Psicanálise Polética 81 - MD Magno
Psicanálise Polética 81 - MD Magno
Psicanálise Polética 81 - MD Magno
editora
é uma editora da
Presidente
Rosane Araujo
Diretor
Aristides Alonso
Preparação do texto
Potiguara Mendes da Silveira Jr.
Editado por
Rosane Araujo
Aristides Alonso
M176p
Magno, M. D. (Machado Dias), 1938-
Psicanálise e polética : seminário 1981 / M. D Magno ; preparação do texto:
Potiguara Mendes da Silveira Jr. – 2. ed. - Rio de Janeiro : Novamente, 2009.
562 p. ; 16 X 23 cm.
ISBN – 978-85-87727-47-3
CDD- 150.195
Primeira Parte
Auto Nomia
2. BOTEM UM TATU
Totem e Tabu: lógica da produção do Simbólico – “Ambivalência” da Lei: aquilo que ela
proíbe é seu fundamento – Entendimento da “ambivalência” da lei: a negação da função
fálica indica a exceção que funda a regra – Crítica à distinção antropológica entre o fato
“natural” da consangüinidade e o fato “cultural” da aliança – Remitificação de Totem e
Tabu: o mito do Macaco Maluco – Psicanálise: aliança significante; Antropologia: aliança
de parentesco – Articulação do conceito de creodo à lógica da estrutura – Cultura como
um caminho necessário (creodo) do Simbólico – Distinção entre ato de fundação da Lei e
enunciado legal – O enunciado legal é afiançado pela enunciação da Lei.
35
3. TARZAN DA SILVA
Apresentação da estória de Tarzan, de Edgar Rice Burroughs – Proposição de três
mitos a partir da estória de Tarzan – Mito da horda primitiva – Mito da instalação do
simbólico – Mito da passagem de animal a humano – Análise da emergência do falante
– Diferença ôntica como marca constitutiva do falante – Falta real no imaginário e
fundação do simbólico como artifício – “A cultura não é o simbólico” – O inconsciente
e a hipótese do simbólico puro.
55
5. ÉDIPO EM CALÚNIA
A questão edipiana não se reduz à cultura – Resumo comentado de Édipo Rei – Incesto
é o que permite transação – A função paterna instala a impossibilidade do incesto
como relação – Conseqüência da função paterna: não-totalização das transações –
Pregnância imaginária da cultura – Assunção da função paterna como dissolução da
cultura – Função paterna e ato-poético.
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6. O GENE E TAL
Questionamento da tese antropológica da oposição Natureza/Cultura – “O simbólico
surge como artifício que vem em lugar daquilo que falta” – Fixões ou efeitos da função
simbólica – Distinção entre a função legal (Lei) e suas possibilidades de regulação na
cultura – Estrutura da metáfora e da metonímia em Lacan – Metáfora paterna é condição
de regulação – Metáfora como produção (Lei) e como repetição do produzido (cultura)
– Vocação genitiva e genital da cultura: ordem de parentesco como metáfora da
reprodução sexuada – Três níveis de castração como modalidades da função legal:
proibição de totalização; proibição da eliminação da diferença; proibição do incesto.
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8. ÉDIPO E OSOME
Dupla articulação da cultura a partir da Lei – Ciclo tebano como explicitação da Lei:
Nome do Pai, diferença sexual, laço social, ordem de parentesco e regulamento de
Estado – Pressão superegóica de um enunciado legal.
169
9. ANTI GONA
Duas posturas da Lei: sociedade (associação dos falantes) e cultura (sintoma) – Antígona
é o regime da diferença – Indiscernibilidade entre instauração do social e instauração
da cultura na emergência da Lei – Lógica dessa indiscernibilidade a partir das fórmulas
quânticas da sexuação – O real é o fundamento ético da Lei – O impossível não
podendo ser dito (Lei), só se diz como interdito (lei) – Antígona é a questão da diferença
entre Lei/Desejo e lei.
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Segunda Parte
Corte Real
12. E/ -SEXÃO
Retomada da análise d’As Meninas – Descrição dos quadros Apolo e Mársias e Atena e
Aracne reproduzido n’As Meninas – O quadro As Meninas é construção de espelho e
sua explicitação – Operação viravesso do quadro – N’As Meninas luz é pura superfície
de espelho – Consideração da diferença sexual a partir d’As Meninas – Sexo da obra
de arte é neutro.
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ANEXO
ENSINO DE MD MAGNO
555
Não me sonhem nem me outrem
AUTO NOMIA
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Psicanálise & Polética
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Não me sonhem nem me outrem
1
NÃO ME SONHEM NEM ME OUTREM
Já é a segunda vez que esta canção de Chico Buarque vem como epígrafe
de meu Seminário. Segundo o rit-pareidi da cultura de massas, ela talvez já esteja
velha, é natural. Entretanto, insisto na sua absoluta atualidade. Não é porque alguns
senhores ou senhoras resolvem pronunciar, ou melhor, promover, certa “abertura”,
que tenho, para ser simpático ou equânime, que perder minha memória. Não tenho
que ter nenhuma equanimidade. Não deve promover nenhuma abertura quem não
promove imediatamente, no mesmo ato, o fechamento. A abertura, a Real, aquela
que nos distingue e nos aflige, não precisa de nenhuma promoção – e muito menos
publicidade. Ela está, sempre esteve, estará sempre aberta – e foi isto o que nos
demonstrou o velho “pai” Freud – enquanto houver seres falantes. Com a psicanálise,
Freud não veio promover nenhuma abertura, veio apenas, mais uma vez, apontar
para ela, dar testemunho de seu Real, desacobertar sua memória, isto é, comemorá-
la. Promover a abertura é, primeiro, supor ser capaz de poder escamoteá-la, criando
o fechamento. É, portanto, o auge da pretensão, o ápice da soberba, se não o
cúmulo da barbárie. A barbárie, meus caros, não é senão esta pouca ou nenhuma
vergonha de se tapar o sol da abertura, abertura real, com a peneira das tramas de
politicagem. Ser bárbaro é não ter vergonha na cara: a Ver-gonha, as Ver-gonhas,
aquelas descritas por Freud. Os homens, ou seja, os chamados seres falantes, os
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Psicanálise & Polética
falesseres, têm vergonha na cara: portam esta hiância, esta greta, esta brecha, que
os obriga a não serem canalhas – a não se tomarem pelo Outro.
Há seres vivos que não têm vergonha na cara. Estes, nós chamamos
de animais. Não são animados por nenhuma vergonha, porque se animam é
pelo imaginário. Os animais são assim. Por isso, posso tratar deles, mas não
faço com eles nenhum trato – e nem com seus irmãozinhos bárbaros, que não
têm vergonha na cara.
Nós outros, os falantes, temos, com nossa vergonha, a nossa rachadura:
esta abertura do real, a nossa RACHA-DURA, essencialmente dura, de dureza
e de duração insuperáveis. A referência de nossa Ver-gonha é esta rachadura
e não nenhuma, qualquer que ela seja, linha-dura de moralismo inconseqüente,
de aspiração totalitária, ainda que espelhada por fascismos mais ou menos duros,
mais ou menos moles – até, às vezes, “simpáticos”, “alegres” ou “desejosos”.
A nossa dura racha, o real do nosso furo, da nossa falta, em todos os sentidos
da palavra, é disto que se trata.
* * *
Daí que, ao iniciar-se o Seminário, com o tema que agora temos, teimo em
reafirmar a falta e colocar a sua essência de ausência como mastro, isto é, Falo.
O tema deste ano, tal como foi divulgado nos cartazes, é “Psicanálise e
Política”. Dizem muitos e exibem por aí, os órgãos da cultura de massa, com a
cretinice que os caracteriza, que, por causa de certas abordagens deste tema, a
psicanálise brasileira, bem tropical, carioca, está em crise. Dizem, também,
alguns propagandistas da subsunção da psicanálise à política que há crise da
psicanálise por toda parte, citando até a Escola Freudiana de Paris, sua dissolução
e alguns dos sintomas subseqüentes. Posso cabidamente afiançar a vocês que
não há nenhuma crise da psicanálise... a não ser no sentido mais radical do
termo: a psicanálise não está nem nunca esteve em crise; ao contrário de nosso
amigo Eduardo Portela, ela é a crise. Quem está em crise, graças a Deus e por
causa mesmo da psicanálise, são alguns analistas, supostos, e junto com eles,
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Não me sonhem nem me outrem
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Psicanálise & Polética
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Não me sonhem nem me outrem
ser um distanciamento, uma escansão, agindo com referência neste corte, nesta
borda, e fundamentando-se numa ética que, ao mesmo tempo, aborda e transborda
esta borda que é, afinal, significante. O significante do seu corte, o corte de sua
interminável escansão, o significante e sua infinita ou infinitiva transação. Abordar
esta borda é estar na transação significante. Em suma: uma Polética da Borda
no máximo e, por mera proporção, uma política de bordel. Mas política do bordel
apenas na medida em que seja nada mais do que um apelido para a nossa Polética.
Quando repetimos, a diferença fonêmica é irredutível e, portanto, é preciso
sustentar a diferença. Daí termos dado a esta primeira sessão o título tomado de
um poema de Fernando Pessoa. Mas como vamos pedir que “não me sonhem
nem me outrem”, justamente quando o que outrem mais faz é me sonhar e me
outrar, é um movimento espontâneo? Talvez se possa pedir “não me sonhem”
para não congelar minha diferença numa aparência, numa imagem que é produzida
e requisitada pela demanda do sonhante. “Não me outrem”, não que eu possa
exigir que não me tomem por um outro, o que, aliás, é o mais corriqueiro para o
falante, mas não me tomem pelo Outro – o grande Outro –, fazendo de mim
referência radical de uma totalidade que me encerra e coagula ao mesmo tempo
que me congela também. Ora, o canalha é aquele que se toma pelo Outro, mas
aquele que toma um outro pelo Outro é o protótipo daquele que chamamos um
babaca. “Não me sonhem”, ou seja, não me aprisionem numa configuração
imaginária, “nem me outrem”, ou seja, não sejam, por favor, tão babacas a ponto
de me transformarem num canalha. Aliás, é o que pode dizer a própria psicanálise:
“Não me sonhem nem me outrem”. Ninguém pode ser o Outro de um outro, pois,
assim, cada um poderia ser eventualmente o Outro de um que é, também, o
Outro – e, simplesmente, não há o Outro do Outro.
* * *
21
Psicanálise & Polética
que um ame o outro e o outro ame o um, pois isto é com freqüência – exceto,
talvez, nalgum encontro, e mesmo dentro de um encontro – o que menos
acontece. Recíproco quer dizer que um ama Outro e o outro também ama
Outro. O Outro, é claro, seguramente, não é um. O amor, portanto, pode não
ser também, ele próprio, o Outro e, por não ser o Outro, vige na mesma
impossibilidade que há na relação sexual.
A relação sexual é impossível, diz a psicanálise e o demonstra. E
impossível inscrever-se a relação entre os sexos por enunciados. A relação
sexual é impossível eqüivalendo a formular o que se enuncia como “o real é
impossível” impossível de ser escrito, é claro... Ora, se Freud nos trouxe uma
ética centrada no real, trata-se, então, de uma ética centrada no impossível, do
impossível da relação sexual, do impossível de ser inscrito na estrutura. E isto
nada tem a ver com as éticas centradas num Saber e que, por isso mesmo, são
centradas na impotência e não na impossibilidade: impotência do saber em
estabelecer a relação sexual.
Centrada nesse impossível, na excentricidade, na borda deste furo real,
enfim, é que vigora a Lei. A Lei que, como vimos, poderia ser enunciada com: “a
relação sexual é impossível”, “o real é impossível de se inscrever na estrutura”.
A Lei é Desejo. Não há oposição, há, segundo a psicanálise, o binômio: Lei/
Desejo. Quando Lacan repete, com Espinosa, que a essência do homem é o
desejo, está também repetindo, com Freud, que a essência do homem é a Lei. O
que há, então, de universal para o ser falante é o binômio Lei/Desejo. Este é o
seu fundamento e o que estatui sua diferença. A Lei com a sua outra mesma
face (unilátera) do desejo são as estruturas do simbólico, o qual é aquilo que vem
em suplência do impossível real. Daí eu poder dizer que Lei/Desejo é o universal
do falante e, talvez, seja só o que se possa colocar, para o homem, como universal.
Aqui entramos pela questão da interdição do incesto, outra vez, na medida
em que a única coisa que há de universal na questão do incesto é a Lei que lá
vigora e não o anedotário a respeito do incesto. E mais, nem mesmo o incesto a
não ser como Lei. Talvez, mesmo num incesto, a interdição só vigore na medida
em que se possa comprová-la como Lei. Esta é uma questão que quero colocar
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Não me sonhem nem me outrem
como central do nosso trabalho, este ano. Este universal, a Lei, é pura diferença,
remissão portanto ao impossível talqualmente em “a relação sexual é impossível”.
Esta Lei é a diferença que, em seu agir, não gera senão diferença, exceto que
toda e qualquer diferença se universaliza na Lei, em sua remissão à Lei como
pura diferença – mas são diferenças, estritamente diferenças. Não sabemos o
que seja a Lei. Talvez não possamos saber. Mas sabemos que ela gera diferença
indefectivelmente. Por isso temos que supor que ela é a nossa diferença, em
todos os sentidos. A Lei é a nossa diferença. A Lei, repito, Desejo.
Estamos falando da Lei com L maiúsculo. Se supus a possibilidade do
universal por remissão a ela, ela pode ser universal e eu posso dizer: “A Lei”. A
Lei não são as leis, os regulamentos, exarados no seio da cultura e designadores
dos conjuntos, ou melhor, de determinados grupos de falantes. A Lei a que estamos
querendo nos referir é essa borda do real quando se pode dizer que a relação
sexual é impossível, que o Real é o impossível, o impossível de ser inscrito. O
referente da Lei enquanto tal é o furo do real enquanto impossível. Só podemos
sacar o referente emergente no ato de formulação da Lei, porque o real é impossível
de se abordar. A borda já é este ato significante de formulação da Lei. É o instante
da enunciação que cai imediatamente em enunciado. Neste ato aí, de travessia, é
que se poderia colocar um referente para a Lei. Todas as produções do ser
falante vêm apenas em suplência ao impossível exarado na Lei. O falante produz
tudo isso que produz como mera suplência a ser impossível para ele estabelecer a
relação sexual. Toda lei, portanto, é meramente discursiva, toda lei no sentido de
“as leis”, os regulamentos escritos nos códigos – códigos que são línguas.
Dizer que a relação sexual é impossível é afirmar que dois sujeitos, dois
falesseres, ainda que sejam um homem e uma mulher, não podem fazer UM,
isto é: H + H’ < 1. Seja qual for o sexo destes falantes eles não são UM. Não
havendo a relação, todo falante é solitário por este lado, mas, por outro, ser
solitário, não poder estabelecer relação, não significa também ser UM porque
lhe falta alguma coisa. Tanto é que ele tem que somar com outro e, nem assim,
consegue dar UM. Mesmo para o falante isolado a unidade não é possível, em
função do desejo. O sujeito não é em nada, de modo algum, igual a UM. Pelo
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Psicanálise & Polética
contrário, ele é essa escansão que existe entre um e outro significante – mera
escansão. Assim, a Lei pode ser enunciada talvez como: “A unidade do falesser
é impossível, é impossível fazer UM”. Pode-se fazer mais um, isto está na
reprodução sexuada do falante. Mesmo que um homem se junte com uma
mulher em vocação reprodutiva, não só eles não somam UM, como não
produzem Um, produzem apenas, e por acaso, mais UM.
A Lei também pode ser enunciada como: “Há o desejo do Outro”. Por
outro lado, a solidão, a plena solidão, é impossível. É um solitário que tenta ser
solidário e cuja solidão é impossível. Solidariamente ele não soma UM e
solitariamente ele não consegue ficar em solidão. E tão impossível a solidão
quanto a união, ou seja: “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Não é
porque ninguém queira. E porque é assim. Não é possível senão a transação. É
possível, mas nunca dá UM.
Sigamos, então, estes caminhos da Lei enquanto caminhos do desejo e
continuemos perguntando por esse universal. Se a Lei se estatui por sua referência
ao impossível real, ela pode ser enunciada como relação impossível, sexual ou
qualquer outra, para o falante, inclusive a relação entre significante e significado.
Então, a Lei é a diferença, a diferença na sua origem, em cada momento que ela
brota. E é dela que se efetua qualquer diferenciação. Daí podermos enunciar que
qualquer diferença é aceitável pela Lei. Qualquer dife-rença eqüivale a qualquer
outra. Daí, talvez, que haja um certo lema de verdade: “Todos os homens são
iguais perante a Lei”. Só que têm uns que são “muito mais iguais do que outros”,
como dizia George Orwell... Entretanto, essa igualdade que é uma equivalência
enquanto diferença diante da Lei é uma equivalência entre qualquer uma e qualquer
outra diferença, mas não todas... Deixemos para mais adiante a questão do que
terá a Lei a ver com o feminino. Não posso dizer que a equivalência entre as
diferenças, entre qualquer diferença e qualquer outra diferença, diante da Lei,
seja para todas estas diferenças. Não posso dizer isto logicamente, e daí decorre
uma postura de universalização da Lei que me dá fundamento ético.
Não posso falar de todas as diferenças, pois, se pudesse, teria a totalidade
do Outro fechada. Se eu pensar por esta via, que seria uma via do feminino, nem
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Não me sonhem nem me outrem
* * *
Existe uma diferença que participa, talvez, de tal modo da diferença, que
se embute de tal modo no real, que ela não pode ser nem metaforizada, às vezes,
em primeiro grau. Se um diferente pratica sobre outro diferente – diferente com
aquelas diferenças que a Lei produziu pela sua ação – o assassínio, ele abole a
Lei. Tenho aqui, por exemplo, uma série de diferenças, todas iguais perante a Lei,
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Psicanálise & Polética
e uma delas pratica o assassínio de pelo menos uma diferença. Este ato corresponde
a escapar da Lei, e aboli-la, porque se todas as diferenças se eqüivalerem diante
da Lei, todas são aceitáveis. É possível estabelecer uma convivência conivente
entre as diferenças, mas uma diferença que assassina outra, acabou de dizer que
as diferenças não podem ser justificadas perante a Lei. Ela aboliu uma diferença
e, com isto, com este ato, aboliu a Lei. Não pode nem ser dita a diferença que
aboliu as outras porque ela não consegue se dizer a não ser aniquilando a Lei que
dá segurança a ela. Ela é excluída, foracluída necessariamente do campo da Lei.
Ela é excluída da fala porque se ela se diz, no que se diz, no que se apresenta, ela
exclui a diferença, nem que seja sobre uma única diferença. Portanto, ela aboliu a
Lei e, no que ela aboliu a Lei, se aboliu. Então, ela não consegue nem se dizer. Ela
é da ordem do foracluído, do real. Não é tratável pela Lei. E indizível pela palavra.
Toda metáfora que pre-tenda tangenciá-la é abominável de um certo modo, é
pecaminosa. Não pensem vocês que não existe o pecado, o pecado existe. Se um
diferente pratica sobre outro diferente o assassínio, ele abole a Lei.
Se isto é verdadeiro, posso sugerir que o primeiro artigo da Lei, a
decorrência deste raciocínio aí, é a exclusão do assassínio, a repressão, portanto,
do assassino, para que a Lei possa vigorar. O assassínio está excluído da Lei,
ele não pode ser proferido jamais. Quando o assassínio é praticado, ele cai
numa ordem de Real tal que é impossível dar conta dele, ele se acorda fora da
Lei. O assassino, o sujeito suposto autor do assassínio, o máximo que pode ser
é reprimido – antes, é claro! Depois, não tem mais jeito. Como se pode reprimir,
dominar, um assassino? E muito menos o assassino que escapou ao ato de
assassinato? Talvez há que comparecer uma mestria do assassino que há em
nós, o domínio deste assassino para que ele não venha abolir a Lei, e para que
a Lei possa vigorar. A Lei só pode decretar o domínio do assassino. Nada mais!
Não, de modo algum, o seu extermínio, porque o extermínio do assassino, ainda
que hipocritamente legal, é um assassínio. A Lei entraria em contradição
imediatamente, isto é, eliminaria a si mesma. Ela praticaria o mesmo ato do
assassino, ainda que fingidamente assentada em seu valor de Lei. Estou dizendo
que a pena de morte é abominável, uma lei indecente. Ao invés de ser um
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Não me sonhem nem me outrem
enunciado que se refere à Lei, ela se refere à mesma barbárie que cai no real.
