Valentim Alexandre, Nação e Império
Valentim Alexandre, Nação e Império
Valentim Alexandre, Nação e Império
FRANCISCOBETHENCOURT
l<IRTICHAUDHURI
História da
Expansão
Portuguesa
Volume4
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N111
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NAÇÃO E IMPÉRIO
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o respectivo governador um acordo de aliança e de
NAÇAO E IMPERIO comércio, den1arcando -fronteiras, a que depois não
foi dado seguimento, em grande parte por obstru-
Valentim Alexandre ção das autoridades da capital da província. Apesar
disso, e das dificuldades naturais provocadas pela
existência da mosca tsé-tsé no percurso entre aque-
le porto e o Transval, em 1851já era possível cons-
tatar que Lourenço Marques se desenvolvia, por
força do «vantajoso comércio» com os «Holandeses
dessa década, já várias vozes se fazem ouvir a favor Bóeres>>,sendo agora o segundo porto de toda a co-
OS PLANOS IMPERIAIS: da refundação do Conselho, entre elas a de Sá da lónia, pelo seu desenvolvimento mercantil, atri~ de
EXPANSÃO E REFLUXO Bandeira, em proposta apresentada ao Senado (ses- Quelimane (relatório do governador Vale, 31-1-1851).
sões de 26-4-1839 e 10-7-1840). A ideia só veio a ter Em Lisboa, via-se com o maior interesse esta nova
Con10 é bem sabido, o ano de 1851 marca o vencimento no interregno parlamentar que se se- situação: e1n 1852, numa correcta antecipação do
início de mna nova fase política em Portugal, com guiu ao golpe de Estado regenerador, em 1851, futuro, uma consulta do Conselho Ultramarino
a recomposição do leque das forças partidárias, após contando então com o apoio activo do mesmo Sá previa que as relações com o Transval iriam trans-
o golpe de Estado que derrubou o cabralismo, da Bandeira e de A. M. de Fontes Pereira de Melo, formar Lourenço Marques num «ponto comercial
pondo fim a uma período de confronto agudo que se iniciava então nas lides ministeriais, sobra- muito importante; porque, sendo o melhor porto
pontuado por vários episódios da guerra civil. No çando a pasta da Marinha. Os objectivos em vista em tão extensa costa, ali se hão-de receber os gé-
campo colonial, a mutação do sistema, menos evi- eram bem claros: tratava-se de dar estabilidade e neros de um vastíssimo sertão, hoje habitado, em
dente, não deixa também de se fazer sentir, através vigor à política ultramarina, confiando-a a um gru- parte, por povo de raça europeia)). Para facilitar esta
de um facto a que se não dá geralmente o- devido po de especialistas, do mesmo passo que se lhe evolução, recomendava-se que se favorecesse o co-
relevo - a criação do Conselho Ultramarino, for- conferia um carácter nacional, acima dos confron- mércio licito, garantindo a segurança de negocian-
malizada pelo decreto de 23 de Setembro de 185r. tos partidários. A nomeação de Sá da Bandeira, tes e mercadorias e estabelecendo <<direitosmódi-
Ao novo órgão - composto por vogais com «prá- membro da oposição <(histórica>> ao governo, para a cos», não maiores do que os vigentes em Porto
tica das coisas do Ultramar,, ou com «provada capa- presidência do Conselho Ultramarino ven1 ainda Natal (consulta de 2-n-1852). Mais tarde, seguirão
cidade em Administração e Jurisprudência>>, mas realcar esta última finalidade - sendo também, em instruções pom1enorizadas, tendentes a garantir a
sempre de modo a que nele tivessem assento mem- tem'ios de política geral, uma das formas de inte- «segurança e conservação do domínio da Coroa
bros conhecedores dos territórios portugueses do gração do setembrismo no novo sistema. Não se Portuguesa em toda a Baía de Lourenço Marques,
Oriente, da África Oriental e da África Ocidental, tratava de uma simples distinção honorífica: ao no- Sá da Bandeira, in Diário Ilustrado, 5-3-1895 (BPMP) e ao desenvolvimento do comércio a que se presta
a norte e a sul do equador - foram atribuídas vo corpo e muito em particular ao seu presidente aquela localidade>>, para o que se recomendava a
vastas competências: para além de dar obri- coube de fàcto a definição das linhas de força da em parte por distribuição de terras aos soldados no construção de novo forte e, na ilha de Unhaca, de
gatoriamente o seu parecer sobre todas as <(pro- legislação promulgada para as colónias, que, com fim do seu tempo de serviço (segundo o modelo um posto militar fortemente guarnecido, de modo
postas de Lei acerca das Colónias» que o governo n1uito raras excepções, se linrita a seguir a doutrina da colonização militar, caro a Sá da Bandeira); e a dominar todo o porto, devendo ainda ocupar-se
houvesse de apresentar ao Parlamento ou que de- das «consultas>>do Conselho, ao longo da década controlo apertado dos pontos extremos do litoral, a Machaculo, no caminho para o Transval, onde se
cretasse nos termos permitidos pelo artigo 15-º do de cinquenta. norte e a sul da possessão, a fim de evitar qualquer estabelecera o negociante Albasini, pioneiro nas re-
Acto Adicional de 1852, o Conselho estava manda- Quer isto dizer que, com o início da Regene- penetração estrangeira, e nomeadamente a da Grã- lações com os Bóeres (portaria de 16-3-1854).Pouco
tado para~ por sua iniciativa, propor as providências ração, é de novo a concepção imperial de Sá da -Bretanha na baía de Lourenço Marques. Mas, so- depois, por indicação do Conselho Ultramarino,
que julgasse necessárias a ben1 das possessões, sendo Bandeira que se impõe - mas agora afirmada com bre este pano de fundo, surgiram elementos novos, foram conferidos poderes a Duprat, árbitro português
desde logo incumbido de organizar os respectivos maior consistência. Tal como acontecia já em 1838, entretanto suscitados quer pela presença de Li- na Comissão Mista do Cabo, para concluir tratados
orçamentos, de <,coordenar um sistema de coloni- essa concepção caracterizava-se, antes de mais, pela vingstone na Zambézia quer pela migração em com as repúblicas de Transval e de Orange (con-
zação nos lugares para isso mais apropriados» e de vontade de consolidar a soberania portuguesa em massa dos bóeres da zona do Cabo para norte, da sultas de 15-3-1853e 20-3-1854), dando-se também
«indicar a maneira mais eficaz de dirigir para as África, transformand9 os pequenos enclaves no qual resultou a fundação das repúblicas de Orange autorização ao governador de Moçambique para
Colónias portuguesas a emigração de Portngal [...]» litoral a que até aí se encontrava confinada - (em 1842) e do Transval (em 1853). Seguidas sempre conStmir uma estrada entre Lourenço Marques e o
(decreto citado e regulamento de 29-12-1852). Mas, simples pontos terminais das rotas de comércio com grande atenção, as actividades do explorador território bóer (consulta de 27-10-1854). De toda a
no relatório em que justificava a medida, 'o gover- vindos do interior do continente, cujo controlo e;ra britânico em território moçambicano deram ori- evidência, contava-se em Portugal com os novos
no ia ainda 1nais longe, prevendo que o Conselho e1n grande parte deixado aos povos autóctones - gem a instruções específicas, em 1857 e 1858 (sendo Estados para reequilibrar a balança de poderes na
viria a «exercitar também atribuições legislativas», em territórios compactos, sem soluções de conti- Sá da Bandeira ministro da Marinha e Ultramar), região, fazendo contrapeso à presença britânica.
uma vez aprovada pelas Cortes a necessária autori- nuidade tanto na linha da costa como nos sertões tendentes a assegurar o domínio português sobre o No caso de Angola, os planos de Lisboa visa-
zação - intenção que nunca se chegou a concreti- do interior. curso do Zambeze, desde a foz até ao Zumbo, ex- vam sobretudo a expansão para norte, pela ocupa-
zar, mas que mostra bem o lugar central que se Em relação a Moçambique (recusada que foi plorando todos os seus braços, estabelecendo fortes ção da zona da foz do Congo e do litoral limítrofe.
pretendia conferir ao novo órgão. Pela latitude das pelo Conselho Ultramarino a proposta de forma- tanto na sua embocadura principal (Luabo) como Tratava-se, também aqui, de um velho objectivo,
suas funções, o Conselho Ultramarino não teria en1 ção de uma companhia nos moldes da inglesa das nas suas margens e controlando o comércio que já presente no século XVIII, que renascia em novo
princípio um peso n1enor na definição da política Indias, à qual seria entregue toda a colónia) reto- nele se fizesse, designadamente pela instalação de contexto, quando o comércio dos chamados <<por-
colonial do que o corpo com o mesmo nome, nas- mam-se os objectivos já anteriormente definidos: uma alfindega (portarias de 21-Io-1857, 28-1-1858 e tos do norte)) ganhava maior expressão, em detri-
cido no século XVII, que o liberalismo se apressara a ocupação dos portos, de facto independentes, por 30-1-1858). Quanto aos Bóeres, os primeiros con- mento dos interesses da praça de Luanda. Desde
extinguir em 1833, por incompatível com a nova onde se fazia o comércio dos pangaios, a começar tactos com os estabelecidos no Transval datam já meados da década de quarenta, erain por isso cons-
ordem de coisas. Mas depressa se fez sentir o vazio por Angoche, o mais importante de entre eles; da década de quarenta, por iniciativa deles pró- tantes as pressões, vindas designadamente das pró-
assim criado, face à instabilidade governamental e à concentração de tropa europeia em Tete, onde se prios, através de emissários enviados a Lourenço prias autoridades angolanas, para que se tomasse
moperânc1a das Cortes neste domínio: em finais deveria igualmente formar uma colónia agrícola, Marques, que em 1850 chegaram a formalizar com pelo menos o porto mais próximo, que era o de
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Ambriz - projecto a que no entanto obstavam expedição militar apoderou-se das minas de cobre .
tanto a instabilidade política em Portugal como so- do Bembe, devendo as forças que a constituíam,
bretudo a oposição da Grã-::Bretanha, que não de- num segundo momento, seguir em direcção ao rio
sejava ver-se expandir em Afii.ca um Estado como Congo, onde estabeleceriam a soberania portugue-
o português, caracterizado no campo colonial pelas sa, estudando os pontos a fortificar, com o <sfun
suas práticas mercantis restritivas e pela sua incapa- principal [de] proteger o comércio que se faz nas
cidade em reprimir o tráfico negreiro. Sob o im- duas margens do rio, e facilitar o seu domínio»
pulso do Conselho Ultramarino, Ambriz virá de (portaria de 29-2-1856).
facto a ser tomado em 1855, sem aviso prévio ao Mas o projecto de expansão territorial em An-
governo de Londres, então envolvido na Guerra da gola estendia-se ainda a outras áreas. A sul, tal co-
Crimeia; mas essa ocupação enquadrava-se num mo nas instruções de 1838, voltava a insistir-se na
plano mais geral, que visava colocar sob o dorrúnio exploração de todo o litoral, procurando fundar
da Coroa portuguesa todo o Baixo Congo, até Ca- feitorias em Porto_ de Pinda, foz do Cunene e An-
binda e Molembo. Inviabilizada a progressão por gra Fria, a fun de evitar qualquer intromissão ex-
mar, a norte desse porto, pela Grã-Bretanha, _que terna. No interior, contava-se formar uma forte
ameaçou empregar a força para a impedir, o avan- colónia europeia na Huíla, organizada militarmen-
ço passou a fazer-se pelo interior: em 1856, uma te, como centro de onde se dominariam o país dos
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ANG.OLA
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Gambos, o vale do Cunene e os sertões adjacentes e a portaria de 27-12-1854ao governador de Luan-- nha, contra o imobilismo reinante nesta matéria, a ela deveria ter iguahnente uma solução moderni-
(portarias de 8-5-1857, 3-7-1857 e 6-9-1858). da. Cj, para todas as consultas citadas, o fundo do ideia da abolição gradual por que Sá da Bandeira zante, através da construção de estradas, conjugada
Finahnente, na zona central de Angola, preten- Conselho Ultramarino do AHU, «Consultas», anos . lutava já desde os anos trinta, com sucessivos pro- com o aproveitamento das vias fluviais, em particu-
dia-se de imediato ganhar influência nas regiões do respectivos; e, para as portarias, os códices de «Re- jectos apresentados, sen1pre sem êxito, na Câmara lar no eixo que ia de Luanda a Cassanje, insistindo-
Libelo e da Quissama; a mais longo prazo, tomava- gisto de Angola>>e de «Registo da África Oriental», dos Pares. · -se sobretudo na necessidade de desenvolver a na-
-se como objectivo fàzer a ocupação de todos os datas respectivas). Paralelàmente, o visconde empenhou-se e1n le- vegação coillercial pelo Cuanza (p. ex., portaria de
territórios que ficavam entre os pontos já controla- Mas pretendia-se ir ainda mais longe, no cam- var avante outro objectivo que lhe era caro - a 30-7-1857). Fazem-se mesmo os primeiros contactos
dos ou a controlar no interior (cmno o Bié e o po das transformações sociais - atacando, não ape- extinção do serviço forçado de <,carregadores» em para promover a construção de caminhos-de-ferro
Bailundo), sem soluções de continuidade (portaria nas o tráfico, mas a própria escravatura. O primeiro Angola, por ele próprio já ordenada em portaria do tipo í<americano» em Angola, autorizando-se a
confidencial de 23-12-1857). passo nesse sentido, ainda que indirecto, está no nunca cumprida datada de Janeiro de 1839, como constituição de uma companhia para o efeito (de-
Para Sá da /Bandeira, a construção de um novo decreto de 12 de Dezembro de 1854 (publicado na vimos. Neste ponto insiste uma das primeiras creto de 28-8-1857).
império em Africa passava igualmente por uma sequência da consulta de 9 de Dezembro de 1853 consultas do novo Conselho Ultramarino, de 10 Como é natural, os planos de Sá da Bandeira
profunda transformação das estrnturas económicas do Conselho Ultramarino), no qual, para além de de Dezembro de 1851, sendo a mesma recomenda- previam ainda um reforço do poder da metrópole
e sociais herdadas do antigo regime colonial. Signi- se ordenar o registo de todos os escravos existentes ção repetida na de 12 de Setembro de 1854. Mas es- nos territórios coloniais - afinal, a justificação úl-
ficava isso, em primeiro lugar, a efectiva extinção nos domínios portugueses do Ultramar, de se dar tamos perante um dos raros casos em que o gover- tima de todo o projecto. No campo económico,
do tráfico de escravos - tráfico que, para o Con- ao Estado o papel de <(patrono natural dos escravos, no se negou a legislar no sentido indicado pelo esse reforço passava pelo estabelecimento de rela-
selho Ultramarino, constituía a «causa /permanente dos libertos e de seus filhos», exercido em cada co- Conselho, decidindo-se antes por solicitar o pare- ções mercantis regulares entre o reino e o ultraniar.
da ruína das colónias portuguesas da Afuca», difi- lónia por uma «Junta Protectora>>, e de se regula- cer das autoridades coloniais angolanas (portaria de Frustrada a tentativa de formação de uma «Compa-
cultando o desenvolvimento da sua agricultura, da rem as formas de manumissão e de alforria, se esti- u-1-1855) - dando assim início a uma longa e vio- nhia Real Portuguesa», para a navegação a vapor, à
sua indústria e do seu comércio lícito, para além de pulava também que todo o escravo importado por lenta controvérsia travada nos anos seguintes, por qual haviam sido reservadas em 1856 ?-Scarreiras pa-
afectar iguahnente «a honra e o interesse nacional» terra, em domínios portugueses, após a publicação via oficial, entre Sá da Bandeira e o governador de ra os Açores e para as possessões de Africa Ociden-
(consulta de 14-7-1854). No início da década, dera- do decreto, ficasse «considerado na condição de li- Angola, Coelho do Amaral, fortemente contrário à tal, vieram ambas a ser concedidas, dois anos mais
-se já uma alteração importante no quadro em_ que berto, com a obrigação, porém, de servir o senhor medida. Perante estas resistências, o Conselho ten- tarde, em regime de exclusivo, à «Companhia
se fazia a exportação de mão-de-obra negra, com o por tempo de dez anos» - disposição que tendia a tou uma solução de compromisso, propondo em União Mercantil», que agrupava capitalistas das
fecho do mercado do Brasil, em 1851(por medidas fechar sobre si o universo dos escravos de cada co- consulta de 6 de Julho de 1855,não já a extinção do praças de Londres e de Lisboa (estando entre os
eficazes de repressão aí tomadas, impedindo os de- lónia, eliminando a fonte principal do seu recruta- serviço forçado, mas a sua regulamentação, que últimos Fortunato Chamiço Jr., que voltaremos a
sembarques), o que reduziu os fluxos anuais de es- mento, por compra no interior do continente afri- permitiria eliminar os seus aspectos mais chocantes, encontrar), e ainda o antigo negreiro Francisco
cravos transportados para as Américas a partir das cano. Restava a reprodução natural como modo de designadamente ao estipular a obrigatoriedade de António Flores. Pelo contrato, a Companhia
colónias portuguesas de várias dezenas de milhar reconstituição do mundo escravagista - porta que pagamento do trabalho prestado. No entanto, ao obrigava-se a <íestabelecer a navegação regular por
para cerca de 5000, tendo Cuba como destino Sá da Bandeira tentou fechar, pela apresentação de assumir a pasta da Marinha e Ultramar em Junho meio de barcos a vapor entre Lisboa e os portos de
principal. Apesar de mais esporádico, o comércio um projecto de lei que previa a aplicação ao ultra- do ano seguinte, Sá da Bandeira retornou a sua Benguela, Luanda, Moçâmedes e Ambriz, fazendo
negreiro continuava a concentrar energias e capi- mar dos alvarás de 19 de Setembro de 1761 e de 16 ideia inicial, proibindo terminantemente o deno'.: escala por Cabo Verde e São Tomé», sendo para o
tais, prejudicando o arranque de outras actividades, de Janeiro de 1773, que davam a liberdade aos es- minado <íserviço de carregadores)> ou qualquer ou- efeito subsidiada com 58 contos anuais (decreto de
do mesmo passo que suscitava as reclamações da cravos entrados em Portugal, bem como aos filhos tro serviço forçado no território de Angola, por in- 6-5-1858).
Grã-Bretanha. Face- a esta situação, as recomenda- de mulher escrava nascidos depois de promulgada a compatível com a Carta Constitucional, nos termos No campo político, Sá da Bandeira retoma as
ções do Conselho Ultramarino vão no sentido do lei. Discutido na Câmara dos Pares na sessão de 9 do decreto de 3 de Novembro de 1856 (que todavia tentativas de reforma do aparelho de Estado colonial
apetfeiçoamento dos mecanismos internos de re- de Abril de 1852, o projecto ficou então pendente; autorizava a requisição de trabalhadores para a esboçadas já nos anos trinta, nomeadamente em
pressão dos negreiros e das autoridades com eles mas no ano seguinte as Cortes aprovaram um di- construção de estradas, por um_ máximo de doze relação a Angola, onde, para além de se suscitar de
coniventes (traduzidas e1n parte nos decretos de 13- ploma legal que, não referindo os alvarás, ia no dias anuais). Na mesma data, um outro diploma le- novo a formação da Junta Geral do Distrito, encar-
-12-1854 e 27-9-1856) e do cumprimento estrito das mesmo sentido, determinando directamente que os gal impunha o aun1ento do imposto (dízimo) nas regada de dar parecer sobre todos os assuntos re-
cláusulas do tratado luso-britânico de 1842, evitan- filhos de mulher escrava, de futuro nascidos nas regiões onde até então se recrutavam os carrega- levantes para a vida da província (portaria de
do qualquer controvérsia sobre o assunto com o províncias ultramarinas seriam «considerados de dores. 29-9-1856), se procura dar vida à administração mu-
governo de Londres. Neste último ponto, estamos condição livre» (carta de lei de 24-7-1856). Pela A relação assün estabelecida entre as duas dis- nicipal (portaria de 10-1-1857)- iniciativa que re-
perante uma clara inversão da política seguida nos mesma altura, várias disposições abolem a escrava- posições toma evidente o significado da política de vela a vontade de cercear o poder _doscomandantes
finais da década de trinta, que tão maus resultados tura em diversas parcelas do império, embora de Sá da Bandeira neste período: tratava-se de elimi- dos <(distritos)>e «presídios» (os antigos capitães-
tivera: agora, procura-se a aliança com a Grã- âmbito territorial muito limitado: na ilha cabo- nar as formas de coerção directa próprias do antigo -mores), vistos como um dos maiores obstáculos à
-Bretanha no campo colonial, de modo a desarmar -verdiana de São Vicente (portaria de rn-3-1855); no regime colonial, levando simultaneamente a popu- aplicação das directrizes formuladas em Lisboa.
a sua oposição aos propósitos expansionistas de recém-formado distrito de Ambriz, bem como em lação até aí inserida nas estruturas tradicionais a in- Por último, Sá da Bandeira contava ainda com
Portugal na zona do Baixo Congo (como é expressa- Cabinda e Molembo (carta de lei de 23-12-1856). tegrar-se no mercado de trabalho e, de forma mais a colonização branca como foco de irradiação dos
mente referido na consulta de 12-8-1856do Conselho Finalmente, a 29 de Abril de 1858, o visconde de Sá geral, na economia monetária, atrav~s da imposição valores europeus e, indirectamente, como instru-
Ultramarino). Ess~ linha traduz-se na proibição ta- da Bandeira - ministro da Marinha e Ultramar de um tributo, a exemplo do que fazia a Grã- mento da política imperial portuguesa em África.
xativa do transporte de n~gros de Moça1nbique desde Junho de 1856 - fez publicar um decreto -Bretanha nas suas colónias, designadamente no Para lhe dar impulso - e mais uma vez por reco-
para as ilhas francesas do Indico, ainda que for- que marcava o prazo de vinte anos para a abolição Natal (caso referido várias vezes nos papéis de Sá mendação do Conselho Ultramarino (consulta de
malmente se tratasse de trabalhadores livres sob geral da escravatura no ultramar português. Corno da Bandeira). Pressupunha-se que, dispondo livre- 29-12-1852)- criou-se em 1852 mn <ífundo especial
contrato (consulta de 3-2-1855 e portaria de 27 do se explicava no respectivo preâmbulo, presumia-se mente de si próprios, os trabalhadores se dirigiriam de colonização», a que foi destinado o produto dos
mesmo mês ao governador da colónia); e nas res- que, passadas duas décadas, já o número de escra- naturalmente para as actividades mais produtivas, direitos cobrados na exportação para o ultramar de
trições postas ao embarque de escravos de Angola vos seria diminuto (atendendo às providências capazes de pagar melhores salários - o que benefi- vinho e aguardente nacionais - direitos que, ten-
para São Tomé e Príncipe, onde a economia de anteriores que impediam novos recrutamentos), ciaria a agricultura, permitindo o desejado fomento do sido reduzidos a 1 % pela carta de lei de 4 de
plantação começava o seu arranque (if., por exem- sendo então possível indemnizar os «legítimos da economia de plantação em Angola. Quanto à Maio de 1849, eram agora de novo elevados ao ní-
plo, as consultas de 22-9-1854, 4-5-1855 e 20-n-1855; senhores» dos que ainda existissem. A,;sim se impu- questão dos transportes do interior do território, vel anterior (decreto de 30-12-1852). No mesmo
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CONFIGURAÇÕES POLÍTICAS NAÇÃO E IMPÉRIO
sentido <<civilizador))se valorizava também a accão bém os capitais privados dificilmente se di<;punham ·a_ absorver energias e capitais; e sobretudo manti- ou de oficiais da marinha e do exército em comis-
da Igreja, embora se recusasse liminarmente a in;ta- ocorrer ao campo colonial, considerado de alto risco, nham-se as velhas estruturas, que resistiam às são, a que se acrescentavan1 os artigos em defesa de
lação de congregações religiosas, cuja extinção em sem garantias e privilégios exorbitantes. Acrescia ain- orientações do poder central, muitas vezes com a sectores específicos relacionados com o ultramar,
1834 adquirira um valor simbólico para a generali- da a muito generalizada relutância em investir em ac- cumplicidade activa dos próprios governadores: em designadamente da praça de Lisboa. Mas frequente-
dade dos liberais portugueses. Ao vazio assiin cria- ções - «causa fã.tal do nosso atraso», segundo opina- Moçambique, tanto a legislação como as ordens mente o debate generalizava-se, merecendo a in-
do -se procurava ocorrer, quer pela formação de va um texto da Associação Comercial de Lisboa vindas de Lisboa foram pura e simplesmente igno- tervenção dos nomes mais sonantes do jornalismo e
clero «indígena» no seminário que por esta altura se (Revoluçãode Setembrode 26-8-1855),que referia não radas durante quase toda a década de cinquenta, da política nacionais, em torno de temas que ga-
manda estabelecer em Luanda (decreto de 23-7-1853 ser facil sobre elas obter dinheiro, por venda ou hi- enquanto que em Angola o governador Coelho do nhavam_ relevo do ponto de vista ideológico ou
e portaria de 14-n-1856) quer por missionários saí- poteca (o que, por outras palavras, equivalia a quei- Amaral se opunha tenazmente ao decreto de aboli- sempre que estav~ em jogo interesses económicos
dos do Colégio das Missões Ultramarinas, criado xar-se da falta de liquidez do respectivo mercado). ção do trabalho forçado dos «carregadores». Noutro de maior vulto. E o que acontece em 1854-1855,
por carta de lei de 12 de Agosto de 1856. Tudo isto é exemplarmente demonstrado pelo plano, as tentativas de ocupação de novos territó- quando na imprensa se discute a já referida propos-
Expansão territorial, transformação das estrutu- caso da companhia de navegação União Mercantil: rios, em Ambriz e no Bembe (Congo) e nos pla- ta para a entrega de Moçambique a uma compa-
ras sociais, fmnento económico, colonização, mo- constituída em 1858, após longas tratações com o naltos do Sul (Gambas) provocavam a resistência nhia, ocasião em que se reafirma a fé, por muitos
dernização do aparelho de Estado ultramarino: não governo, que lhe procurava dar impulso, a empresa armada dos povos africanos nelas envolvidos, em partilhada, nas riquezas por explorar das colónias e
podem negar-se nem a amplitude nem a coerência sofre desde o início da escassez de capital efectiva- campanhas pontuadas por incidentes desastrosos s,e discutem os melhores meios de as aproveitar.
