RH-137 - Antonio Penalves Rocha
RH-137 - Antonio Penalves Rocha
RH-137 - Antonio Penalves Rocha
FFLCH-USP
HISTRIA
1997
UM DOCUMENTO ANTIESCRAVISTA
DO PRIMEIRO TERO DO SCULO XIX
Antonio Penalves Rocha
Depto. de Histria - FFLCH/USP
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escravistas da Ilustrao europia, instalados no mundo luso-brasileiro dos princpios do sculo XIX. Sendo assim, seus textos expem um duplo dilogo: um
com uma tradio intelectual, fundada por escritores
consagrados - tanto aqui quanto na Europa - como os
formuladores das mais bem acabadas categorias explicativas sobre o assunto, como Montesquieu, Adam
Smith, Jean-Baptiste Say, Charles Comte; outro, com
o mundo concreto para o qual prescreviam mudanas.
Para observar o dilogo que mantiveram com as
idias europias, cumpre, antes de tudo, traar os seus
contornos, colocando sob perspectiva histrica a
constituio do antiescravismo. Esses contornos permitiro identificar as fontes do artigo de Jos da Silva
Lisboa, cuja viso, por sua vez, coincidia em muitos
pontos com as dos demais escritores acima referidos.
So rarssimos os casos em que o historiador tem
segurana para fixar marcos cronolgicos que sejam
verdadeiros divisores de gua, demarcando no passado um antes diferente de um depois. Um deles oferecido pela escravido, pois a sua longa histria pode
ser divida em duas partes distintas a partir de um marco cravado nos meados do sculo XVIII. De fato, a
partir da dcada de 1760, alguns letrados europeus
proferiram a sentena de morte do trabalho escravo,
em contraposio censura que vez por outra esta instituio havia sofrido anteriormente durante sua existncia milenar. Os princpios usados para condenla foram acolhidos pelos abolicionistas, ou seja, tiveram uma tal eficcia histrica que eliminaram todas
as sociedades escravistas em pouco mais de um sculo
depois da sentena ter sido proferida.
A fundao desse marco cronolgico se deu com
a publicao do Esprito das Leis de Montesquieu,
que, como afirmou David Brion Davis, mais que
qualquer outro pensador, (...) colocou a escravido na
agenda da Ilustrao europia (DAVIS, 1975, p.45).
Com efeito, o Livro XV, do Esprito das Leis, intitulado Como as leis da escravido civil tm relaes
com a natureza do clima apresenta todas as opinies
do autor sobre essa matria. Nele a escravido duramente censurada por ser contrria moral e, por isso
mesmo, violar o direito natural, por ser contrria ao
esprito da monarquia, por ser um contra-senso do
ponto de vista do direito civil, por ser incompatvel
com o cristianismo, alm de considerar o trabalho escravo menos produtivo que o do homem livre.
Muito embora Montesquieu tivesse condenado a
escravido em todos esses aspectos, no chegou ao
ponto de defender o seu desaparecimento; Jameson,
autor do mais completo e rigoroso estudo sobre o antiescravismo de Montesquieu, localizou a ltima palavra de Montesquieu sobre a escravido no Captulo
IX do Livro XV do Esprito das Leis (JAMESON,
1971, p.325), intitulado O que as leis devem fazer
com relao escravido. Todo este Captulo formado por uma nica frase: porm, qualquer que seja
a natureza da escravido, cumpre que as leis civis procurem dela extirpar, de um lado, os abusos e, de outro,
os perigos. Assim, Montesquieu acreditava que a
escravido, empregada em certas circunstncias, apesar de causar injustia pelos abusos que lhe so inerentes, e representar perigos, devia ser regulada por
leis para que funcionasse bem. De qualquer modo, ao
analisar o conjunto de crticas escravido que se encontra no Livro XV, Jameson duvidou, para efeitos
retricos, que se pudesse encontrar nos trabalhos posteriores de carter antiescravista uma idia cujo germe
j no estivesse presente no Esprito das Leis (id.,
ibidem, p.339).
Poucos anos depois da publicao do livro de
Montesquieu, suas idias sobre a matria ganharam espao no maior sucesso editorial do sculo XVIII. Isto
porque na Enciclopdia, dirigida por Diderot e
DAlembert, o artigo Esclavage, escrito por Jaucourt,
resumiu os diversos termos da condenao escravido
feita pelo autor de o Esprito das Leis.