Então, não se pode dizer nada. A pena de morte não é legal, em lugar nenhum,
mesmo que ela seja comandada pela igreja, como o foi tantas vezes.
Acho que há um primeiro artigo da Lei viável por esta seqüência: uma
Polética que tenha a ver com a Psicanálise. Ela pode se referir não só no estrito
campo do discurso psicanalítico enquanto tal, em suas práticas, nas suas
elaborações teóricas, porque aí temos necessariamente referência à Lei, mas
nas suas transações com o chamado “mundo”, com o “mundo da política”. E
esse princípio é intocável: a psicanálise não pode jamais compactuar com
qualquer lei, legislação, ou qualquer atitude política, por mais liberal, de “abertura”,
que inclua a barbárie, o assassínio... Freud jamais jantaria, como diz um amigo
meu, com Hitler. Embora Hitler tenha querido jantar o Freud.
* * *
27
Psicanálise & Polética
os enunciados legais, contestá-los, sem com isto, cair fora do regime da Lei.
Isto é importante na diferença que tentei estabelecer entre as perversões, e o
que chamei de perversão-propriamente-dita, a perversidade. O feminino não é
o angélico, de modo algum. O que a estrutura, a lógica freudiana sobre a
diferença dos sexos, vem colocar é o homem enquanto universal, de que todas
as mulheres fazem parte. As mulheres são homens diferentes, porque estão
/ ). Portanto, elas
divididas entre a função fálica e o que falta no Outro: S (A
estão absolutamente dentro da Lei, mas não-todas. Uma mulher está debaixo
da Lei, mas não-toda, ela desliza facilmente. As feministas ficaram
chateadíssimas quando Freud disse que as mulheres são menos apanháveis
pelos sistemas morais do que os homens. Elas deslizam em relação à Lei, o
que não significa que não estejam debaixo da Lei, pois não são anjos.
* * *
28
Não me sonhem nem me outrem
Freud, só que há muita coisa que foi inventada por Jacques Lacan e por Freud
e que lá não está. Tudo que eles dizem a respeito desse desejismo, desejismo
militante, como diz o Coronel Odorico Paraguassu, de Sucupira, é simples-
mente escamoteamento do desejo enquanto Lei. Por outro lado, há aqueles que
pensam abolir o desejo, entrar tudo numa certa lei que não seria o desejo.
Então, nosso mastro de regulação vai ter que ser esse binômio Lei/Desejo.
Temos que escutar nesses movimentos o mínimo a que se reduzem para
fundamentar um pouco esta Polética. Seria bom tentarmos escutar nesses
movimentos ditos libertários o que têm de fascistizantes. Certamente têm. O
movimento feminista, por exemplo, nas militâncias que vemos por aí, fica
chateadíssimo com Fellini quando ele diz isto claramente. Confundem a liberdade
das mulheres, que só pode se referir à Lei/Desejo, com “sapatice”. É o movimento
sapatão, isto se demonstra com maior facilidade, quando elas conseguem ser
mais machonas do que os machos... Não estou xingando, podem trazer esta
diferença que a gente descobre isto lá dentro com a maior facilidade...
Talvez possamos colocar como núcleo deste trabalho a consideração da
cultura enquanto tal. Não é forjar nenhum culturalismo que vai explicar, mediante
as relações culturais, o comparecimento deste ou daquele significante de base,
ainda que sintomaticamente explicitado. Não é isto que está interessando, embora
seja importante. Já falei, por exemplo, que seria importante para a cultura brasileira
conseguir destacar seus sintomas, mas, neste caso aqui, não se trata disto. O
que me interessa é perguntar: que diabo é isso, a cultura? Está lá nas antropologias,
etc., que o homem é ser cultural, o universo do homem é a cultura. Pergunto eu:
será? Quer me parecer que não. O universal do homem é o simbólico e esta
referência à Lei está esteada na sua referência ao real. É preciso questionar
que o homem seja necessariamente um ser cultural e fazer esta crítica à cultura,
sempre centrada no binômio Lei/Desejo. E, nesta crítica, talvez denunciarmos,
dentro da cultura, os fascismos os menos suspeitos que devem aí estar.
A psicanálise enquanto Polética talvez pudesse ser definida como um
anti-fascismo. Ela tem a inconveniência de conceber, de pôr em evidência,
mesmo dentro de turmas ditas, às vezes, pertencentes a seu campo, estas teorias
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Psicanálise & Polética
e idéias ditas libertárias que são, na verdade, do mais arraigado fascismo. Daí,
sempre se preferir que ela se cale ou que troque de discurso, fingindo que
continua a mesma. Queremos, também, fazer a consideração da psicanálise
com sua Polética como possível dissolução da cultura. E se conseguirmos tudo
isto, talvez possamos chegar naquilo que eu chamaria, e que já indiquei ano
passado como DIFEROCRACIA. Até mesmo a democracia pode ser a ditadura
da maioria. Não que queiramos criar uma diferocracia como ideologia, o que
seria uma estupidez igual, mas sim, esta Polética da psicanálise com o
pensamento de uma diferocracia, que é o pensamento da justiça sobre as
diferenças, mas não todas: é proibido matar. Aquelas moças lá de Minas Gerais
escreveram a frase errada: “Quem ama não mata”. Outro dia eu disse que
talvez pudesse ser: “Quem pensa não mata” – Mas, radicalmente é: “Quem
fala não mata”. Quem ama tem uma grande vocação para matar. Aí é que
escorrega o feminino. Escorregar pela ladeira do assassínio não é assassinar.
Quando digo “uma” mulher, estou me referindo às fórmulas quânticas
da sexuação. Lacan já disse: “É-se homem quando se deseja, é-se mulher
quando se ama”, ou seja, quando se aspira a um certo objeto. Por isto mesmo
que homem não chora. As pessoas acham um absurdo, vejam que machões!,
dizem que homens não choram... e é absolutamente verdadeiro, homem não
chora. Não tem machismo nisto, só mulheres choram. Alguém já viu um homem
enquanto tal chorando? Ninguém chora por desejo, nem chora de dor, você
berra, esperneia, grita, blasfema, mas você não chora. Você só chora de amor.
E no feminino que se chora. Só que os idiotas pensam que quem tem pênis não
chora, o que é muito diferente. Então, a indicação desta diferocracia como um
modo de operação desta política da psicanálise não há, porque é uma Polética,
ou seja, como um modo de abordagem do bordel.
* * *
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Não me sonhem nem me outrem
se abole. Esta diferença não é o real. Ela tem a ver com o real como qualquer
diferença. Ela é uma diferença como qualquer outra – enquanto diferença posso
equivalê-la a qualquer outra –, mas a Lei não pode igualá-la às demais diferenças
porque ela abole a Lei. Este é o verdadeiro incesto, que é impossível de ser
praticado sem abolir a Lei. O incesto é o impossível, por isto é que ele é proibido,
já falei zil vezes. Não é que seja impossível você chegar ao ato do incesto, ao
assassínio, mas, uma vez que age, que o ato se dá, imediatamente não posso
mais nem tratá-lo no regime da proibição, porque ele escapa e cai no real. O
incesto, cometido, cai no real.
Por exemplo, se argumentarem que, na antropologia, o antropofagismo
não é negação de uma diferença mas uma absorção da diferença para que o
sujeito possa continuar vivendo dentro daquela cultura, poderíamos dizer que é
assim como a tortura: eu torturo você e absorvo as diferenças que você deixou
de me dar. Se a antropofagia é decorrência de um assassínio, o assassínio veio
antes, é barbárie. Depois dessas leituras de Levi-Strauss, começamos a pen-
sar que os índios são tão inteligentes, tão civilizados... Talvez, até, o termo
possa ser “civilizado”, mas acho que nós somos é tão bárbaros quanto eles.
Toda regressão é suspeita. Este culto da natureza, além de ser uma grande
idiotice, é uma regressão suspeita. Todo mundo agora está no cultivo da natureza,
alimentação natural, habitat natural. Que natureza? NÃO HÁ NENHUM
NATURAL PARA O FALANTE. Aqui no Brasil é uma festa, basta aparecer
um partido ecologista, um “Fürher”, que já tá o pessoal todo pronto... Se começo
a dar desculpas culturais tipo sociológicas, tipo: isto é uma “absorção da
diferença”... absorção da diferença comendo a carne? Por que não come a
palavra do outro? Por que não deixa o outro falar e come a palavra dele, que é
a diferença? A cultura só come pessoas, e no pior dos sentidos. Não é o caso
da antropofagia de Oswald, que é uma antropofagia da palavra.
Será que algum assassínio é diferente, é diferente do ato de querer
calar a diferença do outro? Se argumentarem que não se cala definitivamente
a diferença, que ela comparece depois em outro lugar... entretanto, no ato
do assassino, a intenção não é de calar definitivamente a diferença do outro?
31
Psicanálise & Polética
* * *
32
Não me sonhem nem me outrem
Gente dita lacaniana, que escreve textos por aí, confunde Lei com cultura,
confunde a Lei com as legislações em vigor. Como o perverso é um cara que
parece ir contra a lei, você faz alguma coisa contra o código tal, você é um
perverso! O perverso, no sentido que dou, o da perversidade, é aquele que
justamente assassina, que quer obnubilar a lei. Isto existe, é estrutural. A
estrutura da perversidade é diferente da perversão, a qual, segundo Freud e
Lacan, é, textualmente: a essência do homem. É a essência do homem enquanto
père-version, que está na ordem da Lei, ou seja: a diferença que cada um
porta, que tem o direito paterno de apresentá-la e reforçá-la diante de todos.
Mas a tal perversão, que chamo de perversidade, esta é abolição do outro, é
não considerar a diferença que o outro porta.
Perverso quer dizer père-version no sentido das diversões paternas.
O pensamento fascistizante sempre escolhe algumas perversões para serem o
bode expiatório da sua perversidade. Quer dizer, cria um moralismo perversista
abolindo diversões que não são aquelas coincidentes com seus interesses. Ele
tapeia a todos, extrapola da Lei e diz que é o outro porque meteu na cabeça de
todos que aquilo é que é perversão.
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pensa com fixação nalgum acento certo... daí que me pareceu que intelectual
pensa com a bunda, o que não é a mesma coisa dizer que ele é um “bundão’ ...
Vamos com calma!
Pensar com as pernas é diferente. É preciso caminhar pela discussão,
pelo discurso, capengar num discurso, ir de tropeção no seu impossível, ser
deslocado para um outro, talvez, e assim por diante. A claudicância é congruente
ao sujeito, que não deixa de estar requerido em cada discurso, pelo menos na
disjunção que se apresenta em todos os discursos.
Sabemos que o falante, o homem, é chamado de bípede. Lacan chamou
os discursos, segundo suas formulações matêmicas, de quadrípodes.
Quadrípodes e não quadrúpedes. Os quadrúpedes têm quatro patas, mesmo
quando a gente só vê duas. Os falantes têm dois pés, e, se os discursos têm
quatro pés, quadrípodes, é porque são dois do mesmo que se supõe agenciar os
discursos, e dois de outrem, que o discurso necessariamente inclui. Daí o
desencontro e a claudicação do discurso.
* * *
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final, pois o texto completo é longo, pega toda a antropologia disponível no seu
tempo, discute uma série de coisas e vai cair necessariamente numa questão
que era urgente na antropologia da época: o totemismo.
Tudo isso é anterior a Lévi-Strauss. É, no entanto, aqui mesmo que
Lévi-Strauss vai entender a questão da interdição do incesto. Depois, atendendo
à fonologia de Jakobson, ele vai estruturar a chamada universalidade da
interdição do incesto sobre os trabalhos de campo que tinha disponíveis e, daí,
tirar toda aquela estrutura de parentesco que ele nos apresenta em Estruturas
Elementares do Parentesco.
* * *
...
O homem, em suma, o falante. Freud dá uma colher de chá aos
historiadores, dizendo que isto pode ter sido uma carga cristalizada. Mas, no
final, ele vai tentar mostrar isso como estrutura, quando diz que não se trata
desse fato, que o que se descobre no psiquismo do neurótico é o que está atrás
desse senso de culpa, são sempre realidades psíquicas. Não são realidades
factuais, quer dizer, quanto mais hostil o impulso contra o pai, maior será o
sentimento de culpa e maior será a reação moral, criando esse totemismo e
esse tabu. Ele insiste por diversas vezes e termina o texto dizendo que o que
importa é o ato. “No começo é o Ato”, diz ele citando Goethe.
...
A criança, o neurótico e o primitivo, não são tão salvos por ele como
quer a antropologia de Lévi-Strauss. Freud mostra que é nessa região aí que
esse totemismo está em efervescência.
...
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seja, “da consangüinidade para o fato cultural da aliança”. Se vocês têm alguma
prática dos textos de Levi-Strauss vão se lembrar que ele mostra a relação que
existe entre natureza da consangüinidade e os processos de reprodução, e,
depois, a organização da cultura sobre o fenômeno da aliança, que se basearia,
de certo modo como passe, como passagem, no fato cultural da consangüinidade.
Isso passa quinhentas vezes pela nossa leitura e não nos perguntamos: o que a
consangüinidade tem de natural para Lévi-Strauss poder dizer isso? Me parece
uma mosca na sopa do texto, que a gente tem engolido com facilidade...
Aliança, ordem de parentesco, nomeada e articulada, que funda a
cultura... e antes havia a pura consangüinidade “natural”. A única maneira de
a gente perguntar por uma consangüinidade natural seria perguntar aos bois,
cavalos, cachorros, para ver se eles sabem o que é isso. Em estado de natureza
a consangüinidade apareceria na fala deles. No entanto, essa pergunta pode
ser feita quinhentas mil vezes que não será respondida. Ou seja: quando penso
o dito fato da consangüinidade não foi preciso uma aplicação do simbólico, de
maneira que posso desarticular a reprodução, estudá-la, observá-la em
laboratório, produzir isolamento, de modo a poder traçar um quadro de
reproduções? De novo, então: o que é que há de “natural”? O que é que há de
“natural” na consangüinidade? Quando um sujeito falante diz que observa
fenômenos de consangüinidade em determinado animal ou nele mesmo, está
articulando simbolicamente um processo de reprodução e, para isso, teve que
ter todo um aparelho de divisão desses acontecimentos, de modo a saber que
cruzou este com aquele e deu aqueloutro... Isto porque, no esquema de
reprodução de onde ele teria a idéia de consangüinidade, numa espécie ou num
grupo qualquer, entre os cães, por exemplo, é a mistura de cachorro com
cachorro, e o máximo que ele poderá observar é que só dá filhote se for macho
com fêmea. É o máximo que nós podemos observar, se fizermos esse aparelho.
E preciso certo artifício lógico. O cachorro não observa nada. Ele simplesmente
tem sua maquininha etológica, seu imaginário de funcionamento que dá como
resultado, como efeito absolutamente racional, a reprodução. Portanto, quando
falo consangüinidade já estou no simbólico.
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Por outro lado, Freud, também, citou, naquela situação mítica lá, a
fundação da cultura, da sociedade, da arte, da religião... sobre um mito que
coloca como coisa primeira a proibição de matar. O que mostrei da vez anterior
é que esta proibição é congruente com a estrutura. Aí não se tem nenhuma
consciência, pois não é preciso nenhum superego alimentando isso, para, no
meu movimento inconsciente, estar interditado de matar. Consciência é um
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– que diz: “Tudo meu, tudo meu, ninguém tasca!”. Isto certamente por uma
configuração imaginária qualquer que lá está determinando esse
comportamento. Isso é perfeitamente legal, no sentido pequeno do termo. A
lei de funcionamento daquele bicho é regida por uma estrutura imaginária e,
portanto, ele está certo. “O macaco está certo”, como diz Jô Soares. Essa
violência e a tirania desse chefe, toma tudo para ele, todas as fêmeas,
açambarca todos os bens, só deixa os restos, e tira da jogada uma grande
parte dos indivíduos da espécie.
Agora, vamos fazer um mito um pouco diferente.
Eles eram tão animais quanto os outros, e, de repente, por um acidente,
do qual não se pode dar conta, acontece uma mutação genética qualquer e
aquele famigerado furo – de que tanto falamos aqui – comparece. Falta alguma
coisa na composição desse imaginário que retira toda possibilidade de um
imaginário, ainda que existente, dar conta dos comportamentos. Dar conta
daquilo que chamei de um autossoma, de um corpo que se reproduz mais ou
menos do mesmo tipo, mas cujos comportamentos não estão mais determinados
imaginariamente porque faltou alguma coisa – um furo no imaginário desse
bicho. Ele é um macaco como outro, porque é filho dele, tem a mesma aparência,
o mesmo corpo real fundado numa genética de reprodução dos corpos, mas
lhe falta uma completude imaginária. É algo como ele nascer prematuro, como
o bebê lacaniano do estádio do espelho... Isso pode ter acontecido por um
acidente genético ou pode ser que ele seja filho de um marciano, quer dizer, o
pai é “corno”, baixou um troço marciano, um negócio qualquer, fez uma
reprodução e criou uma mutação.
O que aconteceria então, no mesmo bando, na mesma horda, com um
grupo de indivíduos que, ao invés de serem macacos, simplesmente são macacos
malucos? Eles não têm um comportamento de acordo, porque não sabem que
comportamento ter. Não está escrito. Aí é que pintou o tal do real: não estava
escrito, nunca esteve, portanto, nunca estará! Falta lá no imaginário deles
um pedaço. Como, então, poderia se comportar um bicho desses, assim perdido?
A tirar pelo mundo dos loucos, do que é pensável como tal, eles copiariam, por
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legal diante das diferenças, ao mesmo tempo em que nasce, talvez, o fundamento
da propriedade. Não estamos falando de cultura, mas a propriedade é possível
de ser pensada e nasce necessariamente daí. A propriedade do meu sintoma
particular, a propriedade dos meus objetos privilegiados, e a discussão com os
outros quanto à divisão desses objetos.
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Começa, então, uma outra versão mítica. Agora eles estão lá em carne
e osso. Funcionaram da primeira vez como simbólico e agora estão lá simbólica,
real e imaginariamente perdidos na floresta. Este segundo mito, ou a segunda
parte do grande mito, digamos que seja, talvez, o mito da instalação do simbólico.
Desde o primeiro mito, o do barco, estamos vendo uma tentativa de fazer valer
a Lei, valer o simbólico no seio de uma barbárie. Agora, pelos acontecimentos
que virão, a regressão se torna ainda maior.
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que conseguiu matar alguém, fica calmo e deixa para lá. Os macacos todos
voltam com muito cuidado para ver se ele não está com raiva ainda, e continuam
a obedecer suas ordens. Kala vai junto. Ela não aceita a morte do filhote e
continua a carregá-lo morto no colo.
Os macacos resolvem, então, mais uma vez, atacar a cabana dos
Clayton. Lá estão vivos apenas John Clayton e o filho. Kerchak conduz o
bando para atacar a casa. Como Clayton está deprimido, debruçado em cima
de uma mesa, não presta atenção em nada, nem na criança chorando no berço.
Ele não percebe que os macacos estão chegando. Quando os macacos vêem
que está tudo muito silencioso, também chegam em silêncio, encontram a porta
aberta, entram sorrateiramente e atacam o Clayton, que não tem tempo de
pegar a arma. Matam-no e depredam a cabana. Kala, quando vê aquele bebê
vivo dentro do berço, joga lá dentro o filho morto e pega o outro para ela. Há
uma semelhança imaginária qualquer que permite que ela faça esta troca. Aí,
mais uma repetição: outra vez, no seio de uma indiferença animal, instala-se
um ser que porta a diferença simbólica. Imaginariamente, é filho de macaco
(porque parece), mas, por uma filiação estranha, exótica, que veio de fora, de
algum outro lugar, porta uma diferença ôntica qualquer que, certamente, vai
funcionar. Aí termina este segundo mito da emergência, da instalação do
simbólico num lugar onde ele não existia.
* * *
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entanto, portava a diferença por ter outra origem, por ter um momento
originário diverso.
Kala cuida de Tarzan como se fosse um macaquinho. E ele, que não
tem outra coisa para aprender a não ser a macaquice, mesmo cercado de
macacos por todos os lados, reage muito bem. Aprende o que lhe é oferecido
para aprender. Aprende o comportamento do bando: subir nas árvores,
acompanhar o bando, obedecer ao Kerchak... Não é a criança lobo, é a criança
macaco mesmo, aquela que ficou na cabeça de Darwin.
De repente, o mito apresenta um espelho. Ele já era mais crescidinho.
