udiência de Quito, se fizeram entre os

,. (86) Veja-se a nota 17.


266 CARVAJAL, RoJAS E ACUNA

naturais que o habitaram muitos anos, a respeito de tudo


o que continham suas terras; nas quais uma das princi-
pais coisas que se asseguram era estar ele povoado de
uma Província de mulheres guerreiras, que sustentando-
se sósinhas, sem varões, com os quais apenas de tempos
em tempos tinham cohabitação, viviam em suas aldeias,
cultivando as suas terras e alcançando com o trabalho de
suas mãos todo o necessário para o seu sustento.
Tão pouco faço menção das que pelo novo Reino
de Granada, na cidade de Pastos se fizeram entre alguns
índios e particularmente a uma índia, que disse ter ela
própria estado nas terras povoadas por estas mulheres,
confirmando em tudo o que já se sabia pelos primeiros
dizeres.
Só Janço mão do que ouvi com os meus ouvidos e
com cuidado averiguei desde que puzemos pé neste rio,
no qual não há geralmente coisa mais comum, e que nin-
guém ignora, que se dizer que nele habitam estas mulhe-
res, dando sinais tão particulares, que concordando todas
as suas informações umas com as outras, não é crível que
uma mentira se pudesse ter enraizado em tantas linguas
e tantas nações, com tantos visos de verdade.
Mas onde mais luz obtivemos do sítio onde vivem
estas mulheres, dos seus costumes, dos Indios que têm
relações com elas, dos caminhos pelos quais se penetra
em suas terras, e dos naturais que os povoam (gue é a
que aqui darei), foi na última aldeia onde acaba a Pro-
víncia dos Tupinambás.
NUMERO LXXII

Rio das Amazonas


A trinta e seis léguas desta aldeia, cbrrendo rio
abaixo, está da banda do Norte o <las Amazonas, que
com o nome de Rio Canuris é conhecido entre aqueles
naturais.
Toma este Rio o nome dos primeiros Indios que
~ustenta em sua foz, aos quais se seguem os Apontos,
que falam a língua geral de todo o Brasil. Atrás destes
estão situados os Taguaís, e os ultimas, que são os que
teem relações com as proprias Amazonas, são os Gacarás.
Estas mulheres varonis teem sua séde entre gran-
des montes e altíssimos cerras, dos quais o que mais se
alteia entre os outros, e que, como o mais soberbo, é
combatido dos ventos com mais rigor, pelo que sempre
se mostra descalvado e limpo de vegetação, se chama
Y acamia'ba.
São mulheres ele grande coragem, e que sempre se
conservaram sem o com.ércio ordinário de varões, e mes-
mo quando estes, pelo acordo que teem com elas, vêm
uma vez por ano às suas terras, recebem-nos com as ar-
mas nas mãos, que são arco e flechas, que atiram durante
algum tempo, até que cientes de que vêm de paz os co-
nhecidos, deixando as armas, acodem todas às canôas ou
embarcações dos hóspedes, e tomando cada qual a rede
que encontra mais à mão, que são as camas em que eles
dormem, a levam para casa, e pendurando-a em sítio

18
268 CARV.t\JAL, RoJAS E AcuNA

onde o dono a reconheça, o recebem por hóspede aqueles


poucos dias, passados os quais eles voltam .para as suas
terras, repetindo-se todos os anos esta viagem pela mes-
ma época.
As filhas fêmeas que nascem desta união, conser-
vam e criam entre elas, porque são as que hão de
levar adiante o valor e costumes de sua: nação, mas os
filhos varões não se sabe com certeza o que fazem
com eles.
Um Indio que, sendo pequeno, tinha ido com seu pai
a esta entrada, afirmou que os filhos varões eram entre-
gues aos pais, ·quando no ano seguinte voltavam a sua
terras. Mas contam os outros, e parece o mais certo
por ser mais corrente, que reconhecendo-os como tais,
lhes tiram a vida.
O tempo descobrirá a verdade, e se estas são as fa-
mosas Amazonas dos historiadores, que guardam em sua
comarca tesouros que dão para enriquecer o mundo todo.
Esta a foz deste rio, povoado pelas Amazonas, a
dois graus e meio de altura.
NUMERO LXXIII

Ponto mais estreito de todo o Rio


Passada a boca deste rio das Amazonas e percor-
rendo vinte e quatro léguas do principal, desagua da
mesma banda do Norte um outro rio mediano, que se
chama Urixaminá, naquele ponto onde, como acima disse,
se estreita este grande rio em extensão de um pouco
mais de quarto de légua. Aí oferece sítios aprazíveis
para a lavoura, de um e outro lado das f0rtalezas que
não só impeçam o passo aos inimigos, que o intentarem
pelo lado do mar, como também, servindo de alfândegas,
nelas se registre tudo o que por este rio das Amazo-
nas, caso se venha a povoar, forçosamente descerá do
Perú. (87)