Por esse caminho, as idias de Montesquieu contra
a escravido se difundiram, e conquistaram os escritores da Ilustrao, que aprofundaram o exame da sua
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sua conformidade com o Direito, nem tampouco a justia da propriedade do escravo, pois seria crueza magoar uma chaga, que talvez se no possa curar, dada
a antigidade da instituio, presente na bblica era
dos Chams, e os horrores que sempre causa, inconciliveis com o humanismo e o cristianismo.
Sendo assim, as primeiras linhas do artigo expem
a adeso do autor aos termos gerais da condenao
religiosa e moral da escravido, tal como fora originalmente formulada por Montesquieu. No entanto, o
autor dedicou pouco espao a este assunto, e exortou
os leitores a consider-la somente pelos resultados
econmicos. Assim, do ponto de vista do economista poltico que Jos da Silva Lisboa quis observar
a escravido, elevando-a condio de fenmeno universal, em vez de trat-la especificamente como uma
questo nacional brasileira. Mesmo ao propor sugestes ao soberano para que houvesse um maior aproveitamento do emprego do escravo no Brasil, no h
dvida de que Cairu acreditava estar ainda no territrio da Economia Poltica, pois seguia uma indicao
de Adam Smith, para quem esta cincia era um ramo
da cincia do estadista ou do legislador, com o propsito de enriquecer tanto os indivduos como o soberano (SMITH, I, 717), indicao esta consagrada
pelos economistas franceses do sculo XIX.
Alis, nas Leituras de Economia Poltica ou Direito Econmico encontra-se uma definio de Economia Poltica proposta pelo autor, que permite a visualizao do campo dentro do qual a matria foi analisada: ela a cincia das leis da constituio social,
que regulam o excitamento da indstria e o aumento
da inteligncia dos povos, para fazerem o trabalho necessrio com a menor repugnncia, dificuldade e pena
possvel, a fim de obterem progressiva riqueza e proporcional populao e prosperidade (LISBOA, 1828,
p.43). Note-se que a palavra leis adquire aqui dois
sentidos: designa ao mesmo tempo fenmenos sociais
regulares e constantes e leis positivas, isto , normas
institudas pelo Estado que devem estar em confor-
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por mim - APR) o sofrimento dos escravos, favoreamos, e aumentemos todos os seus gozos domsticos
e civis (SILVA, 1825, p.25).
Na Memria... de Burlamaque ela se manifesta no
projeto de melhorar a sorte dos escravos e mitigar
os castigos (BURLAMAQUE, 1988, pp. 182 e 183).
No que diz respeito especificamente mitigao,
esta ltima Memria... superior as demais em
clareza, pois explicita todo o significado da doutrina;
segundo Burlamaque, a filantrpica idia do melhoramento da sorte dos escravos e conseqentemente a
sua emancipao gradual devem, pois, referir-se ao
futuro para que se evitem os perigos reais (grifado
por mim - APR) que podem e mesmo devem sobrevir(id., p.186). Assim, alm de desempenhar um
papel humanitrio, limitando os abusos e injustias
da escravido, a mitigao servia tambm para refrear
os perigos reais. Isto equivale dizer que a idia da
mitigao encerrava dentro de si mesma todas as
medidas recomendadas pela doutrina de Montesquieu
sobre a escravido, que, como se sabe, solicitava a
elaborao de leis civis (que) procurem dela extirpar,
de um lado, os abusos e, de outro, os perigos.
Enfim, a doutrina da mitigao aparenta ser o mero
resultado da importao das idias de Montesquieu, um
castelo construdo no ar, podendo ser compreendida
dentro de um tipo de genealogia das idias. No entanto, no bem isto. A doutrina s adquire pleno sentido se um episdio ocorrido no mundo desses homens for colocado em cena: a revoluo dos escravos
negros de S. Domingos dos fins do sculo XVIII, que,
para os letrados, materializou o resultado dos perigos
da escravido. Maciel da Costa escreveu sobre o estado da ilha, primor da cultura colonial, a jia preciosa das Antilhas, fumando ainda com o sacrifcio
de vtimas humanas e inocentes... (COSTA, 1988,
p.22). Jos Bonifcio considerou que esses vis escravos, (...) nada tm que perder, antes tudo que esperar
de alguma revoluo como a de S. Domingos
(SILVA, 1825, p.39). Embora Silva Lisboa no tenha
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feito nenhuma aluso ao episdio no artigo, certamente ele estava nos quadros da conscincia do autor,
que j tratara em outro lugar do hrrido espetculo
da tremenda catstrofe da Rainha das Antilhas
(LISBOA, 1818, p.160). Assim, ao aderir aos princpios antiescravistas das luzes, construindo a doutrina
da mitigao, os letrados faziam ver que no moravam
nas nuvens, pois ela estava alicerada no temor da
reproduo de um Haiti no Brasil. Mas, no s pelo
temor se referiram ao espisdio: dado o teor normativo dos seus textos, a idia da revoluo cumpria uma
funo intimidativa: caso o soberano e os estadistas
no adotassem os preceitos da doutrina, seria alto o
risco da exploso revolucionria; o exemplo, no fim
das contas, havia sido dado objetivamente pelos fatos.
