Bonciani, Rodrigo (Org.) - Encontros Luiz Felipe de Alencastro

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ENCONTROS

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Coleção Encontros

Ailton Krenak Luiz Carlos Maciel


Aloísio Magalhães Luiz Felipe de Alencastro
Antonio Cicero Luiz Rosemberg Filho
Antonio Risério Maio de 68
Arnaldo Antunes Manoel de Barros
Boris Schnaiderman Mário Pedrosa
Capoeira Mário Schenberg
Carlos Drummond de Andrade Milton Santos
Cildo Meireles Nara Leão
Clarice Lispector Newton da Costa
Darcy Ribeiro Nise da Silveira
Dias Gomes Paulo Freire
Eduardo Coutinho Paulo Emílio Sales Gomes
Eduardo Viveiros de Castro Paulo Mendes da Rocha
Fernando Gabeira Roberto Corrêa dos Santos
Flávio de Carvalho Roberto Mangabeira Unger
Florestan Fernandes Roberto Piva
Geração Beat Rogério Duarte
Gilberto Freyre Rogério Sganzerla
Gilberto Gil Sérgio Buarque de Holanda
Gilberto Mendes Silviano Santiago
Hélio Oiticica Tom Jobim
Ismail Xavier Tom Zé
Jomard Muniz de Britto Tropicália
Jorge Luis Borges Vinicius de Moraes
Jorge Mautner Wanderley Guilherme dos Santos
Julio Cortázar Zé Celso Martinez Corrêa
Lucio Costa

PRÓXIMOS LANÇAMENTOS
Octavio Ianni
Waly Salomão
Luiz Felipe de Alencastro

organização
Rodrigo Bonciani
Encontros
6 Apresentação, por Rodrigo Bonciani
14 Um bom começo 1992
26 Os mal-entendidos da história 1996
48 Intelectuais falam de 68 1998
60 Conversa com o historiador
Luiz Felipe de Alencastro 2002
98 A faixa presidencial e o nó nas utopias 2005
112 A falência do governo Lula
pode trazer uma “onda reacionária” 2005
118 “Lula é a escolha popular” 2006
124 Para os países africanos saírem do deus dará 2006
132 País vê o último episódio da transição democrática 2007
140 “O que me assusta é a ideia de ter Michel Temer
como vice-presidente” 2010
154 A fronteira de outubro 2014
166 “Eu queria fazer História para entender o presente” 2015
202 Escravidão, política e história 2016
208 “Parlamentarismo troncho já existe no país” 2017
230 Cronologia do autor
Apresentação
POR RODRIGO BONCIANI
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Apresentação
POR RODRIGO BONCIANI

Rodrigo Bonciani é pesquisador


e professor de História na UNILA.

As entrevistas de Luiz Felipe de Alencastro, reunidas neste


livro, abrangem um período da chamada Nova República, mais
precisamente entre 1992 e 2017, entre os impeachments de
Fernando Collor e de Dilma Rousseff. Sua formação, como his-
toriador e cientista político, e o desafio de entender o Brasil fora
do país marcaram sua produção intelectual, que nos estimula
a pensar aspectos chave da formação histórica e seus dilemas
contemporâneos.
Luiz Felipe era um jovem estudante, da recém-criada Univer-
sidade de Brasília, quando sentiu o clima de repressão da Ditadura
aumentar e decidiu partir para o exílio em 1966. Na Universidade
de Aix-en-Provence, Alencastro cursou História e Ciência Política.
A História o levou ao estudo do tráfico negreiro para o Brasil, até
sua extinção em 1850: “como o Império havia resistido tanto tempo
às pressões inglesas?” A Ciência Política o manteve conectado ao
presente, interessado em conhecer os eventos vividos, relacioná-
-los ao passado e apresentá-los para o debate da história quente:
“eu queria fazer História para entender o presente”.
O desterro transformou o país e sua história em objeto a ser
decifrado: “eu não queria ser só um historiador, eu queria ser

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ENCONTROS

historiador do Brasil”. E, naquela época, como ele mesmo diz: o


Brasil era muito pequeno. A comunidade dos exilados se frequen-
tava, os mestres, como Roberto Schwarz e Celso Furtado, eram
amigos e os encontros intergeracionais reforçavam a vontade, e
a expectativa, por uma história transformadora. As humanida-
des nunca tiveram tanta credibilidade e nunca exerceram tanto
fascínio como naquela época.
A perspectiva marxista, e algumas crenças a ela relacionada,
predominavam e eram quase uma obrigação para a intelec-
tualidade brasileira. Mas, novas concepções historiográficas
ganhavam força e, entre elas, se destacava a influência da Escola
dos Annales. Fernand Braudel era o guia dessa nova geração,
pensava em história global, vida material, combinava micro e
macro história e valorizava a transdisciplinaridade, que envolvia
a geografia, a economia, a demografia, entre outras ciências. Os
discípulos seguiram as rotas traçadas a partir do Mediterrâneo
do mestre: Vitorino Magalhães Godinho foi para o Oriente por-
tuguês; Pierre Chaunu seguiu o caminho do Atlântico hispânico;
Frédéric Mauro recriou o Atlântico português; e Pierre Verger
inventou, a seu modo, os fluxos e refluxos entre o Brasil e a África.
Luiz Felipe de Alencastro foi orientando de Frédéric Mauro,
com quem trabalhou durante quinze anos. A convivência com
o historiador medievalista George Duby é outra recordação cara
de sua formação intelectual. À influência da historiografia fran-
cesa, particularmente braudeliana, Alencastro somou a leitura
de Salvador Correia de Sá e a luta pelo Brasil e Angola (1952),
do historiador inglês Charles Boxer, e a de Brasil e África (1961),
de José Honório Rodrigues, que criticava o luso-tropicalismo
de Gilberto Freyre num contexto favorável da política externa
brasileira pelas independências e reconexão com o continente
africano. Alencastro destaca, ainda, os primeiros contatos com
a documentação sobre a África nos arquivos de Aix-en-Provence
e a amizade com colegas africanos em meio à luta anticolonial e

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aos processos de formação dos estados nacionais no continente.


Enquanto fazia sua tese, Alencastro criou o pseudônimo de
Julia Juruna para fazer sua análise do Brasil sob o regime militar,
no Le Monde Diplomatique. Foram mais de vinte artigos entre
1976 e 1986, em que o comentarista político destacava seus
principais temas: o racismo brasileiro; a especificidade de nosso
“despotismo tropical”; as cabriolas e contradições dos sistemas
eleitoral, partidário e federalista nacionais; a economia e as
relações internacionais. Temas que reaparecerão no novo pe-
ríodo democrático em sua coluna no UOL Notícias, em seu blog
Sequências Parisienses, em seu depoimento, em 2010, a favor das
cotas no Supremo Tribunal Federal (STF), entre outros.
A ideia de retorno sempre esteve ali – “lugar de historiador
brasileiro é no Brasil”. A anistia, em 1979, foi uma oportunida-
de, mas Alencastro quis ver a chegada da esquerda ao poder na
França, com a vitória de François Mitterrand. Retornou em 1986,
“fui com 20 e voltei com 40”, e participou da mobilização e dos
debates em torno da Constituinte e da transição. No Cebrap – ao
lado de intelectuais vinculados ao PT e ao PSDB, como Chico de
Oliveira, Paul Singer, Ruth Cardoso, José Giannotti – desenvolveu
a área de História e pesquisou sobre federalismo e presidencia-
lismo. Na historiografia, queria aprofundar o diálogo com Evaldo
Cabral de Mello e resolver o problema da escravidão indígena em
São Paulo, proposto por John Monteiro. Decidiu, então, seguir o
conselho de Celso Furtado de “entender o século XVII melhor" e
assim surgiu o plano da tese de livre-docência, realizada no Insti-
tuto de Economia da Unicamp, onde também se tornou professor.
A formação de Alencastro no exterior lhe deu elementos para
pensar o Brasil fora da chave nacional, desde uma perspectiva
conectada, pelos ventos e correntes marítimos, por pessoas que
se deslocavam, voluntariamente ou forçadamente, por esses
espaços, aproximando o antigo Estado do Brasil da África Oci-
dental e Centro-Ocidental e da bacia do Rio da Prata, enquanto

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ENCONTROS

que o Estado do Grão-Pará e Maranhão se relacionava com a


bacia Amazônica, o Caribe, a América do Norte e diretamente
com Lisboa. A expulsão dos holandeses de Angola, em 1648, foi
organizada pelo governador do Rio de Janeiro, Salvador Correia
de Sá, pelos fazendeiros e comerciantes negreiros que atuavam
em toda costa sul-atlântica, a armada era formada por 15 embar-
cações e 1.200 homens. O padre Antônio Vieira, contemporâneo
desse evento, em sua História do futuro, disse que o Brasil “vive e
se sustenta” de Angola, “podendo-se com muita razão dizer que
o Brasil tem o corpo na América e a alma na África”. De tal forma,
que os diferentes ciclos produtivos da economia brasileira – o
açúcar, a mineração, o café etc. – dependeram do fornecimento
regular e massivo de escravos.
A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro
e a abertura dos portos, em 1808 e a independência do país, em
1822, não mudaram esse estado de coisas. “Justamente graças a
esse comércio de pilhagem da população africana que foi possível
ao Brasil manter sua independência e se estruturar como Estado”,
entre a pressão inglesa pelo fim do tráfico e a dos escravista por
sua perpetuação. Em 1831, uma lei determinava que mais nenhum
africano desembarcado no Brasil podia ser escravizado, mas, o
imperador deu cobertura à pirataria e à ilegalidade da escravidão
e construiu sobre ela sua legitimidade e a unidade nacional. Cer-
ca de 750 mil africanos e seus descendentes foram ilegalmente
escravizados no Brasil e os sequestradores nunca foram punidos.
O fim do tráfico negreiro, em 1850, ocorre por meio de uma
negociação entre a “bandidagem negreira”, os fazendeiros e o
Estado. A monarquia financia a imigração, as estradas de ferro
e abaixa a taxa de exportação do café, dificulta o acesso à terra,
restringe os direitos políticos e transforma o problema sócio
racial em caso de polícia. “Só nos anos 1930-40 a reprodução
ampliada de força de trabalho passa a ocorrer inteiramente no
interior do território nacional” e a legislação trabalhista da Era

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Vargas funda o Brasil moderno. Alencastro estabelece, então, um


“eixo de interpretação da história do Brasil a partir da organização
do mercado de trabalho” e, a partir deste, desenvolve o projeto de
sua obra, iniciada com O trato dos viventes, que analisa os séculos
XVI e XVII, seguida por um livro que vai até o século XIX, em fase
de conclusão, e um terceiro, previsto para analisar o século XX. E
os governos do presidente metalúrgico e sindicalista, fundador do
Partido dos Trabalhadores, e a desregulamentação do trabalho e a
da escravidão promovidas pelo governo ilegítimo de Michel Temer
não entrariam nessa chave de análise proposta por Alencastro?
Sua reflexão sobre o novo período democrático brasileiro
começa e termina com o impeachment de um presidente. Sua
leitura do de Fernando Collor é positiva: a “sociedade brasileira
soube se organizar de forma pacífica e suprapartidária”, em
seguida, “a má escolha de 1989 é amplamente superada pela
maturidade política demonstrada em 1992”. Na entrevista com
Fernando Haddad, em 1996, Alencastro valoriza a expressão na-
cional do Partido dos Trabalhadores, que consegue abarcar uma
pluralidade de demandas e movimentos sociais. O lançamento
de O trato dos viventes, em 2000, coincide com um momento
intenso de debate sobre as desigualdades sócio raciais no país
e no mundo, associado ao fiasco das “comemorações dos 500
anos do Brasil” e à preparação para a III Conferência Mundial
contra o racismo, organizada pelas Nações Unidas e realizada
em Durban, África do Sul, dez anos depois do fim do apartheid.
2005 foi um ano de inflexão de nossa história recente e da
análise de Luiz Felipe. Até abril há um clima de otimismo, que ar-
ticula as vitórias e avanços da centro-esquerda na América Latina;
o Brasil impulsiona esse movimento projetando-o sobre a África,
fazendo do protagonismo regional um fator de agência interna-
cional. A geopolítica de O trato dos viventes parece se reconfigurar
na contemporaneidade, com democracia e sem o escravismo
medonho. Mas esse cenário, na entrevista de setembro do mesmo

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ENCONTROS

ano, foi abalado pelas denúncias de corrupção no governo petista


e anunciaram a formação de uma “onda reacionária”.
Na passagem de 2009 para 2010, o historiador e cientista polí-
tico se fez profeta: “O que me assusta é a ideia de ter Michel Temer
como vice-presidente”. Lula personalizara as ações do partido e
parte importante dos movimentos sociais havia sido engolfada
em seus governos. A “velha” classe média reagia à sua fragilidade
social e a “nova” queria mais participação política e econômica.
Na movimentação dessas classes havia uma oscilação entre
o fortalecimento da “onda reacionária” e, paradoxalmente, a
reivindicação pela reforma do sistema político e ampliação da
democracia. Em junho de 2013, irrompe a polifonia do descon-
tentamento e da revolta social. Diante do “apagão diplomático”
e das forças centrífugas que atuam na América Latina e na
África, Alencastro aposta na apropriação pela sociedade civil e
outras instituições para aprofundar o dinamismo das relações
no Atlântico Sul. Por fim, denuncia o golpe Temer, por sua falta
de legitimidade e por encaminhar uma pauta ultraconservadora,
num “destampatório pós-colonial e pós-escravista” que lembra a
República Velha. O regresso reacionário recoloca o peso de nossa
formação autoritária e escravista.
Em 2001, eu estava no último ano do curso de História, não
me interessava por história colonial e me chegou às mãos O
trato dos viventes, de Alencastro. Quando fechei o livro, tive a
sensação de estar diante de um clássico, recém-saído do forno.
Uma leitura prazerosa, uma interpretação profunda e absoluta-
mente comprometida em entender o Brasil contemporâneo. As
entrevistas reproduzidas neste livro permitem ao leitor entrar em
contato com a produção intelectual desse pensador brasileiro,
de rever a história recente com os olhos do historiador e do cien-
tista político e de se pensar como parte dessa mesma história.
Se desistirmos de entender e de fazer o Brasil, só nos restará a
commodity e as mãos rubras.

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Um bom começo

14
POR LAURENTINO GOMES
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Um bom começo
POR LAURENTINO GOMES

Originalmente publicada
na revista Veja,
em 10 de dezembro de 1992.

O senhor se surpreendeu com a chicana de última hora do


presidente Fernando Collor?
Não. Collor revelou mais uma vez seu caráter inescrupuloso.
Mas o presidente do Supremo, Sydney Sanches, demonstrou
uma firmeza legalista, neutralizando rapidamente a manobra.

Se no tribunal da História um representante do povo brasileiro


tivesse que prestar contas pelo que o país fez em 1992, o que
poderia dizer?
O Brasil tem razões de sobra para se orgulhar desse ano. Da-
qui a um século, quando os historiadores se debruçarem sobre
os acontecimentos de 1992, dirão que foi um ano extraordinário.
Não existe na história do mundo ocidental nada comparável ao
que os brasileiros realizaram nesse ano.

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ENCONTROS

Que motivos tem para se orgulhar um país com economia


estagnada e inflação de mais de 1000% ao ano?
Inflação e desemprego são problemas graves e dramáticos,
mas com o tempo se resolvem. A importância desse período da
história está no aspecto político. Foi o ano do impeachment e
da emancipação política da sociedade brasileira.

O que há de tão extraordinário em se fazer cumprir as leis?


Não foi só isso. Governos caíram em outros países e em
circunstâncias parecidas, mas nada se compara ao que houve
no Brasil. A saída forçada de um presidente corrupto resultou
da ação simultânea das diferentes esferas da sociedade. Isso
demonstrou que a democracia no Brasil tem um vigor de que
não se suspeitava.

Quem desempenhou melhor seu papel? A imprensa, a justiça


ou o Congresso?
A grande novidade é que tudo funcionou bem. A sociedade
soube se organizar de forma pacífica e suprapartidária. A ação
do conjunto é muito importante. Caso contrário, processo não
vai muito longe. O resultado da CPI da Vasp é um bom exemplo.

Qual será a consequência disso?


Acho que, por mais contraditório que pareça, o impeachment
viabilizou o presidencialismo. Demonstrou que é possível dar
xeque-mate ao rei num sistema presidencialista. O instituto do
impeachment nunca havia sido testado dessa forma em nenhum
lugar do mundo. No Brasil ocorreu um fato inédito, o que explica
a reação da imprensa internacional, quase de incredulidade.

Um pessimista poderia alegar que o impeachment foi também


o estágio derradeiro de degradação moral do poder público no
país. Não seria um motivo de vergonha, em vez de orgulho?

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

A lição da história depende da capacidade de se tirar proveito


dela. Quando estava lutando em Stalingrado em 1942, o general
alemão Friedrich Paulus, ao descobrir que estava cercado pelo
Exército Vermelho, deve ter constatado que Hitler não era um
estrategista tão genial quanto parecia. Mas ele já estava cercado.
A lição da história, nesse caso, foi absolutamente inútil para o
general.

Então há semelhanças entre o impeachment de Collor e a ba-


talha de Stalingrado?
O Brasil descobriu a tempo quem era Collor e conseguiu furar
o cerco da corrupção antes que ele se completasse. Está, portanto,
em condições de obter consequências positivas dessa aparente
derrota moral que foi a eleição de um presidente corrupto. A má
escolha de 1989 é amplamente superada pela maturidade política
demonstrada em 1992.

Não é problemático afirmar que há dados positivos na eleição


de um presidente corrupto?
Convém não esquecer que a democracia nasceu porque havia
reis corruptos nas monarquias europeias. Foi isso que deu força
aos parlamentares. Se houvesse só reis virtuosos, ainda estaría-
mos vivendo sob monarquias absolutas. O impeachment mudou
o comportamento do eleitorado e da classe política.

O que mudou nos políticos?


Existe hoje 1,6 milhão de políticos profissionais no Brasil. Foi
esse o número de candidatos nas eleições municipais de 1992.
Agora, todos eles sabem que um dia sua declaração de renda
e seus esquemas de financiamento podem ser investigados. A
impunidade não estará mais garantida, mesmo se chegarem à
Presidência da República.

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ENCONTROS

É bom ou ruim o país ter tantos políticos profissionais?


É ótimo, porque serve de bom indicador da vitalidade da de-
mocracia. Em cada eleição municipal, mais de 1% da população
brasileira submete-se ao veredicto das urnas.

E no comportamento dos eleitores o que mudou?


Houve uma dessacralização do poder político. Nas revolu-
ções isso se faz de maneira drástica. Corta-se a cabeça do rei,
fuzila-se o ditador, derrubam-se estátuas. Aqui, o processo foi
pacífico. O Brasil é um dos poucos lugares do mundo onde houve
manifestações pacíficas pela democracia em 1992. Nos outros
países foi um ano de manifestações racistas e nacionalistas ou
de insurreições urbanas como a de Los Angeles.

Os cientistas políticos sempre apontaram uma certa índole


autoritária na sociedade brasileira. Isso existe mesmo?
A tradição autoritária existe, sim, mas o país possui também
uma sólida tradição parlamentar, que vem desde a Independên-
cia. No Império o Parlamento foi uma instância fundamental do
poder. Não por mérito da democracia, mas por uma necessidade
de entendimento entre as oligarquias, cujas divergências eram
levadas para as assembleias. Nesses 170 anos de História, o
mecanismo de escolha eleitoral funcionou sem interrupção em
quase todos os municípios.

Mas os brasileiros sabem votar?


A análise dos resultados das eleições de 1970 até hoje mostra
uma maioria consistente do eleitorado em favor de um sistema
pluralista e democrático. Um bom exemplo foi a eleição dos
senadores do MDB em 1974, em plena ditadura. A campanha
das Diretas Já foi a maior manifestação em massa na América
Latina no pós-Guerra. Há um outro fenômeno importante nesse
período. É a federalização da opinião pública brasileira.

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

O que é isso?
Até 1964, a opinião pública se restringia a Rio de Janeiro e
São Paulo, com um ou outro movimento regionalista. Hoje, o
Brasil é uma sociedade urbanizada, com uma opinião pública
homogênea nas grandes cidades. Na véspera da votação do
impeachment, as manifestações se alternavam diariamente em
todos os pontos do país. A opinião pública nacional é importante
para o federalismo brasileiro.

É possível a democracia funcionar com partidos tão pouco


consistentes como os brasileiros?
Os defeitos do pluripartidarismo serão parcialmente corrigi-
dos pelo sistema de eleição em dois turnos. Esse sistema acaba
de entrar em vigor também nos municípios. É neles que se dá o
movimento genético da política brasileira. Os dois turnos criam
um sistema de alianças que fortalece os partidos.

Houve algum resultado concreto até agora?


O PSDB, por exemplo, foi salvo do suicídio político que seria
a adesão ao governo Collor em abril por pressão de seus prefeitu-
ráveis. Eles impediram que a cúpula aderisse para não prejudicar
suas alianças nas eleições de outubro. O lucro líquido do partido
foi fantástico. Hoje, o PSDB tem mais de 50 prefeitos no interior
de São Paulo. Deixou de ser uma tendência congressual para
se tornar um grande partido, graças ao sistema de dois turnos.

O Brasil conseguiu afastar democraticamente seu presidente


da República, mas não consegue dar comida, educação e saú-
de para todas as suas crianças. É possível viver com um pé na
Inglaterra e outro na Somália?
O país tem desafios enormes a enfrentar. Se o problema social
não for resolvido, nada do que aconteceu até agora no plano
político fará sentido daqui para a frente.

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A frase do ano é do ministro
Adib Jatene: “As empreiteiras
comandam o orçamento do
Estado”. Dita por um marxista,
seria uma chacota. Mas vem
de um conservador respeitado.
Retomar o controle do orçamento
é tornar efetiva a representação
da sociedade no Congresso.
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Quais são esses desafios?


A sociedade precisa retomar, no Congresso, o controle sobre
o orçamento público. Na ditadura, o orçamento foi imposto ao
país por decreto-lei. Depois de duas décadas, tornou-se difícil
até mesmo encontrar no Congresso especialistas em questões
orçamentárias. Deixar o Parlamento rolar no vazio é a maneira
mais eficiente de aviltá-lo.

Por que o orçamento é tão importante para a sociedade?


Porque é nele que se definem as prioridades nacionais. É o
be-a-bá da democracia. Até agora, o orçamento não escapou dos
lobbies e das manipulações no Congresso. A frase do ano é do
ministro Adib Jatene: “As empreiteiras comandam o orçamento
do Estado”. Dita por um marxista, seria uma chacota. Mas vem
de um conservador respeitado. Retomar o controle do orçamento
é tornar efetiva a representação da sociedade no Congresso.

O senhor acha que a discussão do orçamento pode despertar


algum interesse na população?
Há um fenômeno novo capaz de despertar esse interesse: a
classe média está voltando a depender dos serviços públicos.
Durante o milagre brasileiro, ela viveu na ilusão de que poderia
dar um curto-circuito nas funções do Estado, financiando suas
próprias escolas, seu próprio lazer e sua própria segurança.
Caiu numa armadilha. Os serviços públicos faliram e a classe
média não tem mais condições de bancar seu sistema priva-
do. A escola particular é um bom exemplo. Famílias inteiras
dormem nos portões das escolas públicas para garantir vagas.
Essa gente agora vai exigir melhores escolas e melhores salários
para os professores.

A atuação de lobbies no Congresso é prejudicial para a demo-


cracia?

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ENCONTROS

Não. Quanto mais lobbies, melhor. Essa é a regra da demo-


cracia norte-americana. O problema da sociedade brasileira não
é a existência de lobbies, mas a escassez deles. É da divergência
e da discussão que surge o consenso nacional. O economista
Roberto Macedo disse outro dia que o Congresso é composto por
despachantes de luxo. Não vejo nada de errado nisso. É preciso
que todos os contingentes sociais tenham seus despachantes em
Brasília. Evidentemente, isso exige uma legislação partidária e
eleitoral adequada, que distribua as vagas no Congresso de forma
justa e representativa.

Qual é o maior desafio que o país tem de enfrentar em 1993?


É o desafio social. Ou se caminha para uma situação em que
todas as pessoas tenham sua dignidade respeitada ou todos vão
se estrepar. Um grande problema é a governabilidade das grandes
cidades. Estamos nos tornando o mais pobre dos países urbanos
industriais do mundo.

É possível resolver os problemas das metrópoles sem pensar o


país como um todo?
É nas grandes cidades que a bomba explode primeiro. Veja
o exemplo da praia carioca. A celebrada utopia igualitária da
praia desmoronou com os arrastões. Agora, ou se enfrenta o pro-
blema da miséria nos morros ou se cria um pedágio nas praias,
que não deixe entrar pobre, e se cria um apartheid de fato. Não
existe meio-termo. Não dá para mandar todos os pobres para o
Carandiru nem todos os candidatos a sequestráveis para Miami.

E há alguma solução?
A gestão dos problemas nas grandes cidades tem que mudar.
Acabou o tempo do jeitinho, em que o prefeito simpático ao go-
vernador ou ao presidente ganhava mais verbas e ia empurrando
seus problemas com a barriga. Os critérios de arrecadação e

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

distribuição tributária não podem ser os mesmos para uma me-


trópole como São Paulo e uma cidade de 600 habitantes no Acre.

O que o senhor está achando do governo Itamar Franco?


É preciso ser mais generoso com Itamar. A personalidade
deste presidente cria um forte contraste com a de seu antecessor.
Tem-se a impressão de que Collor era um rochedo de segurança,
enquanto Itamar é um poço de insegurança. O Brasil foi vítima
de um embuste de granes proporções. Collor prometia acabar
com a inflação, a equipe da Zélia era a melhor do país, Bernardo
Cabral era o maior jurista do mundo. Não se deve cair no extremo
oposto e dramatizar os cacoetes presidenciais como prova de
insegurança. Acredito que ele acabará acertando.

Quais são as maiores dificuldades de Itamar?


Um obstáculo é o plebiscito de abril em que os eleitores vão
escolher o regime de governo. É uma herança perversa da Cons-
tituinte. O país vai passar meses envolvido em debates falsos.
Não faz sentido discutir monarquia, república, parlamentarismo
e presidencialismo, quando a questão principal é a miséria e a
crise econômica.

Como será o seu voto no plebiscito: parlamentarismo ou pre-


sidencialismo?
Sou pela reforma do sistema vigente, o presidencialismo.
Qualquer regime de governo pode funcionar bem. O importan-
te é que a sociedade e os políticos saibam jogar esse jogo. Se o
sistema político é um jogo de regras com as quais não se está
familiarizado e de resultados ambíguos, não dá certo. Não temos
tradição parlamentarista recente. Já o presidencialismo é um
processo em andamento. O impeachment acabou com o presi-
dencialismo imperial que reinava, o Congresso vai assumindo a
plenitude de suas funções constitucionais. Sou contra paralisar

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ENCONTROS

todas as pequenas formas concretas do sistema vigente em favor


da promessa de uma reforma salvadora.

O senhor acredita no futuro do Brasil?


Acredito muito. Um país que ficou quase quatro séculos
chafurdando na escravidão e, depois disso, conseguiu atravessar
o século XX sem ir à breca só pode ser otimista com relação ao
século XXI.

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Os mal-entendidos
da história do Brasil
POR FERNANDO HADDAD
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Os mal-entendidos
da história do Brasil
POR FERNANDO HADDAD

Originalmente publicada
na revista Teoria e Debate,
em julho de 1996.

Em primeiro lugar, dê um pequeno panorama de sua trajetória


intelectual e do que está fazendo atualmente.
Prestei vestibular na Universidade de Brasília em 1964, algu-
mas semanas antes do golpe, e quando este veio eu fazia parte
da direção da Federação de Estudantes Universitários de Brasília
e me vi envolvido na primeira onda da repressão, que naquela
época não era violenta. Enfim, éramos só presos e em Brasília
não havia casos de tortura. Em 1966, graças à intervenção dos
meus professores da Universidade e de algumas outras pessoas
do governo Goulart, consegui uma bolsa de estudos na França,
concedida pelo governo francês, onde graduei-me em Ciência
Política e História, fiz doutorado e depois fui nomeado assisten-
te-associado da Universidade de Rouen. Trabalhei também na
Universidade de Vincennes em Paris. Fiquei lá até 86, durante
quase vinte anos, quando voltei para o Brasil e passei a fazer

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ENCONTROS

parte do Cebrap e da Unicamp, onde dou aula no Instituto de


Economia. Em seguida, fiz a minha livre-docência em História
Econômica na Unicamp e agora estou concluindo um pós-douto-
rado na França, que é a transformação da tese de livre-docência
em um livro, que acabei de concluir, a ser lançado no fim desse
ano ou no começo do ano que vem.

No final do seu último seminário no Cebrap, você dizia que,


como historiador, tinha interesse em desfazer três mal-enten-
didos da historiografia brasileira. Você poderia citá-los?
Existem realmente três mal-entendidos. Sobre o período co-
lonial, o mal-entendido é que a descoberta do Brasil e o Governo
Geral criaram o sistema colonial. Ou seja, como se tivesse bastado
os portugueses chegarem, introduzirem a cana e os escravos
africanos e a coisa engatasse num modelo triangular: os navios
vêm da metrópole com manufaturados, pegam escravos na África
e trazem para o Brasil, onde trocam por gêneros coloniais – açú-
car, tabaco e depois café – e levam para Portugal. Não foi bem
assim. Deve-se observar, em primeiro lugar, que o Brasil estava
inserido num processo de formação de um mercado mundial e,
a princípio, não era prioridade do império português. Quando
finalmente a economia portuguesa tira seu foco de atenção do
Oriente e o centra no Ocidente, ela se assenta num sistema em
que rapidamente os interesses propriamente brasileiros, isto é,
do colonato local, se afirmam quase que ao lado dos interesses
metropolitanos, especificamente no que se refere ao tráfico
negreiro. Há, desde o começo do século XVII, uma negociação
bilateral entre Brasil e Angola que envolve a exportação de mer-
cadorias brasileiras em troca de escravos africanos. Começa a
haver uma certa autonomia nesse comércio Sul-Sul ou interco-
lonial. No final do século XVII, já há uma dupla administração
desse espaço, uma cogestão do Atlântico Sul, dividida entre os
portugueses de Portugal e o colonato brasileiro.

29
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

E justamente isso que abre campo para outro mal-entendido:


achar que tal como Cabral chegou e criou o sistema colonial, D.
Pedro I deu o grito do Ipiranga e um novo Estado nacional se
formou. Também não é assim, não só pelas razões internas que
se apontam sempre – o problema das revoltas regenciais, do
assentamento da autoridade do governo central nas diferentes
províncias etc. –, mas também e sobretudo pelo papel que o
Estado tem em nível externo. Porque, em consequência do que
foi dito antes, o Brasil se independentiza mergulhado no tráfico
negreiro que, a essa altura, era considerado pirataria. O Estado
que nasce é, portanto, um estado-pirata. Isso não é um trocadilho,
são exatamente os termos da legislação do direito internacional e
dos tratados que o Brasil tinha assinado que entendiam o tráfico
negreiro como ato de pirataria. Estando à margem do embrionário
direito internacional existente, o país não só não compunha o rol
das nações civilizadas como também estava sujeito a uma invasão
por parte da marinha de guerra inglesa. O grande problema da
história do século XIX é entender como o governo central se co-
locou num equilíbrio perverso entre a pressão externa, inglesa em
particular, para acabar com o tráfico e a interna, dos escravistas,
para não acabar com ele. E justamente graças a esse comércio
de pilhagem da população africana que foi possível ao Brasil
manter sua independência e se estruturar como Estado. Isso é
o paradoxo da independência. O país consegue evitar se tornar
imediatamente periférico à Inglaterra – como aconteceu com a
maioria dos outros países da América Latina – porque tem um bra-
ço do antigo sistema colonial e controla parte do negócio do qual
as outras nações haviam se retirado, que era o tráfico negreiro.
Quando, finalmente, as classes dominante e dirigente, isto é,
os fazendeiros e a burocracia imperial, decidem acabar com o trá-
fico, tentar trazer imigrantes e fazer estradas de ferro para abaixar
o custo do transporte, há uma espécie de negociação global na
qual os fazendeiros preferiram manter o latifúndio abrindo mão

30
ENCONTROS

da escravidão. A legislação agrária de 1850 destina-se a manter a


grande propriedade e trazer para o Brasil um proletariado agríco-
la. Não tem nada a ver com o tipo de colonização que os alemães
de Santa Catarina estavam organizando, em que os colonos eram
proprietários que produziam diretamente para o mercado. Vêm
italianos, que são proletários, pobres, brancos, católicos. Mas, é
justamente nessa fase que há uma espécie de problematização
da questão da transição do trabalho escravo para o trabalho
livre em cada região. É nesse processo que se vai elaborar uma
legislação rural do trabalho bastante sofisticada, que se tentou
implementar sem muito sucesso, embora os debates a respeito
tenham se estendido por mais de meio século. E a meu ver é isso
que está subjacente ao terceiro mal-entendido que é pensar que
a legislação trabalhista "varguista", que fundou o Brasil moderno,
saiu inteira da cabeça do Getúlio, toda feita depois de ele ler a
Carta del Lavoro do Mussolini. Acho que a legislação varguista
toma a herança de décadas de debate sobre a legislação rural e
a questão do mercado de trabalho nacional propriamente dito
e vai se aplicar aos trabalhadores urbanos, tendo em vista esse
exército de reserva que existia no campo. Há, portanto, um eixo
sobre a questão do trabalho, se você quiser, que atravessa quatro
séculos de história do Brasil.

Pelos três mal-entendidos, pode-se depreender que há uma


dificuldade adicional para o historiador ponderar de maneira
rigorosa a importância dos elementos externos e internos no
processo de formação e reprodução das nacionalidades peri-
féricas?
O equívoco é fazer uma história territorial, quando no capi-
talismo ela não é territorial e nem mesmo nacional. Não havia
Estado-nação nenhum, embora existisse a idéia de que pernam-
bucanos, paulistas, maranhenses, tinham algo em comum. Da
mesma forma, há uma vertente de esquerda que quer que haja

31
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

uma filiação de movimentos, desde a Confederação dos Tamoios,


passando pelo Quilombo de Palmares, pela Inconfidência Minei-
ra, até a Coluna Prestes. Eu não acredito nisso. Hoje, quem está
fazendo uma história nacional para valer, quem a está organi-
zando é o PT, que é, realmente, um partido nacional e que tem
um nível de coordenação das lutas sociais no país. Não existia
isso antes. As lutas nacionais populares no Brasil, no Império
e na Colônia, eram sempre localistas, regionais, não tinham a
dimensão do todo, do Estado.

E a elite?
A elite era quem tinha a dimensão e a experiência de Estado.
A versão conservadora da história do Brasil é mais consistente
até do que essa outra que prega uma continuidade das lutas do
povo. Se se crê numa humanidade difusa, vítima do capitalismo,
ela também escapa do território, ela não tem mais nada a ver
com a história nacional. É necessário olhar também para os
territórios guaranis do sul, pilhados pelos baneirantes, e Angola,
onde era a demanda brasileira que estava desencadeando um
cataclismo sobre esses povos. O Brasil participou ativamente da
pilhagem da África. Navios e comerciantes negreiros brasileiros
se associaram na pilhagem e escravização de aldeias africanas
no começo do século XIX, depois da Independência. Nós temos
uma responsabilidade diante dos estragos feitos à África por-
tuguesa em particular. Uma visão humanista deveria levar em
conta isso também.
Mas, para voltar à ideia das duas histórias nacionais, as
conservadoras até têm mais consistência, mas têm um grande
limite: a ideia equivocada de que os fenômenos só se resolviam
internamente, não vendo os dois lados do problema. Essa coisa
velha de ficar fazendo do barão de Mauá um sujeito com espírito
empresarial, vítima da burocracia estatal do Império, é um verda-
deiro absurdo. Na primeira revolução industrial era necessário ter

32
O Brasil participou ativamente
da pilhagem da África. Navios
de bandeira brasileira foram
pilhar aldeias africanas no
começo do século XIX, depois
da Independência. Nós temos
uma responsabilidade diante
dos estragos feitos à África
portuguesa em particular. Uma
visão humanista deveria levar
em conta isso também.
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

carvão e ponto. Se não tinha carvão não havia indústria, pois não
havia mercado mundial de carvão; não existia onde comprar. O
Brasil não tinha carvão, então não tinha indústria. E ademais, um
industrial não faz o capitalismo. Então, há uma espécie de mis-
tificação grotesca que a burguesia faz dos seus próprios heróis.

Mas há o outro lado também...


Sim. Veja o caso de Palmares. É natural que o Quilombo dos
Palmares tenha destaque na nossa história. Mas é preciso con-
textualizar. Primeiramente, porque esse tipo de luta não era o
único e nem sempre era o mais eficaz. A forma de luta corrente e
eficaz na escravidão foi a revolta individual, a sabotagem difusa
dos escravizados. A palavra sabotagem vem do francês sabot
que quer dizer tamanco, o objeto que os operários enfiavam na
engrenagem das máquinas. No caso da escravidão, a sabotagem
incluiu desde a atitude da mãe escrava que tinha a dor extrema e
a coragem de provocar um aborto para não ter um filho escravo
até o sujeito que esfregava o pé no curral para pegar bicho-de-pé
e não trabalhar, passando pelo que matava o feitor e escapava
do cativeiro, como houve muito em São Paulo na fronteira do
café. Por outro lado, essa ideia de que Palmares pudesse ser
uma democracia é um absurdo. Nenhuma sociedade guerreira
é democrática. Se fosse, teria sido a primeira do mundo. Porque
uma sociedade guerreira tem que ter organização hierarquizada
para se defender dos ataques constantes. Nenhuma sociedade
militar é aberta a debates, à cogestão. Dessa perspectiva, é muito
mais importante mostrar a truculência dos vencedores do que
inventar uma consciência homogênea e nacional dos vencidos,
que não existiu.
Nesse sentido, o historiador tem um papel importante nesse
rastreamento do processo de consolidação das classes dominan-
tes. Nesse livro que estou acabando, mostro como a pilhagem
em Angola, na segunda metade do século XVII, foi feita por gente

34
ENCONTROS

saída do Brasil. A destruição dos reinos africanos foi feita contra


a vontade do próprio colonato angolano e da Coroa portuguesa,
que tinha ali uma política de feitorias e não queria encrenca com
os reinos africanos. Essa gente saída do Rio, de Pernambuco, da
Bahia os destruiu. Isso é importante para mostrar quanto é ne-
cessário fazer uma história não territorial, até do ponto de vista
dos vencidos, porque estes não estavam todos aqui, não foram
todos vencidos em território nacional.

Qual era o modo de produção a que estavam submetidos os


negros na África?
Há um mal-entendido também sobre a economia africana.
A África é sempre vista como um continente exportador de
mercadoria viva, marfim, ouro, madeira, escravos. Mas ela era
também um grande mercado importador. Havia sobretudo algo
que não existia na América portuguesa, que é o comércio a longa
distância. Uma ampla rede de trocas que percorria o continente
por semanas e meses. Isso existia na África ocidental, na central,
na oriental. Das minas de Moçambique se levava o ouro, pelo
oceano Índico e pelo Oriente Médio, para a Ásia e Europa. Havia
o ouro do golfo da Guiné que, durante séculos, chegou ao Me-
diterrâneo pela rede de caravanas. Certas regiões da África, nos
séculos XV e XVI, não eram mais atrasadas do que certas regiões
da Europa. A arte africana, os bronzes do Benim por exemplo,
dos séculos XVI até o XVIII, por exemplo, são representações e
esculturas tão sofisticadas quanto as ocidentais. Havia uma me-
talurgia muito antiga e avançada, uma atividade têxtil, antes da
chegada dos europeus. Tudo era artesanal, como era na Europa
aliás. Mas, por outro lado, não tinham marinha, pólvora, fábricas
de armas de fogo.
Nesse contexto, o escravo já existia como elemento de troca
em redes de longa distância. Mas o escravo doméstico africano
não tinha nada a ver com o que era exportado para o Atlântico.

35
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Nas aldeias africanas não se vendiam os próprios cidadãos, os


membros da comunidade. No Congo, por exemplo, até o século
XVII, todos os escravos que saíam eram de outras regiões. Exis-
tia, portanto, um processo de escravidão doméstica, em que na
segunda, terceira geração, o escravo era assimilado à família.
Quando veio o mercado mundial e a demanda negreira, o pro-
cesso se degradou de tal forma que se vendiam até os próprios
filhos. Nesse ponto, volto a insistir, o Brasil, antes mesmo da
Independência, teve uma participação importante no processo
degradação das comunidades subsaarianas e, sob muitos aspec-
tos, se beneficiou dele.

Você parece sugerir que a ideia de desenvolvimento dependen-


te e associado pode, de certa forma, ser estendida ao Período
Colonial...
Eu acho que sim, mais do que em outras colônias de qualquer
maneira. Essa política externa brasileira sobre a África é origi-
nária daí. No século XVII, por exemplo, os holandeses atacam
o Nordeste, depois Angola e o contra-ataque brasileiro começa
em Pernambuco, mas também em Angola. Sai uma expedição
do Rio para expulsar os holandeses de Luanda. É a primeira ex-
pedição transcontinental que sai do Novo Mundo. Foi montada
pelos fazendeiros, não para atender a uma demanda local, mas
a de um grupo negreiro do Rio que enfiava escravos no rio da
Prata para fazer contrabando e meter a mão na prata do Peru
que por ali era exportada. É isso que financia essa empreitada
para ocupar Luanda com uma tropa de 1.200 soldados do Rio e
de Pernambuco.