interna do plano que Sá da Bandeira tenta levar à mente realizado, entrando em crise dois anos de- para as tropas coloniais. E o que sucede também quatro anos mais tarde,
prática na déc_ada de cinquenta, quer como presi- pois, apesar de um avultado subsídio estatal - para De todos estes pontos trataremos mais espaça- ainda com maior impacte, por altura do grave con-
dente do Conselho Ultramarino quer como minis- o que terá contribuído a má qualidade dos navios damente no próximo capítulo, dedicado à evolu- flito diplomático com a França, originado pelo
tro. Mas é também óbvio que, assim definido, o empregues, comprados por preço excessivo. Nas ção interna das diversas possessões. Aqui, interessa- apresamento em águas territoriais moçambicanas da
projecto exigia vastos recursos - sobretudo se ti- palavras de Andrade Corvo, que analisou a situação -nos sobretudo seguir o curso da questão colonial barca Charles et Geo,;ge,a 29 de Novembro de 1857,
vermos em conta que abrangia diversos territórios da companhia numa série de artigos publicados em na própria metrópole, o maior ou menor eco que sob a acusação de fazer tráfico de escravos para a
do continente africano, separados entre si por mi- 1861 no Jornal do Comércio,sobre a União Mercantil nela suscitavam as políticas ensaiadas no ultramar, a ilha de Reunião. Condenado pelo tribunal local, o
lhares de quilómetros (para não falar das colónias teria recaído o «influxo nefasto que pesa sobre as teorização que sobre elas eventualmente se fazia. navio foi remetido a Lisboa com o seu comandante
do Oriente, que, embora ocupassem u1n lugar nossas coisas,>, não por simples infelicidade, mas Neste âmbito deve começar por sublinhar-:se a sob prisão; mas o governo de Paris exigiu a sua li-
1narginal no plano, não podiam_ deixar de ser sus- «por efeito do pouco conhecimento de negócios, presença constante do tema imperial na imprensa bertação imediata, o pagamento de uma indemni-
tentadas e defendidas). Em Por;tugal, escasseavam de pouca grandeza de alma, e de excessiva cobica portuguesa durante o período da Regeneração - zação e a devolução da barca, sustentando que, no
os próprios meios humanos: da Africa continuava a de ganhar depressa e muito, empregando pou~o presença assegurada, em primeiro lugar, pelas momento da sua captura, ela transportava, não es-
fugir-se, como zona de degredo, sendo geralmente capital e fazendo poucos esforços de vontade e de chamadas <<correspondências» provenientes das co- cravos, mas trabalhadores contratados com autori-
inúteis os esforços do governo de Lisboa para en- inteligência>>,que se faziam sentir tanto entre os es- lónias, gerahnente da autoria de altoi funcionários zação das autoridades portuguesas (e tinha decerto
contrar um único engenheiro, um padre ou mes- tadistas como na maioria dos industriais (Jornal do
mo wn oficial do exército que se dispusesse a cum- Comérciode 22-8-1861). Grupo de cativos em :Mbame, a caminho de Tete, in D. LivingsWne, Narrative of an Expedition to the Zambesi,
prir missão no ultramar; também os sünples Neste quadro, o plano imperial de Sá da Ban- Londres, 1865 (BN) 0
colonos se faziam_raros, não excedendo em toda a deira não podia deixar de assumir um cariz volun-
década as poucas dezenas. Os meios financeiros es- tarista: ele é, no campo político, a expressão dos
casseavam, igualmente, num Estado que vivia des- mitos do «Eldorado» e da «herança sagrada>>,que
de a desagregação do império luso-brasileiro em tão fundamente marcavam as elites portuguesas.
plena crise financeira, aprofundada ainda pela guer- No entanto, se eram gerais os apoi9s ao projecto
ra civil finda em 1834, e que desde os anos quarenta de reconstituição do império em Africa (excep-
se empenhara no fomento das vias de comunicação tuando algumas raras vozes cépticas), já as políticas
necessárias à criação do próprio mercado interno. concretas para esse efeito avançadas por Sá da Ban-
Em termos económicos, construir em simultâneo o deira suscitavam forte oposição, particularmente no
estado-nação e o novo sistema colonial revela-se que dizia respeito à abolição da escravatura e do
naturalmente uma tarefa de extrema dificuldade, se trabalho forçado, como em breve veremos.
não mesmo iinpossível. Mas o plano imperial era tam_bém voluntarista
Face a este dilema, era frequente dar-se como na sua relação com a situação vivida nas próprias
solução a formação de companhias dotadas de po- colónias - onde se contrapunha às forças domi-
deres 1najestáticos - ideia defendida pelo Jornal da nantes, incluindo o próprio aparelho de Estado
AssociaçãoIndustrial Portuense (entre muitos outros), colonial herdado do antigo regill}e, como já acon-
com o argumento de que seria impossível ao go- tecera em finais dos anos trinta. E certo que o en-
verno «distribuir para as colónias simultaneamente cerramento efectivo do mercado brasileiro à im-
os parcos recursos de que por ora dispõe,>, «quando portação de mão-de-obra escrava, desde 1851,
apenas se enceta no interior do reino a obra dos alterara significativamente o q1:adro económico das
interesses materiais, intelectuais e morais [... ]», (Jor- possessões portuguesas de Africa, abrindo um
nal da Associação Industrial Portuense, n.º 10, maior espaço de manobra à política definida por Sá
15-12-1854).Mas eram grandes as resistências à en- da Bandeira. Mas o comércio negreiro subsistia,
trega da administração de quàlquer colónia a uma embora em números muito mais baixos (em geral
companhia - resistências expressas na consulta do menos de cinco mil por ano, a partir dos territórios
Conselho Ultramarino de II de Outubro de 1853so- angolano e moçambicano, contra as dezenas de mi-
bre a proposta de constituição de wna empresa desse lhar registadas em finais dos anos quarenta), tendo
tipo destinada a Moçambique. Por outro lado, tam- agora Cuba como principal destino, continuando a
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CONFIGURAÇÕES POLÍTICAS
NAÇÃO E IMPÉRIO
que ali nos pertence, para salvar os nossos irmãos que de que as «raças africanas►> seriam «susceptíveis de
ali se vêem constantemente ameaçados, e impor receberem a civilização europeia>> estaria precisa-
aos negros o devido respeito para com ~s nossas mente nas colónias portuguesas, onde tinham exis-
autoridades» (O Português de 3-5-1860). A pressa, tido e existiam ainda «pessoas de cor, tão civilizadas
organizou-se de facto uma expedição militar, sob como os brancos que nelas habita[vai;n]» (idem: 84).
o comando simbólico do infante D. Luís, cujos Possuidor de «vastos territórios)) em Africa, «duran-
primeiros contingentes partiram para Angola em te séculos [... ] explorados da maneira a mais infaus-
Junho de 1860. ta e opressiva)), Portugal teria o «dever moral de
Embora por grande parte fictícia, a crise ango- procurar difundir os beneficies da civilização euro-
lana dá lugar a um debate generalizado sobre a si- peia entre os povos que os habitam», a esses benefi-
tuação do império. Para além de considerações de cies chamados pelos direitos inscritos na Carta
circunstância, emergem desse debate duas concep- (idem: 83). Mas daí não decorreria a imediata ex-
ções de :fundo sobre o lugar das colónias no sistema tensão ao ultramar das instituições políticas euro-
político português (já antes esboçadas num ou peias. Pelo contrário, na perspectiva de Sá da Ban-
noutro texto, mas só agora claramente expressas). deira, a tutela a exercer só seria possível pela
Uma delas - que era a do próprio Sá da Bandeira, aplicação de legislação especial que restringisse os
implícita em toda a sua actividade neste domínio e direitos políticos dos «indígenas», de modo a evitar
explicitada, no essencial, em vários documentos «as paixões e o antagonismo de raças» e a preservar
oficiais e, mais tarde, no livro O Trabalho Rural o domínio portugnês (idem: n5-123). A diferença de
Africanoe a AdministraçãoColonial (1873) - tinha os regimes assim postulada para o reino e para o ultra-
territórios ultramarinos como parte integrante do mar fàcilmente se compatibilizava com o sistema da
todo nacional e os seus habitantes como cidadãos Carta Constitucional, que como é bem sabido, dis-
portugueses, gozando por isso de todos os direitos tinguia entre cidadãos activos e passivos - para es-
e garantias estipuladas na Carta Constitucional. Tal ta última categoria se devendo remeter a esmaga-
era o fundamento repetidamente invocado para dora maioria da população «indígena», que gozaria
justificar tanto a abolição do tráfico de escravos e de direitos civis, mas não de direitos políticos.
da própria escravatura como a extinção do se'rviço Seria interessante aproximar esta perspectiva da
forçado de «carregadores>>:citava-se em particular o de Tocqueville, expressa quer no seu texto sobre os
Esclavagistas fugitivos, in D. LJvingstone,Narrat:ive of an Expedition to the Zambesi, Londres,
castigandoescravos (BN)
1865 artigo 145.º da Carta (que consagrava a <iinviolabili- Estados Unidos quer nos seus relatórios sobre colo-
razão neste último ponto, quanto ao fundo das coi- dade dos direitos civis e políticos dos cidadãos por- nização francesa na Argélia: também aí se defende a
gra1;1_em 1860,_ quando foram chegando a Lisboa tugueses►>, com base na liberdade, na segurança so- igualdade essencial das raças, sendo o atraso do ne-
sas: n~o passando de um mal disfarçado comércio noticias das dificuldades que as tropas coloniais
n~_greiro, a condução de «contratados» para a Reu- cial e na propriedade), combinado com o seu gro imputado a razões de carácter histórico e socio-
portugu~sas en~ontrava1?- r_ioAmbriz e no Congo: artigo 7.º (que considerava cidadãos portugueses lógico; também aí se condena a escravatura e se
mao contara com a anuência do governador Car-
em Janeiro, sabia-se do mcidente militar de que re- todos os que tivessem nascido «effi Portugal ou preconiza a sua abolição, mas salvaguardando os di-
valho e Meneses, mau grado as ordens da metró-
sultara : morte do capitão Militão de Gusmão, per- seus domínios>>). «Em presença destas disposições reitos dos colonos; e, fináhnente, também aí se ma-
pole, que só após a sua substituição em Setembro
to de Sao Salvador do Congo; a partir de finais de constitucionais►> - concluía Sá da Bandeira - «é nifesta a mesma preocupação em garantir os direitos
d: 1857 por J. Ta vares de Almeida tiveram um iní- Abnl, as «correspondências►> de Luanda davam cem-
c10 de execução - o que apanhou a barca de sur- positivo,, que os h~bitantes portugueses das provín- individuais, mas mantendo firme o controlo euro-
ta da derrota do próprio governador-geral no Qui- cias da Africa, da Asia e da Oceânia, sem diferença peu, que pennitiria construir nos territórios domi-
presa). Perante a passividade da Grã-Bretanha 0
cembo (perto de Ambriz), do desastre de uma co- de raça, de cor ou de religião, têm direitos iguais nados <,sociedades civilizadas►> e não «hordas de sel-
gov~m~ de Lisboa, que começara por resistir' às
eXIgencias francesas, acabou por ceder a todas elas
lu~a ao passar o rio Loje, em retirada, e do ataque àqueles de que gozam os portugueses da Europa►> vagens» (cf.Todorov, 1989: 219-235). Não existindo
africano a Ambriz. Também no Sul uma «guerra (Sá da Bandeira, 1873: 14). Tornado em toda a sua qualquer indício que leve a inferir uma influência
(Santos, 1987). O assunto foi seguido com a maior
do Nano» assolara os estabelecimentos do planalto extensão, este princípio levaria a aplicar ao ultraniar directa de Tocqueville em Sá da Bandeira, a coinci-
atenyã<:>pela imprensa portuguesa, sobretudo na
chegando a descer a vertente oeste da serra d~ as instituições políticas europeias - representação dência deverá tomar-se como um sinal da homolo-
sua últrma fase - que ocorre no último trimestre
.Chela. Acrescidas de rumores e boatos vários estas em Cortes por deputados eleitos, regime munici- gia dos dois autores neste campo ideológico.
de 1858 -, provocando o seu desfecho um forte
sentimento de humilhação nacional. notícias ~ por vezes conscientemente manipula- pal, tribunais com júris populares, imprensa livre. A par da integração política, condicionada e a
das - cnam um alarme geral: dá-se Luanda como Aparentemente, estamos perante uma linha as- prazo, Sá da Bandeira dava ainda grande importân-
Em termos de política colonial, a crise da barca cercada por um «gentio imenso» Uornal do Comércio
C'.:h_arles
et C?eorgecontI?-buiu para enfraquecer as po- similacionista pura - geralmente estigmatizada por cia à inserção da população «indígena» na econo-
de 2-5-1860) e mesmo invadida pelos «pretos insur- se recusar a ter em conta as diferenças entre cultu- mia de mercado, a obter por meios «suaves e indi-
siçoes ~e Sa da Bandeira, fundadas no cumprimen-
gentes» (Jornaldo Portode 4-6-r860) e os portugneses ras, povos e· raças, tudo nivelando em nome de rectos►>, nomeadamente através do imposto, que,
to estnto do tratado luso-britânico de 1842 e na
que restavam disputando «palmo a palmo, o terre- uma teoria abstracta e uniformizadora. Mas as coi- obrigando a procurar moeda, fã.ria acrescer tanto a
cooperação com a Grã-Bretanha: não faltavam
no portugu~s, às [sic]imensas coortes de pretos sel- sas não são assim tão simples. Na verdade, longe de oferta voluntária de trabalho como a produção de
agora vozes a exigir abertamente o seu abandono
vagens seqmosos do roubo e do sangue português►> apagar as diferenças, a concepção de Sá da Bandeira géneros agrícolas com destino ao mercado. Pelo
de modo a permitir a livre exportação de mão-de~
(O Português de 22-6-1860). Segnern-se natural- pressupunha-as, dando como ponto adquirido a su- contrário, os meios coercivos, para além de incons-
-ol;ira de Angola para São Tomé, até então muito
mente o~ ~pel?s pa~ótic~s à desforra e à salvaguarda perioridade da civilização europeia - tomada aliás titucionais, seriam também antieconómicos, dando
condicionada. Por essa altura, já a política de Sá da
do domnuo 1mpenal. Citaremos um único texto como a única civilização - sobre a barbárie africa- origem a um trabalho de menor rendibilidade e
Bandeira vinha sendo atacada noutros planos: assa-
bom exemplo do tom geral da imprensa neste mo~ na (uma ideia muito comum no século xrx). Esse provocando a fuga em massa da população (idem:
ca;a-~e-~he, em particular, a desorganização do co-
menta: «o govem? não deve cruzar os braços em atraso era no entanto atribuído, não a qualquer 62-65, 76-77, 190).
rnerc10 interno de Angola, na linha de Luanda a
presença dos desa1res, que ali se acha sofrendo o qualidade intrínseca da raça negra, a uma sua infe- Em meados de Oitocentos, Sá da Bandeira não
Cassanje, em consequência da abolição do service
bom nome português; medidas o mais prontas rioridade inata e irremediável, nus a condições his- estava inteiramente isolado na defesa da perspectiva
forçado de <<carregadores».As acusações subiran 1 de
e enérgicas devem ser adaptadas para conservar o tóricas acidentais, sendo por isso superável. A prova que acabámos de resumir - de cariz vincadamente
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CONFIGURAÇÕES POLÍTICAS NAÇÃO E IMPÉRIO
etnocêntrico, mas não racista. Os apoios de que seguintes pelo maior perito português em questões
dispunha eram no entanto muito minoritários: no coloniais, como tal colaborando nos principais pe- -
Parlamento, as propostas antiescravagistas encontra- riódicos nacionais da época. Cabe-lhe sem dúvida
vam sempre fortes resistências, que as neutraliza- o principal papel no combate às «leis ominosas, es-
vam; na imprensa, só muito pontualmente surgiam tultas e prejudiciais» publicadas por Sá da Bandeira,
artigos favoráveis à sua política, e mesmo esses não estigmatizadas por provocarem «a insubordinação
deixavam em geral de lhes levantar algumas reser- dos pretos e o definhamento do comércio», trazen-
vas, em termos de oportunidade ou de viabilidade do a «desordem social» (if. p. ex. Jornal do Comércio
(p. ex. Jornal do Comércio, editorial de 22-10-1859). de 28-10-1859; Revoluçãode Setembrode 19-6-1860, 15
O tom dominante era outro, frontalmente contrá- e 21-3-1861).E ele quem toca a rebate contra os que
rio à linha integracionista do ministro. Marcavam- tomavam um «interesse burlescopela liberdade do
-no, em primeiro lugar, as «correspondências» pro- preto selvagem» - <<escola»que deveria «ser com-
venientes das colónias, em particular de Angola, batida com todas as forças},, exigindo-se leis ten-
que pintavam geralmente um quadro muito negro dentes a «punirem os vícios [...] característicos nos
da situação aí criada pelas reformas impostas pelo pretos nossos súbditos de Angola» (artigo in Futuro,
governo de Lisboa, sobretudo no que ao decreto transcrito pelo Jornal do Porto de 22-6-1859).
de abolição do serviço forçado de «carregadores» Nesta referência aos «vícios>>inerentes aos súb-
dizia respeito, acusado de paralisar o transporte ditos «pretos» aflora um dos temas centrais de Sei-
de produtos do sertão para Luanda e - o que era xas e de outros autores da mesma corrente, exten-
pior - de ter fomentado na população negra o es- samente tratado e repetido em múltiplos artigos -
pírito de desobediência e de insubordinação. «Os o da perversidade inata, e provavelmente irreme-
pretos carregadores, libertadospelo decreto de 3 de diável, da raça negra, naturalmente propensa à sel-
Novembro de 1856»- escrevia-se no Jornal do Co- vajaria e à barbárie. Citaremos aqui apenas um
mércíode 31 de Março de 1858- «além de se pres- exemplo, que reúne os estereótipos comuns na im-
tarem às cargas com_ grande dificuldade, e por prensa portuguesa da época. Escrevia-se no Jornal
grande pagamento, têm dado em ladrões das mer- do Comérciode 17 de Abril de 1858, sobre o «povo>>
cadorias que lhes são entregues pelos feirantes do negro: «Que se pode esperar dum povo ignorante,
sertão!}, E acrescentava-se: «mas o que espanta e vicioso, vadio, e dividido? Para verdadeiramente o Escravosabandonados,in D. Lívingstone, Narrative of an Expedition to the Zambesi, Londres, 1865 (BN)
desespera aos homens de bom senso, é ver como o caracterizar é necessário colocá-lo no último de-
Sr. Sá da Bandeira trabalha incessantemente a favor grau da escala social [... ]. Preguiçoso por índole e de emancipação geral dos povos dos sertões - ti- órgão por parte de Sá da Bandeira, que, para mais,
dos pretos desta colónia, deixando os brancos seus por influência climatérica, dado à embriaguez e à nha-se em vista impor um regime que consagrasse não retoma a pasta do Ultramar, quando em Julho
habitantes e o comércio, abandonados [.. .J.·Em sensualidade, supersticioso, estúpido, vagabundo, a inferioridade legal da população negra, no seu to- de 1860 o partido «histórico>, regressa ao poder.
Portugal, e nesta colónia, os súbditos do rei de sem crenças nem religião é um povo desgraçado. do, separando-a em definitivo do corpo da nação, Manifestamente, as <<utopias»estavam fora de curso.
Portugal estão sujeitos a serem soldados, marinhei- E nos extensos territórios dos nossos donúnios çla contra as <<Utopias>> integracionistas de Sá da Ban- Seguiu-se uma clara mudança de orientação no
ros, jurados, cabos de polícia, etc.; porém o cidadão África Ocidental movem-se nun1erosas e compac- deira (o que, além do mais, permitiria a generaliza- ponto entre todos o mais sensível - o da mão-de-
preto, nascido vassalo de Portugal, e criado nas flo- tas populações desses indígenas selvagens. Todo ção do trabalho forçado a todos os «pretos boçais», -obra negra e do seu estatuto, com especial refe-
restas que conquistaram os nossos avós, é declarado aquele povo, nu de corpo e do .espírito, vive no como insistentemente se reclamava). rência aos «carregadores►, de Angola - expressa
livrepara continuar na sua barbaria [sic], e para rou- seio dos sertões dirigido só pelos seus instintos na- Elaborada em geral por articulistas próximos nomeadamente na consulta de 9 de Novembro de
bar os brancos impunemente, que lhe entregam os turais [... ]. A sua vida errante é o principal elemen- dos sectores coloniais, esta ideologia conheceu na 1861 do Conselho Ultramarino, na qual se fazia a
seus haveres},. to da sua barbaria. O horror ao trabalho é um obs- época uma larga divulgação: encontramo-la e~res- crítica explícita do decreto de 1856 que proibia o
Tal era, com raras excepções, o tom das «cor- táculo permanente ao seu adiantamento. ►> Assini se sa na generalidade da imprensa portuguesa, mde- serviço forçado - decreto aí acusado de servir de
respondências>,: em finais da década de 1850, torna- chegava ao ponto crucial, chave de toda a argu- pendentemente da sua cor partidária. Não é aliás «estorvo à civilização, e ao progressivo melhora-
ra-se um lugar-comun1 atacar as <<utopias ►, e o «sen- mentação, neste como em muitos outros textos - raro ver nomes sonantes da política nacional a de- mento da África portuguesa;,. No mesmo texto o
timentalismo>, de Sá da Bandeira, que o teriam a necessidade de legislação que obrigasse o negro a fenderem ideias semelhantes - como acontece Conselho tomava como boa toda a argumentação
levado a legislar sem levar em conta o «estado selva- trabalhar, já que ele a tal se recusava, quando era com Rodrigues Sampaio, que na Revolução de Se- geralmente avançada em defesa do trabalho forçado
gem►> dos povos africanos, verdadeiras «hordas» pri- sabido que no trabalho estava o «gérmen de toda a tembro,tomando como «verdadeiro axioma>>que <<a - vendo nele o único meio de vencer <<asinfluên-
mitivas dotadas de «instintos de feras» (if. p. ex. Re- riqueza e como.didade da vida» e de toda a civiliza- raça negra deixada à sua liberdade não trabalha>~,faz cias do clima, e os hábitos tradicionais de ociosida-
voluçãode Setembrode 26-10-1859;Jornal do Porto de ção, nobilitando quem o praticava. a crítica acerba dos «estadistas filantropos>>,pedindo de►, comuns naquelas «terras inóspitas», de n1odo a
6-7-1861;Jornal do Comérciode 15-1-1859e 2-10-186,). O te1na do trabalho como meio de formação para a África «leis apropriadas às suas circunstâncias «trazer os seus habitantes às condições gerais do gé-
Vindos de regiões longínquas e quase desco- do «homem civilizado>, tinha no século xrx já üma e não leis absurdas>, (editorial e artigo, ambos da nero humano ►>. Em conclusão, a consulta recomen-
nhecidas em Portugal, estes textos passavam por longa tradição; mas é difícil ver nesta defesa da es- sua autoria) in Revoluçãode Setembro de 15-6-1860). dava que novas instruções fossem sobre ~ assunto
testemunhos verídicos da realidade aí efectivamente cravatura e do trabalho forcado, em meados de Oi- A larga hegemonia desta corrente entre as elites remetidas ao governador de Angola, instando
vivida, contrapondo-se às «utopias ►> -filantrópicas tocentos, mais do que a m~ra manipulação de uma portuguesas, em termos ideológicos, acabou por igualmente e1n que se libertasse de todas as peias o
dos simples «teóricos>>- daí a sua força. No mes- retórica ao tempo largamente aceite. Neste caso, a reflectir-se no campo político, por finais da década transporte de escravos ou libertos para São Tomé e
mo sentido iam aliás os artigos, mais elaborados, de ideologia cola-se por tal forma aos interesses mate- de cinquenta. Em Março de 1859, caía o governo Príncipe (onde a economia de plantação estava em
autoria de publicistas residentes na metrópole mas riais que acaba por tornar-se transparente. Mas essa de que Sá da Bandeita fazia parte, fragilizado, entre fase de arranque), até então restringido pela «erró-
ligados aos sectores mercantis ultramarinos - com manipulação ia ainda mais longe: tomando como outras questões, pela da barca Charles et George. nea inteligência» que em Portugal se vinha dando
realce para António José de Seixas, antigo negreiro pretexto o decreto de 1856 que abolia o serviço dos Pouco depois, o novo ministro do Ultramar, Fer- ao tratado luso-britânico de 1842 para a abolição
confesso, que, estabelecido com grande fortuna em «carregadores►, - indevidamente apresentado co- reri, chamava a si a presidência do Conselho Ultra- do comércio negreiro (AHU, «Conselho Ultra-
Lisboa por volta de 1850, é tido nas duas décadas mo um ataque à escravatura ou como uma forma marino - provocando a demissão desse mesmo marino - Consultas>,, pasta 106).