(87) Ainda aqui a retificação de Berredo : " Setenta e duas


léguas do rio Madeira, pelo mesmo rumo, na altura de dois gra,us
e quarenta minutos, desagua o das Trombetas, em outro estreito
célebre das Amazonas, que na distância de quatro léguas não ~x-
cede a largura de tiro ordinário de artilharia; na boca da qual
sustenta Portugal outra fortaleza da invocação de Santo Antônio,
que domina absolutamente a navegação daquele grande r io, ; e ao
das Trombetas, tão cheio de gentio, como de pau cravo, chama
também o padre Cunha U rixaminá ". Vê-se que Portugal se apres-
sara em seguir o conselho dado por Acuíía a Pedro Teixeira, já
nas lindes com o Pará. Mauricio de Heriarte escreve: Da banda
do Norte é que está o rio das Trombetas, mui povoado de í ndios
de diferentes nações, como são Conduris, Boluis, Aroazes, Tabao.s,
Curiatós e outros muitos. T odos eles são de pouca vergonha.
270 CARVAJAL, ROJAS E ACUNA

Desde este logar que está, como acima disse, a mais


de trezentas e sessenta léguas do mar, se começam a
sentir as suas marés, observando-se todos os dias en-
chentes e vazantes, embora não tão evidentes como al-
gumas Ieguas abaixo.

Vivem nús, assim os homens como a.s mulheres, sem cobrirem as


partes vergonhosas". Os Condurizes formam ainda hoje o grande
grupo dominante nessa região. No mapa de Bento da Costa está
assinalado este rio com o nome rio de la Trom ( peta).
NUMERO LXXIV

Rio e nação dos Tapajozes


A quarenta léguas deste estreito desem,boca, pela
banda do Sul, o vistoso rio dos Tapajozes, tomando o
nome da Nação e Provincia que sustenta em suas mar-
gens, que é muito povoada de bárbaros, com boas ter-
ras e abundantes mantimentos. (88)
São estes Tapajozes gente de brios, muitas vezes
temida pelas nações circunvizinhas, porque usam tal pe-
çonha em suas flechas, que só com o chegar a fazer san-
gue, tiram sem remédio a vida.
Por este mesmo motivo os próprios Portuguêses
lhes temeram o comércio por muito tempo, desejando
atraí-los por bem à sua amizade, à qual nunca se che-
garam de todo, porque os obrigavam com ela a sair do
seu natural, vindo a instalar-se entre os já pacificados,
coisa que sentem muito estas Nações. Embora em suas
terras recebessem com bom agasalho aos nossos, como
verificámos, quando acampados perto de uma aldeia sua,
de mais de quinhentas famílias, de onde não cessaram,
durante o dia inteiro, de vir trocar patos, galinhas, redes,
peixes, farinhas, frutas e outras coisas e com tanta con-
fiança, que mulheres e meninos não se afastaram de nós,
prometendo que, se os deixassem em suas terras, pode-
riam os Portuguêses em boa hora vir a povoá-los, que
os receberiam e serviriam em paz para sempre.
(88) Veja-se a nota 18.
NUMERO LXXV

Opressão que fizeram os Portuguêses

Não bastaram os humildes oferecimentos destes Ta-


pajozes para que fossem admitidos ou pelo menos trata-
dos com cordura e conveniência, pois isto não convinha
a pessoas tão interessadas, como são as destas conquis-
tas, e que só arrostam dificuldades com a cubiça de es-
cravos que venham a conseguir. Suspeitando que esta
Nação tivesse muitos a seu serviço, tentaram com toda
violência ir oferecer-lhes crua guerra, sob o pretexto de
que eram rebeldes.
Esta se estava preparando, quando chegámos ao for-
te do Desterro, onde se reunia gente para tão deshuma-
na façanha.
Desde logo procurei, pelos melhores meios que pude,
se não impedir, pelo menos sustar, até que houvesse
nova ordem de Sua Magestade e o Sargento-Mor do
Estado, cabo e caudilho de todos, que era Bento Maciel,
filho do Governador, me deu a sua palavra de que não
prosseguiria no seu intento até ter aviso de seu pai.
Mas apenas virei as casfas, quando com a maior
quantidade de gente que poude, em uma lancha com
peças de artilharia e em outras embarcações menores,
dando so'bre eles de improviso, lhes ofereceu crua guer-
ra, se não queriam boa paz.
DESCOBRIMENTOS no RIO DAS AMAZONAS 273

Eles logo aceitaram a esta com boa vontade, como


sempre haviam oferecido, prontos a tudo o que quizes-
sem dispôr de suas pessôas.
Ordena-lhes que entreguem todas as flechas er-
vadas de peçonha, que tinham, e que era do que mais se
podia recear, no que os míseros obedeceram prontamen-
te ; e vendo-os agora desarmados, agarra grande quan-
tidade de bárbaros e, encerrando-os todos em um curral,
com guarda suficiente, dá liberdade aos Indios amigos
que levava ( que para fazer mal é cada qual u m diabo
solto) e que, em pouco tempo saquearam toda a aldeia,
sem deixar coisa nela que não fosse devastada, aprovei-
tando-se, como me contou uma testemunha de vista, das
mulheres e filhas dos aflitos presos, à vista de seus pró-
prios olhos; e faz endo coisas que, me assegurou esta
pessoa que é bem antiga naquelas conquistas, para não
as presenciar, não só deixaria de comprar escravos, mas
daria de quebra os que possuía.
Não parou aqui a crueldade dos Portuguêses, que,
como ia envolta na cubiça de escravos, não ficava satis-
feita até ver-se senhora deles.
Ameaçam os Indios encuralados e tímidos, aterro-
rizando-os com crueldades novas, para que ofereçam es-
cravos, assegurando-lhes que, com isso, não só ficariam
livres mas seus amigos e carregados de ferramentas e
panos de algodão que lhes dariam por eles. ·
Que haviam de fazer os miseráveis, presos, sem
armas, saqueadas suas casas, oprimidas suas mulheres e
filhas, senão render-se a tudo o que aqueles quizessem
fazer?
Oferecem mil escravos, mandam procurar os que
com o alvoroço da guerra se tinham posto em dobro, e,
não podendo funtar mais de duzentos entregam-nos. Com
a palavra de que obterão os restantes, deixam os Portu-
guêses livres aos que, para tal conseguir, ofereciam seus
274 CARVAJAL, RoJAS E AcuNA