De onde vem essa tradição de pilhagem, de desrespeito às leis


internacionais?
Havia uma pilhagem internacional generalizada. A primeira
guerra de narcotráfico no mundo, a do ópio, foi feita, em 1842,

36
ENCONTROS

pela Inglaterra, que derrotou a China para obrigá-la a comprar o


ópio. Portanto, a Inglaterra é a primeira grande potência narco-
traficante do mundo. Por outro lado, houve massacres na África
muito maiores do que os feitos pelos brasileiros. Todas as nações
europeias andavam metidas no tráfico.
Porém, no Brasil há uma dupla tradição perversa. A primeira
é a da escravidão. Um país que viveu trezentos anos nela mer-
gulhado, na violência doméstica e na administração da tortura
e do terror. Havia uma situação de infracidadania generalizada
para uma parte da população. Além disso, era um país que usa-
va a tortura na frente dos outros e a mutilação como métodos
exemplares para impedir a fuga de escravos. Todas essas coisas
estavam banidas da maioria dos outros países de tradição oci-
dental. O Brasil carrega isso até o final do século XIX.
Por outro lado, outra perversidade era a Inquisição ibérica,
que é uma reação da aristocracia contra a burguesia mercantil,
procurando judeus em toda parte. Achava-se que todo comer-
ciante era um judeu em potencial, o que estrangulou a emergên-
cia de uma burguesia interessada na ampliação de direitos civis,
que foi o elemento de modernização da Europa, de destruição da
aristocracia parasitária. A burguesia mercantil foi importante na
modernização da Inglaterra e da Holanda. Nos países da penínsu-
la ibérica, justamente por causa da perseguição aos protestantes
e aos judeus, ela teve travada sua ascensão e isso criou um viés
muito importante na história ibérica e ibero-americana, com a
não-generalização dos direitos civis. A Inquisição privilegiava a
confissão obtida pela tortura, que era uma prática legalizada.
Então, essa coisa de torturar, de humilhar o suspeito, de ocul-
tar o denunciador é algo que atravessou Portugal moderno e
ameaçou o colonato do Brasil durante algum tempo. O Brasil
sai dessa dupla vertente. Nesse sentido, temos uma herança
pesada, porque a ideia de que a confissão é a prova definitiva
de culpa influenciou até o ensino de direito. A polícia científica

37
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

existe há 120 anos e ainda não chegou ao Brasil. Não se faz prova
material, não se recolhem impressões digitais quando há crime.
A polícia brasileira é baseada no alcaguete, na tortura, na porrada
e na confissão. Isso vem dessa dupla herança da escravidão e da
Inquisição ibérica.

O que você pensa da declaração do FHC de que sua eleição


representava o fim da era Getúlio?
A partir de 1970, houve uma urbanização da miséria. Os
pobres do campo viraram miseráveis urbanos e isso sedimentou
nas grandes cidades uma situação onde a população está abso-
lutamente indefesa, sofrendo a criminalidade, o desemprego, a
abdicação total do papel do Estado. Então, FHC diz que o getulis-
mo acabou, que é fácil governar o Brasil, restringindo a ideia de
governar a piruetas técnicas do tipo Plano Real, sem perceber que
governar é não só assumir responsabilidades por toda a carência
que o Estado criou, mas também fundar as condições da própria
governabilidade, que foi o que Getúlio, a seu jeito, fez e FHC não
faz. Ele parece prisioneiro de um certo materialismo vulgar. Ele
pensa que, se completando a globalização, haverá uma reestru-
turação social e uma redefinição institucional que se fará pela
dinâmica do mercado e da economia. Não é assim. Num primeiro
momento, ele e o José Serra nos encheram a cabeça, dizendo que
se não houvesse parlamentarismo o Brasil não seria viável. Quando
tomam o poder, assumem o presidencialismo mais escrachado e
desestabilizam o quadro institucional presidencialista que havia,
porque essa coisa da federalização da dívida de São Paulo, por
exemplo, nas circunstâncias em que ocorreu, é um elemento de
desestruturação do federalismo. Amanhã chega outro prefeito, que
não tem poder ou não quer fazer barganha com o governo federal,
e fica pendurado com a dívida. Além do mais, essa dívida que o
governo federal assumiu não tem valor social nenhum, é dívida
de obras feitas pelo Maluf na parte rica da cidade.

38
ENCONTROS

Na década de 60, o debate sobre economia periférica apontava


para duas alternativas: estagnação ou revolução. Fernando Hen-
rique percebeu que havia um terceiro caminho que se provou
historicamente verdadeiro: o do desenvolvimento dependente
e associado. Não há a possibilidade de ele estar enxergando de
novo o que poucos, na esquerda, veem?
Veja bem. O cálculo do Fernando Henrique, de certa ma-
neira, já está dando certo. Basta ler o noticiário da imprensa
conservadora europeia, que lhe é bastante favorável. Além disso,
há uma insegurança muito grande com relação à Ásia, porque
a China tem pontos inegociáveis, como o da continuação do
poder da burocracia do Partido Comunista e a recuperação
de Taiwan. O fato da China ter ameaçado entrar em guerra fez
aumentar o orçamento militar da Coréia do Sul, de Taiwan e
do Japão num nível muito além do que eles queriam e assus-
tou o capital estrangeiro que estava indo para lá. Esse nível de
truculência pode gerar uma certa confusão que vai favorecer a
América Latina ou eventualmente a Índia. Mas o que me parece
grave no cálculo do Fernando Henrique é que aparentemente
não leva em conta o fato de que o país é forte quando tem
uma coesão social forte. Um país inteiramente descosturado,
como o Brasil de hoje, não é um interlocutor válido. Essas
transições todas estão dependendo de indivíduos, de Yeltsin,
Menem, Fujimori, Fernando Henrique, Zedillo, elas não estão
embasadas em processos sociais, em burguesias hegemôni-
cas independentes do Estado, em sociedades democráticas,
como foi o caso da reconstrução da Europa depois do fim da
Segunda Guerra Mundial. FHC está apostando no seu próprio
prestígio. Como se estivesse na cabeça dele a articulação, sem
que haja preocupação em criar condições de governabilidade,
de estruturação dos agentes sociais. Ao contrário, a medida de
punição dos petroleiros, por exemplo, é thatcheriana. É para
demolir o pouco que há. Isso foi provocado pela dinâmica da

39
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sua eleição, independentemente da sua vontade. O fato dele ter


sido eleito pela maior frente direitista jamais formada no Brasil
criou um movimento devastador de desaprovação do movimento
sindical e da esquerda.
Mas ele pode enfrentar problemas em função da desigual-
dade social e da crise permanente por que passa a sociedade
brasileira. Nesse sentido, a situação do povo, de exploração e
abandono, é um ponto fraco da negociação, que fragiliza a pró-
pria inserção do país no esquema internacional. Há um outro
custo Brasil, que é o da não-democratização da sociedade. Num
primeiro momento, pode até funcionar negativamente o fato de
ter sindicato reivindicativo. Mas, a médio prazo, a integração
consistente no processo de globalização se fará através de nações
sólidas. As que não tiverem uma coesão social sólida vão virar
mercado; não vão virar sociedades econômicas, nem sociedades
democráticas. Elas vão se esgarçar.

Por que o governo não leva isso em consideração?


O Paulo Renato (ministro da Educação) diria que está per-
feitamente lúcido sobre isso e que trabalha justamente para
tampar esse buraco. Mas não é só a educação; é a questão de
ter interlocutores políticos, sindicatos organizados, um debate
estruturado, interesses definidos no Congresso. E isso, o mé-
todo de governar do presidente e o tipo de aliança que ele fez,
com o setor mais atrasado, levam-no a atropelar a relação que
poderia ter com o Congresso, com os partidos, com os setores
organizados da sociedade. Sua política acaba promovendo uma
pelegada que não tem base nem engajamento definidos e leva a
essa personalização do poder e a essa sobrevalorização de uma
racionalidade intelectual que está depositada nele e não está fun-
damentada num mapeamento político. Esse é o mal-entendido.
Antes, Fernando Henrique era um intelectual isolado, estava na
galeria. Agora, ele é o chefe da orquestra. Ele está reduzido a sua

40
ENCONTROS

própria reflexão e teria que ter um suporte social que a política


dele justamente desmonta.

Diante disso, qual seria o papel das oposições, do PT, em par-


ticular?
É preciso reconhecer que o PT, em geral, e o Lula, em particu-
lar, não souberam capitalizar a eleição presidencial. Na primeira
eleição, contra o Collor, Lula foi eleito líder da oposição. Teve 31
milhões de votos, o que não é pouca coisa, e sumiu. Três meses
depois ele deu aquela entrevista pífia para o Natali da Folha.
Quando ele voltou, os 31 milhões de votos já tinham se evapora-
do. Os dois turnos têm uma dinâmica própria, o país não estava
habituado a isso e ainda não está.
Eu morei na França de 1966 a 86. Vi como o François Mitter-
rand ganhou em 1981. Quando eu lá cheguei, ele tinha perdido
no segundo turno das presidenciais de 1965 para o De Gaulle.
Até então, ele era um politiqueiro, sem dimensão nacional. Per-
deu de novo no segundo turno para Valéry Giscard d'Estaing em
1974. Mas, à medida em que perdia, se estruturava como líder
da oposição. No dia seguinte, ele estava em cima do governo, co-
brando. Isso, num contexto em que a eleição seguinte só se daria
dali a sete anos. Mas em 1981 ele disputou de novo e derrotou
Giscard d'Estaing. Nesse sentido, em 1994, na segunda eleição
presidencial da qual o Lula participou, em que não houve nem
segundo turno porque o Plano Real teve um efeito surpreendente
a favor da candidatura do FHC, eleito no primeiro turno, a reação
do Lula, num certo sentido, foi até pior porque ele se desinte-
ressou da política. Essa não-estruturação em torno do Lula leva
a privilegiar uma outra via de chegar ao poder. Qual é essa via?
No federalismo, se tem uma regra que só é furada em momentos
excepcionais, como foram os da transição brasileira: elegeu-se
o Collor, à beira de uma hiperinflação; elegeu-se o Fernando
Henrique, que fez o truque. Mas, em geral, a regra é ser eleito

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

governador de um estado forte e depois se ganha a Presidência.


Quando não é assim, não funciona direito, nem nos EUA, onde
o sistema é bipartidário e é uma velha democracia.
Hoje, o destino do PT está ligado a essa via longa de ascensão
ao poder, de enraizamento nos municípios, de ganhar os gover-
nos dos estados e, em seguida, tentar a Presidência. Esse foi um
ponto fraco da candidatura do Lula. Ele perdeu um ano antes
da campanha começar quando, nos quatro estados principais,
por causa da máquina do PT, foram escolhidos candidatos nu-
los, com 1% de votos, muito aquém da média nacional do Lula
e que o empurraram para baixo. A articulação, pela primeira
vez em quarenta anos, das eleições nacional e estadual exigia
uma dinâmica própria do governador, que ajudaria a empurrar
o candidato para presidente. O que aconteceu foi o inverso. O
Lula tinha que ir nos estados fazer campanha para puxar as can-
didaturas a governador do PT que estavam lá no fundo do poço.

Você está falando de galgar os degraus do federalismo para


chegar à Presidência. O PT nasceu, em parte, como uma crítica
global à sociedade capitalista e como um partido socialista. O
discurso do PT tem perdido esse caráter mais global e vem se
particularizando em torno de questões específicas. Como você
enxerga esse movimento?
A questão de pensar o socialismo e a continuidade do seu
ideário nesse novo contexto da globalização é muito difícil, in-
clusive nos países europeus que têm partidos socialistas mais que
centenários. Na Europa, agora, há um complicador suplementar,
que é o fato de estar se criando um país novo, que é a União
Europeia. A frio, sem guerra, está se criando uma federação e os
partidos ainda são nacionais. Claro que no Parlamento Europeu
há uma bancada socialista e social-democrata, mas ele ainda não
tem poder executivo, primeiro-ministro europeu. Além disso, há
a questão da manutenção do estado de bem-estar, o que é difícil,

42
ENCONTROS

inclusive do ponto de vista demográfico. As populações estão


envelhecendo. Nos EUA há um outro componente diferente: a
maioria da população americana, daqui a vinte ou trinta anos,
será de hispânicos e negros. Essa maioria vai trabalhar para
sustentar aposentados brancos, ou seja, gente de um grupo
étnico trabalhando para sustentar um outro grupo. Mesmo que
o sistema estivesse funcionando bem, há complicadores novos.
Isso sem falar do desemprego estrutural, da automatização das
fábricas etc. Então, isso não é uma carência do PT, é uma carência
do socialismo e da reflexão hoje.
Especificamente sobre a situação brasileira há muito o que
fazer. A população não está disposta a aceitar esse cálculo idiota
que diz que a política de reforma agrária não tem mais sentido.
Este é o cálculo besta que diz que finalmente a agricultura já se
modernizou, não precisa mais de uma produção de pequenos
proprietários, que é melhor fazer investimento e dar crédito rural
para as grandes unidades e que quem está favelado na cidade
não vai voltar mais para o campo. Então, deste ponto de vista, a
reforma agrária não tem sentido. Nenhum brasileiro de bom sen-
so engole isso. Porém, essa experiência acumulada na militância,
no movimento dos sem-terra, e a dos intelectuais, da assessoria
do PT na questão agrária, não tem sido articulada de maneira
adequada para desencadear uma campanha sobre esse tema.
Também o trabalho com a questão da segurança pública e da
violência policial, com o fato de que as primeiras vítimas são os
pobres, é feito de maneira muito dispersa. A defesa dos serviços
públicos também sensibilizaria grandemente a classe média.
Hoje, uma escola primária de classe média no Brasil é tão cara
quanto uma universidade de segundo time americana. A escola
de São Paulo, para onde vai a classe média alta, é três vezes mais
cara que uma escola em Paris, que tem curso integral. A classe
média não aguenta mais essa ideia idiota de deixar desabar o
serviço público e criar a rede privada. A gente paga segurança

43
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

pública e não tem polícia. O Hospital das Clínicas desabou, a


Previdência desabou e os que podem pagam um seguro de saúde
caríssimo... A escola pública desabou, a gente põe numa escola
privada... Uma campanha articulada em torno de uma reabili-
tação do serviço público, da escola, da saúde, da segurança, dos
transportes públicos é outra coisa que teria um grande impacto.
É lógico que o PT nunca vai conseguir ganhar eleição nenhuma
se não atrair uma massa maior de gente de fora, com alianças.
Ele pode fazer isso deixando de ser um partido de campanhas
só sindicais, que aparecem hoje como corporativistas. Para isso
é necessário ter uma plataforma política e consenso na direção.
É claro que há iniciativas isoladas, mas elas devem fazer
parte de uma programação e de um ideário do partido. Há coisas
setoriais importantes, que dão sentido para o país inteiro e que
não são feitas.
Eu sempre fiquei chocado com o Governo Paralelo porque o
acompanhava mais ou menos de perto – embora não seja filiado
ao PT – por causa do Chico de Oliveira que era responsável pela
questão regional. Fiquei sempre com um pé atrás pelo fato de
não ter tido, no Governo Paralelo, um ministro da defesa. Esse
é um elemento fundamental da transição: ter especialistas civis
na questão militar, que não é só aumentar salários de militares,
é redefinir o papel das Forças Armadas em outro contexto. Os
grandes especialistas nas democracias, na questão da defesa,
são todos civis e sabem se precisa ter porta-aviões e submarino
atômico para a Marinha, tanque ou helicóptero blindado para as
forças de infantaria etc. Como se vai profissionalizar o Exército,
acabando com essa coisa de serviço militar obrigatório, um
disparate que a França inventou na Revolução Francesa e agora
abandonou? O serviço militar é um tributo, é a última renda in
natura que o cidadão presta ao Estado. Isso não é debatido no
Brasil. O PT poderia ter um papel pioneiro nisso. Porque a pri-
meira preocupação de um governo de esquerda é ser "crível" na

44
ENCONTROS

hora da conversa com os militares. E a ideia de ter um ministro


civil tratando da questão militar é um sacrilégio no Brasil, o que
faz parte do atraso.

Esse movimento da globalização e desmonte dos Estados Sociais


não representa uma evidência da possibilidade de revigoramen-
to do pensamento de esquerda clássico, inclusive marxista, ao
inverso do que está se dizendo?
Um ponto que hoje parece evidente é que a centralidade
do papel da classe operária, do proletariado, no processo de
transformação social está em xeque. Os próprios neomarxistas
na França, os chamados regulacionistas, reconhecem uma
nova classe social que são os cadres, os intermediários entre o
patronato e o proletariado, os técnicos que se constituem como
classe nesse processo de fim do fordismo e do taylorismo e que
têm um papel estratégico na empresa. Não há dúvida de que a
coesão do proletariado e o papel privilegiado que ele teria na
mudança social não se evidenciou. Mas, por outro lado, o que é
impressionante é que há uma coesão social muito forte num país
como a França e uma grande tradição de luta. Quando aconteceu
a greve do setor público, houve um apoio grande da população
que, apesar de estar sendo duramente sacrificada, continuou
apoiando os grevistas durante um mês. Isso teve efeito nos ou-
tros países, que se assustaram com o ritmo das reformas. Houve
até um certo recuo. Há uma coesão social herdada das lutas do
passado e me lembro muito bem de grevistas dizerem: "os pri-
vilégios que eles dizem que temos foram arrancados por nossos
pais, avós e bisavós, que lutaram muito para ter essas vantagens
sociais. Não foram concebidos por um Estado paternalista, foram
objeto de lutas sangrentas durante quase um século e queremos
legá-los a nossos filhos".
Então, há uma tradição de luta que os sindicatos e os partidos
políticos carregam. Na França não se aceita a miséria como uma

45
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

fatalidade. A gente não sabe qual efeito isso pode ter na própria
União Europeia, se vai atrasar essa política neoliberal que con-
servadores da Alemanha impõem à Europa, se vai enfraquecê-la
perante a Ásia e a América, ou se isso vai dar numa sociedade
de tipo diferente, mais pobre, mas mais igualitária. Enfim, não
estão definidas as condições. Há uma tendência no horizonte,
mas há um movimento social que não se casa com isso. Há um
potencial de luta ainda muito grande, não há desmobilização
política. Pode haver uma dessindicalização, mas num país como
a França isso não é uma boa notícia para o patronato, porque
é o sinal do retorno a uma insurreição de trabalhadores, a um
modo de protesto social difuso que é muito mais prejudicial para
o capitalismo do que um sindicalismo organizado.

Nesse sentido, como você vê a possibilidade de retomada do


marxismo enquanto crítica do sistema fetichista de produção
de mercadorias?
Já houve o surgimento de uma segunda geração de autores
com interpretações marxistas ou desdobradas de suas teses,
ainda que às vezes isto não pareça evidente. Há uma tradição
de luta social republicana, socialista, contemporânea ao surgi-
mento do marxismo na França, e que às vezes o precede. Nessa
perspectiva, se pode imaginar uma reunificação entre os partidos
socialista e comunista, por exemplo. Isso é bem possível hoje.
Há algumas questões sobre a Europa em que eles não estão de
acordo, mas a direção geral do PC na França é bastante aberta.
Isto também pode ser factível na Itália. Na Espanha é mais difí-
cil. Na Inglaterra, o partido trabalhista se renovou bastante mas
para a direita e tem possibilidades eleitorais. De repente, pode
haver na Europa uma maioria socialista de novo, na Alemanha,
na França etc. como houve em certos momentos. Na Inglater-
ra, a questão da reconstrução europeia vai se colocar de outra
maneira e isso influencia em vários lugares do mundo. Várias

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ENCONTROS

teses do marxismo estão de certa maneira na ordem do dia à


medida em que este se despregou do leninismo. A tradição do
socialismo europeu precede o comunismo e nunca se restringiu
inteiramente a ele. É uma tradição socialista e social-democrata
que tem sua própria cultura política e bases sólidas. Isto não
acaba nunca. O partido social-democrata alemão enfrentou o
nazismo, o comunismo e está lá...

Você está falando de uma tradição de esquerda não-marxista


e de outra marxista. Você acha que elas podem se reunificar?
Não se sabe ainda que rumo isso vai tomar, mas essas coisas
podem se reunir adiante. A particularidade da vida política é que
ela não está acoplada a debates intelectuais. A politização de um
país se faz rapidamente pela luta política. O debate intelectual
num certo sentido pega o trem em marcha. É uma ilusão dos
intelectuais achar que o avanço da esquerda depende da sua
reflexão. Ele depende da luta política. A emergência do Lula e
do PT na esquerda brasileira acelerou o processo muito mais
do que todos os debates que houve durante cem anos. Então, de
repente uma maioria de governos socialistas e uma reunificação
dos partidos comunistas e social-democratas na Europa podem
trazer um componente novo a esse debate.

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Intelectuais falam de 68

48
POR RICARDO MUSSE
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Intelectuais falam de 68
POR RICARDO MUSSE

Originalmente publicada na
Folha de S. Paulo, em
10 de maio de 1998.

Como o Sr. acompanhou os acontecimentos de maio de 1968?

[Fernando Henrique Cardoso] Em maio de 1968, eu estava na


França. Era professor na Universidade de Paris, em Nanterre.
Portanto, acompanhei bastante de perto os acontecimentos.
Primeiro, houve uma tentativa de reforma da universidade que
teve uma repercussão muito forte, sobretudo no campus de
Nanterre. Havia um interesse do ministro da Educação da França,
Peyrefitte, na reforma e o jornal Le Monde dava muito impor-
tância a esse projeto. Os estudantes franceses também. Isso, de
alguma maneira, foi um começo, uma espécie de concordância
implícita entre setores distintos da sociedade francesa contra o
ranço acadêmico, contra as universidades francesas, que eram
consideradas, na época, muito conservadoras. Isso repercutiu

50
ENCONTROS

fortemente na universidade. Eu era membro da congregação,


assisti a vários debates sobre o que estava ocorrendo e vi mesmo
professores, alguns deles de esquerda, do Partido Comunista, na
época, reclamarem que os estudantes estavam fazendo desor-
dem, colocando folhetos a toda hora, cartazes nos corredores,
coisa que não era habitual na França. Até que o diretor da Fa-
culdade de Ciências Humanas resolveu fechar a porta da escola.
Ao fazer isso – no dia 22 de março – propiciou uma invasão da
universidade pelos manifestantes. Foi o começo do “maio de 68”.
O estudante que mais se destacava nessa época era o Daniel
Cohn-Bendit que, por acaso, era meu aluno de Sociologia. Mais
tarde, houve uma manifestação de estudantes na Sorbonne
na qual a polícia interferiu violentamente. A partir daí, houve
uma série de incidentes, mas, também, de grandes debates e
grandes discussões. Esses debates já não tinham nada a ver,
diretamente, com a crise dentro da universidade. Tinham a ver
com uma espécie de grande crise existencial, chamada, na época,
de “revolução cultural”.

[Luiz Felipe de Alencastro] Cheguei na França em 1996, com


uma bolsa do governo francês, para estudar na Universidade de
Aix-en-Provence. Viajava frequentemente para Paris, onde se
encontrava a maioria dos exilados brasileiros. Em 1966 e 1967 a
politização dos estudantes franceses era muito reduzida. As con-
versas políticas interessantes que eu tinha nessa época era com
os estudantes americanos, preocupados com o recrutamento
para a Guerra do Vietnã, e com um núcleo do Partido Comunista
Internacional (tendência Bordiga), formado em Marselha. Essa
gente do PCI sustentava que Ho-Chi-Minh estava liderando uma
revolução burguesa no Vietnã, o que parecia algo absolutamente
aloprado para nós todos. Mas os bordiguistas sabiam de cor a his-
tória da URSS e estavam bem treinados na crítica ao stalinismo,
e isso nos interessava. Da América Latina, só se sabia um pouco

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

de Cuba e nada do Brasil. Havia, isso sim, fortes manifestações


estudantis na Alemanha – as “Páscoas Vermelhas” –, na sequência
do atentado contra Rudi Dutschke. Mas na França era tudo uma
pasmaceira. Aliás, foi em março de 1968, que Pierre Viansson-
-Ponté, o editorialista do jornal Le Monde, escreveu seu célebre
artigo “Quando a França se entedia...”.

[Roberto Schwarz] Em 68 a efervescência política no Brasil havia


aumentado e passara ao enfrentamento direto com a ditadura.
Era este o contexto em que a oposição jovem lia o noticiário in-
ternacional e também o da França. É claro que algo das palavras
de ordem francesas passou para as nossas ocupações de univer-
sidades e de fábricas, aos enfrentamentos de rua etc., dando a
estas uma vibração por assim dizer atualizada e planetária, além
de enriquecer o repertório das nossas aspirações assumidas. Mas
no essencial a agitação aqui tinha base interna, no quadro de
classes brasileiro, que propunha tarefas diferentes das parisienses
e nem por isto menos contemporâneas.
Em meu grupo mais chegado, na Faculdade, foi determinante
a chegada de João Quartim, pouco antes de maio. O hoje pacato
professor passara alguns anos na França estudando filosofia e
aprendendo política de extrema esquerda, cujos temas e ex-
poentes conhecia no detalhe. Quando os jornais começaram
a dar notícia da nova insolência contestatária dos estudantes
franceses, nós já tínhamos familiaridade com o fenômeno. De
fato, Quartim voltara da Europa em grande forma, determinado
a tomar responsabilidades revolucionária e a “mudar a vida”,
para lembrar o mandamento de que ele gostava. A sua disposi-
ção para o enfrentamento incluía a impertinência, em especial
a provocação antiautoritária, deliberadamente carregada de
fórmulas cultas e de chavões ridículos da Faculdade de Direito.
Para bem e para mal, era uma presença juvenil que fazia o mundo
respeitável subir pelas paredes.

52
ENCONTROS

[José Arthur Giannotti] Estava na direção do Departamento de


Filosofia da USP, lugar privilegiado para compreender todo o mo-
vimento estudantil. De um lado, dialogando com os estudantes,
de outro, dando prosseguimento ao nosso projeto de transformar
aquele departamento num instituto de profissionais. E ficou
evidente desde logo que o movimento libertário dos estudantes,
enfrentando uma repressão exterior muito grande, teria conse-
quências desastrosas para nosso movimento de transformar a
USP. Quando veio o AI-5 era mais evidente que seríamos caçados
e que nossa luta deveria ser deslocada para outro lugar: termina-
mos indo para o Cebrap. Mas o Departamento de Filosofia teve
que começar de novo e, convém dizer, a nova geração cumpriu
a tarefa com coragem e competência.

[Paulo Arantes] Acompanhei 68 na condição de jovem professor


de filosofia na faculdade da rua Maria Antônia. Aliás estreante,
maio desabou no meu primeiro semestre de magistério. Con-
testação naquele clima escolar de acatamento, nem pensar, só
mesmo por inércia ou mimetismo. Aliás, contestar o quê? Mesmo
as “lideranças”, como se dizia, do movimento por uma Universi-
dade crítica choviam um pouco no molhado. Com as exceções
de praxe, todo mundo era razoavelmente do contra – contra
a ditadura militar e o medíocre conservadorismo ambiente
que fora despertá-la na modorra das casernas. Porém, a favor
dos bons cursos oferecidos, sobretudo se comparados à vida
besta das grandes escolas. No caso do meu departamento, por
exemplo, os estudantes queriam menos Platão e Bergson e um
pouco mais de Marx e Lenin, porém estudados de acordo com
os métodos filológicos de sempre. Não quero dizer que o clima
fosse ameno em meio ao bate boca ideológico de sempre. Havia
pelo contrário muita apreensão, pois a repressão podia baixar a
qualquer momento, como de fato aconteceu com o incêndio do
nosso prédio e morte à bala de um estudante.

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Como o Sr. compreendeu, na época, esses acontecimentos?

[Luiz Felipe de Alencastro] Compreendi tudo errado. Fiquei per-


plexo com os rumos do assanhamento contestatário. Na verdade,
no imediato, a mídia exacerbou o significado do Maio francês.
Havia jornalistas do mundo inteiro em Paris à espera do começo
da Conferência de Paz no Vietnã. Mas as discussões pararam. Aí,
quando saíram algumas manifestações estudantis mixurucas em
Paris, a polícia baixou a borracha achando que eles podiam invadir
o lugar, no outro lado do Sena, onde estavam reunidas as delega-
ções da Conferência de Paz. Como estava cheio de jornalistas e
fotógrafos à espera do início da Conferência e sem ter o que fazer
na cidade, o movimento estudantil teve, no começo, uma hipe-
rexposição na mídia. Isso embaralhou muito as coisas, ocultando
inclusive o fato de que estava rolando, pouco depois, a maior greve
operária ocorrida num país desenvolvido no pós-guerra.
Outra coisa que nos fazia, nós os estudantes latino-ameri-
canos, ficar sempre com um pé atrás, era a vulnerabilidade do
estatuto de estrangeiro. Por volta do dia 20 de maio, a polícia
começou a expulsar da França, sem apelação, os estudantes es-
trangeiros pegos nas manifestações. Ser expulso naquela altura
era o fim do mundo, porque não dava para voltar para o Brasil;
eu perderia a bolsa francesa, pararia os estudos e ficaria sem
destino. Depois, no ano seguinte, nas casas do campo da turma
lá de Aix, e a partir de 1970 em Paris, quando fiz a pós-graduação
na Universidade de Nanterre, é que deu para discutir mais sobre
a politização da vida inteira. Deu para sentir, no cotidiano, na
Universidade, nas ruas de Paris, no comportamento das pessoas,
na cultura, nos costumes, que tudo tinha se impregnado de um
“espírito de maio” – irreverente, fraternal, antiautoritário.

[Fernando Henrique Cardoso] Na época o que me chamava a


atenção era o fato de que todo esse movimento na França não

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ENCONTROS

se traduzia com os mesmos slogans e nem com as mesmas in-


tenções do grande movimento que havia na América do Sul. Eu
tinha chegado à França depois de ter vivido no Chile por mais
de quatro anos. O clima que se via por aqui era completamente
diferente. Era um clima, por um lado, em alguns países, como o
caso do Brasil, contra os regimes autoritários que já se haviam
instaurado. Por outro lado, havia toda uma reivindicação contra
o subdesenvolvimento, uma luta pelo desenvolvimento, uma
luta anti-imperialista, tudo fortemente marcado por uma cono-
tação de luta de classes, se não prática, pelo menos em termos
de orientação simbólica das camadas estudantis e intelectuais.
Na França, os protestos usavam uma linguagem para a França
antiquada. Não foi um momento de revivescência do canto da
Internacional, que diz: “De pé, famintos da terra”. E os que can-
tavam não eram, propriamente, famintos. Eram mais as pessoas
que estavam, na verdade, protestando por causa da insatisfação
com o seu modo de vida. No início, os próprios trabalhadores
franceses – depois, alguns sindicatos também entraram no
movimento – assistiram a isso com certa perplexidade. Os ope-
rários franceses assistiam, sem nada entender, à discussão que
os estudantes faziam. Havia, portanto, pouco a ver diretamente
com a visão tradicional de luta de classes. Não obstante, os sin-
dicatos franceses participaram também e, finalmente, entraram
em greve. Foi um movimento que arrebatou o entusiasmo dos
jovens, em geral, inclusive trabalhadores, e de partes importantes
da intelectualidade.
Eram então situações diferentes. Na Europa – na França,
especificamente – o que havia era uma reivindicação por um
outro modo de existência. O papel dos meios de comunicação
de massa foi fundamental, sobretudo da televisão. A televisão
francesa era controlada pelo Estado, era muito oficialista. De
alguma maneira, houve uma tomada da direção da televisão por
parte de homens e mulheres que faziam a crítica da sociedade

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

de consumo etc.
[José Arthur Giannotti] Estava na cara sua ambiguidade. De meu
ponto de vista privilegiado, era evidente que a reação estudantil
era informe. Quando se organizava, o fazia na base da teoria
do foco de Debray e na transposição das experiências da Revo-
lução Cubana, o que nos parecia um disparate, considerando
que estávamos em plena época do “milagre econômico” e que
a guerrilha, ao vir para a cidade, não teria apoio suficiente para
se transformar num verdadeiro processo político. Era chover
no molhado fazer conferências para os alunos, no Grêmio da
Filosofia, alertando contra os perigos de um confronto direto
com os militares. Mas era de chorar ver aquela meninada se
preparando para ser torturada e morrer. Por certos os estudantes
me consideravam um reacionário e um mandarim, mas ficavam
desnorteados quando me propunha a dar seminário sobre Marx
na Faculdade ocupada. Era uma forma de dizer que estava com
eles, mesmo discordando deles.

[Paulo Arantes] Nas condições que acabei de evocar, não dava


mesmo para compreender muita coisa. Nossos luminares socio-
lógicos viviam dizendo que aquilo tudo não ia dar em nada, seja
em Paris ou nos Brasis, talvez porque assim o desejassem junto
com as CGTs da vida. Era moda aliás nos altos escalões do saber
mariantonesco desancar o pobre Marcuse, por falta de rigor, é
claro. “Grande Recusa” não era mesmo conosco: com sorte nos
livraríamos da ditadura e trataríamos de arranjar uma saída para
o país, pró-sistêmica, já que a anti, queimada pelos soviéticos só
poderia dar em bobagem, para dizer o menos.
Voltando ao meu zero de compreensão. Simpatizava, mas
não via nada. De sorte que quando o Roberto Schwarz, num
ensaio memorável (“Cultura e Política, 1964-69”), recontou o
que todos havíamos vivido, fiquei encabulado com a minha
miopia na época, agravada pelo nosso horizonte filosofante.

56
ENCONTROS

Também não era para menos. A síndrome mundial denominada


Maio Parisiense de 68 irrompera entre nós num palco por certo
ardorosamente oposicionista, cultura de esquerda largamente
hegemônica, porém socialmente confinada, pregando para
conversos: contestação em recinto fechado (e lotado, como
nos festivais de canção ou nos teatros) só podia exasperar mal-
-entendidos homéricos. É só relembrar o modo subversivo da
Tropicália transformar contracultura em apelo comercial. Ou a
nova esquerda requentando palavras de ordem da velha: da arte
dita social ao centralismo democrático.

Como o Sr. vê hoje o Maio francês?

[Roberto Schwarz] A pesquisa e a bibliografia a respeito devem


ser imensas e com certeza deixam mal quem esteja falando só
de memória, como leitor de jornal da época. As perguntas do
próprio momento sempre diferem das que vêm depois. Passado
o tempo, o historiador busca as causas de que os contemporâ-
neos tinham pouca notícia. A insurreição parisiense respondia
ao início de uma nova etapa do capitalismo? Manifestava uma
correlação demográfica nova, em que o peso da juventude era
maior? Acompanhava transformações na maneira de produzir,
que tornavam obsoletas as formas anteriores da divisão social do
trabalho? Era o peso específico da classe operária que começava
a decrescer? O controle soviético sobre a esquerda no mundo já
não era o mesmo? Há estudos documentados sobre tudo isto, dos
quais sei pouca coisa. Uma questão que me intriga é a unidade
do mundo que se parecia preparar, num plano diferente do atual:
qual o nexo entre as explosões da Revolução Cultural chinesa,
de Berkeley, Paris, Praga, as capitais brasileiras etc.? Essa ligação
sem fio conhecido e tão cheia de promessas era ilusória?

[Paulo Arantes] Seria bom relembrar que 68 abriu quase uma

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

década de lutas sociais e que só foi de fato enterrado pela con-


trarrevolução liberal conservadora. Reagan-Thatcher não se
empenhariam tanto em quebrar a espinha de um movimento
sindical supostamente morto! A semente da globalização (ou
que nome se dê à ditadura dos mercados financeiros susten-
tada pela retomada fraudulenta da hegemonia americana) foi
plantada como resposta à crise de governabilidade (na acepção
conservadora da fórmula) desencadeada em 68 (a crise fiscal do
Estado não tem apenas raízes econômicas endógenas, o fordismo
não explodiu somente em função do seu sucesso). Até mesmo
nosso “milagre” periférico tem a ver com a liquidez internacional
à procura de uma lucratividade bloqueada nos países centrais;
e mesmo o nosso ABC de 1978 em greve pode ser visto em linha
com a turbulência da década de 1970 (sindicalismo de combate
etc.), talvez mais crucial que os 60. Se estas impressões fazem
sentido, a famosa adesão sistêmica da força de trabalho, coopta-
da pelas prestações do Welfarestate, precisa ser recontada. Bem
como a impressão de que viveríamos novamente (como achava
Marcuse em 64, abrindo o “Homem Unidimensional”) numa
sociedade sem oposição.

[Fernando Henrique Cardoso] Quando voltei para o Brasil, já


havia os ecos de Maio de 68, mas muito mesclados com a luta
mencionada contra o regime autoritário e embasados, seja numa
visão guerilheira ou foquista das transformações sociais, seja
numa visão mais clássica de luta de classes. De toda maneira,
os que se moveram no Brasil, a partir de 68, estavam muito mais
orientados de uma forma política direta contra um regime e
contra uma situação social que era opressiva.
Não vou dizer que na França não houve isso. Mas não era
contra o regime, era mais contra os abusos que uma situação
sociocultural havia ocasionado lá. E, também, convém chamar
a atenção para o fato de que, depois de tudo isso, De Gaulle ter-

58
ENCONTROS

minou por impor, de novo, a ordem e o seu estilo. É verdade que


muita coisa mudou na França. Maio de 68 não foi simplesmente
um grito parado no ar. Foi muito mais do que isso.

[Luiz Felipe de Alencastro] Depende de onde se está interpre-


tando os eventos. Na França, as coisas mudaram radicalmente
e a esquerda atual, o governo socialista de Jospin conta com
muita gente que politizou-se em Maio, ou no “espírito de Maio”,
durante os anos 1970. É preciso lembrar que foi precisamente
essa politização que evitou o movimento francês entrasse numa
fria, embicando no aventureirismo da luta armada, como acon-
teceu com uma parte do movimento estudantil da Itália e da
Alemanha. Sartre teve um papel fundamental nas discussões
que acalmaram o jogo em Paris. Por aqui, no Brasil, as coisas
são mais complicadas porque a Ditadura deixou passar uma
imagem caricatural e, no fundo, conservadora do mês de maio:
tinha sim, “sexo, drogas e rock’n roll”. Mas isso estava envolvido
no movimento pacifista, no anti-capitalismo, no antirracismo
e no comportamento democrático, antiautoritário, que depois
fortaleceu a liberdade de imprensa e de pensamento; que deu
lugar a movimentos como os Médicins sans Frontières e muitas
coisas que salvam esse fim-de-século, o qual, sem Maio de 1968
seria sinistro.

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Conversa com o historiador


Luiz Felipe de Alencastro

60
POR JOSÉ G. V. DE MORAES E JOSÉ M. REGO
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Conversa com o historiador


Luiz Felipe de Alencastro
POR JOSÉ G. V. DE MORAES E JOSÉ M. REGO

Publicada originalmente no livro


Conversa com historiadores brasileiros,
Ed. 34, 2002.

Vamos começar com suas informações biográficas e familiares.


Meu pai era de Goiás Velho, aparentado aos Caiados. Quando
ele se formou em Medicina no Rio de Janeiro, um primo dele,
funcionário federal, havia sido transferido para Santa Catarina, a
pedido de Pedro Ludovico, adversário dos Caiados e interventor
em Goiás na Revolução de 1930. Meu pai foi ao Sul visitar o primo,
ficou por lá e se casou. Minha mãe era de uma família de origem
alemã, das primeiras famílias que chegaram a Santa Catarina
em meados do século XIX. No meio daqueles alemães, meu pai
era um personagem à parte. Tenho histórias do contraste entre
meus parentes, uns de cultura teuto-brasileira em Santa Catari-
na e outros de Goiás Velho, bem luso-brasileiros. Por exemplo,
quando houve várias comemorações do centenário dos núcleos
de imigração alemã em Santa Catarina, nos anos 1950, nós fomos
ver as festas das cidades. O meu avô de Goiás, que tinha vindo nos
visitar, ficou perplexo com aquela gente, aquelas cidades alemãs,

62
ENCONTROS

para ele tratava-se de outro país. Eu nasci em Itajaí, Santa Cata-


rina, em 1946. Estudei com os jesuítas no Colégio Catarinense,
em Florianópolis. Um dos meus professores, o padre João Alfredo
Rohr, pioneiro no estudo dos sambaquis e dos paleoindígenas,
despertou o meu primeiro interesse pela História.

Mas por que você foi estudar História em Brasília?


Em 1960, nós nos mudamos para Goiânia e depois para
Brasília. Fiz o vestibular para a Universidade de Brasília em fe-
vereiro de 1964, às vésperas do golpe. Tive um professor lá que
também me influenciou, o historiador Fritz Teixeira Salles, muito
perseguido pela ditadura. Depois do golpe, começou a repressão
na UnB e eu ganhei uma bolsa do governo francês, para fazer
Ciência Política na França. Fui embora em 1966. Mas o rumo
que estava tomando a ditadura no Brasil mostrava os limites da
Ciência Política, das análises institucionais e de curto prazo, para
entender nosso país. Minha geração não estava preparada para
o golpe de 1964, em todos os sentidos. Ninguém esperava que
ocorresse o golpe, nem que ele desembocasse numa ditadura
de tão longa duração. Na França, para estudar num dos Instituts
d’Etudes Politiques, eu tinha a alternativa de ficar em Paris, ir
para Bordeaux, Grenoble ou Aix-en-Provence. Em Paris, a bolsa
de estudos era meio curta. Além do mais, o meio dos exilados
brasileiros era meio sombrio porque havia gente da esquerda,
da geração mais velha que enfrentava o seu segundo exílio: havia
saído do Brasil durante a ditadura getulista, depois tinha voltado,
retomado a vida, a militância e tivera que sair de novo em 1964.

Você tinha alguma militância partidária ou estudantil nessa


época?
Eu estava exposto em Brasília depois de 1964, fui preso sem
ser torturado, porque fazia parte da direção da FEUB (Federação
dos Estudantes da UnB). Promovíamos vários atos públicos de

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

repúdio ao golpe. Foi por causa dessa ameaça que tive ajuda para
obter a bolsa francesa. Houve a intervenção, junto à embaixada
francesa, de pessoas francófilas e ligadas ao governo do Jango,
como Victor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva, Hermes Lima, que
eu conhecia e que tentaram me proteger. Depois que eu saí a
barra ficou muito mais pesada em Brasília. O meu amigo e vice-
-presidente da FEUB, Paulo de Tarso Celestino e o Honestino Gui-
marães, nosso calouro e sucessor na FEUB, foram assassinados
pela ditadura. Outros foram presos, torturados e abandonaram
seus estudos. Isso me marcou pelo resto da vida. Chegando na
França, fiquei amigo de um casal de estudantes parisienses. Disse
a eles que estava com vontade de fazer História e não Ciência
Política. Ciência Política era muito conservadora em Paris. Aí eles
me disseram, “vá a Aix-en-Provence que é a melhor faculdade de
História da França e é um lugar muito agradável; com essa pouca
grana da sua bolsa, lá você se vira”. E eu fui para lá. Inscrevi-me
em Ciência Política, conforme me obrigava a bolsa francesa, mas
comecei também a fazer a graduação de História. E tive a sorte
de encontrar professores formidáveis, como Paul Veyne, Maurice
Agulhon, Michel Vovelle, Georges Duby. Aix-en-Provence possuía
a Faculdade de História mais avançada da França, e talvez da
Europa, naquela altura. A cidade era pequena e fui um pouco
adotado pela estudantada e pelos professores, naquele clima
fraternal do final dos anos 1960. Aproximei-me bastante de al-
guns professores e fiquei amigo do Duby e de sua família. Em Aix
também conheci alguns estudantes africanos, uns caras muito
preparados, muito dignos e sofridos por causa das tragédias que
atravessavam seus países e o seu continente. Com eles aprendi
que na África as coisas são sempre piores do que no Brasil e na
América Latina. Rolava muita coisa na cidade. O movimento
“occitan”, em favor da autonomia do sul da França; estudantes
da Córsega que depois entraram na luta pela independência
da ilha. Havia também estudantes americanos, alguns deles

64
ENCONTROS

desertores, que se politizaram na luta contra a guerra do Vietnã.