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NAÇÃO E IMPÉRIO
CONFIGURAÇÕES POLÍTICAS
Nenhuma destas recomendações foi expressa- tintos: o da metrópole; o da Índia - campo de ac-. (Revísta Militar, tomo XIII, n. 0 19, 15-10-I861: 621), «a repetidos em múltiplos textos, em defesa das for-
mente aceite pelo governo de Lisboa; mas a políti- ção preferencial dos «luso-descendentes», formados expatriação, a fome e miséria nas estranhas paragens mas coercivas de trabalho. Há no entanto um ele-
ca seguida em Angola deu-lhes ampla satisfação, na escola militar local; e o do restante ultramar. por onde somos mandados, são sacrifícios que, por mento novo: a apologia que se faz da compra ou
tanto em relação à exigência de fornecimento de Em Áfuca, a grande maioria dos oficiais era já nesta superiores às humanas forças, a pátria não pode exi- «resgate» de escravos no interior da África, inculca-
«carregadores» (uma prática na realidade nunca in- fase de origem europeia, parte deles pertencendo gir de nós, nem devem ser taxadas de desprovidas de do, na linha da ideologia escravagi.sta tradicional,
terrompida) como no que dizia respeito à expor- ao quadro ultramarino (o que os impedia de voltar patriotismo os que se neguem ou fujam a tão dificeis como um verdadeiro acto humanitário, por alega-
tação de negros para São Tomé e Príncipe, que ao reino antes de atingirem o posto de coronel, ca- provações». Era a recusa frontal da perspect:iva inte- damente livrar da morte os criminosos e prisionei-
conhece em começos da década de 1860 um gran- so bem raro), outros em conússão, gozando em ge- g13cionista cara a Sá da Bandeira. O destino da ex- ros de guerra em poder dos sobas (p. ex. Jornal do
de impulso, fazendo-se abertamente, sob a protec- ral de maiores vantagens - uma divisão que tendia pedição a Angola em 1860 - dizimada em poucos Comércio de 4-10-1868, artigo <<comunicado»), mas
ção do governador geral de Angola, Calheiros e a provocar atritos graves. Mas o problema funda- meses pela doença - contribuiu ainda para reforçar também como o único processo de levar a religião
Meneses. mental estava na separação quase absoluta entre os estas resistências. Apesar de várias tentativas de refor- e a civilização ao «sertão africano», que jazia «sepul-
Igualmente abandonado foi outro dos pontos três exércitos (herdada dp antigo regime colonial, ma, a relação entre o exército e o ultramar mante- tado na barbárie» Uornal de Lisboa de 26-1-1867).
essenciais da política de Sá da Bandeira - a pers- quando as colónias de Africa e do Oriente eram ve-se inalterada nos anos seguintes. <: Não será necessário sublinhar o carácter aberrante
pectiva expansionista, claramente afirmada sobretu- zonas periféricas do sistema, dotadas de grande au- No plano ideológico, o desfecho da questão da desta argumentação, que mais uma vez se limita a
do em relação ao território angolano. Neste caso, tononúa), que, por um lado, desligava o do reino barca Charles et Ge01ge- um dos elementos cen- utilizar e a manipular a retórica corrente ligada às
os próprios dissabores resultantes das ocupações do da vida do império, retirando ao governo de Lis- trais da crise de 1858-1860 - veio relançar a polé- ideias de progresso e de civilização, na defesa dos
Ambriz e do Bembe, bem como, embora em me- boa um meio essencial para o exercício pleno da núca sobre a política abolicionista de Sá da Bandei- int~resses muito concretos de plantadores e de ne-
nor medida, dos planaltos do Sul de Angola, impu- soberania nas colónias, e, por outro, levava os ofi- ra, dando novo fôlego às teses escravagistas. A falta greiros.
nham uma mudança de rumo: logo em 1860 as ins- ciais do quadro do ultramar a integrarem-se no jo- de apoio da Grã-Bretanha, num dos raros casos em Finalmente, no plano político, a década de
truções ao governador então nomeado, Carlos go de interesses das sociedades coloniais, onde fa- que o Estado português cumprira os seus compro- 1860-1869 vê tomar corpo um debate mais geral so-
Franco, datadas de 9 de Junho, determinavam que ziam toda a sua carreira sem esperança de voltarem missos internacionais neste domínio, abria a porta à bre a utilidade e a própria viabilidade do império
se suspendessem todas as iniciativas anexionistas, à metrópole. contestação do tratado luso-britânico de 1842: des- - debate por onde perpassa uma crescente inquie-
por falta de meios para as sustentar. Esta mesma Neste contexto, não surpreende que surja a de finais de 1858, são várias as vozes que reclamam tação sobre o futuro colonial do país, face às difi-
política é reafirmada por várias vezes nos anos se- exigência de fusão dos três exércitos num único a sua anulação (bem como a do decreto que a 10 culdades evidentes em desenvolver e rendibilizar os
guintes em documentos oficiais, chegando a recu- corpo, responsável pela defesa de todo o império e de Dezembro de 1836 ilegalizara o tráfico), a sus- territórios do ultramar, aos problemas diplomáticos
sar-se a oferta de terras em diversas colónias, para capaz de reforçar rapidamente os pontos em que se pensão do cruzeiro naval encarregado de reprimir que deles nasciam e às notícias de desastres milita-
evitar as despesas e complicações subsequentes. Em encontrasse ameaçado (if.p. ex. Revolução de Setem- o comércio negreiro e o perdão de todos os argui- res que por vezes daí provinham. Já presentes ante-
Angola vai-se ainda mais longe, preconizando-se o bro de 2-5-1860). Mas as resistências eram muitas. dos em processos por contrabando de escravos (if. riormente, mas muito _isoladas,as vozes cépticas ga-
abandono dos pontos interiores recentemente ocu- Parte delas, as mais invocadas, de raiz corporativa: p. ex. O Portugu~ de 26-10-1858;Jornal do Comércio nham agora peso e expressão.
pados e a concentração de esforços no litoral - os militares do reino tenúam que a concorrê_ncia de 6 e 9-n-1858). Alguns vão mais longe - e acu- Em um ou outro caso, esse cepticismo tell] a
uma linha que culnúnará em 1873 com a retirada da no mesmo quadro dos «oficiais do outro mundo» sam o decreto de 1836 de ter arruinado «pela im- sua ,:-aizem preocupações de índole humanista. E o
zona dos Dembos (sobre este parágrafo, if. Alexan- (como por irrisão chamavam aos das colónias) vies- previdência» as colónias portuguesas, esses «padrões que acontece numa série de artigos de fundo do
dre [no prelo]). se subverter a ordem de antiguidade e preencher de glória que nossos antepassados nos legaram, ga- Jornal do Comérdo de Fevereiro de 1861, nos quais
Para além destas inflexões no âmbito das políti- vagas com que contavam. Mas as razões de fundo nhos à custa do seu sangue e do seu nobre arrojo», uma visão desencantada, muito crítica, das práticas
cas concretas, a crise de 1858-1860 marca fortemen- tocavam a própria concepção que se fazia do exér- onde a única riqueza estava no comércio escrava- coloniais portuguesas serve de base à recusa da via
te o debate sobre a questão colonial na metrópole. cito e das suas funções, num Estado com territórios gista, «estabelecido pelas leis, e à sombra delas» imperial, tida como inelutavelmente ligada à e_:scra-
No plano institucional, as dificuldades encontradas espalhados por várias zonas do globo. Alegava-se (A Nação de 19-8-1861: 3). Na década seguinte, o vidão e ao terror. «Satisfazem as colónias de Africa
para organizar a expedição militar destinada a An- que havia uma diferença essencial entre o serviço ataque ao tratado de 1842 será um dos tópicos pre- ao generoso e cristianíssimo desígnio de civilizarem
gola, em 1860, fazem emergir o problema da rela- militar no reino, em defesa da pátria, e aquele que feridos dos sectores coloniais, designadamente pela a raça vencida?» - perguntava-se o editorialista, a
ção entre o exército português e o império. Com eventualmente se poderia ser chamado a cumprir pena de António José de Seixas, que via na aplica- 22 de Fevereiro. - «Ora di"gamos com a mão na
efeito, apesar das notícias alarmantes chegadas de no ultramar. «Compreendemos que para defender a ção que dele se fazia um <(constante atentado contra consciência que nada temos feito neste sentido.
Luanda, que davam a colónia em risco de perder- pátria» - escrevia-se no Jornal do Comérciode 5 de o direito de propriedade e da justiça, e uma série A raça africana está hoje na sua grande massa tão
-se, não foi possível ao governo de Lisboa consti- Julho de 1860 - «todos os sacrifícios sejam poucos de julgamentos írritos e ofensivos à dignidade de bárbara e tão moralmente negra como antes que
tuir de pronto wna força para ir em seu socorro e o da vida o menor; mas entre o sacrifício da vida um Estado independente, como Portugal, acober- nós ali plantássemos [síc]- se p9rventura o plantá-
(como toda a imprensa da metrópole reclamava), contra o estrangeiro insolente que pretendesse tados com a aparência da legalidade!», sujeitando o mos - o estandarte da Cruz.» Seguia-~e um qua-
por falta de oficiais que se prestassem voluntaria- avassalar-nos, e a morte ingloriosa de uma febre comércio marítimo português às «prepotências» dos dro muito negro da situação vivida em Africa, num
mente a comandá-la. Só o reforço das vantagens de perniciosa, sem recursos para a con1bater, há uma cruzadores britânicos (carta de Seixas ao núnistro passo que vale a pena transcrever por extenso, de
início concedidas pelas Cortes aos expedicionários distância enorme.>> Seria por isso «barbaramente es- do Ultramar de 1-10-1866: in Correspondência de tal forma contra~ta com as imagens dominantes:
demoverá alguns deles, o que pernútirá completar túpido ►> exigir ao <<filliodo povo>>,ao soldado «cha- Portugal de 13-ro- 1866). Estava particularmente em <<Ascolónias de Afri.ca são alguns brancos, que ali
em prazo relativamente curto (algumas semanas) o mado por um limitado número de anos às fileiras», causa o livre transporte de escravos ou «libertos>> vivem alguns anos como que acidentahnente e sem
batalhão expedicionário. Mas já então estalara a que «fosse deixar a vida nas regiões inóspitas das para as plantações de São Tomé e Príncipe, recla- lançarem raízes no solo, sem fundarem pela família
polénúca sobre a função e as obrigações do exérci- nossas colónias>>.Quanto aos militares de profissão, mado pelos roceiros das ilhas e pela praça de a sociedade colonial. Em volta desta cidade artifi-
to do reino, acusado por vários sectores de regatear já se entendia por natural no mesmo texto que pu- Luanda. cial e colectícia, desta cidade que todos os dias pre-
o «preço dos seus serviços» Uomal do Comérdo, edi- dessem ir servir o país onde quer que se tornasse Toda a questão da mão-de-obra negra ganha cisa de renovar-se com enúgrantes da Europa, em
torial de 6-5-1860) ou mesmo de ser apenas movido necessário - mas sempre numa base de voluntaria- aliás nova actualidade a partir de começos de 1865, volta desta povoação branca, cujo crescimento é
«pelo amor do ouro>>,rebaixando <<osbrios núlitares do, mediante vantagens ou retribuições extraordi- por virtude de um projecto de lei então apresenta- problemático, acumulam-se sem outros laços mais
à baixa e ignóbil bitola dos interesses sórdidos» nárias. De modo geral, a prestação do serviço no do por Sá da Bandeira e António José de Avila pa- que os da obediência, ditada pela escravidão, ou
(A Nação, jornal legitimista, de 8-5-1860). Muitos ultramar era vista pelos oficiais do reino como um ra a abolição imediata da escravatura nas colónias. pelo terror, alguns centenares de mil indígenas,
reclamam uma reforma das forças armadas de terra verdadeiro degredo, que sentiam como uma injus- Reaparecem_ então os velhos estereótipos sobre a mal-avindes com a civilização cristã, que apenas
portuguesas, então divididas em três exércitos dis- tiça. Como se explicava em artigo da Revista Militar «indolência>> e os «vícios>>próprios da raça negra, conhecem pelas suas faces menos simpáticas. Uma
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antipatia de raça, fomentada pelos erros do sistema passado, todos os discursos plenos de «palavras ele-:- a identidade e as condições de existência de Portu-
colonial, separa perpetuamente os dois elementos vadas e dos mais nobres exemplos da nossa bela gal, no contexto de urna Europa convulsionada pe-
da colónia. Não há religião, não há moral, não há a história». De recusar, por infundadas, seriam igual- la guerra.
educação da dignidade e do dever, não há para o mente as ideias correntes sobre as riquezas em que A este caminho nos conduz a própria teoriza-
negro o afecto egoísta por uma civilização, que só as colónias estariam •prontas a desentranhar-se, por ção de Andrade Corvo, autor, poucos meses antes
lhe deixa conhecer a superioridade, para ele odiosa, pouco que o governo de Lisboa delas se ocupasse. de assumir responsabilidades governamentais, de
dos seus dominadores. O preto vive e morre selva- O futuro do império teria de discutir-se apenas urna obra de reflexão sobre a questão nacional - o
gem dentro da cidade. O preto trabalha como um com ,<argumentos positivos» - os respeitantes ao opúsculo Perigos,escrito em 1870, quando decorria
animal, pela abdicação da sua vontade, e não pelo desenvolvimento económico. Ora, nesse campo, a o conflito franco-prussiano e na península hispânica
exercício inteligente da sua liberdade pessoal. Não realidade era a da situação deplorável das colónias, se agitava o fantasma da união ibérica. Constatando
se considera solidário na obra commn. ►> que jaziam <mum estado que afronta[va] a dignida- - e lamentando - a agonia do sistema saído dos
Negada igualmente a utilidade das colónias para de nacional►> - situação que só poderia ser melho- tratados de Viena de 1815, que «proximamente du-
a metrópole, em termos de proventos económicos rada, em algumas delas, pelo emprego de avultados rante meio século» haviam trazido «a paz à Euro-
ou como destino para a sua população excedentá- capitais, que a venda das outras propiciaria (mais pa», Corvo faz nesse texto a análise dos princípios
ria, o editorialista concluía: «As colónias não são pelas poupanças futuras do que pelo montante por geralmente invocados como fundamentos do novo
pois para nós a cidade dilatada, para receber o su- elas obtido, segundo se supunha). direito internacional europeu - o «princípio das
pérfluo da nossa povoação. Não são também um Relançado por carta de Seixas ao ministro do nacionalidades>>,completado pelo da <(soberaniapo-
instrumento de propaganda civilizadora. Ainda são Ultramar, publicada em Novembro de 1866, o de- pular»; o <isistemado equilibrio europew>; e a «teo-
menos uma empresa mercantil[ ... ]. Mas as colónias bate sobre este tema generalizar-se-á nos anos se- ria das raças►>. A esta última opõe uma recusa fron-
hão-de ser a nossa prosperidade! dizem alguns cida- guintes, ganhando ainda maior acuidade em 1868 tal, vendo <<nasua monstruosa aplicação à divisão
dãos iludidos por um benemérito amor da pátria. com a recepção das notícias da derrota da segunda dos impérios [... ] um ataque a todos os princípios
Não acabamos de cair nos meios com que esta expedição enviada a Moçambique a combater o morais da organização das sociedades», conduzindo
profecia se há-de um dia realizar.» ,<rebelde»Bonga (António Vicente da Cruz, senhor fatalmente à guerra: não sendo possível construir
Aflorada nesta série de artigos do Jornal do Co- do prazo de Massangano, na realidade um micro- impérios «como se fazem classificações etnológicas
mérdo, a ideia de que à n1etrópole faltavam meios -Estado independente). Mas, embora fortemente ou planos de política no campo da teoria►>, a de-
que lhe pennitissem aproveitar das «inexauríveis►> representada na imprensa, a corrente favorável à marcação de zonas de influência c01n base na iden-
riquezas dos territórios ultramarinos é nesta época recomposição geográfica do império não chegou tidade da raça daria decerto lugar a graves dissen-
comum a muitos textos. A esmagadora maioria, no nunca a impor-se,)lo plano político, não existindo sões, nomeadamente entre a Alemanha e a Rússia,
entanto, inverte a argumentação de cariz humanista qualquer indício de que a hipótese de venda de suportes do pangermanismo e do pan-eslavismo,
que acabamos de referir, lamentando, não a opres- parte do império fosse nesta época alguma vez se- respectivamente (Corvo, 1870: 144-145). Quanto ao
são que sobre o negro se fazia, mas sim a impos- riamente considerada a nível governamental. De <<sistemado equilíbrio europew>, para além de for-
sibilidade de sem peias o forçar ao trabalho, de toda a evidência, não era fácil ultrapassar a barreira Andrade Coroo, litogrcifiada época (BN) çosamente instável, servia ultimamente de pretexto
modo a tomar finalmente rendível a exploração dos mitos da ,<herança sagrada» e do <<Eldorado», às grandes potências para reclamarem compensa-
colonial. «Que pode pois obter Portugal com a sua apesar de tudo ainda dominantes. Em 1870, o rela- pedra preciosa» na África austral, se passa a cha1nar ções territoriais - sempre à custa dos pequenos
deplorável situação financeira, e com essas contra- tório do ministro Rebelo da Silva constitui a reafir- a atenção na imprensa para a ,<extensíssima, tão ri- Estados, que para tal davam a <<matéria-prima», não
riedades que lhe impõe [sic] a natureza, a emanci- mação da importância dos territórios ultramarinos, ca e fertilíssima província de Moçambique», assim sendo nunca ouvidos sobre «tão cruéis e brutais
pação da espécie humana, e a voz altissonante das cujas riquezas inventaria. Mas simultaneamente, de súbito transformada em novo Eldorado, prenhe atentados>> (idem: 17). Restava o <<princípio das na-
ideias humanitárias?>> - perguntava-se um oficial pressionado pe,la crise financeira, muito aguda de promessas (cf. Jornal do Comércio de 1-4-1869, cionalidades», a que Andrade Corvo dava clara-
em 1861 (Revista Milítar, tomo XIII, n.º 20, 31-01- neste final de década, o governo de Lisboa pro- 9-4-1869 e 13-10-1869). Esta tendência acentua-se mente a preferência, desde que se pusesse cobro às
-1861: 55), reflectindo uma preocupação muito par- cura restringir as stias responsabilidades para com em começos de setenta, altura em que se atravessa manipulações que dele se vinham fazendo, cobrin-
tilhada na época. as colónias no campo da economia, obrigando-as um breve período de euforia colonial, propiciada do as anexações com o ,,aparente assentimento dos
Mas só raramente essa preocupação conduz a em princípio a contar com as suas próprias forças, pelas informações vindas tanto de Angola, atestan- povos►>. Para que se Jhe pudesse conferir um <<valor
uma recusa da opção colonial: em geral, reclama- nos termos da reforma administrativa promulgada a do o forte desenvolvimento comercial da colónia real>>,para que não fosse «um m.ero pretexto para
-se, não o abandono do império, mas a sua reorga- 1 de Dezembro de 1869. Estava-se então no ponto (iniciava-se o ciclo da borracha), como também, refazer a carta da Europa segundo os desejos e as
nização, pela venda de parte dos territórios ultra- mais extremo da fase de refluxo da política impe- embora em termos mais limitados, de Moçambi- ambições dos grandes Estados>>,tomava-se indis-
marinos, que permitiria concentrar esforços e rial. que, que beneficiava do aun1ento de relações com pensável tomar por base uma concepção precisa de
meios nas possessões mais prometedoras do ponto o Natal e da abertura do canal de Suez em 1869. nação, como «reunião de homens grupados sobre
de vista económico. Como principal defensor desta É neste novo clima que toma corpo a política um certo território, constituindo, pelo assentimen-
linha, encontramos o nosso já conhecido António O SOPRO MODERNIZADOR de refon11as e de desenvolvimento do sistema colo- to geral, uma entidade política, com unidade de
José de Seixas, que e1n 1861 inicia uma verdadeira (1869-1879) nial conduzida na década de 1870 por Andrade governo, no que respeita à manifestação e defesa
campanha para a alienação das colónias situadas Corvo, na dupla condição de ministro dos Negó- dos interesses con1uns [...]» (idem: 13-15). Era uma
além do Cabo (com a possível excepção de Goa, Passada a crise de finais da década de sessenta, a cios Estrangeiros e de ministro da Marinha e Ul- perspectiva de nação de raiz contratual, assente na
mas incluindo Moçambique), a que acrescentará polémica sobre os destinos do império esbate-se: tramar. Facilitado decerto, inicialmente, pela con- vontade livremente expressa dos povos, sem apelo
mais tarde a Guiné, com a consequente aplicação mais raras, as vozes cépticas tendem nos anos sub- juntura de .relativa prosperidade de alguns dos a qualquer essência originária, fosse de que ordem
dos recursos disponíveis em Angola e São Tomé e sequentes a perder-se no coro dos que vêe1n no territórios ultramarinos, sobretudo em Angola, o fosse. A única ressalva estava na exigência da <<uni-
Príncipe (cf. A Revolução de Setembro de 28-3-1861, ultramar um campo privilegiado de afirmação da novo impulso in1perial nasce no entanto de preo- dade de poder político, representando e dirigindo
18-10-1861, 13 e 21-n-1861). Para Seixas, do debate nação portuguesa. Os primeiros indícios desta cupações de ordem mais genérica - podendo ver- os comuns interesses perante os estrangeiros», co-
sobre a questão colonial deveriam afastar-se todas mudança de conjuntura são perceptíveis já em -se nesta reafirmação da vocação colonial do país mo condição de existência da nação - o que, ex-
as consideracões habituais sobre o valor dos territó- 1869, quando, após a chegada de notícias da desco- uma resposta às dúvidas que nos anos anteriores cluindo em princípio as nacionalidades emergentes,
nos do ultr;mar como testemunhos das glórias do berta de <<importantíssimos jazigos auríferos e de havian1 afligido as elites políticas portuguesas sobre traía a preocupação, presente em toda a obra, de
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conservar quanto possível o traçado das fronteiras geográfica, com os Açores a meio caminho, pode-. fazer funcionar a velha aliança tambéin em África, política de hoje», desde que para tal fossem con-
da Europa, evitando tanto os processos de frag- ria servir de porta de acesso à Europa (idem: cooperando na realização de projectos comuns (co- venientemente encaminhados - educando, e
mentação como os de unificação dos Estados. 158-159). Entretanto, <<paratirar de uma tal política mo os caminhos-de-ferro) e sobretudo na fixação não <(cerceando direitos há largos anos concedi-
A salvaguarda das pequenas potências estaria preci- todas as fecundas consequências» que dela se espe- das fronteiras coloniais. Também neste último dos» (Corvo, 18850 III, 387-399).