Trata-se de um espelho que não é toda a estrutura do estádio do espelho, é
uma apresentação parciária... Tarzan, de repente, é o patinho feio. Um dia ele
está brincando com o priminho dele, tem sede e, como faz todo animal, vai
beber água na superfície, onde ela está mais limpa e mais arejada. Quando
chega perto, junto com o primo, vê que o primo é lindo, todo peludo, olhinhos
pequeninos, e ele é feio, pelado, branquelo... O primo se parece com todos
aqueles animais belíssimos, inclusive com aquela que ele reconhecia como sua
mãe. Ele era horrível. O mito apresenta aí o momento em que ele vê que há
uma diferença entre ele e uma outra criança, ao mesmo tempo em que há uma
igualdade, porque são tratados como iguais. Então, há um momento depressivo.
Eles se reconhecem companheiros um do outro, primos, ao mesmo tempo que
há uma diferença que é depressiva: o outro que é normal, parece melhor –
normal que dizer “macaco”. Ele e o primo, neste momento, são atacados por
uma leoa. Ela avança sobre eles e, mais uma vez, eles apresentam uma diferença
imediata. É que o macaco, que funciona na base do instinto, dos comportamentos
imaginários programados, faz o que deve fazer: reage ao ataque da leoa, que o
mata e come. Mas Tarzan, quando vê a situação, pula para dentro do lago. Ele
descobre, naquele momento, que pode nadar e fica fora do alcance da leoa. A
partir deste dia, Kala começa a achar estranho, porque os macacos, muito
raramente, e só forçados por uma situação extrema, conseguem entrar na
água. Tarzan não, onde vê água mergulha, começa a nadar e se divertir. Quer
dizer, uma vez que adquiriu a natação, e mesmo dentro de uma situação
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traumática, e talvez por isso, ele transforma aquilo num prazer, num momento
de escape. Nadar é uma técnica que ele desenvolveu a partir da diferença que
porta, o que lhe permitiu fazer o que o macaco não pode.
Surge, então, outra diferença, que comparece como técnica, mas que
está na dependência de uma função simbólica que se ainda não se articulou,
está para se articular no mito. Tublat, aquele que era o macho da Kala, o
padrasto de Tarzan, se não o pai, ele detesta Tarzan. Trata-se de um mito de
luta de prestígio, a fêmea fica de bobeira com o bebê, o filhote... Talvez Tublat
saque a diferença... Tarzan também odeia o macacão. Os dois brigam e, nessa
briga, Tarzan aprende uma porção de molecagens, a jogar pedra, fruta, e depois
sair correndo para um lugar onde ele não pode pegá-lo. Tarzan começa a
manipular os cipós, consegue fazer uma armadilha, o macaco vem correndo e
cai, coisas dessa ordem... De repente, ele inventa um nó. De tanto mexer no
cipó, ele inventa o nó e, diz o texto: “Era um germe de pensamento para o
magnífico sucesso que viria mais tarde”. Não é à toa que Lacan – eu ia dizer
Tarzan – situa na concretude do nó uma espécie de núcleo lógico concreto da
possibilidade simbólica, da escrita mesmo, do real do psiquismo, real da nossa
lógica, o concreto da nossa lógica. Ele inventa o nó e o texto apresenta esta
invenção como uma grande diferença, maior do que aquela outra da natação.
Certamente que, tendo inventado o nó, a vida de Tublat torna-se um inferno,
porque Tarzan podia, então, fazer as maiores safadezas com ele, puxar-lhe o
pé, laçá-lo de longe, pular de uma árvore para outra.
O bando de símios costumava fazer várias abordagens na cabana que
fora abandonada pelos Clayton. Tarzan, que sempre ia junto, achava aquilo
fascinante e misterioso. O texto mostra o tempo todo que tudo que pinta e
aponta para a diferença específica deixa-o meio encucado. Eles têm uma certa
linguagem. Eles se comunicam com limitações. Aliás, pessoas mal informadas
querem dizer que é uma tolice circular as diferenças, a nossa diferença, como
sendo a de sermos falantes. Querem apontar certas pesquisas etológicas que
mostram que há uma certa linguagem entre os animais. É claro que há uma
fala dos animais! Lacan, num belo pedaço de Seminário, nos diz que ele conversa
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com a cadela dele, que, afinal, fala, fala coisas para ele... O que é completamente
diferente de ser determinado pelo simbólico. Existe uma relação de fala entre
os animais e até dos animais conosco, mas isto não significa uma determinação
de fala, sobretudo porque estão presos a uma fala que é limitada e é sempre a
mesma. Lacan chama atenção para o fato de que a cadela dele jamais o toma
por outro, contrariamente a nós, que sempre tomamos outrem por outros. É
uma fala que, sendo estruturada imaginariamente, funciona como um código...
como certos lingüistas querem fazer funcionar nossa língua.
Kala, então, tinha lhe dito, na sua linguagem de animal naturalmente,
que o pai dele era um estranho macaco branco, que ele procedia de alguma
coisa estranha, mas ele não sabia que Kala não era sua mãe. Isto é
interessantíssimo: o pai é de outra ordem. A mãe pode ser macaca mesmo,
não tem a menor importância. O que é importante no mito é supor que o Clayton
tivesse transado com a Kala e que, por um incidente qualquer, deu certo. Trata-
se de uma diferença que, se surgir no real, se equaciona como diferença
simbólica. Não se trata do “Sr. macaco seu pai”, o Tublat. Há uma paternidade
outra, só existente no nível do simbólico. Seja qual for a indicação, ainda que
de fala animal, o portador desta diferença ôntica, da falta real, e no imaginário,
acaba vindo a funcionar como marcação simbólica. É neste momento que
acho mais importante o mito: seja como for que tenha surgido a humanização,
qualquer historinha que seja, o importante é que, por uma diferença ôntica que
é uma brecha, uma falta, um furo, uma coisa desta qualquer, o sujeito não tem
outra saída senão funcionar simbolicamente.
Um dia, quando a macacada vai em volta da cabana, Tarzan entra
pela chaminé. É o único buraco realmente aberto. Não reconhece porta nem
janela, pois está tudo fechado. Quando chega lá dentro, descobre os três
esqueletos, do Clayton, da Sra. Clayton e do macaco que estava no lugar
dele. Descobre as roupas, as armas, os livros com letras e figuras humanas
como a dele. Neste momento, poderemos encontrar mais uma articulação,
mais um momento do estádio do espelho – o primeiro momento foi de diferença
pura, imaginária –, uma outra funcionalidade, também com imagens, mas
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percebido que aquela gente é da mesma espécie que ele, fica em dúvida e se
pergunta se poderá fazer justiça a pessoas da própria espécie, da própria raça.
De qualquer forma, vai à procura de Kilonga para matá-lo. Ele está acostumado
a lidar com animais na luta de prestígio, e vê Kilonga caçando javali com arco
e flecha, coisa que ele não conhecia e que foi exatamente o que matou sua
mãe. Depois, viu o primitivo fazendo uma fogueira e assando a carne para
comer. Ele ficou tão interessado na novidade técnica que suspendeu a raiva
para aprender aquele negócio que ele achou um barato. Quando o Kilonga se
afasta, ele desce e vai lá experimentar a fogueira, assa a carne, come e acha
muito bom. Aprende aquele negócio todo, adquire mais uma técnica e, depois,
recomeça a perseguir o Kilonga. Luta corporalmente com ele e o mata com
uma facada. Depois, examina muito o corpo de Kilonga. Ele ainda tinha dúvidas.
Afinal de contas o outro era preto e ele branco. Talvez fosse macaco, ele não
sabia, embora percebesse que era mais do lado dele. Examina muito o negro e,
depois, se pergunta se poderia comer o cadáver. Afinal de contas, se matou –
lei da selva – come. (Eu tinha um amigo que dizia que, ao invés de fazer pena
de morte ou prisão, uma pessoa que mata outra deveria, agora, comê-la. Aí as
pessoas parariam de assassinar. Matou para quê, se não está com fome?).
Tarzan se dá conta que não se trata de um macaco e fica nesta questão. Será
que ele pode comer? O texto diz: “Será que os homens podem comer os
homens?”. Ele não come, larga o cadáver e se manda.
Há uma pequena emergência, aí, de uma espécie de sanção do “proibido
matar”. Uma emergência de lei que, no texto, parece ser animal mas não é
senão uma emergência humana. Tarzan vai para cima da árvore, vê a aldeia
da tribo do Kilonga e, de lá, enxerga uma mulher com um caldeirão de veneno
preparando as flechas. Ele estava vidrado nas flechas e no arco, que era um
outro poder. De repente, vem um guerreiro da tribo, vê o cadáver do Kilonga e
sai correndo para avisar o pessoal. Eles todos vêm pegar o cadáver. Tarzan
aproveita que o pessoal deixou a aldeia vazia, corre lá dentro e rouba as flechas
que já estavam preparadas. De curiosidade, entra numa cabana mais enfeitada,
que era, digamos assim, o templo da religião da tribo. Lá dentro, ele acha uma
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porção de coisas que vemos que têm algo parecido com a casa dos Clayton:
enfeites, armas, etc. Descobre, também, uma porção de crânios, caveiras –
devia ser alguma coisa que fazia parte da religião desses primitivos. É
interessante notar, no texto, que a emergência do simbólico em Tarzan vai se
dando rapidamente. Veremos, mesmo, mais adiante, que estes primitivos ainda
ousavam matar-se uns aos outros – ainda que fosse aquela coisa que é permitida
quando feita pelo grupo. Tarzan acha aquilo tudo muito engraçado e, de safadeza
com a tribo, monta uma espécie de boneco, como se fosse um deus ou espantalho.
Espantalho que seria o deus humanizado – uma crítica que o texto apresenta,
uma crítica àquela adoração. Quando a tribo volta, ele cai fora roubando o
arco e as flechas.
Começa a usar o arco e as flechas entre os macacos, cada vez mais
os dominando com sua presença tecnológica.
Um dia, ele retorna à cabana dos Clayton. Olha longamente o retrato
do seu pai, com quem ele se identifica. Tudo era um barato! Nesse momento,
mais uma montagenzinha do estádio do espelho: ele começa a ver que é tanto
diferente dos macacos quanto dos homens daquela tribo. Ele é particular, tem
uma diferença. Poderíamos, mesmo, dizer que há nesta manipulação do retrato,
dos livros, das figuras, das letras, etc., uma espécie de momento em que se
completa o estádio do espelho, e que ele é marcado com o Nome do Pai, um
reconhecimento que, miticamente, é feito entre Tarzan e o retrato do pai.
Nesse momento ele encontra um medalhão do pai e pendura no
pescoço. Interessantíssimo isto no livro! Ele investe na marca simbólica.
Pendura no pescoço e continua a estudar os livros, identificando-se
definitivamente com seu pai. Talvez exista aí uma primeira emergência da
Lei. E vai haver uma segunda.
Um dia, acabam-se as flechas envenenadas que ele havia roubado.
Ele resolve voltar lá para conseguir mais. Quando chega à tribo de Kilonga,
que morreu, encontra um festival: os primitivos, dançando, batendo tambores
em volta de um homem amarrado numa estaca, que seria certamente morto e
deglutido, ou coisa dessa ordem. Aproveita e rouba as flechas, já que todos
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inscrição, não tem outra coisa a não ser tornar tudo significante, tudo deslizante.
Não adianta Deleuze, e até ditos lacanianos como Serge Leclaire, que teve a
graça de me dizer que estava contra o “imperialismo do significante...”. Não
entendi nada, perguntei o que era isso e ele não quis me explicar. Não estou
dizendo que o conceito de significante não seja superável, mas, por favor,
primeiro superem! Não tenho nada, até segunda ordem, que seja ferramenta
mais apurada. Faca melhor do que esta não me deram, então, não adianta
xingar a faca. Se não, é mera rebeldia: “Papai criou o significante, eu estou
com raiva dele, então vou dizer que é imperialista”. Não se trata disso.
Há uma vergonhosa (hontologie, de Lacan) falta real no imaginário
que posso reconhecer, simplesmente, por experiência. O ser falante nasce
absolutamente incompetente, faltoso, incompleto, e sucumbe se algo não vier
socorrer essa falta, se algum expediente não for inventado. Antigamente, víamos
nos livros de ciências naturais que o homem não tem as mesmas ferramentas
naturais que outros bichos, unhas, couro, esporas... Este era o tipo de argumento
que usavam. Já é uma incompetência bem grande quando lidamos com uma
anatomia originária, e, mais do que isto, uma prematuração que encontramos
no bebê de qualquer sujeito falante. Está lá, é dado, não tem como sair desta!
As poucas crianças encontradas entre os animais - as crianças lobo, etc. – ou
sucumbem, ou sobrevivem absolutamente na imitação do animal e socorridas
pelo expediente do animal que as elege, como foi com Tarzan. Se não, ele não
sobrevive, fica numa infantilização longa, numa longa infância, se não perene.
Então, na verdade, há uma falta constitutiva. Ele não tem como chamar-se,
como reconhecer-se de tal ou qual espécie, com sua corporeidade e com seus
relacionamentos fundados no comportamento dado. Ele saca isso de dentro
do seu imaginário. Falta alguma coisa. Não é falta no sentido de estar faltando
isto ou aquilo, é falta radical. Tem uma abertura, então, não se fecha. Tem
uma brecha, uma ferida e, por aí, é que ele pode tomar todo e qualquer
surgimento diante dele não como um deslanchador de estruturas de imaginários
gestálticos aprontados, mas, simplesmente, como algo que chamamos de
significante, justamente porque desliza. É aqui não sendo aqui. Acompanha o
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estas coisas que os psicólogos pretendem tratar... Porque tudo isto se borda e
se entretece em pura relação significante. É lá que se tem que mexer. O resto
não interessa.
Para que vou falar com o padre, se posso falar com o papa... Se posso
tocar no lugar da determinação, para que vou fazer biodança?
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DESDE O PARA ISSO:
DE ADÃO A ÉDIPO
Convido vocês para um pouco de reflexão, de leitura, sobre pelo menos
três ocorrências da nossa cultura.
A primeira, é o chamado Gênese, o primeiro livro da Bíblia, no Velho
Testamento. A outra seria a historinha de Édipo, o mito que existe ao seu redor.
Leiam Édipo Rei e Édipo em Colona, de Sófocles. E, finalmente, outra
estorinha também muito interessante, que está bem inserida em nossa cultura:
o nascimento de Jesus Cristo. Está, aliás, na televisão, por causa da Páscoa.
* * *
Outro dia, alguém me disse: “A Bíblia só tem sexo”. Eu disse que isto
não é verdadeiro, mas é uma inferência que as pessoas fazem, não do texto do
Gênese, mas do modo como ele costuma ser narrado para as crianças – e
ficamos com isso na cabeça. É o modo como ele é tratado no cotidiano, por
esse cristianismo de rua, e quem sabe mesmo se com certo interesse da
dominação católica... Existem algumas evidências de incesto dentro do Velho
Testamento, mas um incesto assim meio secundário, feito pai-com-filha, como
mostramos naquelas sessões sobre o alcoolismo*, no Seminário passado, sobre
as filhas de Lot – incesto com o pai, por uma razão muito justa para a cultura
* Publicadas com o título de O porre e o porre do Quincas Berro Dágua. Rio de
Janeiro, Aoutra Editora, 1985. Seminário de 1980.
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Desde o para isso: de Adão a Édipo
árvore do sexo. Ou seja, todo ser sexuado morre, diferentemente de todo ser
assexuado, porque é a reprodução de um indivíduo que porta a semente, mas
não se subdivide. A secção, portanto, já está instalada naquela árvore.
Imediatamente depois, como uma conseqüência lógica, Deus se manca
de que tinha proferido uma coisa espantosa e continua, cap. 2, 18: “Disse mais
o Senhor Deus: não é bom que o homem seja só”. Espantoso, porque quando
se lê os capítulos anteriores, ele não estava só, pois Ele os criara com o mesmo
nome – aliás, de Adão – criou os machos e fêmeas, talvez aos borbotões,
porque ele mandou aquilo proliferar. Já devia, então, ter uma porção, quando
ele pensou o segundo pensamento. O sétimo dia deve ter durado milênios.
“Far-lhe-ei uma ajudante”, continua Ele. Impressionante que a coisa que vem,
nova, vai se chamar “ajudante” do homem.
Como Ele vai fabricar essa ajudante? Está no feminino, “uma”
ajudante. Antigamente, quando criou Adão, Ele o criou com dois sexos. São
o mesmo indivíduo: Adões de dois sexos. “Então o Senhor Deus”, cap. 2, 21-
22, “fez cair um sono pesado sobre o homem” – portanto, sobre macho e
fêmea – “e este adormeceu. Tomou-lhe uma das costelas e fechou a carne
no seu lugar. E da costela que o Senhor Deus lhe tomara, formou a mulher e
a trouxe ao homem”.
Como é que tem duas criações? É uma estupidez do texto? Depois de
passar milênios nas mãos das pessoas? É porque são autores dispersos, que
não se encontraram? Isso deve ter um sentido, senão não passava... Depois
desse troço todo, parou, e descansou. É depois do descanso, na outra semana,
que Ele começa a pensar que o homem – que já era uma porção de machos e
fêmeas – precisava de uma ajudante... Para perceber o quê? Para ajudar a
fazer o quê? Vejamos que Ele pensou nessa ajuda imediatamente depois que
tirou a inocência do homem. O homem foi criado assim feito bicho, ele se
reproduzia aos milhares, machos e fêmeas... E, justamente, diante de um ato
de proibição, ao proibir que comesse de pelo menos uma, árvore, que é exceção
no paraíso, sem explicar coisa alguma. Essa proibição já é bem clara, como
tentei explicar aqui de outras vezes, como indicação do impossível. É impossível
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Essa tal mulher, que não é a fêmea, vai realmente ajudar o homem, no
sentido genérico do termo, a entender as coisas. Engraçado que, nesse capítulo
2, a coisa termina assim: “E ambos estavam nus, o homem e a mulher, e não se
envergonhavam”. Apesar de terem sonhado essa diferença, de terem sacado
a proibição como alguma coisa de estranha, certamente neles mesmos, eles
ainda não tinham vergonha de portarem esse furo. Vão precisar de toda uma
articulação para ter vergonha na cara, para que o furo compareça e eles
articulem alguma coisa sobre ele.
Quando estamos no regime da narrativa, não podemos esquecer que
o que comparece às vezes como cronologia é narrativa sucessiva do que é
cultural. O fato de eles ainda não se envergonharem significa que uma batida
está faltando, porque a coisa já está dada, desde o momento em que foi proibido
comer daquela tal árvore lá. Foi proibido porque é impossível. Quando é
impossível é sinal de que não se pode fazer isso porque dá necessariamente
naquilo: “Não ponha a mão no fogo, porque queima”. E o Deus aqui não é
idiota, ele diz. “Não coma, porque morre”. É absolutamente verdadeiro. A
interdição é uma maneira de dizer o impossível. Não se pode fazer o sujeito
experimentar a morte, pela qual ele não passou, a não ser dizendo. “Não chega
lá, que dá nisso!”. A morte que nós vivemos não é aquela que vai ocorrer se a
gente morrer, é aquela que não se pode atingir.
* * *
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ou podia ser um grilo. Não sabemos, por exemplo, se naquele tempo se dizia
que o cara estava “com serpente na cabeça”, quando se queria dizer que tinha
alguma coisa na cabeça de alguém: “Está com minhoca na cuca”. Pinta um
grilo, uma minhoca, na cabeça de Eva... Certamente tinha que ser na dela, pois
ela foi criada para isso, para ajudar o homem a pensar a respeito da proibição.
Ela representa a falta. Ela não é a falta, ela a representa para o
imaginário. Os corpos femininos são representantes, do ponto de vista de
representações, do imaginário da falta, da falta do pênis. O que não significa
que não falte ao Outro, na virada do simbólico. Aí é que entra toda aquela
tolice da criança, no pensamento de Freud: como ele via no imaginário dos
corpos a diferença, ele tenta equacionar, pressionado por essa diferença
imaginária, por essa representação.
Mas, voltando, a serpente diz, cap. 3, 1-5: “É assim que Deus disse:
não comereis de toda a árvore do Jardim? Respondeu a mulher à serpente: dos
frutos das árvores do jardim, podemos comer”. Vemos que ela também foi
informada, não precisou Adão nenhum lhe dizer. “Mas o fruto da árvore que
está no meio do jardim, disse Deus, não podeis comê-1o, nem nele tocareis,
para que não morrais.” E a serpente, como bom grilo que era. respondeu:
“Certamente não morrereis”. O pior é que estava dizendo a verdade, porque o
morrer aí não era o morrer físico. Não é à toa que a serpente é símbolo da
ciência até hoje. Ou seja, sofre de certa histeria. Senão, vejamos: “Porque
Deus sabe que no dia em que comerdes desse fruto, vossos olhos se abrirão, e
sereis como Deus, conhecendo o bem e o mal”. E o pessoal fica esperando até
hoje, deve ser a serpente da vida... O que a mulher não sabia é que Deus era
igualzinho a ela, que Ele também não sabia, não conhecia a morte, Ele também
estava proibido de comer, a não ser como morte, como exceção. Só Ele pensava
como exceção. Quer dizer, para o homem, Deus sabe; para a mulher, Deus
não sabe coisa nenhuma. Mas, só depois é que ela vai sacar isso.