Sendo assim, ao pensar a escravido, e fazer propostas para reform-la, esses homens do Brasil do pri-
meiro tero do sculo XIX tinham os ps no cho. Como letrados no lhes faltava o aggiornamento, na
medida que acompanhavam os avanos da cincia
europia e os transportavam para o Brasil. Por outro
lado, acomodavam-se ao mundo concreto, condenando genericamente a escravido, sem contudo exigir
o seu fim imediato. Assim, a doutrina da mitigao
podia muito bem conter o perigo da revoluo, se o
Estado realizasse reformas que principiariam pela incluso dos escravos no direito civil, e dar uma sobrevida escravido, por meio da emancipao gradual,
dado que ela j havia sido cientificamente condenada pela Ilustrao. Esta sobrevida atendia as necessidades concretas de uma sociedade escravista, mesmo
porque ela havia funcionado satisfatoriamente durante
cerca de trs sculos no Brasil, antes de os ilustrados
terem descoberto o carter nocivo da escravido.
Fontes e Bibliografia
BARRETO, Domingos Alves Branco Muniz. Memria sobre a
abolio do comrcio da escravatura in Memrias sobre a
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DA LIBERDADE DE TRABALHO*
JOS DA SILVA LISBOA
(Visconde de Cairu)
O trabalho, para ter os benficos efeitos, que a indstria humana pode racionalmente desejar e conseguir, deve ser livre, isto , no s feito por pessoa isenta do domnio de outro, se no tambm por discreta
escolha do mesmo trabalhador, e conseqentemente
anlogo s suas inclinaes, talento e circunstncias;
com a moral certeza do arbtrio prprio na disposio
do respectivo produto, no que no ofende as regras essenciais da justia. Faltando qualquer destes requisitos,
o resultado do trabalho (o complexo e soma da riqueza particular e pblica) vem a ser incomparavelmente
inferior ao que se obtm, quando eles se renem.
No entrarei no exame (alheio do meu instituto)
se lcita a escravido, e se so justos os ttulos, com
que se tem ela introduzido e perpetuado ainda entre
naes cultas. Seria crueza magoar uma chaga, que
talvez se no possa curar. Sei que j vem, como o barbarismo e violncia, da era dos Chams2, e que ao prin-
cpio no foi assim. Sei que todos os coraes honestos a horrorizam. Sei que os mesmos opressores e
indiferentistas estremecem com a mais leve idia e
perigo de passarem tal sorte. Sei que no s Cates
se despedaam as entranhas, para no sofrerem tirania, se no que at os mais estpidos Cafres terrifica
a brutalidade de canibais de vrias cores, dando-se a
morte por milhares, e sufocando por piedade os
prprios filhos, para no carem no jugo do colono
europeu. Sei que inumerveis tribos de selvagens no
se deixam seduzir de presentes e engodos dos que se
jactam de descobridores dos mundos. Sei que repugna
aos comuns sentimentos da humanidade, e ao esprito
do cristianismo, que manda no fazer contra outro o
que ningum quer contra si; o que, posto s Divinas
Escrituras, por amor da paz e subordinao, ordenassem a obedincia dos senhores civis e domsticos,
quer bons, quer dscolos 3, e no proscrevessem
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explicitamente to absurdo estabelecimento, complicado com mil vcios e abusos, que no se podem arrancar de salto, sem fazerem maiores males; todavia,
no tal tolerncia argumento, que justifique as barbaridades dos que a fora, a fortuna, ou o erro elevaram sobre seus semelhantes. Por mais que se dissimule, e se palie instituio to terrvel, sempre os brados
da sufocada humanidade apregoaram a verdade da
sentena de Sneca - Quid est servitus et mancipium,
nisi nomina ex ambitione et iniuria nata? (O que so
a escravido e os escravos, seno nomes nascidos da
ambio e da injustia?) O grande Apstolo das Gentes
deu a regra dos verdadeiros cristos - Prestai aos vossos
servos o que de justia e eqidade, na certeza de que
tendes tambm um Senhor no Cu. O que faz injustia,
receber o prmio da sua malfeitoria. Deus no tem
respeito de pessoas. Paul. Epis ad Col. Cap. III, v.25,
Cap. IV., v. 1. Considerai portanto a questo somente
pelos resultados econmicos.