Para completar, circulavam uns estudantes ingleses descolados.
Às vezes virávamos a noite em Marselha. No meio da farra geral,
havia a cultura do antirracismo, da tolerância, do pacifismo e
do anticapitalismo que formavam o melhor do pensamento de
esquerda. Foi nessa época que virei gente.

E quando você faz a opção por História Moderna e Contem-


porânea?
Na graduação de História há uma etapa onde se deve optar
por História Moderna e Contemporânea ou Antiga e Medieval.
O Duby queria alguém que cobrisse a área de Portugal medieval;
os franceses têm uma visão muito mais abrangente da História,
estudam a Europa toda, e não só o país deles. Resolvi ir para Mo-
derna e Contemporânea para acentuar meu vínculo com o Brasil:
eu não queria ser só um historiador, eu queria ser historiador do
Brasil. Se tivesse ficado na história medieval tinha um caminho
meio traçado, porque teria ficado trabalhando com o Duby.

Mas você se distanciaria dos estudos sobre o Brasil…


Perdia o Brasil, pois a opção por Antiga e Medieval é feita no
meio da graduação e você tem que aprofundar latim, paleografia,
num aprendizado diferente. Naquele tempo tinha também Geo-
grafia junto, e eu não fiz uma parte das matérias de Geografia, de
modo que eu só tenho a parte de graduação em História.

Você acabou tirando diploma de Ciência Política?


Sim, eu fiz Política, mas tomei pau no último ano e obtive o
diploma em quatro anos. Ciência Política é mais difícil que as
outras faculdades, porque o diploma abre acesso para a adminis-
tração francesa. Há um exame eliminatório logo no primeiro ano,
e no último só se pode ser reprovado uma vez. É preciso ainda
preparar uma monografia e isto dá equivalência de mestrado e

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

acesso direto ao doutorado. Nesse momento, eu me mudei para


Paris, onde fui fazer o doutorado com o Frédéric Mauro.

Então você é um historiador do Brasil que nunca teve aula de


História do Brasil…
O que eu acho excelente! Acho excelente, porque estudei
a História do Brasil no contexto da história ultramarina por-
tuguesa, da história ibérica, do Atlântico. Por isso, a ideia de
uma história territorial brasileira sempre me pareceu estranha:
nunca estive preso a uma problemática histórica que estivesse
balizada pelas fronteiras atuais, pelo mapa do “Oiapoque ao
Chuí”. Essa interpretação abrangente, por cima das fronteiras
políticas atuais, era precisamente a linha da École dos Annales,
e de Braudel em particular. Os especialistas da história ibérica
dos Annales eram Frédéric Mauro, meu orientador, que fez sua
tese sobre o Atlântico português; Pierre Chaunu, que redigiu
seu doutorado sobre o Atlântico espanhol; Vitorino Magalhães
Godinho, que abordou a presença portuguesa na Ásia. Os três
formavam o núcleo inicial dos discípulos de Fernand Braudel e
nenhum deles estudava um país só. Assisti muitas conferências
e seminários dos três. Para eles, a ideia de que Luanda era tão
próxima do Rio de Janeiro quanto da Bahia, parecia uma coisa
óbvia. Não havia o exclusivismo territorial que embaraça a his-
tória colonial ensinada no Brasil.

E você acabou incorporando essa postura na sua tese…


É, a minha tese tem esse enfoque. Vem daí.

Ou seja, não dá para estudar o Brasil Colonial e escravista sem


estudar a África.
Claro, a ideia é essa. Para ser mais preciso, não dá para estudar
o Brasil Colonial sem estudar Angola. Lá existiam três câmaras
municipais (Luanda, Maçangano e Benguela), um governador,

66
ENCONTROS

um bispo, missionários, formando um implante que foi, até


meados do século XIX, o mais importante enclave europeu na
África. A Angola portuguesa tinha tomado esse chão todo na
África Central porque constituía o pulmão, o complemento
indispensável da economia brasileira.

Você, que na graduação também estudou Ciência Política e


depois, na pós-graduação, Etnologia, não acha que houve, nos
últimos tempos, um certo isolamento da História em relação
às suas fronteiras?
Acho, sim. Esse é o problema da História atualmente. A His-
tória isolou-se da Geografia e os geógrafos também têm pouco
diálogo com os historiadores. Mas o problema vai mais longe.
Os antropólogos brasileiros desconsideram a antropologia eco-
nômica e perdem contato com a História Econômica. A mesma
coisa acontece com a demografia histórica, que anda bastante
afastada do restante dos historiadores. Os cientistas políticos,
com o viés a-histórico da atual tendência “institucionalista” na
disciplina deles, acomodam-se com explicações estatísticas que
revelam uma grande ignorância sobre a História do Brasil. As
outras gerações de historiadores sabiam Direito, porque tinham
feito estudos jurídicos ou conviviam com outros advogados. Hoje
isso acabou, na Unicamp nem tem Faculdade de Direito. Como
estudar escravidão no Brasil no século XIX sem possuir noções
básicas de Direito? Tudo isso acaba provocando um efeito nega-
tivo no ensino de história, tornando-o isolado e desarticulado.
Já escrevi na Veja, sem ser desmentido, que se alguém quiser
estudar o sistema eleitoral do Império e da República Velha,
terá dificuldade para encontrar no país uma faculdade de His-
tória ou de Ciência Política oferecendo a matéria. Não entendo
como os departamentos de História das universidades podem
se desinteressar da História Política e Econômica que são partes
essenciais – constituintes – da disciplina histórica. Daí a deriva

67
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

que eu chamo “mentaleira”, de algumas correntes culturalistas e


pós-modernas que descontextualizam os fatos e as análises his-
tóricas. É preciso voltar à prática das notas científicas de rodapé,
da crítica rigorosa das fontes, da bibliografia padronizada, que
é o “bê a bá” do trabalho do historiador. Philippe Ariès, Georges
Duby, Le Roy Ladurie sempre insistiram na crítica das fontes, nas
referências à demografia histórica, ao meio social e econômico
quando se estuda as mentalidades de uma época. Carlo Ginzburg
atacou o que ele chamou de “paradigma galileano” – dominante
nos anos 1950 aos anos 1970 –, isto é, o procedimento que busca-
va reduzir a História a uma sequência de gráficos e tabelas. Mas
ele também critica as correntes culturalistas e pós-modernas que
misturam todas as variáveis, apagando a fronteira entre a ficção
e a história. Para mim, o melhor historiador das mentalidades do
Brasil é também o melhor historiador do Brasil, ou seja, o autor
que elaborou as análises mais aprofundadas sobre o contexto
econômico e político da sociedade estudada. Refiro-me, é claro,
a Evaldo Cabral de Mello. Penso que seu livro Rubro Veio é o
melhor estudo da História das Mentalidades publicado no Brasil.

É preciso ter uma formação mais abrangente da disciplina.


Claro, falta uma visão mais completa da disciplina. A história
quantitativa estava ainda tomando corpo na historiografia bra-
sileira, quando foi praticamente varrida do horizonte por essa
vaga “mentaleira”. Ora, a abordagem quantitativa é importante,
inclusive para a História das Mentalidades, como o demonstram
Ariès e Le Roy Ladurie. Escrevi um artigo sobre o assunto, cha-
ma-se “Que mentalidade é essa!”, introduzindo a parte do livro
do Duby, A história continua, em que ele critica o modismo da
História das Mentalidades. Por outro lado, quando parte para a
análise concreta, a História do Brasil fica muito limitada no tem-
po e muito regionalista. Pode parecer paradoxal, mas não é: ao
lado da moda culturalista, que fala de Deus e o homem tropical,

68
ENCONTROS

há uma especialização estreita num período só. Tudo isso porque


há pouca disposição para ler e pesquisar sobre o Ultramar, sobre
a África e a Ásia portuguesas. Se houvesse um conhecimento
básico do resto do Ultramar, se estabeleceriam comparações e
surgiriam outras periodizações. Caramba, a História do Brasil só
cobre cinco séculos! O historiador brasileiro deve ter uma opinião
formada sobre esses cinco séculos e uma certa familiaridade com
a historiografia do império ultramarino português. Essas lacunas
podem perpetuar-se por causa da tendência ao autorrecruta-
mento de docentes no seio do mesmo departamento. Se todo
mundo fosse de primeiro time, seria ótimo. Mas como nem sem-
pre é o caso, os assistentes acabam repetindo a bibliografia dos
professores que os formaram, prolongando as brigas e as manias
dos orientadores e restringindo a renovação científica. Nas gran-
des universidades americanas e europeias você não pode fazer a
carreira inteira numa universidade só. Tem de haver uma certa
mobilidade, mostrando que você se formou alhures, enfrentou
concursos noutros lugares, trabalhou com outros pesquisadores
e professores, longe das filiações e eventuais “cupinchagens” ge-
radas pelas carreiras completadas numa só instituição. Aqui no
Brasil é possível estudar, fazer todas as etapas da profissão numa só
instituição e isso vira até motivo de mérito. Nas orelhas de livros de
alguns autores aparece escrito: “estudou e fez toda sua carreira na
USP”. Isso fazia sentido há trinta anos, quando os departamentos
universitários e as pós-graduações ainda estavam se estruturando.
Agora não se justifica mais. Penso que o CNPq, a Capes, a Faperj,
a Fapesp e os responsáveis das faculdades deveriam refletir sobre
esse problema que concerne não só à História, mas à maioria das
disciplinas e das carreiras universitárias.

Como foi sua vida na universidade e no meio intelectual pari-


siense na década de 1970?
Georges Duby me ajudou a obter outra bolsa do governo

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

francês para fazer o doutorado em Paris X (Nanterre), com o


Frédéric Mauro. Fui para lá no outono de 1970 e encontrei os
exilados brasileiros que estavam na França. Conheci e fiquei
amigo de muitos deles que tiveram uma importância muito
grande na minha formação intelectual, como Roberto Schwarz
e Celso Furtado. Havia também muitos exilados e intelectuais de
outros países latino-americanos e o contato com eles também foi
decisivo para mim, fazendo-me reencontrar o Brasil e iniciar-me
na América Latina.

Você continuou tendo contato com Duby em Paris?


Eu o via bastante e continuei aprendendo muito com ele.
Segui alguns de seus seminários no Collège de France e ele me
chamava a atenção para os debates que ocorriam lá, o papo dos
outros colegas estrangeiros, dos editores, etc. Mesmo sem intervir
diretamente, pois o assunto não era de sua área, ele me ajudou a
pensar a problemática da minha tese de doutorado, defendida em
1986 na Universidade de Paris-Nanterre. Tive a grande sorte de ser
desasnado em Paris por Roberto Schwarz, Celso Furtado e Duby.

Quando ele morreu você já tinha voltado pra cá.


Já, mas eu voltei para Paris, em 1995 e 1996, no meu pós-
-doutorado, que consistiu em transformar minha tese de livre-
-docência, defendida na Unicamp, no livro O trato dos viventes.
Retomamos contato e foi Duby quem insistiu para eu acentuar
a reflexão geográfica ao longo dos capítulos do livro.

Como ele era no trato pessoal e profissional?


Ele era muito carismático, falava muito bem e era muito
aberto às ideias. Sem receber nenhuma remuneração, ele dirigiu
o canal cultural da TV francesa, o Sept, que depois fundiu-se com
o canal alemão equivalente e formou o canal Arte. Interessava-
-se muito por pintura, por Giotto, Masaccio, mas também por

70
ENCONTROS

Cézanne, Klee e outros pintores de quem ele foi amigo, como


Masson e Vieira da Silva. Quem leu seu livro São Bernardo e a
arte cisterciense sabe que, além de conhecer a economia e a so-
ciedade medieval como ninguém, ele era um homem de grande
cultura artística e literária. Era ainda um cinéfilo de primeira.
Nesse sentido, ele estava mais próximo de Lucien Febvre, tam-
bém cultor das artes, que de Braudel, menos dotado de sensi-
bilidade artística, como ele próprio reconhecia. Duby era uma
pessoa com uma visão europeia, muito pouco nacionalista no
sentido estreito da palavra. Como outros intelectuais e políticos
franceses de sua geração, sabia que o comunismo na Europa
Oriental resultava muito mais da ocupação soviética do que
da convicção dos povos este-europeus. Mesmo nos momentos
mais agudos da Guerra Fria, nunca rompeu o diálogo com os
historiadores este-europeus. Era muito ligado a vários deles e,
em particular, a Bronislaw Geremek, co-fundador do sindicato
Solidarnosc, que teve um papel fundamental na transição para
a democracia na Polônia. Duby era uma figura excepcional. Na
última defesa de tese orientada por ele, na Sorbonne, em 1995,
veio gente de vários lugares da França e do estrangeiro, porque
a tese era importante e já se sabia que ele estava doente. Era a
tese da Claudie Amado, Parenté et patrimonie dans les vicomtés
de Béziers et d’Agde, 900-1170. Na apresentação, ela disse que
demorou 25 anos para fazer a tese, mas eu acho que foi até mais,
pois já tinha ouvido falar dela e do projeto de pesquisa na casa
do Duby em Aix-en-Provence, antes de 1970. Enfim, o fato é que
ela e Duby se encontraram ao menos uma vez por mês nesses
25 anos para discutir a tese. Apesar disso, na hora da banca,
logo que ela acabou de falar, ele tomou a palavra e foi em cima.
Elogiou umas partes do trabalho, exprimiu suas dúvidas sobre
alguns enfoques e contestou outros pontos. Por quê? Porque na
França o orientador deixa sempre uma margem de manobra, de
livre arbítrio, para o orientando. Afinal de contas, o orientando

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

está às vezes mais atualizado que o orientador com as linhas de


pesquisa e o estado da documentação. Isso deixa também espaço
para o resto da banca discordar livremente do orientador, do
orientando, para atribuir uma nota mais equilibrada à tese. Não
é essa coisa bizarra do Brasil, onde o orientador não abre a boca
durante a defesa de tese e depois, na deliberação da banca, toma
como um insulto pessoal toda nota que não for a nota máxima
para seu orientando. Acho isso um disparate. A tese é um grande
momento de debate intelectual, inclusive entre o orientando e o
orientador. Eu aprendi mais história assistindo a defesas de tese
na Sorbonne do que em qualquer outro lugar. Sai no Le Monde o
rol das teses que vão ser defendidas na semana, então você fica
sabendo de uma defesa de tese sobre a escravidão em Roma no
tempo dos Gracos, você diz: “Pô, isso me interessa”, aí você vai
lá, senta no fundo do anfiteatro e assiste àquela tremenda aula.
Nesse dia, na defesa da tese da Claudie Amado, Duby foi de novo
brilhante. Quando ele morreu, no ano seguinte, todo o mundo
entendeu que desaparecia um grande sábio.

Ele não viveu tanto quanto o pai dele…


É verdade, o pai dele morreu com 101 anos. Tinha sobrevi-
vido à Primeira Guerra Mundial e à morte de todos os amigos
dele. Por isso, ele teve uma vida longa e solitária. A figura desse
pai, velho e fora de sua época, transparece num dos livros mais
importantes de Duby, Guilherme Marechal, sobre um grande
cavaleiro medieval que morreu com mais de 80 anos, coisa
excepcional naquela época. Ele escreveu Guilherme Marechal
no final da vida do pai dele, e a meditação sobre o pai, sobre a
solidão da velhice, impregnou o livro.

Lembrando de outras pessoas que o influenciaram, ainda que de


outra forma, Glauber Rocha chegou a morar com você em Paris?
De maneira intermitente, porque na época ele estava entre

72
ENCONTROS

Havana, Paris e Roma. De Paris, de onde ele parava, ia para Roma


porque estava fazendo o filme História do Brasil, com o Marcos
Medeiros, que morreu recentemente. Glauber era uma pessoa
adorável, muito generoso, tinha sempre um bando de gente
interessante em volta. O encontro com ele e seus amigos me fez
entrar de cabeça nas coisas do Brasil. Mas ele sentia muito o exí-
lio, sentia um sofrimento constante, somatizado, por estar longe
do Brasil, sobretudo longe do Rio de Janeiro, que representava
o Brasil inteiro para ele. Nessa fase de discussões sobre o filme,
conversamos bastante em Paris e em Roma. Dei palpites sobre
a História do Brasil, sobre o jeito de encadear os períodos, etc. O
filme era produzido pelo Icaic [Instituto Cubano del Arte e Indus-
tria Cinematograficas], o instituto de cinema de Cuba, e Glauber
também tinha dinheiro para comprar livros. Nós escolhíamos
os livros, líamos e discutíamos nossas leituras. Quando o filme
começou a tomar pé, nossas discussões emperraram, porque o
ponto de vista do historiador não coincide forçosamente com o
enfoque do criador, sobretudo com as ideias de um artista como
o Glauber, que já tinha sua própria interpretação da História do
Brasil. Eu não tinha ainda uma visão global. Já estava começando
o doutorado, mas estava ainda muito marcado com a banda da
faculdade. Na França, a bibliografia é muito cerrada, então você
não pode se meter a fazer “sínteses globais” como o Glauber
estava elaborando no filme.

Qual foi a participação de Celso Furtado em seu doutorado? Ele


chegou a fazer parte da sua banca?
Não, o Celso Furtado foi o meu coorientador da tese, junto
com o Frédéric Mauro. Discutiu todas as partes da minha tese.
Houve uma época em que nós almoçávamos juntos aos sábados
para falar do Brasil e do andamento do meu trabalho. Como ele
é um grande intelectual, me deu muita força para elaborar uma
tese que, em alguns pontos, esbarrava com a interpretação

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

consagrada na Formação econômica do Brasil. Mauro também


era assim, aberto ao debate. Celso estava designado para par-
ticipar da minha banca, mas foi nomeado ministro da Cultura
e veio para o Brasil. Porém, o Mauro e o resto da banca (Claude
Meillassoux e Jean Devisse) resolveram manter o nome dele,
justamente porque ele foi coorientador. Então, no meu diploma
de doutorado está o nome do Celso Furtado. Mas ele não estava
presente na banca. Mais tarde, em 1994, ele integrou a minha
banca da tese de livre-docência, no Instituto de Economia da
Unicamp.

Como ocorreu essa aproximação com Celso Furtado?


Quem me levou a ele foi o Roberto Schwarz, que também
me apresentou ao Caio Prado Jr. em Paris. Meu relacionamento
com ele era e continua sendo bom, pois tenho a sorte de ainda
vê-lo frequentemente. O Celso foi uma figura exemplar para a
gente no exílio. Depois do golpe, em 1964, ele teve seus direitos
políticos cassados pela ditadura, cujo ministro do Planejamento
era o Roberto Campos, que depois se intitulou um “defensor
incondicional das liberdades democráticas”, como está escrito
numa biografia autorizada dele. Por causa disso, Celso foi para
os Estados Unidos como pesquisador-visitante em Yale. Aí,
Beuve-Méry, o fundador e editor do Le Monde, cuja autoridade
moral na França era enorme, escreveu um editorial dizendo que
o governo francês devia convidar o Celso para ensinar em Paris.
Ele foi dar aula na Sorbonne, no departamento de Economia,
onde estava o Raymond Barre. Naquela altura, Celso era um
dos poucos economistas que entendia de América Latina, por
causa da experiência dele na Cepal, no Chile, na Sudene e no
Ministério do Planejamento no Brasil. Alguns grandes bancos
franceses estavam se introduzindo no Brasil, na América Lati-
na, e o convidaram para ir trabalhar nas sedes de Paris. Celso
não quis, preferiu ser professor, formar estudantes, em vez de

74
ENCONTROS

ganhar dinheiro. Ele sempre teve prestígio como economista e


grande intelectual. O Braudel achava – eu vi o Braudel dizer isso
e outras pessoas também ouviram, noutras ocasiões – que For-
mação econômica do Brasil – é um dos grandes livros de História
Econômica. Braudel tinha uma grande admiração pelo Celso. Os
economistas, historiadores e cientistas políticos franceses apren-
deram muito com os livros e as aulas de Celso Furtado porque
antes eles estavam metidos nessa geleia conceitual de “Terceiro
Mundo”, que misturava tudo. Eles conheciam bem a economia do
Senegal, da Argélia, de países recém-independentes, produtores
de matéria-prima e de produtos primários. Porém, sabiam pouco
sobre a América Latina, sobre o Brasil, que era uma economia
dependente, mas tinha um PIB industrial maior do que o PIB
agrícola desde a Segunda Guerra Mundial. Ele deu aulas, escre-
veu vários livros importantes, entre os quais L’Amérique Latine,
que fez a cabeça dos universitários franceses. Para nós, para a
estudantada exilada no Brasil e de outros países da América La-
tina, ele era uma luz no meio das nossas incertezas, porque era
o grande intelectual, o cara que tinha sido ministro e estava lá
numa mesinha estudando, recebendo a gente. Ele deu um prumo
para quem estava solto ali, ele recebia todo mundo. Um homem
exemplar, o único ministro do Planejamento brasileiro que não
enriqueceu no business e no tráfico de influências, escolhendo
dar aulas e viver dos direitos autorais de seus livros.

Já que citou Braudel, você teve algum tipo de contato com ele?
Muito pouco, porque ele já estava fora do circuito do ensino.
Eu publiquei um artigo em 1980, um resumo da primeira parte
da minha tese, mandei para ele e aí a gente conversou. Mas
foi uma das poucas vezes. Na época, ele estava redigindo e
reescrevendo os capítulos do seu livro Civilização material,
economia e capitalismo. Era sempre muito amável com os
brasileiros, mas estava concentrado neste trabalho e creio que

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

estava menos envolvido com os pesquisadores, sobretudo com


iniciantes como eu.

Mas ainda se sentia sua presença intelectual e pessoal?


Muito, muito, ele tinha grande autoridade intelectual. Já
estava claro que ele era um grande sábio, que o Mediterrâneo e
o mundo mediterrâneo na época de Felipe II era um dos maiores
livros de história de nossa época. Mas o curioso é que o Braudel
tinha uma visão equivocada do Brasil. Durante a ditadura ele não
sacou a intensidade da repressão, da violência do AI-5. Ele ainda
estava preso àquela ideia do Brasil cordial, da autoridade pública
de acesso fácil, que ele havia conhecido no final dos anos 1930.
É verdade que a informação que chegava em Paris era muito
fragmentada e ele não sabia direito o que se passava por aqui.

De certa forma a França o salvou. Se tivesse ficado no Brasil,


você acabaria sendo preso pela ditadura.
Certamente teria me dado mal. Por isso, sempre me senti
privilegiado em comparação a alguns amigos próximos. Como
escrevi no prefácio de O trato dos viventes, dedico meu livro a
três amigos meus que foram assassinados pela ditadura: Paulo
de Tarso Celestino, Heleny Guariba e Honestino Guimarães.

Entre idas e vindas, quanto tempo você permaneceu na França?


Vinte anos, eu fui com 20 e voltei com 40. Depois fiquei mais
um ano e meio, em 1995-1996.

Você chegou aqui em 1986, bem depois da anistia e do retorno


dos exilados. Por que você resolveu voltar?
Estava pensando em voltar, porque nunca tive a intenção
de me estabelecer de vez na França. Depois da anistia, Roberto
Schwarz, Celso Furtado e a maior parte da comunidade brasileira
em Paris voltou pra cá. O ambiente intelectual em Paris mudou,

76
ENCONTROS

havia menos gente para conversar sobre o Brasil e as coisas aqui


evoluíam rapidamente. Também, em 1984, nasceu meu filho e
os amigos portugueses e espanhóis exilados em Paris, gente do
meio universitário, me sugeriram que se fosse para voltar era
melhor fazer isso enquanto o bebê era pequeno. Senão você não
volta mais, porque os filhos adolescentes dificilmente aceitam
mudar de país. Por isso, resolvi voltar…

Nesses 20 anos você nunca voltou ao Brasil?


Voltei brevemente em 1969 e em 1979, por mais tempo. De-
pois disso, voltei quase todos os anos nas férias. Em 1969 retornei
por insistência do meu pai, que não estava bem de saúde. Como
minha mãe já havia falecido, não podia deixar de vir. Mas cheguei
poucos dias antes do sequestro do embaixador americano. E eu
estava no Rio de Janeiro, saindo com uma moça integrante do
grupo que estava fazendo o sequestro! Acabei voltando disparado
para a França. Aí eu entendi que ia ficar muito tempo sem voltar.
Meu pai acabou falecendo em 1970 e como naquela época não
havia DDI, não tinha e-mail etc., e estava sempre me mudando
em Aix-en-Provence e não tinha telefone em casa, só soube da
sua morte um mês depois. Na mesma época, chegou uma carta
do advogado dele dizendo para eu não voltar porque a barra
tinha ficado muito pesada no país. Minha vida então entrou
noutro patamar.

No final da década de 1970, você retornou ao Brasil. Qual a razão


dessa volta? Você pretendia se restabelecer de novo no país?
Quando eu cheguei no Brasil em 1979, uns amigos já tinham
se mexido para eu voltar de vez e ficar trabalhando no Rio de
Janeiro. Mas em Paris as coisas tinham evoluído. Minha mulher,
que não é brasileira, hesitava em mudar-se e em seguida, em
1981, Mitterrand ganhou as eleições. Eu tinha uma situação
profissional estável, como docente na Universidade de Rouen e

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

na Universidade Vincennes, em Paris. Não tinha ainda concluído


o doutorado, então resolvi ficar mais um pouco, porque a vitória
de Mitterrand e da esquerda significava “Maio de 68” chegando
ao poder… Não o Mitterrand propriamente dito, mas…

A entourage…
Uma parte da entourage dele. Aí eu pensei: “Ah, isso eu quero
ver de perto”. Devo dizer, mesmo depois das diversas decepções
sofridas, que a vitória do Mitterrand, em junho de 1981, e as se-
manas seguintes, com a esquerda ganhando também as eleições
legislativas, foram das coisas que me deixaram mais feliz na vida.
Quando ele morreu, em 1996, fui com meu filho na homenagem
fúnebre organizada na praça da Bastilha, onde a vitória de 1981
havia sido comemorada. Meu filho ficou impressionado, porque
era a primeira vez que ele via uma tristeza coletiva dessas, uma
grande multidão recolhida e emocionada.

Nessa época, você escreveu bastante no Le Monde Diplomati-


que, não?
De 1976 a 1986, com o pseudônimo de Julia Juruna. Eu tinha
que escrever sob pseudônimo, porque havia ficado dois anos
sem passaporte, entre 1972 e 1974, na época em que alguns
diplomatas brasileiros se rebaixaram e exerceram funções poli-
ciais, recusando renovar o passaporte das pessoas de quem eles
desconfiavam, sob variados pretextos, e negando documentos
até para recém-nascidos brasileiros, para os filhos de exilados.
A troca do meu nome e sobrenome deu certíssimo, porque ne-
nhum brasileiro, nenhum latino-americano – tanto de esquerda
como de direita – pensava que um homem fosse abdicar de seus
atributos masculinos para escolher um pseudônimo feminino
[risos]. Muita gente sacava que Julia Juruna era um pseudônimo,
mesmo porque nunca ninguém tinha visto essa senhora, mas
sempre pensava que fosse o pseudônimo de outra mulher, de

78
ENCONTROS

uma das brasileiras do meio exilado parisiense. Eu e uns amigos


mais próximos, que sabiam do meu pseudônimo, nos divertía-
mos com isso, porque em Paris, em Amsterdam, Roma, Londres
ou Nova York, a gente perguntava para a turma de brasileiros e
estrangeiros ligada à oposição à ditadura: “Pomba, quem é a
Julia Juruna do Le Monde Diplomatique?”. E eles respondiam: “é
Violeta Arraes, é Maria Lígia Quartim, é Helena Hirata…”.

Dizem que no Le Monde Diplomatique você fez uma profecia,


a da possibilidade de Fernando Henrique Cardoso virar pre-
sidente…
Não é bem assim. Como muitos de nós, eu sempre achei que
Fernando Henrique estava fadado a um grande destino no Brasil.
Mas eu pensava que ele fosse unir o centro-esquerda e a esquer-
da, o PMDB e o PT numa grande coalizão social-democrata que
ficaria muito tempo no poder. Nunca imaginei que ele fosse virar
o campeão da direita, aliando-se com o ACM [Antônio Carlos
Magalhães] e essa gente toda. Para mim, a virada política dele foi
e tem sido uma decepção. Mas é preciso salientar que Fernando
nessa época era um grande intelectual, sempre interessado por
tudo, um homem muito simpático e solidário. Junto com outros
amigos, ele e Ruth [Cardoso] nos ajudaram na chegada e na nossa
adaptação. Foram “gente fina” comigo e com minha família em
São Paulo. Ruth também foi uma excelente companheira de
trabalho no Cebrap.

E como ocorreu seu ingresso no Cebrap e na Unicamp?


A Ford Foundation, que financiava a maioria dos projetos
de pesquisa do Cebrap desde 1969, pediu para uma comissão,
dirigida pelo Albert O. Hirschman, fazer um relatório sobre a
instituição, para ver como é que a coisa estava indo, as pers-
pectivas depois da anistia, e coisa e tal. Uma das conclusões do
relatório, datado de 1983, foi a de que faltava um historiador

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

no staff permanente. Eu já tinha feito palestras no Cebrap, o


Roberto Schwarz e o Chico de Oliveira tinham convivido comigo
na França e sabiam que eu estava querendo voltar. Então, [José
Arthur] Giannotti foi a Paris e me convidou para vir para o Ce-
brap. Pouco depois, João Manoel Cardoso de Mello me convidou
também para entrar na área de História Econômica do Instituto
de Economia. Aí eu vim, com minha família, em 1986.

O Cebrap, na verdade, nunca teve um historiador “de plantão”.


Nunca houve uma área de História, não é?
Não, não tinha, eu criei a área…

Por que você acha que isso ocorria no Cebrap?


A Ciência Política era muito forte e dava conta do recado.
Além do mais, durante a ditadura e a transição, havia muitos
pesquisadores que possuíam uma grande cultura histórica e
trabalhavam juntos: Fernando Henrique, Cândido Procópio,
Giannotti, Juarez Brandão Lopes, Paul Singer, Chico de Olivei-
ra… E eles também estavam em contato com o Boris Fausto e
o Fernando Novais. Creio que o fato de eu chegar em São Paulo
e também ter a dupla formação em História e Ciência Política
contou nessa minha entrada nessa instituição.

E você estava louco para começar?


Claro, eu estava com uma fome danada de vir para o Brasil e
de entrar no debate sobre a transição, a Constituinte, etc. Eu já
cheguei me metendo de cabeça na discussão geral.

Você entrou mais como cientista político?


Isso. Meu primeiro projeto no Cebrap foi para estudar a
questão do federalismo na Constituinte. Foi, aliás, o [Luiz Carlos]
Bresser que apoiou o financiamento da pesquisa, como secretário
de governo do Montoro. A área de História é difícil de financiar. Só

80
ENCONTROS

agora, nos últimos anos, é que se constituiu uma área autônoma


da disciplina. Ela era meio submersa, porque é difícil arranjar
financiamento, a gente vivia das sobras das outras áreas.

Não foi por acaso que a área de História se constituiu na gestão


do Giannotti…
Não foi por acaso. O Giannotti sempre foi muito sensível à
reflexão dos historiadores. Aliás, eu acho que o Giannotti põe a
História acima das outras disciplinas, fora a Filosofia, é claro. Ele
é um grande leitor de livros de História, e sempre me tratou com
muita consideração e me deu muito espaço no Cebrap.

Depois das dificuldades e transformações, atualmente, o que


é forte no Cebrap?
Acho que a área de Demografia continua importante e a área
de Filosofia também, porque nas duas áreas há dois coordena-
dores de grande peso intelectual, a Elza Berquó e o Giannotti.
Outra coisa que o Giannotti criou, e que tem muita importância,
é o programa dos bolsistas. A Capes dá seis bolsas por ano, num
programa de dois anos, então nós temos 12 pós-graduandos por
ano, recrutados através de um concurso nacional. Isso é uma
coisa que deu certo. Já forma uns oitenta pós-graduandos, gente
que fez seu caminho. O Amaury Bier, do Ministério da Fazenda,
o Ronaldo Porto Carreiro, procurador do Estado, a Leda Paulini,
professora da FEA na USP, foram bolsistas do Cebrap e o mérito
do programa é todinho do Giannotti.

O Cebrap está em fase de grande mutação, apostando na cria-


ção de um centro de estudo da metrópole com financiamento
da Fapesp…
Se sair o financiamento, muda inteiramente o Cebrap, porque
é um projeto de 11 anos e ele está articulado com a Fundação
Seade, com a FAU, com o Sesc, com a TV Cultura, todos são nos-

81
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

sos parceiros. Como vai ficar depois, eu não sei. Mas vai mudar
radicalmente a instituição e talvez a torne menos pluridisciplinar,
o que será ruim.

E como ficou a área de Ciência Política, que sempre foi a mais


importante na instituição?
Deu uma virada institucionalista. É uma coisa estreitamente
quantitativa, neopositivista, a-histórica, que não me embala. A
área de Ciência Política, que era o polo aglutinante do Cebrap,
a ponto de dar origem a duas outras instituições – o Idesp, com
a Maria do Carmo Campello e o Bolívar Lamounier, e o Cedec
[Centro de Estudos de Cultura Contemporânea], com o [Fran-
cisco] Weffort –, que teve depois Guillermo O’Donnel, Fábio
Wanderley, perdeu agora o diálogo com a História, e até com
as outras correntes da Ciência Política, perdeu o contato com a
atualidade. Francamente, esse tipo de abordagem não tem nada
a ver com a tradição do Cebrap. Nessa maré da Ciência Política
eu não entro.

Nas últimas duas décadas, o Cebrap produziu diversos quadros


políticos e administrativos – sobretudo um presidente da Re-
pública –, para vários governos de diversos partidos. Será que
o desgaste político interferiu de certo modo na instituição?
Talvez. Mas eu acho injusta a tendência de assimilar o Cebrap
ao governo. Também é verdade que se trata de uma instituição
pequena, com dez ou quinze pesquisadores sêniores, de onde
saíram um presidente da República, alguns de seus assessores
e ministros, secretários de Estado no governo Montoro, e as-
sessores da prefeita Erundina. Isso desestabilizaria o staff de
qualquer centro de pesquisa. As tensões internas aumentaram
muito depois da briga da esquerda com o governo FHC. Agora,
tem uma outra coisa no Cebrap que é importante. Muito mais
importante, às vezes, que o próprio Cebrap. É a revista do Cebrap.

82
ENCONTROS

Ela é uma referência, e vai ficar. Se um dia o Cebrap ficar mesmo


mal das pernas e fechar, eu sou favorável a que se continue a
publicar a revista.

Podemos falar de suas investigações? Suas pesquisas têm como


pano de fundo a questão do trabalho…
É o cerne do livro O trato dos viventes e de boa parte do que
tenho escrito até agora. O livro, no fundo, é sobre a questão do
trabalho e seus desdobramentos políticos, sociais e culturais.
Na realidade, eu procurei elaborar um eixo de interpretação
da História do Brasil a partir da organização do mercado de
trabalho. Assim posso cobrir o período que vai de 1550 a 1950:
vem o tráfico negreiro, depois acaba o tráfico em 1850 e engata
a imigração, termina a imigração em 1940 e engata a legislação
trabalhista, quando o mercado de trabalho se territorializa de
vez. Entre 1550 e 1940 o mercado brasileiro não está territoriali-
zado. Primeiro, ele é dependente do tráfico e, em seguida, após
1850, ele depende da imigração. Há uma cilada historiográfica
que consiste em transpor para o passado as fronteiras atuais do
território brasileiro, como se já se soubesse, desde o desembarque
de Cabral, que as feitorias virariam uma colônia, e a colônia se
transformaria num país independente, numa nação do jeito que
está aí. O papel do historiador é explicar que as feitorias nem
sempre se transformam em colônia. O Estado da Índia, parte
principal do ultramar português até meados do século XVII,
continuou sendo uma constelação de feitorias. E olha que em
Goa, capital do Estado da Índia, havia bispos, vice-reis desde
1505, tribunal da Inquisição desde 1560, ou seja, muitos instru-
mentos que, em princípio, prestam-se para o exercício de um
poder centralizador. A título de comparação, lembro que o posto
de vice-rei só se consolidou no Brasil em 1720, e que por aqui
nunca houve tribunal da Inquisição. Poderia lembrar também
que Macau foi fundada em 1557, três anos após São Paulo, e ficou

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

assim, uma cidade ilhada com somente 2% de seus habitantes


falando português, durante quatro séculos e meio, até o final da
“colonização” portuguesa em 1999. Enquanto São Paulo virou
esse “mundão”. Não dá para entender a construção do Brasil
sem associá-la à destruição de Angola, de onde veio, pelo tráfico
negreiro, a maior parte da energia humana que transformou a
terra e a sociedade brasileira. Achar que a escravidão era apenas
um problema interno, ou que o tráfico negreiro não tinha grande
importância, como escreve o [Jacob] Gorender, me parece um
tremendo equívoco.

E o inverso disso, dito pelo Fernando Novais, que a escravidão


é esticada pelo tráfico?
Obviamente, eu acho que ele tem razão. Mas o problema
é que ele não tira todas as consequências dessa análise. Se ti-
vesse tirado, sua tese central – a ideia de que o sistema colonial
mergulhava numa crise irremediável no final do século XVIII –
ficaria abalada. Por quê? Porque o tráfico negreiro e o segmento
sul-atlântico continuam a ter um papel fundamental após a
Independência. O sistema colonial se transforma, mas seus
componentes não desaparecem de um só golpe entre 1808 e 1822.
Escrevi isso na resenha que fiz sobre o livro do Novais, logo em
1980. Para mim, o ponto central é o seguinte: Angola não é uma
coisa externa, Angola constitui o centro do que eu chamo de “Ar-
quipélago de Capricórnio”, que ainda não é o Brasil “do Oiapoque
ao Chuí”, mas uma rede de feitorias sul-atlânticas composta de
uma zona de produção escravista na América Portuguesa, e de
uma zona de reprodução de escravos em Angola e na Costa da
Mina. As duas zonas são unidas pelo mar, pelos navios, através
de um comércio bilateral baseado em trocas diretas e no sistema
de ventos e correntes, gerado pelo anticiclone de Capricórnio,
que os leitores de Amyr Klink já conhecem e muitos historia-
dores deveriam conhecer. Essas duas zonas continuam unidas

84
ENCONTROS

pelo tráfico negreiro até 1850. Luanda era o segundo porto do


comércio externo-brasileiro até o final do século XVIII, o primeiro
porto era Lisboa; e Luanda continua sendo o segundo porto das
trocas externas depois disso, até 1850. O primeiro porto não é
mais Lisboa, passa a ser Liverpool, mas a posição de Luanda, de
Angola, não mudou no âmbito das trocas externas brasileiras.

Angola é a centralidade…
Angola e os portos africanos de tráfico são a centralidade,
porque é a partir deles que se forja a unidade das diferentes
capitanias e, depois, das diferentes províncias do Império do
Brasil. Isso se dá em três tempos. Num primeiro tempo, o Estado
do Grão-Pará e Maranhão, ou seja, parte do atual Rio Grande do
Norte, o Ceará, o Piauí, o Maranhão e o Pará, incluindo aí toda
a Amazônia, não se comunicava com o restante do Brasil por
causa das correntes marítimas adversas. Ao inverso, as correntes
do anticiclone de Capricórnio uniam os enclaves escravistas do
Nordeste e do Rio de Janeiro a Angola e à Costa da Mina. Até o
final do século XVII, a soma das histórias das diversas capitanias
não é suficiente para entender a história da América Portuguesa.
A conta que proponho é mais complexa, e consiste na operação
seguinte: tome-se o total das capitanias da América Portuguesa,
subtraia-se o Rio Grande do Norte, o Ceará, o Piauí, o Mara-
nhão e o Pará (a Amazônia) e adicione-se Angola ao restante
do Brasil. O que existe na América Portuguesa são economias
regionais e comunidades dispersas. Gente que eu chamo, como
Brito Freire e outros autores seiscentistas, de “brasílicos”, não
de luso-brasileiros ou de “brasileiros”. Essa gente “brasílica” já
possuía uma identidade diferente da dos reinóis, dos portugueses
de Portugal – como os moradores de Goa, de Macau e os outros
luso-asiáticos espalhados na imensidão do Estado da Índia –, mas
não tinha ainda ideia de seu pertencimento a uma comunidade
única encravada na América Portuguesa. Isso é a economia do

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ouro que vai engendrar, num segundo tempo, porque o ouro


une o mercado brasileiro. Nesse sentido, o período do ouro não
tem nada a ver com os outros “ciclos”, porque cria uma ligação
inter-regional, uma divisão inter-regional do trabalho que não
existia antes na colônia. A economia do ouro dá lugar a uma
força centrípeta que vai unir o Estado do Grão-Pará ao Estado do
Brasil, mas o tráfico negreiro continua irrigando e amarrando a
economia da América Portuguesa. Enfim, vem o terceiro tempo.
Entre 1822 e 1850, a gestão do espaço sul-atlântico, composto
da parte sul-americana e da parte africana, ganha outras im-
plicações. Porque o Brasil se tornou um Estado independente,
um Estado negreiro independente, o que faz toda a diferença
com o resto dos novos países americanos. A unidade nacional
está sustentada pela dependência comum que as principais
províncias têm do braço nacional, do tráfico negreiro. Escrevi
isso num artigo publicado em 1979, “O tráfico e a unidade na-
cional brasileira”, que é a segunda parte da minha tese. Procuro
mostrar que o Império se mantém unido na medida em que a
Coroa empurra com a barriga a questão do tráfico até 1850. De
fato, a Coroa e o governo central do Rio de Janeiro se mantêm
num equilíbrio perverso, prometendo aos ingleses que o tráfico
negreiro vai acabar logo e dizendo às oligarquias escravistas
regionais que esse comércio não vai acabar nunca. Daí o sub-
título do meu livro, “Formação do Brasil no Atlântico Sul”, e a
primeira frase do prefácio dizendo: “o leitor que bateu o olho na
capa do livro estará intrigado com o subtítulo. Quer dizer então
que o Brasil se formou fora do Brasil?”. Esse é o paradoxo que eu
tento explicar. Por isso, dou essa centralidade toda a Angola. De
lá vinha a maior parte da energia humana que tocava as coisas
no Brasil. Nesse sentido, eu entendo que só houve um ciclo da
economia brasileira: o ciclo do tráfico negreiro, que vai de 1550
a 1850. Todos os outros ciclos – do açúcar, do tabaco, do ouro,
do café – são subciclos que derivam e dependem desse ciclo

86
ENCONTROS

mais amplo do tráfico negreiro. Isso quebra a periodização e


amplia o território que deve ser estudado: a continuidade de
nossa história colonial não se restringe à continuidade de nosso
território colonial. Também entendo que os brasílicos e depois os
brasileiros – e não só os portugueses – participaram diretamente
da pilhagem do território e dos povos angolanos e africanos de
outras áreas do continente.