próprios filhos por escravos, como aconteceu muitas ve-


zes. Despacham todos estes para o Maranhão e Pará, que
os vi com meus olhos, e satisfeitos da presa, dispõem logo
outra expe<lição mais para dentro do Rio das Amazonas,
onde serão sem dúvida ainda maiores as crueldades, por-
que vão menos pessoas de categoria, que possam ir à mão
de quem a todos comanda. Com isto ficará o rio tão al-
voroçado que, quando sua Magestade quizer que se pa-
cifique, terá enormes dificuldades, ao passo que, fican-
do como a deixei, com muito pouco trabalho se conse-
guiria.
São estas as conquistas do Pará, este o tráfico de
que se sustentam, esta a justíssima causa porque todos
andam pobres, sem ter um pão para comer.
E se não fôra pelos serviços que prestaram a ambas
as Magestades Divina e humana, resistindo valorosamen-
te ao inimigo H olandês, que varias vezes atacou aquela
terra, já nosso Senhor os teria destruído.
Voltando, pois, ao dos Tapajozes e ao formoso rio
que 'banha as suas terras, digo que tem tão boa profun-
didade que, por ele acima muitas léguas, subiu há tem-
pos atrás uma nau lnglêsa de grande porte, que preten-
dendo assentar nesta Província e firmar colheitas de ta- ·
bacos com os naturais, lhes ofereceram bons proveitos;
mas eles, atacando de improviso os Inglêses, não qui-
zeram outro que matar aos ·que puderam ter nas mãos
e, aproveitando-se de suas armas, que hoje teem, os fi-
zeram deixar a terra mais depressa do que tinham vindo,
evitando a gente que ficou na nau, com o fazer-se logo
á vela, outro encontro semelhante, no qual todos fica-
riam destruídos.
NUMERO LXXVI

Curupatuba

A pouco mais de quarenta léguas da boca do rio dos


Tapajozes está o Curupatuba que, desaguando no prin-
cipal das Amazonas, pela banda do Norte, dá nome à
primeira povoação ou aldeia que os Portuguêses teem
em paz e submissão à sua Corôa. (89)
Não mostra este rio ser muito caudaloso de aguas
mas sim de tesouros, se os naturais não nos enganam.
Afirmam estes que, subindo por este rio, que eles cha-
mam Iriquiriqui,' com seis dias de viagem se acha grande
quantidade de ouro, que o apanham nas margens de um
riacho pequeno, que banha as fraldas de um monte não
muito alto, chamado Iaqua.racurú.
Dizem também que perto deste há outro lugar, cujo
nome é Picuro, de onde tiram outras vezes outro metal

(89) Escreve Berredo : " Seguindo a armada a sua viagem


(depois de passar o Tapajós) pelo mesmo rio das Amazonas, ao
Norte dele, avistou o de Sorubiú, muito ab-undante de pau cravo;
passando ao sul o do Curuá, e voltando outra vez ao primeiro
rumo, na distância de pouco mais de quarenta léguas do.s T apajós,
o de Curupatuba, onde se acham muitas pedras de fino cristal,
oitavadas e triangulares, e uns pântano.s tão dilatados que se
reputam pela longitude de oitenta léguas, cheios todos de arroz de
tão excelente qualidade, como o de Veneza". Dá Heriarte como
povoando as margens do Corupatuba o.s lndios Corupatuba, Cara-
boca, Bubuizes, Mariaú e Serranos.
276 CARVAJAL, ROJAS E Acu:&A

mais duro, de côr branca, que sem dúvida é prata, de


·que antigamente fizeram machados e facas, mas vendo
não serem <le utilidade, e que logo se quebravam, não
f izeram mais caso dele.
Há neste mesmo distrito duas serras: uma, segundo
os sinais que dão os Indios, é de enxofre; e da outra,
que se chama Paraguaxo, asseveram que, quando lhe dá
o sol, e também nas noites claras, resplandece de modo
que toda ela parece esmaltada de rica pedraria; e de
quando em quando rebenta com grandes estrondos, mos-
tra certa de que em si encerra pedras de muito valor.
NUMERO LXXVII