samente na estabilidade do sistema internacional, ravam, tornava-se necessário «introduzir profundas ponto _An.dradeCorvo via harmonia, e não contra- Não será decerto necessário salientar o quanto
assente em <<princíp~os.claros, fundados na liberdade mudanças no nosso sistema comercial e colonial», dição de interesses, entre os dois países, desde que estas ideias contrastavam com as concepções domi-
e independência das nações», bem como na sua encetando e seguindo «ousadamente um novo sis- Portugal limitasse as suas pretensões ao que a pru- nantes em Portugal. Subjacente à perspectiva de-
cooperação (idem: no-rn). Como contraponto ao tema de política internacional, comercial e econó- dência recomendava, não indo além da margem es- fendida por Corvo estava uma teoria racial que fà-
poder dos «grandes impérios», Andrade Corvo mica», que, nas palavras de Andrade Corvo, permi- querda do Zaire, a norte de Angola (contrariando a zia já apelo ao darwinismo - mas numa leitura
contava com as «grandes alianças» dos mais fracos, tiria que Portugal se transformasse no «primeiro e corrente dominante, que reclamava todo o Baixo que acentuava os efeitos de solidariedade social im-
nas quais via o «meio proficuo de limitar e restrin- principal empório do comércio da América com a Congo), e desistindo de unir Angola e Moçambi- postos pela própria marcha da «civilização» (contra
gir a perigosa tendência que se manifesta[va] na Eur~pa>> (idem: 160). que - <ildeia fantasista» que seria perigoso seguir, a «luta pela vida» pura e simples) e que recusava a
Europa, para a concentração e separação das raças,> E este quadro que vai servir de suporte à acção por contrariar as «condições políticas e económi- hierarquização das raças com base em critérios de
(idem: 156-157). Neste quadro, caberia à Grã- de Corvo como ministro (mais tarde teorizada nos cas>>prevalecentes (Corvo, 1883-1887' r, 158-168, 11, ordem biológica. Ao evolucionismo, Andrade
-Bretanha um papel particular, pelo «exercício da seus Estudos sobre as ProvínciasUltramarinas,publica- 177). Corvo ia sobretudo buscar argumentos contra a
sua influência n1.oral e política» no continente, on- dos na década de oitenta). No campo colonial, a Mas, para além do contexto internacional, as existência de mna «pluralidade de espécies no ho-
de não poderia deixar instalar-se o «domínio da sua política toma como princípio central a abertura reivindicações territoriais deveriam ainda ter em mem»: na verdade, não existiria senão um único
força e o princípio brutal da conquista» sem preju- do império ao exterior. Nesta perspectiva, o Estado conta outro factor: as relações com os próprios po- <(tipo humano», não sendo as suas diversas formas
dicar os seus próprios interesses marítimos e colo- português deveria associar-se às dem:ps nações da vos africanos. Contrariamente ao que vimos acon- mais do que o resultado da sua «adaptação lenta
niais (idem: 147-149). Seriam estas, em suma, as Europa na «grande obra)>de «abrir» a Africa à «civi- tecer com Sá da Bandeira, Andrade Corvo recusa- [... ] às circunstâncias do clima e dos mei_os em toda
condições para preservar as «pequenas nacionalida- lização)>; se se opusesse a essa «fecunda solidarieda- va a expansão por via militar, aceitand9 apenas o a sua extensão consideradas» - pelo que nada au-
des>>,sem as quais «o espírito da Europa sofreria de>>,ou por «inércia, ou por falsas ideias de sôfrego, aumento de influência portuguesa en1. Africa «por torizava a estabelecer «divisões» en1 que se quisesse
uma grande depressão moral, porque lhe faltaria a cioso e estéril donúnio», veria os seus direitos con- meios pacíficos, pela acção natural e própria da ci- «achar a superioridade absoluta de uns, à custa da
maior das suas maravilhosas qualidades: a unidade testados pelas «nações civilizadas», podendo vir a vilização>>,ganhando <<asvontades das populações inferioridade absoluta e irremissível de outros>>
da civilização na variedade das compleições, das pôr em risco «a sua própria existência>> (Corvo, indígenas», sem provocar conflitos nem, provocar (idem: III, 23-24). Era no entanto certo que certas
formas, dos caracteres políticos» (idem: 146). 1883: 1, n8). Tomava-se por isso urgente afastar a ódios. Em qualquer caso, seria sempre <ilndispensá- raças africanas, mostrando-se incapazes de «tomar
Para Portugal, a ameaça externa, comum a to- «velha ideia», tradicional no colonialismo pórtu- vel caminhar com a máxima prudência, e saber pa- [... ] posse das forças da natureza, e [de] usar dessas
dos os pequenos Estados europeus, assun1ia no en- guês, que identificava a «posse e domínio dos ter- rar a tempo», não excedendo nunca «os limites do forças em serviço próprio», pareciam condenadas a
tanto uma forma específica - o expansionismo es- ritórios>> a <(monopólio e exclusivo de comércio», trabalho e do capital» que estivessem disponíveis e extinguir-se, como inferiores, em resultado da lei
panhol, compartilhado, na opinião de Andrade fazendo «a guerra aos produtos, aos capitais, à ac- tendo em atenção as <(faculdadesprodutivas das po- da selecção natural; mas esse seria já o resultado de
Corvo, por <itodos os homens políticos, todos os tividade estrangeira, como se tudo isto fossem pulações e dos territórios» que se ocupassem - uma <<degenerescência>> provocada pelo clima e pe-
partidos no reino vizinho». A resposta a este perigo inales perniciosíssimos>>.Válida no passado longín- sem o que se ca.J.ninharia para a ruína (idem: 1, lo meio, que afectaria sobretudo «o negro da costa
estaria, antes de mais, no culto ao que nós chama- quo, tal política era insustentável no mundo mo- 158-159). e das terras pantanosas», não tocando «as raças mais
remos um nacionalismo bem temperado, de cariz derno, quando o direito de «aproveitar, em benefi- Tratava-se, em smna, de fazer, não a conquista, robustas e mais perfeitas, de formas e faculdades,
liberal e progressista, que deveria afirmar-se «pela cio dos povos, as vantagens resultantes do livre mas a integração dos povos africanos - o que que povoam o largo continente» (idem: 1, 25, 55).
respeitabilidade e sensatez da sua administração; pe- comércio», de «fazer chegar a todos, as riquez_as pressupunha a prévia extinção do tráfico de escra- Constituindo a grande maioria da população negra,
lo exacto cumprimento de todos os seus deveres que a natureza pôs à disposição de todos» fazia par- vos, da escravatura e de todas as formas de trabalho estas últimas eram sem dúvida «susceptíveis de pro-
para com as outras nações; pela regularidade das te dos próprios «direitos da humanidade», não sen- forçado, como e1n muitos passos dos Estudos sobre gresso», encontrando-se nelas «disposições para ter
suas finanças e satisfação de todos os seus encargos; do lícito opor-lhe a barreira da soberania nacional as ProvínciasUltramarinasse acentua (idem: r: n4-n7, os mais elevados sentimentos e modificar os seus
pelos seus esforços em progredir e acompanhar a (idem: r, 37-38, 155-157).Aliás, no caso específico de 138-141,151). Do ponto de vista político, essa inte- usos», como se depreendia da sua história e os mo-
civilização em todos os seus desenvolvllnentos; pe- Portugal, país de escassos recursos e sem indústria gração far-se-ia de preferência por aliança com os dernos viajantes atestavan1. (idem: 1, 26). Essa evolu-
lo progressivo desenvolvimento das suas institui- relevante, só haveria a ganhar com a abertura de «chefes indígenas», aos quais deveria deixar-se o seu ção teria por força de fazer-se lentamente, levando
ções políticas, sem correrem os riscos de impru- mercados, que fomentaria a produção das colónias, poder tradicional, em tudo o que não fosse «de en- em conta o «estado rudimentar» das «funções>>da
dentes experiências e violentas transformações, mas com o correlativo aumento das suas exportações contro aos princípios essenciais da civilizaçâo», «vida intelectual» do negro, ainda «atrofiadas» na fa-
sem se distanciarem muito das nações que cami- (Corvo, 1884: 453), e com o recurso aos capitais es- concedendo-lhes por outro lado o governo uma se em que se encontrava; mas não era llllpossível
nham constante e seguramente para a perfeição» trangeiros, que tornariam possível mn conjunto de investidura e uma «pensão módica». Nas institui- nem sequer «extremamente difícil» - tudo depen-
(idem: n3). Como substrato últin1.o da existência da obras inadiáveis - os caminhos e estradas, a nave- ções africanas, assim preservaçias, estaria mesmo a dendo do caminho que doravante seguisse a «pro-
nacionalidade, <<oamor à pátria e às suas gloriosas gação dos rios e as «vias férreas económicas» que, base da vida democrática em Africa: o soba, com os paganda civilizadora», até então prejudicada pelo
tradições» por parte do povo português - patrio- segundo cria Andrade Corvo, levariam aos sertões seus macotas,formaria o ~orpo municipal no sertão; «orgulho» com que o branco procurava fazer sentir
tismo que Andrade Corvo tinha o cuidado de dis- «a educação, o trabalho, a liberdade na sua acepção por sua vez, o «exercício das liberdades municipais» a sua <<superioridadede raça», pela «cobiça dos trafi-
tinguir do «fanatismo», desse «ódio irreflectido, racional», numa palavra, a <(civilização» (idem: r, ensinaria os povos a <(exercer os seus direitos políti- cantes de escravos» e pela «ambição» da conquista
sanguinário e selvagem, que torna inimigos os ho- 2n-213). cos, a governar-se, a compreender a sua responsa- (idem: r, 48, 56, 63-64). Pelo contrário, no futuro
mens, quando uma fronteira, mais ou menos im- Fom1ulada em tennos genéricos, a abertura do bilidade, a contribuir para o governo e o progresso deveriam ensinar-se aos «povos selvagens» as formas
portante [... ] os separa em nacionalidades distintas» império ao exterior tinha no entartto um destinatá- da província, e a buscar no parlamento da nação modernas de «dorrúnio do homem sobre as forças
(idem: 82-83). Para além de tudo isto, Portugal pre- rio privilegiado - a Grã-Bretanha. Com efeito, uma representação que satisfaça as suas aspirações e da natureza pela ciência>) e o modo como a indús-
cisaria ainda de «boas alianças» - com a Grã- ultrapassados os conflitos em torno da questão do cuide dos seus interesses». Deste modo, <iOensino tria as aproveitava, radicando-lhes ainda no espírito
-Bretanha, em primeiro lugar, atendendo <iàStradi- tráfico de escravos e afastados os obstáculos ao livre da civilização» caminharia a par dos «hábitos da li- a convicção de que a «verdadeira superioridade da
ções da nossa política» e aos «importantes e valiosos exercício do comércio nas colónias portuguesas, berdade», tomando como ponto de partida <<oespí- civilização cristã» sobre qualquer outra era a «mo-
interesses» que uniam os dois países; mas ta111.bém designadamente pela promulgação de pautas menos rito e hábitos essencialmente democráticos» dos ral», base de uma <dargaorganização social, fundada
com os Estados Unidos, ao qual, dada a sua posição proteccionistas, estariam reunidas as condições para negros, que os capacitavam para <<entrar na vida na igualdade de todos os homens, na paridade de
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CONFIGURAÇÕES POLÍTICAS NAÇÃO E IMPÉRIO
todas as raças, e no progresso em conmm de toda a propic10u o levanta1nento de mais de 800 contos então em vigor. Assinado a 26 de Dezembro de dois meses depois, uma «correspondência» do jor-
humanidade» (idem: 1, 48). em finais de 1878 e de 300 contos em 1879. Instala- 1878, o primeiro desses acordos dizia respeito ao nalista angolano João de Fontes Pereira referia que
Fomento económico, nomeadamente pelo de- das em Angola e Moçambique desde meados de território de Goa, prevendo a construção de um a abolição da escravatura <menhum efeito morah>
senvolvimento das vias de comunicação; liberaliza- 1877, e pouco depois também em Cabo Verde e caminho-de-ft;,rro que ligaria o porto de Morrnu- produzira entre os negros, já que a sua condição,
ção do comércio externo das colónias; cooperação São Tomé, tais <,expedições,>constituíam um facto gão à rede da India britânica. De maior relevo, um «quer como escravos, quer como libertos)>, em na-
internacional, em particular com a Grã-Bretanha; novo na vida do império, tanto pela mobilização segundo tratado tinha igualmente em vista a cons- da diferia «para os resultados desejados pelos escra-
extinção de todas as formas de trabalho forçado; de pessoal metropolitano que implicavam - enge- trução de uma via-férrea, esta entre Lourenço vistas,> (recorte in AHU, «Sá da Bandeira, Docu-
integração pacífica das populações africanas - tais nheiros, condutores de obras públicas e artífices-, Marques e o Transval (recentemente anexado pela mentos [... ]», artigo de 28-4-1869); na mesma data,
eram os objectivos centrais do modelo moderniza- venc~ndo a tradicional resistência a ir fazer serviço Grã-Bretanha), em troca de facilidades de comér- uma carta proveniente de Luanda corroborava essa
dor que Andrade Corvo teorizou e tentou aplicar. em Africa, como pelo investimento relativamente cio e de trânsito concedidas em Moçambique às opinião, assinalando que a abolição não provocara
Mas todos eles encontraram obstáculos que os in- importante que lhes estava ligado, muito superior mercadorias britânicas e de uma maior liberdade de <(abalo algum)> em Angola, ninguéin se queixando
viabilizaram. aos magros «subsídios» até então votados pelas Cor- acção conferida à marinha inglesa para repressão do de quaisquer prejuízos que dela houvessem resulta-
À preocupação de desenvolvimento da econo- tes. Mas o impulso esgotou-se rapidamente: caído tráfico de escravos nas águas territoriais da colónia. do (carta do secretário-geral do governo de Angola
mia colonial corresponderam as chamadas «expedi- em Junho de 1879 o último governo de que Corvo Segundo Andrade Corvo, o último passo do siste- a Sá da Bandeira, de 28-4-1869, idem). Mais tarde,
ções de obras públicas», destinadas a «organizar em fez parte, no ano seguinte levantaram-se ainda mais ma de relações assim delineado estaria num terceiro um dos grandes'proprietários de São Tomé, Jacinto
largas bases» o respect:ivo serviço e a «dispor os 400 contos por empréstimo - mas destinados ape- acordo, pelo qual se definiria a fronteira norte de Carneiro de Sousa e Almeida, explicará que «todos
meios de abrir pontualmente vias de comunicação, nas a concluir as obras encetadas, pondo fim ao Angola, garantindo a Portugal a margem esquerda quantos se encontravam naquelas paragens» quando
para facilitar o comércio interior das províncias ul- projecto (Corvo, 1883: 1, 28-35). do Zaire. Mas o projecto abortou: o próprio trata- o decreto de 25 de Fevereiro de 1869 fora promul-
trarnarinaSi>. O seu financiamento foi assegurado No donúnio das relações externas, há também do de Lourenço Marques, concluído a 30 de Maio gado o receberam «com a indiferença a que tinha
por lei de 12 de Abril de 1876, que autorizou o go- uma tentativa de alterar a situação existente, pela de 1878, nunca chegoy a obter a ratificação das direito» dada a «inocência das suas disposições)>,
verno a contrair para esse fim um primeiro em- negociação de uma série de acordos com a Grã- Cortes portuguesas. A política externa definida uma vez que as condições de escravo e de liberto
préstimo de 1000 contos, devendo propor «sucessi- -Bretanha, precedidos - e até certo ponto prepa- por Corvo - baseada na cooperação e na solida- se equivaliam, estando ambos obrigados a serviços
vamente às Cortes os meios necessários para a rados ~ pelas pautas promulgadas em 1877 para riedade das nações europeias na tarefa de «civilizaD> que podiam ser vendidos com.o mercadoria. Por is-
continuação e conservação das obras)> - o que Moçambique e Guiné, mais liberais do que as até o continente negro - opunham~-se agora as rivali- so, ao «crismar)>de libertos os escravos, o governo
dades nascidas da partilha de Africa, já iniciada, de Sá da Bandeira não fizera mais do que <<riscar
Expedição de obras públicas em Angola 1 in O Ocidente, 15-3-1879 bem como as formas mais radicais de nacionalismo dos nossos dicionários uma palavra)> Uornal do Co-
imperialista que emergiam em Portugal (temas a mércio de 16-1-1876). A abolição - com a conco-
que voltaremos no ponto seguinte). mitante transformação dos escravos em «libertos»
Finalmente, só na questão da mão-de-obra ne- - fora aliás já aceite e mesmo reclamada em anos
gra Andrade Corvo parece atingir plenamente os anteriores por algumas vozes do próprio sector es-
seus objectivos: por iniciativa de Sá da Bandeira, cravista, nomeadamente de São Tomé e Príncipe,
apoiada pelo governo, as Cortes aprovaram a 29 de que nela viam uma forma de facilitar a entrada de
Abril de 1875 uma lei que extinguia o trabalho ser- mão-de-obra negra no arquipélago, contornando as
vil doze meses após a data da súa publicação no ul- normas do tratado de 1842 - desde que se conti-
tramar. Estaria assim dado o «último golpe» no sis- nuasse a garantir aos proprietários os servicos dos
tema escravista, abrindo um.a «nova ordem de «libertos,, por um período longo, quando nã~ inde-
coisaSi>em que a civilização poderia enfim prospe- finid;unente (if.o artigo de A. M. em A Civilização
rar (idem: 1, n6). da Africa Portuguesade 9-5-1867).
Mas também neste caso as resistências foram Nesta perspectiva, o único ponto perturbador
mais fortes, :frustrando as expectativas do ministro. do decreto de 25 de Fevereiro de 1869 só poderia
Relembremos que, nos termos do decreto de 29 de estar na disposição que fazia caducar o direito aos
Abril de 1858, o «estado de es'cravidão» deveria fin- serviços dos ex-escravos a 29 de Abril de 1878. Mas
dar vinte anos mais tarde em todo o ultramar por- a inquietação dos escravistas só veio realmente a
tuguês, mediante indemnização aos donos dos es- despertar, quando Sá da Bandeira, de novo chama-
cravos registados nessa altura existentes. Esse prazo do a 29 de Agosto de 1870 à chefia de um efémero
foi no entanto encurtado por iniciativa de Sá da governo, aproveitou a oportunidade para esclarecer
Bandeira, que, aproveitando uma sua breve passa- que em 1878 cessariam, não apenas a obrigação de
gem pelo poder, fez decretar a 25 de Fevereiro de servir dos escravos emancipados em 1869, mas os
1869 a abolição imediata da escravatura, passando serviços de todos os <dibertos)>,pondo-se termo ao
os escravos à condição de «libertos», com obrigação trabalho forçado no ultramar português (portaria
de servirem os seus antigos proprietários até 29 de circular de 25 de Outubro de 1870). Face ao perigo
Abril de 1878 - dia em que ficariam inteiramente de verem desaparecer a curto prazo todo e qual-
livres. Na altura, a medida mereceu a crítica de quer fundamento legal para as suas práticas, os sec-
António José de Seixas, que, não temendo contra- tores escravistas passaram à ofensiva, iniciando uma
dizer-se, a acusava em simultâneo de nada significar campanha que visava garantir a perm.anência para
~porque escravos e libertos já antes na prática se além do ano de 1878 das coerções sobre a mão-de-
identificavam) e de constituir um esbulho dos di- -obra negra. Institucionahnente, o seu principal
reitos dos respectivos donos Uornal do Comérciode ponto de apoio estava na Associação Comercial de
12-3-1869; Revolução de Setembro de 13-3-1869). Mas Lisboa, no seio da qual se constituiu uma comissão
nas colónias o decreto poucas repercussões teve: encarregada de estudar a questão do trabalho em
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CONFIGURAÇÕES POLÍTICAS
NAÇÃO E IMPÉIUO
semelhante à que veio a prevalecer na «represent'ª'- Isoladas, estas reflexões pouco peso tinham, fà- fossem «declarados completamente emancipados
J8GG' ção» finalmente aprovada. Mas outros pareceres - ce aos pareceres muitas vezes publicitados de «espe-
,A CIVILiSAClO
· o assinado por Pedreira e por Albino de Morais e
sobretudo o de autoria de Seixas - iam bem mais
cialistas>>como António José de Seixas - esse
«mestre em negócios de administração colonial, e
todos os libertos» (Sá da Bandeira, 1873: 216-217).
Dessa iniciativa nasceu o projecto aprovado na Câ-
mara dos Pares a 30 de Março de 1874, cujo texto,
DA,
AFRICA.
POll'l'UGU\Sl longe, defendendo que o decreto de 14 de Dezem- devotado explorador dos assuntos que podem inte- da responsabilidade das Comissões de Marinha e do
1.-~~ ~;, t;:\,:~::;::~;:s::Ê::t~,~~
< io.'-"•~.. bro de 1854 se mantinha em vigor, dando cobertura ressar o s'eu aperfeiçoamento», segundo o Diário de Ultramar, se afastava em vários pontos dos propósi-
legal à manutenção da condição de «liberto» para Notícias de 12-7-1872 (arrigo de fundo). Em termos tos iniciais de Sá da Bandeira, que eram os de pro-
----·~,M-~,;._...;._,,::;-,S_E::Ei~~;=;t~?~~~--,..
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além de 1878 e ao «resgate» de africanos nos sertões gerais, a imprensa da metrópole, favorável neste clamar a imediata «emancipação» dos «libertos», se.:..
a leste de Angola. Seixas reclamava mesmo que se início da década de 1870 à abolição da escravatura e guida de um rápido período de transição (com
estabelecessem_ em_regulamento «o modo e condi- do trabalho servil (ao contrário do que acontecera obrigação de contratar por estes últimos), que em
ções» da aquisição de negros <,entre os p9vos indí- em anos anteriores), aceitava facilmente a argu- nenhum caso poderia ir além de 29 de Abril de
genas e independentes no interior de Africa» - mentação dos que clamavam por regulamentos 1878 ~ data a partir da qual o trabalho nas colónias
o que significari_aa legalização do tráfico de escra- coercivos e por leis de repressão da «vadiagem». deveria impreterivelmente entrar no regime geral
vos então largamente praticado nos territórios an- Neste contexto, coube ainda a Sá da Bandeira vigente na metrópole, sem necessidade de qualquer
golano e moçambicano. o principal papel no ataque às teses escravistas, atra- regulamento específico, que, nas suas palavras, <<ser-
Não era outro o tom da esmagadora maioria vés de um ou outro artigo e sobretudo do livro viria apenas de nele se fundamentarem pretextos,
dos artigos e «correspondências» provenientes de O TrabalhoRural Africano e a Administração Colonial para que os actos de opressão, exercida até hoje pa-
África, onde a salvaguarda da compra de negros nas (1873), expressamente votado à refutação do opús- ra com os [... ] indígenas, pudessem continuar mais
terras «não avassaladas» co~stituía igualmente uma culo da Associação Comercial de Lisboa pouco ou menos abertamente» (Sá da Bandeira, 1874: 15).
das preocupações centrais. E assim que, por exem- antes publicado. Ao concluí-lo, o velho liberal Nos termos do projecto, no entanto, a lei só teria
plo, no projecto de regulamento oferecido pelo anunciava a sua intenção de apresentar na sessão efeito um ano após a sua publicação nas colónias,
grande proprietário angolano Alberto da Fonseca legislativa seguinte uma proposta de lei para que sendo os ex-libertos depois obrigados a contrata-
Abreu e Costa como contributo para o relatório
que a Associação Comercial de Luanda decidira A escravaturana Afr;ca Oriental, in Archivo Pitoresco, 1858-1859, vol. II, p. 369 (BN)
apresentar ao governo sobre a questão do trabalho,
se toma como base a obrigação do «preto importa-
dw> servir por dez anos a quem o <sresgatasse)>,a tí-
tulo de <,aprendizagem», sendo no entanto lícita a
venda dos seus serviços. Mas havia mais: uma vez
cumprido esse prazo, os pretos assim <<libertados»
juntar-se-iam aos que já anteriormente eram livres
- restando então «legislar para esta grande classe
um regulamento policial, ou como lhe queiram
A Civilização da África Portuguesa, jornal publicado em chamar, que, embaraçando-lhes a vadiagem, os tor-
Luanda, 1866 (AHS-ICS) ne úteis a si e à sociedade de que fàzem parte»
(Costa, 1873: 13-23, 25).
África, de que fàziam parte, entre outros, o inevitá- Por esta via, muitas vezes trilhada - a da re-
vel António José de Seixas, Francisco Chamiço pressão da «vadiagem)>- se transformava a questão
(fundador e administrador do Banco Nacional Ul- da abolição do trabalho forçado numa campanha
tramarino) e J. da Costa Pedreira (proprietário em tendente a discriminar a população negra no seu
São Tomé). Aprovado em assembleia geral da Asso- conjunto, a pretexto da sua alegada «indolência» e
ciação a 27 de Maio de 1872, o projecto de «repre- da consequente necessidade de a obrigar a «civili-
sentação» aos püderes públicos que elaborou veio zar-se» e a contribuir para o progresso geral.
pouco depois a lume, acompanhado de pareceres Contra o fogo de barragem escravista reagiam
autónomos de vários dos seus membros, na brochura algumas vozes muito minoritárias - como era o
Algumas Palavrasso9rea Questão do Trabalhonas coló- caso do jornalista angolano João de Fontes Pereira.
niasportuguesasde Afiica e especialmente
nas ilhas de São Vindas de Moçambique, merecem uma referência
Tomé e Princípe- que será a principal arma da guer- as opiniões de Diocleciano das Neves, célebre ca-
ra ideológica contra os propósitos abolicionistas. çador de elefàntes que, forte da sua experiência de
A leitura destes textos revela que a comissão se sertanejo, desmentia a ideia de que o negro se re-
dividiu em duas correntes. Uma delas tinha por cusava. ao trabalho, fazendo ver que a maior parte
inelutável a extinção do estatuto de <<liberto" em das exportações dos territórios angolano e moçam-
1878 e aceitava mesmo, em último caso, a antecipa- bicano era constituída por produtos cultivados ou
ção desta data, de modo a facilitar a importação de apanhados pelos <,pretos livres» do interior, que os
<,braços»sem a interferência da Grã-Bretanha, des- vendiam aos brancos. Admitia no entanto que esses
de que previamente se promulgassem regulamentos mesmos «pretos livres» se negavam frequentemente
que garantissem a obrigação de trabalho do negro e a servir - mas apenas aos portugueses, que os
leis penais de repressão da <<vadiage1n»,assim ata- obrigavam a trabalhar gratuitamente, para além de
lhando a natural tendência da raça preta para a in- os subn1eterem a outras prepotências (Jornal do Co-
dolência e o vício: tal era a opinião de Chamiço, mérciode 6-n-1872).