Essa ideia de que o período do ouro começa a dar certa identi-


dade comum à Colônia não é nova…
Essa é a tese central de dois livros fundamentais publicados
há exatos cinquenta anos: Formação econômica do Brasil, de
Celso Furtado, e a Formação da literatura brasileira, de Antonio
Candido. Mas o problema é que, ao internalizar a economia, ao
dar início às trocas inter-regionais e envolver os moradores das
diferentes capitanias numa percepção comum de sua cultura
e de seu destino, o ouro ofusca o apêndice angolano. Ora, a
Independência vai de novo dar relevo à bipolaridade que estava
bem visível no século XVII, porque entre o polo da reprodução
de escravos e o polo de produção escravista havia o oceano
Atlântico. E a separação só aparece com nitidez quando uma po-
tência estrangeira se mete no meio do oceano, no meio dos dois
pólos: os holandeses no século XVII, e os ingleses, a Royal Navy,
na primeira metade do século XIX. O contexto do século XVIII
também ofuscou a historiografia brasileira, fazendo crer que
estava tudo amarrado por dentro desde aquela época. No fundo,
o equívoco fundamental é o paradigma de 1808. É achar que a
abertura dos portos e a chegada da corte mudam radicalmente
o quadro anterior. Dizendo isso, estou consciente que divirjo
de toda a historiografia brasileira, desde o Instituto Histórico
e Varnhagen, passando por Roberto Simonsen e Caio Prado Jr.,
Celso Furtado, Fernando Novais, que privilegiam a data de 1808, a
ruptura decisiva que teria ocorrido nessa data. Mas os dados são

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

claros: metade ou 2/5 do comércio externo continua sendo com


a África, como antes. Para mim, a ruptura, a autonomia brasileira
com o antigo sistema colonial ocorre num processo mais lento
e mais longo que vai de 1750 a 1850. O ano de 1750 é quando a
Costa da Mina cai na mão da Bahia, e Angola, e principalmente
Benguela, vira quase colônia do Rio de Janeiro e de Pernambuco,
acentuando uma situação iniciada na segunda metade do século
XVII. Abocanhando antes da Independência um segmento do
comércio colonial, ou seja, boa parte do tráfico, os brasileiros se
protegem, depois da Independência, da periferização econômica
imposta pela Inglaterra. Como a Inglaterra se retirou do comércio
negreiro, o Brasil quase que monopoliza esse mercado africano
e se serve dele para equilibrar seu comércio com a Inglaterra.

O Brasil é herdeiro de toda a rede de tráfico das potências eu-


ropeias montada no século XVIII…
Claro, isso tudo cai na mão do Brasil no século XIX, os dados
quantitativos e qualitativos são claros.

E o café dá uma sobrevida para isso.


É, mas tudo isso vem do negócio negreiro. A mudança de
padrão é em 1850. Aí é que os três terços da economia brasileira
se integram no comércio externo dominado pelas potências
europeias e os Estados Unidos. A ideia da ruptura de 1808 fica
questionada por essa interpretação, que também questiona, por
tabela, a ideia da “crise do sistema colonial”, a centralidade da
Inconfidência Mineira, e por aí afora.

Mas a questão do trabalho tem outros condicionantes além


do lado comercial propriamente dito, ela não se restringe só
a isso…
Sem dúvida, mas não se pode estudar de forma separada.
Por exemplo, para mim não se pode estudar a legislação indíge-

88
ENCONTROS

na de forma autônoma, bem como a legislação sobre a terra. A


legislação indígena, como, aliás, a legislação sobre imigração no
século XIX, se encaixa na problemática do tráfico e do escravismo.

Para quem não leu o seu trabalho essas suas ideias podem
parecer uma determinação econômica da história, um econo-
micismo de sua parte…
Mas quem ler o livro vai ver que não é…

Faço essa colocação justamente para que você esclareça…


Entendo a sua pergunta e vou tentar respondê-la. Segui a
trilha da questão do trabalho porque ela me permite estudar o
Brasil de 1550 a 1950. Há outros eixos que já foram estudados
e outras interpretações que poderão vir a ser elaboradas por
outros pesquisadores. Mas a minha é essa aí. O livro leva em
conta a matriz espacial, a-territorial, da economia colonial, mas
não está pautado pelo economicismo. Essa matriz espacial é
também confirmada pela reorganização das dioceses portugue-
sas no Atlântico, pelo papa Inocêncio XI, no último quartel do
século XVII. O novo bispado do Maranhão (1677) é sufragâneo
do arcebispado de Lisboa até a Independência, por causa dos
problemas de comunicação marítima com o arcebispado da
Bahia. Em compensação, o novo arcebispado baiano (1676) inclui
as dioceses de Olinda e Rio de Janeiro e, mais ainda, o bispado
de Congo e Angola, e a diocese de São Tomé, englobando toda
a Costa da Mina. Ou seja, as fronteiras das dioceses seguem a
geografia comercial do Atlântico e as rotas do tráfico negreiro.
Não há registro de que o papa Inocêncio XI seguisse alguma
orientação economicista em especial… [risos]. Ainda sobre a
religião, há um capítulo inteiro, o capítulo 5, no qual eu mostro
como é equivocado estudar o debate da Igreja sobre a escravidão,
sem lembrar que os missionários jesuítas, os bispos, também
tinham a tarefa de evangelizar Angola. O capítulo se chama “A

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evangelização numa só Colônia”, que é uma paráfrase da doutrina


de Stalin, “o socialismo num só país”. Não para comparar as duas
coisas, o que seria absurdo, mas para explicar que a Igreja e os
missionários abandonam a evangelização dos angolanos em
Angola, para se concentrar na evangelização deles, e dos outros
africanos, no Brasil, terra cristã. Isso está explicitado na docu-
mentação dos jesuítas, e o padre Antônio Vieira explica a ideia
com a maior clareza, dando um sentido cristão e uma poderosa
justificação ideológica ao tráfico negreiro. A partir do momento
em que o angolano era carimbado (a palavra vem do quimbundo)
com ferro em brasa, e o traficante pagava o imposto régio de sua
exportação de Luanda, não havia mais razão para discutir muito
sobre a legalidade de seu cativeiro no Brasil. Daí também o fato
de os jesuítas protegerem os índios e não se incomodarem muito
com a escravidão dos negros: o cativeiro dos africanos protegia
os índios, liberando-os da demanda de trabalho compulsório
exercida pelos colonos. O capítulo 4 mostra como o choque
microbiano e viral fragilizou a população indígena, enquanto
os africanos resistiam mais às doenças tropicais. As pesquisas
bacteriológicas e virais indicam que uma série de doenças eu-
ropeias e africanas atingiu a população indígena, fazendo com
que ela parecesse “inadaptada” à escravidão. Na conclusão, há
uma análise da situação dos mulatos nos dois lados do Atlântico,
explicando como havia condições para a estratificação social
deles no Brasil, mas em Angola, não.

Apesar de sua formação atípica de historiador brasileiro que


não teve aula de História do Brasil, você evidentemente leu com
muita atenção Caio Prado Jr., Sérgio Buarque e Gilberto Freyre.
Li todos e hoje tenho uma ideia bem mais clara sobre a in-
terpretação deles. Penso que eles pagaram um tributo excessivo
a um enfoque que não distinguia suficientemente a Primeira
Expansão Colonial (1450-1820) da Segunda Expansão Colonial

90
ENCONTROS

(1870-1956). A ideia do território como valor econômico não


existia na Primeira. Ninguém estava querendo conquistar espa-
ço vazio de mercadorias, o que se queria eram áreas mercantis
acessadas através de feitorias. A distinção entre “colônia de
exploração” e “colônia de povoamento” só vale para a Segunda
Expansão Europeia. Foi concebida pelo Leroy-Beaulieu em 1874,
justamente para caracterizar o que estava ocorrendo na África e
na Ásia naquela época. Caio Prado Jr. introduziu essa distinção
no estudo do Brasil colonial, Fernando Novais retomou-a e os
manuais de História do Brasil espalharam-na pelo país inteiro.
Mas é uma ideia equivocada para explicar o Antigo Sistema
Colonial. A distinção deriva da ideia de Estado-nação que é
típica do século XIX. Ora, antes disso, a expansão portuguesa se
baseava num sistema de domínio do mar, de controle das trocas
mediante feitorias plantadas em alguns pontos-chave do planeta.
Você então pode perguntar: por que o Brasil tomou uma grande
dimensão desde o século XVII? Porque Angola estava sendo
destruída para construir o Brasil, numa política de repovoa-
mento já experimentada nas Canárias e depois nas Antilhas. No
médio prazo, os nativos são exterminados ou empurrados para
longe, e a região é repovoada por colonos e escravos africanos
integrados ao processo colonial. Tudo vem de fora: a planta a
ser explorada – a cana-de-açúcar –, a técnica de exploração e o
produtor direto, os africanos cujos contingentes são renovados
e ampliados através do tráfico. A maioria dos livros de História
do Brasil segue uma continuidade calcada na história territorial,
onde não aparece a importância do que estava rolando fora
do território. Fora do território, mas dentro da sociedade. Isto
porque as trocas bilaterais – trocas de gente, de mercadorias,
de armas e de soldados – unem as duas partes do Atlântico Sul
num só espaço colonial. Sérgio Buarque também está marcado
pelo mesmo enfoque “territorialista”. No capítulo 1, eu comento
a interpretação que ele dá à História do frei Vicente Salvador.

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Seguindo Capistrano de Abreu, ele diz que frei Vicente escrevia


“histórias do Brasil” e não uma “História do Brasil”. Para Sérgio,
frei Vicente Salvador ainda estava preso a um estilo arcaico,
herdado dos cronistas medievais, que não via o todo e oferecia
uma visão fragmentada da realidade. Cabe então a pergunta: por
que um cronista escrevendo no começo do século XVII, quando
o centro do império ultramarino era a constelação de feitorias do
Estado da Índia, iria imaginar que as feitorias do litoral atlântico
sul-americano formariam o Brasil? Como escrever uma História
do Brasil quando ainda não havia Brasil?

Eles ficam presos à história territorial e nacional…


Claro, que é uma ideia do século XIX, da colônia que vira Esta-
do-nação. Eu acho que a historiografia brasileira ainda não tirou
as consequências do 25 de abril, da descolonização portuguesa.
Porque Macau vai voltar para a China, Goa já foi digerida pela
Índia, Angola virou de novo uma nação africana e Moçambique
também. Não existe luso-tropicalismo pelo mundo, só existe o
luso-brasileirismo no Brasil. Portanto, é preciso levar em conta a
singularidade do Brasil no contexto do império português. Aqui,
só aqui se formou uma nação nova, híbrida, pós-colonial e essa
especificidade não tem sido suficientemente destacada. Resenhei
o Livro dos prefácios de Sérgio Buarque, e notei que no livro, in-
cluindo textos antigos e mais recentes dele, não há nada sobre
o falhanço da colonização portuguesa na África. Ora, o Sérgio,
como toda a geração dele, foi criado na ideia de que Angola e
o Moçambique compunham proto-nações que dariam lugar a
países meio europeus. Mas a presença portuguesa evaporou-se e
Angola e Moçambique se reafricanizaram. Isso demandava uma
reflexão nova sobre a singularidade do Brasil, nação híbrida, no
contexto do império português. Ficou faltando essa reflexão na
obra do Sérgio Buarque.

92
ENCONTROS

E o Gilberto Freyre?
É ainda mais complicado. Mais complicado, porque em 1974,
quando estourava a descolonização portuguesa, aparecia o pre-
fácio dele à edição de bolso francesa de Casa-grande & senzala
onde ele reiterava suas teses sobre o luso-tropicalismo, sobre a
adaptação dos portugueses aos trópicos. Naquela altura, nem
o Vaticano acreditava mais nisso. Em 1970, no auge da guerra
colonial portuguesa, o papa Paulo VI teve a audácia de encontrar
os dirigentes do MPLA [Movimento Popular para a Libertação
de Angola], da Frelimo [Frente de Libertação de Moçambique]
e do PAIGC [Partido Africano para a Independência da Guiné e
Cabo Verde] para ver se garantiria ali a continuidade do catoli-
cismo depois do desabamento da colonização portuguesa. O
recenseamento de 1960 mostrava que só havia 1% de mulatos
entre os habitantes de Angola, menos do que na África do Sul do
apartheid, onde havia 9%.

Na introdução do segundo volume da História da vida privada


no Brasil, você começa falando do Gilberto Freyre…
Penso que Sobrados e mucambos é um grande livro, pelas
razões indicadas nessa introdução a que você se refere. Ao contrá-
rio de Casa-grande & senzala, em Sobrados e mucambos há uma
periodização e uma problemática bem amarradas, apoiadas na
documentação correspondente. De qualquer modo, eu entendo
que Sobrados e mucambos é um livro que deve ser admirado e
não imitado. Stanley Stein critica Casa-grande & senzala e Gil-
berto Freyre, sobretudo aquela ideia da escravidão doméstica
no Nordeste. Joaquim Nabuco, em Minha formação, já chamava
a atenção para as diferenças entre a escravidão que existia nos
engenhos de Pernambuco na sua infância, algo mais próximo da
servidão, e a escravidão predominava nas fazendas de café de São
Paulo, muito mais dura porque estava mais conectada à pressão
do mercado internacional. Gilberto Freyre não se embaraçou

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com a distinção estabelecida por Nabuco, que ele, entretanto,


admirava, e generalizou sua análise para o Brasil inteiro e, mais
tarde, para todo o império português. De qualquer modo, Ca-
sa-grande & senzala continua sendo um grande livro. Mas deve
ser lido com espírito crítico e à luz dos avanços da historiografia
no último meio século.

O que você achou do Dialética da colonização, do Alfredo Bosi?


É uma tentativa interessante de sistematizar as questões
todas que ele aborda, ligar História e Literatura. Mas a especi-
ficidade brasileira some um pouco no livro dele. Por exemplo,
os jesuítas estavam engajados numa empreitada de escopo
mundial. Não vieram só para o Brasil. Como disse acima, acho
complicado entender a atitude dels sobre a escravidão sem
considerar que eles também tinham missões em Angola de
onde faziam tráfico negreiro para o Brasil. A oposição que ele
estabelece entre o padre Antônio Vieira e o padre Andreoni, o
Antonil, não me parece pertinente. É certo que Antonil pensava
o mundo da mercadoria no nível microeconômico, na esfera
do engenho de açúcar. Mas também é verdadeiro que Vieira era
muito atento à mercadoria, às realidades econômicas, só que
no nível macroeconômico. Se Bosi tivesse utilizado a documen-
tação formada pelas cartas de Vieira, entenderia que ele é um
grande estadista, um grande patriota, e talvez por causa disso,
um homem frio e realista. Parafraseando o dito de Sartre sobre
o marxismo, o padro Antônio Vieira sempre entendeu o tráfico
negreiro como o horizonte inultrapassável de sua época. Foi ele
quem elaborou uma das mais audaciosas justificativas do tráfico
negreiro da Época Moderna.

Como foi trabalhar como coordenador do volume II da coleção


História da vida privada no Brasil?

94
ENCONTROS

Ah, foi desafiador para todos nós! Eu, pessoalmente, tinha


uma ideia que era difícil de implementar, porque pressupunha
uma reflexão quase solitária ou discussões intensas no âmbito
de uma equipe com pontos de vista muito afinados. Eu pensava
que se podia entender a vida privada no Brasil como um proces-
so enviesado por três legados históricos: a Inquisição ibérica, o
escravismo luso-brasileiro e o autoritarismo contemporâneo.
Então, nós iríamos escrever uma “História da vida privada no
Brasil, do primeiro visitador inquisitorial (Heitor Furtado de Men-
donça, 1591) ao AI-5 (1968)”. Como é natural, houve diferenças
de abordagem e de pontos de vista no seio do comitê de redação.
Os organizadores dos outros volumes, que eram da USP, haviam
sido orientandos ou alunos de Fernando Novais, coordenador da
coleção e formavam um grupo mais homogêneo. Mas foi muito
bom trabalhar em equipe, discutir livros e rever, praticamente,
toda a historiografia brasileira.

Algumas resenhas feitas sobre a coleção – inclusive escritas


para a revista do Cebrap – mostram que seu volume caminharia
mais para uma História Social “tradicional” e os outros para a
História Cultural.
Não creio. Quem diz isso deve acreditar que o uso de história
quantitativa exclui a reflexão no campo cultural. Os leitores do
livro sabem que não é bem assim. O que nós fizemos no nosso
volume foi tirar o máximo de proveito dos dados do recensea-
mento geral de 1872, que é o maior recenseamento de sociedade
escravista que existe nas Américas. Eu e o Ciro Biderman cruza-
mos os dados do recenseamento e esclarecemos alguns pontos
importantes da historiografia social e cultural. Por exemplo, ficou
claro que em 1872 houve manipulação no censo para apresentar
a totalidade de escravos nascidos no Brasil como cristãos, para
não deixar registro de nenhum escravo branco, etc. Os dados
quantitativos também permitiram observar que, no final do

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Império, os casais brasileiros tinham menos medo da Igreja e,


à diferença de seus avós e bisavós, transavam no mesmo pique
durante a Quaresma [risos]. Ou seja, com a análise quantitativa
se pode chegar a uma esfera da intimidade, a uma evolução de
costumes, que só os padres confessores do Império perceberam.

No conjunto, como você avalia o resultado final da obra?


Penso que o meu próprio trabalho podia ser melhor. Sempre
pode ser melhor. Nós tivemos apoio total do editor, uma equipe
técnica de primeira, boas condições de trabalho e nós, os orga-
nizadores, fomos pagos durante dois anos. Em todo caso, fiquei
contente porque pude reunir excelentes estudos no meu volu-
me. Juntei historiadores de vários estados brasileiros, baseado
apenas no mérito de seus trabalhos, aliás, alguns deles somente
conheci pessoalmente mais tarde. E todos colaboraram muito
na elaboração do livro.

E essa questão do seu estilo, do seu modo de escrever? Na sua


tese de livre-docência, um membro da banca estranhou as
palavras de gíria que você empregava.
É verdade. Houve um membro da minha banca que chamou
a atenção para o emprego de palavras e expressões de aparência
coloquial. Mas foi uma troca de ideias interessante, porque eu
demonstrei que as expressões em questão eram utilizadas pelos
clássicos portugueses do século XVI e XVII. Aliás, no meu livro
eu assinalo com um asterisco, logo no pé de página, as palavras
e expressões dessa natureza que introduzi no texto. Mas, geral-
mente, penso que existe um certo equívoco nessa discussão sobre
o estilo. No meio universitário, há quem escreva de qualquer
jeito e há quem escreve bem. Mas há também quem pensa que
escreve bem e está sendo apenas pedante. Não basta escrever
palavras em itálico para criar conceitos, não basta tascar “nós
pensamos…”, em vez de “eu penso…”, ou escrever “decidindo-

96
ENCONTROS

-nos a estudar esse assunto…”, para escrever bem. Jânio Quadros


também sabia escrever assim… Escrevi e reescrevi meu livro
várias vezes, refletindo sempre sobre a forma e o emprego do
vocabulário. O trabalho do historiador tem uma especificidade
narrativa que deve ser assumida e refletida.

Como você se sente na condição de historiador do período


colonial e escrevendo em jornais sobre a atualidade?
Há muito tempo que escrevo nos jornais e nas revistas. Sem
citar exemplos conhecidos, é bom lembrar que essa prática existe
entre os historiadores desde o nascimento da imprensa no Brasil.
É verdade que se o historiador escreve patacoadas nos jornais,
errando redondamente sobre o presente, ele compromete sua
reputação como estudioso do passado. Também é certo que ar-
tigos com opiniões fortes, politicamente engajadas, podem ser
considerados prejudiciais para a reputação do historiador. Mas
como o Brasil é um escândalo social permanente, minha decisão
é clara: prefiro tomar posição sobre a atualidade, e eventualmente
comprometer minha reputação de historiador, a ficar quieto.

97
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

A faixa presidencial
e o nó nas utopias

98
POR LAURA GREENHALGH
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

A faixa presidencial
e o nó nas utopias
POR LAURA GREENHALGH

Publicada originalmente no
jornal Estado de S. Paulo,
em 6 de março de 2005

A posse do presidente Tabaré Vázquez, do Uruguai, é motivo de


festa na centro-esquerda latino-americana?
É motivo, sim. O processo uruguaio é interessante porque não
se trata apenas de mais um socialista chegando ao poder, mas
de todo um conjunto de pessoas, a linha de frente do combate
à ditadura. O parlamentar que presidiu a posse de Vázquez,
senador José Mujica, foi um líder tupamaro preso e torturado
anos atrás. É essa gente que está fazendo a transição política no
país. Entre parênteses, ter sido preso e torturado são condições
que nem sempre rendem autoridade moral ao indivíduo. Me-
nem foi preso com outros peronistas e deu no que deu. Quero
chamar a atenção para outro aspecto: o Uruguai pode ter um
papel relevante na manutenção do entrosamento entre Brasil
e Argentina, atuando como um ator político de mediação entre
os dois países.

100
ENCONTROS

Lula, Kirchner, Lagos: o senhor acha que o relacionamento


desses chefes de Estado pode levar à formação de um bloco
geopolítico?
É possível. Devemos considerar que na mesma festa está
também o coronel Hugo Chávez, cuja biografia é bem diferente.
Evidente que os quatro presidentes fazem a região pender para
a esquerda, porém vamos ver o que essa inclinação traz no seu
bojo. Traz uma maior independência em relação aos Estados
Unidos? Isso é possível e até legítimo. Mas que também se
providencie o fortalecimento da democracia, da liberdade de
imprensa, da autonomia do Legislativo, dos direitos humanos,
dos direitos do consumidor, da preservação ambiental...

Isso pode estar sendo deixado de lado?


Em alguns momentos, é o que transparece. Dou um exemplo:
houve o rompimento de relações entre Uruguai e Cuba em 2002
porque o presidente Jorge Batler, antecessor de Vázquez, havia
dito que era preciso ter observadores das Nações Unidas monito-
rando a situação dos direitos humanos na ilha. Cuba achou tudo
isso insultuoso, e as relações foram rompidas. Nesta semana, o
primeiro ato do recém-empossado presidente uruguaio foi justa-
mente reatar relações, só que a situação na ilha não melhorou, e
isso é fato. O presidente Lula, logo no início de seu governo, teria
tido uma conversa em particular com Fidel, tratando da questão.
Nesse último verão, seus ministros foram descansar em Cuba.
O posicionamento do governo brasileiro, no que diz respeito à
liberdade de expressão e aos direitos humanos, deveria ser claro,
principalmente agora que Cuba pleiteia sua entrada no Mercosul.

Com isso, o senhor está dizendo que os presidentes de centro-


-esquerda da América do Sul podem estar se esquecendo das
bandeiras que ergueram no passado?

101
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

É a ressalva que faço. Tudo leva a crer que Fidel Castro deixará
o comando só quando morrer. Isso é uma tragédia para o povo
cubano, que mereceria uma transição política com Fidel vivo,
visando a um futuro mais seguro e menos obscuro. Essa é uma
questão crucial da democracia no continente. A centro-esquerda
latino-americana deveria ter em mente que o povo cubano está
cada vez mais vulnerável à revanche dos americanos, dos exilados,
dos grupos anticastristas, numa situação muito difícil. A transição
não deveria depender do tempo de vida que resta a Fidel.

Ainda em Montevidéu, Lula, Chávez e Kirchner anunciaram


uma "aliança estratégica tripartite", com extensa colaboração
na área econômica. Chávez vem falando de juntar as operações
de petróleo do Brasil e da Venezuela, formando a maior empresa
do setor no mundo. Como é que o senhor vê esses anúncios?
Uma hora esses presidentes terão de parar com o falatório,
rever propostas e remover obstáculos do caminho. Outra alian-
ça anunciada é com a China, a Índia e a África do Sul. Tantas
iniciativas ao mesmo tempo tornam o cenário confuso. Veja,
por exemplo, a candidatura brasileira à secretaria-geral da Or-
ganização Mundial de Comércio (OMC). Está todo mundo em
campanha. Pascal Lamy (ex-comissário de Comércio da União
Europeia) é candidatíssimo, há uma indicação da Ásia e outra
do Uruguai criando problemas à candidatura brasileira, de Luiz
Felipe Seixas Correia. Mas o que dá algum peso à candidatura
de Seixas Correia é o fato de o Brasil dirigir o G20, no qual estão
China e Índia. Só que o candidato uruguaio conta com a simpatia
de países da América Latina, inclusive da vizinha Argentina. Não
há o menor cabimento dois sul-americanos disputarem o posto.

Kirchner celebrou renegociação da dívida argentina com um


índice de adesão de 76%. Isso pode alterar a visão ética que se
tem da moratória em nosso continente?

102
ENCONTROS

Não, porque o remédio é amargo demais. A celebração de


Kirchner foi até moderada, pois ele sabe que os efeitos do calote
ainda serão percebidos por longuíssimo tempo. A moratória
argentina nada tem de ética. Ela não atingiu os banqueiros, mas
ferrou com a vida de 450 mil aposentados italianos que tinham
posto seu dinheirinho em títulos da dívida argentina. Esse drama
não desaparece assim, da noite para o dia – daí Kirchner dizer
que "a moratória acabou, mas o inferno, não". O Brasil paga
juros altos até hoje em função da moratória de 1987 e por causa
do confisco do Collor. Dar calote também significa submeter-se
a chantagens duradouras.

Como é que o senhor vê o encontro do ministro José Dirceu


com Condoleezza Rice, ocorrido em Washington, nesta semana?
É importante frisar que a iniciativa partiu dela. Esse foi o pri-
meiro encontro da chefe do Departamento de Estado com uma
autoridade latino-americana. Certamente teve a intermediação
de Robert Zoellick, segundo homem na hierarquia do Departa-
mento, ex-representante comercial dos EUA na América Latina,
com quem o chanceler Celso Amorim já esteve em negociações
importantes. Não por acaso essa conversa acontece após a
veiculação de notícias, tanto na imprensa americana quanto na
inglesa, sobre a penetração da China na América Latina.

E qual o impacto disso?


É imenso. Novos acordos de exportação de petróleo assinados
recentemente pela Venezuela desativam remessas tradicionais
para os EUA, redirecionando-as para a China. Chávez está
dizendo isso com todas as letras. Essa é uma novidade terrível
para os americanos, pois, desde os anos 20 do século passado,
eles mantinham a estratégia de se servir das reservas de óleo da
América Central e do Caribe, até para economizar as deles, no
Texas. Se a China agora entra no circuito, com sede insaciável não

103
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

só do petróleo da Venezuela, como do cobre do Chile e da soja


do Brasil, isso cria uma situação nova. Não é de estranhar que a
secretária Condoleezza queira falar sobre América do Sul com o
ministro Dirceu. A entrada da China no circuito sul-americano de
trocas comerciais é um dado histórico do mais alto significado.

O dragão chinês está metendo medo?


A China é uma potência que joga sozinha. Ao contrário dos
EUA, que construíram sua hegemonia ao longo do século 20, com
alianças forjadas em duas guerras e um sistema de cooperação
que passou pela criação da ONU, do Banco Mundial, do FMI. A
China é diferente. Última grande ditadura capitalista do planeta,
ela até poderá se beneficiar do eventual desmantelamento des-
se sistema de organizações. Dou um exemplo: a China jamais
jogará a favor do Brasil na questão do Conselho de Segurança
da ONU numa composição de novos membros que também
inclua Japão, Alemanha e Índia. Porque ela não apoia a entrada
do Japão e ponto final. Portanto, a China vem para a América do
Sul com a agenda dela, sem levar muito em conta o Mercosul,
sem sedimentar alianças.

Se compararmos os governos Lula, Lagos, Kirchner e as promes-


sas de Vázquez, todos praticam a ortodoxia econômica, buscam
a austeridade fiscal e tentam saídas para resolver os desequilí-
brios sociais. Nasce uma receita latino-americana de governo?
É bom mesmo não incluir o Chávez nesse grupo... Com o
petróleo no preço em que está, ele conta com rendas extras, o
que lhe permite jogar em faixa própria. Hoje a Venezuela é um
país rendeiro. Quanto ao Brasil, ao Chile e à Argentina, não creio
que haja uma receita comum, mas um momento histórico que
interliga experiências. Embora se notem semelhanças nos pro-
gramas desses governos, as resultantes são muito diferentes. Os
chilenos poderiam estar mais felizes do que demonstram, pois

104
ENCONTROS

vivem a estabilidade econômica associada a um nível de bem-


-estar social elevado para o continente. No entanto, reclamam
do governo do socialista Ricardo Lagos. Já a Argentina sofreu
um processo peculiar e radical, que é o do empobrecimento
sem guerra. Tal processo mudou o status que o país tinha cem
anos atrás! A renegociação da dívida, ou do calote argentino,
foi bem-sucedida, mas não apagará tão cedo as cicatrizes do
povo. É muito mais difícil lidar com gente de classe média que
empobreceu do que com gente pobre que quer melhorar o nível
de vida. A regressão social supera em muito a complexidade da
ascensão social estagnada. Regressão social deu em nazismo, em
fascismo, em coisas muito complicadas.

E como está a relação dos países sul-americanos com os EUA?


A partir do 11 de setembro de 2001, os EUA deixaram de
olhar tanto para a América do Sul porque outras prioridades
se impuseram. Isso deu espaço para uma reordenação interna
latino-americana. Não dá para reescrever a História, mas, se não
houvesse a guerra antiterror, certamente teriam sido maiores as
pressões americanas em cima de Cuba, Venezuela, Colômbia. Por
outro lado, também houve uma mudança interna importante
nos EUA. O eleitorado hispânico, que se identificava com os
democratas, hoje dá sustentação aos republicanos.

Dias atrás, o ex-presidente Fernando Henrique disse, em reu-


nião do Interamerican Dialogue, que os EUA deveriam voltar
os olhos para a América do Sul. Como é que o senhor entende
essa afirmação?
Ele está pedindo diálogo com base em respeito mútuo, não
em intervencionismo. Eu não faria essa calúnia contra ele. Houve,
sim, nos EUA, um abandono da análise das questões sul-ameri-
canas. Lembre-se de que, no primeiro debate entre Bush e Kerry,
a América Latina nem sequer chegou a ser mencionada. Exce-

105
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

tuando o New York Times, grandes jornais americanos reservam


pouco espaço para os temas da região. Estão mais interessados
pelo México e por alguns países da América Central. Também
o debate acadêmico ficou limitado, e Fernando Henrique sabe
disso. Essa situação tende a mudar com Condoleezza Rice, su-
cessora de Colin Powell.

Por quê?
Condoleezza é uma intelectual, uma professora univer-
sitária com experiência administrativa, uma estudiosa com
visão abrangente do mundo, ainda que sua especialidade seja
a Rússia. Powell é, acima de tudo, um militar. Um fato pode
exemplificar o que estou dizendo: foi Condoleezza quem levou
Sérgio Vieira de Mello para ter um encontro discreto com Bush,
antes de ele ser apontado administrador da ONU no Iraque.
Ela fez as apresentações, o que denota a existência de uma
rede própria de contatos. Zoellick, como já disse, entende de
América Latina. O recente anúncio da venda de aviões militares
do Brasil para a Venezuela já foi comentado no Comitê de Re-
lações Exteriores do Congresso americano por Roger Noriega,
subsecretário de Estado para o Hemisfério Ocidental. Ele diz
que o governo acompanha o caso e que as vendas do Brasil
para Chávez não preocupam os EUA. Enfim, logo houve uma
manifestação.

O empenho de Lula em consolidar uma liderança mais à es-


querda na região tem a ver com a afirmação de Chávez de que
está surgindo a "pátria latino-americana"?
Ah, eu não compro esse discurso, não. Como historiador
do Atlântico Sul, eu olho o continente e diviso uma realidade
na América andina, outra realidade na América índia e ainda
outra realidade na América negra, que somos nós, brasileiros.
As ligações mais profundas do Brasil são com a África e com

106
ENCONTROS

as Antilhas. Nosso passado indígena não teve a densidade do


passado inca, asteca, maia, com suas reverberações contínuas.
Portanto, essa grande "pátria latino-americana" não existe. É
uma figura de retórica que dura 200 anos, sem corresponder às
matrizes históricas e culturais.

Matrizes distintas dificultam o processo de formação do Mer-


cosul?
O problema é de outra ordem. Num processo de integração, a
decisão política sempre precede a decisão econômica. Na origem
da União Européia, cujo processo tem 50 anos, derrubaram-se
barreiras alfandegárias porque havia a vontade política inicial.
Depois se criou um parlamento, uma moeda comum, uma nova
constituição, tudo movido pelo espírito político. O Mercosul
partiu de uma realidade até propícia, já que o Brasil se reconhece
como um país platino por ter feito política na região desde os
tempos do Império. Só que a construção do bloco deveria ter
sido acompanhada de maior afinação política entre os países
membros, fortalecida por intercâmbios na área cultural, cien-
tífica e acadêmica, por trocas profissionais mais intensas, por
estruturas jurídicas e tributárias, por tribunais de arbitragem...
Isso tudo ainda não está na ordem do dia. Por isso insisto tanto
na questão da democracia e dos direitos humanos. Hoje, com a
porosidade das fronteiras brasileiras, é crucial que nosso país
possa ter vizinhos com os quais consiga manter diálogos con-
tínuos sobre inúmeros temas, das regras da pesca ao combate
ao terrorismo. Enfim, a agenda é vasta e vai além das afinidades
pessoais entre presidentes.

Esta semana, o embaixador Rubens Ricupero, ainda à frente da


Unctad, ressaltou num seminário em São Paulo a magnitude do
processo de unificação europeia, dizendo ser algo sem prece-
dentes. O Brasil tem dado a devida importância a isso?

107
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Penso que não. Um jeito de medir o descaso é avaliar a cober-


tura da mídia. Com algumas exceções, os meios de comunicação
do Brasil não estão contando o que se passa na Europa. Há erros
factuais, muita desinformação, o que é um absurdo, pois no site
da União Europeia todos os dossiês têm de constar em português,
uma vez que Portugal faz parte do grupo. Isso também foi motivo
de crítica interna na BBC, em Londres, porque a rede não está
acompanhando como se deve a consolidação da UE. Os relató-
rios da BBC condenam o viés americano na cobertura. No Brasil,
nem se fala. Lembro-me de quando o euro entrou em circulação
e um ex-presidente do Banco Central do Brasil escreveu artigos
anunciando o fracasso da moeda comum.

E assinou besteira.
Completamente. Ricupero tem razão ao dizer que é algo iné-
dito. Pela primeira vez na história da humanidade está se criando
a frio, sem guerra, uma unidade política nova. Uma unidade
que nasce pelo entendimento, pelo voto, pela negociação, pela
arbitragem. Aqui na Sorbonne, vejo os efeitos disso ao cruzar
com estudantes que vêm de Portugal, da Polônia, da Hungria...
A moeda européia está forte, já afeta o dólar. A Coréia do Sul
anuncia que vai aumentar suas divisas em euro. Então imagine
quando a Rússia preferir receber euros pelo petróleo que vende
ao mundo? O impacto da UE é impressionante do ponto de vista
cultural também. País membro não pode adotar a pena de morte.
Há um tribunal europeu de direitos humanos que é superior aos
tribunais nacionais, e a França já foi condenada algumas vezes,
com indenizações pesadas a pagar. Enfim, esse processo de
enquadramento jurídico tem efeito civilizador.

Nesse tabuleiro de trocas comerciais, o Brasil cresce na expor-


tação de produtos primários, de baixo valor agregado. Isso é
um problema?

108
ENCONTROS

Não, ao contrário. Hoje em dia não se pode dizer que a soja


seja um produto de baixo valor agregado, basta considerar todo o
trabalho realizado pela Embrapa com a modificação de sementes.
E o Brasil está abrindo frentes não só com a soja, mas também
com o algodão, o café, a carne, ocupando uma posição destacada
na faixa das commodities. É cada vez mais conhecida na Europa
a sigla BRIC, que nomeia o elenco de quatro países (Brasil, Rús-
sia, Índia e China) com potencial para dominar mercados nos
setores primário, secundário e terciário. Nesse esquema, não há
dúvida de que cabe ao Brasil a expectativa de ser um país-celeiro,
assim como a China tende a ser a fábrica do mundo e a Índia, o
escritório, já que se volta para o setor dos serviços.

Como é que o senhor vê a diplomacia brasileira hoje?


O Brasil nunca teve tanta visibilidade como agora, e isso é
um fenômeno que se explica a partir de dois fatores. Um cha-
ma-se Fernando Henrique Cardoso. O ex-presidente alimentou
uma rede importante de contatos acadêmicos e intelectuais que
extrapola o meio político. Essa rede vem jogando a favor do País
desde o início dos anos 90. O outro fator chama-se Luiz Inácio
Lula da Silva. O atual presidente viaja pelo mundo há pelo menos
três décadas, levando na bagagem uma singular biografia de
líder sindical, perfeitamente compreendida tanto por sindicatos
americanos quanto por lideranças europeias saídas da melhor
tradição social-democrata. Ambos são líderes de grande auten-
ticidade e impulsionam tremendamente a diplomacia. É uma
sorte do Brasil.

Essa boa imagem ajuda na disputa pela vaga no Conselho de


Segurança da ONU?
Sim, mas o jogo anda complicado. A China não quer apoiar
o Japão, como já disse anteriormente. A entrada da Alemanha
na disputa incomoda Itália e Espanha. Esta, por sua vez, quer o

109
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

apoio da Argentina e do México, que não vão fortalecer a posição


brasileira. Já a candidatura da Índia incomoda o Paquistão. Daí
os EUA falam na ampliação do Conselho com países sem direito
de veto, o que não nos interessa. Todas essas amarras me fazem
concluir que a única situação em que o Brasil realmente esteve
perto de ser membro permanente do Conselho de Segurança foi
ao término da 2.ª Guerra. Fomos o único país latino-americano a
enfrentar o eixo Roma-Berlim, portanto, deveríamos ter mantido
nossas tropas na Europa por mais tempo, até se arquitetar a nova
ordem. O governo Dutra não entendeu a complexidade daquele
momento e deixou a oportunidade escapar pelos dedos. Nossa
história poderia ter sido bem diferente.

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Como historiador do Atlântico
Sul, eu olho o continente e diviso
uma realidade na América andina,
outra realidade na América índia e
ainda outra realidade na América
negra, que somos nós, brasileiros.
As ligações mais profundas do
Brasil são com a África e com as
Antilhas. Nosso passado indígena
não teve a grandiosidade do
passado inca, asteca, maia, com
suas reverberações contínuas.
Portanto, essa grande ‘pátria latino-
americana’ não existe. É uma figura
de retórica que dura 200 anos, sem
corresponder às matrizes históricas.
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

A falência do governo Lula


pode trazer uma “onda reacionária”

112
POR FLÁVIA MARREIRO
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

A falência do governo Lula


pode trazer uma
“onda reacionária”
POR FLÁVIA MARREIRO

Publicada originalmente no
jornal Folha de S. Paulo,
em 19 de setembro de 2005

Qual a importância da eleição interna petista?


Essa eleição é muito importante. Um partido desse tama-
nho não acaba de uma hora para outra. O que é interessante é
que pela primeira vez no Brasil há um acompanhamento pela
imprensa e pela opinião pública de uma discussão interna de
um partido. Isso nunca houve dentro do PSDB, do PFL, nem se
fala da UDN e do PTB. O que havia eram querelas de pessoas,
não havia debate de ideias. Mesmo que isso esteja acontecendo
pelas más razões, depois de o partido entrar numa crise grave,
o PT se expor à opinião pública é um avanço na política do país.

Mesmo com as manobras de José Dirceu, a saída do Tarso, a


divisão das esquerdas?
Eu pessoalmente lamento a retirada do Tarso Genro. Eu
espero que haja uma recomposição mais adiante. Mas o fato de
ele ter estado na segunda-feira no ato da refundação, do lado do

114
ENCONTROS

Raul Pont, e estar havendo uma predominância desse PT do Rio


Grande do Sul, que tem mais experiência – eles governaram um
Estado importante, coisa que o PT de São Paulo nunca fez. E o
PT de São Paulo dominava o partido. Um PT, que, como toda a
política paulista, é dominado por querelas, e isso é um ponto que
o [cientista político] Wanderley Guilherme dos Santos apontou,
uma certa desordem que nasce da política paulista, não porque
São Paulo seja mais desordeiro que os outros Estados, mas por-
que é o Estado mais poderoso, com as situações mais extremadas.

Como avalia o peso dessa querela paulista na eleição do PT?


Isso já estava subjacente na eleição da Câmara. A questão de
apoiar ou não a reeleição do João Paulo acabou desestabilizan-
do tudo. Na última hora não houve acordo e o [deputado Luiz
Eduardo] Greenhalgh foi chamado. É a querela interna paulista
que está por trás da eleição do Severino. Mas acho que a presen-
ça do Rio Grande do Sul, a presença do Raul Pont e do Tarso na
mesma mesa um bom agouro.

Nesse evento, Marilena Chaui falou do ódio ao PT e disse que o


partido foi o principal motor da democracia no país. Concorda?
Essa frase é retórica política e não deve levar a maiores con-
sequências. A única frase grave que houve na crise, e que passou
meio batida, é a frase do [senador] Bornhausen [PFL]: "Nós
agora vamos nos livrar dessa raça por muitos anos". A maneira
de falar da esquerda como raça é um ranço profundo da UDN
mais reacionária, de onde o Bornhausen vem, e é isso que está
no horizonte de um fracasso do governo Lula e do PT. Não é um
retorno da situação anterior, de uma presidência tucana civili-
zada. É o retorno do recalque mais boçal do Brasil, da UDN de
1952, que diz que "pobre é pobre porque pobre é burro", que diz
"nisso que dá eleger um encanador e uma empregada doméstica
para morar no Alvorada". Essa é a frase grave.

115
A única frase grave que houve na
crise, e que passou meio batida,
é a frase do Bornhausen: ‘Nós
agora vamos nos livrar dessa
raça por muitos anos’. A maneira
de falar da esquerda como raça
é um ranço profundo da UDN
mais reacionária, de onde o
Bornhausen vem, e é isso que
está no horizonte de um fracasso
do governo Lula e do PT. Não é
um retorno da situação anterior,
de uma presidência tucana
civilizada. É o retorno do recalque
mais boçal do Brasil.
ENCONTROS

Esse clima pode levar a uma onda conservadora?


Pode levar a uma onda reacionária. Não devemos ter medo
das palavras. Reacionária é uma palavra que Joaquim Nabuco
usava no abolicionismo, não é só uma palavra de marxista. Essa
é uma onda reacionária de raiva de pobre, de raiva de traba-
lhador, que está no horizonte. Isso é uma coisa que me deixou
muito chocado. O risco eleitoral é isso se polarizar em torno do
[ex-governador] Garotinho, que é o populismo escrachado. A
direita mais inteligente, os conservadores mais inteligentes não
têm interesse em ver o PT desaparecer.