Rio Genipapo

Não promete menos tesouros, segundo as notícias


comuns, o rio Genipapo, que, correndo pela mesma ban-
da do Norte, desemboca no das Amazonas setenta lé-
guas abaixo da aldeia de Curupatuba, do qual falam
tanto os Indios, e do muito ouro que se pode recolher
em suas margens, que a ser assim, só este rio deixará
atrás, com seus haveres, aos maiores de todo P erú.
As terras que este rio rega são da Capitania de Ben-
to Maciel P arente, Governador do Maranhão, que além
de serem elas sós maiores que toda a Espanha junta, e
haver nelas muitas notícias de minas, teem pela maior
parte o solo mais fertil e para dar maiores proveitos e
melhores frutos <lo que quantas há neste imenso rio das
Amazonas. (90)
Estão Jodas da banda do Norte; contêm em si gran-
des Províncias de bárbaros; e o que é mais de estima,
encerram debaixo de sua jurisdição as famosas e dila--
tadas terras do Tucujú, tão suspira<lo e tantas vezes po-
voado, embora com seu dano, pelo inimigo Holandês que, .
reconhecendo nelas as maiores comodidades d o mundo

(90) Contando a mesma viagem g_iz Berrcdo: "Mais abaixo


atrave.ssou a boca do rio Urubucuara, e pouco adiante o de Mapaú.
Pela mesma banda vi u logo o sítio do Parú que det'ende outra
fortaleza". Na foz do Parú está hoje ~ cida~e do Almeirim.
278 CARVAJAL, RoJAS E Acu&A

para enriquecer aos seus moradores, nunca as poude es-


quecer.
São não só apropriadas para grandes colheitas de ta-
bacos, como estão entre as melhores de descoberto para
a instalação de muitos engenhos de açucar,. e mais ricas
em suas produções, que pedem pequeno trato e cultivo,
como dão excelentes campinas, as quais, com abundan-
tes pastos, sustentarão infinitos gados.
Nesta Capitania, a seis léguas de onde desagua o
Genipapo, rio <las Amazonas acima, está um forte dos
Portuguêse.s, que chamam do Desterro, com trinta sol-
dados e algumas peças de artil_haria, o qual, no que toca
à defesa do rio, não serve de nada, apenas dando impor-
tância à dita Capitania e pondo algum medo aos Indios,
que a ela se vão submetendo.
Bento Maciel deixou este forte com o título de Go-
vernador do Gurupá, que fica trinta léguas mais abai-
xo, onde por muitos anos esteve situado, em localização
muito boa, e onde as naus inimigas vinham ordinaria-
mente fazer reconhecimentos.
NUMERO LXXVIII

Rio Paranaíba
Dez léguas abaixo do Genipapo desagua da banda
do sul um rio mui bonito e caudaloso que, com duas
léguas de boca, entra rendendo párias ao principal. Cha-
nam-no os naturais Paranaíba. Estão em suas ribeiras
algumas povoações de Indios amigos que, situados em
suas primeiras entradas, obedecem às ordens dos Portu-
guêses, que os governam. E mais para o interior vêm
outros muitos, dos quais, e do mais que contém este rio,
ainda não há suficientes notícias. (91)

(91) O rio Paranaíba de Acufia e Maurício de Heriarte


é o Xingú, que só veio a ser bem conhecido com as explo-
rações de von den Steinen. Diz Heriarte: "Está mui povoado
de l ndios Guaiapes, Caraus, Juruunas, Cuanis e muitas outras
nações. São suas terras plainas, ainda que montuosas de
arvores. T em infinitas madeiras de cutaras pinimas, que são
de muitos lavores, cedros, louros, piquís, píquíranas e muitas
castanhas que se criam nos montes".
NUMERO LXXIX

Rio Pacaxá
Desde duas léguas abaixo do Genipapo começa o
Rio das Amazonas a dividir-se em grandes braços, que
formam a multidão de ilhas que nele se conhecem até
desembocar no Oceano, todas povoadas de diferentes na-
ções e línguas, se bem que na maioria entendem a geral
daquela costa. (92)
São estas ilhas tantas, e as nações que as habitam tão
diversas, que só para elas era precisa uma nova história.
Contudo nomearei aqui algumas das mais conheci-
das, como são as dos Tapuias, Anaxiates, Mayanazes,
Engaíbas, Bocas, Juanes e a dos valentes Pacaxás que
teem sua residência nas ribeiras do Rio de que tomaram
o nome, e que desemboca a oitenta léguas do Paranaíba.
Possuem numero tão grande de aldeias e de moradores,
segundo afirmam os Portuguêses que lá estiveram, como
qualquer outra das mais povoadas de nosso Rio.

(92) Escreve Berredo: "Com mais um dia de viagem


chegou á for taleza de Santo Antonio de Curupá, onde se de-
teve; e fazendo-se à vela pelo mesmo rio do Xingú, o largou
brevemente, embocando o estreito de T anajepurú, que o meteu
no de Paraitú, que desagua no mar, costeando o qual, saiu por
outro muito mais apertado (chamado hoje do Limoeiro) á
espaçosa boca dos Tocantins, que deixando logo, o conduziu
outro novo estreito, a que dão o nome de lgarapémirim ao
caudaloso rio do Mojú ". O forte de Gurupá, a doze léguas
da fóz do Xingú, estava onde hoje se encontra a cidade do
mesmo nome.
NUMERO LXXX

Povoação de Comutá
A quarenta léguas do Pacaxá está situada a aldeia
de Comutá que foi, em tempos passados, de grande fama
naquelas conquistas, tanto por seus muitos moradores como
por ser ali que de ordinário se aprestavam as armas quando
tinham de fazer suas correrias.
Mas já não lhe ficaram nem gente, por se ter mu-
dado para outras terras, nem mantimentos, por não ha-
ver quem os cultive, nem outra coisa mais que o sítio
antigo, sempre bom, com poucos naturais, e que, com sua
capacidade e linda vista, está brindando formosura e co-
modidades aos que a quizerem povoar. (93)

(93) Hoje cidade de Cametá.