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CONFIGURAÇÕES POLÍTICAS
rem os seus serviços por dois biénios sucessivos. de 1875 como pelo que o substituiu a 21 de No-
vembro de r878. ·
l vêem na partilha a simples extensão a África do jo-
go de tensões e rivalidades entre as grandes potên-
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CONFIGURAÇÕES POLÍTICAS NAÇÃO E IMPÉRIO
também esta perspectiva parece unilateral e insufi- Luciano Cordeiro, que co_m Rodrigo Pequito, melhor se coadunava com a linha política de An-
ciente, sobretudo porque ignora os aspectos especifi- Cândido de Figueiredo, João Cândido de Morais e drade Corvo, que, como vimos, recusava as ten-
camente africanos que contribuem para desencadear Emiliano de J3etencourt integrou a respectiva co- tações expansionistas mais extremas, preferindo-
ou acelerar a corrida aos territórios do continente. missão instaladora. Com estatutos aprovados a 3r·de -lhes a consolidação das posições já adquiridas e a
Será preferível resistir à sempre presente tenta- Dezembro de 1875, a nova associação deu início às ocupação, para além delas, apenas dos territórios
ção de encontrar a causa primária, o princípio que suas actividades em começos de Abril do ano se- que os limitados recursos disponíveis permitissem
daria unidade e sentido a mna história necessaria- guinte, contando desde logo com o apoio dá im- desenvolver con1 proveito.
mente múltipla - e ver na partilha o resultado da prensa de todos os quadrantes, que dava ampla no- Muito vago no quadro geográfico que denur-
convergência de um vasto leque de factores, que tícia das suas reuniões. cava, o já citado decreto de n de Março de 1877
vão desde os que facilitaram a penetração externa Na sua fase inicial, qualquer das duas institui- não decidiu a qµç'.stão, deixando em aberto as vá-
no interior do continente (por um lado, os pro- ções fixou como objectivo prioritárj.o a organiza- rias opções. Mas as instruções depois dadas aos ex-
gressos da medicina, das comunicações e da tec- ção de expedições científicas em Africa. Na sua ploradores (Serpa Pinto, Hem1enegildo Capelo e
nologia militar, todos eles ligados ao desenvolvi- prin1eira reunião, a 1 de Março de 1876, a Comis- Roberto lvehs) decidiram claramente o assunto em
n1ento do capitalismo no século XIX; por outro, a são Permanente foi convidada por Andrade Coivo favor da hipótese mais restrita, limitando a expedi-
desagregação das estruturas políticas de certas zo- a fazer o plano a seguir pelo geógrafo alen1ão ção ao interior de Angola e dando-lhe como «prin-
nas de Africa) aos que contribuíram para lhe dar Barth, que se previa contratar para proceder à ~x- cipal objectivo o estudo do rio Cuango nas suas
iinpulso, levando os vários Estados a intervir (a ploração dos territórios africanos (fornal do Porto de relações cmn o Zaire e ·com os territórios portu-
defesa de interesses estratégicos já existentes ou, 3-3-1876); mais tarde, a 6 de Junho, foi de novo gueses da costa ocidental», com extensão à região
1nais frequentemente, o receio de permitir às po- lembrada a necessidade de participação de Portugal que compreendia as nascentes do Zaire e do Zam-
tências rivais a tomada de posições que no futuro no movimento geral de investigação científica do beze (Comissão [. ..J, 1983: 29).
se poderiam vir a revelar decisivas; e ãinda as pres- continente negro (Comissão(. .. /, 1983: 27). Quanto Como é bem sabido, estas disposições só par-
sões dos fqncionários e dos comerciantes já insta- à Sociedade de Geografia, o assunto ocupa o me- cialmente fora1n respeitadas. Viajando juntos, a
lados em Africa). lhor das suas sessões, nesse mesmo ano de 1876, partir de Benguela, até Belmonte, no Bié, residên-
O cliina que na Europa rodeia os assuntos co- sendo objecto de uma <<representação»ao governo, cia do sertanejo Silva Porto, os três exploradores
loniais no último quartel de Oitocentos não faz datada de 16 de Outubro. Finalmente, a n de Mar- separarain-se depois, partindo Serpa Pinto para les-
nascer o interesse do Estado português pelo ultra- ço de 187.7,um decreto determinou que se realizas- te, rumo ao Zambeze, ná teÍltativa de, seguindo o
mar, que lhe era bem anterior, como vimos; mas se urna expedição de carácter nacional, destinada a seu curso, chegar a Zumbo, já na área de influência
condiciona decerto a sua acção, dando-lhe um no- «explorar, no interesse da ciência e da civilização,
vo impulso e obrigando-a a un1 novo ritmo. U1n Pastor, retrato de Luciano Cordeiro, xilogravura (AHS-ICS) os territórios compreendidos entre as províncias de- Hermenep,ildo C,apelo e Roberto Ivens, ín Capello e !vens,
dos primeiros reflexos em Portugal das mutações Angola e Moçambique e [a] estudar as relações en- 1885 (AHS-ICS)
externas está na atenção que se passa a dar a Mo- ameaça latente nele pressentida - que, na se{luên- tre as bacias hidrográficas do Zaire e do Zambeze».
çambique, pelo duplo efeito da abertura do canal cia do Congresso Internacional de Geografia de Unânimes quanto à urgência de uma iniciativa
do Suez, em 1869, e da descoberta d9s campos de Paris, no Verão de 1875, onde Portugal se fez re- deste género, as opiniões dividiam-se, no entanto,
diamantes (1867) e de ouro (1869) na Africa do Sul: presentar, se funda1n quase en1 simultâneo a Socie- em relação aos resultados precisos que ela deveria: CAPELLO E !VENS
visto geralmente até então como uma simples fonte dade de Geografia de Lisboa e a Comissão Central procurar alcançar - uma questão que se prendia
de encargos e de dissabores militares, o território Permanente de Geografia, com objectivos muito com os objectivos mais gerais da política colonJa·l
moçambicano tornava-se simultaneamente nuis próximos; os de fazer «o estudo, a discussão, o en- portuguesa, neste período. Na sua dupla qualidade
próximo e mais atractivo, tanto pelas riquezas que sino, as investigações e as explorações científicas de de membro da Comissão Permanente e de secretá-
se lhe supunham cmno pela vizinhança das zonas geografia nos seus diversos ramos, princípios, rela- rio-geral da Sociedade de Geografia,,Luciano Cor-
de n1etais preciosos já en1 exploração. ções, descobertas, progressos e aplicações» com es- deiro batia-se pela exploração da Afuca Central,
Esta relação menos longínqua com a costa pecial incidência nos «factos e documentos relativos estudando-se as origens do Zaire e do Zambeze,
oriental tem a sua expressão mais visível para o à Nação portuguesa» (como se dizia nos estatutos bem como as suas relações com os grandes lagos do
grande público da metrópole na passagem sucessiva da primeira); e de «coligir, ordenar e aproveitar, interior, e tentando-se descobrir os 1nelhores cami-
· por Lisboa, em 1875, do sultão de Zanzibar, no mês em beneficio da ciência e da nação todos os docu- nhos para efectuar a ligação entre Angola e Mo-
de Junho, do presidente do Transval, em Deze1n- n1entos que possam esclarecer a geografia, a história çambique (Santos, 1988: 272). Subjacente a esta
bro, e ainda, noutra condição, do xeque de Qui- etnológica, a arqueologia, a antropolobria e as ciên- ideia estava obviamente uma concepção fortemen-
tangonha (Moçambique), preso durante várias se- cias naturais em relação ao território português e te expansionista do império, que deveria vir a for-
manas num navio surto no Tejo, onde era alvo da especialmente às províncias ultramarinas» (nos ter- mar utÜ bloco compacto, .do litoral angolano à
curiosidade geral, antes de o re1neteren1 degredado mos do decreto de 17 de Fevereiro de 1876, que contracosta; pretender-se-ia igualmente propiciar
para Cabo Verde. criou a segunda, con10 organisn10 anexo ao Minis- a realização de um feito que tocasse as imagina-
Mas outros ecos surgem de Africa, por via eu- tério dos Negócios da Marinha e Ultra1nar). ções e afirmasse o país, ombreando con1 as gran-
ropeia, influenciando a opinião pública portuguesa A Comissão Central Pennanente era portanto des viagens de Stanley e de Cameron. Outros
- non1eadarnente, as notícias das viagens de ex- uma instituição oficial, da iniciativa do ministro preconizavam a concentração de esforços numa
ploração que então se multiplicam no continente Andrade Corvo, provavelmente a instâncias de José área reduzida, limítrofe dos territórios já sob a so-
negro, seguidas com atenção pela imprensa de Lis- Júlio Rodrigues, delegado ao Congresso de Geo- berania efectiva de Portugal, a explorar por êxpe-
boa e Porto, em particular as de Livingstone, de grafia de Paris, onde anunciou o seu própósito dições de âmbito mais modesto, tendo em vista a
Stanley e de Cameron, que tocavam de perto as de fundar em Portugal uma <<repartiçãoespecial de obtenção de resultados precisos e concretos, de
zonas de influência mais ,.imediata das possessões de geografia e história» (Diário de Notícias, 18..:u-1975: ordem. geográfica e económica. Defendida por
Angola e Moçambique. E em grande parte em res- 1). Por seu turno, a Sociedade de Geografia, de ca- José Júlio Rodrigues na Comissão Perma~ente
posta a esse impulso externo - e como reacção à rácter particulax, deve-se sobretudo à vontade de (Comissão [. .. }, 1983: 28-29), esta era a tese que
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CONFIGURAÇÕES POLÍTICAS NAÇÃO E IMPÉRIO
metrópole resistiam e que os governos não ousa- Progressista deita igualmente mão ao mito da he-
vam tentar impor, vendo-se por isso constrangidos rança sagrada: dada a possibilidade de transmissão a
a organizar expedições em regime de voluntariado, capitais estrangeiros dos direitos outorgados, a con-
mediante a concessão de vantagens especiais. cessão envolveria perigo para a «integridade do nosso
A criação, pela carta de lei .de 3 de Fevereiro de território», não sendo mais, no fundo, do que «uma
1876, do- regimento de infantaria do ultramar em alienação disfuçada, e gratuita», da Zambézia e por
pouco alterou esta situação, uma vez que os seus isso «um monstruoso escândalo, verdadeiro crime
efectivos eram ainda preenchidos por voluntários. de alta traição, praticado pelo governo>>.Finalmen-
A crescente participação de militares na vida das te, apontava-se o verdadeiro inimigo, a Grã-Breta-
colónias faz-se nesta fase como opção individual nha, que vinha fortalecendo as suas posições na
(em comissão nas expedições de obras públicas, por costa oriental, espreitando agora a «rica presa>>,
exemplo). Por inteiro alheio, enquanto instituição, pronta a «explorar em proveito próprio a nossa fra-
ao império colonial, o exército do reino permane- queza e os nossos desacertos>>(cf. Diário Popular de
cia votado à defesa da metrópole (que vivia então 1, 13 e 24-1-1879; O PrimeirodeJaneiro de 3, 21 e 23-
uma longa paz). Nesse mesmo espírito, continuará -1-1879; Diário de Notícias de 7-1-1879, notícia do
a privilegiar a promoção po_r antiguidade, não ad- meeting de Lisboa contra a concessão).
mitindo que os oficiais em comissão no ultramar se Poucos meses depois, o mesmo tipo de retórica
prevalecessem, ao regressar a Portugal, das promo- vai ser utilizado contra o tratado de Lourenço
ções ali conseguidas: daí a forte contestação à pro- Marques. Para Andiade Corvo, seu promotor pelo
posta do governo para concessão de um -posto de lado português, o acordo teria como objectivo
acesso a Serpa Pinto, no regresso da sua expedição, principal a construção de um caminho-de-ferro
em 1880 (cf. p. ex. Jornal do Comérciode 17-3-1880; que ligaria aquele porto ao Transval (anexado em
Diário Popular de 21-4-1880). 1877 pela Grã-Bretanha às suas colónias do Cabo e
Limitada pelas forças da inércia, a politica colo- do Natal), assegurando as «relações comerciais com
nial portuguesa será igualmente marcada por algo o novo território britânico, ou antes com todo o
de novo, que do mesmo passo lhe dá impulso e a império britânico na África►>, essenciais para o de-
espartilha - a emergência, no último quartel de senvolvimento do Sul de Moçambique. Em termos
Oitocentos, de formas radicais de nacionalismo im- mais gerais, o tratado seria ainda <iuma parte» do
perial que ganham progressivamente uma base po- «sistema político» de «estreita aliança com a In-
pular. glaterra nas colónias, e de cooperação constante>>
Os seus primeiros efeitos fazem-se sentir nos - sistema cujo primeiro elemento estaria na assi-
anos de 1879-1881,em reacção à concessão de vastas natura, a 26 de Dezembro de 1878, de um outro
áreas da Zambézia a uma companhia que o capitão acordo, prevendo a construção de um outro ca-
A Conferênciado major Serpa Pinto no Salão da Trindade, in O Ocidente, 1-7-1879 (BN) Paiva de Andrada se propunha formai e depois ao minho-de-ferro, esse ligando ~ porto de Mormu-
tratado anglo-português sobre Lourenço Marques gão, no Estado Português da India, à rede britâ-
no - de que são exemplos, ainda nos anos setenta, também para vencer um outro dos obstáculos tra- - dois pontos centrais da linha de abertura ao ex- nica do subcontinente (Corvo, 1883: 1, 40-41;
a Companhia de Ofir, para cultivo da papoila em dicionais ao desenvolvimento de uma acção colo- terior e de cooperação internacional do ministro 1984: II, 287).
Moçambique, a pouco depois promovida por Paiva nial eficaz - a re!utância da população portuguesa Andiade Corvo. Do lado inglês, a ideia de uma convenção com
de Andrada para a Zambézia e a que se propunha em emigrar para Africa. Juntamente com a má or- Outorgada a 26 de Dezembro de 1878 por um Portugal sobre Lourenço Marques surge quase si-
construir o caminho-de-ferro de Luanda a Amba- ganização e a falta de meios, essa será uma das cau- governo regenerador, a concessão representava o multaneamente, por iniciativa do Colonial OfE.ce,
ca, bem como a proposta de criação de uma em- sas do fracasso das várias tentativas de instalação de retomar de uma velha ideia que de tempos a tem- que e:rn Agosto de 1878 sugeriu uma sondagem em
presa nacional de navegação que se encarregaria de núcleos de povoamento branco no ultramar, e em pos ressurgia no quadro da politica colonial portu- Lisboa nesse sentido, tocando três pontos: a regula-
fazer a ligação entre a metrópole e os territórios especial em Angola, nos anos de 1870 e 1880 (Me- guesa: a de entregar Moçambique ou parte dele a mentação da importação de armas (para evitar a sua
angolano e moçambicano por carreiras regulares de deiros, 1976). . uma empresa privada com suficientes recursos para venda aos Zulus), um acordo sobre tarifas alfande-
vapores. Por um breve lapso de tempo, durante o Do mesmo modo, não se alterou a resistência desenvolver uma possessão cujos laços com a me- gárias e, quando possível, a construção de um ca-
período de euforia financeira vivido em meados do exército do reino em alargar o seu campo de trópole eram quase nulos. Neste caso concreto, minho-de-ferro (Anstey, 1962: 88-89). O alvitre ia
dessa mesma década (provavelmente provocada pe- acção ao ultramar, já bem clara nas décadas ante- não se cediam poderes majestáticos; mas a compa- ao encontro das concepções pessoais do represen-
lo afluxo de fundos brasileiros antes retidos pela riores. Encetado, como vimos, em finais dos anos nhia a constituir ficaria senhora de todos os recur- tante da Grã-Bretanha em Lisboa, Robert Morier,
guerra com o Paraguai e consequente baixa no cinquenta, por ocasião das derrotas militares na re- sos da regi-ão em causa, nomeadamente das minas longamente expostas nos seus ofícios para Londres,
câmbio da moeda brasileira), parecia superada a gião do Congo, o debate sobre o papel das forças de carvão e de ouro já descobertas ou a descobrir. em particular no de 15 de Maio de 1877= na pers-
própria escassez de capitais que invariavelmente armadas no contexto imperial veio de novo ao de Como era usual em circunstâncias semelhantes, a pectiva aí expressa, o governo britânico deveria
afectava os projectos para o ultramar: em 1875, as cima sempre que em qualquer das colónias se viveu oposição atacou o acto do governo, recorrendo aos apostar, não no desmembramento no ,império por-
acções emitidas tanto pelo Banco Nacional Ultra- uma crise semelhante - como aconteceu na Zam- mitos correntes em matéria colonial: de súbito, a tuguês (que levaria à instalação em A:frica de po-
marino como pela Companhia de Ofir têm uma bézia, em 1869, com a chamada rebelião do Bonga, Zambézia passava a ser apresentada corno uma pos- tências mais fortes e mais ambiciosas), mas na sua
procura extraordinária, que excede em muito a e nos Dembos (Angola), em 1872. Falava-se en- sessão riquíssima, um verdadeiro Eldorado, prenhe abertura à iniciativa e aos capitais estrangeiros, pela
oferta (cf Correspond§nciade Portugal de 5-5-1875; tão, inevitavelmente, na organização de um exér- de metais preciosos; e clamava-se contra a entrega abolição de todas as restrições mercantis e adminis-
Diário de Notícias de 17-ro-1875). Ma, a crise de 1876 cito único, abrangendo todo o império; ou, na desta «riqueza colossal» a Paiva de Andrada, que trativas tradicionais. Desse novo curso beneficiaria
pôs fim a essa situação inusitada, comprometendo hipótese mínima, no destacamento de corpos das dela beneficiaria apenas por gozar de acesso privile- toda a humanidade ~ e em primeiro lugar a pró-
o arranque de quase todas as iniciativas. forças do reino para o ultramar segundo uma es- giado ao chefe do ministério, Fontes Pereira de pria Grã-Bretanha, que manteria a sua hegemonia
O novo interesse pelo "império não chegava cala preestabelecida - soluções a que os oficiais da Melo. Subindo de tom, a imprensa do Partido sobre o continente africano. Como Roger Anstey
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CONFIGURAÇÕES POLÍTICAS NAÇÃO E IMPÉRIO
já assinalou (idem: 85), estamos perante urna (<expo- -Bretanha a nada de concreto se comprometia, fi:- Mas os ataques mais violentos ao tratado vi- '~---- ~ ''""""'-'"
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sição clássica de imperialismo infonnal>>. sando todas as concessões do lado português. nham das facções exteriores ao regime - os legiti-
Partindo de posições simétricas, Corvo e· Mo- E verdade que, para Andrade Corvo, a contraparti- mistas e os republicanos -, em ambos os casos, re-
rier chegaram rapidamente a acordo. Segundo as da estaria num futuro acordo britânico ·para a ocu- correndo à retórica nacionalista mais exacerbada.
bases do projecto estabelecido em Dezembro de pação do Baixo Congo, conforme promessa de Para A Nação, órgão dos primeiros, o acordo sobre
1878, a Grã-Bretanha aceitaria a construção do ca- Morier - mas não havia nada de menos certo. Lourenço Marques selaria «a entrega de Moçambi-
minho-dé-ferro de Lourenço Marques ao Transval, O tratado foi finalmente assinado a 30 de Maio que e o abandono de Angola» aos Ingleses, fundan-
a financiar pelos dois países, em troca de concessões de 1879; na mesma data, o governo regenerador do por esse modo «o grande império anglo-afuca-
de vária ordem: liberdade de trânsito, comércio e caía. Nos meses seguintes, a convenção será alvo no» que avançaria «para o sertão de Angola a fim
navegação, designadamente nos cursos de água que de ataques pontuais da imprensa do partido agora de senhorear toda a esplêndida região do Zaire».
permitiam a penetração no interior do continente; no poder - o progressista -, que a, associam na Tratar-se-ia por isso do «último capítulo da história
livre uso daquele porto para fins mercantis e milita- mesma condenação ao acordo sobre a India, vendo d_e Portugal», de um «acto de abdicação da inde-
res (incluindo o embarque e o dese1nbarque de tro- neles a entreg~ pura e simples das duas possessões à pendência», que se perderia sem as colónias. Toda
pas, bem como o seu trânsito em território portu- Inglaterra (cf.p. ex. O Primeiro de Janeiro de IO-I0- a questão era aproveitada para atingir um objectivo
guês); regulamentação da importação de armas e da -1879, editorial). Mas, muito pressionado por Mo- central: o de pôr em causa uma «dinastia, importa-
sua venda aos «indígenas>,; colaboração no combate rier, o novo primeiro-ministro, Ansehno Braam- da do Brasil» e essa «seita preponderante hoje,
ao tráfico de escravos, prevendo-se a intervenção da camp, acabou por submeter o tratado de Lourenço vinda do estrangeiro, desprezadora de todas as
Royal Navy em águas de Moçambique, mediante Marques à ratificação das Cortes, a 20 de Abril de tradições nacionais ►>, que proscrevera ((0 grande
autorização do respectivo governador. 1880 - apenas para se dar conta, algumas semanas instrumento da edificação pacífica no império áfu-
Numa primeira fase, as resistências ao acordo mais tarde, que dificilmente poderia conseguir uma co-português» - as ordens religiosas (A Nação de
vêm do lado inglês, recusando-se o governo de maioria na Câmara dos Deputados para o aprovar: 23 e 28-4-80 e 8-6-80).
Londres a c01nprometer-se no financiamento da à defecção dos «avilistasf (um pequeno grupo afec- Também os republicanos têm uma chave inter-
via-férrea em causa. O motivo alegado era a insta- to ao velho duque de Avila), somavam-se as resis- pretativa que aplicam à análise de toda a realidade
bilidade da região (estava-se em plena guerra com tências no seio do próprio Partido Progressista, de- nacional: para eles, a causa de todos os males estava
os Zulus), que inviabilizaria a empresa; mas terá signadamente do grupo de Mariano de Carva1ho, na (<instituição da monarquia>,, que trazia consigo a
pesado igualmente o receio de prejudicar os inte- com o Diário Popular como órgão de opinião, e de (<imposição de uma dinastia ou família privilegiada
resses dos territórios de Natal e do Cabo pelo des- alguns regeneradores influentes - caso de Tomás [... ] e a enfeudação da nossa independência nacio-
vio dos tráficos para Lourenço Marques. Para ultra- Ribeiro (que era ministro do Ultramar na altura nal aos que patrocinarem essa monarquia empres-
passar estas reservas, Morier deu nova redacção em que Corvo assinara o acordo e agora exprimia tando-lhe dinheiro ►> - ou seja, no caso, à Grã-
à cláusula sobre o caminho-de-ferro, que passou a as suas objecções no Jornal das Colónias), e da cha- -Bretanha, de que Portugal não seria senão uma
obrigar apenas à constituição de uma comissão mis- mada <<unha negra>,, agora representada por Val- «desgraçada feitoria». Isto explicaria o (<célebre tra-
ta para o seu estudo. Nestes termos, a Grã- bom, que dominava o Comérdo de Lisboa. tado ►>, assinado por Corvo, pelo qual «entregámos à R. Bordalo Pinheiro, O Tratado de Lourenço Marques,
Inglaterra o resto do nosso donúnio no Oriente>,, in O António Maria, 20-1-1881 (BN)
Lourenço Marques, in O Ocidente, 21-6-1881 (BN) bem como o (<assombroso tratado da cedência de
África» (A Vanguardade 20-6-1880, artigo de Teófi- campanha contra o tratado - esse «pacto leonino e
lo Braga). infamíssimo, cuja aprovação ser[ia] a nossa comple-
Enquanto os legitimistas não passavam por esta ta ruína>>,esse <<cri.mede lesa-nação>>que só a «mo-
altura de um grupo isolado, de muito reduzida ex- narquia constitucional» poderia perpetrar, envol-
pressão política, os republicanos estavam em plena ~endo «a perda de todos os nossos donúnios da
ascensão, como o êxito das comemorações do cen- Afuca» (A Vanguardade 6 e 13-3-1881).Para o Cen-
tenário de Camões, por eles em grande parte pro- tro Republicano Federal, o acordo significava a en-
movidas, veio provar. São eles por isso os princi- trega de <<maisuma parte do território português
pais beneficiários das contradições dos partidos do [...] à nossa eterna inimiga, a Inglaterra», sendo por
regi.me, que, quando no poder, davam o seu aval a isso uma verdadeira «catástrofe nacional>, - mais
actos que antes qualificavam de «iníquos [... ], abra- um dos «actos igualmente monstruosos>> historica-
çando o que repeliam corno indigno», nas palavras mente imputáveis à Casa de Bragança (como o
de Silva Graça (A Vanguarda de r-8-80). Tratado de Methuen, a fuga de D. João VI em
Tal era a sina do governo progressista, que 1807 e a secessão do Brasil promovida por D. Pe-
aceitava agora a concessão a Paiva de Andrada, dro), cujos representantes não passariam de «pro-
quando em 1879 a tinha por um «crime de alta trai- cônsules>, da Inglaterra, (icavando a nossa ruína para
ção>>;e que se sentiu obrigado a apresentar de novo engrandecimento dessa nova Cartago>, (protesto,
o tratado de Lourenço Marques para ratificação das muito provavelmente da pena de Teófilo Braga,
Cortes, em começos de 1881, depois de renegocia- saído a lume em suplemento de A Vanguarda de
dos com Londres o seu prazo de vigência (perpé- 9-3-1881). O ataque à dinastia, como antinacional:
tuo na versão anterior, o acordo passava a valer por tal era o móbil da propaganda republicana, t01nan-
doze anos) e o direito ao desembarque e trânsito do como pretexto o tratado de Lourenço Marques,
de tropas britânicas, a regular em documento à de cujo teor real já ninguém curava, nesta derra-
parte. deira fase do debate.