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

“Lula é a escolha popular”

118
POR RAFAEL CARIELLO
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

“Lula é a escolha popular”


POR RAFAEL CARIELLO

Publicada originalmente no
jornal Folha de S. Paulo,
em 15 de outubro de 2006

Em quem o sr. votou?


Votei em Lula, como nas eleições precedentes em que ele se
candidatou. Penso que o PT e Lula são portadores de um pro-
jeto democrático de transformação social que foi parcialmente
realizado no primeiro mandato e poderá ser completado num
segundo mandato. Votarei novamente em Lula no dia 29 de ou-
tubro. Mas, agora, com um pé atrás. Os erros de Lula e os atos
delituosos da direção do PT suscitam reflexões pessimistas. Mas
o impulso para o progresso social e a confiança no processo de-
mocrático, explicitados no voto majoritário que Lula obteve entre
as camadas populares e a população negra, geram o otimismo
da vontade de mudança.

O que achou do resultado do primeiro turno?


Consolidaram-se duas mudanças positivas: o sistema de
dois turnos, garantia de resultados não sujeitos à contestação,

120
ENCONTROS

e o instituto da reeleição. Quebrou-se um tabu: o presidente


candidato à reeleição não é imbatível. Lula levou uma fubecada
e foi empurrado para o segundo turno. As sondagens mostram
que 66% do eleitorado acha isso bom. O eleitorado aprendeu
a manejar os dois turnos e quer mais explicações. Lula deve
estar preparado para explicar o mensalão e o "dossiegate". Mas
Alckmin talvez seja levado a formular os esclarecimentos que
FHC não deu sobre as privatizações e a compra de votos para a
emenda da reeleição.

O que lhe parece a candidatura Alckmin?


Alckmin só chegou no segundo turno por causa das mano-
bras calamitosas e suicidas do PT. No seu comportamento há a
habitual arrogância tucana: não é preciso detalhar um programa
de governo – procedimento essencial para todo postulante sério
à Presidência –, basta repetir que a esquerda é burra e, ainda por
cima, desonesta.

É possível explicar como um candidato constantemente apre-


sentado como antipopular chega a angariar 40% dos votos?
Alckmin representa um arco de alianças partidárias cujo
potencial pode abarcar mais da metade do eleitorado brasileiro.
Sua representatividade partidária é real. Mas foi ele próprio que
forjou sua imagem de ator secundário da política brasileira.
Foi ele que se projetou como um político de reserva, eterno
vice-governador. Alckmin também aparece como um político
provinciano que jamais se preocupou – ao contrário de Lula,
FHC ou Serra – em estabelecer contato com lideranças políti-
cas estrangeiras. Com a forte inserção do Brasil na diplomacia
e no comércio internacionais, isso é uma lacuna grave. Ele é
despreparado neste terreno e já deu vexame numa entrevista a
um canal de TV australiano, fugindo de suas responsabilidades
no governo de São Paulo. Sua propaganda eleitoral, mostrando

121
Faz todo o sentido a oposição
feita pelo Lula entre “povo”
e “elite”. Afinal o que se está
querendo neste país? Que os
evangélicos e a polícia resolvam
os problemas gerados pela
miséria e as desigualdades? É
fundamental que essas opções
sejam assumidas por um partido
inserido no jogo democrático, por
um presidente respeitador das
instituições. A ideia de conflito
de interesses é fundamental no
funcionamento da democracia.
ENCONTROS

a casinha de Pindamonhangaba, pagou o mico. Instalou uma


imagem de farmacêutico do interior num filme de Mazzaropi.
No debate da Bandeirantes, ele tentou consertar, falando grosso
e grosseiramente. Gerou um conflito de imagens que provocou
sua queda nas sondagens.

Lula opôs constantemente, no primeiro turno, o "povo" e a


"elite". Faz sentido o discurso?
Faz todo o sentido. Afinal o que se está querendo neste país?
Que os evangélicos e a polícia resolvam os problemas gerados
pela miséria e as desigualdades? É fundamental que essas opções
sejam assumidas por um partido inserido no jogo democrático,
por um presidente respeitador das instituições. A ideia de conflito
de interesses é fundamental no funcionamento da democracia.
Por minha parte, sempre achei que os objetivos do PT e de Lula
devem ser os mesmos de toda esquerda democrática: transfor-
mar a maioria social do país em maioria política.

123
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Para os países africanos


saírem do deus dará

124
POR ÁLVARO KASSAB
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Para os países africanos


saírem do deus dará
POR ÁLVARO KASSAB

Publicada originalmente no
Jornal da Unicamp,
em novembro de 2006

Em sua conferência, o senhor aborda o fato de as línguas afri-


canas, importantes para a constituição do português falado
no Brasil, serem praticamente ignoradas pelos dicionaristas
contemporâneos. Por que isso ocorre?
É interessante o fato de os dicionaristas de hoje desconside-
rarem a presença da linguagem africana na língua portuguesa do
Brasil. Não foi sempre assim. No século XIX, por exemplo, havia o
dicionário de Macedo Soares, de 1888, que fazia menção. Depois,
porém, houve uma coisa surpreendente. Quando se fez o primeiro
grande dicionário contemporâneo no Brasil, que foi o “Aurélio”
[Buarque de Holanda], essa distorção veio à tona. O “Aurélio”
tinha especialistas de várias áreas, até de capoeira, mas nenhum
especialista em línguas africanas, tampouco historiadores.

E como fica quando torna-se necessário fazer referências eti-


mológicas?

126
ENCONTROS

Ele se limita a classificar tudo o que é presença de vocábulo


africano como “africanismo”. É a mesma coisa que criar uma
generalidade como “europeísmo” para classificar todas as lín-
guas europeias.

Houve um retrocesso?
Exatamente. Essas línguas já haviam sido dicionarizadas
desde o século XVI. E eram dicionarizadas em português, e não
em latim, alemão, inglês ou francês. Não houve uma renovação
e interesse por esse material. O Dicionário Houaiss já dá mais
atenção, mas não a devida. Esses dicionários mais antigos são de
fácil acesso. A Biblioteca Nacional de Lisboa, por exemplo, tem
duas dezenas de dicionários de língua africana, compreendendo
um período que vai do final do século XIX até o final do século
XX, alguns deles editados inclusive por missionários.

A que o senhor atribui essa distorção?


Houve uma espécie de desaparecimento da presença africa-
na, não da presença do negro. São duas coisas diferentes. Enten-
do que isso está relacionado também à historiografia brasileira,
que, de uma certa forma, conheceu o mesmo fenômeno. No
século XIX, os historiadores eram mais atentos à África, havia
mais informação, mais presença. No século XX, houve alguma
coisa – Sérgio Buarque de Holanda escreveu indiretamente so-
bre Moçambique e o próprio Gilberto Freyre tratou do assunto.
Depois disso, entretanto, mais exatamente nos últimos
50 anos, a historiografia brasileira ficou muito polarizada no
território brasileiro. Ela ficou presa à afirmação da identidade
nacional, que é uma herança do varguismo. Isso contaminou
tudo. Teve um efeito global sobre a música, literatura, economia
etc. As análises ficaram muito presas à ideia do isolamento do
Brasil do Império português, para não falar da África em geral.

127
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Qual foi efeito dessa opção para a historiografia?


Os estudos africanos ficaram ao deus dará. A Cátedra sobre
Estudos Africanos, criada agora pela Unicamp, preenche, de uma
certa forma, essa lacuna. Não era por falta de material ou por
falta de fonte. Sempre houve documentação em língua portu-
guesa. O Instituto Histórico e Geográfico possui uma vastíssima
documentação, já catalogada, sobre a África e a Ásia. A USP, em
particular – nem falo da Unicamp que é mais jovem–, e outras
universidades paulistas se desinteressaram da história da África.
Houve um cochilo.
Não é preciso ir muito longe. Os historiadores simplesmente
não se interessaram. A documentação era em português, estava
acontecendo coisa nos países – independência, conflitos etc. – e,
no entanto, ninguém orientava uma tese, até porque eles pró-
prios não tinham sido formados para tanto. O sistema prioriza
o auto-recrutamento e o equívoco vai se perpetuando, fazendo
com que as gerações seguintes fiquem alijadas da discussão. A
coisa vai afunilando, até você ser pego por esse tipo de surpresa.

Trata-se de um problema estrutural?


Entendo que priorizar a carreira vertical é um defeito das
grandes universidades brasileiras. Você começa como estudante
de uma determinada faculdade e ali permanece, da graduação à
docência. Isso não existe nas maiores universidades europeias
ou americanas. No Brasil, isso não só existe como é tido como
mérito. Já temos uma massa crítica no país para esperar que as
pessoas façam concurso em outro lugar e, depois, voltem. Os
estudos – ou a falta de – sobre a África pagaram esse preço.

Em que medida o fato de a história da África ter sido ignorada é


um complicador para a melhor compreensão do Brasil?
Isso ficou patente nas comemorações dos 500 anos. Falava-se
que Cabral descobriu o Brasil quando parou numa ilha... Até o

128
ENCONTROS

século XVII acreditava-se, em alguns círculos diplomáticos euro-


peus, que o Brasil era uma ilha. Nas nossas escolas, professores
ensinam que Cabral descobriu o país mostrando o nosso mapa
atual, com o Acre, Tocantins... As crianças já aprendem errado,
o que é um grande anacronismo, um absurdo total. Isso criou
uma polarização em torno do território.
Foi ignorado simplesmente que o Brasil, durante 300 anos,
foi xifópago de Angola. Fomos povoados e colonizados por afri-
canos – malgrados, eles também são colonizadores do Brasil. O
país foi feito pelos europeus e pelos africanos. Seremos um país
majoritariamente negro em, no máximo, 20 anos.
Toda a historiografia brasileira, tanto do ponto de vista político
como econômico, foi fundada numa data canônica: 1808-1822, ou
seja, a chegada da Corte, a Abertura dos Portos e a Independência.
É desprezado o fato de o Brasil ter continuado ligado à África por-
tuguesa, pelo tráfico negreiro, até 1850. É aí que ocorre a verdadeira
ruptura com o antigo sistema colonial. É aí que o Brasil começa a
ser moderno, que passa a ter um perfil autônomo e novo.

Seria exagero dizer que ele começa a ser forjado?


Não, é isso mesmo. Até então o pulmão estava na África.
Entraram no país, de 1831 a 1850, 710 mil africanos. No total,
ingressaram 4 milhões. Não é pouca coisa. Tenho procurado no
meu trabalho – tanto na livre-docência, que fiz aqui e resultou
no livro O trato dos viventes, como nos artigos que tenho escrito
–, mostrar que a Independência e a Abertura dos Portos, embora
extremamente importantes, estão longe de representar uma nova
era. Esses fatos continuam trazendo do passado e do período
colonial essa dependência e a pilhagem da África. Isso só vai
mudar a partir de 1850.

Seria exagero dizer que essa visão obscurece inclusive a história


dos países africanos que se relacionavam com o Brasil?

129
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Houve um recalque. O que houve foi uma pirataria, mas o


assunto é pouco tratado e estudado e nunca foi ensinado, embora
não seja exatamente uma novidade – “Navio Negreiro”, de Castro
Alves, mostra que havia, já no século XIX, uma consciência muito
viva sobre o assunto.
A pilhagem da África nunca foi ensinada nas faculdades com
a devida importância. Paradoxalmente, era ensinado no Itama-
raty, em razão da implicação diplomática que os fatos tiveram
na primeira metade do século XIX. O livro renovador sobre isso
foi escrito pelo historiador inglês Leslie Bethel, que apareceu
nos anos 70 e foi traduzido apenas dez anos depois. Havia uma
bibliografia brasileira, mas ela não entrava no circuito.

Em que medida o Brasil poderia ter contribuído mais?


Há uma dualidade na historiografia africana. Ou você faz
a história da África do ponto de vista dos europeus, ou faz do
ponto de vista dos africanos. Trata-se de um debate que já dura
50 anos. Mas acho que há hoje, no Brasil, material suficiente para
fazer uma história da África portuguesa a partir de um ponto de
vista brasileiro, e isso desde a Colônia. Há um ponto de vista do
colonato brasileiro sobre a África que está aí no mínimo desde
o século XVII. O pessoal do Nordeste e do Rio de Janeiro, por
exemplo, estava mais atento sobre o que se passava em Angola
do que o que ocorria no Amazonas, que estava fora do mapa. Um
exemplo foi a invasão de Angola, em 1648, na primeira expedição
militar que saiu do Brasil para atravessar o Atlântico Sul com o
objetivo de expulsar os holandeses.

E a contribuição dos países africanos para a cultura brasileira,


o senhor acha que é devidamente estudada?
Acho que isso também está mal equacionado. Há o Museu
de Cultura Africana, em São Paulo, mas faltam especialistas em
arte africana. Quando falo em especialista estou me referindo

130
ENCONTROS

àqueles que acompanham o debate, que são formados nisso.


Percebo que isso também não é ensinado de maneira estruturada
nas universidades brasileiras. Fica parecendo sempre uma coisa
meio amadora, de gente que tem experiência apenas sobre uma
parte da África. Todos os bronzes do Benin, por exemplo, além de
contribuições importantes de outras épocas, não são estudados
de maneira científica.

O que precisa ser feito para mudar esse estado de coisas?


Acho que já está mudando. Queria dar o outro lado da moeda,
mesmo que haja um atraso de 40 anos, já que isso não poderia
ter parado em 1960. Há um livro pioneiro, Brasil e África, de José
Honório Rodrigues, no qual ele já contesta as teses de Gilberto
Freyre. Entretanto, agora há um interesse crescente neste e em
outros resgates, inclusive porque houve uma decisão do gover-
no, em 2003, de a História da África e a História Afro-Brasileira
serem ensinadas no ensino médio. Isso certamente vai suscitar
a produção de livros e de manuais.

E no campo diplomático?
Acho que, hoje, o Brasil está muito atento. De duas maneiras.
A primeira com a abertura de embaixadas na África. Temos hoje
cerca de 30, o que não é pouca coisa. E o Itamaraty tem um sis-
tema de recrutamento de estudantes negros, que já vem desde
os tempos do governo de Fernando Henrique Cardoso, de modo
que se trata de uma coisa consensual.

131
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

País vê o último episódio


da transição democrática

132
POR GABRIEL MANZANO FILHO
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

País vê o último episódio


da transição democrática
POR GABRIEL MANZANO FILHO

Publicada originalmente no
jornal O Estado de S. Paulo,
em 9 de agosto de 2007

O ministro da Defesa, Nelson Jobim, falou duro e enquadrou,


na semana passada, lideranças militares insatisfeitas com o
governo por causa do livro sobre torturas durante o regime
militar. Como o sr. vê esse episódio?
Acho que estamos assistindo, no momento, ao último episó-
dio da consolidação, de fato, da sociedade democrática no Brasil.
O País tinha antes uma anomalia institucional, com a existência
de três ministérios militares, mais um Estado-Maior das Forças
Armadas e ainda uma Casa Militar. Era um desenho institucional
extravagante, que não fazia sentido. Esse processo de transição
começou com o presidente Fernando Henrique Cardoso, mas
permanecia incompleto. Jobim parece ser o ministro com con-
sistência política para levá-lo até o fim.

O Supremo Tribunal Federal acolheu a denúncia do mensalão,


que transformou em réus algumas importantes figuras polí-

134
ENCONTROS

ticas do País. A medida contribui, também, para um melhor


equilíbrio entre os poderes, contendo os avanços do Executivo
sobre os demais?
Acho que o Executivo brasileiro não é tão forte assim, mesmo
quando comparado aos das velhas democracias. Mas, sem dúvi-
da, o julgamento do mensalão no STF marcou data. Ao contrário
do que havia feito em passado recente, quando endossou o
Plano Collor, o Supremo deu um basta nas práticas ilegais e na
complacência com a corrupção e o abuso de poder.

O sr. acredita que, se houver pressão por um terceiro mandato,


Lula aceitará ser candidato?
Penso que Lula não será candidato em 2010. Para isso, seria
preciso encaminhar ao Congresso uma nova emenda, cuja vo-
tação seria longa e duvidosa. Em 1997, quando foi aprovada a
emenda da reeleição, o presidente Fernando Henrique gozava de
folgada maioria parlamentar. E ele ainda podia sacudir a candi-
datura petista, em 1998, como um espantalho para arregimentar
os setores da opinião pública e do Congresso que temiam Lula na
Presidência. Nada disso acontece agora. Não existe no horizonte
político, ao alcance de Lula, nenhum candidato oposicionista
que funcione como espantalho. Há uma farta discussão, hoje,
sobre méritos e deméritos do Bolsa Família, que melhora a vida
dos excluídos, mas não serve como projeto nacional.

Qual o seu balanço a respeito?


Apóio os programas sociais do governo Lula e, em particular,
o Bolsa Família, cujo mérito foi salientado em recente editorial do
Estado e nos relatórios de organizações internacionais. É óbvio,
porém, que esses programas não constituem um projeto nacional
e nem perdurarão como projeto de governo se não alavancarem
uma formação profissional e inserção no mercado de trabalho.

135
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Além de o Brasil viver uma crise ética e o esvaziamento dos


partidos, a classe média se sente abandonada e pagando a conta
nos impostos. A queixa é procedente?
A classe média se sente escorchada porque paga impostos
que não geram retornos concretos – escola, saúde, segurança – de
parte do Estado. Assim, ela paga o imposto e paga de novo para
obter os benefícios. Isto posto, o Brasil atravessa uma transforma-
ção social importante e, ao lado da "velha" classe média gerada
pelas condições favoráveis (aposentadorias integrais e tempo de
serviço relativamente curto, BNH, correção monetária, ensino
e bolsas universitárias generosas, etc.) dos anos 1950-90, surge
agora uma "nova" classe média nascida no período pós-inflacio-
nário inaugurado pelo Plano Real. Talvez a insatisfação da coisa
heterogênea chamada classe média tenha também a ver com
uma mudança interna, com uma alteração do perfil histórico
brasileiro desses segmentos sociais.

Uma reforma política melhoraria o horizonte, para a ética e


para esses cidadãos?
Quanto ao quadro político, estou de acordo com o ex-presi-
dente Fernando Henrique, que salientou recentemente a neces-
sidade de implantar o voto distrital para reduzir os escândalos
eleitorais brasileiros. Como está não pode ficar. Os eleitores
paulistas, por exemplo, estão sub-representados na Câmara
Federal. O federalismo brasileiro precisa ser repactuado. Em
seu recente congresso, o PT evitou discutir o mensalão e deixou
a impressão de que está pendurado na força do presidente Lula.

Essa crise é um problema do PT ou, em geral, dos partidos de


esquerda, em todo o mundo?
De fato, depois do mensalão o PT ficou mais pendurado
ainda no prestígio de Lula. No entanto, continua sendo o único
partido implantado em todo o território nacional com um nú-

136
Ser de esquerda é lutar por
justiça social. E a injustiça social
é a coisa mais espalhada que
há no mundo. No entanto, a
ideia de que se pode alcançar
a justiça social à custa de
ações do Estado chegou a um
limite. É preciso buscar novos
caminhos, mobilizar a sociedade
num ambiente onde atuam os
mecanismos de mercado.
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

mero importante de filiados. Este 3º Congresso contou com a


participação de 190.000 filiados nas etapas municipais e regio-
nais. Não é pouca coisa. Mas o socialismo democrático e a so-
cial-democracia, mesmo nos seus bastiões históricos mais fortes
da Europa, passam por uma crise ideológica sem precedentes.
No curto prazo, o PT enfrenta o descrédito gerado pelo desgaste
de ter virado um partido de governo que não se posiciona sobre
questões cruciais e pelo mensalão. Mas penso que a política
econômica do governo – agora mais bem-sucedida – é menos
questionada que no primeiro mandato de Lula.

Como a esquerda poderá sair dessa crise ideológica?


Isso tem a ver, no longo prazo, com o papel menos relevante
da classe operária, com o declínio do movimento sindical e o
questionamento do Estado-Previdência. Ser de esquerda é lutar
por justiça social. E a injustiça social é a coisa mais espalhada
que há no mundo. No entanto, a ideia de que se pode alcançar
a justiça social à custa de ações do Estado chegou a um limite.
É preciso buscar novos caminhos, mobilizar a sociedade num
ambiente onde atuam os mecanismos de mercado. Nixon tinha
dito, no passado, que para onde se inclinasse o Brasil se inclinaria
a América Latina.

O que há de verdade nisso, hoje?


A declaração de Nixon é de 1971, quando a América Latina
estava assolada por ditaduras brutais. No meio tempo a URSS
desabou, a Índia e a China emergiram como grandes potências,
as colônias portuguesas da África ficaram independentes e a
América Latina – com exceção de Cuba – democratizou-se. Numa
economia globalizada, o Brasil pode e deve buscar alianças fora
da América Latina. Quanto aos demais, os presidentes Hugo Chá-
vez e Evo Morales têm agora graves problemas internos a gerir.
O primeiro meteu o dedo numa engrenagem fatal: Assembleia

138
ENCONTROS

nacional sem representantes da oposição e projeto de reeleição


perpétua. O segundo enfrenta uma crescente oposição popular
e uma ameaça de secessão no departamento de Santa Cruz. Na
Argentina, Néstor Kirchner organiza sua sucessão numa manobra
típica de oligarquias provinciais, escolhendo sua mulher para
sucedê-lo. Isso não é bom para a democracia na Argentina e na
América Latina.

139
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

“O que me assusta é a ideia


de ter Michel Temer
como vice-presidente”

140
[SEM CRÉDITO]
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

“O que me assusta é a ideia


de ter Michel Temer
como vice-presidente”
[SEM CRÉDITO]

Publicada originalmente no
jornal Valor Econômico,
em 12 de abril de 2010.

A revista The Economist fez uma matéria de capa sobre o Brasil,


dizendo que o futuro chegou para o país do futuro. O sr. com-
partilha desse otimismo?
Até a oposição compartilha desse otimismo. Dentro e fora
do país há um consenso favorável sobre a economia brasileira,
sobretudo com a entrada da China no mercado mundial, com
uma forte demanda por matérias-primas. O lado negativo é que
o comércio externo fica parecido com o que era no século XIX.
Há um risco nessa divisão internacional do trabalho que vai se
criando, em que o Brasil vira exportador de matérias-primas
novamente.

E a perspectiva política?

142
ENCONTROS

O que me assusta é a ideia de ter Michel Temer como vi-


ce-presidente. Ele é deputado há décadas e foi presidente da
Câmara duas vezes. Controla a máquina do PMDB e o Congresso
à perfeição. Vai compor chapa com uma candidata que nunca
teve mandato e é novata no PT. O presidencialismo pressupõe um
vice discreto, porque ele é eleito de carona, para trazer alianças
e palanques. Aos trancos e barrancos, instaurou-se um sistema
presidencialista que tem dado certo no Brasil. O fato de haver dois
turnos, associado à integração do vice na chapa do presidente,
deu estabilidade ao sistema. Foi assim com Fernando Henrique
e Marco Maciel. Foi assim com Lula e José de Alencar. Dilma e
Temer formam uma combinação inédita: uma candidata até
então sem mandato associada a um político cheio de mandatos
e dono do PMDB, que é o maior partido do Brasil, mas nunca
elegeu um presidente e vai com sede ao pote. O PMDB pode
estabelecer um vice-presidencialismo, com um papel de prota-
gonista que seria descabido.

Dilma é considerada uma administradora eficiente, mas não


tem uma carreira política como a de Lula. Isso pode compro-
meter seu governo?
Ela assumiu a Casa Civil num momento difícil. O governo e
o país estavam em crise e, por muito tempo, não se falou nela, o
que é um indício de grande eficácia. Num cargo exposto como
esse, não ser notícia é um grande feito. Isso prova que não é ficção
sua fama de boa administradora. Mas acho problemático ela não
ter a experiência de um mandato eletivo.

Lula, quando eleito, só tinha passado pela Assembleia Cons-


tituinte.
Mas era o fundador de um importante partido político e um
grande líder sindical. O lado conciliador de Lula vem daí, da
experiência de conversar no botequim com os companheiros,

143
O que me assusta é a ideia de
ter Michel Temer como vice-
presidente. Ele é deputado há
décadas e foi presidente da
Câmara duas vezes. Controla a
máquina do PMDB e o Congresso
à perfeição. Vai compor chapa
com uma candidata que nunca
teve mandato e é novata no PT. O
presidencialismo pressupõe um
vice discreto, porque ele é eleito
de carona, para trazer alianças e
palanques.
ENCONTROS

negociar com o patronato, avaliar relações de força na fábrica e


na política. Se ele errasse, dirigindo uma greve furada, a sanção
não seria perder um mandato, mas ter no dia seguinte dezenas
de trabalhadores no olho da rua. Sem contar as campanhas, as
três que perdeu para presidente e uma para governador de São
Paulo, em 1982. Dilma foi secretária estadual no Rio Grande do
Sul, um Estado muito politizado, mas isso não equivale a um
cargo eletivo.

Serra, o sr. conhece melhor.


Serra tem muita experiência e é um grande líder. Mas tem um
problema sério. Vou formulá-lo de maneira abrupta: e se Serra
for um blefe? Explico: ele é apresentado desde 1982, quando foi
secretário de Planejamento em São Paulo, como o reformador
do Brasil, o homem que vai racionalizar a economia e dar jeito
no país. Quando Fernando Henrique ganhou, ele foi ministro do
Planejamento, mas ficou fora da política econômica. Como se
dizia, Serra era o candidato da Fiesp, da indústria, e Fernando
Henrique, da Febraban, dos banqueiros. Serra foi parar na Saúde
e até hoje não quer ser associado àquela política econômica, de
que era crítico acerbo.

Já em 2002 ele tentava se apresentar como ruptura.


As pesquisas mostravam uma rejeição ao candidato indicado
por Fernando Henrique. Isso continua. É curioso esse excesso
de impopularidade. Chega a ser injusto. Não tem um vereador
do PSDB que faça santinho dizendo ser candidato do partido de
Fernando Henrique. Pergunto às pessoas, quando vou ao Brasil,
o que as incomoda em Fernando Henrique. Fala-se das priva-
tizações: “Vendeu tudo e não se viu o dinheiro”. Ou nos bilhões
de dólares queimados na gestão temerária da paridade cambial.
Ou coisas mais subjetivas, misteriosas: “O jeito como ele ri”…

145
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Voltando a Serra, e se ele for um blefe, como o sr. diz?


O problema dele é esse: com a expectativa em torno de seu
nome, ele vai fazer o quê no governo? A própria Fiesp, que mais
ela quer, senão seguir com a política de Lula? E os banqueiros,
que se entopem de dinheiro? Sem contar os 26 milhões de
pessoas que subiram na escala social. Não dá para saber o que
Serra vai fazer. Não pode entrar com o discurso de acabar com
a corrupção, porque isso não dá muito refresco e depende mais
da Justiça, dos tribunais de contas.

Essa situação parece confortável para Dilma.


Esse pode ser outro motivo de inquietação. Não é sadio para
país nenhum a ausência de alternância política. A transição de
Fernando Henrique para Lula foi a primeira alternância que hou-
ve no Brasil dentro da legalidade democrática. Era a última hipo-
teca que pesava sobre a democracia brasileira. Uma democracia
não é só ter partido político e eleição. É preciso que a oposição
também possa ganhar. Isto posto, no Chile a Concertación ficou
20 anos no poder, só perdeu agora. Se o Lula voltar em 2014, e
ficar 8 anos, aí vamos ter 20 anos de PT na Presidência. Penso
que será mais complicado que o ocorrido no Chile.

De todo modo, é uma projeção.


É uma projeção, mas está no horizonte de gente como Aécio
Neves, que deve estar inquieto. E não é uma perspectiva nova.
Em 2006, a candidatura de Fernando Henrique estava na pauta.
Na época, Serra teria dito: “Se for para perder, o candidato sou
eu. Se for para ganhar, é Fernando Henrique.” Essa projeção
não é irracional. Os dois mandatos de Lula criaram algo novo. O
cientista político André Singer mostra [em artigo para a revista
Novos Estudos] que Lula foi eleito no primeiro mandato pelos
operários sindicalizados e pela classe média. No segundo, perdeu
uma parte da classe média e ganhou entre trabalhadores não

146
ENCONTROS

organizados e subempregados, graças aos programas sociais. Isso


resultou num novo populismo. Segundo Singer, esse eleitorado
é conservador, não quer mudanças, quer que o governo tome
conta dele. Acho essa interpretação um pouco estática, porque
pressupõe que a ascensão social desse subproletariado não in-
comoda ninguém, e que a ameaça de perder o que ganhou não
o levará a uma politização ativa.

A classe média também pode gerar instabilidade, ao sentir que


perde privilégios?
Isso já está acontecendo. É o que alimenta a agressividade
anti-Lula de certos jornais e revistas, que retratam a perplexidade
de uma camada social insegura: os pobres estão satisfeitos e
os ricaços também, mas a velha classe média não acha graça
nenhuma. Ter doméstica com direito trabalhista, pobres e
remediados comprando carro e atrapalhando o trânsito, não
ter faculdade pública garantida para os filhos matriculados em
escola particular. Tudo isso é resultado da mobilidade social, que
provoca incompreensão e ressentimento numa parte da classe
média. Daí o furor contra o ProUni, as cotas na universidade, o
Bolsa Família. Leio a imprensa brasileira pela internet e às vezes
fico pasmo com os comentários dos leitores, a agressividade e o
preconceito social explícitos. O discurso de gente como o senador
Demóstenes Torres no DEM [contra o sistema de cotas raciais nas
universidades públicas] indica uma guinada à direita da direita
parecida com a dos republicanos nos Estados Unidos. Lá, esse
extremismo empolgou o partido inteiro e pode desestabilizar
o país. A falta de perspectiva da oposição cria um vácuo para o
radicalismo.

A oposição está desarticulada?


Desarticulada e sem discurso político coerente, e isso é ruim
para o Brasil. Como ela vai se reorganizar? E vamos extrapolar:

147
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

se perder São Paulo e o Rio Grande do Sul, acaba como força


política nacional. Um desequilíbrio tamanho entre os partidos
é problemático. Novamente, o exemplo americano: fico impres-
sionado não só com o radicalismo, mas com a histeria. Obama é
chamado de Anticristo… O Brasil pode enveredar por aí. Brasil
e Estados Unidos são países conservadores e precisam ter um
partido conservador à altura. A desarticulação da direita não é
bom sinal. É preciso uma alternativa conservadora que mantenha
a insatisfação no jogo eleitoral. Foi isso que o PT fez na esquerda.
Ainda no tempo da ditadura, recolheu o sindicalismo apartidário,
a franja próxima da luta armada, que tinha sido desmantelada, e a
militância cristã, que não tinha onde se expressar eleitoralmente.
Isso fez a força do PT.

Depois de 2003, muitos desses foram embora, como os funda-


dores do PSOL.
Foram, mas não saíram do quadro institucional. No México
ainda tem gente fazendo política com capuz e arma na mão,
como o subcomandante Marcos [porta-voz do comando militar
do grupo indígena chamado Exército Zapatista de Libertação
Nacional]. Na Argentina, não houve alternância completa: não
conseguiram se livrar do peronismo até hoje. A China é uma di-
tadura que explora brutalmente sua classe operária. A Índia tem
atentados a bomba. A Rússia está envolvida numa guerra colonial
na Tchetchênia. O Brasil é o único dos BRIC [grupo formado por
Brasil, Rússia, Índia e China] sem bomba atômica, sem encrencas
com os vizinhos e com uma prática democrática bem enraizada.

A tendência, então, é Serra liderar uma direita radicalizada?


O problema é que, a princípio, Serra não é o candidato
que a direita gostaria de ter. Ele é um democrata com trânsito
numa parte da esquerda. Também é meio estatizante, adepto
de uma política tarifária protecionista e por aí vai. Não é a mes-

148
ENCONTROS

ma direita de Demóstenes Torres, Ronaldo Caiado ou mesmo


Geraldo Alckmin. Por quê? Porque Serra teve a experiência da
perseguição política, da ditadura, do exílio. Companheiros dele
foram mortos, outros torturados. Isso até o aproxima de Dilma:
os dois principais candidatos à presidência correram o risco de
ser assassinados pela direita mais radical. Serra ainda escapou
de Pinochet quando estava no Chile. De Paris, acompanhei com
atenção sua volta ao Brasil em 1977, antes da anistia. Eduardo
Kugelmas [sociólogo e cientista político, morto em 2006], quando
soube que Serra tinha voltado sem ser preso, me disse: “Todo
mundo pode voltar agora. Serra é um elefante de piranha. Se ele
passou, todo mundo pode voltar”. Hoje, o que torna sua candi-
datura difícil é não ter um discurso mais abrangente, além do
anti-PT, para atrair outros setores.

A aliança possível para Serra seria talvez a direita radical, com


que não se identifica. E sua adversária é uma esquerda que se
aproximou das ideias que ele defendia…
Serra está confrontado a um impasse. Não pode elogiar
Fernando Henrique e não pode atacar Lula. Que candidato ele
pode ser? Qual é seu terreno? Ele pode ser um blefe nesse sen-
tido. Na campanha, vai ter de prometer continuidade para os
programas do PT. Quando Sérgio Guerra disse que o PSDB faria
tudo diferente, foi um desastre. Disse que ia mexer no câmbio
e nos juros. Falou disparates e levou um cala-boca do partido.

Isso pode fazer com que a campanha se torne virulenta?


Na blogosfera, já começou. É terrível, a começar pelo episó-
dio da ficha policial falsa de Dilma. É um sinal do que está por
vir. Vai ser um vale-tudo monumental. Embora o impacto disso
seja limitado no grande eleitorado, é forte entre os chamados
“formadores de opinião”. Sobretudo, cria um clima de tensão e
de irresponsabilidade na campanha presidencial.

149
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

A presidente da Associação Nacionais de Jornais, Judith Brito,


disse que a fraqueza da oposição leva a imprensa a agir como
partido. O que significa a imprensa se comportar como partido
político?
Normalmente, a imprensa defende a Constituição, reformas
políticas, ideias. Não há nada errado, por exemplo, em apoiar
candidatos. O New York Times apoiou Obama, mas tem um tra-
balho jornalístico sério e equilibrado. Esse é o papel da imprensa,
o que é diferente de querer substituir partidos políticos. Fiquei
perplexo com o texto de uma coluna regular num grande jornal
carioca que continha uma proposta partidária para o PSDB. O
papel do jornalista não é redigir programas partidários.

Aécio Neves fala de um voto antipaulista que poderia prejudicar


Serra.
Aécio vem falando nisso desde 2002. A política nacional sem-
pre foi perturbada pela política paulista. São Paulo não consegue
se arrumar internamente por razões objetivas: é o maior Estado
industrial, mas também o maior Estado agrário. Tem alta tecno-
logia, mas grandes favelas. Pesa economicamente do Oiapoque
ao Chuí, no Paraguai e na Bolívia. Tudo isso cria rivalidades fortes
na esfera estadual e a influência do Estado no país faz com que
essa desordem repercuta nacionalmente.

O PSDB é cada vez mais dependente desse Estado. Ele pode


se tornar uma versão moderna dos partidos paulistas de an-
tigamente?
É uma possibilidade. No Rio Grande do Sul, por exemplo,
Tarso Genro já empatou com José Fogaça. Se o PT toma o Rio
Grande, sobra pouco para o PSDB fora de São Paulo. Fernando
Henrique disse numa entrevista quando percebeu que a eleição
de 1994 estava ganha: na Bahia, foi mais ovacionado que Antonio
Carlos Magalhães. As pessoas agitavam notas de um real. Qual

150
ENCONTROS

é o Real do Serra? O Real da Dilma são o Bolsa Família, o PAC, o


ProUni. Serra vai vender o quê? A grande mudança trazida pela
ditadura eram os partidos nacionais, tanto na direita quanto na
esquerda. Mas isso está acabando. O último partido nacional é
o PT, os outros são fragmentos de costuras locais. Com isso, o
que acontece? O desabamento do PFL, hoje DEM, à direita. Um
PMDB que virou essa massa informe, que permeia tudo com
clientelismo e é o maior partido do país. O PSDB pode se tornar
um partido ilhado.

Como fica o PT nessa configuração?


Como partido no poder, o PT se aguenta, porque tem finan-
ciamento também do patronato, empreiteiras, grupos que antes
não o financiavam. O PT tem ainda uma máquina partidária bem
operacional, tempo de televisão e, claro, a disciplina partidária.
Mal ou bem, eleições para a direção do PT têm atraído dezenas
de milhares de militantes. Que outro partido brasileiro tem
essa participação? Todo mundo se lembra da “convenção do
Massimo”, que reuniu Serra, Aécio, Fernando Henrique e Tasso
Jereissati, em fevereiro de 2006, num dos restaurantes mais caros
do Brasil, em São Paulo, para discutir a candidatura do PSDB às
eleições presidenciais daquele ano.

O PT sofreu mutações desde que Lula foi eleito.


O aparelho, que se mexia sozinho, foi decapitado com a der-
rocada de [Luiz] Gushiken, [Antonio] Palocci e [José] Dirceu. Lula
tomou conta e o partido perdeu sua independência. Tarso Genro
disse que a candidatura Dilma cresceu no vazio que se criou den-
tro PT, e tem razão. O próprio Tarso, em 1997, foi pré-candidato
contra Lula. Imagine se hoje isso seria possível! Existe um pro-
blema de sobrevivência para o PT pós-Lula. O movimento mais
forte do Brasil no século XX, o varguismo, esgotou-se quando Lula
foi para o segundo turno em 1989, batendo Brizola e puxando o

151
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

eleitorado trabalhista. O PT também pode se desarticular porque


perdeu o debate interno. Em 2005, com o escândalo do mensa-
lão, Raul Pont propôs uma refundação do partido e enfrentou
[Ricardo] Berzoini nas eleições internas. Perdeu, depois sumiu.
Ninguém mais ouve falar nele, nem se sabe o que ele pensa. A
ausência de debate interno pode transformar o PT num partido
amorfo, corroído pelo empreguismo e o clientelismo político.

A política brasileira caminha para a fragmentação?


O que está acontecendo é a fagocitose das estratégias par-
tidárias nacionais pela política estadual. É um efeito das reelei-
ções nos Estados e nos municípios. Isso também coloca outros
problemas. Seria necessário que os tribunais de contas estaduais
e municipais fossem mais fortes, mais independentes – como
o Tribunal de Contas da União – para escapar ao sobrepeso de
um governador ou prefeito que é reeleito. As contas do Maluf,
por exemplo, sempre foram aprovadas, e hoje ele está na lista
vermelha da Interpol. Isso deveria levar a um questionamento
maior no Brasil. Primeiro, nos partidos. Eles têm comissões de
ética, mas abrigam eleitos acusados de diversos crimes. Depois,
na imprensa, que deveria questionar tribunais de contas que
aprovam o exercício de governadores e prefeitos delinquen-
tes. Os editores deveriam pautar repórteres para recuperar os
documentos, interrogar os membros desses tribunais. Como
pode alguém ser perseguido pela Interpol, podendo ser preso
em 181 países por causa disso, mas passar pelas regras da gestão
pública brasileira?

A política externa brasileira tem recebido elogios no exterior,


mas críticas pesadas no país. A que o sr. atribuiria essa dispa-
ridade?
Pela primeira vez, desde 1850, quando a marinha de guerra
inglesa bloqueava a baía de Guanabara por causa do tráfico ne-

152
ENCONTROS

greiro, a diplomacia brasileira entrou na agenda da campanha


eleitoral nacional. Acho uma coisa muito boa. Durante a ditadura,
política externa era um assunto secundário. Depois, com a in-
ternet, os jornais desistiram de ter sucursais e correspondentes
no exterior. Ora, a política externa virou um assunto complexo,
mas o Brasil não tem especialistas suficientes nos jornais ou nas
universidades. A imprensa não segue política internacional de
maneira adequada. Exige-se mais conhecimento específico dos
jornalistas esportivos que de quem cobre o setor internacional.
Há um quarteto de embaixadores aposentados que estão sempre
na televisão, batendo em Celso Amorim e Lula. Repetem que a
política externa é um desastre. Desastre? Os jornais americanos
e europeus discordam. Nunca vi o Brasil com tanto prestígio. É
até desproporcionado, dado o peso ínfimo do país no comércio
internacional. Ao contrário da Índia e da China, potências atômi-
cas com peso comercial enorme. Em maio, Lula vai ao Irã e está
sendo criticado no Brasil. Já a Economist diz que é bom, porque
abre novos canais de comunicação entre Estados Unidos e Irã.
Nos últimos dias, a diplomacia brasileira usou com habilidade
as regras da OMC e as manobras políticas para rebater o prote-
cionismo americano na questão do comércio do algodão. Tenho
certeza de que esse assunto, que começou em 2002 e ainda não
terminou, ficará como um marco na história diplomática.

153
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

A fronteira de outubro

154
POR DIEGO VIANA
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

A fronteira de outubro
POR DIEGO VIANA

Publicada originalmente no
jornal Valor Econômico,
em 26 de setembro de 2014

Temos a perspectiva, pela primeira vez desde 1989, de um se-


gundo turno sem o PSDB. O que isso significa?
O presidencialismo no Brasil mudou. O presidencialismo
paradigmático é aquele em que os presidentes costumam sair de
uma base estadual. É assim nos EUA e foi assim no Brasil antes da
Ditadura. Juscelino foi prefeito de Belo Horizonte e governador de
Minas Gerais. Jânio Quadros, prefeito e governador de São Paulo.
Aécio Neves é de Minas, base regional. Se ele ficar fora do segundo
turno, teremos Marina Silva e a presidente Dilma Rousseff, que
não vêm desse paradigma. Os estados desapareceriam como
centro da política, algo que vem desde a formação do Brasil como
Estado nacional. A contrapartida será abrir o quadro para uma
renovação muito forte da política brasileira, como já se vê pelo
fenômeno extraordinário de termos duas mulheres disputando

156
ENCONTROS

a Presidência, uma delas negra. Isso dá prova do dinamismo da


política brasileira.

Além da subida de Marina, um efeito da morte de Eduardo


Campos foi a redução drástica do índice de indecisos.
Dilma vai para o segundo turno sem reserva de votos. Se, no
quadro anterior, a eleição fosse para o segundo turno, uma parte
dos votos de Campos ia para Dilma. Agora, os votos do Aécio vão
todos para Marina. Não ter essa reserva é um problema grave
para Dilma. Quanto a Aécio, os estragos em sua campanha, com
o descolamento de cabos eleitorais no interior e a rarefação das
fontes de financiamento, me parecem irreversíveis, apesar da
recente melhora em intenções de voto.