A uniforme experincia de todos os sculos e pases, de concerto com a razo, mostra que o trabalho
do homem livre, melhor, e mais produtivo, que o
do escravo. Por mais que o senhor se esforce e vigie,
o escravo no pode resolver-se a trabalhar, se no por
fora e negligentemente, cedendo s por momentos
violncia de quem exige e inspeta o servio. Todo
o homem aborrece, e foge do trabalho, maiormente
sendo duro e contnuo. S o amor e o interesse, ou
dose forte de estupidez, resolvem trabalhar a benefcio de outro. Sendo o escravo reduzido a estado de
mquina, no esperando melhoria de condio, nem
podendo adquirir propriedade, as faculdades do corpo
e esprito ficam mutiladas e sem energia e, se se desenvolvem s vezes, com frenesi da desesperao,
para se desatinar ao suicdio, ou assassinato; e constituindo-se o prprio interesse em eterna guerra com o
do senhor, o seu empenho e sagacidade consistem em
subtrair-se ao servio, evitando o castigo iminente,
ou muito provvel, consumindo o mais, e produzindo
o menos.
e naes mostra, que a obra do homem livre vem, enfim de conta, mais barata ao mercado, do que a feita
por escravo. Assim se acha nas Colnias da Amrica
Inglesa, onde no h escravos, relativamente aos que
os tm, no obstante que naquelas o salrio do trabalho seja mui alto. Podia-se acrescentar que o carter
geral dos ricaos nos pases de escravos se distingue,
ou pela nscia e desconcertada prodigalidade, ou pela
mais srdida avareza e mesquinharia; sendo, como se
diz em bom portugus, unhas de fome e pobretes enfatuados, maiormente com os escravos, que mais os
ajudaram a viver, segundo escreveu o Poeta nos tempos
mais hrridos da depravao e tirania romana5.
Observa ainda mais o Dr. Smith, que os escravos
raras vezes so inventores; e todos os mais importantes melhoramentos das artes, seja em mquinas, seja
no arranjamento e disposio da obra, que facilita e
abrevia o trabalho, tem sido de homens livres. Quando
algum escravo (diz ele) propusesse qualquer adiantamento deste gnero, o senhor seria inclinado a considerar a proposta, como sugesto preguia. O pobre
escravo, em lugar de prmio, muito provavelmente
encontraria afrontas, e talvez castigo. Passava em
provrbio serem os escravos preguiosos e dorminhocos. Eles vendo passar quase todo o fruto do seu suor
para a bolsa alheia, devem necessariamente preferir
o - molles in gramine somnos (doces sonos na grama)
- ativa indstria, que lhes no d proveito.
Portanto nas lavouras, minas e manufaturas, em
que se empregam escravos, necessrio, em geral,
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(...)
Sed quo divitias haec per tormenta coactas,
cum furor haud dubius, cum sit manifesta phrenesis
embolorado... Mas para que essas riquezas colhidas com tal tormento? sem dvida uma loucura, uma evidente alucinao, viver
o destino de um pobre para morrer rico).
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rica muito baratas, pela falta de populao, e o mercado geral da Europa no for abundantemente suprido
deste gnero. Ele compara tais terras no estado atual
do comrcio, com as boas vinhas da Frana, cujo produto est sempre em demanda efetiva dos consumidores. A cultura do tabaco j no se acha em iguais
circunstncias; a do trigo muito menos, e portanto no
pode ser feita com vantagem por escravos, nem poder afrontar a concorrncia dos pases de gente livre,
e de governo regular, e menos daqueles, onde no houver sobrecarrego dos impostos, nem os monstruosos
monoplios mercantis e polticos, que ocasionam a
opresso e misria da maior parte do povo, que, vivendo do salrio do trabalho, e sendo mal pagos, tem mais
interesse de serem preguiosos do que trabalhadores.