NUMERO LXXXI

Rio dos Tocantins

Atrás do Comutá desemboca o rio dos Tocantins,


que, embora naquelas partes goze fama de rico, e ao
que parece com algum encarecimento, ninguém conheceu
o seu cabedal, senão os Francêses que, quando povoavam
suas costas, carregavam naus com a terra que tiravam
de suas margens, para beneficiá-la na sua, enriquecen-
do-a, sem atrever-se nunca a mostrar tais tesouros aos
Bárbaros que nele habitam, receosos de que, tomando
eles conhecimento do quanto valia, sem dúvida a defen-
deriam com as armas, para se não deixarem espoliar de
tantas riquezas.
Aportaram às cabeceiras deste rio certos soldados
Portuguêses que, vindo de Pernambuco, com um sacerdo-
te em sua companhia, depois de atravessar todas as ver-
tentes das Cordilheira, em 'busca de novas conquistas, e
querendo por ele abaixo navegar até ao fim, o tiveram
desastrado nas mãos dos Tocantins, em cujo poder, não
há muitos anos, se encontrou o Cálice com que o bom
Sacerdote lhes dizia Missa em suas peregrinações.
NUMERO LXXXII

O Pará
A trinta léguas do Comutá tem sua séde a fortale-
za do Grão Pará, povoada e governada pelos Portuguê-
ses. (94)
Há nela um Capitão Mor, que comanda todos os
daquela Capitania, e a quem estão sujeitos outros tres
Capitães de infantaria, que aí de ordinário assistem com
as suas companhias, para a defesa daquela praça.
Mas tanto estes como aquele obedecem em tudo ao
Governador do Maranhão, que tem a sua séde a mais de
cento e cincoenta leguas, costa acima, para o Brasil, o
que traz graves inconvenientes ao Governo do Pará.
Se este rio se povoar, fique este como seu dono, como
quem tem na mão a chave de tudo.
Posto que em verdade o sítio onde está presente-
mente não seja, na opinião de muitos, o melhor que se
podia escolher, tendo de ir este descobrimento adiante,
será facil mudá-lo para a Ilha do Sol, quatorze léguas
mais para o mar, situação na qual todos teem os olhos
pela muita comodidade que oferece para a vida humana,
tanto de capacidade como de bondade da terra para o
sustento da _população, como também para a comodidade

(94) Pedro Teix-eira chegou a Belém a 12 de Dezembro


de 1639.

i9
284 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

dos navios que a ela aportassem. Ha aí uma enseada,


segura de todos os contrastes, onde eles podem demorar
todo o tempo que quizerem, e quando tiverem de se
fazer à vela, com a primeira enchente ficam a salvo de
todos os baixios que tornam dificultosos estes lugares, o
que é não pequena vantagem.
E' esta ilha de mais de dez leguas de circuito, com
boas aguas, muito peixe do mar e do rio, uma infinidade
de caranguejos, sustento ordinário aonde vão do Pará
buscar de ordinário a carne de que necessitam para o seu
sustento.
NUMERO LXXXIII

Entra no mar o no das Amazonas

A vinte e seis léguas da ilha do Sol, debaixo da


linha E quinocial, espraiado em oitenta e quatro de boca,
tendo pelo lado do Sul o Zaparará e do oposto o Cabo
do Norte, desagua no Oceano o maiór pélago de aguas
doces que há no descoberto, o mais caudaloso rio de
todo o Orbe: a Fenix dos rios, o verdadei ro Maranhão,
tão suspirado e nunca acertado dos do Perú, Orellana
antigo e, para dizê-lo de uma vez, o grande rio das Ama-
zonas, depois de haver banhado com as suas aguas mil
trezentas e cincoenta e seis léguas de extensão, depois de
sustentar com suas riquezas infinitas nações de Bárba-
ros, depois de fertilizar imensas terras e depois de haver
passado pelo coração de todo o Perú e, como canal prin-
ci.pal, recolhido em si o melhor e mais rico de todàs as
vertentes. ·
Este é em suma o novo descobrimento deste grande
rio que, encerrando em si grandiosos tesouros, a nin-
guem repele, mas antes, a todo género de gente convida
liberal a que deles se aproveite.
Ao pobre oferece sustento, ao trabalhador recom-
pensa do seu trabalho, ao mercador empregos, ao sol<la-
do ocasiões .de mostrar o seu valor, ao rico maiores ri-
quezas, ao nobre honras, ao poderoso estados, e ao pró-
prio Rei um novo Império.
286 CARVAJAL, RoJAs E AcuNA