Depois do impulso inicial, a subida de Marina parece ter estag-


nado, reabrindo o leque de possibilidades.
É importante ter um segundo turno. O Brasil é um país com-
plicado e merece essa discussão. No primeiro turno, como se diz,
candidatos são eliminados. O presidente é escolhido no segundo.
Marina promete reduzir o Estado, mas também se empenharia na
política social, o que é contraditório. Mas me preocupa o fato de
ela não ter sido capaz de montar um partido político. Ela vem de
um fiasco inicial que o destino mudou de maneira espetacular,
o que certamente reforçou nela a ideia da mão do destino, mas
sua própria base política, e agora a organização do programa de
governo, está mostrando que há contradições.

Marina tem sido criticada por voltar atrás em várias posições.


Isso afeta o eleitorado?
Marina tem repetido a ideia de governar com os homens de
bem. "Homens de bem" é um conceito ingênuo, mas também
perigoso. De repente, durante o governo, ela descobre que seus
assessores não são homens tão de bem como pensava, porque

157
Lula decidiu sozinho, impôs, não
teve convenção, nem nada. É
claro, já tem uma despolitização.
O PT foi decapitado também.
Não tem liderança política. O
mensalão decapitou o partido.
Não surgiu outra liderança com
experiência política. A única
liderança que apareceu foi o
Fernando Haddad,
e ainda dando cotovelada para
abrir espaço dentro do PT.
ENCONTROS

ninguém sabe bem o que é isso. O que Marina vai fazer? Essa
expressão passa também a ideia de um país sem conflito, sem
grupos sociais com visões profundamente divergentes. É despoli-
tizante. Ela vai ser presidente de um país dividido, com interesses
conflitantes. Isso é normal num país complexo. Um país onde os
interesses não se exprimam no jogo institucional ou é ditadura
ou é um país passivo diante do Estado.

Não haveria uma despolitização anterior? Dilma, por exemplo,


foi eleita como gerente, e não por causa de habilidades políticas.
Porque Lula decidiu sozinho, impôs, não teve convenção,
nem nada. É claro, já tem uma despolitização. O PT foi deca-
pitado também. Hoje, o puxador de voto do PT em São Paulo
é o Andrés Sanchez, ex-presidente do Corinthians. Não tem
liderança política. O mensalão decapitou o partido. Não surgiu
outra liderança com experiência política. A única liderança que
apareceu foi o [Fernando] Haddad, e ainda dando cotovelada
para abrir espaço dentro do PT.

Ainda assim, a conquista da Prefeitura de São Paulo é conside-


rada uma grande vitória para o PT.
A eleição de Haddad em 2012 desequilibrou a política na-
cional, porque está ligada a uma mudança. Imediatamente,
colocou Eduardo Campos na corrida sucessória, rompendo
com o PT. Campos viu que vinha uma nova geração e ele não
seria o candidato natural à sucessão de Lula. Se Haddad fizer
dois bons mandatos de prefeito, ganha notoriedade nacional.
Por isso o cerco em cima dele, as ações nos tribunais contra o
IPTU progressivo.

O eleitorado conservador parece ter visto em Marina Silva uma


tábua de salvação quando o PSDB entrou em crise.

159
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

É um desastre para o Brasil a derrocada do PSDB, um par-


tido de governo, que tem a experiência do Estado. É por isso
que nunca houve aliança entre PT e PSDB. A polarização, que
parece arcaica, expressa o fato de que os dois partidos têm uma
concepção diferente do Estado, e por isso não se aliam. O PMDB
e outros partidos se alinham com todo mundo porque não têm
concepção nenhuma.

Por que o eleitor conservador precisa de tábua de salvação? Não


tem um quadro próprio capaz de gerir o país?
Isso é exemplarmente demonstrado na declaração do Agripi-
no Maia (DEM-RN), coordenador da campanha de Aécio, quando
diz que o principal objetivo é levar o tucano ao segundo turno
e, se não puder, tudo contra o mal maior, que é o PT. Essa frase
é rústica, uma forma primária de fazer política. Qual é seu pro-
grama de governo? É tudo contra o PT. O Clube Militar expressou
um sentimento semelhante recentemente.

Marina pode ser classificada como anti-PT?


Marina diz que não faz política tradicional, mas foi muito
hábil. Logo que saiu candidata, ela disse: "Não vou me candi-
datar a um segundo mandato". Essa foi a regra que Aécio tinha
exigido de Campos. Os dois se declararam contra a reeleição e
foram criticados, mas para eles era fundamental. Era a chance de
um herdar os votos do outro no segundo turno e depois passar
a chance ao fim do mandato.

Não seria um acordo fácil de romper?


Sim, mas o interessante é que Marina fez o mesmo acordo
sem dar declarações tonitruantes contra a reeleição. Fez a poli-
ticagem mais eficaz, e com toda a razão. Mas não se recusa ao
jogo político de jeito nenhum.

160
ENCONTROS

Pelo que o senhor está dizendo, ela anunciou que seu mandato
vai ser um tampão.
O que é uma grande ilusão, porque, fora do governo, o PT vai
ser um grande partido de oposição. Vai desabar aqui e lá, mas
vai se reestruturar. Marina é uma liderança carismática vinda de
um partido tão pequeno que não conseguiu se viabilizar. Ela se
instalou num partido maior, que não é seu. Esses ingredientes
estavam presentes nas crises de 1961 e 1992. Por isso, não me
parece absurdo lembrar Jânio Quadros e Fernando Collor.

O governo Dilma mexeu em vários pontos da economia, como


a redução dos juros, as concessões na infraestrutura e a deso-
neração da indústria, sem que houvesse progressos reais. O
arsenal se esgotou?
A política de juros falhou e isso foi fundamental para o resto
afundar. Mas algumas coisas estão andando, como o pré-sal. Fa-
la-se muito da Petrobrás, mas a produção aumenta regularmente.
A ferrovia Norte-Sul vai destravar o interior, que terá acesso ao
mar. Vamos, finalmente, ter ferrovias. Os aeroportos deram certo.
O governo errou muito com a taxa de retorno das rodovias. Travou
tudo. Quando soltou, nos aeroportos, foi adiante. Outro erro é
que Dilma continua na política anticíclica, que era boa quando os
preços das exportações estavam altos. Não podia continuar, mui-
ta gente avisou, e agora o ministro Guido Mantega, que perdeu
a credibilidade há tempos, transmite mensagens de otimismo
inapropriadas. O papel do ministro não é fazer wishful thinking.

A política externa tinha ganhado em importância com Lula,


que se esforçou para elevar a posição internacional do Brasil. O
governo Dilma parece ter voltado atrás nessa estratégia.
Dilma provocou um apagão na política externa. Colocou
como ministro das Relações Exteriores alguém com quem ela não
se entendia, o [Antonio] Patriota. Quando foi aos EUA, em abril de

161
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

2012, chegou lá e o Congresso estava em recesso. Fechado. Nem


a imprensa brasileira, que era contra Dilma, se deu conta de que
ela foi lá durante um recesso: como o Itamaraty organizou a visita
assim? É como chegar a Brasília no mês de janeiro. Por outro lado,
ela reagiu muito bem ao não ir na visita de Estado americana.
Dilma reagiu nesse embalo, mas não tem uma política articulada.
Coisas como a criação do banco dos Brics, por exemplo, já eram
questões antigas. Dilma nunca deu uma entrevista coletiva para
correspondentes estrangeiros sobre política externa, separando
os grandes assuntos, como fazem em outros países.

Correspondentes estrangeiros têm manifestado estranheza


com a ausência da política externa nos debates presidenciais.
O senhor tem a mesma impressão?
A grande lacuna do debate é a política externa. O primeiro
parceiro comercial do Brasil é a China e ninguém aqui sabe nada
sobre a China. Há poucos especialistas em China no Brasil. De-
morou 40 anos para aparecer o ensino da África aqui, quando já
estava na cara que os portugueses iam dar com os burros n'água
no começo dos anos 1960 e que esses países lusófonos estariam
em contato com o Brasil de novo. Espero que não demore tanto
para estudarmos a China.

Como lhe parece a política externa nos cálculos políticos dos


candidatos?
Não conta nada. Mas o presidente da República é chefe da
sexta maior economia do mundo, está no G20 e toma decisões
inclusive sobre casos como o da Argentina, país que está acuado
por um juiz de segunda instância nos EUA. Aécio, por exemplo,
não tem a menor noção do tema, nunca abriu a boca a respeito,
não fez uma viagem ao exterior. Fernando Henrique Cardoso
tinha uma rede internacional por causa da universidade e Lula,
por causa do movimento sindical. Naturalmente, há jornais e

162
ENCONTROS

aparelhos políticos europeus querendo se aliar a conservadores


brasileiros e dariam espaço para alguém que chegasse lá. Não há
uma foto de Aécio com conservadores europeus.

E quanto a Marina?
É a mesma ausência de articulação. A bandeira do meio
ambiente, em que o Brasil tem posição de destaque, com a de-
fesa da Amazônia, é um tema de interesse mundial e ela é uma
militante de base. Foi convidada na Olimpíada de Londres para
desfilar, foi a única brasileira. Há gente no mundo todo interes-
sada no que ela tem para dizer, mas ela não coloca em debate
a política externa.

O eleitor não se interessa por política externa, os candidatos


tampouco, o governo menos ainda...
O país sofre com isso. É uma questão de desinteresse e
incompreensão. Dilma tinha um posto-chave no governo Lula,
não podia ter deixado o tema tomar esse rumo. Quando [o em-
baixador] Roberto Azevedo foi eleito presidente da Organização
Mundial do Comércio, vários países votaram nele porque era
o Brasil de Lula, e houve gente que reclamou porque ela não
ligou para agradecer. O Brasil arrancou a presidência da FAO,
da OMC, Olimpíada, Copa do Mundo, por quê? Porque estava
presente e ativo.

Uma crítica diz respeito à recusa em fechar tratados bilaterais


de comércio.
Isso é para ser comido em fatias. Os tratados, hoje, se or-
ganizam em bloco. O Brasil é muito pequeno, viraria aperitivo
de grandes. A Europa e os EUA estão organizando o Tratado do
Atlântico Norte. A China está organizando a Ásia e engole parte
da América Latina. O Brasil podia jogar no Atlântico Sul, na Áfri-
ca, destravar o Mercosul. A alternativa de acordo bilateral é boa

163
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

para o México, uma economia reflexa da economia americana.

O senhor fez uma célebre defesa das cotas raciais nas universi-
dades, no STF, em 2010. Como avalia o que ocorreu de lá para cá?
Na época, argumentava-se que as cotas criariam conflitos. E
não há conflito. Há mais conflito com o trote do que com alunos
negros. Os estudantes receberam essa novidade pacificamente.
Tem sido um sucesso. A coisa mais visível para quem não morava
no Brasil, progressivamente, é a presença da população negra
em postos de classe média.

Como interpreta o xingamento racista ao goleiro Aranha, do


Santos, e a expulsão de estudantes mineiros que protagoniza-
ram um trote racista?
Isso é típico. Indica que a sociedade aceitou que o conflito
racial existe. Como no romance Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge
Amado. O marido mata a mulher por adultério e não é inocen-
tado: vai preso. Isso é uma ruptura na cultura jurídica machista.
Fazer um insulto racista e ser posto diante das consequências
penais do ato é novidade. E choca. Cria-se a ruptura na história
do direito civil. Como o motorista que pegou 92 anos de cadeia
por dirigir bêbado e matar três pessoas. A estupefação da família
da moça que fez o insulto racista reflete isso.

Vivendo em Paris na época, como o senhor acompanhou o que


ocorria no Brasil em junho de 2013?
Estamos entrando no pós-colonialismo. A polícia colonial
é essa que se conhece, porque quando é para bater em pobre e
negro, é pancada pura. A polícia está tendo que aprender, como
a África do Sul depois do apartheid. Recentemente, dois policiais
militares que se recusaram a atacar uma manifestação, porque
poria vidas em risco, foram absolvidos pela Justiça Militar. Ti-
nham sido presos por desobedecer aos comandantes e foram

164
ENCONTROS

inocentados. Isso é um debate típico do pós-colonialismo, e me


lembra [Nelson] Mandela com a polícia do apartheid, dizendo:
"Não atirem mais"! Em maio de 1968, isso foi uma virada na
França. As manifestações lá são violentas e as pessoas diziam:
"A polícia não atira nos filhos da burguesia". Sete anos antes,
em 1961, a polícia matara centenas de argelinos durante uma
manifestação em Paris, muitos deles afogados no Sena. Era uma
polícia colonialista.

O senhor está dizendo que há um movimento consistente de


superação da violência policial no Brasil?
Acho que sim. É um momento histórico, de ruptura. Ter uma
polícia que não sai mais atirando é um contraste que deve ser
cada vez mais marcado. Diante do Masp [Museu de Arte de São
Paulo, na avenida Paulista, lugar usual de manifestações] não
morre ninguém, mas dez quilômetros adiante morrem três ou
quatro.

A mudança histórica não viria quando dez quilômetros adiante


também não morressem?
Claro, mas criar o contraste nítido é importante. Pense, por
exemplo, na emenda constitucional que estendeu os direitos
trabalhistas aos trabalhadores domésticos. O substantivo já diz
tudo. As domésticas têm sido há séculos sinônimo de exploração
de trabalho adolescente, feminino, de negação de direitos sociais.
A mudança na lei marca uma etapa de civilização pós-colonial,
como a educação dos PMs para controlarem manifestações sem
brutalidade.

165
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

“Eu queria fazer História


para entender o presente”

166
POR ALEXANDRE MORELI, BERNARDO BUARQUE E
MARCO AURÉLIO VANUCCHI
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

“Eu queria fazer História


para entender o presente”
POR ALEXANDRE MORELI, BERNARDO BUARQUE E MARCO AURÉLIO VANUCCHI

Publicada originalmente na revista


Estudos Históricos 29 (57),
realizada em 6 de julho de 2015

Você é catarinense, nascido em 1946. Poderia nos falar sobre


suas origens familiares?
Nasci em Itajaí, cidade que tinha 30 mil habitantes, porto
do Vale do Itajaí. Meu pai era de uma família de Goiás Velho, se
formou no Rio e foi para lá depois da Revolução de 1930. A família
dele era aliada dos Caiado, e um primo dele, que era funcionário
do Correio Federal, foi transferido para Santa Catarina a pedido
do Pedro Ludovico, da nova ordem. Minha mãe vinha de uma
família cujas origens eram alemãs e açorianas.

Como foi sua vivência em Santa Catarina?


Em 1951 foi o centenário de Joinville, que assim como Blu-
menau e Brusque foi um enclave de imigrantes alemães fundado
no fim do tráfico negreiro. Houve várias comemorações por ali
nos anos 50. Meus avós, de Goiás Velho, vinham nos visitar. Era

168
ENCONTROS

uma viagem longa, com trocas de aviões e paradas pelos aero-


portos. Eles ficavam surpreendidos com aquele ambiente de
gente do povo falando alemão. O contraste cultural do Brasil, das
diferenças dentro do país, impressionava meus avós, e a reação
deles me impressionou também. Outra coisa que me marcou foi
a proximidade social que existia na região de Itajaí, onde havia
pobres, claro, mas muito pouca gente vivendo na miséria, como
também não havia gente muito rica.

Sobre sua formação escolar, o que poderia nos contar?


Estudei no Colégio Catarinense, dos jesuítas, em Florianópo-
lis. O internato tinha um regime severo, aula de manhã e estudo
a tarde inteira, acordando todo dia cedo para ir à missa e tal. É
um mundo que não existe mais.
Cresci lá durante o governo do Juscelino, que foi o momento
em que o Brasil foi mais otimista. Houve a indústria automo-
bilística, a construção de Brasília, um regime democrático até
então inédito. Em seguida, mudamos para Brasília. Fomos para
Goiânia primeiro, em família, e meu pai foi para capital federal.
Ele era pediatra.

A formação de seu pai foi na Faculdade de Medicina do Rio de


Janeiro.
Sim, ele se formou no final dos anos 1920, foi das primeiras
turmas formadas no prédio da Praia Vermelha. Quando chegou
a Brasília vindo de Santa Catarina, ficou tocado com a miséria
dos candangos. As condições sociais existentes na construção de
Brasília constituem um episódio mal conhecido. Iam chegando
trabalhadores e famílias em situação precária, sem alojamento.
Uma vez, num posto de gasolina perto de Brasília, vi um "pau-
-de-arara" com pessoas que não saíam do caminhão e bebiam
água de uma mangueira esticada para cima da caçamba. Vinha
gente do Nordeste, mas também de Minas e Goiás, onde as

169
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

pessoas pobres em geral não passavam forme, porque viviam


na beira do rio, comendo peixe, banana e o fruto que aparecia,
com a pequena rocinha ali. De repente, iam parar numa favela
em Brasília, sem nada em volta, sem poço nem água corrente.
Antes do lago Paranoá encher e aquelas árvores crescerem, o
clima de Brasília era muito mais seco. Havia a desidratação,
que aumentava a mortalidade infantil. Meu pai dirigia o Pronto
Socorro Infantil do Hospital de Base e ficou impressionado com
essa precariedade social.

Como era o clima político em Brasília e na UnB em meados


dos anos 1960?
Desde 1963, com o retorno do presidencialismo, nós es-
távamos numa grande tensão. Quando veio o golpe de 1964,
ficamos perplexos. Jango tinha ido para o Rio Grande do Sul.
A gente não sabia o que ia acontecer. No meio tempo, com ou-
tros companheiros, integramos a direção da Feub, Federação
de Estudantes Universitários de Brasília, e todos nós ficamos
expostos. Criaram vários IPMs que pegavam a UnB toda, sobre
a UNE, sobre o método Paulo Freire, sobre uma declaração que
nós demos condenando o "terrorismo cultural" na UnB. Tinha
a PM, tinha o Exército, tinha a Marinha, e a gente era "freguês"
desses Inquéritos Policiais Militares todos... Fui preso e solto
logo depois. Mas era igual a continuar preso, você ia para casa,
naquelas superquadras isoladas de Brasília, tinha um soldado
embaixo, e um jipe com um militar na esquina. A cidade era
meio vazia, com um aeroporto pequeno e militarizado, com
uma estrada que ia para o Rio, via Belo Horizonte, e outra que ia
para São Paulo, via Goiânia. O ambiente era lúgubre na cidade,
porque a maioria dos funcionários públicos e dos habitantes era
juscelinista e janguista, e temia perseguições.

Já se sentia o estado de exceção.

170
ENCONTROS

Eu não sofri violências físicas, mas um dia, num interrogató-


rio no Batalhão da Guarda Presidencial, eu vi o pai de um amigo
meu, polonês, que havia sido torturado em Goiânia: tinha umas
queimaduras nas pernas com ferro elétrico, uma coisa violenta.
Havia um clima assim.
Conheci nessa época Maurício Goulart, que era um deputado
federal da esquerda democrática, autor do grande livro que, do
ponto de vista universitário, iria me marcar. Eu era amigo da
filha dele, conversávamos na casa dele. Só mais tarde fui avaliar
a importância da obra dele. Falo do livro A escravidão africana
no Brasil, de 1949, que é o balanço do tráfico mais exato que
foi feito na época. É um livro escrito por um não universitário,
que fez essa pesquisa toda no Instituto Histórico, na Biblioteca
Nacional. O Sérgio Buarque de Holanda fez um prefácio elogioso
na segunda edição do livro.

Você chegou a Brasília já com interesse na política?


Um pouco. Mas lá havia esse clima em volta do Darcy, do
Oscar Niemeyer, Evandro Lins e Silva, Hermes Lima, da geração
de esquerda anterior à minha, que eu frequentava por causa da
UnB e de amigos comuns. Era um ambiente muito exaltante. O
maestro Cláudio Santoro organizava audições de gravações de
concertos todas as tardes na UnB. Eu assisti a uma das primeiras
exibições de Deus e o Diabo na Terra do Sol, apresentado por
Paulo Emílio Sales Gomes, professor da UnB, no cineclube que
ele dirigia. O momento político e cultural era às vezes tenso, mas
vibrante. Tinha havido a Revolução Cubana, gente da UnB tinha
ido a Cuba e voltava contando o que vira por lá.

Vocês tinham alguma relação com as Ligas Camponesas?


Sim, uma vez a gente foi a uma reunião em Goiás com um
grupo ligado a elas. Fui com Paulo de Tarso Celestino, que tam-
bém era da diretoria da Feub. O Paulo era moderado. Depois

171
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

da reunião, ele disse: "Esse pessoal é muito radical, não aceita


nem camponês de enxada nova. Assim não dá." Ele era contra
toda radicalização. Mas foi acuado pela Ditadura de fio a pavio,
escondeu-se e em seguida participou da luta armada. Acabou
assassinado debaixo de uma tortura atroz naquela sinistra casa
de Petrópolis. Foi um pouco o que poderia ter ocorrido com
vários de nós e o que aconteceu com Honestino Guimarães,
nosso sucessor na Feub. Outros não foram mortos, mas foram
torturados, presos, tiveram que se esconder, e suas vidas sofre-
ram graves transtornos. Nas ditaduras, na América Latina ou
no resto do mundo, você nem sempre escolhe a forma de fazer
oposição. As circunstâncias e a própria repressão empurram às
vezes parte dos oposicionistas para a clandestinidade e a luta
armada. Quando vejo gente desinformada ou de má-fé dizer
que Dilma "escolheu" a luta armada na sua juventude, acho um
absurdo. Por que é que só teve luta armada no Brasil durante a
Ditadura, e não no regime constitucional, ao contrário do que
aconteceu noutros países latino-americanos ou europeus? Por
causa da Ditadura, foi a Ditadura que perseguiu uma parte dos
oposicionistas e os empurrou para a luta armada.

Em função desse clima de 1964, você foi preparando a sua


saída...
Sim, eu pedi uma bolsa na França. Deram para mim, para
o José Almino de Alencar e para o Tito Ryff. Acabei tendo seis
anos de bolsa do governo francês, para fazer a Sciences Po e o
doutorado em História, em Paris.

Como foi radicar-se na França?


Bom, eu já sabia falar francês. Isso facilitou as coisas. Havia
o Institut d'Études Politiques, a Sciences Po, em Paris, mas tam-
bém em Bordeaux, Grenoble e Aix-en-Provence. Fiquei amigo
de um casal de estudantes franceses e eles me disseram: "Com

172
ENCONTROS

o dinheiro dessa sua bolsa, aqui em Paris, você não vai longe;
agora, em Aix-en-Provence, você vira um rei; com um Solex –
uma bicicleta motorizada –, um carnê de tíquetes do restaurante
universitário e a sua bolsa, você é dono da cidade." [risos] Eles
sabiam também que eu queria sobretudo estudar História e me
disseram que Aix tinha a melhor Faculdade de História da França.
Então foi para lá que eu fui.

Em Aix-en-Provence, você manteve seus contatos políticos?


Em Aix eu fiz outro tipo de contato político. Pela primeira vez
vi uma extrema direita estudantil organizada, assumida, agres-
siva, indo para cima dos estudantes de esquerda com cassetete.
Era o movimento Occident, com estudantes anti-gaullistas e
anticomunistas egressos das facções ultracolonialistas da Argé-
lia, e a Action Française, monarquista. Tudo isso num ambiente
marcado pela presença de ex-colonos franceses que haviam
sido obrigados a abandonar a Argélia em 1962, numerosos em
Aix e Marselha. Havia um ressentimento enorme com a desco-
lonização promovida por De Gaulle. Os monarquistas da Action
Française tinham um argumento atraente para o regionalismo
provençal, occitano, porque defendiam uma maior descentraliza-
ção dos poderes na França. Muitos deles falavam correntemente
provençal. Depois de maio 68, parte deles virou maoísta, porque
o maoísmo valorizava a cultura camponesa, pré-industrial e
reforçava suas convicções regionalistas. Os estudantes da Cór-
sega, que vinham muito para as faculdades de Marselha e Aix,
também voltaram para sua ilha com essa cultura maoísta que, no
caso deles, desembocou no movimento independentista corso.
Quando comecei a dar aulas em Rouen, em meados dos anos
1970, vi que havia essa mesma mistura de ultraesquerdismo e
regionalismo entre os estudantes bretões.
Havia outras coisas novas para mim em Aix. Fui a umas reu-
niões do Partido Comunista Internacional em Marselha. Não são

173
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

trotskistas, são seguidores de Amadeo Bordiga, marxista italiano.


Havia militantes antifascistas italianos e franceses, gente que
havia combatido nas Brigadas Internacionais na Espanha e na
Resistência na França. Eles eram antimilitaristas e anticolonia-
listas, mas diziam que o Ho Chi Minh – o tema do momento era
a Guerra do Vietnã – era defensor da burguesia vietnamita e que
a guerra no Vietnã era uma luta entre burguesias nacionais, que
não havia solução por aí [risos]... Mas eles tinham uma sólida
cultura anti-stalinista e aprendi bastante com eles.

Conte um pouco mais da sua formação acadêmica.


Eu era obrigado a fazer o curso da Sciences Po, porque a
minha bolsa era para Ciências Políticas. Todo mundo de terno,
alunos e professores muito conservadores. Aliás, eu estou lendo
agora o livro da Raphaëlle Bacqué sobre o Richard Descoings,
que revolucionou a Sciences Po de Paris. Foi ele quem deu o
doutorado honoris causa para o Lula. Descoings era um cara
muito interessante. Tentou mudar a Sciences Po de Paris que,
como em Aix, era uma instituição muito conservadora. Quando
eu cheguei, em 1966, o ambiente era até reacionário, como disse
antes, com monarquistas e ultracolonialistas fazendo discursos.
Mas eu queria fazer História, para poder entender o presente. E,
no caso do Brasil, as derrotas do presente, já que a Ditadura, ao
contrário do que nós pensávamos logo após o golpe, se instalava
para ficar muito tempo no poder. Fiz então uma parte do diploma
de História, que na época era ensinada junto com Geografia,
paralelamente ao diploma de Sciences Po.

E a Sociologia? Porque para essa geração dos anos 1960 a so-


ciologia tinha um peso no Brasil.
Ah, é. José Almino foi fazer Sociologia em Nanterre, era o
momento glorioso da Sociologia, com Raymond Aron, Edgar
Morin, Touraine e em seguida Bourdieu. Mas quem dominava

174
ENCONTROS

mesmo as Ciências Sociais e o Direito era a História. Foi o pico da


influência dos Annales, e História era a ciência humana central
na França. Havia muito interesse na América Latina. Porque a
França tinha se dado mal na descolonização na África e recen-
trava sua diplomacia mundial privilegiando a América Latina,
que desde Auguste Comte aparecia com uma área natural de
influência francesa.

Quando você chegou na França o estruturalismo tinha um


peso, não?
Ainda estava começando e nunca influenciou muito a His-
tória. Eu queria estudar História e lá estavam o Georges Duby,
o Michel Vovelle, o Maurice Agulhon, o Paul Veyne. Havia um
ambiente favorável porque os professores viviam próximos dos
estudantes. O Brasil suscitava simpatia. O país ganhou notorieda-
de por causa da construção de Brasília, do crescimento industrial
na época de JK e pelas vitórias da Copa do Mundo em 1958 e 1962.
A cultura occitana também é próxima da gente. O provençal é
uma língua que soa mais próximo do português que o francês
ou o espanhol. Então eu me entranhei ali, era convidado para
a casa de professores e amigos da universidade, assisti a missas
em cidadezinhas em que o padre fazia o sermão em provençal...
Aix era uma cidade pequena, mas cosmopolita, e logo ao lado
ficam Marselha, o Mediterrâneo. Os Alpes também ficam perto.

E como era o clima intelectual na Universidade de Aix-en-Pro-


vence?
A descentralização universitária no pós-guerra fez com que
começasse a ressurgir a história regional nas universidades.
Os pesquisadores ensinavam e moravam ali, o arquivo ficava
na região. As teses de Agulhon e de Vovelle eram sobre a Pro-
vence moderna. Le Roy Ladurie, que ensinava em Montpellier,
fez sua tese sobre os camponeses da região. Duby nos levava

175
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

para visitar as três abadias medievais cistercianas da Provença.


Houve também a descentralização dos arquivos na França,
e os arquivos das ex-colônias foram para Aix-en-Provence. A
gente chegava no arquivo e lá estavam caixas de documentos
vindos da Argélia, do Senegal, do Congo Brazzaville, do Gabão.
Havia esse ambiente em que a África estava bastante presente.
Fui assistente de pesquisa num Centro de Estudos do Oceano
Índico, onde redigia fichas sobre Moçambique. Ali e nos bares
de Aix conheci bastante estudantes africanos, notadamente um
historiador etíope brilhante, já doutor em Oxford, em seguida
em Aix, e que depois foi assassinado pela ditadura de Mengistu.
Outro, guineano, foi vítima de Sékou Touré. As crises das inde-
pendências, das ditaduras africanas, e depois, das guerras civis,
foram dramáticas. Guardei um grande respeito pela dignidade
com que os estudantes africanos enfrentavam as adversidades
de seus países e de seus povos.

Aí veio Maio de 68...


Foi uma coisa surpreendente. Porque ninguém entendeu
o que estava acontecendo. Nem De Gaulle, nem o Partido Co-
munista Francês, nem a CIA, como se viu em documentos pu-
blicados mais tarde. Eu já estava lá havia dois anos. De repente,
numa das manifestações em Marselha, começou-se a gritar
contra o De Gaulle. Achei um disparate, porque De Gaulle era
o herói dos latino-americanos e africanos, tinha restabelecido
relações com a China, era contra a hegemonia americana e
soviética, e aquilo tomou um rumo inesperado. Junto com ou-
tros estudantes, fomos para Paris em meados de maio. No final
das contas, nos enganamos duas vezes. Primeiro a gente não
entendeu o que estava acontecendo fora de Paris e das cidades
universitárias. Alguns mais lúcidos comentavam: "Olha! Está
cheio de bandeiras vermelhas aqui na Sorbonne." A estátua de
Victor Hugo tinha uma bandeira vermelha, e a de Pasteur outra.

176
ENCONTROS

[risos] Os mais céticos perguntavam: "Vocês acham que isso vai


ficar aí? A França é assim?" Muitos de nós pensávamos que a
esquerda estava muito forte depois das manifestações de maio,
caracterizadas, é bom lembrar, pela maior greve operária num
país industrializado no pós-guerra.
Mas a esquerda não estava tão forte assim. Tanto que De
Gaulle dissolveu a Assembleia, convocou novas eleições e obteve
uma maioria de direita mais ampla ainda nas Legislativas de
junho de 1968. O segundo erro nosso foi, em seguida, achar que
maio tinha acabado ali, com aquela vitória eleitoral da direita.
Nos enganamos de novo. Primeiro, porque houve conquistas
importantes para os trabalhadores. Teve aumento do salário
mínimo, obrigatoriedade de delegado sindical nas fábricas, uma
quarta semana de férias pagas anuais. Em seguida, e isso a gente
só percebeu bem mais tarde, se viu que o movimento de maio
de 68 provocou uma mudança cultural e social que revigorou a
sociedade francesa.

Conte agora da sua vida acadêmica pós-68.


Eu me mudei para Paris, para fazer o doutorado com o
Frédéric Mauro, que priorizava a história quantitativa, como o
Pierre Chaunu, o Magalhães Godinho, o Pierre Vilar e um pouco o
Ruggiero Romano, todos eles especialistas nos impérios ibéricos.
O Ruggiero Romano disse isso, uma vez, num seminário: "Toda
geração tem um livro dominante, que você quer fazer igual ou
refutar. O da nossa geração é o War and Prices in Spain (1947), do
Earl Hamilton." Hamilton era o grande professor de história eco-
nômica de Chicago e estava renovando os estudos quantitativos
sobre a crise do século XVII, sobre o impacto da prata espanhola
vinda de Potosí, na atual Bolívia, na economia mundial.
Era a ponta da história quantitativa. Os discípulos do Braudel
também se interessavam muito por Hamilton. Mas eu gostava
mesmo era do Braudel. Li ainda na Faculdade em Aix a primeira

177
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

edição de Civilização material e capitalismo, publicado em 1967,


que mudou a minha cabeça. Braudel entrava no vivo, na vida
material e nas mudanças ocorrendo dentro e fora da Europa
moderna. Depois houve a edição ampliada do livro dele em três
volumes, de 1979, que teve grande notoriedade. Com Mauro,
trabalhei na tese e em grupos de pesquisa durante 15 anos. Jun-
to com Chaunu, Mauro foi um dos primeiros doutorandos de
Braudel. A tese dele foi publicada em 1960 num livro dedicado
a Braudel, Le Portugal et l'Atlantique. Ele não pôs Brasil no título
por fidelidade à ideia braudeliana de geo-história, na qual o que
conta é o espaço, e não os países que ainda não existiam, como
o Brasil. Podem dizer que é eurocêntrico, mas o fato é que eles
estavam nesse projeto de integrar o mundo à economia domi-
nante da época, à economia europeia.
Eu tomei um rumo um pouco diferente, porque havia lido
a segunda edição de Brasil e África, de 1965, do José Honório
Rodrigues, um livro pioneiro que é subestimado por boa parte
dos autores brasileiros. O livro mostrava que o Brasil tinha um
pulmão na África. Antes de 1808, Luanda era o segundo porto
mais importante do comércio externo brasileiro. O primeiro era
Lisboa. Depois de 1808, o primeiro lugar mudou de Lisboa para
Liverpool, mas Luanda não mudou, continuou sendo o segun-
do porto mais importante das trocas externas brasileiras. Num
artigo recente que apresentei no CPDOC [Centro de Pesquisa e
Documentação da Fundação Getúlio Vargas], The Ethiopic Ocean:
history and historiography – 1600-1975, tentei mostrar como
Braudel, Mauro e Chaunu passaram batido sobre as ligações
entre o Brasil e a África, deixando de lado o comércio bilateral,
cuja existência eles não ignoravam. Para mim, esse "esqueci-
mento" deles ilustra o pensamento dominante da época, que
desconsiderava a África negra.

Como foi o início da sua carreira docente na França?

178
ENCONTROS

Eu comecei na Universidade de Paris VIII em 1973. Roberto


Schwarz já dava aula lá. Tinha uma matéria nova sobre a relação
Brasil-Estados Unidos, Roberto estava fazendo a tese dele sobre
Machado de Assis, achava que essa matéria se afastava do assunto
dele e me indicou como chargé de cours. Eu ainda nem tinha dou-
torado. Depois fui lecteur e assistente associado na Universidade
de Rouen. Mas continuei em Paris VIII, no bosque de Vincennes,
que depois se mudou para Saint-Denis, e lá fiquei até voltar para
o Brasil em 1986. Roberto Schwarz acompanhou e influenciou
minha produção intelectual desde essa época, devo muito a ele.

Quando você foi para Paris, para fazer o doutorado, já tinha


clareza da temática?
Ah, já. O Duby tinha me proposto estudar o Portugal medie-
val. Mas eu não queria estudar Idade Média. Eu queria estudar
o Brasil. E para isso era preciso procurar o Mauro. Ele estava em
Paris X (Nanterre).

E você se reintegrou à comunidade brasileira que você tinha


conhecido logo no início.
É. Mas a comunidade havia mudado, porque começou a che-
gar do Brasil o pessoal fugindo da repressão violenta, luta armada
e tal. Aí foi difícil para eles. Porque aquela gente chegava e não
estava preparada para, de uma hora para outra, virar estudante,
assistir aos seminários e se enfiar nas bibliotecas. O caso mais
dramático e conhecido é o do frei Tito. Ele chegou a Paris depois
de um período de prisão e tortura bárbara em São Paulo. Acabou
se suicidando. Houve dois outros casos assim.
Na École des Hautes Études en Sciences Sociales, a EHESS,
Alain Touraine, Daniel Pécaut e outros professores montaram
um sistema que dava um diploma em Ciências Sociais e acolhia
exilados latino-americanos. Sobretudo depois do golpe no Chile
(1973), que causou muita indignação na França. Mitterrand e a

179
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

esquerda francesa se sentiam próximos do Allende, que contava


ainda com a simpatia dos maçons franceses. Com a inscrição
na EHESS, os exilados estudantes tinham o RG de estrangeiros
garantido e retomavam o vínculo universitário. Mauro também
recebeu muitos desses estudantes assim, da mesma forma que
Celso Furtado. Esses professores foram fundamentais no novo
rumo de vida dos jovens intelectuais exilados. Houve esse mo-
mento de debate de ideias sobre a América Latina e o que estava
ocorrendo no Vietnã e na África. A Universidade de Paris é uma
das únicas universidades de primeira linha que está dentro de
uma grande capital, de um grande centro cosmopolita e cultural
europeu e mundial.

Como tem sido a evolução recente da cadeira que você ocupou


na Sorbonne e dos estudos sobre o Atlântico Sul?
O Mauro estabeleceu a área dos estudos do Atlântico Sul,
mas na prática não teve sucessor. Ao mesmo tempo a União
Europeia foi se ampliando e, com o fim da Guerra Fria, muitos
pesquisadores se voltaram para o estudo da Europa Central e do
Leste. Hoje há menos interesse pela América Latina e pelo Brasil
do que nos anos do pós-guerra. Houve uma ameaça, quando eu
substituí a Kátia Mattoso em 2000 na cátedra que era de História
do Brasil, de que ela virasse de História da América Latina inteira,
ou talvez da Europa Central. Isto porque a cátedra da Europa
Central foi fundida com a de História Militar durante a Guerra
Fria. Então sempre houve esse suspense.
Da primeira vez, houve um esforço para manter a cátedra de
História do Brasil. O Mauro participou do movimento, ao lado
dos colegas da Sorbonne e da Kátia, que também defendiam a
cátedra. Com a Kátia, a cátedra estudava o Brasil e em parte a
América Latina. Eu dei a virada para estudar o Brasil no Atlântico
Sul, incluindo a África ocidental e Moçambique, e sobretudo
Angola, como também o Rio da Prata. Quem salvou a cátedra em

180
ENCONTROS

2014, quando me aposentei e Laura de Mello e Souza foi eleita,


foram os colegas da Sorbonne favoráveis à sua continuidade e o
Aloizio Mercadante, que era ministro da Educação. Ele foi bem
recebido na Sorbonne porque muitos alunos do programa Ciên-
cia sem Fronteiras estavam indo para lá. Porém quando Laura
se aposentar, pode haver de novo o mesmo risco de supressão
da cátedra de História do Brasil. É preciso lembrar que o Brasil
tem uma importância relativa para a França por causa da fron-
teira comum com a Guiana Francesa, que é a maior fronteira
internacional francesa.

Sobre história e historiografia, suas teorias e métodos, que


balanço você faz e que caminho vê para o futuro da história?
Vale a pena observar que uma tendência historiográfica na
França não excluía as outras. Isto é, o estruturalismo não tirou a
importância da história econômica, a história das mentalités não
acabou com a história econômica ou com a história quantitativa,
ao contrário do que às vezes se acredita aqui. Eu comentei isso
num artigo da revista do Cebrap que se chama "Que mentalidade
é essa?" No Brasil havia uma excelente base de historiografia
econômica, atlântica e quantitativa, criada pela Alice Canabrava,
que foi a grande discípula do Braudel na USP. Ela estudou His-
tória Atlântica e formou toda uma geração. Formou o Francisco
Vidal Luna, formou o Flávio Saes, o Delfim Neto; e o Mauro deu
apoio, organizou em 1972 um colóquio de história quantitativa
do Brasil em Paris que foi uma grande virada também. Muitos
pesquisadores da área eram mulheres, aliás. Além de Canabrava
havia Bárbara Levy, Maria Yedda Linhares, Eulália Lobo, que fez
aquele trabalho notável de história quantitativa do Rio de Janeiro,
Kátia Mattoso, Cecília Westphalen.

Todas mulheres.

181
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Mulheres. É interessante. Maxine Berg, uma historiadora


da Universidade de Warwick, escreveu um ensaio sobre a con-
tribuição das historiadoras econômicas britânicas à disciplina.
Penso que o assunto também poderia ser estudado no Brasil.
Digo isso porque já ouvi colegas falando que "a feminização da
profissão é que levou ao domínio da história cultural". Não é por
aí. Havia uma temática de história econômica muito sólida, com
grandes professoras e pesquisadoras. A temática não se conso-
lidou porque veio a voga da história cultural, que tem trabalhos
importantes, mas também trabalhos onde se ignoram as relações
de força ou o contexto geral.
Com a micro-história, há pesquisadores que seguem os traços
de um só indivíduo, como se ele fosse o depositário do saber de
toda uma região ou de toda uma época, e o estudo de caso vira
o estudo do mundo. Hoje há pesquisadores que não sabem ela-
borar ou ler um gráfico, analisar dados quantitativos. Na França
e nos outros países isso não acontece. Duby e Le Roy Ladurie,
nomeados quase na mesma época no Collège de France, pos-
suíam uma sólida formação em história econômica. Na mesma
época Roland Barthes e Michel Foucault entraram no Collège, e
o trabalho deles dialogava com o de Duby e de Le Roy Ladurie.

No Collège?
No Collège. Na aula inaugural do Foucault estava o tout Pa-
ris... [riso]. Na aula do Barthes havia o tchan intelectual e mais o
tchan elegante, moças e senhoras de chapéu... Na aula inaugural
do Duby tinha pouca gente na moda, mas penso que ele gostou
desse contraste. Ele escreveu livros de história da arte, de histó-
ria agrária e econômica, história das mentalidades, e também
reinventou a história das batalhas e a biografia histórica, como
em o Guillaume le Maréchal. Por isso ele achava que os velhos
mestres dos Annales já faziam o que Jacques Le Goff depois
intitulou la nouvelle histoire. A temática da biografia inserida

182
ENCONTROS

nas transformações da época do biografado já estava no Martin


Luther do Lucien Febvre. A história das mentalidades já estava
presente no Les Rois Thaumaturges de Marc Bloch. Quanto a
Braudel, que era da geração anterior do Collège, ele criticou pe-
sado a virada culturalista dos seus sucessores nos Annales, que
acabaram tirando em 1994 a palavra "Economia" do título da
revista: "Se os meus sucessores [na direção dos Annales] preferem
estudar as mentalidades negligenciando a vida econômica, pior
para eles!", disse ele num debate publicado na Review, revista
dirigida por Immanuel Wallerstein, em 1978. Nesse debate his-
toriográfico, eu sigo sem hesitar o ensinamento de Duby, Le Roy
Ladurie e Braudel.