J foi notado por Aristteles na Grcia, e por
Plnio, e Columela na Itlia, o quanto degenerou naqueles pases a cultura do trigo pela falta de lucro
competente, logo que foi abandonada a escravos. Ento que se comeou a queixar das esterilidades, e
sentirem-se freqentes fomes e carestias. Plato na
sua Repblica supunha necessria a extenso de plancies de Babilnia, para sustentarem-se pela cultura
de escravos cinco mil homens livres com suas mulheres e filhos. Enfim difcil, e nada seguro lucrar da
misria alheia. Repugna s poltica promover um
estado contra a natureza, que apenas se pode manter
por violncia de quem manda, e ignorncia de quem
serve. Que fortuna slida e estabelecimento tranqilo
se pode tirar de braos repugnantes, e trabalhos erradios de brbaros e desesperados? Mal se pode ser feliz, vivendo-se fora com naturais e implacveis inimigos domsticos, reduzidos a pouco menos da condio de brutos, correndo os senhores no s a responsabilidade de seus vcios e malfeitorias, e os riscos
da fugida e morte, seno tambm os contnuos sustos
de suas aleivosias e vinganas, de que tem havido hrridos exemplos6.
Quando o trabalho social est sob a direo de tirania domstica e civil, incalculveis so os males, que
da resultam civilizao, opulncia e civilizao.
1 Exalta-se o original barbarismo, e insolncia do
homem, que antes quer constranger, mandar e oprimir, do que ajustar, persuadir e bem-fazer.
2 Habitua-se a obrar pelo cego impulso do medo
e violncia, e no pela ilustrada coragem, e legtimo
imprio da razo.
3 Estabelece-se interminvel hostilidade entre o
poderoso e o desvalido, o inerte e o industrioso, o adulador e o homem de honra; fiando-se aqueles no prestgio da fora, riqueza e fraude, no tendo estes outro
regresso, que a intriga, lisonja, ou aviltado sofrimento,
que paralisa e amortece todas as virtudes.
4 Onde se autoriza o cativeiro, as mais baixas e
vis paixes animais tomam o seu terrvel ascendente.
O que tem escravos, vive sempre enfezado, e tem de
ordinrio o esprito em cegueira e turbao. Faz-se
duro, e intratvel entre os iguais, vingativo e cruel com
os inferiores, e inexorvel com os objetos do seu furor
e ignorncia. Os contnuos exemplos de violncia e
humilhao endurece os nimos, e habitua avilanias.
5 O homem livre jamais se pe a par do escravo;
e a infinita distncia dos estados os repulsa de toda a
racionvel aliana e parceria. Por isso, onde se acha
estabelecida a escravido, o trabalho da agricultura e
artes fica desonrado, como sendo a nica e principal
ocupao dos cativos. Da vem, que os livres, que no
podem ter escravos, ficam com pouca ou nenhuma
obra honesta, sendo suplantados pela concorrncia
das pessoas de condio servil, dos libertos, e dos que
a eles se avizinham. No tendo assim meios fceis de
subsistncia, e de procriao da prole, querendo todavia viver fidalga, em geral se distinguem pela invencvel preguia, forado celibato, e inepto orgulho.
Portanto no s a moralidade e carter nada ganharo em tal estabelecimento, seno tambm a riqueza
pblica deve ser comparativamente inconsidervel,
no obstante as vantagens do clima e terreno; porque
a soma e o resultado do trabalho produtivo devem ser
menores, por ser este feito por escravos, e porque a
maior parte dos livres s consome, e nada produz. Por
isso, onde se tem adotado a polcia da escravido dos
oriundos da frica, no se v, e impossvel formarse um corpo de nao cordata, e crescer a populao
segundo o seu natural progresso nos pases frteis, e
bem situados para o comrcio.