Nas vésperas do debate parlamentar, em Março Essa propaganda não se limitava ao protesto
de 1881, os republicanos lançaram uma intensa verbal: incitava igualmente à resistência contra os
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«traidores da pátria investidos do poder» e «protegi- Enterrada a convenção sobre Lourenço Mai;- territoriais moçambicanas. Quanto a Ajudá, a Grã-
dos pelo paço», através da realização de comícios ques, a questão colonial não saiu no entanto da ce- -Bretanha ficava apenas com o direito de preferên-
onde a vontade do povo se manifestasse (if. p. ex. na política, graças em grande parte à acção da So- cia, em caso de alienação. Estabelecia-se ainda que
A Vanguarda de 6-3-1881). Na sequência desse ape- ciedade de Geografia de Lisboa, que por esta altura em Moçambique a soberania portuguesa não iria
lo, efectuam-se meetings - como em Portugal se já delineara um ambicioso plano de expansão no além da confluência dos rios Chire e Ruo (ex-
dizia na época - a 6 de Março em Lisboa e continente negro, através de um conjunto de «esta- cluindo portanto a região do lago Niassa).
Coimbra, a 13 de novo em Lisboa e em Almada e a cões civilizadoras» destinadas a fixar a colonizacão Como vimos, a ocupação da região da foz do
27 no Porto. branca, a incitar os «indígenas» ao trabalho e a de- Congo era uma reivindicação antiga das praças
São naturalmente os da capital, promovidos pe- senvolve! a «nussa enorme de~ produtos do solo>> mercantis de Lisboa e de Luanda, que muitas vezes
la redacção d' O Sérnlo, que têm maior repercussão que na Afri.ca equatorial e na Africa austral se po- a tinham reclamado, nomeadamente pela pena de
política. Ao de 6, que reuniu no teatro da Rua do deriam cultivar, abrindo essa <{minaportentosa» ao António José de Seixas. Tratava-se, na sua perspec-
Olival, a Alcântara, várias centenas de pessoas (mais capital, ao comércio e à indústria nacionais. Tais t:iva, não do apelo à expansão pela expansão, mas
de mil, segundo A Vanguarda de 13, pelo menos eram os termos de um <sApelo ao Povo Português da defesa de um objectivo preciso: o domínio dos
mil e quinhentos, a acreditar em A Nação de 10), em N orne da Honra, do Direito, do Interesse e do pontos terminais das rotas de comércio de longa
extravasando para os terrenos lirrútrofes, seguiu-se Futuro da Pátria», que lançava uma subscrição pú- distância pelas quais se escoava parte da exportação
uma manifestação no dia seguinte, no Largo das blica em favor das referidas «estações)). Mas o prin- do interior da Africa Central, compreendendo ter-
Cortes, acompanhando a comissão nomeada no cipal objectivo do plano era sem dúvida de ordem ritórios que em princípio estariam na zona de in-
corrúcio para «representar» aos órgãos de soberania geoestratégica: tratava-se de ocupar uma série de fluência da capital angolana. Obviamente, neste ca-
contra o tratado. Dessa manifestação (que se pro- pontos - no Zaire, no Cassanje, no Bié e no so a ocupação só interessava, se acompanhada de
longou pelo dia todo, agregando de início, à uma Niassa, entre outros - que permitissem estabelecer medidas de protecção à navegação e ao comércio
da tarde, cerca de 2000 pessoas, a que outras depois e consoli5l~r o donúnio português numa vastíssima português no Congo ~ medidas solicitadas no de-
se foram juntando) resultaram vários confrontos área da Africa Central, abrangendo, para além do curso das negociações do tratado, em Março de
com a guarda municipal, que se estenderam à Bai- território entre Angola e Moçambique, boa parte 1883, por uma comissão de negociantes de Lisboa e
xa, só sossegando pela meia-noite (Diário de Notícias do Zaire Inferior e Central (sob o plano, cf. Gui- dirigentes da respectiva Associação Comercial
de 8-3-1881).Novos incidentes ocorrem a 8 e a 13, marães, 198+ 36-42). Embora no seu seio se cruzas- (ponto referido no Diário de Notícias de 29 de
na presença de forte aparato policial (idem, 9 e sem opiniões e correntes diversas, a Sociedade de Março de 1884, transcrevendo artigo do Comérdo
14-3-1881).Nos comícios de 6 e de 13 intervêm al- Geografia adoptava oficialmente uma posição ma- de Portuga0. Como também é claro, os termos do
guns dos principais dirigentes republicanos - co- ximalista sobre o império (que era também a do acordo por fim assinado não podiam de nenhum
mo Teófilo,· Arriaga, Elias Garcia e Magalhães Li- seu secretário, Luciano Cordeiro). modo satisfazer estes sectores, que de imediato de-
ma-, bem como uma figura de relevo do Partido A premência do <<Apelo»tinha a sua razão nas ram como perdido para Portugal todo o comércio
Socialista, o operário Agostinho da Silva. ameaças externas - na crescente penetração de R. Bordalo Pinheiro, A Questão do Congo, ín do Zaire, pela impossibilidade de sustentar a con-
A mobilização dos sectores populares por meio viajantes e missionários estrangeiros em regiões O António Maria, 21-12-1882 (BN) corrência estrangeira em igualdade de circunstân-
dos meetingsera comum na vida política portuguesa próximas das colónias portuguesas. Em começos da cias, temendo ainda que as concessões à Grã-
já desde os anos sessenta; a novidade estava na sua década de oitenta, a pressão fazia-se sentir sobretu- nem ultrapassariam os limites das terras ocupadas -Bretanha prejudicassem a actividade nacional nas
utilização em torno de uma questão diplomática, do na zona do Zaire (ou Congo), cujo curso fora pelas tribos costeiras; nestes novos territórios, o go- outras colónias portuguesas (parecer da comissão
relacionada com uma colónia longínqua - apro- já explorado em 1877 por Stanley, que aí voltara verno de _Lisboa garantiria a inteira liberdade de especial da Associação Comercial de Lisboa publi-
veitando e manipulando a vaga de exalt31-çãonacio- dois anos depois, agora ao serviço da Associação comércio e de navegação, não impondo quaisquer cado em A Nação de 23-4-1884).
nalista das viagens de exploração da Africa e do Internacional Africana do rei Leopoldo da Bélgica. direitos de trânsito e restringindo as taxas alfande- Mas os ataques ao tratado não vieram apenas da
centenário de Camões. O populismo imperial fazia Por seu turno, em 1880 o francês Savorgnan de gárias às estabelecidas na pauta promulgada em 1877 Associação Comercial nem se limitaram aos aspec-
a sua aparição, para não mais deixar a cena nas dé- Brazza, a partir do Gabão, estabelecera <<estações» para Moçambique; e salvaguardaria igualmente a li- tos mercantis: muito generalizadas, as críticas con-
cadas seguintes. Fomentam-no sobretudo os repu- junto ao Ogoé e na margem esquerda do Zaire. vre acção de missionários de todos os credos. Para testavam a própria base do acordo, considerando
blicanos; mas progressistas e regeneradores (ou al- Como vimos, sobre a área do Baixo Congo re- mais, a regulamentação da navegação e a polícia do que, sendo detentor de direitos irrefutáveis sobre o
gumas facções de uns e de outros) não lhes são caía uma já antiga pretensão portuguesa, por várias rio Zaire caberiam a uma comissão internacional. Zaire, Portugal nada deveria ceder à Grã-Bretanha
imunes, retomando ciclicamente os temas e os tro- vezes afirmada ao longo do século - e sempre re- A Grã-Bretanha aproveitou ainda a oportunidade pelo seu reconhecimento. A confiança no peso de-
pos do nacionalismo mais exaltado. jeitada pela Grã-Bretanha, que em 1855 (aquando para impor condições de ordem mais geral - con- tenninante dos direitos históricos, fundados na des-
Neste caso, é a «unha negra» regeneradora que da tomada de Ambriz) ameaçara mesmo usar da dições essas que iam desde a cedência de Ajudá, na coberta e numa mais ou menos vaga presença, pos-
se procura aproveitar da situação, convocando com força para impedir a ocupação do território congo- Costa da Mina, à liberalização do c5m1ércio em to- terior, para a definição das fronteiras em A:frica
os <{constituintes»(de Dias Ferreira) e «avilistasi>um lês. A partir de 1875, o governo de Lisboa tentara dos os donúnios portugueses de Africa, passando radicara-se e difundira-se na década de setenta, por
comício contra o governo, realizado a 13 de Março por mais de uma vez vencer a resistência britânica; pela livre navegação do Zambeze (entre outras). efeito da sentença arbitral de MacMahon, que em
no São Carlos, no qual o acordo sobre Lourenço mas sem êxito. Só e1n Dezembro de 1882 a situação Resistindo o governo de Lisboa a várias destas 1875 dera razão a Portugal no litígio com a Ingla-
Marques foi atacado como atentatório da indepen- se altera, anuindo Londres pela primeira vez a en- exigências, as negociações prolongaram-se por vá- terra sobre a baía de Lourenço Marques. «Folgamos
dência de Portugal e da integridade do seu territó- trar em negociações sobre o reconhecimento da rios meses, só se chegando a acordo a 26 de Feve- sinceramente com o veredictum))- escrevia-se por
rio, pela voz de Pinheiro Chagas (Diário de Noticias sob~rania portuguesa no litoral da costa ocidental reiro de 1884. Aceitando em geral as condições bri- exemplo no artigo de fundo do jornal Democrada,a
de 14-3-1881).Por essa altura, já o Partido Regenera- da Afri.ca entre 5.º 12' e 8.0 sul - para o que con- tânicas respeitantes ao território do Congo (mas 13 de Junho de 1875 - «que sanciona o nosso di-
dor se abstivera na votação do tratado, aprovado pe- tribuiu decisivamente o tratado celebrado por ganhando com a transferência do ponto limite do reito e não permite o esbulho, que a Inglaterra nos
la maioria progressista em sessão secreta da Câmara Brazza no Congo com o chamado rei Makoko, em seu domínio de Porto da Lenha para Noqui), Por- queria fazer.>, E acrescentava-se, mais adiante: «Fe-
dos Deputados, a 7 de Março. Mas não chegará 1880, depois ratificado pela França. Esse reconheci- tugal comprometia-se ainda a não aumentar as tari- lizmente, repetimos, o nosso direito, que nos foi
a ser enviado para apreciação da Câmara dos Pares: mento dependeria no entanto de condições muito fas alfandegárias em todas as suas possessões durante legado pelos velhos conquistadores portugueses, é
a 23 de Março, o governo caía; e o novo ministério estritas: as fronteiras da região concedida a Portugal dez anos e a permitir a repressão do tráfico de es- superior a toda a discussão; funda-se nos feitos
regenerador não dará seguimento ao assunto. não iriam além de Porto da Lenha, no rio Zaire, cravos pela marinha de guerra inglesa em águas honrados e nas façanhas heróicas dos nossos maio-
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res, que firmaram a bandeira portuguesa à custa de reservada: a Revolução de Setembro, por exemplo,, semanas seguintes, O Século publicará ainda cerca (Diário de Notícias de II-r-1884); às «intrigas, conspi-
gentilezas homéricas.» manteve por longos meses o silêncio sobre o assun- de quatro dezenas de mensagens de protesto contra rações e calúnias que desde muito se vêm levantan-
Do reconhecimento internacional dos direitos to, não defendendo o acordo sobre o Congo dos o tratado, enviadas por grupos de cidadãos de vá- do contra as glórias e direitos do donúnio portu-
portugueses à baía de Lourenço Marques inferia- ataques de que era alvo. De toda a evidência, a rios pontos do país. Era pouco, em relação à mobi- guês» (idem, 15-8-1884); às «falsidades calculadas e
-se que eles valeriam igualmente para outras re- corrente partidária de uma expansão colonial mo- lização que se pretendia; mas as se1nentes ficavam. insultos a Portugal», que deixavam <iOnosso país
giões. Insensivelmente, dava-se ainda, um passo derada, em estreita cooperação com a Grã- Atacado em Portugal, o tratado. do Congo en- desconsiderado na opinião desprevenida [...] que
mais, assumindo-se que em boa parte da Africa Cen- -Bretanha - que fora, recordemo-lo, a de Andra- contra também grandes resistências na Grã-Breta- nem vê como somos vítimas da calúnia, depois de
tral, e designadamente no Zaire, Portugal exercia de Corvo - perdia terreno. nha, numa movimentação que parte dos sectores o termos sido da exploração», falando todos os jor-
- e exercera sempre, a partir das Descobertas - Muito naturalmente, miguelistas e republicanos mercantis e envolve igualmente as sociedades anti- nais ingleses «em sentido afrontoso para o nosso
uma soberania efectiva, apenas limitada por uma aproveitaram a ocasião para atacar a dinastia e o re- escravagistas. Iniciados ainda no decurso das nego- país» (idem, 26-9-1884).
exagerada complacência em relação a intromis- gime, dando ainda largas à sua comum anglofobia. ciações, os protestos - a que não eram alheias as A estas acusações procurava dar-se resposta, in-
sões de outras potências. Por isso mesmo, já em Mas, enquanto os primeiros se viam reduzidos a manobras do rei Leopoldo da Bélgica e da sua As- vocando - mas com muita imprecisão, próxima
1875 a intervenção de forças navais inglesas na reclamar nas páginas de A Nação o incremento das sociação Internacional Africana - fazem ressaltar a por vezes da falsificação pura e simples - a legisla-
boca do Congo era apresentada como uma viola- missões católicas, pelo restabelecimento das ordens incapacidade portuguesa P,ara desenvolver o co- ção abolicionista portuguesa, que alegadamente já
ção do território nacional, uma «afronta» ao <<no- religiosas, único modo, a s~u ver, de restabelecer a mércio e a civilização em Africa, bem como a tra- há muito tinha resolvido a questão do tráfico de
me português» - criticando-se a «autoridade>> influência de Portugal em Africa (ideia que começa dição proteccionista da administração de Lisboa nas escravos e da própria escravatura (if- p. ex. Revolu-
(de facto inexistente) por não tomar qualquer aliás a abrir caminho nos meios coloniais, designa- colónias e o seu laxismo ou cumplicidade no tráfi- ção de Setembro de 3-n-1883 e 30-10-1884; Diário de
medida contra os agressores (A Nação de 5, 7 e damente na Sociedade de Geografia de Lisboa), os co de escravos, que continuava a efectuar-se entre Notícias de 5-3-1884; O Século de 16-3-1884); e subli-
16-n-1875; cf. também, p. ex. o Diário de Noticias republicanos iam bem mais longe, atiçando o po- Angola e São Tomé (Axelson, 1967= 64). Em Por- ryhando a <<velhamissão histórica» de Portugal em
de 9-10-1875 e 4-n-1875). Toda a questão transita- pulismo imperial numa violenta campanha em de- tugal, estas acusações provocam um imenso clamor Africa - «esse amplíssimo continente negro, que o
va assim para o terreno do imaginário, onde as fesa da «pátria ameaçada>>.Mais uma vez, os termos de orgulho nacional ferido, tocando a imprensa de nosso esforço fe~ ressurgir das trevas de seis mil
sombras do passado - em parte real, por outra reais do tratado pouco interessavam: confessando todas as cores políticas. São múltiplas as referências anos [... ]; essa Africa prodigiosamente ubérrima,
parte nútico - ganhavam um peso determinan- desconhecê-los ainda, O Século de 7 de Março de à «intriga imunda que contra nós se tem Organiza- que Os nossos marinheiros recortaram na suprrficie
te. Neste quadro, pouco importavam as informa- 1884 punha já em guarda os «bons e leais portugue- do» (Jornaldo Comérciode 3-10-1883); à «formidável indefinida dos mares tenebrosos [... ]; essa Africa,
ções, por vezes publicadas nessa mesma imprensa, ses» contra a <<novanegociata>>,acusando a Inglater- conspiração de muitos interesses ilegítimos, mas que nós primeiro conquistámos para o Evangelho e
que davam conta de uma presença muito reduzi- ra de «investir de novo contra nós►> e ameaçando poderosos, de muitas ignorâncias inconsistentes, para o progresso>), destinada a propiciar a «conti-
da dos portugueses no Zaire, face a um comércio responder à possível «espoliação» com um «protesto mas dominantes», que trabalhava «há muito contra nuidade da nossa odisseia antiga nos fastos da civili-
estrangeiro florescente (cf. Axelson, 1967' 56, no- tão vibrante e enérgico como foi aquele que lavrá- nós, contra os nossos direitos, contra as nossas ten- zação humana>> (Revolução de Setembro de 30-10-
ta 97). mos contra a infàmia de Lourenço Marques». Qua- dências e aspirações, na opinião dos governos e dos -1884; cf. também, p. ex., Diário de Notícias de
Daí nasciam falsas expectativas, cuja frustração tro dias depois, publicado o texto em causa, con- povos europeus>>(idem, 24-II-1883); à «odiosa e con- n-1-1884; Jornal do Comérciode 15-7-1884).
contribuía por sua vei para exacerbar as tensões cluía-se sem surpresa que se tratava de um acto traditória intriga contra nós urdida pela cobiça e Para lá da retórica acaciana do texto que acabá-
nacionalistas. Anunciando, aliás extemporaneamen- «ignorninioso», um «abominável escândalo» contra inveja de diversas nações e empresas», a coberto do mos de citar, era claro o contraste entre a imagem
te, a abertura de negociações com a Inglaterra so- o qual se preparavam «solenes manifestações>>.A 19, <iamor da humanidade e da civilização africana» que a nação tinha de si própria (ou seja, a ima-
bre o Congo, o Diário de Notícias de 6 de Janeiro em artigo de Magalhães Lima, concitavam-se os
de 1881 considerava que delas resultaria necessaria- Portugueses a lutarem «pela pátria» e «pela liberda- Capeloe !vens, carta do curso do rio Zaire, 1885 (BN)
mente, por mero «exame dos documentos>>, a atri- de», concluindo-se por um apelo «às armas contra
buição daquela <<porçãodo território português» à os conspiradores do poder! às armas contra o cri- -•, ,,- ,:...-... ~,. ___
.. , '---
e--··· -:~---··- - - ".
Coroa de Portugal. Três anos depois, a II de Janei- me! às armas contra os traidores!». A 23, anuncia-
ro de 1884, o mesmo jornal informava que estava
prestes a ser concluído o acordo sobre o <<reconhe-
vam-se «grandes manifestações>> em preparação na
capital e na província «contra o vil atentado da -·~·
.. ""'"''"""'"'
cimento dos nossos direitos de soberania no Zaire>>. monarquia portuguesa e da dinastia dos Braganças».
Vistas a esta luz (a lançada pela grande maioria dos A 3 de Abril, em texto intitulado «Nas vésperas do
artigos de opinião publicados na imprensa nacio- combate», de novo pela pena de Magalhães Lima,
nal), as limitações territoriais consagradas no tratado considerava-se que ia finalmente ferir-se o «pleito»
não passavam de urna espoliação; e as condições entre «o rei e o povo>>.Não sendo talvez suficientes -irauft~fn~~ JJctt;ro,
nele impostas, de uma ofensa aos direitos soberanos os comícios, o «povo» deveria preparar-se para lan- -traQffl11UA
.~
do Estado português. çar mão <idetodos os 1neios» em «defesa do solo sa- te,:i':U:t.& ';& •l"llll1ll>
Corno era de regra, o partido de oposição par- grado da pátria, que pretendem roubar-lhe impu-
lamentar - neste caso, o progressista - lançou nemente». A denúncia do carácter antinacional da
um ataque feroz contra o acordo luso-britânico, as- dinastia e do regime, indissoluvelmente ligados à ,, -•·"
'·-
sinalando e acentuando o fosso entre as expectati- Grã-Bretanha, exploradora e opressora de Portugal:
vas gerais e os resultados obtidos, tanto do ponto tal era o tema central da propaganda republicana,
de vista territorial (porque no Zaire Portugal ficava incansavelmente martelado tanto nas páginas de
limitado a uma «estreitíssima e irregular tira de ter- O Século como nos jornais de província que lhe fa-
reno», deixando tudo o mais «de ser nosso>>;e ainda ziam eco.
se cedia o lago Niassa, «que era português»), como Finalmente, a campanha veio a ter o seu ponto
pelas <<onerosas e custosas condições» consentidas culminante num único comício, realizado em Lis-
no «ignominioso» e «prejudicial» tratado (Diário Po- boa a II de Maio, onde, para além dos oradores re-
pular de 5 e 14-3-1884, entre muitos outros). Mas a publicanos, interveio o operário Agostinho da Sil-
própria imprensa regeneradora se mostrou em geral va, em nome do Partido Socialista Português. Nas
124 125
CONFIGURAÇÕES POLÍTICAS NAÇÃO E IMPÉRIO
gem que as elites políticas e os intelectuais em_ Em Portugal, a notícia da convocação da con:-
geral a pouco e pouco im.punham, fabricada a par- ferência suscitou reacções que flutuavam mais uma
tir dos mitos correntes) e o conceito que dela se fa- vez entre o triunfalismo e a vitimização. Sirva de
zia no estrangeiro. Esse contraste reforçava em exemplo o Diário de Notícias, que no artigo de fun-
Portugal os sentimentos de vitimização - a ideia do de 12 de Outubro se pergunta: «Como serão
de que o país era vítima da incompreensão geral da tratados aí os nossos direitos? Iremos assistir a uma
Europa ou mesmo de uma conspiração de vários exautoraçã9? Seremos abandonados por todos os
interesses coligados. Nesta perspectiva, a nação elementos, até pela justiça? Iremos expiar os erros
portuguesa não era apenas espoliada dos seus terri- de longos anos? [... ] Em último caso, fica-nos a li-
tórios africanos: via-lhe ser também negada a quali- berdade de protestar perante o mundo e a história,
dade de nação europeia de pleno direito, capaz de o desafogo das vítimas, triste regalo dos pequenos e
«civilizar» os povos «atrasados» - o que atingia o dos fyacos.» Dias depois, o tom faz-se mais optimis-
próprio cerne de uma identidade construída em ta: «E de esperar que a conferência respeite os nos-
tomo das Descobertas, como momento fundador sos direitos e reconheça a soberania de Portugal so-
da missão de Portugal no mundo. Não estavam por bre os pontos reclamados. Se assirn porém não
isso apenas em causa as colónias: era também o es- sucedesse, nenhuma outra transacção entendemos
tatuto do país no concerto das nações que se deci- que se poderia admitir, senão um solene protesto
dia (um ponto a que eram sensíveis mesmo os arti- contra tão manifesta espoliação. ►> Em todo o caso, a
culistas mais cépticos sobre o futuro do império - fraqueza na Europa seria sempre compensada pela
caso por exemplo de Rodrigues de Freitas). posição privilegiada de Portugal no continente afri-
O sentimento de marginalização, no contexto cano: «Dadas as noss.?-5condições especiais de pres-
europeu, traz consigo uma nova ideia, por várias tígio e de força em Africa, um pouço de bom sen-
vezes expressa nestes anos de me3:dos da década de so e de energia na nossa política colonial e externa,
oitenta - a da aliança preferencial com os povos facilmente nos vingaria da violência sofrida» (idem,
do continente africano. «O nosso natural, o nosso 5-1-1884 e 22-n-1884).