Mas os que mais interessados se hão de mostrar


nesta conquista, são os zelosos da honra de Deus e bem
das almas, pois tanta multidão delas já está clamando
por fieis Ministros do Santo Evangelho, para que com
a claridade dele se lhes afugentem as sombras da morte,
em que há tanto tempo jazem miseraveis.
E ninguem se exima desta empresa, pois há para
todos campo descoberto, e quantos mais forem os traba-
lhadores, maior a messe, e sempre necessitará esta Vinha
ele novos e fervorosos operários para que a cultivem ;
basta submetê-Ia toda sob as chaves da Igreja Romana.
Ao que sem duvida acudirá, de sua parte, o nosso Gran-
de e Católico Rei Felipe Quarto, que Deus nos conserve
por muitos e felizes anos, dando, com a liberalidade
que costuma para o temporal, sustento de tais Ministros.
E a Santidade de nosso mui Santo Padre Urbano Oita-
vo de Gloriosa memória, como Pai e Chefe que hoje é
da Igreja, se mostra no espiritual não menos liberal e
benigno, tendo a grande felicidade que em seus tempos
se abra larguíssima porta para trazer ao rebanho da
Igreja, de uma só vez, mais nações juntas e mais popu-
losas de quantas em toda a América, desde os seus iní-
cios, se descobriram.
Laus Deo Virginique Matri
Memorial apresentado ao real conselho das Indias
sobre o dito descobrimento depois da rebelião
de Portugal.

SENHOR

Cristoval de Acufía, Religioso da Companhia de


Jesús, que veio por ordem de vossa Magestade ao desco-
brimento do grande rio das Amazonas.
Cuidadoso sempre dos maiores aumentos de sua
Real Coroa, e receoso de que acontecimentos menos fa-
voráveis, vistos às nossas portas, afoguem e impeçam o
luzimento de seus afetuosos serviços, diz que, sendo em
verdade a mais importante daquele novo mundo desco-
berto, para mais depressa começar a gozar dos proveito-
sos e ricos frutos, que por liberal oferece, a sua boca
principal, pela parte que desagua no Oceano das costas
do Brasil, sujeita a Portuguêses, é por isso menos apro-
priada, para que no presente se procure esta entrada.
Mas que nem por isso deve Vossa Magestade desis-
tir nem adiar a conquista deste grande rio, pois com
maior facilidade e muito menos gastos o poderá fazer
pela Província de Quito, nos reinos do Perú, pelas mes-
mas entradas por onde ele e seus companheiros desce-
ram.
Disto resultarão sem dúvida grandes serviços de
Deus nosso Sonhar e de Vossa Magestade e se evitarão
não menos inconvenientes, que de não executá-la depres-
sa, em breve se experimentarão e talvez sem remédio.
CARVAJAL, ROJAS E ACUNA

Tudo se poderá efetuar sem gastos consideráveis da


Real Fazenda, bastando enviar ordem à Chancelaria de
Quito, para que divida as entradas que mais convenham,
pelos rios de sua jurisdição, com algumas das muitas
pessoas que à sua custa se oferecem para fa zer estas
conquistas, só pelos interesses que delas tiram, como
sejam as encomendas dos Indios, repartir terras, prover
ofícios e outros semelhantes.
Encarregará ao mesmo tempo do espiritual, no to-
cante à conversão e ensino dos naturai s, ao s Religiosos
da Companhia de Jesus, que a ela, com título não peque-
no, neste particular descobrimento, podem mostrar algum
direito, pois seus filhos não só aclararam, à custa de
seus trabalhos e desvelos, e também de não poucos du-
cados, as sombras de um novo e dilatado Império que,
banhado por este grandioso Rio, oferece crescidos au-
mentos à Real Coroa de Vossa Magestade, como se lhes
deve pela posse de mais de quarenta anos, adquirida
com o sangue do ditoso Padre Rafael Ferrer, derramada
pelos naturais, aos quais pregava nas cabeceiras deste
rio.
Continuando, o não perder este direito os Padres
da Companhia, que por Santiago das Montanhas, há
anos que cultivam com a sua doutrina bS principais cau-
dais desta nova conquista, e para prosseguir necessitam
naquela província de Quito menos obreiros que os aju-
dem em tão copiosa messe.
A isto sem dúvida acudirá Vossa Magestade com a
piedade de sempre e a liberalidade que pede a necessida-
de extrema de tanta imensidade de Nações diferentes.
Do que resultam os seguintes proveitos:
Prim.eiro ( e que sempre o é no Cristianíssimo peito
de V assa Magestade) - darão sem mais demora princí-
pio, com a conversão de um novo mundo de infieis, que
miseráveis jazem na sombra da morte: obra tão do ser-
DESCOBRIMENTOS DO RIO DAS AMAZONAS 289

viço de Deus, que não se pode oferecer outra que mais


lhe agrade, e tal que por ela se dará por obrigada a esta-
belecer com perpetuidade a Coroa de Vossa Magestade,
e de novo dilatá-la a maiores impérios.
Segundo - E economizar-se-ão muitos gastos, que,
como forçados, eram inevitáveis, se tivesse de fazer,
como se pretendia, pela boca do rio : em conduzir solda-
dos, preparar embarcações, juntar apetrechos e dispôr
todo o necessario para formar novas ixivoações, que sem
dúvida tinham de ser muitas.
O que tudo se dispensa, com mandar ·que se come-
ce esta conquista pelas entradas de Quito, pois os parti-
culares a quem se conceda, farão com prazer todos os
gastos, e só necessitarão para o espiritual dela, de ope-
rários e Ministros aptos do Evangelho, que Vossa Ma-
gestade envie de Espanha pela extrema necessidade que
há deles naquelas regiões.
Terceiro - Começará Vossa: Magestade a possuir o
que todos os Senhores Reis, seus antecessores, desde o
Senhor Imperador Carlos Quinto que Deus haja, digno
bisavô de Vossa Magestade, desejaram e com gastos não
pequenos e com diligência procuraram submeter à sua
Real Corôa.
Para o que no ano de mil quinhentos e quarenta e
nove, o mesmo senhor Imperador Carlos Quinto mandou
dar a Francisco de Orellana tres navios com gente sufi-
ciente e apetrechos, para que em seu Real nome tomasse
posse deste grande rio das Amazonas ( que o mesmo
havia navegado nove anos antes) pela muita utilidade
que de executá-lo assim se esperava ; mas as tormentas e
morte de quasi todos os soldados os obrigaram a, redu-
zidos a uma pequena embarcação, arriba à Margarita,
onde com o seu mau ~ucesso, cessaram as esperanças
que de muitos bens se prometia Espanha, se lhes tivesse
a sorte corrido melhor.
290 CARVAJAL, RoJAS E AcuNA