No tempo dos vangloriosos gregos e romanos, que
faziam cativos os prisioneiros de guerra, parecia impossvel subsistir o imprio sem escravos. Eles porm
ocasionaram mil convulses e misrias. A rebelio dos
hilotas na Grcia, e dos sequazes de Esprtaco na Itlia
aterrou os mais esclarecidos Estados, e os mais hbeis
generais desses tempos. Derrubado o Imprio do Ocidente pelos brbaros do Norte, e estabelecida a servido
de gleba, parecia impossvel prosperarem as dinastias
sem tal polcia. Os pases e reinos, em que esta primeiro
se aboliu, ou mitigou, avantajaram-se em artes, civilizao, e estabilidade poltica, entretanto que os mais
aferrados s brutais prticas, ficaram atrasados, pobres,
em anarquia ou despotismo.
Nas Colnias da Amrica, onde o uso, ou inculcada necessidade de um clima ardente, faz continuar
o cativeiro dos negros da frica e seus descendentes,
pareceria justo, que o soberano desse eficaz proteo
ao escravo contra a tirania dos seus senhores; no s
quando os maltratassem com severidades, sevcias,
excesso de trabalho, falta de subsistncia e curativo,
como provido pelas leis romanas, fazendo dar incontinente a liberdade aos oprimidos e desamparados,
ou vend-los com boas condies, ou ainda punir,
com as competentes penas da lei os que abusassem
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A polcia da Espanha nas suas Colnias parece excelente modelo. Qualquer escravo, ainda no sendo seviciado, tem direito de comprar a sua liberdade, citando a
seu senhor para a avaliao do preo por arbtrio de bom
varo, nomeando cada um a aprazimento o seu rbitro;
e no caso de discrdia, o juiz se interpe, acordando-se
com um deles. Para que cedermos aos espanhis em justia e humanidade? O clebre Campomanes, esclarecido
ministro desta nao, tem promovido estes e outros to
dignos estabelecimentos, como se l na obra do Sr.
Joseph Townsend na sua viagem a Espanha, impressa
em Londres em 1702.
Assim, cuidando-se do ensino e casamento dos escravos e libertos, havendo polcia vigilante e vigorosa,
para serem bastantemente ocupados em trabalho til;
de necessidade seriam menos perversos, e mais industriosos: a certeza da beneficncia do soberano os faria
subordinados, agradecidos, e sustentadores do governo, as Colnias cresceriam em populao de gente livre, que dariam infinidade de produtos para objetos
de troca, e bem da Metrpole; e at com o tempo provavelmente contribuiriam para a civilizao da frica,
e recproco trfico natural e leal; extinto o vil comrcio de sangue humano, que, perpetuando o barbarismo dos vendedores e compradores, e vindo periodicamente infestar de bexigas, escorbutos, e outros
miasmas, e contgios, as Colnias Europias, extinguindo milhares de crianas do pas, que seriam esperana da ptria e posteridade, serve apenas de mal
recrutar a populao dos negros, sacrificada a mil gneros de mortes, tormentos e agonias, e dando o repulsivo espetculo de um povo de brbaros, nus, famintos, preguiosos, dissolutos e atraioados.
Por fim, ainda prescindindo da moralidade, o
simples clculo de interesse mostra o erro econmico
de procurar enriquecer algum com escravaturas.
Quem compra escravos pe o seu cabedal em fundos
perdidos. Os ingleses que contam o negcio mercantilmente, computam a mortalidade anual dos escravos
da frica a 10 por cento. Ainda que a terra brotasse
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Esta regra apenas poder admitir exceo temporria nos casos de extrema necessidade pblica, como
de invaso de inimigos: ento evidente a urgncia
do governo em forar o povo a alistamento militar e
de marinha, tirando os particulares das suas ocupaes ordinrios: bem que em uma nao de boas leis,
em que o amor da ptria tem o firme apoio das vantagens, que os indivduos experimentam no seu governo, quando se trata do perigo do Estado, impossvel
pensar, que jamais faltem voluntrios, que porfia se
oferecero ao servio. No tempo de paz, em governo
justo, no pode haver fundado receio, que, dando-se
paga competente, e no sendo o soldado aviltado com
disciplina de brbaros, deixem de concorrer muitos,
que, de bom grado procurem distino e glria em
uma profisso essencialmente nobre pelo seu objeto
e sacrifcios, e sempre honrada na opinio de todos
os povos e idades. No careceu Roma de recrutas de
fora, para levar as suas guias a subjugar to vastos
pases. A decadncia da Repblica data da admisso
de mercenrios, quando antes s os que tinham o foro
de cidado tinham direito de se alistarem nas bandeiras da ptria.
Guanabara, II (91:98), 1851.