melhor aliado na África nunca foi outro senão o Nos dias finais de Novembro, o horizonte vol-
indígena. Fantasiámos a cruzada da civilização, bras ta a toldar-se. Por esta altura, constava já publica-
dessous, bras dessus, com o resto do mundo culto, mente que na conferência se pretendiam estabele-
ao qual descobrimos a África, e sem o qual come- cer novos princípios de direito internacional p-ara as
çámos a sua exploração civilizadora>>- escrevia-se colónias, pelos quais se fazia a «negação dos direitos
no editorial do Jornal do Comérciode 5 de Setembro anteriores, dando ao mais forte a posse de territó- A Conferênciade Berlim, in O Ocidente, 11-1-1885 (BN)
de 1884. E concluía-se: «A decepção está-se vendo, rios que outras nações ocuparam, mas onde não
mas oxalá nns instruísse. ►> Contra a abertura ao ex- instituíram imposto nem instalaram exército» Uor- iniciativa do governador de Angola, Ferreira do desencanto generalizado, tocando o próprio partido
terior, o europeísmo dominante nos anos setenta, nal do Comérciode 30-n-1884). Sabia-se ainda que a Amaral -, se frustrara, dada a hostilidade dos co- do governo; crítica acerba por parte da oposição
acentua-se agora de novo a tendência para fechar o Alemanha se dispusera a reconhecer a Associação merciantes locais e dos comandantes dos navios de parlamentar; contestação radical dos miguelistas ·e
império sob si próprio, em reacção às pressões ex- Internacional Africana, no que será imitada por vá- várias nacionalidades aí ancorados (Pinto, 1972: dos republicanos. Mas o protesto não se traduz
ternas, apostando numa nútica relação privilegiada rias outras potências durante as semanas seguintes 287-288). neste caso numa movimentação popular idêntica à
com os <Ündígenas»,fundada num alegado «prestí- - sinal certo de que as pretensões de Portugal não Entretanto, a Conferência de Berlim chegava vivida em 1881 ou sequer numa campanha como
gio do nome português nas plagas africanas>> iriam ser atendidas. O rei Leopoldo da Bélgica ga- ao seu termo. Assinada a 26 de Fevereiro, a sua a desencadeada em 1884 pelo Partido Republicano
(A Nação de 5-r-1884) e na «maior aptidão dos por- nhava a partida, num jogo em que Portugal tinha Acta final consagrava os princípios de livre navega- contra o tratado do Congo. Muito provavelmente,
tugueses para fazerem a permuta e tratarem com o contra si tanto os laços que tradicionalmente o ção e de livre comércio nas bacias dos rios Níger e o sentimento geral seria de que se estava perante
gentio» (Jornaldo Comérciode 20-8-1884). Assim se uniam à Grã-Bretanha (tornando-o suspeito às ou- Congo, proibindo qualquer tratamento diferencial uma situação inelutável, imposta, não já apenas pe-
estendia o manto diáfano da fantasia sobre a nudez tras potências) como a reputação, ganha ao longo tanto em relação a navíos como a mercadorias. la Grã-Bretanha, mas pela pressão conjunta das
forte da verdade - criando os mi~os que sustenta- das últimas décadas e reforçada pela campanha lan- Quanto às novas ocupações de territórios em Áfri- principais potências europeias (avisadamente, os
rão a ideologia imperial nas décadas seguintes. çada a propósito do tratado do Congo, de pais ca, passava a exigir-se a sua posse efectiva - mas plenipotenciários portugueses haviam solicitado e
O tratado do Congo nunca chegou a entrar em complacente para com o tráfico de escravos e pro- apenas em relação ao litoral (não tendo a proposta obtido que a Alemanha, a França e a Inglaterra for-
vigor, abandonado que foi pela Grã-Bretanha, por teccionista nas relações mercantis coloniais (if. inglesa de estender essa exigência ao interior obti- malizassem essa pressão através de um verdadeiro
pressão da França e sobretudo da Alemanha. Na se- Hammond, 1966: 9r-93). do vencimento, ao contrário do que geralmente se ultimatum, datado de 13 de Fevereiro, cominando-
quência da questão congolesa, o governo de Berlim Só em começos de Fevereiro de 1885 as espe- supõe). A conferência não procedeu também à -os a chegar a acordo com a Associação Internacio-
tomou a iniciativa, em Outubro de 1884, de convo- ranças renascem, quando se difunde a notícia da partilha do continente negro; no entanto, à mar- nal do Congo na partilha da região zairense).
car uma conferência internacional destina~ a regular ocupação da «embocadura» do Zaire - ou, noutra gem das reuniões oficiais, uma intensa actividade Essa mesma sensação de impotência incitava a
as formas de exercício do comércio em Afiica, no- versão, de «todo o território do baixo Zaire>>- diplomática levou ao reconhecimento do Estado uma reflexão sobre os fundamentos da política co-
meadamente nas grandes vias fluviais como o Congo por forças navais portuguesas, alegadamente a pedi- Livre do Congo, .do rei Leopoldo da Bélgica, pelas lonial até então seguida. Com crescente frequência,
e o Níger, e a definir os princípios a observar em do dos «indígenas», festejada como um dos pontos várias potências nela representadas. Na divisão do do ~nterior dos próprios partidos do regime er-
novas ocupações territoriais - conferência que teve culminantes dos nossos «brilhantíssimos fastos colo- Baixo Zaire, Portugal ficou com a margem esquer- guem-se vozes para condenar, não já este ou aque-
o seu começo a 15 de Novembro, estando pr,esentes niais>>,capaz de restabelecer os direitos de Portugal da do rio, da foz até Noqui, e ainda com os terri- le governo, mas a orientação geralmente seguida
plenipotenciários de 14 países (Alemanha, Austria, (cf.p. ex. Revolução de Setembro de 7 e 8-2-1885 e tórios de Cabinda e Molembo, a norte. em relação ao império após a instauração do libera-
Bélgica, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos da Diário de Notícias de 8 e 9-n-1885). Mas foi sol de Em Portugal, a reacção a estes resultados segue lismo em 1834, que, nesta perspectiva, não teria sa-
América, França, Grã-Bretanha, Itália, Países Baixos, pouca dura: poucos dias depois, sabia-se que a ten- um padrão idêntico ao que vinha ocorrendo nos bido ,salvaguardar a tempo os interesses de Portugal
Portugal, Rússia, Suécia e Turquia). tativa de ocupação de Boma, na foz do Zaire - da últimos anos relativamente aos tratados coloniais.: em Africa. Projectando anacronicam.ente no passa-
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do as preocupações e as condições presentes, criti- não contestando a necessidade dessa alianca, «histo- nas que alguma vez foram pisadas por portuguese9> 26 de Janeiro, forma-se a Liga Patriótica do Norte,
cava-se a «lentidão)) e o <{desmazelo»com_ que até ricamente fundada», preconizara uma maior firme- (O Dia de 30-5-1888; apud Martins, 1946: 14-18), a .cuja presidência foi chamado Antero de Quental.
então se havia colonizado, a alegada falta de um za na sustentação dos direitos de Portugal, acompa- António Enes vira-se acoimado de falta de patrio- Corno nota António Enes (apud Martins, 1946:
«verdadeiro plano colonial» dos sucessivos governos nhada de uma aproximação à França e à Alemanha tismo na Câmara dos Deputados e no conjunto da 284), o movimento toma um carácter nacional, es-
liberais, ou ainda a inconsiderada extensão ao ultra- (Diário das Cortes, sessões de 26-1-1885: 255-256, 335- imprensa regeneradora (idem: _18,24). capando ·ao controlo de qualquer partido: no seu
mar de princípios e regras só próprios das socieda- -352; 1-6-1885: 1914-1933). Não se chegou no entanto a tirar a contrapro- «primeiro plano» figurariam <{muitosindiferentes da
des europeias, reclamando-se uma reforma de sen- Na sua acção como ministro, esta linha tem va, uma vez que o acordo, negociado em Lisboa, política, uns desconhecidos até aqui e outros retraí-
tido centralizador e disciplinador. Tal era em uma dupla tradução. Por um lado, há uma tentati- foi de imediato rejeitado por Salisbury, a pretexto dos», a que se associavam <<inegavelmente as multi-
particular a lição de Luciano Cordeiro, deputado va de ganhar o ~poio de Berlim para as pretensões da presumível oposição das missões escocesas. Pou- dões».
regenerador e influente secretário da Sociedade de portuguesas na Africa Central, concretizada sobre- co depois, o conflito luso-britânico agudizou-se, Entretanto, já caíra (a 14 de Janeiro) o governo
Geografia de Lisboa, que assim se contrapunha à li- tudo pela missão secreta de Batalha Reis à Alema- atiçado pelo confronto travado no Chire, a partir progressista, ferido de morte pela vaga de agitação.
nha poucos anos antes seguida por Andrade Corvo nha, no Verão de 1888 (Axelson, 1967= 193); por de Agosto, entre Serpa Pinto, comandante de uma Sem política alternativa no campo colonial, o mi-
(Cordeiro [s. d.]: 155-246, maxime 171, 184-187, 188- outro, traça-se um plano de expedições, em parte das expedições portuguesas ao Niassa, e o cônsul nistro regenerador que o substituiu optou por cer-
-189; if- tb., no mesmo sentido, Diário de Notícias de concretizado, que deveria permitir negociar em inglês na zona, John Buchanan, com os Macololos cear e reprimir o movimento nacionalista, no qual
18-3-1885 e 4-4-1885; Revolução de Setembro de posição de força no terreno. como joguete. A criação por Lisboa, a 7 de No- via uma ameaça ao regiine, enquanto renovava as
18-6-1885). Cmno é bem sabido, a estratégia de Barros Go- vembro, do novo distrito do Zumbo, abrangendo negociações com a Grã-Bretanha (na linha do que
Da conferência extraíam-se ainda duas outras mes fracassou rapidamente. A ideia de fazer reco- parte do Alto Zambeze, l;mçou mais uma acha para fora decidido em Conselho de Estado). Recusadas
ilações. A primeira delas dizia respeito à ocupa- nhecer uma vasta zona de influência portuguesa, a fogueira. Por essa altura, já o governo inglês se liminarmente por Salisbury a arbitragem ou a me-
ção da zona entre Angola e Moçambique, objec- abrangendo a margem oriental e o sul do lago decidira a <<daruma lição>>a Portugal (Ham1nond, diação de outras potências - aliás muito reticentes
tivo antigo que ganhava agpra uma nova urgên- Niassa e ainda todo o curso do Zambeze, unindo 1966: 124-125) - um Estado fraco que tinha a ve- a exercer os seus bons ofícios em Londres -, o
cia, dada a apetência por Africa prenunciada na Angola a Moçambique, entrou em conflito tanto leidade de fazer o papel de grande potência em governo português acabará por ver-se obrigado a
reunião de Berlim por parte de várias potências. com a,s missões escocesas já estabelecidas na região África, contrariando os planos britânicos. A «agres- assinar a 20 de Agosto de 1890 um tratado que
O tema aparece com frequência crescente na im- de Blantyre, com algum peso político em Inglater- são» de Serpa Pinto aos Macololos deu o pretexto consagrava no essencial as pretensões britânicas,
prensa nacional (if-p. ex. Diário de Notícias de 21- ra, como sobretudo com os projectos expansionis- final: a II de Janeiro, um ultímatum intimava o go- tanto na definição dos limites territoriais no Niassa
-2-1885; Revolução de Setembro de 14-5-1885, 10, 12 tas por essa mesma altura formulados no Cabo, que verno de Lisboa a retirar as suas forças dos territó- e de modo geral, da fronteira oeste de Moçambi-
e 27-6-1885; O Primeiro de Janeiro de 5 e tiveram a sua expressão mais visível no tratado ne- rios dos Macololos e dos Machonas, no Chire e no que, como ainda no plano mercantil, com a adop-
28-6-1885). gociado por Moffat em Fevereiro de 1888 com Lo- Alto Zambeze, respectivamente, sob pena de rup- ção de cláusulas de livre navegação e de livre co-
A segunda ilação situava-se no âmbito da polí- bengula, chefe dos Matabeles e alegadamente tam- tura das relações diplomáticas entre ambos os paí- mércio que, para além da costa oriental, abrangiam
tica externa. Era agora com efeito claro que, no bém dos Machonas (abrangendo regiões também ses. Simultaneamente, rumores vários referian1 mo- também Angola.
campo colonial, se passara de um mundo domina- pretendidas por Portugal) e na formação da British vimentações da marinha de guerra inglesa, que Acusado de espoliar Portugal de vastos territó-
do por uma única potência hegemónica para um Soutb African Cornpany, de Cecil Rhodes. Por ameaçariam Lisboa, a Madeira, Cabo Verde, Lou- rios, de abrir todo o império ao comércio inglês e
universo multipolar, onde a Grã-Bretanha dificil- seu turno, a política de tensão seguida pelas autori- renço Marques, Quelírnane e a ilha de Moçambi- de conter condições humilhantes, mal aceite por
mente poderia impor por si só as suas posições - dades portuguesas em Moçambique - desde a que. A 12, ouvido o Conselho de Estado, o gover- muitos membros influentes do próprio partido do
o que obrigava Portugal a fazer um jogo mais vas- ocupação, em 1887, da baía de Tungue, na frontei- no português cedia. governo, o acordo veio dar um novo fôlego ao
to, diversificando os seus apoios, tanto mais que ra norte, que o sultão de Zanzibar, protegido pela Tmnado como uma espoliação de direitos irre- populismo ünperial, suscitando os «clamores da im-
durante a conferência o governo de Londres aban- Grã-Bretanha, também reclamava, até ao controlo futáveis e uma insuportável humilhação nacional, o prensa e dos comícios» e as «representações e pro-
donara à sila sorte os interesses portugueses. Daí estrito da navegação no Zambeze - provocava ultimatum provoca em Portugal um enorme sobres- testos de diversas corporações e classes», durante o
uma inflexão no rumo até então habitualmente se- múltiplos conflitos, contribuindo fortemente para salto: acumuladas na década anterior por impulso mês de Setembro de 1890 (Teles, 1968: 219). Volta-
guido pelo governo de Lisboa, que, logo após a azedar as relações luso-britânicas. Finalmente, o es- das pressões e «desconsiderações» externas e do po- vam igualmente as manifestações tumultuárias e as
conferência, procurou a anuência prévia da França perado apoio da Alemanha não passou de uma ilu- pulismo imperial, as pulsões nacionalistas explodem cargas policiais. A 17, acossado e isolado, o governo
e da Alemanha - formalizada nas convenções de são, recusando-se sempre o governo germânico a finalmente, sacudindo o país durante meses, mar- regenerador caía, deixando o tratado por ratificar.
12 de Maio e de 30 de Dezembro de 1886, respecti- intervir activamente no contencioso entre Londres cando toda uma geração. A ausência de acordo trazia no entanto um va-
va1nente -, para garantir o reconhecimento de e Lisboa nascido da recusa britânica a reconhecer Na noite do dia 12, uma multidão forma-se es- zio tanto mais perigoso quanto a British South
uma zona de influência portuguesa no território 9s supostos direitos portugueses no interior da pontaneamente, percorrendo em tumulto as ruas Afi:ican Company, de Cecil Rhodes, alargava a sua
entre Angola e Moçambique (conforme mapa Africa Central. da Baixa lisboeta, apedrejando as janelas da casa de acção no terreno, ocupando parte da região de
apenso ao protocolo de uni_a das reuniões luso- Neste clim_a, foram-se frustrando as sucessivas Barros Gomes e de um jornal progressista e acla- Manica, e exercia pressões crescentes para reduzir
-francesas, pintado a cor-de-rosa). tentativ~s ensaiadas desde 1887 para pôr fim ao dife- mando regeneradores (que haviam lançado um quanto possível o domínio português na costa
Nada havia de antibritânico em tais acordos: rendo. E verdade que em Abril de 1889 se chegou suplemento «patriótico») e republicanos (cuja im- oriental. Ironicamente, Londres aparecia agora co-
tratava-se apenas de desbravar caminho, abrindo a a um princípio de acordo, pelo qual Barros Gomes prensa apelava à resistência e à revolução). A agi- mo o único recurso contra o expansionismo do
via a futuras negociações com o governo de Lon- aceitava renunciar à ligação entre Angola e Mo- tação persiste nas semanas seguintes, pontuada por Cabo; e era Portugal que se empenhava em fazer
dres. Mas Barros Gomes (detentor da pasta dos çambique, em troca da consolidação do domínio actos simbólicos como a colocação de crepes e, ressuscitar os limites territoriais estipulados no tra-
Negócios Estrangeiros no ministério progressista de Portugal no Niassa (idem: 195-200). Mas, dificil- mais tarde, de uma coroa na estátua de Camões, tado de 20 de Agosto - um objectivo conseguido
que sobe ao poder a 20 de Fevereiro de 1886) vai mente tal acordo, se concluído, obteria o assenti- relançada por comícios, reuniões e protestos de vá- através.· do modus vivendi assinado a 14 de Novem-
introduzir um elemento de tensão neste quadro, mento de mna opinião pública tomada de fervor ria origem e natureza, que, para além da capital, brO. O tratado finalmente assinado meses mais tar-
procurando chegar a um novo ponto de equilíbrio, nacionalista, que tinha como ponto de fé a preexis- ganham Coimbra e Porto e muitas outras cidades e de, a n <le Junho de 1891- depois de um período
mais favorável a Portugal, no quadro da aliança in- tência de direitos do país sobre todas as regiões em vilas da província (Homem, 1992: 281-296; Teles, marcado ,por Vários incidentes nas zonas em litígio
glesa. Essa estratégia estava já claramente enunciada litígio: meses antes, ao defender a limitacão das 1968: 96-119). Em Lisboa, constitui-se uma comis- e por manobras nos bastidores da Companhia de
nos discursos que pouco antes pronunciara nas ambições de Portugal em África, em detrimento são destinada a recolher fundos para a defes.a do Rhodes, por um lado, e da Companhia de Mo-
Cortes, como deputado da oposição, aquando dos das «vozes desse amor-próprio nacional» que rei- país - a chamada «Grande Subscrição Nacional►>. çambique, onde predominavam interesses france-
debates sobre a Conferência de Berlim, nos quais, vindicavam <<asoberania de todas as regiões afi:-ica- No Porto, na sequência de um comício realizado a ses, por outro (Warhurst, 1962: 14-77; Axelson,
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CONFIGURAÇÕES POLÍTICAS NAÇÃO E IMPÉRIO
O CONFLICTO LO-PORTUGUEZ
(j)
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CONFIGURAÇÕES POLÍTICAS NAÇÃO E IMPÉRIO
1967' 259-297) - dificilmente pode ter-se por mais terna: ao primeiro abanão, à primeira decis~o das elites intelectuais nacionais, em curso, como já
A CUERRA NA AFRlCA ORIENTAL
favorável a Portugal do que o de 20 de Agosto do política concreta que é necessário tom.ar, as estru- referimos, desde finais da década de sessenta. Mas a
ano precedente: é certo que se modificavam as for- turas unitárias desagregam-se. Tal é o caso paradig- própria influência que essa teorização vai ganhar,
mas verbais mais chocantes para o orgulho nacional mático da Liga Patriótica do Norte, qúe, confron- infiltrando-se nas formulações mais correntes, obri-
e se excluía Angola das cláusulas sobre a liberdade tada, pouco depois da sua criação, aos decretos do ga-nos a concluir que ela responde a problemas e
de comércio; mas territoriahnente, perdia-se parte governo regenerador restritivos do direito de asso- inquietações reais, nascidas do evoluir da sociedade
de Manica (zona aurífera, ao que se presumia), mal ciação e reunião, decidiu dissolver-se, na assem- portuguesa. Em parte, as razões de tal difusão não
compensada por ganhos a norte do Zambeze. bleia convocada para protestar contra tais medidas estarão longe das habituahnente referidas pela aná-
Mas desta vez não há reacção: o país mantém- (Teles, 1968: 132-133;Santos, 1930: 331). Para mais, a lise histórica para explicar o reforço das ideologias
-se inerme. Tanto na época como em nossos dias, única organização que, afastada por sua natureza do nacionalistas na Europa de finais do século: a inse-
tal quebra de resistência tem sido apresentada como ónus do poder, teria a possibilidade de dirigir e de gurança dos estratos tradicionais an1.eaçados pelo
uma prova da inconstância das multidões, da in- estruturar a multidão indiferenciada dos que nas- desenvolvimento económico capitalista e o cresci-
consistência do movimento e até do carácter frágil ciam para a política através do populismo imperial mento de novos estratos sociais urbanizados (duas
e volúvel do povo português. Poderíamos ver antes - o Partido Republicano - estava também ela faces da mesma realidade, que dava impulso à pro-
nela uma racional adaptação às realidades: afinal, o dividida e em crise, para além de ainda m.al im- l
cura de novos valores identitários). Acrescente-se,
próprio curso das coisas mostrara a premência de plantada a nível nacional. Deste modo, sem alvos como factor porventura decisivo, a profunda ferida
concluir o tratado, por muito duras que parecessem precisos, para além de vagos projectos de regenera- do orgulho nacional repetidamente tberta pelos
as suas condições. ção e de reorganização do país (o verdadeiro alvo, acontecimentos ligados à partilha de Afi-ica e pela
Mais provavelmente, a diluição do movimento, a Grã-Bretanha, estava fora de alcance), o movi- campanha internacional que negava a imagem au-
após alguns meses de agitação, é o resultado, só na mento esvai-se naturalmente. toconstruída de Portugal como país colonizador e
aparência paradoxal, da sua própria amplitude. Por último, certos sectores do exército sentem- civilizador por excelência.
Atravessando toda a sociedade portuguesa, mobili- -se tentados a preencher este vazio, fazendo valer a A um outro nível - mais fundamente -, a
zando sectores muito diversos, o nacionalismo im- vocação da «grande instituição militan> para expri- busca de uma identidade nacional enraizada na na-
perial está por isso mesmo condenado à divisão in- mir o «sentimento nacional» contra a «luta das pai- tureza, com valores originários específicos, corres-
xões>>e os <sÍnteressesmesquinhos» que prevaleciam ponde a uma tentativa de colmatar as brechas pro-
R. Bordalo Pinheiro, O Garrote Vil, ín Os Pontos na luta partidária (cf.p. ex. O Exército Português, vocadas pela crise da tradição e das normas por ela
nos ii, 1890 (BN) n. 0 296, 16-n-1890: 169-170). Mas as forças armadas A guerra na África Oriental. Regresso dos transportadas, resultante do avanço da idade mo-
estavam demasiado integradas no regime e o exér- expedicionários, in O Ocidente, 25-1-1896 (BN) derna e das transformações nascidas da Revolução
cito, como corpo, demasiado ausente do campo Industrial (crise entendida aqui no sentido que lhe
:~-- colonial para que este apelo pudesse ser ouvido, igual modo importante: a elaboração e difusão de
"'"'•··-"' dá Arendt, 1972: n-27, 28-57). No caso português,
nesta fase (a ideia irá no entanto abrindo o seu ca- teorias que representavam Portugal como um todo a ruptura na «herança moral das gerações>>dataria,
minho, como se sabe). orgânico, de raiz étnica ou racial, portador de um segundo um conhecido livro de finais de Oitocen-
Ponto culminante de um processo que durou espírito ou «génio» específico proveniente do fun- tos (Cordeiro, 1896: 15-30) do tempo de Herculano
mais de uma década, a crise do ultimatum marcou do dos tempos - teorias que, nesta fase, margina- e da sua crítica à lenda do milagre de Ourique, que
mna geração, toda ela convertida, salvo raras ex- lizam as concepções de base contratualista correntes teria n1.arcado a transição do «estado geral de cren-
cepções, ao nacionalismo imperial. Dela sai defini- em meados do século e expressas, no âmbito colo- ça» para uma «época de cepticismo e de anarquia
tivamente enraizado o mito da «herança sagrada» nial, tanto por Sá da Bandeira como por Andrade mental», sendo em geral tomada pela «negação de
- uma herança a preservar custasse o que custasse. Corvo. todo o elemento sobrenatural na história, a elimi-
Dela resulta igualmente um novo impulso à ocupa- Esta evolução não tem em si nada de singular, nação de toda a influência providencial nos desti-
ção militar dos territórios africanos, expresso numa correspondendo à que pela mesma época se verifi- nos hum.anos, a pátria sem Olimpo, o estado sem
série de expedições organizadas em finais dos anos ca, de modo geral, em toda a Europa, onde, em- Deus, a moral sem religião [...]».