E Vossa Magestade, desde o início do seu Reinado,


que dure por muitos e felicíssimos anos, ocupou seu des-
velo em conseguir isso mesmo, cometendo a execução
dêste descobrimento a várias pessôas, como consta ·em
suas Reais Cédulas, despachadas nesta conformidade, nos
anos de vinte e um, vinte e seis e trinta e quatro.
A de vinte e um, despachada à Real Audiencia e
Chancelaria de Quito, para que se estabelecessem as
condições que para o dito descobrimento fossem conve-
nientes, com o Sargento Mor Vicente dos Reis Vílalo-
bos, Governa dor e Capitão General dos Quixos, jurisdi-
ção de Quito, que, por chegar-lhe sucessor no governo,
não teve resultado.
A de vinte e seis, despachada em favor de Bento
Maciel Parente, Português de nascimento, para que
pelas provincias do Maranhão e Grão Pará, que ficam
na boca deste Rio, começasse o seu descobrimento, o que
tão pouco se realizou, por o ter mandado acudir à guerra
de Pernambuco.
A de trinta e quatro, despachada a Francisco Coelho
de Carvalho, Português, que era então Governador do
Maranhão e Pará, com ordem expressa de, com toda a
brevidade, com pessoas de sua confiança, e se fosse pre-
ciso, ele . próprio desse início, por aquelas partes, ao que
tanto se desejava, e que nunca surtiu efeito.
E o presente, se o quiter Vossa Magestade, terá
feliz execução, e daqui por diante cada dia se verão van-
tagens ainda maiores do que tão ardentes desejos pro-
metiam.
Quarto - Fechar-se-á com isto a porta para que nin-
guem do Perú tente arrojar-se com os tesouros pela
corrente deste grande rio, por evitar os direitos que em
Cartagena se pagam a Vossa M1lgestade, e fugir dos ris-
cos de corsários, que quasi sempre são comuns por
aquelas partes, o ·que certamente hão de pretender, moti-
DESCOBRIMENTOS DO RIO DAS AMJ.ZONAS 291

vados pela facilidade com que o poderão executar; ao


que de nenhum modo ninguém se atreverá, assegurados
os postos principais de suas entradas com as pessoas que
por eles começarem a conquista.
Quinlo - Impedir-se-á o tráfico e comunicação que
tanto desejam firmar os Portuguêses, que assistem na
boca . deste Rio, com os de sua nação do Perú, o que
atualmente será bem prejudicial.
E de modo algum se atreverão a tentá-lo; se o su-
bissem desde já, se prevenia a tempo a sua malícia, to-
mando as entradas do Rio.
E me consta que intentam esta comunicação os Por-
tuguêses daquela costa do Maranhão e Pará, e, como
testemunha do que ouvi muitas vezes tratarem entre si,
o poderei afirmar como coisa fora de dúvida.
Sexto - Reduzirá Vossa Magestade à sua obediên-
cia as principais Nações deste Rio, e especialmente as
que habitam em suas ilhas e nas margens, que são muito
belicosas, e que com coragem auxiliarão ao que uma vez
reconheçam por senhor; em que haverá pouca ou nenhu-
ma resistência pelas muitas guerras que de contínuo
mantêm, umas com as outras, e submetida uma, com fa-
cilidade o estarão as outras; poderá pelo mesmo rio
abaixo, melhor ainda que pelo mar, expulsar da boca
dele a quaisquer outros que com sinistro intento a pos-
suam, e assegurar por este caminho os muitos e riquíssi-
mos frutos que dele se esperam, que tardará em gozá-
los o tempo que se demorar em possuí-lo.
E dado o caso de que, com brevidade, como espe-
ramos, ponha freio e se castigue o mal considerado atre-
vimento dos Portuguêses, e fique desembaraçada a boca
deste Rio, para que por ela se prossiga a conquista deste
Rio, já começada esta, pelas entradas de Quito, se fará
mais facil e precisará de menos gastos para ser termina-
da com felicidade,
292 CARVAJAL, ROJAS E ACUNA