“Então, vendo a mulher”. cap. 3, 6-7. “que aquela árvore era boa para
se comer, que era agradável aos olhos” – ela tinha que ver que era bom, ela
fora trazida para isso, para ajudar o homem a conhecer essas coisas –, “e que
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era uma árvore a ser desejada para o seu conhecimento, tomou do seu fruto,
comeu e deu de comer a seu marido” – duvido muito que tenha a palavra
“marido” na Bíblia: deu ao seu homem – “e ele também comeu. Então, foram
abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus”. Quer dizer, ao
conseguir fechar o círculo, que tinha começado com a proibição, passou ao
sonho da diferença, e depois se concretizou, justamente, ao fazer o que era
proibido e não conseguir. Isto é, dar de cara com o real, com o impossível. Aí
se manca, de uma vez por todas, que há uma grande diferença, e percebe que
são duas. Perceber que são duas é perceber justamente que há uma diferença
radical, mais nada. A coisa está desvelada agora. A diferença pintou a olhos
vistos no imaginário das representações. Já tinha pintado no inconsciente, em
forma de sonho...
Nesse momento, Deus chama pelo homem, e ele se esconde, cap. 3,
9-15: “Onde estás? O homem respondeu: ouvi a tua voz no jardim, tive medo
porque estava nu e me escondi”. Quer dizer, ele deu toda a bandeira. Desse
momento em diante, ele não podia deixar de fazer isto, as coisas estavam
desveladas. “Quem te mostrou que estavas nu? Comeste da árvore que ordenei
que não comesse?”. Aí diz o homem: “A mulher que me destes por companheira
deu-me da árvore, e eu comi. E o senhor Deus perguntou à mulher: que é isso
que fizestes? Respondeu a mulher: a serpente enganou-me, e eu comi”. A
serpente era o grilo que ele mesmo colocou na cabeça da mulher, quando ela
foi criada. Aí vem aquela história toda, aquele pito divino no casal humano,
falante, reconhecedor da diferença aonde a Lei já começa a pintar, como
possibilidade de ser reconhecida como tal... Diz Deus, mais abaixo, à serpente:
“Colocarei inimizade entre ti e a mulher... esta te ferirá na cabeça, e tu a
ferirás no calcanhar”. Elas estão presas: toda mulher tem uma cobra no pé, e
toda cobra pega no pé da mulher. O grilo continua lá mordendo. A mulher pisa
na cobra o tempo todo. Está lá a diferença, ainda questionando... Nada se
universaliza, a coisa fica em aberto, como está no esquema de Lacan. Aí vem
a questão do suor do rosto, do trabalho, esse negócio todo, que é uma
conseqüência muito espontânea de ter deixado de ser animal. Está determinado
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cortando, barrando a entrada por um corte, por uma barra... Não tem anjo
nenhum portando a espada – isso só tem nas figurinhas da igreja católica. Os
querubins estão aí. Querubim é um arqui-anjo. E um anjo nada mais é do que
um significante, uma coisa besta, como diz Lacan. É puro significante.
Continuando, o texto diz, Cap. 3, 24: “E havendo lançado fora o homem, pôs ao
oriente do Jardim do Éden os querubins, e uma espada flamejante, que se
movia por todos os lados, para guardar o caminho da árvore da vida”. Quer
dizer, o significante é trazido, mas há uma espada sozinha, flamejante,
circundando o Jardim do Éden. Ele colocou um corte, onde estavam os
querubins... É igual à piroca voadora dos gregos.
Aí acabou-se a festa. Termina o terceiro capítulo.
* * *
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bem” – claro que Deus já estava sabendo que Caim ia matar Abel – “não
serás tu aceito? E se não procederes bem, o pecado jaz à porta. E sobre ti,
será o teu desejo, mas sobre ele deves dominar”.
Que desejo é esse que Deus viu na cara de Caim? Ele viu que Caim
ficou danado da vida com a diferença de recepção das oferendas, e que Caim
estava doido para matar o Abel. O desejo dele era: “Eu mato esse desgraçado!”.
Ao ver isto, Deus diz: “Eu sei que você tem esse desejo, mas você deve dominá-
lo’’. Esta é a grande proibição, fundadora da Lei. A Lei que foi apresentada
até aqui é, simplesmente, de que o real é impossível de ser tocado. É uma lei
que indica para o real, pura e simplesmente. Ela na verdade não proíbe. A
aparência de proibição que ela tem é de indicar o real; de não se poder tocá-lo.
Quando se diz para uma criança: “Você não pode botar a mão no fogo”, isto
não é só uma proibição, porque, se puser, queima mesmo. Agora, é só uma
proibição dizer. “Você não pode matar o seu irmão”, porque se ele for matar,
ele consegue. O que barra, então, é a proibição que vem como possibilidade de
dominar esse desejo. Ela é que funda a Lei entre os homens. O fundamento da
Lei, que se escora, justamente, na Lei da diferença, é a proibição de matar, e a
ordem de dominar, pelo menos esse desejo.
No entanto, Caim não consegue dominar esse desejo – que é único
proibido e é o que funda a Lei – e mata Abel. Deus sente o cheiro de sangue de
Abel na terra e diz para Caim, Cap. 4, l0-15: “A voz do sangue do teu irmão
está clamando por mim desde a terra. Agora maldito és tu, desde a terra, que
abriu a sua boca para, da tua mão, receber o sangue do teu irmão. Quando
lavrares a terra, não te dará mais, ela, a sua força; fugitivo e vagabundo serás
na terra. Então disse Caim ao Senhor: “é maior a minha punição do que posso
suportar”. Isso é extremamente importante. “Eis que hoje me lanças da face
da terra e, também, da tua presença ficarei escondido: serei fugitivo e vagabundo
na terra, e qualquer um que me encontrar, matar-me-á”. Ele cria a Lei. O
Senhor, porém, lhe disse: “Portanto, quem quer que mate Caim, sete vezes
sobre ele cairá a vingança. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que não o
matasse quem quer que o encontrasse”. Falávamos, da outra vez, da pena de
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rença, acabar com a Lei, que me funda, a mim também. Por isso, fico, se sou
um assassino, se sou Caim, marcado como aquele que passou por cima da Lei
e, justamente por isso, os outros não podem me tocar. Caim não pode matar
Abel. Não é impossibilidade, é proibição pura e simples. Isto tem um resultado:
se ele assassinar um único diferente, ele assassinou a diferença como tal e,
portanto, ele se destituiu eticamente, e acabou com a sua posição de falante.
Ele é um falante que é como se fosse um animal, pois ele eliminou a diferença.
Ele carrega essa marca de ser um animal, mesmo sendo um homem, de agir
como se fosse um animal. Não tem outra Lei no Velho Testamento – e eu
suponho que não existe outra.
O Velho Testamento brinca com essa tentativa, essa tentação de
totalidade. Nesse momento aí não há cultura nenhuma a ser fundada, está
fundada a Lei, que tem referência no real da diferença, e no simbólico, ocupando
esse real. É preciso entender a escansão que estou tentando fazer: não há
nenhum incesto aqui, nem para fundar a Lei. Isto é suficiente para fazer os
homens verem o próximo como diferença pura e simples. Ter vergonha na
cara é respeitar o próximo. Não é amar o próximo, não! Ninguém tem que
amar o próximo. Isto é uma besteira! Basta simplesmente respeitá-lo como
diferente...
Estou propondo, então, que se coloque a origem da Lei explicitada,
como transação entre falantes, na relação entre Caim e Abel e seu fundamento
lógico está lá no paraíso perdido.
Abel morreu. Adão e Eva só tinham dois filhos. Sobrou Caim, que
começou a fazer gente, é claro! Com quem? É um incesto? É com Eva? Aqui
não diz nada disso. Fêmeas, havia aos quilos. Desde lá, Cap. 1, 28, estavam
procriando a granel. Seja quem for que ele tomasse como mulher, e quantas
mulheres fossem, ele começou a fazer filho...
“E Caim”, cap. 4, 16-24, “saiu da presença do Senhor para morar na
terra de Nod, a oriente do Éden. E Caim conheceu sua mulher, a qual concebeu
e deu à luz Enoc”. Se tomarmos a filharada de Caim: ele teve Enoc, com essa
tal mulher que ele conheceu; Enoc teve um filho chamado Irad; Irad teve
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Maviavel; o qual teve Metusael: o qual teve Lamec. Esse conjunto de gerações
sucessivas termina em Lamec. Esse tal Lamec, uma vez, chegou em casa e
disse às duas mulheres, Ada e Sela – ele tinha duas, oficiais: “Ouvi a minha
voz, escutai, mulheres de Lamec, as minhas palavras, pois matei um homem,
por me ferir, e um mancebo, por me pisar”. O bicho era violento. “Se Caim há
de ser vingado sete vezes, com certeza Lamec o será setenta e sete vezes”.
Tornou a assassinar. Aqui termina, some, a geração de Caim. Começou com
assassínio, e termina com assassínio. Passadas cinco gerações, termina a
descendência de Caim, com um assassínio. Imediatamente, corta, tipo cinema.
E, de repente, Adão conhece outra vez sua mulher, Eva, Cap. 4, 25-26, que deu
à luz um filho que tem o nome de Set. Abruptamente se interrompe a geração
de Caim e começa outra filharada de Adão que vai dar nessa turma toda do
Velho Testamento.
* * *
* * *
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que está aí, todo mundo vê. Essa cópia da reprodução animal é aquilo que
Lévi-Strauss quer colocar como sendo da natureza. Não tem natureza nenhuma.
É simplesmente aplicação de sua competência simbólica na observação da
reprodução animal, e tomando aquilo como se fosse um ábaco, um computador
que pode dar organização à coisa, em espécie, sobre a reprodução dos outros.
Assim como posso utilizar o ciclo da lua para a lavoura, por exemplo, utilizo um
ciclo reprodutivo, que descobri nos animais, para nomear a minha espécie.
Parece, então, que Noé bota uma ordem. Não se fala em interdição do incesto,
mas se fala nos filhos de Noé conseguindo uma mulher, fazendo isso e aquilo,
sem nenhum retorno. Se antes não se falava de incesto, ele não estava também
desproibido. Não estava em questão.
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* * *
Deus, então, fica contente com essa historinha toda da arca, com aquele
negócio todo, o “saco” noético... Deus, Cap. 8, 21-22, diz: “Não tornarei mais
a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque a imaginação do coração do
homem é má desde a sua meninice. Nem tornarei mais a ferir todo vivente
como acabo de fazer. Enquanto a terra durar, não deixará de haver a sementeira
e a seiva, o frio e o calor, verão e inverno’’. Quer dizer, eterniza a cultura. É
preciso aparecer o João apocalíptico, para prometer alguma coisa que preste.
Mas, vamos retornar à questão de Abel e Caim que deixamos em
aberto: por que animal era interessante e vegetal não? Por que Deus abençoa
os seus filhos e diz – o que já tinha dito para os homens, mesmo antes do
surgimento de Adão e Eva, que eles deviam dominar todos os outros seres –,
cap . 9, 1-6: “Sede frutíferos, multiplicai-vos e enchei a terra. Terá medo e
pavor de vós todo animal da terra, toda ave do céu, tudo que se move sobre a
terra e todos os peixes do mar, e nas vossas mãos estão eles entregues. Tudo
o que se move e vive vos servirá de mantimento, bem como a erva verde. Tudo
que vos tenho dado. A carne, porém, com a sua vida, isto é, com o seu sangue,
não comereis’’. É um recurso de uma certa cultura judaica que começa a
aparecer. Ele, então, repete: “Quem derramar sangue do homem, pelo homem
terá o seu sangue derramado”. Na cultura, a pena de morte, a retaliação, aí
aparece, mas agora já organizada por alguma lei cultural. A ética radical da Lei
não permite isto: não se toca em Caim. Quando a cultura se arruma assim
direitinho, para poder se organizar, é preciso matar quem mata. Espantoso!
De qualquer forma, Ele dá esse domínio sobre todas as coisas. Os
amantes da natureza que se cuidem, porque , na verdade, é direito do falante,
que não tem nada a ver com a natureza, dominar os outros seres. Apesar da
Sociedade Protetora dos Animais, a gente come carne, graças a Deus! Podemos
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matar à vontade os seres vivos... Mas, agora, se a gente achar, de repente, que
não vale a pena destruir alguma espécie, tão bonitinha, então, faz-se um pacto.
Não há nenhum crime em se matar, e sim em se assassinar. Não se assassinam
vacas, se assassinam pessoas.
Por que será, então, novamente, que Deus achou mais engraçada a
produção de Abel, mais do que a de Caim? É um negócio estranho. Abel matou
animais e serviu a Deus... Todos nós conhecemos pessoas que, certamente,
amam os animais. Acham um crime matar o bichinho! São herbívoros. O homem
é um animal onívoro, feito porco, come de tudo, mas há uns herbívoros, tipo
vegetariano, que não concebem que se possa comer carne, porque tomam
como assassínio matar o bicho. Exatamente como Caim! Caim não matava
bicho, mas ele matou Abel. Eu me pergunto se a coragem de ver o sangue de
um ser que seria como eu, se eu não falasse, não é justamente dada a mim pelo
saber de que o sangue do falante, eu não posso derramar. Quem gosta muito
de bicho... geralmente gosta mais do que de gente. Eu farejo essa coisa na
relação de Abel e Caim. Posso reinar sobre a natureza, matar o animal, não
preciso tremer porque enfiei uma faca no bicho, ou fiz uma tourada, por mais
bárbara que ela pareça... é um bicho.
A coragem de sangrar os animais, isto para existir é preciso que eu
tenha distanciado esse sangramento do imaginário, de comparar esse
sangramento com o sangramento do homem. São sangramentos
completamente diversos. Não tenho que preservar, por exemplo, uma
determinada espécie animal porque seja criminoso destruí-la. Mesmo porque
ela pode desaparecer espontaneamente. Por que devo preservar algumas
espécies sem matar? Porque há outros homens que gostam delas e as
querem. Eu não respeito aquela espécie. Eu respeito a opinião de outrem
que gosta daquela espécie. Se ninguém gostasse, eu podia matar que dava
na mesma.
Os filhos de Noé, então, que saíram da arca, foram Shem, Ham e Jafé.
E destes foi povoada toda a terra. Aí a Bíblia vai apresentar a genealogia com
as famílias, com as descendências desses três.
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15/ABR
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for verdade que a cultura herda aquele creodo, todo mundo caiu lá e, até hoje,
não se sai. Estou dizendo que a cultura é o Édipo, se isso estiver certo.
De qualquer forma, Lévi-Strauss está certo quando diz que a interdição
do incesto é a cultura, é claro! Talvez toda a obra de Lévi-Strauss seja
decorrente dessa oposição fundamental entre Natureza e Cultura, quando, do
nosso ponto de vista, não há possibilidade de se fazer essa oposição,
simplesmente porque não se conhece o que seja a “natureza”.
* * *
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este ponto, o Deus lhe prediz simplesmente que ele matará seu pai e casará
com sua mãe. Então, ele foge de Corinto para longe daqueles que ele supõe
serem seus pais. Em sua fuga, ele encontra Laio num cruzamento de estrada.
Provocado e atacado, ele o mata com toda a sua guarda. Ele cometeu, então,
aí, o crime de parricídio. E a profecia começa a se realizar.
Ele chega a Tebas, onde a esfinge, monstro com cabeça de mulher e
corpo de leoa, dizima os tebanos, matando todos aqueles que se mostram
incapazes de resolver seus enigmas. Édipo triunfa, encontrando a solução para
o enigma e livrando Tebas do monstro. Os tebanos lhe oferecem a realeza, o
lugar que fora ocupado por Laio, e a mão de Jocasta. O oráculo está cumprido:
Édipo é marido de sua mãe e tem dois filhos, Etéocles e Polinices, e duas
filhas, Antígona e Ismênia.
Esta introdução é necessária, porque Sófocles começa o drama com
Édipo já instalado, com filharada e tudo.
Tebas é tomada por um mal misterioso, uma espécie de peste ou coisa
assim. Os homens morrem em massa, as mulheres, os animais, as terras ficam
estéreis. O povo suplica ao rei a salvação da cidade mais uma vez, já que ele
havia salvo a cidade da esfinge. A essa altura, ele enviou a Delfos o irmão de
sua mulher. Creonte, que vai ser o rei no lugar dele, o cunhado, o tio, no caso...
Este último retorna com a resposta do Deus: a cidade suja do sangue derramado
deve ser purificada pelo castigo do culpado. Trata-se, evidentemente, do
assassino de Laio. Édipo se engaja em castigar o culpado. O espectador assiste,
então, à busca, em cujo decorrer, pouco a pouco, a verdade vem à luz, Édipo
fica convencido de sua dupla culpabilidade: parricídio e incesto. Jocasta se
mata e Édipo fura os olhos.
Nesta tragédia de Sófocles, Édipo aparece como um homem cheio de
boas intenções – talvez seja isto que o perde – contra quem o destino investe e
cujos esforços para triunfo da justiça chegam, finalmente, à sua ruína. Vemos
sua ansiedade crescer à medida que o círculo se fecha em torno dele, até o
desastre final. Embora não premiada pelos juizes atenienses, essa peça, Édipo
Rei, foi sempre altamente apreciada, e com justiça. Sua data é incerta, em
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torno dos 430 a.C. Isso é um resumo. O mito apresenta uma grande varie-
dade de textos.
* * *
Alguma coisa disse para Laio que ele não podia ter filhos. Essa proibição
aí não aparece assim nos textos do mito que eu pude ver. Por que ele não
podia ter filhos? Por uma razão muito simples: se tivesse o filho, o filho mataria
e casaria com a mãe. De onde Laio tirou essa idéia? O que significa um
oráculo? Do nosso ponto de vista, pode ser simplesmente uma emergência do
inconsciente. Não precisava ninguém ter dito a ele que ele deveria temer isso...
Se não por nada, pelo fato de que Laio não é filho de chocadeira, pelo fato de
que tenha sido filho de alguém, deve ter tido os mesmos desejos incestuosos e
parricidas. Portanto, sabia o que vinha pela frente. Mas, se pensarmos assim,
vamos ao infinito para trás, e sempre será assim. Consideremos, então, Laio
como começo, é o jeito que temos. Vamos fazer de conta que ele é inocente –
coisa que ele não é.
Ele, então, sabe disso. Ele podia, por exemplo, absolver-se da questão,
simplesmente não tendo filhos. Mas ele não tem controle sobre isso: a pílula
ainda não tinha sido inventada, a vasectomia... Bom, podia cortar o saco, mas
ele não era burro. Então, ele continua na dele, e, de repente, aparece o tal do
filho. Ele quer se livrar dele, de qualquer maneira. Mas não é bem de qualquer
maneira. Urano e Saturno, lá na mitologia desse povo, devoraram os filhos.
Até o dia em que um dos filhos, Júpiter, conseguiu escapar, fez a revolução do
filho e arrumou as coisas de outro modo. Laio não pensa nisso. Ele teme tanto
a verdade – que ele já conhece, que é a dele mesmo – e, simplesmente, fura e
amarra os pés da criança. Ou seja, ele empecilha simbolicamente seus
movimentos e a expõe no Citeron. Essa exposição da criança é uma coisa que
aconteceu em várias culturas, sobretudo na cultura grega. É uma espécie de
jogo de azar. Acontece, por exemplo, no Velho Testamento, na vida de Moisés,
a criança é posta num cestinho, jogado no rio. É o que Jean-Jacques Rousseau
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fazia com os filhos dele: botava na porta do asilo e caía fora. Ou seja: “Eu não
vou matar, não vou me tornar um criminoso”.
Expô-lo, quer dizer, colocá-lo numa situação tal em que, se for salvo,
tudo bem!, se não for... Mas, fica expulso da situação prevista do seu
nascimento. Isso se fazia muito com os filhos considerados bastardos. Para
não ser assassinato – como faziam, por exemplo, os senhores de escravos, nos
Estados Unidos, onde, quando a mulher transava com um crioulo daqueles e
aparecia mulatinho, eles matavam na hora – e como não queriam nessas
ocasiões exercer esse crime, então expunham. Expunham à situação drástica
que poderia resultar na morte, no desaparecimento... Laio estava, então,
entregando ao destino, ao acaso. Em função desse acaso, certamente que
alguma coisa ia suceder, e ele não vai precisar nem ficar sabendo.