oitenta e começos de noventa. Esse esforço terá co- bora com matizes diversos consoante os países, se Para Silva Cordeiro, esse trabalho de <<criticis-
1no resultado mais saliente a vitória sobre Gungunha- reforçam as perspectivas holísticas do facto nacio- mo individualista» teria prosseguido com Oliveira
na, soberano dos Vátuas (em Gaza, Moçambique), nal, concebido como um dado natural biologica- Martins e Teófilo Braga. Mas com eles (entre ou-
nas campanhas de 1895. O rei vencido é passeado pe- mente detenninado. Cumulativam.ente, tendem a tros de menor relevo) começa igualmente a tarefa
las ruas de Lisboa, em Março do ano seguinte (Bre- transpor-se para o quadro das relações internacio- de dar um novo fundamento de ordem suposta-
tes, 1989); e as tropas expedicionárias vitoriosas são nais os princípios da luta pela vida e da sobrevivên- mente científica, à existência de Portugal e à sua
recebidas em triunfo nas suas cidades e vilas de ori- cia dos mais aptos, importados do evolucionismo missão histórica. Contra uma outra das teses cen-
gem (cf A Voz Pública, de Janeiro e Fevereiro de darwinista. trais de Herculano - a que negava a identidade
1896). Era, de certo modo, o reverso da crise do ulti- A uma primeira análise, poderemos ser levados entre os Lusitanos e a nação portuguesa, que teria
matum; era sobretudo, a sacralização do império, que a ver neste surto teórico organicista em Portugal o sido formada «pelo esforço e tenacidade dos nossos
aí encontra o seu verdadeiro mito fundador. simples reflexo do cientismo então em voga na Eu- primeiros príncipes e cavaleiros», sendo composta
ropa: aparentemente, os autores que no nosso país por «dois fragmentos: um leonês, outro sarraceno»
se ocupam_ por esta altura da questão nacional - (Herculano, 1980: 81-84) -, Teófilo saiu à liça em
NAÇÃO, RAÇA E IMPÉRIO com Oliveira Martins e Teófilo Braga à cabeça defesa da persistência, ao longo de toda a história
- não fazem mais do que adaptar ao caso portu- peninsular, de um fundo comum, com origem nos
Assistimos à emergência do populismo imperial guês as ideias mais recentes no donúnio da antro- Iberos (um ran1.o de uma suposta raça «Turaniana»,
no campo político português do último quartel de pologia e da linguística, que abriam novos campos de transição entre ºJ amarelos e os brancos aria-
Oitocentos. Paralelamente, a nível ideológico, dá- à especulação histórica. Estaríamos assim perante nos), que vindos da Asia, teriam atingido o territó-
-se outra mutação de fundo, menos visível mas de um mero episódio do processo de modernização rio hispânico pelo Sul, depois de um longo percur-
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mes embrutecidos, às paixões desenfreadas da sua civil e penal aplicável, expresso num «código dç, <,manter o prestígio da raça, que tanto importa ao
raça e a barbárie, sendo essa regressão ajudada pelos indigenato», onde estariam indicadas as penas ade- seu predomínio»), fazendo do negro «o operário, o
fenómenos fisiológicos - não sei se já estudados -, quadas ao estado primitivo do negro (prisão com trabalhador» em colónias onde o branco não pode~
que paralisam o desenvolvimento intelectual do trabalho, multas e castigos corporais). ria exercer actividades braçais, dado o «clima debi-
negro ao sair da inf'ancia.» Para além de ilusório, o Diferenciada deveria igualmente ser a instrução litante dos trópicos>>.Grande parte da acção educa-
esforço evangelizador poderia mesmo ser perigoso <,indígena», a prestar em escolas primárias agrícolas tiva caberia às missões religiosas - desde que a
(<<desgraçadosdos brancos» - exclamava Enes - e em escolas de artes e oficios distintas das institui- exercessem movidas pela <,chama do proselitismo
<(Seas missões convencessem os negros da igualdade ções educativas destinadas aos europeus (a fim de patriótico», incutindo nos «cérebros rudes dos indí-
humana!»). Por isso mesmo, o ensino religioso de- genas africanos» o «respeito pela nação dominado-
veria <(abster-se de semear doutrinas, embora ver- Escultura tchokwe (quioco),recolhidaem 1904 na regiãodo ra» e a consciência das «vantagens que, do seu do-
dadeiras, que em espíritos rudes e maus» pudessem Moxico-Angola (MHN-FCP) mínio ►>, resultavam «para o país e a civilização a
<<produzirrevoltas contra as leis sociais», mantendo que eles pertencem» (idem: 168-175).
a propaganda cristã ao nível do «possível» e do Até aqui, não estamos longe das páginas já refe-
«útih, «como entendem os legítimos interesses hu- ridas de António Enes. Mas Eduardo da Costa vai
manos►> - ou seja, exercendo sobretudo uma ac- mais longe, fixando as linhas gerais, do regime polí-
ção disciplinadora, salvando ahnas mas educando tico e administrativo a impor em Africa. Qualifica-
«corpos para o trabalho» (idem: 75, 2ro-219). do por ele próprio de «despotismo atenuado», esse
Assim se tocava urna das preocupações centrais regime excluiria o direito de sufrágio no ultramar,
de António Enes - a do aproveitamento do traba- que tenderia a dar a «predominância» ao «elemento
lho da população negra, necessário para tomar ren- indígena►>, bem como a liberdade.de imprensa, por
dível a colónia moçambicana. Tal como Mouzi- incompatível com o prestígio da autoridade colo-
nho, o comissário régio atacava fortemente a nial. No essencial, os poderes legislativos e executi-
legislação portuguesa em vigor, não compreenden- vos ficariam concentrados nas niãos do governa-
do os seus escrúpulos em «obrigar o Africano semi- dor-geral, assistido por conselhos compostos por
-selvagem, inocente ou criminoso, livre ou preso, a funcionários e não funcionários, estes últimos no-
trabalhar para si e para a sociedade, a trabalhar meados por Lisboa sobre proposta da autoridade da
à força quando não traballie por vontade, até onde colónia. No topo do sistema, retirar-se-ia qualquer
a força possa coagi-lo sem o degradar das prerroga- intervenção no processo legislativo ao Parlamento,
tivas de homem» (idem: 75). Veremos que estas assembleia politizada e por isso pouco própria para
pressões em breve darão os seus frutos, levando à decidir nos assuntos do ultramar, ficando a faculda-
revogação do regulamento de trabalho de 1878 ~ de de promulgar leis reservada ao ministro e aos
o que tinha sobretudo um valor simbólico, dando governadores. Na base desse mesmo sistema, os
curso à nova ideologia colonial, pouco alterando as chefes de circunscricão deteriam todas as funcões
práticas até então seguidas, fortemente opressivas. administrativas e judiciais, dependendo apenas' dos
Coube finalmente a outro dos membros da seus superiores hierárquicos (governador de distrito
<(geração de 1895»- o major Eduardo da Costa - e governador-geral). Mas não era tudo: para as co-
a tarefa de reunir os fios dispersos d~~ta temática lónias onde a ocupação era frágil ou estava ainda Máscara tchokwe (quioco),recolhidanos arredores
numa teoria global, formulada no seu Estudo sobrea em curso, como Angola e grande parte de Moçam- de Saurimo-Angola, cercade 1920/1930 (Colecção
Administração das Nossas PossessõesAfricanas (1903). bique, Eduardo da Costa preconizava a adopção de Particular)
Invocando Oliveira Martins, Costa atacava igual- um regime militar, caracterizado pela concentração
mente «a nossa terrível mania assimiladora>>- o de poderes civis e militares, pela ausência de assem- mente o branco não poderia reproduzir-se, o que
«nosso prurido de liberdade e igualdade civil e po- bleias deliberativas e pela utilização de processos evitava a concorrência entre as duas raças e tornava
lítica, para todos os habitantes sobre os quais on- militares sumários na administração (idem: 5-39, indispensável o contributo do traballio negro. Mas
deia a bandeira portuguesa» -, recla1nando a apli- 63-66). as soluções concretas no seu âmbito preconizadas
cação de um estatuto diferenciado aos «indígenas» e Embora dominante, esta corrente não fazia a aproximavam-se frequentemente das avançadas pe-
a concentração de poderes extensos nas mãos das unanimidade, no Portugal do dobrar do século. la corrente anterior: é assim que A. F. Nogueira
autoridades: «As razões antropológicas, as razões Não era raro erguerem-se vozes críticas da prepon- (para dar um exemplo), por vezes apontado como
sociais» - dizia-se no Estudo - «mostrando a dis- derância do elemento militar na administração ul- <,humanista>>e defensor dos Africanos, nos surge na
paridade de caracteres étnicos, de usos e de instin- tramarina e na própria ocupação territorial então realidade como adepto do traballio forçado, contra
tos e a inferioridade manifesta do selvagem, evi- em curso; e há sobretudo quem procure impor a lei abolicionista de 29 de Abril de 1875, e do pró-
denciam a necessidade de aplicar diferentes sistemas uma visão menos negativa das «raças africanas», im- prio «resgate» no interior, ou seja, do tráfico de es-
de governo a raças tão diversas e de manter nas putando o seu «atraso)>a circunstâncias históricas, e cravos (Nogueira, 1881: 198-204; cf Jornal do Comér-
mãos dos mais civilizados, como dos mais dignos, a não já a um determinismo biológico irredutível - cio de 26 e 28-5-1872, 1-6-1872 e 5-5-1876). Além da
tutela dos mais selvagens e primitivos, como de o que, em teoria, abria a porta à sua integração pressão dos interesses constituídos, contribuía para
urna classe desgraçada ou incompleta da sociedade progressiva nos moldes da <ícivilizaçãa>> pelo menos isso um tema ideológico muito difundido na época
humana» (Costa, 1903: 60). Do estatuto próprio do em termos parciais (p. ex. Nogueira, r88r; Coelho, que dava ao trabalho, sob qualquer das suas formas,
«indígena» fariam parte o pagamento de um impos- 1893; Teles, 1902). Em geral, esta perspectiva inspi- um papel central no processo de <icivilização» dos
to de capitação, como <iacto de submissão», e a rava-se numa interpretação do evolucionismo que «selvagens>>.
obrigação de satisfazer um certo número de presta- desvalorizava o princípio da selecção natural, quan- Nãq forçaremos a nota, se incluirrnos nesta li-
ções de trabalho. Específico seria também o direito do aplicado aos povos dos trópicos, onde alegada- nha evolucionista outro dos grandes nomes da <(ge-
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ração de 1895» - Paiva Couceiro, que será mais metrópole - nomeadamente nos casos dos têxteis disposição - acompanhada da declarada intenção contexto internacional em que se movia, nestes
tarde governador de Angola (1907-1909). No seu e do vinho - nos mercados das colónias, repre.:_ de extinguir progressivamente os quadros do ultra- anos de fins do século XIX e inícios do seguinte:
caso, há uma clara inflexão, relativamente a Enes sentam uma viragem na tendência para a abertura mar - revela a tendência para a formação de um potência débil, com uma economia pouco desen-
ou Eduardo da Costa, no sentido assimilacionista: do império às trocas com o exterior esboçada desde a corpo único de oficiais para a metrópole e o impé- volvida, Portugal dificilmente poderia alhear-se
na sua perspectiva, o fim último da colonização do década de setenta (para mais pormenores, ver «O Sis- rio; mas, simultaneamente, reservavam-se os postos · das pressões que pesavam sobre o seu frágil impé-
território angolano estaria em transformá-lo numa tema das Trocas»). de comarido a «europeus), - ou seja, nos próprios rio. Definidas as fronteiras das possessões portu-
«grande província portuguesa», infundindo «cunho Muda também a orientação noutro donúnio termos do decreto (artigo 180.º), aos «filhos de pai guesas no continente africano na década de no-
nacional à totalidade de um povo», que, para aléin fundamental - o do trabalho «indígena>, - com o e mãe europeus de cor branca» - vedando o aces- venta, as ameaças à sua integridade territorial não
de <<portuguesesdo Velho Continente», se constitui- regulamento promulgado a 9 de Novembro de so às elites crioulas locais. tardaram - suscitadas em 1898 pelo acordo secre-
ria «com as r;iças nativas e percentagem devidamente 1899, que dá cobertura legal ao trabalho forçado, ao Entretanto, na administração colonial vai abrindo to anglo.:..alemão para a divisão de Angola e Mo-
doseada de estrangeiros adventícios». Mas esse seria estipular a sua obrigatoriedade, assegurada pelas au- caminho (embora com grandes resistências) o princí- çambique em zonas de influência, tendo em vista
um objectivo a muito longo prazo; já que não se toridades, às quais os negros poderiam ser requisita- pio da autonomia, tão reclamada por Enes, Mouzi- a sua eventual partilha. Sem efeitos imediatos (em
poderia esperar que o <<nativode Afuca» realizasse dos tanto por entidades públicas como por particu- nho e Eduardo da Costa, entre outros. O primeiro grande parte, por relutância do governo de Lon-
«em algumas dezenas de anos o que nós gastámos lares. O diploma revela a influência directa das passo nesse sentjdo está na nomeação para Angola, dres, no qual uma forte corrente defendia a con-
vinte séculos a transpor», não estando em causa, nos ideias de António Enes, relator do parecer da co- Moçambique e India, em 1896, de comissários régios servação do império português) o acordo ganhou
tempos previsíveis, a atribuição do «foro do cidadão missão que lhe deu origem. dotados de largos poderes executivos Oogo cercea- de novo actualidade entre 1912 e 1914: tratava-se
português» ao «indígena». Também para Paiva Cou- Dois anos depois, chega a vez das forças arma- dos, aliás, por decreto de 7 de Junho de 1898). Só em então, para a Grã-Bretanha, de levar Berlim a de-
ceiro o «integramento final de todas as populações das ultramarinas, reorganizadas pelo decreto de 14 1907 se volta a trilhar o mesmo caminho, com a sistir do seu programa armamentista, em troca de
dentro da paz, da ordem e do progresso da hegemo- de Novembro de 1901. Estavam então em curso as <<Reorganizaçãodos serviços administrativos da pro- compensações coloniais (ver <iPortugal no Contex-
nia portuguesa» se fazia sobretudo pelo seu «ingresso campanhas militares de ocupação das colónias do víncia de Moçambique», publicada pelo ministro Ai- to Internacional►,). Entretanto, desencadeara-sedes-
no hábito do trabalho)>, nos termos indicados no continente africano (e também de Timor), que se res de Omelas, que concedia ao respectivo governa- de os primeiros anos do século uma forte campa-
«texto clássico» de António Enes - ou seja, pela prolongarão até aos anos vinte. A nova lei tinha em dor a fàculdade de legislar, exercida em conselho de nha humanitária contra as práticas escravagistas de
imposição do trabalho forçado. «Paz e civilização vista acabar com as ~xpedições extraordinárias das governo. Já implantada a República, as Bases Orgdni- Portugal em África, tocando em especial o trans-
pelo trabalho»: tal deveria ser o lema da ocupação tropas africanas em Africa, muito dispendiosas, es- cas promulgadas em 1914 estenderam a autonomia a porte de contratados para São Tomé (cf. Duffy,
(Couceiro, 1948: xxrr, 9, 181-182,194, 221-226). tabelecendo um sistema permanente de ocupação todas as colónias, criando um regime geral que no 1967: 168 e segs.) - o que acentuava a fragilidade
Como é natural, a conjuntura ideológica vivida que se valeria sobretudo das «con1panhias indígenas entanto não chegou a ter aplicação senão na década das posições de Lisboa.
em finais do século - caracterizada pelo populis- de infantaria)), desde que <<fortemente enquadradas de vinte (e com alterações, como veremos). Face a estas ameaças, há uma dupla reacção
mo nacionalista, pela e1nergência de concepções com europeus>,, tanto a nível dos oficiais como dos Registe-se, finalmente, que o estatuto do indi- portuguesa: por um lado, busca-se defesa no jogo
essencialistas. de nação e pela vaga_ crescente do sargentos e das próprias praças graduadas. Como genato reclamado por Eduardo Costa veio a ser diplomático, procurando reanimar a aliança inglesa
evolucionismo e do darwinismo social - veio a era tradicional, o decreto oferecia vantagens espe- promulgado por decreto de 30 de Maio de 1926, já (o que, embora sem efeitos decisivos, se consegue
repercutir-se no quadro legislativo que procurava ciais - posto de acesso, prémio de alistamento, no regime de Ditadura Militar, após medidas no com o Pacto de Windsor, de 14 de Outubro de
moldar o sistema imperial, inspirando novas solu- vencimento acrescido - aos militares do exército mesmo sentido tomadas nos anos anteriores em 1899); por outro, preconiza-se a abertura do impé-
ções políticas em muitas das questões de fundo do do reino que se oferecessem para servir nas coló- Angola e Moçambique. rio aos interesses estrangeiros, com a esperança de
colonialismo português. nias; mas determinava igualmente que, na falta de fàzer baixar a pressão que sobre ele se exercia. Esta
No campo económico, as pautas de 1892, pro- voluntários, seguiriam os mais modernos dentro de Muito marcada pela conjuntura ideológica, a segunda via tem uma concretização parcial nas
tegendo altamente o comércio e a produção da cada posto e arma, por imposição de serviço. Esta política colonial portuguesa não o era menos pelo concessões às companhias majestáticas de Maçam-
Partida de tropas para as colónias: de,ifi.lede um batalhão (à esquerda); chegada a Santa Apolónia de um batalhão vindo da província (ao centro); um batalhão na Praça do Muniápio (à direita), in Ilustração Portuguesa, 1914, vol. VIII (BICS)
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bique e à companhia do caminho-de-ferro de Ben- Como é sabido, este plano mal chegou a ter de 1924 - quadro que, como se sabe, te1n o seu
guela e, no donúnio 1nercantil, nas pautas coloniais um começo de execução: atacado por uma parte último retoque no golpe de 28 de Maio de 1926.
de 1914, que reduziam os direitos diferenciais esta- dos colonos e alvo, em Portugal, de uma violenta Instaurada a Ditadura Militar, afirma-se precisa-
belecidos em 1892 a favor dos produtos nacionais campanha, com Cunha Leal como chefe de fila, mente, a intenção de seguir uma política colonial
ou nacionalizados, para além de baixarem o nível Norton de Matos regressou .a Portugal em 1923, de «nacionalismo rígido>,, nas palavras do coman-
geral das taxas alfàndegárias. demitindà-se formalmente do cargo de alto- dante João Belo, chamado ao governo para a res-
Apenas esboçado, este tímido ensaio de libera- -comissário no ano seguinte. pectiva pasta em Julho desse mesmo ano. <,Aadmi-
lização das trocas externas é interrompido pela Pri- A rápida falência do projecto modernizador em nistracão do Ministério das Colónias» - dirá mais
meira Guerra Mundial, que trouxe consigo o re- Angola contribuiu para aprofundar o sentimento tarde 'o ministro - «tem sido subordinada desde o
forço dos laços mercantis entre a metrópole e as de crise vivido na metrópole em tomo da questão movimento de 28 de maio a uma acção verdadeira-
colónias. Tendo também como palco o Sul de An- colonial em meados da década de vinte. Em Lis- mente nacionalista, promovendo a mais estreita li-
gola e o Norte de Moçambique, o conflito provo- boa, correram então por várias vezes boatos da gação entre o Ministério e os governos coloniais,
cou naturalmente a remilitarizacão da administra- existência de um movimento separatista branco no entre os interesses da Metrópole e os das colónias
ção nas duas possessões, pondo :fun, nomeadamente, território angolano, «espontâneo ou provocado>,, que fazem parte integrante do património nacional,
à <scivilização>t
ensaiada por Norton de Matos como que teria em vista pedir a intervenção da Sociedade e precisam ser estreitamente relacionadas com a
governador de Angola, de 1912 a 1915. das Nações para o estabelecimento de mn manda- Mãe-Pátria, visto constituírem uns e outros os in-
A entrada de Portugal no campo de guerra eu- to, pondo fim à tutela de Portugal. Em 1925, a puc teresses da Nação inteira. O pensamento naciona-
ropeu contribuiu para salvaguardar o império, no blicação do relatório do sociólogo americano Ed- lista, na esfera económica, abraça hoje todos os paí-
momento das conferências de paz. Mas depressa o ward Ross, entregue à <,Comissão Temporária ses, e Portugal deixaria de compreender a sua acção
horizonte se carregou de novo, por efeito dos po- sobre a Escravatura» da Sociedade das Nações, on- e a sua função política, educativa e económica na
deres de supervisão sobre a actividade colonial de se acusavam as autoridades coloniais portuguesas colonização, se não promovesse por todas as formas
conferidos à Sociedade das Nações - poderes que, de práticas de trabalho forçado, próximas da escra- a estreita ligação daqueles interesses, daqueles ob-
em princípio limitados aos antigos donúnios ale- vatura, veio aumentar a inquietação, tomando-se jectivos, e da nacionalização do vasto Império Co-
mães agora colocados sob mandato, tendiam a es- por vezes o documento como uma peça de uma lonial Português» (Belo, 1927: 23). Na prática, esta
tender-se aos restantes territórios ultra1narinos, conspiração internacional para desapossar o país do intenção de «nacionalizar►) o in1.pério traduziu-se
entendendo-se que as respectivas metrópoles os seu império, em benefício das potências «insatisfei-
deveriam desenvolver e civilizar em nome e em tas» - como a Alemanha e a Itália - que deseja- Número especialde A Seara Nova, sobre o problema
prol da comunidade internacional. Tanto bastou riam expandir-se em África, ou da União Sul-Afri- colonial (BN)
para fazer renascer em Portugal o fantasma da ex- cana, cujas pressões para o controlo de Lourenço
propriação do império, a pretexto da incapacidade Marques se mantinham.
para cumprir essa missão tutelar. Foi para combater Capa de Calígula em Angola, de Cunha Leal, 1924 (BN) Reais ou imaginários, estes perigos suscitaram
esse perigo que em 1920 se criou o regime dos al- em Portugal um amplo «Movimento para a Defesa
tos-comissários para Angola e Moçambique, dota-
dos de vastos poderes e de grande autonomia de
decisão (conforme recomendação de Afonso Costa,
enquanto chefe da delegação portuguesa às nego-
se deveria acrescentar uma «intensa emigração de
elites», como «chefes e guias indispensáveis ao
bem-estar, à grandeza e ao prestígio da Pátria». Só
das Colónias>, que, promovido pela Sociedade de
Geografia de Lisboa em finais de 1924, vai integrar
sectores muito diversos das elites políticas, desde o
grupo da Seara Nova a9s monárquicos e integralis-
EIRANOVA '.NÚMERO ESPECIAL
assim se tomaria possível levar a cabo a «missão his- ( 36 PAGINAS)
ciações de paz de Paris, em 1919: if. Ferreira, 1992: tóric1)' que Portugal era chamado a <,desempenhar tas da Cruzada Nun'Alvares, passando pelas Liga
33). Para a possessão da costa oriental, segue Brito em Africa», fazendo de cada colónia o «prolonga- Operária e Académica e por órgãos de imprensa
Camacho, que tem como preocupação central as mento da nacionalidade, brilhante receptáculo da como o Diário de Notídas e O Século, entre outros.
relações com a União Sul-Africana, cujas preten- nossa língua, campo vastíssimo à expansão da nossa Como ponto de união, a ideia de que a «missão de
sões ao sul da colónia e ao porto de Lourenço civilização [... ] abençoada pelos povos primitivos Portugal no mundo)), a sua <,finalidade histórica>, es-
Marques em particular eram bem conhecidas. No- que a História nos entregou para os elevarmos até tava na acção colonizadora, sendo o império por
meado para Angola, Norton de Matos leva consigo nós» (idem: 23-29). A longo prazo - medido em isso essencial à própria sobrevivência da nação -
um plano mais ambicioso, voltado para uma rápida séculos - essa população de colonos brancos, ins- uma ideia partilhada nesta fase pelas elites políticas
modernização do território, que passaria pela talada por núlhões em Angola, acabaria decerto por portuguesas, quase sem excepção (valendo esta re-
reorganização da sua administração, substituindo fundir-se com os negros autóctones, fazendo surgir serva sobretudo para alguns militantes anarquistas
as capitanias-mores, de carácter militar, por cir- uma <mova raça [...] mais adaptada às condições de que se exprinúam em A Batalha: cf. Castro e Gar-
cunscrições civis; pelo fomento da sua economia, vida do grande continente africano e capaz de au- cia, 1995). Não sendo novo, o tema ganhara ainda
designadamente pela construção das infra-estruturas n1entar enormemente a civilização humana ►,; no maior peso após o descalabro da utopia republica-
no âmbito das vias de comunicação (caminhos-de- imediato, porém. - e «pelo menos durante o largo na, que terá reforçado o sentimento de frustração,
-ferro, estradas, portos, telégrafos) e da habitação período t;m que o povo português tem de levar a de falha irremediável na construção do Estado-
para funcionários e colonos; e pela extinção das cabo na Africa a alta missão que lhe marca a sua fi- -nação, compensado pelo refúgio em concepções
formas de trabalho forçado, próximas da escravatu- nalidade histórica» -, as duas raças não deveriam de teor providencialista (Ramos, 1994: 593-595;
ra, ainda prevalecentes na colónia (Matos, 1926). misturar-se, sendo «rigorosa e severamente contra- Cascão, 1992) •1' ~"" o _l$.#0'&$-TI: :"· -Íft:"N•;l{!:"U."t. ,,_;,,,,;,"
-""~",tl,io;-U..<!o~'~",;.·.i,,,-4~~
Na concepção de Norton, seria ainda essencial des- riados)) os cruzamentos entre elas, até que dimi- Contribuindo para aproximar entre si sectores
viar a emigração portuguesa para África, colonizan- nuísse a distância entre «civilizados>)e <sprimitivos)) políticos muito diversos, reunidos na mesma des-
do os donúnios do ultramar com <,famíliasde traba- (idem: 230-231). Se excluirmos a ideia da «fusão))ra- crença em relação à capacidade do regime para de-
lhadores da terra e trabalhadores do mar reunidos cial, aliás remetida para um futuro longínquo, esta- fender e fazer prosperar o império, a crise colonial
em pequenas povoações)) que fom1.ariam os <-cen- mos afinal próximos das concepções que vimos de- de meados da década de vinte inscreve-se no qua-
tros rurais, industriais e urbanos do futuro>,, a que fendidas no início do século por Paiva Couceiro. dro da desagregação da I República vivido a partir
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CONFIGURAÇÕES POLÍTICAS
,..
no reforço da competência do ministro e na altera-
ção do regime dos altos-comissários, cujas atribui-
ções passaram a ser fixadas caso a caso (Bases Orgâ-
territórios ultramarinos, ainda por definir. Sim,----
plificando, podemos distinguir duas posições em
confronto: a que defendia o desenvolvimento au-
SITUAÇOESCOLONIAIS: N
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