Sétimo - Deve-se considerar com particular cuidado,


que já os Indios em todo o Perú, e em quasi todo o des-
coberto, e especialmente onde há minas ou outras gran-
gearias de importância, que dependem do seu trabalho
pessoal, como o podemos afirmar os que percorremos
aquelas partes, cada dia são menos numerosos, que em
breves anos, por faltarem eles, terão de cessar ou pelo
menos diminuir em grande parte os muito interesses que
estão ligados à sua existência, dano grande, sem dúvida,
e que Vossa Magestade com esforço deverá prevenir a
tempo e remediar por todos os meios possíveis, que não
há nem se podem imaginar outros, que o tomar muito a
peito a conquista e conversão deste novo mundo, onde
são tantos os naturais que o habitam, que poderão de
novo povoar todos os despovoados do Perú; que se
submetem ao jugo do Santo Evangelho e com a paz geral
cessarão as contínuas guerras com que cada dia se con-
somem uns aos outros, e aumentarão de tal sorte que,
rompendo, por curtos, os limites que no presente os en-
cerram, será forçoso dilatar-se por mais espaçosos
Reinos.
E quando com eles só se beneficiassem as muitas
minas e mais vantagens que em suas nações oferece a
fertilidade da terra se deveria qual outro novo Perú
aceitar logo a sua conquista, e com mais facilidade que
aqui se propõe.
Oitavo - Se sucedesse que os Portuguêses que
estão na !boca deste Rio ( que tudo se pode presumir de
sua pouca Cristandade e menos lealdade) quizessem, au-
xiliados por algumas nações belicosas que lhes são sub-
missas, penetrar por ele acima até chegarem à porção
povoada do Perú, ou do novo Reino de Granada, embo-
ra seja verdade que por algumas partes encontrarão re-
sistência, por outras muitas haveria muito pequena, por
chegarem a aldeias muito pobres de gente, e por fim pi-
DESCOBRIMENTOS DO RIO DAS AMAZONAS 293

sarão aquelas terras vassalos desleais de Vossa Mages-


tade, que em Reinos tão distantes poderia só este nome
de desleais causar gravíssimos danos. Pois se unidos
com o Holandês, como o estão muitos do Brasil, inten-
tassem semelhante atrevimento, já se vê o cuidado que
poderiam dar. E que o Hplandês o pretende há muitos
anos, e procura com afinco assenhorear-se deste rio é
coisa tão certa, que não duvidou em afirmá-lo e publicá-
lo João Laeth, Autor Holandês, no livro que intitulou
Utriusque Americae, que veio a lume no ano de trinta e
tres, onde no livro 17, cap. 15, in fine, diz estas pala-
vras:
"Verum tamen, tan hi (scilicet Angeli, etc. Hibrini)
quam nostri ( scilicet Belgi) a Portugalis, é Pará ve-
nientibus, in opinato opressi, etc. fugati, non leve
damnum fuerunt perpesi, ad quod refaciendum et, vi-
ribus, institutum repetere, etc. urgere satagunt".
E no mesmo livro, cap. 2, diz:
"Pos annum ante, 1615 Portugali ad Parae, qui fine
dubiu hujus, magni fluminis ramus est, caeperunt incolere,
ut diximus, etc. animum, ad caetera forté adjiciente, nisi
ab Angelis, etc. Belgis nostris impediantur".
De onde se conclue bem claramente que o dilatar o
Holandês a conquista deste grande Rio das Amazonas,
do qual em ambos os Jogares fala o autor, depende do
seu poder, e não que lhe faltem desejos, e estima do
muito que em executá-lo há de interessar.
Previna Vossa Magestade tão graves danos, como
este seu fiel vassalo lhe propõe, e não permita se dê
lugar a que algum dia choremos perdas no que atual-
mente se nos oferecem sobejos ganhos.
Finalmente, se com o andar do tempo, submisso e
aplainado o caminho deste grande R io, e esclarecidas as
entradas que há nele por todo o Perú, se quizesse redu-
294 CARVAJAL, ROJAS E ACUNA

zir a esta viagem quantas daquelas partes que enrique-


cem a Espanha, eu me vangloriaria de ter feito a Vossa
Magestade um dos maiores e mais proveitosos serviços
que se poderiam esperar de um vassalo ; com o que não
só se economizava grande soma de ducados, em imensos
gastos que serão indispensaveis enquanto durar o trajeto
pelo Panamá e Cartagena, que por este Rio, por ser por
agua, e ajudarem suas correntes, seriam muito modera-
dos. Senão que também ( que é o de mais consideração)
assegurava Vossa Magestade de uma vez suas frotas, e
sem receios de corsários, poria a salvo os seus tesouros,
pelo menos até chegarem ao Pará, de onde, em vinte e
quatro dias, por mar alto, em galeões, feitos no mesmo
rio, em qualquer tempo se punham em Espanha, sem que
nenhum inimigo os possa guardar na saída, por ser a
costa do Pará tal que nem dois dias podem os navios
resistir às correntes do mar. Com o que cessarão de
uma vez os contínuos cuidados que todos os dias nos
causa tão perigosa e dilatada viagem, como é a de
Cartagena.
Tudo, Senhor, se remediará com o que tenho pro-
posto neste memorial: a. que só acrescento que a maiór
parte do bom sucesso nesta matéria será a presteza em
sua execução. E se eu f ôr de proveito para alguma
coisa, sempre estarei aos pés de Vossa Magestade.
* Este livro foi composto e impresso
nas oficinas da Emprêsa Gráfica da
"Revista dos Tribunais ", à rua Conde
de Sarzedas, 38, em São Paulo, para
a C omPanhia Editora Nacional, rua dos
Gusmões, 639, ém junho de 1941.
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Descobrimentos
do
Rio das Amazonas

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