Mas, do nosso ponto de vista, já que é o destino do Édipo que está em
jogo, pelo oráculo, vai se cumprir esse destino. Laio não fez outra coisa senão
entregar ao destino. Esses atos de exposição têm sempre um sentido de começo
absoluto. O sujeito é deslocado da sua situação e se dá a ele um começo
radicalmente novo. Quer dizer, se ele não morresse, não acontecia nada daquilo.
Entretanto, mesmo com esse recomeço absoluto, porque ele foi entregue ao
destino, e como o destino não o matou, ele vai cair no mesmo destino. Vai cair
porque está cercado, ele não tem saída. É feito o analista: por mais que queira
não escutar Édipo, o Édipo volta e fala nos ouvidos dele. Simplesmente porque
a situação em volta é edipianizada. Cai-se necessariamente no modelo que
está em vigor.
Ora, Laio está sempre fazendo das suas. Ele está fazendo o quê, ao
ouvir o oráculo e não assumir a paternidade, mesmo com essa perspectiva que
o oráculo lhe contou? Ele está sendo um Édipo absoluto. O tipo de Édipo não
resolvido, é o Laio. . . Tal pai, tal filho, aí no caso. Se Laio pudesse supor, ou
tivesse aprendido, a diferença entre o Pai Ideal e o Pai Simbólico, ele não ia
fazer uma besteira dessas. Se esse assassínio do pai é simbólico, ele não seria
morto por nada. Assim como, se essa transação com a mãe é necessária de
saída, ele podia suportá-la se remetesse a uma posição paterna, simbólica, o
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Édipo em calúnia
acontecimento que o oráculo estava narrando com toda a verdade. Quer dizer,
na verdade, Édipo cai nessa porcaria toda da vida dele justamente porque não
lhe é apontada a paternidade. Não estou dizendo que ele seja um psicótico,
foraclusão do Nome do Pai. Estou dizendo que essa diferença entre a
paternidade imaginária e a paternidade simbólica é evitada, Laio é que não
quer se encontrar com isso. Laio é que não saca, e não sacando, passa adiante
para Édipo a questão. Édipo, na tentativa de sair de alguma boa maneira do
que disse o oráculo, faz a mesma besteira. Como ele não sabe que o oráculo
está se referindo a essa transa edipiana, que vai ser resolvida em nível simbólico,
ele foge do que supõe serem os pais dele para não matar o Pai Imaginário, e
vai cair justamente nas mãos do mais imaginário de todos, que é Laio. Quer
dizer, o projeto já está pronto na mão de Laio.
Dizem alguns que as versões mais primitivas do mito de Édipo não
falam de incesto, mas, apenas, de parricídio. Mais uma vez, retornamos àquela
questão que foi apontada no Velho Testamento. Quando se vai procurar as
versões mais arcaicas do mito de Édipo – Sófocles não está apresentando uma
versão muito arcaica – digamos, de alto momento cultural da Grécia, o
pensamento ateniense do ciclo tebano, ele não comete incesto: ele simplesmente
mata Laio. O crime é parricídio. Parricídio, mas ele não sabe o que está fazendo.
Então, o crime é assassínio, do ponto de vista de Édipo.
Laio sempre foi meio picareta. Ele estava fugindo do rei Pélopes
porque quis faturar seu filho, Crisipo, sem sua permissão. Fato que era
considerado, pelo menos, deselegante na Grécia. Pélopes corre atrás dele
para lhe dar uma surra ou qualquer coisa assim, e é nesse momento que Laio
encontra Édipo e é morto. Laio está sempre ludibriando possibilidades legais,
está sempre incapaz de transar simbolicamente com os outros. Na verdade,
o complexo de Édipo devia se chamar complexo de Laio, que é quem prepara
a tragédia de Édipo por um não reconhecimento do simbólico: ele não pode
transmitir o que não tem.
Existem vários trabalhos em torno do mito do Édipo, que nos dizem
que esse mito tem várias narrativas. Nas versões mais arcaicas, como dissemos,
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não se fala de incesto. Laio teria, por esse mesmo motivo, afastado Édipo, e
ele mata Laio. Mesmo o casamento dele não é com Jocasta, é com outra
pessoa. Quer dizer, o mito vai sendo reforçado, analisado, talvez com o tempo,
e, cada vez mais, estruturado.
* * *
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dessa criança, o macho é dispensado, e ela fica na sua transa com a criança.
Podemos dizer que nesse momento de aparecimento da criança há um
deslocamento de desejo. Se o pai era o suporte do desejo da mãe, se Laio era
o suporte do desejo de Jocasta, nesse momento, há uma destransação desse
desejo, e ele é situado sobre o filho, o que é alguma coisa como expor Laio,
deixá-lo entregue às baratas. No texto de Sófocles, quando Édipo descobre
que é incestuoso, Jocasta diz: “Deixa pra lá! Quem se dá bem é quem não liga
pra isso. Não esquenta a cabeça, fica numa boa”. Sófocles é quem esquenta a
cabeça. Jocasta, ela, se remete exatamente a esse momento primeiro, digamos
assim, do incesto, em que não se trata de esquentar a cabeça, se trata de
transar o filho, e ficar numa boa.
Logicamente, então, o incesto só é proibido porque cometido. Na
verdade, do ponto de vista do que nos interessa – não estamos aí, ainda, na
estruturação da ordem do parentesco –, do ponto de vista da transação que a
criança tem com a mãe, e que a mãe tem com a criança antes de a criança ter
com a mãe, que a criança teve antes de nascer, num passado que ela vai
assumir depois, podemos dizer que tudo começa pelo incesto. É uma forte
transação entre Edipo e Jocasta muito antes de Édipo se dar conta de que
existe. Até nos sonhos da mãe antes ainda daquela gravidez.
Se não houvesse um sim inicial para o incesto, como ele iria ser
recalcado? Ele seria foracluído, mas ele não é foracluído, ele é interditado,
portanto, recalcado. Antes de mais nada, há um sim. Um sim que, na verdade,
é falso. A criança e a mãe, é uma transação de tentativa de locupletação de
uma falta. Existe, então, um sim primeiro na entrada do incesto. Quando ele
vem a ser proibido, é no sentido de que isso não pode continuar. Essa situação
não pode continuar porque ela é, sobretudo, imaginarizada. Mas o incesto é
impossível. Ou seja, nenhuma transação ainda que incestuosa completaria coisa
alguma. O incesto é proibido porque ele é intentado antes de qualquer proibição,
e a proibição vem mostrar o impossível de se manter tal situação como
verdadeira. Não é porque é feio. É porque não é verdadeira.
Depois do recalque, o sujeito denega o incesto. Todo sujeito que passou
109
Psicanálise & Polética
por essa situação incestuosa e sofreu recalque dessa situação primeira, está,
freqüentemente, num processo de denegação. Se o sujeito analisa sua situação
edipiana, ele não vai chegar a conclusão de que o incesto simplesmente não
está na dele, porque ele não está na do incesto. Ele vai chegar à conclusão de
que ele só está no recalque. A denegação é prova de que o sujeito é incestuoso,
mas o momento da fundação dessa proibição não é uma denegação, é uma
indicação do impossível que está em jogo naquele ato, que está sendo cometido
mesmo – não vai ser cometido, já foi. É como se a mãe dispensasse o pai na
medida em que ela se apoderaria de um Falo qualquer imaginarizado ao máximo.
É aí nesse momento que criança fica numa grande confusão: ela não sabe qual
é o desejo da mãe e, se isto não é bem demarcado, ela fica como se tivesse que
ser o Falo que corresponde ao desejo da mãe. Então, a função da paternidade
no nível do simbólico é simplesmente dizer: “Deixa pra lá, que depois eu acabo
com essa bagunça. Tô sacando muito bem qual é! Isso não vai dar certo e eu
vou dizer que não dá”. E vai ficar no dito. Não estou pensando em nenhuma
ordem de parentesco, estou pensando nessa transação a três, nesse trio.
Se Laio, então, não fosse um debilóide, se a debilidade mental dele não
fosse tão grande, quando ouvisse o oráculo dizia: “Ah! já saquei, foi o mesmo
que já passei. Deixa a mãe transar com o garoto, e o garoto transar com a
mãe, que, no devido momento, explico pra ele que não se trata disso e ele vai
entender, porque eu tenho palavra!” Mas Laio não tem palavra, também não
foi analisado. Ou, pelo menos, não teve, também, pai. Fazendo, então, uma
infinitização disso, para trás, Laio não tinha como dizer a Édipo, e Édipo não
tem como dizer isso, a não ser tragicamente, furando os próprios olhos. O que
não é nenhuma punição, é rigor. É uma demonstração de suspensão do imaginário,
queda no simbólico. Infinitizando para trás, então, vemos que a paternidade ali
sempre falhou. Se não, Laio não estava nessa.
* * *
110
Édipo em calúnia
Ele vai custar a sacar a relação simbólica. Mas, pressionado de algum modo,
um dia, ele vai sacar, suspender esse imaginário, e cair na margem, como
veremos em Édipo em Colona. Ele será aquele ponto que traça a margem do
seu povo, como paternidade. Ele agora, Édipo, é o simbólico daquele povo.
Édipo é o mito da fundação do Nome do Pai, como se inaugurasse
essa fundação com reconhecimento do simbólico vigendo acima das, digamos,
tentações imaginárias. O mito é excelente porque, mais uma vez, ele só vai se
dar conta dessa paternidade simbólica depois que casa com Jocasta, assim
como o bebê só vai entrar “numa” de interdição de incesto depois que transa
com a mãe. Transa, mas não fecha. A transação jamais deixa de acontecer –
começa-se por ela. Não é a transação que é proibida, o que é proibido é a
permanência na transação. Mais do que isto: é proibido crer que a transação
o seja, ou seja, que seja uma relação. A relação sexual com a mãe é
impossível, como é impossível qualquer relação sexual. O grande e terrível
erro do Édipo não é que ele transa com a mãe, é que ele acredita na efetividade
da transação.
Devem existir questões práticas que reduzem o que é de estrutura
lógica de fundação a enunciados morais. Ao invés de se entender que é preciso
suspender o imaginário, conceber o simbólico como fundação paterna e perceber
a impossibilidade de realização de qualquer relação, a começar pela do incesto,
pensa-se moralizando no nível da vulgaridade prática, na interdição da transação.
O que é impossível – é impossível proibir a transação! Aquela libidinagem
uterina – até que inventem a tal da chocadeira, o bebê de proveta mais apurado
– vai funcionar... É preciso tirar a santarrice desses enunciados e entender o
que há de estrutural no processo.
Lacan já disse que A mulher só podia ser abordada como mãe, numa
“relação” sexual. Como A mulher não existe, ela só comparece, digamos assim,
como mãe, não comparece de outro modo. No regime estrutural do sujeito –
estrutural significando real, simbólico e imaginário –, a idéia de A Mulher é
aquilo que ele tomou como mãe. Mas, A Mulher não existe, é alguma coisa
que vem em substituição a essa inexistência, uma configuração da mulher em
111
Psicanálise & Polética
termos de mãe. Assim como os objetos parciais que a gente pode bolinar na
relação com os corpos ditos femininos são objetos da mãe. São aqueles objetos
primeiros, não há outros. Isso, aliás, é sempre uma reedição, seja corpo macho
ou fêmeo, do corpo da mãe. E, mais, sempre se feminiza porque sempre
comparece com aqueles objetos, ou metáforas, ou metonímias deles. Mesmo
um pênis, não é macho.
Podemos talvez suspeitar no mito de Édipo alguns níveis diversos de
construção. Esse nível mais evidente, que tratamos mais cotidianamente como
primeiro, que é o assassínio do pai e o incesto com a mãe, ou vice-versa, tem
por trás outros níveis de abordagem possível. A distinção entre pai adotivo e
pai genitor, por exemplo. Isto é importante para chegarmos, depois, àquela
questão do genital. Há uma absoluta incompetência, até o momento da
descoberta, tanto em Laio quanto em Édipo, de distinguir o que é um pai adotivo
do que é um pai genitor. Até segunda ordem, não há menor comprovação
possível de pai genitor. Há suspeitas, mas comprovação não se tem. Pai adotivo
é, na verdade, todo e qualquer pai que assume a paternidade, até que ele seja
mesmo chamado de pai do sujeito. Assumir a paternidade é ser o pai adotivo.
Todo pai é adotivo, em última instância.
Laio, ele supõe ser pai genitor. Recusa-se a ser pai adotivo para
distinguir a paternidade, assim como Édipo consegue um pai adotivo, que ele
supõe que seja genitor, foge dele (porque acha que é genitor) e cai na mão do
genitor... que vai ser assassinado por incompetência de ser adotivo. Mais ou
menos o contrário, na ordem mítica, do que acontece com Tarzan: o pai genitor,
sendo inglês, vai funcionar como pai simbólico, porque é morto antes da tomada
de consciência dele. Ou seja, ele é apresentado como pai, digamos, verdadeiro,
no sentido da palavra, nos dois sentidos, mas o mito quer passá-lo como aquele
que seria indicador do simbólico na estrutura de Tarzan. E o macacão, lá, seria
suposto por ele pai genitor, sem conseguir ser pai simbólico. Talvez se encontre
essa dicotomia sempre presente nesses mitos: a confusão do pai genitor com o
pai simbólico, o pai adotivo, aquele que assume a paternidade.
Outra coisa importante – que não sei se alguém já tratou, pois não
112
Édipo em calúnia
tenho conhecimento – é o fato de que quando Édipo quer ter certeza a respeito
da verdade, ele manda Creonte saber. Isto porque a historinha de que Laio lhe
fizera o que fez na infância, a ele que não sabia que era ele, certamente, que se
contava, que corria por ali subrepticiamente. Ele, juntando as peças, podia
supor isso, mas denegou o tempo todo e, até, deu uma bruta esculhambação e
ameaçou romper com Creonte. Tipo analisando que ameaça romper com o
analista, porque este lhe aponta a verdade.
Édipo chama, então, o testemunho de Tirésias, quando fica na dúvida.
Tirésias é o poeta, no sentido de profeta, de vate. Ele é cego e transexual, e é,
freqüentemente, chamado para dar testemunho a respeito da verdade. Tirésias,
geralmente, ou não quer se meter no assunto, ou diz a verdade. E é o que faz
nesse momento. Acaba dizendo a verdade a Édipo. Ele se rebela contra Tirésias,
mas seu testemunho é intocável, e também comprovável. Édipo não pode
fugir disto.
Se, por um lado, Édipo está metido nessa embrulhada em função da
não-decisão paterna para ele, vinda de Laio, chega afinal, através de uma
série de relações lógicas que vai tecendo, a descobrir que a situação é aquela
mesma, e que não pode ficar numa boa pensando que se locupletou, que está
tudo acabado, tudo formidável, porque a peste sobrevém. Na verdade, aí nesse
mito tem alguma coisa parecida com a Torre de Babel.
A Torre de Babel vem dizer que não existe a linguagem, que ela é
impossível. Muito menos a dominação de uma linguagem, e muito menos ainda
a dominação de uma língua. Que tudo fica fracionado em alínguas. O particular
aparece destruindo qualquer totalização. Édipo fica numa boa, é o rei, conseguiu
a felicidade do reino, etc., mas vem a peste, do mesmo modo que sobrevém a
bagunça na linguagem. A peste começa a dizimar aquela felicidade toda, justa-
mente porque essa felicidade está fundada no imaginário de uma totalização,
de uma regra plena, de uma arrumação perfeita. Se tomarmos essa peste e
essa dizimação como ação do inconsciente, ela vem em função da suposição
de que o incesto é possível. A Torre de Babel é o lugar do incesto onde se
supôs que era possível a língua materna totalizar e locupletar a todos. O Senhor
113
Psicanálise & Polética
114
Édipo em calúnia
radicalmente isto, Édipo deixa de ser rei e passa a ser poeta. Certamente, é
no lugar de Tirésias que ele cai, quando se lê Êdipo em Colona.
* * *
115
Psicanálise & Polética
função fálica que não é senão eco da função paterna. Não se pode confundir
Falo enquanto o significante que garante a castração, com a imaginarização
dele. Essa felicidade de certas mulheres, sobretudo mães, Jocasta em especial,
é atribuir-se imaginariamente a posição fálica – não é assumir uma posição
fálica enquanto significante paterno. Isto ela só pode transmitir da palavra de
um outro. O que está havendo é um assumir-se imaginariamente como Falo,
ou colocar imaginariamente a criança no lugar do Falo. É uma espécie de
produção metafórica que congela imaginariamente o Falo. Esta é a grande
descoberta de Édipo, nesse momento: não se trata de imaginarizar o Falo, mas
de se referenciar a ele, e nada mais. Com o que, a mãe vira simples mulher e
as filhas também, para ele pelo menos. Ele fica com aquelas filhas, deambu-
lando em torno de Tebas, mas, para ele, elas são meros significantes novos,
como quem diz cruzeiros novos, quer dizer, têm uma outra impostação.
O surgimento de Tirésias, em Édipo, é o que me parece principal. É o
momento em que Édipo pode arcar com aquilo que Tirésias tem a dizer. Ou
seja, ele pode dizer por Tirésias, dizer como Tirésias. É um negócio terrível. Há
um passe aí. E é um passe que não abomina o incesto. Tirésias fala do lugar do
analista, como Édipo, também, vai começar a falar, logo depois, como Édipo
em Colona. Quando ele diz algo, é uma interpretação que soa como violenta
para o pessoal que está em volta. Isto é não só referenciar-se ao Nome do Pai,
como assumir esse lugar, de demarcação, de escansão dos desejos. Mas não
há aí abominação do incesto. Há, sim, verificação dele, pura e simplesmente.
Fazendo um parêntese, o autista, por exemplo, é aquele que não precisa
falar, porque se ele fala a linguagem, que não existe, é como se ele falasse o
tempo todo. Ele não precisa da diferença da língua. Quer dizer, no fundo, nem
mãe ele tem. Não há diferenciação entre ele e a mãe, logo não tem mãe.
Então, ele é a mãe? Autista é a mãe. É interessante este caminho, pois a
maternidade é um autismo. Não é à toa que Jesus Cristo chamava a mãe dele
de mulher... Não há nenhum distanciamento entre o autista e a mãe, logo posso
dizer que ele e a mãe são a mesma coisa. Ele é a mãe, é mãe de si-mesmo ou
coisa parecida. Lá mesmo na relação do chamado fort-da, há alguma coisa
116
Édipo em calúnia
117
Psicanálise & Polética
que se acrescenta cada dia mais, dessa impostação racista. Hoje, por exemplo,
tomei um táxi na cidade. O sujeito dirigia perigosamente. Eu estava sentado lá
atrás, com as cuecas na mão. Esse cara pode me matar. E o rapaz pegou uns
panfletozinhos e me deu. Tratava-se de uma irmandade desse tipo. O jovem
era protestante, de uma certa comunidade que tem uma estação de rádio, e ele
a ouvia incessantemente no carro, tocando músicas de compositores brasileiros
os mais desconhecidos. Por acaso, conheço alguns deles, que ninguém sabe
quem é, tipo professor de Escola de Música, que faz aquelas cantatas, aqueles
negócios, uma coisa horrorosa, que ele simplesmente não podia suportar. Mas,
por obsessão, ele tem que ouvir aquela rádio. E quando ele passava pelos
carros, dava aquele papelzinho falando assim: “Irmão!”. Na suposição de que
o cara ia entrar na dele. Quer dizer, aquela neurose obsessiva, dirigindo um
carro, jamais pensou por um instante que eu não quisesse ser irmão dele... e
morrer no trânsito. Isso ele não pensou.
Essa referência a um discurso fundando uma tal fraternidade chama-
se racismo. Isto é uma coisa que não consigo – é um fracasso! – transmitir
aqui neste Colégio: que isso é um racismo. A insistência das pessoas em formar
cartéis entre irmãos, em evitar certas colocações que são explosivas, é uma
acostumação a essa ordem racista em que vivemos. É um fracasso! Certamente
que meu! Se não conseguirmos desvincular essas coisas, estaremos fazendo
mais uma irmandade desse tipo. A única maneira que pode dar um pouco certo
é na referência à lei. Ela é tão difícil de se instalar justamente porque a pressão
imaginária é muito alta. Quer dizer, a castração é recusada com freqüência. A
gente se recusa a enfrentar a castração, e com muita veemência. Enfrentar a
castração é poder suportar a diferença, desde que a lei esteja em vigor. Suportar
diferença sem lei, não se consegue. Porque não se consegue fazer vigorar a lei
é que as pessoas se tornam racistas, arranjam um recanto edipiano de conforto,
e o resto é outra gente, não interessa. As sociedades psicanalíticas não são
outra coisa senão isso. Essas que existem por aí...