Queríamos falar um pouco sobre o papel da Geografia. A im-


pressão que fica é de que a Geografia é um argumento central no
seu livro O trato dos viventes. Você tem uma formação, também,
em geografia, e isso parece ser um dos vínculos que ligam você
a Braudel. Você se sente ligado a esse materialismo geográfico
do Braudel? Qual é o papel da geografia na sua obra?
Bom. Isso é próprio do ensino na França, da geração dos
Annales a que me referi, e em particular do Braudel, que era con-
siderado um "geo-historiador". Quando eu estava na graduação,
como disse, fiz História e Geografia juntas. A tese do Duby, sobre
a abadia de Cluny, perto de Macon, onde ele cresceu, é muito
ligada à geografia, como também seu livro intitulado L'économie
rurale et la vie des campagnes dans l'Occident medieval, de 1962.
Mauro também insistia muito no enfoque geográfico. Embora,
como eu disse, Braudel e sua geração dos Annales, no que con-
cerne aos estudos africanos, sejam decepcionantes. Os mapas
do Mauro sobre o Atlântico Sul, que o Chaunu desenvolveu, são
mapas muito úteis para entender as rotas entre a Europa e a
América, porque mostram as distâncias em tempo real, conforme
as estações do ano. No inverno, era mais longe ir do Brasil para a

183
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Holanda, para Portugal, durante a guerra holandesa, e no verão


era muito mais perto, por causa do sistema de ventos e correntes.
Mas nesses mapas não havia as ligações do Brasil e do Rio da
Prata com Luanda e outros portos africanos. Na configuração do
espaço histórico deles, a África ficava meio de fora. As relações
bilaterais, magistralmente estudadas mais tarde por Pierre Verger,
não foram levadas em conta.

O Fluxo e refluxo.
Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a
Bahia de Todos os Santos, de 1968. Braudel dirigiu a tese e publi-
cou esse livro do Verger. Mas ele não cita o Verger em Civilisation
matérielle. Mais curioso ainda, ele diz que o esquema geral do
tráfico negreiro era o comércio triangular. Quando ele aborda a
questão do tráfico, cita essencialmente o livro do Philip Curtin
sobre a Senegambia, junta lá um outro material, mas não tem
Boxer, nem Verger... O livro do Curtin, sobre o balanço do tráfico
negreiro, saído em 1969, já era bem conhecido. Mas Braudel
também não o utilizou.

Quando você começou a pesquisa documental para sua tese?


Em 1973. Pesquisei os arquivos franceses, no Quai d'Orsay,
nos Archives Nationales, lendo a correspondência consular e
diplomática com o Brasil depois da Independência. Houve um
verão em que eu fiquei sozinho em Paris, e estava um caloraço.
A Bibliothèque Nationale (BN) era ainda na rue Richelieu, era
um lugar fresco e agradável. E eu li toda a coleção da Revista do
Instituto Histórico, que estava numa das prateleiras de acesso
livre. Pegava dois, três volumes, e pau na máquina. Li a coleção
toda, passei o verão e os meses seguintes lendo e anotando.
Depois, o Jornal do Commércio de meados do século XIX. Li
também o Almanak Laemmert, começando pelos exemplares
que havia na BN, porque para ler o resto era preciso ir até a

184
ENCONTROS

British Library. Hoje, você vai nos sites e está tudo lá, a coleção
completa digitalizada.
Entre outras coisas, eu percebi que havia um problema, no
século XIX, com o tráfico. Um problema que Caio Prado Jr. e
Stanley Stein já tinham observado: como o Império havia resis-
tido tanto tempo às pressões inglesas para manter o tráfico de
africanos até 1850? Achei que devia estudar o assunto do final
para o começo, seguindo o "método regressivo" aconselhado por
Marc Bloch, partindo de 1850 para os períodos anteriores. Meu
orientador, Mauro, tinha me proposto estudar o Barão de Mauá,
a ruptura do tráfico, a reciclagem de capitais negreiros, que era
história econômica. Eu pensei: não, bom é ir para trás. Propus a
mudança do tema e ele topou.

O que mudou quanto ao acesso à fonte e à construção dos


objetos de estudo?
Quando eu escrevi O trato dos viventes, só havia sete mil
viagens negreiras no Database. Agora o TSTD [Trans-Atlantic
Slave Trade Database] incluiu dados de 35 mil viagens. Mudou
muita coisa. E a mudança vai mais no sentido do que eu estava
achando antes. Há mais coisa de Angola, com um comércio muito
mais bilateral com o Brasil do que se pensava. Também ficou
mais claro o impacto dos asientos portugueses – contratos de
fornecimento de escravos para a América espanhola entre 1595
e 1640 – na construção das redes sul-atlânticas. No meio tempo,
boa parte da documentação de Angola, e praticamente toda a
documentação do Brasil colonial, ficou disponível digitalizada.
A hemeroteca online da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro é
também um excelente instrumento de trabalho.
Para ser mais preciso, o TSTD mostra que 95% dos navios que
trouxeram africanos para o Brasil entre 1550 e 1850 saíram de por-
tos brasileiros. Estamos falando, então, de uma rede no Atlântico
Sul que é o elemento essencial, transcontinental, de formação do

185
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Brasil. Como o Atlântico Norte, o Caribe ou o Oceano Índico, o


Atlântico Sul é uma área em si, um espaço cultural e econômico
distinto. Esse espaço, que incorpora o Brasil, o Rio da Prata – que
desde o final do século XVI exportou prata via Buenos Aires, Rio
de Janeiro e Luanda para Sevilha e Lisboa, e de lá para a China –,
formava um dos eixos da economia-mundo. Depois, na primeira
metade do século XIX, Moçambique também foi incorporado às
redes sul-atlânticas pelos negreiros do Rio de Janeiro.

No debate teórico-metodológico, onde esteve e onde está a


História Econômica?
A História Econômica perdeu espaço, tanto no Brasil como
na Europa e nos Estados Unidos. O símbolo mais evidente foi
a supressão da palavra "Economia" do título dos Annales, como
mencionei antes. Porém sou menos pessimista hoje em dia, vendo
a evolução dos especialistas da nova geração. O sucesso mundial
do livro de Thomas Piketty, que tem seções onde a influência da
École des Annales é nítida e assumida, mostrou de novo as vanta-
gens de inserir o estudo da economia contemporânea na longue
durée braudeliana. Os ex-colegas dele no MIT, Daron Acemoglu,
Dora Costa e James A. Robinson, também ajudam a renovar o
prestígio da História Econômica. No Brasil, Ângelo A. Carrara, Ale-
xandre Saes e Leonardo Weller, entre outros, são um bom exemplo
dos pesquisadores da nova geração que fazem História Econômica
a partir da pesquisa de fontes primárias. Com exceção do Carrara,
formado em História, todos os pesquisadores que citei, tanto es-
trangeiros como brasileiros, são economistas de formação. Por que
os historiadores se desinteressaram da História Econômica? Está
aí um assunto sobre o qual os conselhos científicos das revistas,
os departamentos de História e as agências de financiamento de
pesquisa deveriam debater. Como dizia Braudel, sem o estudo
da economia, os historiadores perdem um terreno comum que
facilita grandemente seu diálogo com muitas outras disciplinas.

186
ENCONTROS

Há outras lacunas que ilustram o isolamento dos histo-


riadores brasileiros e limitam sua colaboração com as outras
disciplinas. Por exemplo, são raros os pesquisadores sinólogos,
sabendo-se que a China, grande potência, é o primeiro par-
ceiro comercial do Brasil desde 2009. Sabendo-se ainda que
há volumosa documentação em português gerada em Macau
sobre a China. Há obviamente muito interesse pela China no
Brasil, mas os historiadores e os cientistas políticos têm pouco
a dizer sobre a história e a política chinesa. Da mesma forma,
a desconsideração da História Marítima, praticamente ausente
do ensino de História, ou do direito marítimo, pouco ensinado
nas faculdades de Direito do país, ilustra o desconhecimento
do papel econômico e geopolítico dos oceanos. Como já disse,
o Brasil possui a maior costa atlântica do mundo. Além disso,
90% do comércio mundial utilizam as rotas marítimas e 99%
da Internet passam pelos cabos submarinos, muitos dos quais
imersos ao longo do litoral brasileiro.

E a que você reputa isso? A uma certa especialização das dis-


ciplinas?
O desinteresse pela História Econômica foi em parte causado
pelos próprios pesquisadores da minha geração e pelos nossos
professores. Começou-se a tirar conclusões e a fazer modelos
econômicos de períodos e de problemas históricos com dados
e séries estatísticas de confiabilidade duvidosa, sem sequencia-
mento, para dar lugar àquelas conclusões, àquela modelização.
Quem estiver interessado no assunto deve ler a polêmica entre
Michel Morineau e Le Roy Ladurie nos Annales. Paralelamente,
houve a voga da micro-história, impulsionada pelo impacto de
O queijo e os vermes de Carlo Ginzburg, que emplacou em toda a
parte, inclusive nos Annales. Hoje, a micro-história, os estudos de
caso e a abordagem culturalista dominam as pesquisas históricas.
Quero contar algo que aconteceu comigo. Em 2006, meu artigo

187
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

sobre o Atlântico Sul, no dossiê sobre o Brasil que organizei nos


Annales, tinha como título inicial "O Brasil de 1550 a 1850: um
ensaio de macro-história". Um membro da redação da revista
me disse que o título podia ser interpretado como um ataque
à micro-história e me pediu para mudar. Eu achei que não era
o caso de encrencar e, por sugestão de Serge Gruzinski, dei um
título que achei bem melhor: "A vertente brasileira do Atlântico
Sul: 1500-1850".

No O trato dos viventes, o econômico é uma determinação fun-


damental. Mas o indivíduo também é uma unidade de análise.
É. Mas isso vem do Braudel. Ao contrário do que pensam
alguns prosélitos da micro-história, é possível e é muito inte-
ressante combinar macro-história e micro-história. O Braudel
faz isso o tempo todo, Serge Gruzinski também.

Mas o que Sanjay Subrahmanyan, pelo menos, comenta sobre a


obra de Braudel é que é uma visão do Mediterrâneo a partir de
fontes e de um indivíduo do Norte, cristão, e que era preciso dar
um passo a mais para entender o outro. Eu não sei se esse passo
a mais só foi possível dar com a evolução do acesso a fontes e de
novas metodologias, ou se já havia essa consciência nos Annales.
Veja bem. O desafio é elaborar uma história global. Desde o
começo existiram opiniões sobre tal ou tal região negligencia-
da, sobre a documentação que Braudel não viu e sobre a pouca
atenção que ele dedica às religiões ou à arte. Obviamente, ele
sabia disso. No entanto, com as fontes disponíveis e o material
da época – o xerox "portátil" que eles carregavam pelos arquivos
europeus afora parecia um piano sem pés –, ele elaborou uma
interpretação global do Mediterrâneo. Em seguida, ele transpôs
essa abordagem para a esfera mundial nos três volumes de Civi-
lização material. São obras que se sustentam perfeitamente até
hoje. O fato é que Sanjay deixou de lado a abordagem mais ampla

188
ENCONTROS

e também faz agora estudos de caso, e que ninguém conseguiu


igualar a perspectiva global de Braudel.

Quando você foi a Angola pela primeira vez?


Foi em 2003, logo depois da primeira visita de Lula ao país.
Entre outras coisas, eu estava atrás de textos inéditos de Ca-
dornega, que não achei e que provavelmente se perderam nos
tumultos da independência e da guerra civil angolana. Cadornega
é o autor da História geral das guerras angolanas, em 1681. É a
primeira história de Angola, de um enclave colonial europeu na
África, escrita a partir do ponto de vista dos colonos que estavam
ali havia três gerações, não de um viajante. É uma obra sem igual
na Europa. Em 2003 a guerra civil havia terminado, e populações
isoladas durante anos em zonas de combate começaram a vir
para Luanda e Benguela para procurar familiares etc. Vi órfãos
e adolescentes trazidos para Luanda por uma ONG, com olhar
perdido, assustados. Imaginei então como devia ser Luanda,
o maior porto negreiro da África, quando ali chegavam conti-
nuamente do interior, às vezes de lugares situados a um ano de
caminhada, grupos de escravizados para serem embarcados à
força, a pauladas, para a América, para o Brasil, onde eles acre-
ditavam que seriam devorados pelos colonos porque ninguém
voltava dessa viagem.

Você insiste na necessidade de se considerar que o Brasil, no


início, era somente uma série de feitorias e de pequenos en-
claves coloniais.
A historiografia dominante ensina que existe, desde o século
XVI, uma colônia portuguesa toda desenhada na América do Sul.
Isso está na maioria dos livros, desde os manuais escolares até
as grandes obras escritas sobre o Brasil por brasileiros e estran-
geiros. Autores e revisores editoriais têm o hábito de escrever
colônia com C maiúsculo, dando um sentido quase ontológico,

189
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

premonitório da nação, aos enclaves e feitorias portuguesas


seiscentistas e setecentistas. No meu livro O trato dos viventes,
está escrito assim. Mas vou mudar isso na edição atualizada que
acabei de preparar. De fato, a ideia de que haveria "Colônia" nos
séculos XVI e XVII induz à premonição da nação, da nacionalida-
de e do futuro Estado brasileiro, gerando um flagrante anacro-
nismo histórico: tudo se passa como se o futuro do Brasil inteiro
já estivesse programado na Carta de Pero Vaz de Caminha. Ora,
nós sabemos que nem toda feitoria vira colônia e que nem toda
colônia vira nação. Macau, fundada em 1557, três anos depois
de São Paulo, continuou feitoria até o fim, até ser engolida pela
China em 1999. A Martinica, colônia francesa até 1946, foi em
seguida plenamente integrada à França.
Ao saltar a etapa das feitorias perde-se uma forma essencial
da expansão do capitalismo mercantil. De onde vem essa lacuna?
Vem de um livro de 1874 do economista francês Paul Leroy-
-Beaulieu, que foi muito divulgado aqui, citado em toda parte,
como se pode constatar na hemeroteca da Biblioteca Nacional.
Leroy-Beaulieu era titular da cátedra de Economia Política do
Collège de France e muito considerado na Europa. Ele teve muita
influência no Brasil.

Como assim?
As formulações dele passaram para o Roberto Simonsen,
para o Caio Prado, para Celso Furtado, e se estabeleceram como
padrão de modelos coloniais estudados nas universidades bra-
sileiras. Leroy-Beaulieu escreveu que há dois tipos de colônia,
colônia de exploração e colônia de povoamento. Todo mundo
estudou e ainda estuda isso no Brasil. Porém ele analisava expli-
citamente a segunda expansão europeia, estadunidense e russa
(no Cáucaso), que estava em curso quando ele publicou seu
livro. Leroy-Beaulieu desconsidera as feitorias e os entrepostos,
enfiando tudo na categoria de colônia de exploração, porque

190
ENCONTROS

na época dele o domínio territorial era mais importante do que


nos séculos XVI e XVII, quando o que contava era o acesso ou o
controle de determinada área mercantil através das feitorias. As
feitorias são um elemento chave para o capitalismo financeiro
de hoje como eram para o capitalismo mercantil de ontem. De
ontem e de hoje, sim senhor. As Ilhas Cayman são uma feitoria
caribenha cujo papel é fundamental para as grandes fortunas,
bancos e multinacionais do século XXI.
Oliveira Martins, que leu Leroy-Beaulieu mas conhecia bem o
papel dos entrepostos comerciais na expansão europeia, corrigiu
o economista francês. Em O Brasil e as colônias portuguesas, livro
de 1880 obrigatório para os historiadores brasileiros e portugue-
ses, ele define três modelos de expansão colonial: as feitorias,
que ele também chama de "colônias comerciais", as colônias
exportadoras e as colônias de povoamento. Braudel observou
que a distinção entre colônia de povoamento e de exploração
não fazia sentido porque os dois processos coloniais se misturam
e se completam. Isso é nítido nas Treze Colônias americanas.
Em alguns lugares, as feitorias e enclaves mercantis têm um
impacto decisivo no hinterland, como é o caso da Amazônia e
mais ainda de Angola. A conexão da economia atlântica com a
economia continental africana, através das feitorias litorâneas
portuguesas, teve efeitos devastadores nas sociedades nativas
da região. Por isso, Jan Vansina escreve que desde o final do
século XVII Angola se apresenta como a primeira colônia eu-
ropeia – colônia mesmo para valer – na África. Noutros lugares,
a feitoria fica isolada, como em Macau, que já citei, ou em
Dejima, na baía de Nagasaki. Ali, o xogunato construiu uma
ilha artificial, isolou os holandeses lá dentro e disse "é só para
fazer comércio, não saiam daí, viu!". O lugar hoje em dia é um
museu. Está no Youtube. Eu mostro para os meus estudantes e
explico: "os holandeses fizeram um comércio importante com
o Japão durante dois séculos, trancados ali". Colonizar o Japão

191
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

é algo que nem passou pela cabeça deles. Como também não
passou pela cabeça dos portugueses colonizar a China a partir
de Macau. Só os jesuítas tiveram essa ilusão, mas do jeito deles,
como "conquista espiritual".
Na América portuguesa o processo foi diferente, o que explica
em boa parte a sua singularidade: trata-se do único agregado
colonial europeu na América que não se fragmentou na indepen-
dência. De fato, a junção da exploração do ouro e da importação
maciça de africanos permitiu que Minas Gerais se tornasse o
centro dinâmico da economia brasileira no século XVIII, como
Celso Furtado mostrou. Antônio Cândido mostrou também que
este processo engendrou a literatura brasileira. Os dois escreve-
ram isso em 1959 nos seus respectivos livros, ambos intitulados
Formação: da economia brasileira e da literatura brasileira.
É isso que transforma o Brasil numa colônia: a soma da
dinâmica do ouro com a dinâmica negreira sul-atlântica. Aí
sim, quem quiser pode tascar o "C" maiúsculo. Não é à toa que
é também no início do século XVIII que o designativo "brasilei-
ro" vira substantivo de naturalidade. A propósito, note-se que o
Brasil e a Costa do Marfim são os únicos países do mundo que
têm nome de mercadoria, de commodity. E o Brasil é o único país
do mundo no qual o substantivo de naturalidade deriva de uma
função mercantil, no caso, comerciante de pau-brasil. Porque o
sufixo “eiro”, nas línguas neolatinas, em francês, em italiano, em
espanhol, em português, indica função, não naturalidade. Não
é brasiliense, ou brasiliano, como canadense ou americano, é
brasileiro, como pedreiro, carpinteiro, padeiro.
Para avaliar as transformações do século XVIII, quando
emergem o mercado interno e os contextos econômicos e
culturais protonacionais, é preciso entender como os enclaves
comerciais e produtivos do litoral se juntaram ao centro mineiro.
É claro que o ouro teve um papel fundamental, mas o Atlântico
Sul também. Graças ao fluxo maciço de africanos que chega aos

192
ENCONTROS

portos brasileiros, são mantidos os enclaves açucareiros do lito-


ral, enquanto brota no interior uma economia aurífera e toda a
zona subsidiária. Na realidade, como escrevi alhures, todos esses
ciclos, do açúcar, do ouro do café, são subciclos dependentes do
longo ciclo do tráfico negreiro, de 1550 a 1850.

Porque o domínio territorial não era fundamental.


O território em si não tinha importância, ou melhor, a van-
tagem econômica de possuir vastos territórios ultramarinos
não era evidente até o século XVIII. O que contava era a feitoria,
o comércio, mesmo realizado com mercadorias produzidas
em enclaves coloniais, como nas zonas açucareiras do litoral
antilhano e sul-americano. De uma maneira geral, isso vale
na América, África e Ásia. O setor mineiro hispano-americano,
explorado pelos colonos e pelo trabalho compulsório indígena,
levou a uma interiorização do domínio espanhol. Mas no golfo de
Guiné, onde o ouro foi explorado diretamente pelos povos Akã,
os luso-brasileiros, os portugueses e os outros europeus perma-
neceram incrustados nas feitorias do litoral. O quadro muda na
América portuguesa no século XVIII, pelas razões que citei acima
e por causa da geopolítica ibérica. Houve o acordo mundial de
fronteiras entre a Espanha e Portugal, corrigindo o Tratado de
Tordesilhas com o Tratado de Madri em 1750. Esse acordo, cuja
implementação conhece reviravoltas, tem três etapas. Portugal
larga as regiões asiáticas onde contestava os direitos de posse
espanhóis em troca de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, o po-
lígono mineiro, cuja posse não lhe era assegurada até então. Em
seguida, Lisboa troca a feitoria de Colônia do Sacramento pelo
território do Rio Grande do Sul, base da pecuária que fornecia a
logística mineira com mulas e gado de corte.
O autocentrismo dos muitos autores brasileiros acha que
Minas Gerais está na base do Tratado de Madri. Não é bem assim,
o tratado é planetário. Foi o abandono das pretensões territo-

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

riais portuguesas nas Filipinas, registrado logo no artigo 2° do


Tratado, que destravou o contencioso de fronteiras na América
portuguesa. De uma maneira mais geral, a vantagem econômica
dos territórios só ganha importância na segunda metade do
século XIX, depois da unificação da economia americana no
final da Guerra de Secessão e do barateamento do transporte
trazido pelos navios a vapor e pelas ferrovias. Aí sim, fica inte-
ressante para os europeus ter grandes territórios ultramarinos
com reservas de matérias-primas e terras aráveis. É a segunda
expansão europeia, acoplada na Segunda Revolução Industrial,
no excedente demográfico europeu, no melhor controle das
doenças tropicais, na extensão das redes de telégrafo ultrama-
rinas, no moderno sistema bancário, no transporte a vapor, na
supremacia militar do Ocidente que não era patente na primeira
expansão. A transformação das feitorias portugueses num espaço
maior, levando à fusão do Estado do Maranhão com o Estado do
Brasil, só ganha sentido quando se dá plena dimensão ao tráfico
negreiro, ao Atlântico Sul.

E depois da Independência?
Sem entender que o Brasil tinha um pulmão em Angola não
se compreende por que o Império insistiu tanto, e quase foi à
breca em 1850, na sua obstinação em manter o tráfico frente
ao poderio da Inglaterra e da Royal Navy. Bernardo Pereira de
Vasconcelos, senador e conselheiro de Estado, um dos pais da
pátria, achava que o Brasil acabava se o tráfico fosse extinto.
Essa ligação orgânica das duas partes sul-atlânticas relativiza
a ideia de territorialidade. A economia brasileira tinha uma
dependência orgânica do acesso aos mercados negreiros afri-
canos, de Angola, mas também da Senegâmbia, da Costa da
Mina e de Moçambique. E isso é que é a diferença do Brasil,
no século XIX.

194
ENCONTROS

Ao mesmo tempo, como você propõe, são os interesses em torno


da escravidão que explicam a nossa unidade nacional. É isso.
O que eu digo é o seguinte. Havia um equilíbrio perverso no
qual a Coroa se equilibrava entre duas forças antagônicas: a Ingla-
terra, que queria acabar logo com o tráfico frente às oligarquias
escravocratas, que queriam continuar a importar africanos. As
regiões brasileiras eram todas negreiras, todas dependiam em
maior ou menor grau da escravidão para se manter. Há uma ata
do Conselho de Estado de 1846 muito interessante. O Conselho
de Estado analisa a rede de tratados que a Inglaterra construíra
para isolar diplomaticamente o Brasil, proibindo o tráfico ne-
greiro na Bolívia, na Argentina, no Uruguai, no Peru, no Texas,
que era independente na altura, na Europa inteira. Havia a rede
diplomática britânica e, por trás, a Royal Navy. Quem saísse do
Império brasileiro reivindicando a independência regional na
Bahia, em Pernambuco, imediatamente esbarrava nessa rede.
Reconhecia-se quem tinha escravidão, mas fazer tráfico não era
aceito. E nas províncias brasileiras, quem foi para o pau mais
pesado? As zonas onde o escravismo não era dominante: a Ba-
laiada, no Maranhão e no Piauí, e a Farroupilha, no Rio Grande
do Sul. Zonas ganadeiras. Com rebeldes dispondo de grandes
contingentes de cavalaria. Só o poder central monárquico do
Rio de Janeiro, com suas redes diplomáticas e dinásticas para
postergar as pressões inglesas e manter o tráfico até 1850. Foi o
único país independente que conseguiu isso.

No subtítulo do seu O trato dos viventes aparece a categoria


"formação" – "Formação do Brasil no Atlântico sul" –, que é
uma categoria que remete à produção de alguns grandes intér-
pretes do Brasil. Isso quer dizer que o século XVII é realmente
o século decisivo?
Você sabe, há um ensaio sobre o assunto, escrito pelo Paulo
e pela Otília Arantes, Sentido da formação, e foi isso que me deu

195
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

a ideia. Eu achei meio ousado, mas resolvi ir em frente depois


que tive o aval do pessoal da pizza, que é a turma de São Paulo
com que me reúno há muito tempo nos domingos, da qual Paulo
e Otília, Roberto Schwarz, meu mestre, e outros, fazem parte.

A palavra formação já estava na sua tese de doutorado, no


subtítulo da tese?
Não. O subtítulo da tese é "Pax Lusitana no Atlântico Sul".
A tese cobre um período mais longo, vai até 1850. Mauro achou
que, além dele e de Celso Furtado, que acabou só participando
da pré-defesa porque foi nomeado ministro da Cultura e voltou
para o Brasil, devia haver na banca dois africanistas, Jean Devisse
e Claude Meillassoux.
Logo em seguida eu voltei para o Brasil, em 1986, e li dois
trabalhos que modificaram meu ponto de vista. Li o trabalho
do Evaldo Cabral de Mello, de quem eu já conhecia Olinda res-
taurada, e percebi que tinha que integrar mais as análises dele.
Li o trabalho do John Monteiro, e senti que tinha de resolver a
questão da escravidão indígena em São Paulo, levantada por ele,
com quem em seguida trabalhei no Cebrap. Aí resolvi fazer minha
tese de livre docência sobre século XVII. E o Celso Furtado, com
quem discuti muito a minha tese e a livre docência, reforçou:
"Você tem que entender o século XVII melhor".

Por quê?
Porque a historiografia dominante é baseada num modelo
calcado no Paul Hazard, na Inconfidência Mineira, situando a
crise do sistema colonial no século XVIII. Não, o problema já
vinha do XVII, quando Portugal estava sob domínio espanhol
e perdeu boa parte da Ásia, tendo assim que se associar às oli-
garquias dos colonos do Brasil para gerir o Atlântico Sul, para
reconquistar Angola e manter sua presença na Costa da Mina.
Isso se transformou numa cogestão portuguesa e luso-brasileira

196
ENCONTROS

do Atlântico Sul, que vai além da Abertura dos Portos e da Inde-


pendência. Em resumo, para entender o século XIX, o Império, é
preciso estudar o século XVII, as guerras holandesas. A irrupção
de potências rivais no Atlântico Sul, os holandeses no século XVII
e os ingleses no século XIX, causa crises que põem a nu a ligação
orgânica entre o Brasil e a África.
Dessa constatação decorre algo que abre um debate de his-
tória para valer, que é a mudança da periodização. Quando você
muda a periodização, você mexe com tudo, num certo sentido.
Quando o François Furet questionou a periodização dominante
sobre a Revolução Francesa, a tríplice ruptura gerada pelo 14 de
Julho, que teria suscitado uma revolução cultural, econômica e
política, que era a tese da Sorbonne – do Soboul –, o bicho pegou.
Essa foi a grande briga da periodização motivada pela proximi-
dade do bicentenário da Revolução Francesa em 1989. No Brasil,
o debate acadêmico se dá em torno da dimensão das rupturas
ocorridas em 1808 e 1822. Se você acha, como eu, que a ruptura
de 1850 é crucial, com o final do tráfico marcando a fratura da
matriz espacial colonial que unia o Brasil à África, você mexe
com a periodização toda. Para a frente e para trás. A montante, a
Inconfidência Mineira passa a ser um episódio secundário, como
pensava aliás Capistrano de Abreu. A jusante, a Lei do Ventre Livre
perde a centralidade na crise que leva à Abolição. Porque a crise
do escravismo passa então a ter seu epicentro em 1850, no final
do tráfico e no debate da Lei de Terras.

Como o Atlântico Sul se integra à América Latina hoje em dia?


Aqui é preciso marcar o contraste entre os dois espaços
geopolíticos. O Brasil só se sente integrado no espaço latino-a-
mericano, na ideia de América Latina, depois da proclamação
da República. É nessa época, em 1905, que é publicado o livro
do Manoel Bonfim, A América Latina, males de origem. Antes
disso, os pensadores latino-americanos hispanófonos rejeita-

197
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

vam igualmente o Brasil, uma monarquia, e o Haiti, país negro.


A identidade latino-americana do Brasil se desenvolveu entre
os juristas e os teóricos do direito pan-americano. A realização
do I Congresso Jurídico Americano no Rio de Janeiro, em 1900,
durante as comemorações do IV centenário do descobrimento do
Brasil, marcou data. Depois da Segunda Guerra e da fundação da
Cepal, quando os países latino-americanos pesavam na ONU, na
ausência dos países africanos e asiáticos que ainda eram colônias,
a identidade latino-americana brasileira atingiu seu ápice. Foi
nesse contexto que os cepalinos do Brasil, Celso Furtado, FHC,
Maria da Conceição Tavares, Chico Oliveira e outros, prepara-
ram sua obra intelectual e suas atividades públicas. Durante a
Ditadura, houve a experiência cubana e sobretudo o exílio no
Chile de Allende, que também marcou intelectuais e militantes
importantes nos governos FHC e Lula, como Weffort, José Serra,
Plínio de Arruda Sampaio e Marco Aurélio Garcia. Darcy Ribeiro,
que andou pela Argentina, Peru e Chile. Em Montevidéu, Darcy
leu o livro do Bonfim, o qual ele prefaciou e ressuscitou numa
nova edição. Mas agora, no século XXI, penso que a identidade
latino-americana do Brasil perderá sua preeminência.

Como assim?
O espaço latino-americano é aspirado e dividido por forças
centrífugas interiores e exteriores ao continente americano. Re-
sumindo bastante, é possível afirmar que o México foi engolido
pelos Estados Unidos no âmbito da NAFTA, e o Chile e o Peru
se conectam à Ásia, através do Tratado Transpacífico. O peso da
China também puxa parte da América do Sul para o Pacífico.
Paralelamente, o Atlântico Sul e as ligações transversais entre a
África subsaariana e a América do Sul voltaram a crescer depois
da longa interrupção que vai do final do tráfico negreiro, em
1850, até a independência das colônias africanas, entre 1957 e
1975. Inclui-se aí também a articulação entre o Brasil e o Rio da

198
ENCONTROS

Prata no quadro do Mercosul. Na realidade, a América Latina que


sempre nos interessou e que mantém laços multisseculares com
o Brasil é o núcleo inicial do Mercosul, são os países da bacia do
Rio da Prata.
Entretanto, há entraves para o estudo do espaço sul-atlântico:
as divisões disciplinares, como a que separa os americanistas dos
africanistas. É preciso ressaltar que a área de estudos sul-atlân-
ticos não substitui os estudos latino-americanistas. Este ponto
foi salientado na inauguração da Cátedra de Estudos Afro-Lati-
no-Americanos, intitulada Cátedra Edison Carneiro, em 2014, na
UNILA, em Foz do Iguaçu. Da mesma forma, do outro lado do
Atlântico, o foco está centrado nas nações africanas que forma-
ram as nações sul-americanas, e não na África em geral. Num
debate sobre o ensino da História da África no Brasil realizado
na USP, uma pesquisadora trabalhando sobre o Mali disse que o
Atlântico Sul não tinha muita coisa a ver com a pesquisa dela. E
ela tinha razão. Há várias Áfricas e há regiões do continente que
estavam fora do mundo atlântico.
Outro ponto a ser sublinhado é que o Atlântico Sul é bem
maior que as relações bilaterais entre a Bahia e o golfo de Benim,
por exemplo. E aí a rede Buenos Aires-Rio de Janeiro-Luanda-
Lisboa tem um papel fundamental ao longo dos séculos. O Rio é
um grande hub marítimo. É por isso que deveria haver no Rio, na
FGV do Rio, um ensino estruturado sobre a História do Brasil no
Atlântico Sul. O Rio é o grande porto do Atlântico Sul, e o Brasil é
o país que tem a mais longa costa atlântica. Dou uma disciplina
com esta temática na EESP e estou reunindo especialistas de
diversas áreas interessados pelo tema no Centro de Estudos do
Atlântico Sul. Alguns deles já eram ligados ao Centre d'Études
du Brésil et de l'Atlantique Sud que eu dirigia na Paris-Sorbonne.
Penso que esta área cultural constitui um quadro muito fecundo,
do ponto de visto universitário e geopolítico, por causa do pre-
sente e do futuro, por causa da ligação com a África, sobretudo

199
As conexões com a África vão bem
além das iniciativas da diplomacia
ou das empreiteiras brasileiras.
Há todo um circuito de trocas
que está sendo retomado. Sem
forçar os fatos, é possível dizer
que tem na África um soft power,
conceito definido por Joseph
Nye, que se refere à “influência
branda” cultural, oposta ao hard
power imposto pelas armas e pela
coerção econômica.
ENCONTROS

com a África subsaariana onde o crescimento demográfico é o


mais rápido do mundo.
As conexões com a África vão bem além das iniciativas da
diplomacia ou das empreiteiras brasileiras. Nos últimos anos,
houve o ensino no secundário e a expansão das pesquisas
universitárias brasileiras sobre a África, o vaivém dos pastores
evangélicos, dos médios e pequenos empresários, técnicos que
vão para Luanda e outras cidades africanas. Há ainda os estudan-
tes africanos e sacoleiras angolanas que vêm para cá, para fazer
compras na 25 de março, em São Paulo. Há todo um circuito de
trocas que está sendo retomado. Sem forçar os fatos, é possível
dizer que tem na África um soft power, conceito definido por
Joseph Nye, que se refere à "influência branda" cultural, oposta
ao hard power imposto pelas armas e pela coerção econômica.

201
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Escravidão, política e história

202
POR RODRIGO BONCIANI
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Escravidão, política e história


POR RODRIGO BONCIANI

Publicada originalmente na
Revista Latino-Americana de
Estudos Avançados, em julho de 2016

A mudança de ênfase na historiografia, da História Econômica


para a História Social, a cultural e a das mentalidades, que ocor-
reu a partir dos anos 1970, alterou particularmente os estudos
sobre a escravidão. Como você avalia esse processo?
Não é só a História Econômica que desaparece, mas a pró-
pria História Política também sumiu um pouco, eu falo também
como cientista político. O fato é que se você pegar os três maiores
sistemas escravistas americanos – Cuba, Estados Unidos e Brasil
–, todos tiveram um fato político fundamental que decorre da
particularidade de seu sistema escravista.
Os EUA, com a separação entre o Norte e o Sul, vão encarar
a maior guerra civil do século XIX, uma coisa que é traumática
até hoje. Por isso que eles põem aquelas bandeiras todas nas ja-
nelas, porque eles se massacraram durante cinco anos com uma

204
ENCONTROS

violência inaudita. É a primeira guerra acoplada na revolução


industrial, uma combinação que vai ser exponencializada na
Primeira Guerra Mundial. O estrago então é muito maior, porque
você levava para o front continuadamente tropas, por estradas
de ferro, tinha artilharia pesada já, todo tipo de coisa nova que
foi usado. Foi uma guerra extremamente cruel que mudou a
orientação do sistema político americano. Os EUA viraram um
país muito mais centralizado e até hoje é o ponto que os sulistas
reclamam, e muitos liberais, dessa preeminência do governo
federal sobre os Estados no rescaldo da Guerra Civil.
Se você pega o caso de Cuba, a perspectiva de uma guerra
independentista que desencadeasse em paralelo uma insurreição
de escravos e um conflito racial, como havia sido o caso em São
Domingos, paralisou o movimento de independência cubano
durante cem anos e levou sempre os espanhóis a dizer “ou Cuba
será africana, ou Cuba será espanhola, olha o Haiti aí do lado”.
Esse drama pesou no destino do país... E o Fidel quando vai a
ONU, em 1960, ele fala “Cuba foi o último país da América Latina
que se descolonizou”. Esse longo colonialismo espanhol é um
drama da história cubana – e se descolonizou ajudado pelos
americanos – porque se não eles ficavam naquele impasse, por
causa da questão racial.
No Brasil, e esse foi o primeiro artigo que eu publiquei numa
revista acadêmica, em 1979, o tráfico negreiro e a unidade na-
cional estão relacionados [“La traite négrière et l’unité nationale
brésilienne”, Revue française d’histoire d’outre-mer, nº 66]. Neste
contexto, o Brasil reforçou o tráfico de escravos nos portos africa-
nos abandonados pelos negreiros britânicos e americanos depois
de 1808, puxou o tráfico de Moçambique para as suas fazendas e
entrou mais adentro no comércio africano com as mercadorias
europeias de escambo reexportadas do Rio de Janeiro. Ao res-
tringir o impacto dos princípios abolicionistas e republicanos
das revoluções americana, francesa e haitiana, o Brasil encarnou

205
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

uma contrarrevolução atlântica na primeira metade do século


XIX. A dinâmica do tráfico e do escravismo brasileiro depois da
independência mudam bastante. É neste período que o Rio de
Janeiro se torna o maior porto negreiro das Américas, e o Brasil
campeão absoluto do escravismo. No final das contas, Portugal
nunca teve as duas instituições que marcam profundamente o
Brasil de ontem e de hoje: o escravismo e o federalismo.
Nisso, eu estou de acordo com o Jessé de Souza, sobre o fato
de que se dá uma ênfase excessiva no legado da herança ibéri-
ca, da herança portuguesa. [Raymundo] Faoro, com essa ideia
de que a burocracia se auto reproduz, negligencia o contexto
internacional da Independência. Sucede que naquela conjun-
tura o fator que legitima a Coroa é o equilíbrio perverso que ela
mantém entre a Inglaterra, que impunha a rápida supressão do
tráfico negreiro, e as oligarquias regionais, que não queriam que
o tráfico acabasse nunca. A Coroa, auxiliada por uma diplomacia
eficaz, utiliza as solidariedades dinásticas e o fato de representar
a única monarquia, “o sistema europeu”, em oposição ao “sis-
tema americano”, republicano, como se dizia no século XIX. É
preciso explicar convincentemente por que a colônia portuguesa
foi o único agregado político europeu da América que não se
fragmentou. Será que o governo do Rio de Janeiro era tão forte
assim? Se você não ver essa equação internacional relacionada
ao tráfico, você não vai entender. Há um “excepcionalismo”, sim,
na unidade nacional brasileira que deve ser explicado. Sustento
que a continuação do tráfico negreiro até 1850 teve um papel
fundamental nesse processo.

Em todos esses países há uma associação evidente entre a


questão da escravidão e a formação nacional que se coloca em
um período próximo e de forma decisiva. No Brasil, a Indepen-
dência, a continuidade da escravidão e a da monarquia, depois,
a abolição leva ao colapso da monarquia e a proclamação da

206
ENCONTROS

República, em Cuba a preservação do estatuto colonial e da es-


cravidão e, nos EUA, a escravidão se coloca como um empecilho
à formação da Nação e desencadeia a Guerra Civil.
O Brasil tem a peculiaridade de ter tido tráfico no século XIX,
e durou 300 anos, os Estados Unidos não teve no XIX e o tráfico
durou 100 anos, para lá foram levados 250 mil africanos e o Brasil
recebeu 4,8 milhões. A historiografia culturalista negligencia a
economia, a política e também a África. O contexto da repro-
dução contínua que vem da África. Disso decorre um problema
de periodização histórica, daqueles que acham que a ruptura
vem em 1808 e 1822, que é a tradição do século XIX, do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Foi o historiador [Alexandre
José de] Mello Moraes que colocou claramente que a chegada da
Corte e a Abertura dos Portos criaram uma situação irreversível,
inclusive juridicamente, que só podia dar na Independência.
Então, parece que a Independência zera a história colonial e se
parte para outra coisa. Mas, o Brasil continuou monarquista,
escravista e com o tráfico negreiro.
O escravismo tem que ser estudado nos desdobramentos
políticos dos três maiores sistemas escravistas da América, sem
dissociar essa problemática da economia e a África do Brasil.
Porque nos EUA o estudo da África em conexão com a história
nacional não faz muito sentido, porque não é tão umbilical como
no Brasil. Os norte-americanos exploraram a própria população
negra. Os brasileiros, depois da Independência, exploraram a po-
pulação negra e a africana. Cuba também explorou a população
africana, mas Cuba era uma colônia, não um Estado Nacional.
E essa problemática reverbera do século XIX para o XX e o XXI.
Veja, por exemplo, a questão das cotas. Nós estamos hoje numa
vaga reacionária e um de seus alvos será em breve a política de
cotas. A decisão do Supremo, que foi unânime, e isso é extraor-
dinário, é uma decisão que pode ser contestada no médio prazo.
Na minha opinião, quando você avança numa coisa tão nova e

207
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

tão surpreendente, como foi isso – porque a extensão das cotas


à todas as universidades federais foram votadas com a maioria
menos um voto no Senado e com a maioria absoluta de votos
na Câmara – você tem que consolidar. Avançar e consolidar. Não
pode radicalizar achando que agora tem uma avenida aberta que
você vai avançar sem barreira. Você tem que consolidar o terreno
e eu acho que nós estamos numa etapa de consolidação. Aqui e
nos EUA a questão da escravidão, no aspecto político, continua
atravessando a história contemporânea, ela não se esgota na
problemática do sistema escravista.

Essa lacuna da escravidão para entender a especificidade


política é evidente. Fico me perguntando como o historiador
António Manuel Hespanha forneceu um paradigma político,
todo pronto, que foi adotado no Brasil de forma acrítica. As
pessoas nem se quer fazem referência ao seu pensamento como
construção historiográfica, se referem como se fosse a descrição
do real, do mundo do Antigo do Regime.
É verdade, no seu debate com a Laura [de Mello e Souza],
[António Manuel] Hespanha formula, na revista Almanack, um
dos grandes mal-entendidos da historiografia atual. A Laura havia
destacado que a escravidão era uma característica fundamental
da história do Brasil. Hespanha relativizou o fato, escrevendo em
sua resposta: “No fundo, os escravos estavam, para as sociedades
coloniais, como criados, aprendizes, moços e moças de lavoura,
rústicos ou camponeses, para as sociedades européias. Milhões
de pessoas, praticamente desprovidas de direitos, à mercê dos
pais de família” [“Depois do Leviathan”, Almanack Braziliense,
n° 5, 2007, p. 66].
Ora, com isso ele dá sumiço na especificidade histórica do
escravismo colonial, do circuito mercantil negreiro, da relação
senhor/escravo e do racismo contemporâneo no Brasil e nos
Estados Unidos, os dois únicos países americanos nos quais a

208
ENCONTROS

escravidão é consubstancial à organização do Estado Nacional.