Lacan reclamou naquele momento de dissolução: “Estão querendo
amarrar os meus pés”. Ou seja: “Estão querendo fazer um racismo da Escola
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Édipo em calúnia
Freudiana de Paris!”. É disso que ele estava reclamando! Todo mundo estava
metendo as unhas uns nos outros, por questões, às vezes, as mais idiotas.
Vemos a dificuldade que há. Quer dizer, a psicanálise é a dissolução: e a
dissolução terá fim? Quero supor que tem. Mas, se esse fim é remoto para
cada um, é possível, pelo menos, que se viva o trabalho da dissolução o
tempo todo.
Freud era um sujeito prudente. Não tinha a menor vocação para ser
Jesus Cristo, de abrir os braços para ser crucificado, o que demonstra que ele
tinha um pouco de saúde. Esse negócio de dar pérolas aos porcos, vamos com
calma... Entendo que está indicado claramente no Mal-Estar na Cultura que
a função da psicanálise é a dissolução da cultura. É claro que ele passa todas
as manteigas necessárias para um leitor desavisado. Ele não está dando aquele
livro para analisandos dele, com os quais vai trabalhar mais ou menos
longamente. Há prudência no texto, muito necessária, talvez, naquele momento,
talvez mais do que hoje. Mas acho que, se se espremer, vai significar que ele
está falando claramente que se trata da dissolução do complexo de Édipo, que
é fundador da cultura.
Freqüentemente, quando se aponta uma coisa desse tipo, o sujeito diz:
“Mas isso vai tirar as minhas bases, e como é que fica?”. Estamos tocando aí
no núcleo da castração. O terror que temos de que, se for tirada a regra,
ficaremos sem lei, é, simplesmente, prova de que não sabemos dela. Se não,
não se teria medo de retirar a regra.
Estou tentando, desde o começo deste Seminário – e não cheguei lá
ainda –, justamente mostrar que a cultura não é o simbólico. O simbólico é
alguma coisa que é lugar onde a cultura pode se instalar, mas ela não é o
simbólico. Se Lévi-Strauss está certo – e acho que está –, se a interdição do
incesto é essa estrutura edipiana, dissolver o complexo de Edipo é simplesmente
alguma coisa como uma faca de dois gumes. Dissolver é algo da ordem da
abolição. Freud disse, deixou claro, que a psicanálise pretende destruir o
complexo de Édipo.
Não precisa de cultura para haver superego. Se a lei está em vigor,
119
Psicanálise & Polética
120
Édipo em calúnia
Desde o começo de cada um que o imaginário que lhe foi trazido, o foi por
via simbólica. É uma espécie de coagulação de um texto. Esse texto toma
uma figura, toma pregnância.
É possível que essa tal cultura venha a acabar no registro de poético.
É suponível que possa acontecer. Não é nenhum voto, nenhuma suposição de
uma revolução que se possa fazer. É simplesmente o que está aí. Acontecerá
ou não. É o que se pode pensar a respeito. Assim é que acho uma sonhação
meio exótica, meio inaceitável como princípio, no pensamento de Deleuze-
Guattari. Eles falam como se Édipo tivesse sido realmente dissolvido, como se
estivessem vivendo nalguma pós-cultura. Pode ser um texto ótimo. Tudo bem,
mas, simplesmente, não se vê isso. A cada momento se reencontra no divã o
chato do Édipo, que enche o saco de qualquer um.
Se Édipo pode aceitar interpretação de Tirésias como sendo a que lhe
ocorre, ele só pode ter conseguido uma transferência com Tirésías. Por isso
funciona. Eis senão quando, num jogo de atritos, mais ou menos amorosos e
odientos, ele consegue aceitar a interpretação de Tirésias como verdadeira. E,
aí, ele saca. O sujeito suposto saber está subdito à palavra de Tirésias, o último
recurso. É o poeta. Ele fica fora da transação, fica no limite.
Suponhamos que a cultura seja um tipo de arrolamento. O que é que
mora ali? É o ato de arrolamento. O que interessa é o ato de arrolar as coisas.
Isto é que é o ato-poético, como o Nome do Pai: o desejo que está em jogo
nesse risco. O pai corre o risco de fazer essa elipse que arrola e omite. Está no
limite. Se arrola e omite, pode ser outro, o risco. O risco é sempre outro.
Porque, exatamente, o que a cultura faz é só se compreender por dentro. Ela
esquece dos seus limites e não transa com aquela gente do lado de lá, isto é, da
borda. Ela não chega à beirada, pensa que pode cair no abismo. Esta pergunta
vem sempre: “Se tirar isso, como é que fica?”. Pensa-se que a Terra é chata.
Se se chegar à beirada, se cai no abismo. Não se pode mudar a fronteira? Por
que não? Ficar em disponibilidade para outros arrolamentos significantes... Os
artistas estão carecas de dizer isto.
Só há salvação para Édipo se ele se tornar Tirésias. Não há outra.
121
Psicanálise & Polética
Assim como só há uma análise que dá certo: quando o sujeito vira psicanalista.
Se não virar, não deu certo. Pode até servir para o gasto, mas não deu certo.
* * *
[RESPOSTAS A PERGUNTAS]
(...)
122
Édipo em calúnia
(...)
22/ABR
123
Psicanálise & Polética
124
O gene e tal
6
O GENE E TAL
* * *
125
Psicanálise & Polética
função das nossas questões anteriores, pergunto: o que é essa cultura de que
se está falando aí?
Apesar de ser dita estrutural, essa estrutura que Lévi-Strauss demonstra
é, em última instância, de nível semiológico. É a apresentação de um mínimo
sistêmico que explica as significações pertinentes a isso que ali está como
cultura. Ou seja, nos dá a possibilidade de tirar uma significação e, às vezes,
até, com aparência de significado, dos fenômenos que ocorrem no seio disto
que ele chama de cultura. Na verdade, então, toda a operação deságua na
questão da significação, ou melhor, para falar mais amplamente, na
semiologização do campo da sociedade, que lá está confundida com cultura.
Sociedade e cultura são termos que se trocam com muita facilidade nos textos
de Lévi-Strauss. A minha questão é que a sociedade, talvez, não seja a mesma
coisa que cultura, e que cultura talvez seja, confirmando a definição de
Lévi-Strauss, isso que se estatui sobre a interdição do incesto. Com a ressalva
de que, talvez, a cultura não seja universal, e, muito menos, portanto, a interdição
do incesto que a garante.
Talvez pudéssemos chamar essa impostação geral na antropologia e,
em particular, na antropologia estrutural de Lévi-Strauss, de: nat/cult. O nat/
cult é essa tentativa de equacionar a oposição natureza/cultura para, depois,
quase que eliminar a oposição e apresentar a cultura como natureza do
homem. Se a interdição do incesto é suposta universal – ainda que na base do
sabonete Lever, porque a única garantia que Lévi-Strauss nos dá, como já
disse, é que 9 entre 10 estrelas da antropologia preferem a interdição do incesto
– de que tipo de universal está se tratando aí? Universal histórico, que
abrangeria passado, presente e futuro? É o que ele tenta. Só que o universal
é estrutural. Lacan diz mesmo que esse universal aí, só o é, na medida em
que é inscrito no simbólico. Quer dizer, é sua inscrição no simbólico que
o torna universal. É claro que tudo que está inscrito no simbólico é percorrido
por um sujeito qualquer. É ambígua essa colocação de Lacan.
O nat/cult é essa reafirmação dos ditos achados da antropologia
anterior: a questão da interdição do incesto fundando o social, que, no
126
O gene e tal
Se é que existe uma falta, este é o esquema que a psicanálise vai nos
dar: uma barra irredutível, a barra da castração. Do lado direito, temos os
efeitos dessa barragem. Do lado esquerdo, situa-se a falta e o que fica rasurado
é a natureza. Não há nenhuma passagem de natureza a cultura, porque natureza
é alguma coisa que não entra, que é foracluída, quer dizer, cai no real. E eu
diria que os efeitos desses acontecimentos – que poderia chamar de factício,
artifício, feitiço, se não fetiche, fictício, da coisa feita, em suma, da fixão – são
as coisas que vão se ficcionar, em função do simbólico, em artifícios, em
artefatos. Do lado direito, quero situar – o que pretendo desenvolver no
Seminário do próximo ano – o lugar aonde as músicas são feitas. Copiando o
que Lacan chama de “alíngua”, eu chamaria aquele lugar de “amúsica”. Talvez,
127
Psicanálise & Polética
a tal cultura seja apenas uma certa música, uma região desse lado direito. Na
borda, entre o limiar da cultura e a fixão em geral, a proibição do incesto seria
exatamente isso que constituiria essa borda. Essa fixão, essas fixões, essas
amúsicas, ou as amúsicas, são, todas, os efeitos da função simbólica, estejam
eles articulados ou não com o conceito de cultura. Em função da fundação
pela interdição do incesto, eu diria que o que a cultura articula num primeiro
plano é, justamente, a chamada ordem de parentesco, seja ela qual for, que
Lévi-Strauss teria demonstrado estar assentada nas estruturas elementares
como efeito mesmo da proibição do incesto. Como vemos, estou questio-
nando o esquema de cima com o de baixo.
Em existindo, então, essa falta, funcionando uma barra irredutível, uma
foraclusão (de qualquer aspecto) da natureza, jogando isso no real,
impossibilitando essa abordagem, isso poria, a partir dessa barra onde se situa
a castração, o fenômeno do simbólico. O simbólico surge como artificio,
como coisa factícia que vem em lugar daquilo que falta. Não tendo um
nome melhor para essas fixões, eu as chamaria de amúsicas – construtos que
podem ser muitos talvez – e eu colocaria a cultura apenas como uma dessas
possibilidades. Aquela mesma possibilidade de que fala Lévi-Strauss, na medida
em que ela é dita assentar-se na interdição do incesto, mas não na medida em
que isso seria o universal do falante. Mesmo porque é uma comparação evidente
no centro do livro Estruturas Elementares do Parentesco, que a interdição
do incesto funcionaria como funciona a linguagem.
Sei que estou fazendo uma série de perguntas aparentemente cretinas
em função da postura estrutural do pensamento de Lévi-Strauss, que não me
parece escapar disso, mas, é preciso questionar. Por exemplo, é possível falar-
se uma língua fora da proibição do incesto? Na perspectiva de Lévi-Strauss,
uma língua é da mesma ordem da interdição do incesto, na medida em que ela
produz algumas estruturas de regramentos, alguma função de regra - mas não
nesse embrulho em que se misturam as coisas –, situando com certa clareza,
do ponto de vista, por exemplo, etnográfico, a proibição do incesto enquanto
tal, enquanto especificamente fundadora de ordem de parentesco, ou enquanto
128
O gene e tal
129
Psicanálise & Polética
en-quanto tal. É claro! Porque está tudo amarrado. Posso mesmo pegar o
chamado Édipo enquanto mito e verificar que há lá diversos níveis, dos quais
talvez o mais próximo seja esse da interdição do incesto. Mas será que esses
níveis não são para ser distintos? Será que não são níveis diferentes, dos quais,
alguns, talvez, sejam dispensáveis?
Para poder abolir essa interdição do incesto enquanto tal, tenho que
dizer que a Lei se situa muito bem fora dela. A que nível tenho que descer para
garantir a Lei, mesmo que a interdição do incesto seja suspensa? Nas Estruturas
Elementares do Parentesco, p. 27, Lévi-Strauss diz: “O problema da proibição
do incesto não é tanto o de procurar que configurações históricas, diferentes
segundo os grupos, explicam as modalidades da instituição em tal ou tal
sociedade particular. O problema consiste em se perguntar que causas profun-
das e onipresentes fazem com que, em todas as sociedades, em todas as épocas,
exista uma regulamentação das relações entre os sexos”. A psicanálise está
plenamente de acordo, nada tem a dizer contra. Mas que causas profundas
fazem com que, em todas as épocas, exista uma regulamentação da relação
entre os sexos? Que regulamentação? Por que tem que ser interdição do incesto?
Perguntando de novo: quais são essas causas profundas? Elas pretendem regular
o quê? E como? A tal interdição do incesto é conjuminada no pensamento
estrutural, como se vê, p. 72, por exemplo, à exogamia. A proibição do incesto
e a exogamia constituem regras substancialmente idênticas, diz ele, e só diferem
uma da outra por um caráter secundário. E ele explica a secundariedade desse
caráter. Na verdade, se são regras idênticas, se repetem a mesma coisa, podemos
perguntar por que, ao invés de se falar em interdição do incesto, não se fala em
exogamia? Em vez de é proibido o incesto, é obrigado a exogamia? Segundo
esse texto, dá na mesma. Que diabo é isso, a exogamia? Não do ponto de vista
meramente antropológico.
Lacan chamou a instalação do sujeito na ordem do simbólico de função
metafórica que vai instalar o sujeito no campo do Outro, permitir um processo
de subjetivação e a metáfora, no caso, paterna, e que é como já mostrei no
Seminário do ano passado, metáfora e nada mais. É poder situar-se metafori-
130
O gene e tal
* * *
131
Psicanálise & Polética
132
O gene e tal
esse significante, nome do Pai, não surge, não emerge no lugar daquilo que é
significante para o sujeito, como desejo da mãe em função do que é significado
para o sujeito – essa palavra aí, no caso, me parece ruim, pois Lacan quer
dizer: expresso ao sujeito de algum modo, como o desejo da mãe –, o desejo da
mãe fica ocultado para haver emergência do Nome do Pai como função
significante, permitindo, portanto, o Falo surgir em lugar de significado do Nome
do Pai. Trata-se de uma função emprestada de significação ao Nome do Pai
por esse significante oculto, que é desejo da mãe, e que compareceu como
expressão, digamos, de significado do sujeito. Mas o engraçado é que o que vai
emergir como significado é o Falo, que é só significante. É um troca-troca de
significantes. Na verdade, Lacan estava demonstrando, nesse trabalho, que
não comparece jamais o tal significado e que a relação não existe. É apenas
transação de significante com significante, ou deslizando ou fazendo uma
atribuição que não é senão um tour de force de emergência de significação
possível. Nada mais.
Não é outra coisa que vai comparecer, na verdade, naquelas fundações
do lado da chamada cultura, naquele nosso esquema anterior. Foi, aliás, uma
coisa de que tentei falar um pouco na introdução de um texto sobre Guimarães
Rosa, de que posso pensar perfeitamente essa articulação como dupla atribuição
significante ao mesmo conjunto significante. Ou seja, isso que é significado ao
sujeito, no caso da fórmula, é um significante que serviu como média e extrema
razão. No pensamento de Lacan, nessas fórmulas que construiu, esse
significante como média e extrema razão entre o que é significado ao sujeito e
o significante paterno, não é senão esse conjunto significante que foi
empacotado, digamos assim, no mesmo campo expressivo, no mesmo conjunto
emprestado ao sujeito.
O que foi significado ao sujeito? Um pacote, um arrolamento de coisas
que exprimem o desejo da mãe. Esse pacote – já que o significado não existe,
e que o pré-verbal simplesmente não é pensável – não é senão um pacote
significante que remete a essa coisa que não é dita, mas que é o significante
que promove a significação daquilo que se chama o desejo da mãe.
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Psicanálise & Polética
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O gene e tal
que o Nome do Pai, como Lacan o define, é aquele significante que, no campo
do Outro, é significante desse Outro, como lugar da Lei. Que Lei? Justamente
essa que dá fundação à possibilidade de produzir metáfora, ou seja, produz
esse esgarçamento. A Lei se funda como (e funda o) desejo, e não como
proibição. Só se diz como proibição na medida em que não se pode dizer tudo.
A proibição se diz como limite. No entanto, o que importa é esse dizer, e não o
limite. Não é, falando melhor ainda, a limitação, o coágulo, mas essa fundação
limiar do dizer. E como não se pode dizer tudo, algo se diz, e nesse ato, há
movimento de desejo, no que há movimento metonímico/metafórico. Por isso,
não há nenhuma possibilidade de se fazer metáfora, sem fazer metonímia. Se
há binômio Lei/ Desejo, metáfora e metonímia não se separam senão
teoricamente.
Se aplicarmos aquele esqueminha à fórmula do Booz, de Lacan, veremos
que dá certo. Sa gerbe, sa femme, un homme, o feixe de traços que demarcam
Booz, uma coisa é substituída pela outra. O nome Booz é substituído por sa
gerbe na medida em que ambos são feixes de coisas, de traços, têm aspectos
de deslizamentos nas cadeias.
* * *
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que o mito arcaico de Édipo não fala de incesto, fala de parricídio. Édipo se
casa com outra pessoa, não com a mãe, e o clima é o mesmo em função do
parricídio. O que está em jogo aí é a questão da existência do sujeito. Até
segunda ordem, existe função de acoplamento de fulano com sicrano e, como
mostra Lacan, da postura sexual do sujeito, ou seja, seu entendimento e opção
diante da diferença sexual. Mas não necessariamente incesto, enquanto
incesto tenha a ver com essa proibição que funda a regra de parentesco.
Eu diria – sem me aprofundar hoje – que é possível encontrarmos três
níveis na castração. O que interessa, na verdade, é a castração.
O primeiro nível – fazendo a ordem inversa –, o nível mais antigo, mais
radical, mais de base, é a castração enquanto proibição de totalização para
significar uma impossibilidade. Alguma coisa vai ser dita proibindo o impulso
de toda completa ligação. Não porque isto seja possível, mas justo porque é
impossível, ou seja, a proibição é dita, porque não se pode dizer o impossível. É
proibido grudar com a mãe, grudar com qualquer coisa, simplesmente porque
essa coisa não totaliza pois não é A COISA. É proibido dizer tudo porque não
se pode dizer tudo. É proibido dizer A Verdade porque ela não pode ser dita, é
impossível. Pode-se dizer alguma verdade, mas não toda. Este seria um nível
mais radical.
Num segundo nível, talvez, pudéssemos situar o complexo de Édipo
– excluindo daí, portanto, a interdição do incesto como fundadora do
parentesco – com “é proibido matar”, no caso, “matar o pai”. O que está
sendo dito nesta proibição? Posso dizer simplesmente que é proibido matar.
No complexo de Édipo é proibido matar o pai, em função da eliminação da
diferença diante da convergência de desejo. Ou seja, o mesmo objeto é
erigido em objeto de desejo por mais de um sujeito. Nessa convergência
vem a luta de prestígio e o impulso é de eliminar o outro e ficar com o objeto
só para si. Nisto está a assunção do parricídio no complexo de Édipo. É
criminoso Édipo matar o pai, sobretudo porque ele não quer admitir – talvez
na suposição de que o objeto possa completá-lo – que este objeto só é
desejável porque é desejado por alguém, se não, não o seria nem por ele. A
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mais. Porque tudo cai numa cadeia. Eu diria mesmo que uma coisa de se
observar numa análise é o momento em que o pai real vira irmão.
28/ABR
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AINDA O GENE E TAL
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havia algum problema, começou a conversar com ela, e ela acabou se abrindo.
Papo de psicóloga, contou aquela coisa toda... A coisa, então, tomou um caráter
psicopolicial e, naturalmente, eles foram tratados: o pai foi posto para fora de
casa, textualmente, para que Peggy, a garotinha, pudesse viver com sua mãe e
irmãos. Mas foi permitido ao pai continuar a trabalhar para poder sustentá-los,
o que é uma grande sacanagem. Descaradamente eles dizem isso assim, sem
a menor vergonha. Imediatamente, ele passou a se juntar aos “Pais Unidos”,
que é um grupo de ofensores das suas mulheres, que se encontram regularmente
para discutir os seus problemas e que agora possui 46 dependências em 15
estados norte-americanos. A coisa vai bem. É por isso que o Colégio Freudiano
é desse tamanhinho. O pai já apresentou 600 horas de serviço à comunidade,
em lugar da prisão, e por aí vai... Depois, temos as indicações dessa instituição,
com seus 28 programas na Califórnia, terra do nosso “amigo” , que está citado
no artigo sobre a moral majority, o chamado Reagan, e 18 outros estados, 200
programas de tele-educação... É aquele negócio, aí temos que lembrar do nosso
amigo Michel Foucault, quando fala dessa obrigatoriedade de confessar... E o
conselho final: “Não escondam isso, vocês não estão sozinhos e podem ser
ajudados”. É claro que não estão sozinhos. Quem quiser, pode ir lá. Existe toda
uma armadura, além das institucionais e normais, tem todo um aparelho, toda
essa coisa linda, para tentar não coibir, mas tentar ajudar, e curar essas coisas.
O outro caso foi em Minas, negócio de brasileiro – vocês viram n’O
Globo? Apareceu Diadorim, afinal, Guimarães Rosa já tinha escrito esta história,
antes de ela acontecer. Uma moça, filha de rico fazendeiro, usando os poderes,
talvez, que ela tem, foi na cidade vizinha, fez outro registro com o nome no
masculino, casou com outra moça, na Igreja. Elas têm 10 anos de casadas e
têm um filho. Tudo direitinho. Certamente deve ter havido uma grande conivência
para tudo isso acontecer, porque a família tinha testemunha, tinha tudo... e, a
certa altura, a denúncia aparece, etc. Ela confessou que o filho era de um
pedreiro que lá passou... Ela conseguiu um espermatozóide emprestado e, agora,
estão fazendo um escândalo. Interessante que no primeiro artigo de jornal que
saiu, a coisa estava assim meio sobre celeuma jurídica. Diz o jornal que o
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Ainda o gene e tal
código civil não prevê o caso. Vejam só que foraclusão. Várias proibições são
previstas e esqueceram que podiam dar esse golpe. Não passou pela cabeça
dos redatores justamente porque não deve ter passado outra coisa. A diferença
sexual deve ter sido recalcada. Nos impedimentos do artigo 208 não há menção
a casamento de pessoas do mesmo sexo. Esqueceram. E a moça, que é a tal
da José Dolores Durões, fazendeiro, agora está sendo processado, etc. Há um
processo de anulação do casamento. Os juízes e os advogados começaram a
brigar porque foi o pai dela quem pediu a anulação do casamento. Certamente,
ele estava careca de saber que não era o caso. Ele pediu a anulação para o
filho dela não herdar a fazenda, porque é filho da outra... Isto dez anos depois.
É ilegal porque não foi uma das partes que pediu. O casamento é feito entre as
partes, o juiz é testemunha. Agora o juiz está querendo botar todo mundo na
cadeia, os vizinhos, o gato, o papagaio, etc. O engraçado é que o advogado de
defesa sentiu-se tão pressionado que, de repente, deu o parecer que a promotoria
estava com toda a razão. Ou seja, ele não sabe se comportar nem
profissionalmente.
Quer dizer, começam a pintar coisas interessantíssimas que a gente
precisava pensar. Aí retornamos ao tal do incesto, e pensando como minoria,
certamente em contraposição àquela indecência que é a tal da moral majority...
* * *
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Psicanálise & Polética
que se resume tudo o que diz respeito ao complexo de Édipo”. Podemos, então,
dizer que se o complexo de Édipo é o complexo da castração, trata-se de
pensar a castração. E, se tudo que é do complexo de Édipo, que é do complexo
da castração, se resume na lógica da diferença sexual, com referência nessas
fórmulas quânticas, é isto que tem que ser pensado.
Ao mesmo tempo, uma referenciazinha à questão da Lei. Nos Écrits,
p. 852, coisa antiga, Lacan diz: “A Lei está a serviço do desejo que ela institui
pela interdição do incesto”. A Lei, então, está imbricada no complexo de
castração e, portanto, em última instância, segundo o percurso de Lacan, na
questão central da psicanálise, por onde tudo passa, que é a questão da diferença
sexual. Aí vem a questão da diferença entre amor e desejo, referenciada à
diferença sexual. Isto num texto de Ornicar?, 19, p. 9: “É quando um homem
é mulher que ele ama, quer dizer, no momento em que ele aspira por algo que
é seu objeto. Por outro lado, é enquanto homem que ele deseja, isto é, que ele
se suporta por algo que se chama propriamente tesão”, bander em francês.
Noutro lugar, falando de uma postura em final de análise, diz que é quando o
sujeito assumiria seu sexo. Assumir seu sexo é, para um homem, como está
definido nas fórmulas quânticas, reconhecer que há mulheres, e, para uma mu-
lher, reconhecer que há homens. Então, simplesmente, para um homem
reconhecer que há mulheres, é o sujeito ter-se situado numa postura masculina
e reconhecer a diferença, e vice-versamente.
É quando um homem é mulher que ele ama. Homem, aqui, no sentido
da espécie – a espécie se define pelo masculino. Quer dizer, no momento
em que ele aspira por algo que é seu objeto, ele é mulher. Uma coisa é
bander, ter tesão por objeto, outra, é viver em aspiração por ele. Aspirar,
lembra furo.
Com referência à interdição do incesto, e do ponto de vista da Lei, em
Ornicar?, 11, p. 7, Lacan chama a atenção para que “a Lei não tem
absolutamente nada a ver com as leis do mundo real, é simplesmente a lei do
amor, quer dizer” – aí temos que falar em francês – “la père-version” – a
versão paterna, a pater versão que, em francês, soa perversion, perversão.
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Ainda o gene e tal
O que quer dizer isso tudo? Como podemos tentar juntar esses
caquinhos? Peço-lhes que me acompanhem – criticamente, de preferência –
num começo de tentativa de distinguir momentos imbricados no complexo de
Édipo e na castração.
Em algum lugar – nos Écrits, se não me engano –, falando da questão
do surgimento desse desejo que é garantido pela Lei mediante a proibição do
incesto, Lacan diz que “o gozo deve ser proibido no plano do mito para ser
permitido no plano da realidade cotidiana”, estou citando de cabeça. Essa
proibição é um embargo ao gozo. Ele aparece miticamente como embargado
para que, no plano do cotidiano, possa ser diluído. Está mal citado, mas acho
que a referência, aí, no caso, é que o que o mito apresenta como embargo,
como proibição, é o que possibilita a produção de gozo, naturalmente que
fálico, no cotidiano. Esta citação antiga de Lacan é de antes da referenciação
ao gozo do Outro. A coisa fica, mesmo, superada, pois no outro texto dos
Écrits, p. 852, que citei há pouco, a Lei está a serviço do desejo que ela
institui pela interdição do incesto. Em suma, poderíamos dizer que essa coisa
que é fundamental, nuclear, em toda a estruturação da psicanálise, em todo
acontecimento psicanalítico, não é senão, em última instância, a vigência
simbólica da diferença sexual, a qual é regente, digamos assim, de toda e
qual-quer diferença, no plano freudiano. Quer dizer, o reconhecimento da
diferença no plano sexual, como regente de toda e qualquer diferença, e o não
reconhecimento da diferença como homossexualização generalizada e,
portanto, uma espécie de assassínio da diferença. Em última instância, temos,
então, a diferença sexual como regente da diferença, contendo o que seja
reconhecido pelo sujeito. E nisto se resumiria o que é todo o engrazamento do
complexo de castração.
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coisa que caldo em português não diz, que é a fervura, a borbulhância, ou seja,
é um caldo quente e borbulhante. Bouillon é uma espécie de sopa “lavoisier”
fervendo. Em português mal traduzido, então, seria, continua Lacan: “uma
caldo-cultura; seria melhor chamar cultura de um caldo de linguagem”. Seria,
digamos, a “cozido-cultura” em lugar de agricultura e isto daria alguma coisa
completamente diferente da cultura. Está aí toda a dica de que não é por essa
via em que o moço, o Needham, está indo, de diferença de cultura para cultura,
mas, sim, a cultura posta em questão, como, nada mais, nada menos, metáfora.
Ou seja, sintoma, conforme definido no rigor da teoria lacaniana. Sintoma é
metáfora. Então, quando estamos vivendo na cultura, seja ela qual for – e não
pelo fato de haver diferença cultural, mas pelo fato de haver cultura –, estamos
metidos num certo sintoma. E sintoma tem data, não é algo que existiu sempre.
Uma metáfora é algo localizado. Metáfora e significado são a mesma
coisa. Não há significado no sentido saussureano, o máximo que podemos ter
é significado no sentido lacaniano: metáfora produzida num certo momento,
passagem a certa significação. No que ela é produzida é desvelamento de
sentido, mas no que é um produto, é ocultamento de significante. São as duas
faces da coisa, ou a mesma face ambígua. Quando perde o sentido, salta o
significante tresloucado, em busca de novas e possíveis amarrações. Por isso
é rico aquele pedacinho de texto: estamos metidos num sintoma chamado
agricultura, e que chamo de neolítico. Então, não fará parte desse sintoma –
chamado neolítico, chamado agricultura, chamado cultura, em última instância,
como metáfora de agri –, não será o núcleo disso, dessa metáfora, o Édipo?
Não o Édipo por inteiro – porque Édipo é uma grande metáfora para várias
metaforazinhas –, mas essa metáfora chamada proibição do incesto. Proibição
do incesto é estrutural, ou é metáfora? Se é estrutural, é condição sine qua
non do falante. Se é metáfora, se é sintoma, é um aparelho de significância,
produzindo significação num certo prazo.
O sintoma é inaugural do falante, instala o falante, mas não tem que
ser esse. Não estou dizendo que a interdição do incesto é o sintoma, ela é um
sintoma. É um, como uma mulher. Uma mulher é um sintoma. Existem sintomas,
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não o sintoma. Se você mantém um sintoma, sabe o que fazer com ele e sabe,
sobretudo, dizê-lo, o que acontece? Se tenho uma metáfora, chamada sintoma,
sobre a qual eu me esteio, e, de repente, sei fazer com ela, no sentido de
savoir-faire, o que posso fazer, senão continuar a metaforizar... e, portanto,
dissolver? Dissolver não significa acabar com a possibilidade de metáfora.
Lacan diz: dissolver no real. O real é isso: o impossível à espera de ser dito.
Não é esperança, é attendre. Consigo ler em Lacan uma denúncia da cultura,
esta sendo pura metáfora. Tanto é que a ordem de parentesco, o sofrimento
edipiano, etc., reduzido a tudo isso que vimos ser reduzido e, aqui, no caso, no
seu surgimento em divã, o próprio anedotário, não é senão exposição de alíngua,
ou seja, de sintoma.
Nada impede que o superego continue, como coloca Freud, considerado
como herdeiro do complexo de Édipo. Isto na medida em que possamos distinguir
essa metáfora da estrutura que a garante, pois existe uma estrutura que garante
a metáfora. Metáfora não aparece sozinha. Vamos escalonar isso. Há.
primeiramente, garantia estrutural do surgimento da Lei por alguma via que vai
criar um universal possível, dizível, nem que seja dizer “não” ao gozo fálico,
criando castração, nesse nível abstrato. Em seguida, a conteudização, a
sintomatização disso num regime chamado edipiano. Aí eu poderia dizer que o
complexo de Édipo é herdeiro da Lei, se seguir o raciocínio que estou seguindo.
Só que podia ser o complexo de Édipo quanto podia ser outro, pela mesma Lei.
Qualquer outra invenção seria plausível, desde que estivesse conforme com a
Lei. Em última instância, qual é a Lei? A relação sexual é impossível, a diferença
existe, o real é impossível. Não está proibido aí de transar com a mãe, mas isso
tem que ser dito de algum modo. A Lei é essa impossível totalização, impossível
relação sexual, etc., e isso se quantifica, se conteudiza, num anedotário chamado
Édipo. O superego passa a ser o herdeiro do Édipo. O superego não é Lei, de
modo algum. Ele é uma espécie de parasita da Lei.
O senso de culpa, como Freud coloca, é senso de falta. Não é senso
de exigência de punição no nível da consciência. É aquilo que comparece,
como estrutura, no regime da falta, de pura dívida simbólica, o que vai ser
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“Papai” vai funcionar como terceiro, cortar essa tendência coagulante entre
esses dois, etc., e, então, está montado o quadro do Édipo. Se tirarmos esses
nomes e pusermos letras, quaisquer que sejam, A, B e C, dará no mesmo.
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muito bem, mas não se tem força suficiente para não ser, daqui a pouco, invadida
por outra. Essa metáfora chamada cultura tem tido uma força de redundância
extrema porque tem esteios fortíssimos em toda função narcísica, em toda
essa inclinação de que falei. Entretanto, algo está acontecendo por aí, com
uma invasão simbólica cada vez mais fracionante, que vem tirando, mesmo
com a permanência, digamos, legal, no sentido jurídico, essa figura. Os
comportamentos a estão engolindo. É aquilo que Lacan diz: a agri-cultura está
meio desmoralizada, o bouillon é que está fervendo cada vez mais. Não acho
que eu esteja dando nenhum passo de vanguarda, estou me perguntando como
se pode pensar esta zorra. Porque a zorra já pintou e a cultura não tem se
sustentado enquanto tal em seus aspectos mais superficiais. Estaria me sentindo
delirante se, simplesmente, estivesse inventando esta questão. Só me permito
estar falando disto porque é a maneira que suponho ter para interpretar algo
que estou escutando, algo que passa pelos meus ouvidos, pela minha escuta da
cultura. Não estou supondo, de modo algum, que o meu analisando vá fazer
isto ou aquilo. O que parece é que ele está falando de um troço assim e esse
enunciado não se aguentaria, num determinado prazo a não ser por terrorismo.
Terrorismo de Estado, terrorismo de cultura, não terrorismo tipo vagabundo,
desse que atira no João Paulo... E qual seria o outro Estado possível? Não
faço a menor idéia. Se soubesse, não estava contando a vocês. Eu simplesmente
me espanto com esta zorra, e suponho que é por aqui a reflexão.
Lacan diz que o racismo vem do futuro. Isto sem nenhum otimismo
quanto ao que vai acontecer para frente, e a gente fica embananado com esta
frase. O que me ocorre no momento é supor, por exemplo, que, se não se cai
no conto da cultura, se a coisa começa a fracionar, por exigência ou necessidade
de interseção de enunciados, a coisa pode se exacerbar em núcleos muito
diversos, e fundando um certo racismo, que não é senão uma repetição discursiva.
Racismo é um discurso brigando com outro. É um discurso se supondo
fundamental. O que me parece, assim de longe, que me chega a longa distância,
é que, talvez, se esteja atravessando uma barra em que isto impera, mas não
está conseguindo governar. Reina, mas não governa. Dá para perceber isto na
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enquanto que eu quero supor, com Lacan, que ele é estrutural. Como bom
monoteísta, fico com Lacan. Ele está dizendo que esses surgimentos todos
aparecem e são denunciados ali como mera repetição de um pensamento velho,
porque, afinal de contas, é velho. Afinal, se é isso que a gente está aqui
articulando, é apenas uma metáfora.
O que está como uma dispersão muito grande, o fato de estarmos
nesse caminho, como esquecimento do primeiro nível que coloquei, vai criar
uma micro-política, como a chama Deleuze-Guattari, que fica apenas no segundo
nível. E isto do mesmo modo que a cultura, como totalizante, até agora, faz o
mesmo, desemboca na mesma configuração, também, por esquecimento da
mesma coisa. Guattari teve uma briga comigo, em plena praia de Copacabana,
por causa da Lei. Ele diz que não há esse troço. Se quiserem, podemos chamar
o Guattari aqui para ele falar. Mas o que eles dizem nada tem a ver com Lei. O
que existe para eles é um ritmo politeísta, uma grande dispersão de elementos
brotando, cada um na sua especificação, no segundo nível. Considero isto um
esquecimento do primeiro nível e, portanto, algo que pode dar numa vocação
nazista. Não havendo nenhuma referência para reconsiderar o outro como
outro, na sua diferença, e dar um basta na minha intervenção no outro. Neste
nível, vale tudo, vale aparecer um Hitler dizendo: “Vamos fazer um devenir-
animal... nazista”. Aí, ele diz que é um movimento de política da diferença e
não consegue realizá-lo, mas enche o nosso saco, e enche o forno de judeus. E
cai numa perversidade, numa perversão propriamente dita. E com isto eu não
posso concordar, não entra na minha cabeça. Em Mille Plateaux, segundo
ele, é da ordem da psicose, para mim é da ordem da perversidade, pura e
simples. Se ele entra na ordem da psicose pura e simples, seria esta aqui, a não
ser que ele me defina outra ordem de psicose.
Ele quer o acontecimento independente da Lei, no momento mesmo
do aparecimento do acontecimento. Pintou o aparecimento do instante
histórico, o aparecimento no momento, é muito bonito, pode até ser curtido,
estou com ele e não abro. Agora, se isso esconde a referência à possibilidade
de manter um distanciamento, e um basta às ações neste primeiro nível, isso
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PERGUNTAS
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13/MAI
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vai aparecer de uma vez por todas é a generalidade do fenômeno edipiano, sua
abrangência maior, suas franjas, reduzindo, em última instância, toda a questão
do Édipo à castração. E, ulteriormente, há o teorema formulado nas fórmulas
quânticas da sexuação, da diferença sexual. A calúnia que se faz a Édipo é
aproveitar o folclore psicanalítico, veiculado sobretudo pela IPA e seus
seguidores, em torno dessa fantasiazinha, dessa aparência sintomática mínima
com que Édipo se apresenta, desse romancezinho familiar com a mãe, e a
necessidade de cortar aí – quando isso é apenas uma primeira movimentação
do campo edipiano.
Nosso interesse é mostrar uma dupla articulação fundamental, ou
fundadora, da cultura. Ou seja, na tentativa de distinguir o momento de entrada
da Lei e o momento de fundação da cultura, é preciso estabelecer que aí vai
surgir uma dicotomia. Isto, pensando que a cultura, no entrelaço, se articula
duplamente. Por um lado, há a instauração da Lei enquanto tal e, nesse momento,
eu gostaria de tentar a distinção entre sociedade e cultura. A Lei talvez seja
suficiente para fundar o social pura e simplesmente, a relação entre falantes,
ao passo que a cultura, para se fundar, exige uma segunda articulação: a
proibição do incesto como fundadora de ordem de parentesco.
É preciso, então, agora, detalhar alguns momentos importantes do Édipo.
Por exemplo, ele mata Laio e se dirige para Tebas. No caminho, encontra a
Esfinge que lá estava para propor enigmas e devorar as pessoas que não os
resolvessem. Édipo resolve o enigma, etc., e acontece aquilo tudo... Já abordei
diversas vezes, em anos sucessivos, essa questão do texto de Sófocles dizendo
coisas as mais diversas. Hoje vamos dizer outras que, talvez, até, fiquem em
contradição com as anteriores, mas vamos ver aonde isso vai chegar. Uma
coisa que sempre fica meio mal tratada na historinha de Édipo é essa moça aí,
esse personagem esquisito, a Esfinge. O que ela está situando no mito e no
texto? Se pesquisarmos pela mitologia encontraremos que, na cultura grega
daquele momento, ela é um monstro que nem por isso deixa de ter aspectos de
divindade, no sentido do politeísmo grego, de origem infernal. Ela é uma
composição muito estranha, como outras divindades oriundas do mesmo lugar.
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Ela tem como mãe Échdna, de quem consegue tirar o rosto e os peitos de
mulher, melhor dizendo, de fêmea, de fêmea de homem. O pai, Tífon, empresta-
lhe o rabo de dragão. Não é uma herança genética, pois eles dizem que ela
herda ou, digamos, toma emprestado de sua irmã, Quimera, o corpo de leão, e
das suas irmãs, as Harpias, as asas. A Esfinge é, portanto, o tipo de monstro
criado por pesadelo numa condensação – no sentido mais simples da exposição
freudiana – de elementos formando um ser mais ou menos aterrador por causa
dessa estranheza metafórica. É alguma coisa meio terrível que precisava ser
destrinchada aos pedacinhos para ser reconsiderada.
Quimera, sua irmã, é um ser infernal do mesmo tipo: tem cabeça de
leão ou de cabra, segundo a tradição, rabo de dragão, vomita fogo, persegue e
mata os homens por alguns motivos. Foi um tal Belerofonte, montado em seu
cavalo Pégaso, que conseguiu, a pedido de um certo rei, matar Quimera fazendo
virar o feitiço contra o feiticeiro. Ele lhe joga lanças de bronze, se não me
engano. Ela bota aquele fogo para fora, o qual esquenta as lanças, e ela morre
queimada pelo próprio fogo. Uma luta oniricamente composta, muito estranha.
As outras irmãs da Esfinge são as Erínias, seres infernais da mesma ordem.