Em que sociedade europeia houve um tráfico de criados ou de
camponeses na escala e na intensidade do tráfico atlântico ne-
greiro? Em que país europeu foi codificada uma legislação penal,
comercial e civil similar à que enquadrava os escravos no Brasil
e nos Estados sulistas dos EUA em pleno século XIX? Quando a
Rússia, o país mais atrasado da Europa, se preparava para abolir
a servidão (1861), a Corte Suprema do país mais avançado do
Novo Mundo, os Estados Unidos, confirmava que o escravo era
uma mercadoria e decidia que nenhum negro, mesmo livre, podia
ser cidadão americano (julgamento no Dred Scott case, 1857).
A interpretação de Hespanha só faz sentido com a abstração
total do tráfico negreiro – sucessivamente português, luso-brasi-
leiro e brasileiro – e do fato que Luanda e o Rio de Janeiro, duas
cidades portuguesas, terem os maiores portos, respectivamente,
de embarque e de desembarque de escravos do Atlântico. Mas,
Hespanha conhece bem o escravismo moderno, então, suponho
que sua comparação entre criados europeus e escravos africanos
decorra da separação entre o tráfico negreiro e o escravismo, e
da ideia que o governo dos escravos dependia unicamente da
esfera privada, realizando-se somente na relação senhor/escravo.
Trata-se de um equívoco corrente que envolve também o
estudo da história indígena, onde a correlação entre a legislação
e as práticas relativas entre os índios e o escravismo negreiro
desaparece. Mesmo quando ela é intrínseca às instituições, como
no caso das missões jesuítas, ou à obra dos personagens, como
é o caso do padre Antônio Vieira. Assim, [Jean-Frédéric] Schaub,
escrevendo sobre a violência colonial num capítulo do livro de
N. Canny e Philip Morgan sobre o mundo Atlântico, refere-se ao
jesuíta como os historiadores devotos, tanto brasileiros como
estrangeiros, elogiando seu papel na defesa dos índios, mas
se esquece que essa era a contrapartida do apoio decidido de
Vieira ao tráfico negreiro. Joseph van den Besselaar, importante

209
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

vieirista holandês que ensinou na Unesp em Assis, escreveu uma


biografia do jesuíta, publicada em 1981 em Lisboa e em 2002
no Rio de Janeiro, sem citar uma só a vez a escravidão negra e o
tráfico negreiro. O [Alcir] Pécora diz que existe uma contradição
entre o fato de Vieira ter apoiado a escravidão negra e ter feito
oposição à escravidão indígena. Muito pelo contrário, ele era a
favor da liberdade dos índios e por causa disso era a favor do
tráfico negreiro: a escravização dos negros era a garantia da
liberdade dos índios. Vieira escreveu claramente sobre isso. É
aqui que se vê a vantagem de uma interpretação sul-atlântica
da história do Brasil. Aliás, uma contribuição significativa da
historiografia vieirista brasileira, penso nos livros de [Ronaldo]
Vainfas e de [Alfredo] Bosi, é a de sublinhar o papel do escravismo
e da justificação do tráfico negreiro na obra do padre Antônio
Vieira. Tema que havia sido levantado, de maneira pioneira, por
João Francisco Lisboa nos anos 1850, na sua biografia do padre
Vieira. Não dá para acreditar que historiadores do século XXI
ainda continuem ignorando esse ponto essencial do pensamento
de Vieira e de sua época.

Sobre essa nova história política, eu costumo pensá-la no con-


texto de consolidação da União Europeia, num processo de
construção de uma nova imagem da Europa sem a violência
do colonialismo e sem os conflitos internos, particularmente
entre Portugal e Espanha.
Estou totalmente de acordo. A própria História de Portugal,
escrita por [José] Mattoso é concebida nesse sentido: acabou a
ditadura salazarista, acabou o ultramar, nós vamos estudar as
origens romanas de Portugal para reconectá-lo à Europa ociden-
tal, à democracia, à União Europeia. A ligação com o ultramar
torna-se um elo religioso, cultural ou linguístico, dependendo
do gosto de cada um. A exploração colonial e o tráfico negreiro
desaparecem. Como no filme de Manoel de Oliveira "Non ou

210
ENCONTROS

a Vã Glória de Mandar" (1990), onde o colonialismo português


em Angola e Moçambique é evocado sem nenhuma referência
ao tráfico negreiro. Ou, como no caso da promoção do castelo
de São Jorge da Mina, no litoral de Gana, como “maravilha”
arquitetônica portuguesa. O Ministério da Cultura de Portugal
alegou que o tráfico negreiro na região só se iniciou em 1637,
quando os holandeses ocuparam o castelo. Ora, é bem sabido
que houve tráfico português ali desde 1482, quando o castelo foi
construído. Aqui trata-se de má fé, o que não é o caso do filme
de Manoel de Oliveira.
No Brasil, um dos problemas da historiografia é a questão
de pular a etapa da feitoria, como se toda feitoria fosse dar em
colônia e toda colônia em nação. No século XVIII as feitorias e os
enclaves coloniais da América portuguesa viram uma colônia por
causa do ouro e da importação massiva de africanos. É em torno
da economia do ouro de Minas Gerais que se cria uma cultura
colonial que formata, em seguida, a identidade nacional. É nesse
momento que aparece a palavra “brasileiro” como designativo
nacional ou proto-nacional. Foi por isso que eu optei pelo termo
“brasílico” para designar os colonos do Brasil do século XVII,
que já sabiam que eram diferentes dos reinóis, mas ainda não
tinham noção que seriam brasileiros num país independente.
Antes, você não pode chamar essa gente de luso-brasileira ou
brasileira, porque é um anacronismo. Penso que “brasílico” dá
conta dessa diferença, caracterizando a especificidade colonial
no contexto da época.
No que diz respeito à relação com a África, se você pega a
longuée durée do tráfico negreiro você vai ver que os chamados
“ciclos” do açúcar, do ouro, do café, do tabaco, são na realidade
subciclos econômicos. O que você tem é o ciclo do tráfico negrei-
ro, que vai permitir que essas zonas funcionem simultaneamente.
Tanto a frente pioneira do café quanto a frente mineira do século
anterior se beneficiaram do fluxo contínuo do tráfico negreiro.

211
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Esse é o verdadeiro ciclo da economia brasileira, o ciclo do tráfico


negreiro. O tráfico negreiro é parte integrante da problemática
da independência e da constituição do Estado Nacional, mas foi
considerado por muito tempo como um elemento secundário.
Ora, esse fator tem consequências decisivas. Assim, a inclusão
da história da África no ensino médio e fundamental, que al-
guns acharam despropositada, pode ser melhor fundamentada
lembrando-se que o número de africanos desembarcados no
Brasil entre 1550 e 1850 representa seis vezes e meia o número
de portugueses entrados na mesma época.
Na lista de oportunidades perdidas no Brasil de se estudar
a África, é preciso lembrar aqui a importância do livro de José
Honório Rodrigues, Brasil e África: outro horizonte, publicado em
1961. O livro rebateu a propaganda luso-tropicalista que Gilberto
Freyre faceiramente cedeu para o colonialismo salazarista e inte-
grou a história do Brasil na história da África. Entre outras coisas,
ele mostra que Luanda era o segundo porto do Brasil antes de
1808 e continua sendo até 1850. Contudo, veio o golpe e o livro
de José Honório não chegou a ganhar o destaque que merecia
no debate universitário. O estudo da África, e em particular da
África lusófona, foi deixado de lado. José Honório tomava posi-
ção em favor da independência dos países da África portuguesa,
tema que em seguida saiu da pauta da maior parte da esquerda
brasileira, do movimento estudantil, etc. O livro se insere no
contexto da política externa independente. No momento em
que o governo Jânio e o governo Jango, graças a Afonso Arinos
[de Melo Franco], San Tiago Dantas, mas também a diplomatas
como Antônio Houaiss, colocaram em pauta a abstenção bra-
sileira quando a Assembleia Geral votou a questão de Angola.
Portugal não queria que a ONU se metesse, dizia que era questão
interna, era apoiado pela Europa inteira e pelos EUA. A virada
diplomática brasileira causou um trauma em Portugal, porque
os governos de Getúlio e de Juscelino tinham sido defensores

212
ENCONTROS

ardentes do colonialismo português. Veio o golpe e o Houaiss foi


expulso do Itamaraty “incrivelmente considerado como ‘inimigo
de Portugal’” como escreveu o embaixador Ovídio de Andrade
Melo no seu livro de memórias. E muita gente considera um
ponto positivo da ditadura ter sido o primeiro país a reconhecer
Angola. Eu acho que isso não é do lado positivo, mas do negativo,
a ditadura botou novamente a diplomacia na mão do salazaris-
mo e matou o embrião de política externa independente, que
certamente iria pesar numa aceleração das independências das
colônias portuguesas. Alfredo Margarido, meio exagerando, me
disse uma vez que o golpe de 1964 deu mais dez anos de fôlego
para o colonialismo português na África. No final das contas,
houve um legado positivo da política de San Tiago Dantas: dois
jovens diplomatas que entraram no Itamaraty no final do governo
Jango e foram influenciados pela política externa independente,
Samuel Pinheiro Guimarães e Celso Amorim, tiveram um papel
fundamental na virada africana da diplomacia brasileira nos
dois governos Lula.

Você pensa o Atlântico Sul a partir da tradição historiográfica


dos Annales e de Fernand Braudel.
A história do Atlântico Sul que eu sugiro é uma história que
engloba o Brasil, as Áfricas Ocidental e Central, Moçambique
e o Rio da Prata, como uma região histórica, na perspectiva de
Braudel. Por isso, aceitei, com muita honra e satisfação, ser o
fundador da Cátedra Edison Carneiro de História Afro-Latino
Americana que vocês criaram na UNILA. Porque a inclusão da
Argentina, de Montevidéu e do Paraguai nesse vínculo com a
África faz toda a diferença, tanto no campo da Atlantic History
como no campo da historiografia afro-brasileira.
No que se refere à História Atlântica, o envolvimento do Brasil
na África é muito maior do que qualquer outro país escravista
americano. No que diz respeito à historiografia afro-brasileira,

213
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

não se trata apenas de uma perspectiva de história regional,


bilateral, com enfoque cultural, como se faz, por exemplo, na
Bahia. Quando você junta a prata de Potosí e Buenos Aires, Rio,
Bahia, Luanda, Lisboa, Sevilha, Macau, você põe o Atlântico Sul
no centro da economia mundial. Fluxos e Refluxos, de Pierre
Verger – resultado de uma tese orientada pelo Braudel – foi o
primeiro livro de história das relações África Brasil, porque o
grande livro de [Charles] Boxer, Salvador Correia de Sá e a luta
pelo Brasil e Angola, centrava-se na vida desse personagem.
Frédéric Mauro, que estava na banca de doutorado de Verger,
disse que o Braudel criticou Verger, deu a nota mínima porque
achou que ele não tinha trabalhado a documentação, embora
tivesse depois publicado e promovido a tese. Contei isso para o
David Eltis, e ele disse que o Braudel tinha razão: ele também
teria dado uma nota baixa para Verger.
Mas como disse acima, o Atlântico Sul a que me refiro é mais
amplo que o de Verger e se parece com o de Boxer, mas abarca um
período mais amplo 1550-1850. É importante salientar a incorpo-
ração da parte da América Latina com a qual sempre estivemos
ligados, desde o século XVI, o Rio da Prata. Então se trata aqui do
lado atlântico da América do Sul. Aliás, o latino-americanismo
é uma ideia tardia na história do Brasil, como mostrou Leslie
Bethell. Surgiu depois da proclamação da República, no decor-
rer do século XX e, sobretudo, depois da Segunda Guerra, para
chegar no ápice na época da CEPAL [Comissão Econômica para
América Latina e Caribe]. Porém, a América Latina sofre agora
o impacto de forças centrífugas externas. Com o Nafta [Tratado
Norte-Americano de Livre Comércio] os americanos engoliram
o México e um pouco da América Central, e o Tratado do Pacífico
jogou o Peru e o Chile lá para o outro lado. O desenho inicial do
Mercosul [Mercado Comum do Sul] estava na configuração do
Atlântico Sul, mas é preciso juntar a África. O que eu proponho, e
me animou a voltar para o Brasil, é insistir na necessidade de es-

214
ENCONTROS

tudar o Atlântico Sul como um espaço histórico que tem passado,


presente e futuro. Estou propondo então estudar o Atlântico Sul
entranhado na história do Brasil até 1850 e em seguida analisar
o Atlântico Sul renascido depois das independências africanas.
Obviamente, estou atento ao fato de que isso contraria as sepa-
rações disciplinares, a divisão dos que estudam a América Latina,
mas não a África, e vice-versa.

Que avaliação você faz desse último movimento do Brasil em


relação à África a partir da política externa do governo Lula, em
que momento a gente está dessa história?
Eu acho que esse governo atual, como em vários outros
aspectos, é um governo do apagão do lulismo, do apagão diplo-
mático também. Talvez tenhamos vivido, um pouco no governo
Fernando Henrique e muito nos governos do Lula, um ponto
fora da curva na política internacional e no debate político no
Brasil. No Brasil não se debate política externa nas campanhas
eleitorais. Em 2014, a Dilma, no discurso de começo de ano, ano
de eleição, fez uma saudação ao país e ao se referir ao contexto
internacional ela usa a expressão “lá fora”. “Lá fora” nem no im-
pério se falava assim, as pessoas eram mais sofisticadas e diziam
pelo menos os nomes dos países. O Lula tinha uma experiência
de globalização porque era metalúrgico, ele começou a viajar em
1976. E o Fernando Henrique tinha a rede universitária fora do
Brasil. Mas não basta saber, tem que querer, o Fernando Henri-
que foi a Angola como presidente. Ele sabia mil vezes mais que
o Lula sobre o escravismo brasileiro, mas não falou nada sobre
isso. Quem falou foi o Lula, na sua visita presidencial em 2003.
Lula sabia pouca coisa, mas tinha noção de que o Brasil tinha
uma responsabilidade no tráfico negreiro que pilhou e escra-
vizou os povos angolanos. Aquela combinação de Lula, [Celso]
Amorim e Marco Aurélio Garcia, que cuidava da América Latina,
foi uma combinação excepcional. Agora acabou. Pelo menos

215
Há uma dinâmica das relações
entre a América Latina e a
África que deve ser apropriada
pela sociedade civil e por
outras instituições, há também
o interesse genuíno dos
pesquisadores de recuperar
essa história e fornecer novos
elementos para essa construção
no presente e no futuro.
ENCONTROS

provisoriamente. Mas há e deve haver uma continuidade. Há


uma dinâmica das relações entre a América Latina e a África que
deve ser apropriada pela sociedade civil e por outras instituições,
há também o interesse genuíno dos pesquisadores de recuperar
essa história e fornecer novos elementos para essa construção
no presente e no futuro.

217
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

“Parlamentarismo troncho
já existe no país”

218
POR RICARDO MENDONÇA
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

“Parlamentarismo troncho
já existe no país”
POR RICARDO MENDONÇA

Publicada originalmente
no jornal Valor Econômico,
em 11 de agosto de 2017

Na sua opinião, qual é a síntese do governo Temer?


Um governo de legitimidade derivada, que radicaliza. Apre-
senta uma plataforma de uma radicalidade que nunca seria
aprovada. Nunca ninguém seria eleito com um programa desse:
“Vou acabar com a CLT”, “vou reduzir reserva indígena”, “vou
fazer reforma da Previdência”, “vou mudar o ensino médio por
MP”. A coisa mais próxima que existe disso foi o Eduardo Gomes
contra Getúlio em 1950. Não deu nem para a saída. É um ataque
frontal ao Estado de seguridade social. A forma como Temer
chegou à Presidência parece ter criado a condição ideal para
avançar essa plataforma ultraconservadora. É isso que, no meu
entender, caracteriza um golpe.

Quem fala em golpe associa mais a expressão à queda da ex-


-presidente Dilma.

220
ENCONTROS

Também a maneira controversa de como foi aplicada a


saída da Dilma. Agora o Joesley [Batista] disse que a eleição do
[Eduardo] Cunha [à presidência da Câmara] foi comprada. E em
seguida você tem a implementação de uma política de uma vio-
lência social enorme. O povo votou em 2014 num programa que
o Temer assinou e registrou no TSE como sendo dele. Não tinha
nada a ver com isso. E agora implementa uma coisa que nunca foi
discutida, a não ser em círculos muito estreitos do poder. Houve
um destampatório de um sonho pós-colonial, pós-escravocrata.
Essa frase de que é preciso dar plena flexibilidade nas relações
de trabalho, você encontra isso no parlamento da República
Velha. Era até uma coisa meio caricatural. No limite, levava à
perpetuação do trabalho infantil e até da escravidão, que dava
lucro. Se houve progresso social no mundo, foi porque o direito e
o avanço da democracia entraram na frente da lógica econômica.

Não há protestos de rua, mas Temer bate recorde de impopu-


laridade. Por que é tão impopular?
Tem o fato de não ter o voto popular. FHC declarou isso em
Portugal quando perguntaram. Disse não ter sentido comparar
porque Temer não foi eleito. Qual é a legitimidade dele, então?
Conforme está na Constituição, a eleição do vice decorre da
eleição do presidente. É em consequência da eleição do presi-
dente. A Constituição de 88 até suprimiu uma competência do
vice, que era presidir o Senado. Então quando Temer reclama
que era só um vice-decorativo, esse é o tipo do cara que não leu
o “job prescription”. Porque o “job prescription” dele era ser o
vice-decorativo mesmo. E, aliás, ele nem foi [decorativo]. Porque
indicou muita gente corrupta para postos chaves. Eu escrevi
sobre isso em 2009, que ele como vice seria problemático. A
legitimidade dele é puramente parlamentar e com o establish-
ment financeiro via [Henrique] Meirelles. Então nós já estamos
vivendo um parlamentarismo troncho: um presidente sem voto

221
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

direto, só com a soberania derivada do reconhecimento tácito


do Congresso. E esse regime está mostrando os seus limites. Já é
o fiasco do parlamentarismo. Como esse debate está voltando...
Essa perspectiva agora de o país passar para o parlamentarismo
é o segundo tempo do golpe.

Quais são os limites?


Você tem de utilizar todos os cargos disponíveis. Por exemplo:
para ser ministro do exterior, mesmo nos regimes autoritários,
era um embaixador. O Itamaraty está cheio de diplomatas con-
servadores prontos para desfazer a política do [ex-ministro] Celso
Amorim e do [ex-assessor] Marco Aurélio Garcia, dizendo que era
sul-sul, terceiro- mundista. Mas vai entregar para um embaixador
que não te dá um voto no Congresso? Tem que dar para o [José]
Serra. Mas o Serra também não queria, ele queria ser ministro
dos negócios interiores. Então largou. Aí chama um embaixa-
dor? Não. Chama outro senador do PSDB [Aloysio Nunes]. Esse
é o parlamentarismo. Tira um cientista do Conselho de Energia
Nuclear e põe um cara lá do PMDB do Rio. Vai contaminando.
Tudo vira objeto de barganha. Estamos vendo na prática o que
seria um governo parlamentar no Brasil.

Temer exalta isso, alguns chamam de semiparlamentarismo.


É um presidente que não pode ir a regiões do país, não pode
aparecer por medo de vaia. Foi o 57o deputado em São Paulo 11
anos atrás. O Brasil é um país em que eleição presidencial é o
momento da identidade nacional. Sempre tivemos isso. Antes era
o imperador, que foi o chefe de Estado que ficou mais tempo. Era
um regime autoritário e escravista, mas havia a encarnação de
uma identidade. Uma nação ainda jovem sem separatismo. No
século 20, isso foi cada vez mais se encarnando no presidente.
Eleição presidencial é o momento alto. A campanha da transi-
ção foi feita elegendo senadores da oposição em 1974, o posto

222
ENCONTROS

majoritário mais alto em jogo. A dinâmica que levou à derrubada


da ditadura é presidencialista. E tem uma dinâmica de eleição
presidencial que repercute nas de governador, prefeito. Isso vai
estar sempre latente na política brasileira.

O que espera da votação da denúncia contra o Temer?


O que estou seguindo pelos jornais é que ele está com uma
margem muito grande, com esse clientelismo escrachado.

É possível que ele consiga se manter mesmo com a maioria


votando pela investigação. O que seria o período final desse
mandato?
Tudo é meio subjetivo, mas digo o que acho que não vai acon-
tecer. O que não vai acontecer é impedir a eleição presidencial.
Isso mexe com muita gente, desde o prefeito que vai achar que
a eleição de governador também estará ameaçada. É uma briga
que mexe com muitas pessoas.

Mas é incrível o senhor sentir necessidade de reafirmar isso em


pleno 2017, não?
É... É incrível.

Como vê a atuação do Judiciário no país?


Tem uma dimensão da erupção do Judiciário na política.
Processos, prisões, interferência através do noticiário. Hoje,
o colapso das instituições políticas empurra o Judiciário para
linha de frente do combate político. É desgastante, pois o Ju-
diciário não é feito para isso. O Judiciário hoje intervém até no
regimento interno da Câmara. Ministros do STF dão opiniões
sobre concepções deles para o Brasil. E vai até lá embaixo: juiz
de primeira instância que começa a fazer interpretações do país,
e de uma maneira muito truncada - aliás, é meio patético isso
tudo. Mas, concretamente, isso confunde muito a percepção da

223
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

política tal como ela foi feita no Brasil por 200 anos. A política
no Brasil sempre teve a autoridade local, que dependia de uma
oligarquia regional, e o governo central. Agora tem as decisões
da Justiça. Às vezes anônimas, às vezes sentenciadas por juízes
muito jovens entranhados na mídia.

Quais são as manifestações disso que o senhor destaca?


Determinam uma prisão em pleno Senado de um eleito po-
pular, o Delcídio [do Amaral]. E sem processo, prisão preventiva.
Aquilo foi inédito. Como também gravar presidente da República
no subsolo. E o fato de a campanha do Lula estar pendente de
uma decisão da Justiça sobre a qual ninguém tem muita previsão.
Os advogados dele, que aparentemente não têm uma estratégia
global de defesa, é defensiva, partem sempre do fato consuma-
do. E houve erros técnicos na decisão do juiz, que o jornal é que
descobre. Essa do [desembargador João Pedro] Gebran dizendo
que ex- presidentes ainda têm direito a um auxílio. Foi a imprensa
que levantou o erro, não foi o advogado. Então eu acho que isso
desorienta todas as estratégias políticas.

Leu a sentença do juiz Sergio Moro que condena Lula?


Li. Não sou jurista e o assunto está ainda em julgamento. Na
França não se discute ação da Justiça, mas aqui os próprios juízes
e procuradores discutem. O procurador Deltan Dallagnol atacou
decisão do STF no jornal, o que é surrealista... Achei impressio-
nante. Porque ele não trabalhava sozinho. Tinha uma equipe de
procuradores, a PF, intercâmbio com Suíça e outros países, com a
Receita. E aí você peneira e não sai do apartamento que não tem
título. O que tem é um documento rasurado. E a história do sítio
[de Atibaia], que é mais frágil ainda. Agora, evidentemente, eles
têm uma estratégia, que é o desgaste progressivo. Acumulação
de denúncias. Mais processos. Inclusive factóides, como dizer
que Lula se beneficiou com a piscina feita no Alvorada. Houve

224
ENCONTROS

um momento em que o Moro falou até em trazer o caso Celso


Daniel de volta. Aquilo durou dois dias, mas deu uma capa de
revista. Para a classe média, polariza muito.

Há noticiário muito negativo para Lula na Lava-Jato, impea-


chment, derrota do PT em 2016. Como explicar a liderança
eleitoral?
O governo dele foi de criação de emprego e aumento de
renda. Distribuição de renda, essencialmente. Perón ficou com
prestígio na Argentina até morrer. E a distribuição de renda dele
foi muito menor e menos continua. Lula tem uma empatia popu-
lar fascinante. Eu vi ele falar no enterro do Marco Aurélio Garcia.
Depois, os funcionários terceirizados da Assembleia Legislativa
vieram fazer fotos com ele. E essa intuição do voto que ele tem.
Do sujeito que perdeu quatro eleições antes. Então é alguém que
conhece o país muito bem.

O senhor destacou a plataforma ultraconservadora ou liberal


que ascendeu com Temer. Os adeptos aceitariam Lula em 2019?
Tem um aspecto, que tem um grau de subjetividade grande,
mas que acho importante assinalar. Quando Meirelles foi depor
Lava-Jato sobre o Lula, era para dizer se ele intervinha no Banco
Central. Meirelles foi enfático ao dizer que o Lula nunca inter-
veio nem tentou induzi-lo a fazer atos ilegais. Ora, um homem
como Meirelles, neste contexto, se quisesse comprometer um
pouco o Lula, ele podia fazer quatro ou cinco frases para com-
prometer. Do tipo: “eu me senti constrangido várias vezes”, “eu
não tive ordem escrita, mas insinuações”, “eu sentia a pressão”,
“tive que enfrentar muita cara feia”... Você sabe fazer uma frase
dessa para ferrar alguém. Mas ele foi enfático. Garantiu a total
neutralidade do Lula, nada inconstitucional ou imoral. O que
quer dizer? Como eu li aquilo? Quer dizer que o establishment
financeiro não eliminou ainda a possibilidade de Lula ser can-

225
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

didato como uma espécie de grande conciliador no momento


de caos nacional.

O que representaria dois ou três desembargadores tirarem Lula


da eleição de 2018?
Aí tem de ver. O que vão fazer? Vão prendê-lo? Vão botar
em Fernando de Noronha? Se impedir a eleição, ele não estará
impedindo de ir em palanque, de falar. Esse é um direito que
ninguém perde. A menos que esteja em prisão, precisaria de
autorização. Mas os recados podem ser dados antes. Acho que
Lula tem uma intuição política e uma experiência muito forte.
Ele vai pressentir e, evidentemente, vai avalizar um candidato
antes que chegue neste ponto limite. E acho que o indício do
[ex-prefeito] Fernando Haddad já foi feito várias vezes.

E se concorrer e ganhar? De 2014 para cá houve esse levante


conservador. Tem uma onda de ódio, a questão do judiciário.
Em 2002, ele veio com o figurino paz e amor. Mas que condição
teria para governar a partir de 2019?
Pior. O ciclo das commodities foi para o espaço. Seria com a
economia adversa. Bom, são outros quinhentos. Acho que tem
condição para ganhar. Como vai governar? Depende de muita
coisa. Do tipo de mobilização na candidatura, dos resultados
das eleições estaduais.

Ele sempre dizia que só valeria a pena concorrer à reeleição se


fosse para fazer um segundo mandato melhor que o primeiro.
E conseguiu. Foi melhor mesmo.

Mas teria como fazer um terceiro mandato melhor que o se-


gundo? Seria para fazer o quê?
Uma coisa concreta que ele já apontou é a proposta audaciosa
de pegar R$ 100 bilhões da reserva para fazer investimento. Isso

226
ENCONTROS

pode suscitar aliança com o empresariado. Outra seria desfazer


a PEC do teto, que inviabiliza qualquer Presidência que queira
fazer política de distribuição de renda. Os deputados ficariam
de acordo imediatamente. Preservar o que der ainda do pré-sal.
Porque lá está havendo uma ação muito eficaz de desmontagem.
E no momento que o petróleo pode subir e que a Venezuela vai
entrar em colapso. Garantir a legislação trabalhista de novo.
Desfazer o desmonte já dá um respiro popular grande.

O filósofo Rui Fausto disse que torce para Lula ser absolvido,
mas acha que o melhor seria não ter Lula candidato. Concorda?
Ah, não adianta muito, a opinião da gente não pesa. Mas,
evidentemente, acho que o próprio Lula acha isso. O Lula, como
todo grande líder, tem um problema com a própria sucessão. Ele
escolheu a Dilma justamente porque ela não era uma ameaça
e deu no que deu. Se ele for cercado de ações judiciais, com o
tribunal hostil, ele sabe que não adianta dar soco na ponta de
faca. Seria uma coisa muito perigosa o PT não ter candidato ou
o Lula insistir numa candidatura que ficasse pendente de um
julgamento.

E o tribunal está hostil?


Essa última decisão do Gebran mostra nitidamente um viés.
Um erro técnico dessa dimensão. Ele disse que ex-presidentes
têm um auxílio e estava errado. Então é alguém que já estava pre-
disposto a tomar decisão contrária. E depois nem dá satisfação.
Já houve vários recados de que eles vão acelerar o julgamento.

Como interpreta o desempenho de Jair Bolsonaro?


Tinha uma coisa esquisita quando veio a democratização no
Brasil: ninguém queria ser chamado de direita. Na França, ser de
direita é uma posição louvável. Aqui, a pessoa ficava indignada.
De repente, mudou. Temos agora uma extrema-direita. Mas é

227
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

uma extrema-direita com uma coisa tão descolada da realidade;


de fazer frases. Ele tem processos por insulto, agressão, assédio. E
queixo de vidro: a primeira pancada, quebra; se descontrola. Mas
é um candidato de protesto. Uma espécie de Cacareco. Acontece
também nos outros países.

Há diferença entre a direita do Brasil e a de outros países?


A direita aqui pediu golpe. A direita na França quer demo-
cracia, porque acha que vai ganhar. A direita lá não é contra
o Estado. É a favor, mas só para os franceses. Não quer abolir
transporte público, ensino público, subsídio. Esse governo de
extrema-direita da Polônia restabeleceu ajuda aos pobres. O que
não querem é estrangeiro. Então tem uma coisa contraditória
nessas concepções. Já a direita americana é contra o Estado.
Aqui, o Bolsonaro não sabe ainda direito. Vai estourando e des-
costurando conforme o discurso vai avançando.

Mas o que espera do desempenho eleitoral do Bolsonaro?


Não acho que aguente dois turnos. Com todas as proporções
guardadas, Marine Le Pen [extrema-direita na França] foi para o
debate do segundo turno e perdeu 10 pontos. Depois, a bancada
perdeu mais da metade. Porque o despreparo do discurso do
ódio fica claro. Não é correto comparar Bolsonaro com Trump. A
melhor comparação é com a França, onde um voto é um voto e há
dois turnos. No fim, fica um candidato que representa da direita
civilizada à extrema- esquerda contra um de extrema-direita.

E Ciro Gomes?
Ele faz maioria dos votos no Ceará, mas é 0,5% do Brasil. E
também reage de maneira exaltada a qualquer provocação. Vai
ter três por dia. Então é um candidato muito cheio de ciclos.
Aliás, é um bom termômetro: ele elogia Lula quando Lula está
em má posição, e ataca quando Lula sobe. Agora começou a

228
ENCONTROS

atacar definitivamente. Disse que vai se lançar mesmo se Lula


disputar.

Que avaliação faz do prefeito de São Paulo, João Doria?


Já deu vários passos errados. Essa coisa da Cracolândia, de
atacar mendigos. Foi criticado inclusive pelo eleitorado dele. Teve
gente que se demitiu na assessoria. Política repressiva assim é
ilusão. São Paulo é muito mais sofisticada. Mas eu destaco uma
característica, que também é do [Silvio] Berlusconi e do Trump.
Doria continua com interesses empresariais. Às vezes até parece
que esquece que é prefeito. Citou o Lide no convite de um evento
em que foi como prefeito em Nova York. Então pode ser que de
repente ele ache que é melhor segurar a empresa dele. Como
esse pessoal do Trump. Quando saiu o porta-voz do Trump, o
novo disse “espero que ele [o anterior] vá ganhar muito dinhei-
ro”. Como se fosse elogio: você passa pelo governo para depois
encher o bolso.

229
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

ção dos Estudantes da Universidade de Brasília


(FEUB), que repudia o golpe.
1966
Ajudado por um grupo ligado à UnB e ao Su-
premo Tribunal Federal (STF), consegue uma
Cronologia do autor bolsa francesa para estudar Ciências Políticas
na França. Faz graduação em Ciências Políti-
cas e segue cursos de História na Universidade
de Aix-en-Provence (concluída em 1970).
1967
Primeira edição de Civilização material e
capitalismo, de Fernand Braudel, “que mudou
a minha cabeça”.
1968
1946 Acompanha os eventos de maio que agitaram
Nasce, no dia 5 de janeiro, em Itajaí, Santa a França e o mundo. Pierre Verger publica
Catarina. Filho de Elvira Pereira de Alencastro, Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o
descendente de alemães e açorianos, e de Golfo do Benim e a Bahia de Todos os Santos,
Felipe Baptista de Alencastro, de uma família dos séculos XVII a XIX.
de Goiás Velho. 1969
1949 Primeira edição de O tráfico de escravos atlân-
Fernand Braudel publica O Mediterrâneo e o tico: um censo, de Philip Curtin.
mundo mediterrânico no tempo de Felipe II. 1970
1952 Inicia o doutorado em História, sob orientação
Charles Boxer publica Salvador Correia de Sá e de Frédéric Mauro, na Universidade de Paris X
a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686. (Nanterre), defende a tese em 1986.
1953-1959 1972-1973
Estuda no Colégio Catarinense, dos jesuítas, “Nas quebradas do mundo, há um momento
em Florianópolis. de verdade em que muitas coisas se definem.
1960 Meu momento de verdade sucedeu em 1972-
Intensificação dos processos de independên- 73, quando recebi no estrangeiro a notícia
cia no continente africano. Frédéric Mauro vinda do Brasil de que três de meus compa-
publica Portugal e o Atlântico no século XVII. nheiros de Universidade (de Brasília e de Aix-
A família transfere-se para Goiânia. -en-Provence) tinham sido assassinados pela
1961 ditadura. Entender a sua morte, entender o
José Honório Rodrigues publica Brasil e África. Brasil, era o que queria fazer dali em diante, é o
1963 que tento fazer neste livro, dedicado à memó-
A família transfere-se para Brasília. ria sempre presente de Heleny Guariba, Paulo
1964 de Tarso Celestino e Honestino Guimarães”.
Pouco meses antes do golpe militar, entra na 1973-1986
Universidade de Brasília (UnB). Participa do Leciona na Universidade de Paris VIII (Vincen-
movimento estudantil, da direção da Federa- nes) e na Universidade de Rouen.

230
ENCONTROS

1975 1991
Reconhecimento do Estado brasileiro à inde- Fim do regime de apartheid na África do Sul.
pendência de Angola. “Eu acho que isso não é 1992
do lado positivo, mas do negativo, a ditadura Impeachment do presidente Fernando Collor,
botou novamente a diplomacia na mão do assume seu vice, do Partido do Movimento
salazarismo e matou o embrião de política Democrático Brasileiro (PMDB), Itamar
externa independente, que certamente iria Franco. “A importância desse período da
pesar numa aceleração das independências História está no aspecto político. Foi o ano
das colônias portuguesas.” do impeachment e da emancipação política
1976-1986 da sociedade brasileira”.
Escreve assiduamente no Le Monde Diplo- 1993
matique sob o pseudônimo de Julia Juruna. Plebiscito sobre a forma de governo no Brasil:
1978 monarquia, parlamentarismo ou presidencia-
Primeira conferência mundial da ONU para o lismo. Alencastro faz campanha a favor da re-
combate ao racismo e à discriminação racial, forma do sistema vigente, o presidencialismo.
realizada em Genebra, Suíça. Criação do Mo- 1994
vimento Negro Unificado, no Brasil. Fernando Henrique Cardoso é eleito, em pri-
1981 meiro turno, presidente do Brasil pelo Partido
Eleição de François Mitterrand para presiden- da Social Democracia Brasileira (PSDB), Lula
te da França, Alencastro decide continuar em fica em segundo lugar. A palavra “economia”
Paris “a vitória do Mitterrand em junho de é retirada do título da revista dos Annales.
1981, e as semanas seguintes, com a esquerda Alencastro faz a livre-docência no Instituto
ganhando também as eleições legislativas, de Economia da Unicamp.
foram das coisas que me deixaram mais feliz 1994-1996
na vida.” Pós-doutorado na Universidade de Paris IV
1986 (Sorbonne), com Kátia Mattoso, o plano era
Volta ao Brasil, onde se torna pesquisador do transformar sua tese de livre-docência em livro.
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento 1997
(Cebrap) e professor de história econômica Organizador do volume II de História da Vida
na Unicamp (ambos até 1999). Privada no Brasil. Império: a corte e a moder-
1988 nidade nacional.
É promulgada a Constituição Federativa do 1998
Brasil. A abolição da escravidão no Brasil com- Fernando Henrique Cardoso é reeleito pre-
pleta 100 anos, o evento foi marcado por gran- sidente do Brasil em primeiro turno, Lula é o
de mobilização política, social e intelectual. segundo colocado.
1989 1999
Primeira eleição democrática para a presi- Retorna à França para ser professor visitante
dência do Brasil depois da ditadura militar, de história do Brasil na Universidade de Paris
Fernando Collor de Mello, do Partido da Re- IV - Sorbonne.
construção Nacional (PRN), vence Luís Inácio 2000
Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores Lançamento do livro O trato dos viventes:
(PT), no segundo turno. formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos

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LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

XVI e XVII. É aprovado em concurso para ser brésilien de l’Atlantique Sud 1550-1850”, na
professor titular da cátedra de História do revista Annales.
Brasil na Sorbonne (até 2014). 2009
2001 Professor visitante da Universidade de York,
Conferência mundial da ONU contra o racis- Toronto, Canadá.
mo, discriminação racial, xenofobia e formas Alencastro publica na Folha de S. Paulo
conexas de intolerância, realizada em Durban, (25/10), o artigo “Os riscos do vice-presiden-
África do Sul. cialismo” argumentando que Michel Temer,
2002 muito mais experiente do que Dilma Rousseff,
Lula é eleito presidente do Brasil no segundo poderá derrubá-la da presidência.
turno, José Serra (PSDB) é o segundo coloca- 2010
do. Alencastro é pesquisador sênior da John Parecer de Luiz Felipe de Alencastro no STF
Carter Brown Library na Universidade de contra a Arguição de Descumprimento de
Brown, EUA (também em 2004). Preceito Fundamental, ADPF/186, apresen-
2003 tada pelo partido Democratas (DEM) sobre
A Lei 10.639 determina a obrigatoriedade do a política de instituição de cotas raciais pela
ensino de História da África e da cultura afro- Universidade de Brasília (UnB). Em 2012, o
-brasileira no ensino básico no Brasil. Difusão relator Ricardo Lewandowski considerou a
de cursos de História da África nas universida- ADPF improcedente e considerou que as cotas
des brasileira. Luiz Felipe de Alencastro viaja visavam a superação de distorções sociais
para Angola, logo depois da primeira visita de históricas, os ministros, por unanimidade,
Lula ao país. Ao longo de dois governos, Lula acompanharam seu voto. Dilma Rousseff é
criou novas embaixadas na África. eleita presidente do Brasil pelo PT, depois de
2005 vencer José Serra (PSDB) no segundo turno.
No dia 14 de maio, a revista Veja denuncia 2011
esquema de corrupção nos Correios que se Eleito membro da Seção de História e Ar-
desdobrará no chamado escândalo do men- queologia da Academy of Europe, sediada
salão. Os 38 réus do processo foram julgados em Londres.
no STF, em 2012. 2012
2006 Professor visitante da Universidade de
Lula é reeleito presidente do Brasil no segundo Massachusetts Dartmouth, EUA. Publica
turno, Geraldo Alckmin (PSDB) é o segundo o capítulo “Mulattos in Brazil and Angola:
colocado. Alencastro declara ter votado em A Comparative Approach, Seventeenth to
Lula, “mas, agora, com um pé atrás. Os erros Twenty-First Centuries”, no livro Racism and
de Lula e os atos delituosos da direção do Ethnic Relations in the Portuguese-Speaking
PT suscitam reflexões pessimistas. Mas o World, Londres.
impulso para o progresso social e a confian- 2014
ça no processo democrático, explicitados Dilma Rousseff é reeleita presidente do Brasil
no voto majoritário que Lula obteve entre em segundo turno, Aécio Neves (PSDB) foi
as camadas populares e a população negra, o segundo colocado. Alencastro é professor
geram o otimismo da vontade de mudan- emérito da cátedra de História do Brasil na
ça.” Alencastro publica o artigo “Le versant Sorbonne (até 2024). Professor titular da

232
ENCONTROS

Escola de Economia de São Paulo/Fundação


Getúlio Vargas.
2015
Publica o artigo “The Ethiopic Ocean? History
and Historiography 1600-1975”, na revista
Portuguese Literary & Cultural Studies.
2016
Impeachment da presidente Dilma Rousseff,
assume seu vice, do PMDB, Michel Temer.
2017
Sobre o primeiro período do governo Temer,
Alencastro declara: “Um governo de legiti-
midade derivada, que radicaliza. Apresenta
uma plataforma de uma radicalidade que
nunca seria aprovada. Nunca ninguém seria
eleito com um programa desse: “Vou acabar
com a CLT”, “vou reduzir reserva indígena”,
“vou mudar o ensino médio por MP”. A coisa
mais próxima que existe disso foi o Eduardo
Gomes contra Getúlio em 1950. Não deu nem
para a saída. É um ataque frontal ao Estado
de seguridade social. A forma como Temer
chegou à Presidência parece ter criado a
condição ideal para avançar essa plataforma
ultraconservadora. É isso que, no meu enten-
der, caracteriza um golpe.”

233
LU I Z F E L I P E D E A L E N C A S T R O

Coleção Encontros:
a arte da entrevista

A Coleção Encontros visa resgatar a entrevista como meio


privilegiado de comunicação: valendo-se de uma linguagem
informal e abordando questões imediatas, torna-se um espaço
estratégico para a atuação de intelectuais e artistas na criação
de um mundo múltiplo, solidário e sustentável.
Em cada volume da Coleção Encontros trazemos um olhar
abrangente sobre o entrevistado, com uma seleção criteriosa de
depoimentos de diversos momentos e contextos de sua trajetória.
Na elaboração do presente volume, agradecemos a generosa
colaboração de ...
Agradecemos também a todos os entrevistadores presentes
no livro, por autorizarem gentilmente a reprodução das entre-
vistas. Em raros casos, não obtivemos sucesso em contactar
os entrevistadores ou veículos originais. Por se tratarem de
entrevistas imprescíndiveis pela sua qualidade e relevância,
decidimos mantê-las na publicação, acreditando que os autores
compartilhem do projeto. Os respectivos direitos encontram-
-se reservados.

234
Coordenação editorial
Amélia Cohn e Sergio Cohn

Projeto gráfico
Elisa Cardoso

Capa
Tiago Gonçalves

Foto
Sergio Cohn

Equipe Azougue
Rafaela dos Santos, Tiago Gonçalves e Welington Portella

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

[ 2019 ]
Beco do Azougue Editorial Ltda.
Rua Visconde de Pirajá, 82, subsolo sala 115
CEP 22461-000 - Rio de Janeiro - RJ
Tel/fax 55_21_2259-7712

www.azougue.com.br
azougue - mais que uma editora, um pacto com a cultura
Trajetória de um polímato
POR SERGIO COHN

Maciel, como abertura, você poderia falar um pouco da sua


família, da sua infância e juventude?
Eu nasci em Porto Alegre, filho de um advogado. Ele era ban-
cário, pobre, mas estudou direito e se formou já com 30 anos.
Nem me lembro se meu pai já era advogado quando eu nasci.
E minha mãe era professora de escola primária. Também classe
média. Eu nasci em 1938. A única memória que eu tenho da
minha primeira infância é de 1941. Eu tinha três anos de idade,
e houve uma grande enchente em Porto Alegre. Uma enchente
histórica, as ruas viraram rios. E é a única imagem que vem na
minha cabeça dessa época, a imagem que eu via da janela do
nosso apartamento. Era um apartamento de segundo andar,
algo assim, num prédio pequeno, e eu sempre ficava na janela.

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