Elas são três, uma das quais é a mais conhecida no jargão comum: Alecto,
Tisífone e Megera. Quando se quer dizer de uma mulher terrível, que enche o
saco do próximo, diz-se que é uma megera. As Erínias viviam percorrendo a
superfície da terra para atormentar os mortais culpados. Aliás, se observarmos
bem a estrutura da narrativa sobre a Quimera e, também, sobre a Esfinge,
recairemos na mesma coisa: são seres infernais, tipo sonho mau, que perseguem
os mortais culpados. Elas perseguem sem trégua os criminosos que, por suas
ações nefastas, perturbaram a ordem pública e social. Isto parece que fica
claro nas referências gregas. Às vezes, elas enviavam verdadeiras produções
coletivas a todo um povo, cidade, região, em forma de epidemia. Baixa uma
epidemia em determinado povo e ele pensa que está sendo castigado por ter
alguma culpa. As Erínias seriam as transportadoras dessa perseguição. Porém,
mais freqüentemente, elas perseguem o criminoso suposto inspirando-lhe
remorso, angústia sem fim e – o que mais nos interessa – medo do castigo.
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Édipo e osome
função do que havia sido predito como destino. Não há nenhuma punição pessoal
para Laio, o povo dele é que é o punido. Édipo mata Laio cortando o timão do
seu carro. Laio morre nesse desembestamento porque perdeu o timão, porque
Édipo tirou-lhe o governo do carro.
Édipo enfrenta, então, a Esfinge. Ela lhe pergunta: “Qual o animal
que tem quatro pés de manhã, dois ao meio-dia, e três à noite?”. Ele podia
ter respondido, como disse Lacan em seu Seminário: “É o quadrípode de
Lacan”. Mas ele não conhecia Lacan e, então, respondeu: “O homem” – ele
anda de quatro na infância, na idade adulta fica de pé e, na velhice, se apóia
numa bengala. A Esfinge é tão babaca quanto os tebanos, de tal forma que
aceita isso como uma interpretação, fica desesperada, se joga de cima do
penhasco e morre.
Quem é a Esfinge? Vou propor que a consideremos como titular de
uma inculpação. Ela vem inculpar os outros, portanto, é a culpa titular de uma
inculpação emanada do superego. O que é um pesadelo desse tipo, senão o
desejo de punir-se por pressão superegóica? Quer dizer, transformando a base
lógica daquilo que falamos da vez anterior como senso de culpa instalado na
própria estrutura, em perseguição proveniente de um superego. O superego,
afinal, é aquele tal que vem como herdeiro do complexo de Édipo. Freud o
situa assim, sendo que existe uma transa muito diversificada do superego com
o sujeito: ele “transa” um pouco obsessivamente com os chamados homens, e
um pouco mais frouxamente com as chamadas mulheres. Isto em função
justamente de o complexo de Édipo não ter a mesma operação na diferença
sexual, segundo Freud. Como o complexo de Édipo não é o mesmo para os
dois sexos, o superego também não pode ser o mesmo, já que ele é herdeiro
dessa transação. O superego – simplificando alguns pontos que interessam – é
formado, do ponto de vista da segunda tópica freudiana, por identificação
parental. Quer dizer, identificação com os ideais tal como são ditos pelos pais.
Ele é superego porque é uma parte do ego que se diferencia, se distingue do
ego para pressioná-lo segundo essa identificação parental. Portanto, se tenho
que considerar, segundo a perspectiva de Lacan, o ego como uma produção de
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Psicanálise & Polética
objeto, tenho que considerar o superego como parte retirada daí, no mesmo
nível, ou seja, na mesma pressão imaginária do ego. E, mais que isso, Freud
insiste em que esse superego não é tirado das ações dos pais, dos ditos diretos
dos pais, mas, sim, mesmo, que vem pela textualidade desse tipo parental do
superego parental. É uma coisa em cadeia. Em algum lugar está composta
uma produção imaginária egóica, tipo imaginária objetal, que vai sendo
transmitida de avô para neto. A Esfinge, então, pode ser considerada, neste
momento, como essa produção superegóica, esse objeto, esse animal montado
oniricamente, metaforicamente, como representante arcaico de um superego
parental, ou melhor, é o superego parental postado no caminho... Existem
superegos e superegos... De acordo com sua herança, cada um tem o superego
que merece...
Édipo encontra a Esfinge no caminho. Quem é Édipo para a Esfinge,
nesse momento, e até para ele mesmo que não sabe, ou, pelo menos, não sabe
que sabe? Édipo, para a Esfinge, não é senão um estrangeiro. Édipo se confronta
bem com ela porque, se a Esfinge é um superego forte, Édipo é um ego forte.
Isso está evidenciado na história dele, até então. Ele é corajoso, ouve falar das
coisas, sai de casa para enfrentar o destino, não quer que aquilo aconteça,
encaminha-se decisivamente para o outro lugar, encontra Laio, sai no tapa e
mata não só Laio como seus acompanhantes. No texto de Sófocles sobra um
dos acompanhantes de Laio. Ele consegue fugir, mas vai contar em Tebas que
quem matou todos foi um verdadeiro exército. Ele ficou com vergonha de dizer
que chegou um cara sozinho e acabou com todo mundo. Então, vê-se que
Édipo é um machinho, fortinho, arrogante, um ego forte, faz e acontece,
um grande decifrador de coisas que dizem a ele. Um barato, o cara!
É o próprio catedrático.
A Esfinge estava lá para punir quem? Os tebanos. Ela não podia, se a
minha via é certa, puni-los a não ser que, superegoicamente, tivesse poderes
para isso. Ou seja, que os tebanos tivessem um pavor da Esfinge com relação
ao dito crime praticado. Se achassem que aquilo não era crime, eles estariam
pouco se incomodando com a porcaria da Esfinge. Mas os tebanos, só
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sucessivos, não fosse isso, o passe seria uma coisa teoricamente resolvida. É
onde vamos chegar.
Que diabo de passe é esse? Que Édipo faz o passe, quer me parecer
que sim. Édipo se cega e fica postado no mesmo nível de Tirésias. Aí é que
ele passa a ser um que anda com três pernas, usando a sua bengalinha, isto é,
apoiando-se em Antígona. É interessante notar que no final de Édipo Rei,
para corroborar essa visão egóica que estou tentando mostrar, Creonte
diz uma frase decisiva para Édipo: “Não pretenda, então, triunfar sempre.
Teus triunfos não acompanharam tua vida”. É uma declaração de castração.
O que Édipo saca? Qual é o acontecimento? É o acontecimento de poder se
dar conta de que a totalidade, a totalização é impossível: você não será
sempre um vencedor. E o corifeu vai terminar a peça: “Aí está este Édipo,
esse perito em enigmas famosos, que se tornou o primeiro dos humanos.
Ninguém na sua cidade podia contemplar o seu destino sem inveja. Hoje, em
que fluxo de terrível miséria ele foi precipitado! É preciso, portanto, esse último
dia para o mortal sempre considerar. Guardemo-nos de chamar jamais um
homem de feliz, antes que ele tenha alcançado o último termo da sua vida, sem
ter sofrido uma pena”. Sófocles é menos estúpido do que muitos analistas e
doutores da psicanálise. Mostra como o acontecimento aí é um reconhecimento
da impossibilidade de completação.
* * *
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Psicanálise & Polética
desses dois seres infernais que associei com o superego. Se o superego é essa
fundação egóica, imaginária, e que é, como fica claro nos textos
freudianos, uma introjeção, não da Lei, mas de uma lei, de uma regra de
comportamento, temos aí que o superego é este ser infernizante, que
vem perseguir aqueles que deveriam ser banidos, por não se conformarem a
uma regra instituída. Estamos falando de instituições, não da Lei. Qualquer
regra de funcionamento desse tipo, de enunciado legal, não é senão regra
de limitação desse logro. Ela só pode ser produzida porque há Lei, mas
ela não é a Lei.
Tanto é que podemos ver que há seres chamados marginais como
Tirésias, por exemplo, que vivem fora da lei, fora da regra, e que, no entanto,
têm uma certa acomodação com as pessoas que acreditam na regra. Por isso
ele não queria dizer a Édipo, pois ele só é permitido na margem, na medida em
que ele diga sempre a verdade, não-toda, é claro, mas tenha um regime de
transação que não venha a ser ativo dentro do próprio social. Toleram-se os
poetas, desde que eles não sejam bandeiras de dissolução social. Por isso mesmo
é que se promovem freqüentemente os poetas ditos marginais. Hoje li no Jornal
do Brasil, ou sei lá onde: “O poeta marginal, fulano de tal...”. Não tem marginal
nenhum, nada de marginal, os marginais não lêem...
Os filhos, então, o expulsam e Édipo lhes roga uma praga. Ele prediz
o que vai acontecer. Uma previsão que é óbvia, está na cara: “Vocês vão
se matar um ao outro”. É claro, para dividir o reino, eles vão sair no tapa.
Édipo se afasta e, realmente, os dois começam a brigar. Um dentro de Tebas e
o outro fora, atacando Tebas. Nessa hora, Creonte corre para Édipo para
pedir ajuda. Quer dizer, reconhece a paternidade de Édipo como possível de
estancar a luta entre os filhos. Reconhece que se Édipo interviesse, acabava
com aquilo. Diz Édipo: “De modo algum, não faço nada, agora sou marginal
mesmo, sou o poeta, não tenho nada com isso. Digo, mas não vou me meter”.
Queriam utilizar agora a paternidade que ele conseguiu atingir a duras
penas, isto é, demolindo o seu ego, como demoliu a Esfinge, para luta de prestígio,
em nível egóico. Ele disse que não, do mesmo modo que Tirésias se recusou, e
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ela está exigindo, Ismênia tira o corpo fora e, entre outras coisa, diz: “Pretendo
obedecer os poderes estabelecidos, os gestos vãos são tolices”. Ela toma o
partido do tio por uma questão muito simples: regra é regra, não vou embaralhar
as coisas. Ismênia funciona, no texto, como uma espécie de menininha mimada
o tempo todo. Hoje seria madame pequeno-burguesa.
Antígona insiste. Cria todo aquele caso, mesmo com a ameaça de
punição por parte de Creonte. A coisa chega a um ponto tal que ela, no peito,
enterra o irmão que estava proibido de ser enterrado. Creonte, então, tranca
Antígona numa caverna completamente fechada, uma espécie de sepultura,
fecha-a com uma pedra pesada e ela é condenada a perecer lá dentro, sozinha.
Lacan, quando mostra – no Seminário da Ética – a diferença entre a
primeira e a segunda morte, dá como exemplo, justamente, Antígona. A morte
que nos habita, a mais importante, que é a indicação da pulsão de morte em
Freud, é a segunda morte. Não é essa morte, perecimento, que supomos que
vamos encontrar. Essa condenação toda, que os homens são mortais, que vão
perecer, não é disso que Freud está falando. Essa que nos habita nas angústias,
etc., que é o cerne da pulsão de morte, é a segunda morte, ou seja, a morte de
Antígona. A de Ismênia deve ser a primeira.
Qual é a morte de que Antígona está sofrendo, quando presa dentro da
caverna? É a morte em vida, o morto-vivo. Ela fica condenada a viver como
morto, pelo menos por um tempo, até sucumbir. Essa morte que portamos
como vivos, que é a morte que interessa na pulsão de morte. Porque há um
gozo fundamental para Antígona, ela está gozando a cara do povo tebano e de
Creonte, sobretudo. É esse gozo aí que nos mostra a relação que tem a morte
com o gozo, a morte com a diferença sexual. É nesse nível de morte. Se não a
estivesse gozando, o que ela estaria fazendo lá dentro? Bastava cumprir a
ordem, como Ismênia. Ismênia era bem-comportada, não abria mão do prazer
de estar bem-instalada, no social, de cumprir as leis para não se ferrar.
O autor do prefácio mostrou uma luta entre uma consciência humana
e uma razão de Estado. Antígona diz que a lei de Creonte, a lei do Estado, não
pode ser superior à Lei dos Deuses, à Lei do coração, à Lei do Amor. É dessa
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Édipo e osome
Lei que Lacan está falando. Seja o que for, ele, Polinices, é um sujeito falante.
Exijo respeito a essa diferença e morro por ela porque vou gozar nessa diferença,
custe o que custar. Não se trata aí, de modo algum, de respeito à lei de Tebas,
a regulamentação que foi posta num momento estratégico, particular.
Por que, então, Antígona faz tudo isso, toda essa luta que não é de
prestígio, como aquela entre Etéocles e Polinices, como aquela entre Creonte
e Édipo, antes de ter furado os olhos? Porque ela está herdeira do Nome do
Pai, herdeira de Édipo. Não o Édipo tolo de antes do trágico, mas o Édipo
poeta que ela conheceu no seu passe, aquele que assumiu o Nome do Pai, que
não é ele, é o abstrato a que ele também está referido, à terceira instância.
Édipo descobriu a Lei e percebeu que, tolamente, estava defendendo as leis de
Estado sem querer se dar conta da diferença que Tirésias lhe mostrava como
Lei fundamental. Ele recupera a posição nessa Lei. É essa Lei de que fala a
psicanálise. Que Lacan diz que não é a lei do mundo, mas a lei do coração: a
versão paterna.
Ela faz das tripas, coração. Fez do corpo, o coração. Tudo que pintou,
ela colocou como respeito à diferença. Por quê? Porque o outro é meu irmão,
não há mais o que discutir. Ele é filho da mesma coisa, do mesmo pai. Posso
respeitar as razões de Estado até o limite do respeito a essa diferença. Eu não
diria, também, de jeito nenhum, que o gozo fálico é o da Ismênia, porque o
gozo-fálico é gozo. Quer dizer, então, ela goza contra a corrente. E se o gozo
do Outro não existe, porque não existe, ele é indicado de qualquer modo aí.
Antígona indica a sua relação com o divino, esse divino que venho insistindo. É
nesse divino que ela insiste. As leis de Creonte não podem ser superiores às
Leis dos Deuses e eu, como herdeira de Édipo, não vou permitir isto, custe
quanto custar.
Creonte, também, vai ser atingido, não punido. Creonte não vai ser
punido, porque está dentro das regrinhas, ele funciona... Ele será atingido pela
mesma desgraça, ou seja, pela mesma graça que atingiu Édipo e Antígona: a
morte do seu filho em função de seus atos, em função da punição que ele deu
a Antígona. Isto é mais um reforço do poeta Sófocles mostrando que o que ele
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Psicanálise & Polética
quer indicar, nesse ciclo, é toda essa passagem desse animal de quatro patas a
duas e a três patas, deixando, portanto, de ser animal, nesse processo. Processo
este que Freud concebe como sendo a castração, e que Lacan esmiuça e
acrescenta as suas intervenções.
Este ciclo Édipo Rei, Édipo em Colona e Antígona é o que fecha o
processo edipiano. Não se pode ficar em Édipo Rei, sobretudo na sua primeira
metade, como se fica nas críticas às construções edipianas de Freud na
psicanálise.
* * *
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muito facilmente com a lei dos homens, a lei d’osome, esse personagem criado
pela mitologia contemporânea. Não é que ele seja necessariamente osome,
mas ele se contenta muito mais facilmente com essa lei. Ele mostra que, numa
postura feminina, numa partição entre a pressão d’osome e a Lei divina,
encontra-se essa requisição da diferença que comparece em Tirésias, em Édipo
depois do passe, e, mais regionalmente, sem aparecimento de nenhum passe,
como herança do Nome do Pai, em Antígona, que exige, numa postura feminina,
o reconhecimento da supremacia da Lei e do Pai, e não da regra social, da
regra cultural.
Estaria eu aí dizendo que só existe analista no feminino? Que Deus é
feminino, já se sabe, que o pai usa a máscara da mulher, ou é uma mulher
mascarada, já se sabe. A mais importante, para retornarmos às questões que
vínhamos colocando, é a possibilidade de utilizarmos essa tentativa de visão de
hoje como um aparelho de distinção daqueles dois momentos que tentei situar da
vez anterior: o momento de instalação da Lei não sendo do mesmo nível lógico,
da mesma instância, que o movimento de instalação da cultura. O movimento de
instalação da Lei como reconhecimento de uma diferença não é o momento de
instalação da lei como regra, como modo de operação do social.
Melhor dizendo, se pudermos fazer a distinção entre o social e o cultural,
a Lei de Antígona instala o social, a possibilidade de convivência entre falantes,
seja em que tipo de enunciado for, e criticando esses enunciados em todos os
momentos da sua aparição, porque qualquer enunciado será careta em função
dessa Lei. Ao passo que o enunciado que precede aquele momento na tragédia
não é senão esse outro nível de instalação da lei como razão de Estado, como
regra de comportamento desses falantes. Isto é que estou chamando de cultura
naquela fundação. A interdição do incesto, da qual o Édipo não se pune, e que
vem fundar a cultura, é sintoma de instalação, herdeira da Lei, é claro, mas como
enunciado específico, seja qual for a dimensão da sua estabilidade democrática
no mundo contemporâneo. É uma diferença, digamos, entre o poder e a Lei. Não
se instala nenhum enunciado a não ser com base no poder. O que está dito no
segundo momento é que o poder garante o funcionamento da regra. Mas é a
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Psicanálise & Polética
ordem divina, a ordem paterna que Lacan tentou estabelecer com mais clareza,
que funda a Lei.
Osome, esse personagem, ele nos faz acreditar – posso dizer “ele”,
porque está no masculino – que está nos destruindo em função da Lei, mas
ele só está fazendo isto porque tem o poder de manter um certo enunciado
que pode ser o que podemos chamar uma lei celerada, uma lei facínora, esta
é a palavra que eu gostaria de substituir naquela distinção que tentei entre
perversão e perversidade. Existe o perverso, aquele que está na versão
paterna, e existe o facínora, para o qual a diferença é anulada. Osome é
facínora... todo mundo sabe.
É preciso perguntar sobre o nível de perversidade, de facinoriedade,
que se encontra na pressão sem limite de um enunciado legal. Foi contra isso
que Antígona se rebelou. Há um limite para a pressão do enunciado legal que
defende o status quo social, limite este que é a Lei, aquela que instaura a
diferença e exige a sustentação da diferença, embora com controles. É possível,
pois para alguma sobrevivência é preciso certa pressão de controle, mas não
se pode ultrapassar certo limite.
Cada vez mais, estamos vivendo dentro de um círculo e de um cerco,
em que osome quer nos fazer crer que são representantes da Lei enquanto tal,
quando são imposições de poder que estão devastando a face da Terra. É o
terrorismo fundamental... Este é o fundamento do terrorismo – ainda que oficial.
20/JUN
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Anti, como vocês sabem, é prefixo que vem da preposição anti, que
significa contra, em contrário. Não é o mesmo prefixo que, em português,
deu ante, que significa antes. Gonos, do grego, é o que, em brasileiro, deu
gônada, no sentido fisiológico, como diz o dicionário, de semente genital.
Semente genital quer dizer sêmen, esperma, como, por exemplo, está na
palavra brasileira gonorréia, que vem do grego, só que não significava isso
que significa hoje. Corretamente, é corrimento seminal. Certamente, eles
confundiam pus com sêmen.
Anti-gona quer dizer contra-sêmen. Raymond Roussell tem um conto
interessantíssimo, se não me engano em Impressions d’Afrique, onde existe
uma estatueta, na África, que ele chamava de sêmen-contra. Talvez isso
tenha alguma relação. Trata-se de um caso de impossibilidade de fecundação
de certa princesa. Então, anti-gona, anti-sêmen.
Forcei essa escansão, essa interpretação, na verdade, para mostrar
como Antígona propõe uma Lei que não é seminal, ou seja, não é genital, não
é genitiva no sentido da lei do Estado que Creonte, por exemplo, representava.
A proposição de Lei que ela faz é proposição de Lei Divina. Divina aí
significando o que Lacan chama a Lei do coração, quando diz que não são
essas leis do mundo real. É simplesmente a Lei do amor, quer dizer, a père-
version. Neste sentido é que estou colocando Lei divina, contra-sêmen.
Exatamente aquela que já tive oportunidade de mostrar num pequeno verbete
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para todo. Toda vez que se pensa numa totalidade, a borda, o limite dessa
totalidade supõe a suspensão dessa função situada em algum elemento da
mesma ordem. É o velho problema de ser necessário, para que haja o suposto
todo, haver a não inclusão desse todo em si mesmo. É uma espécie de solução
daquele famoso paradoxo de Russell, que já comentamos: o catálogo de todos
os catálogos não se inclui a si mesmo, pois o catálogo de todos os catálogos,
incluindo a si mesmo, produziria uma série infinita de catálogos. Então, não se
pode jamais dizer “para todo catálogo, a função catalogal...” se não se suspender
essa função como borda do catálogo que contém os catálogos. Tenho que
considerar, do ponto de vista externo, uma função catálogo que se suspende:
“existe pelo menos um, que não é função aqui”, se não haveria este catálogo
contendo todos... e mais ele próprio... e não tenho como fechar o parêntese. É
uma questão de série.
Então, só posso dizer “para todo falante há função fálica” justamente
porque posso supor que “existe pelo menos um onde essa função é suspensa”.
xx xx. Se isso não se colocar, terei a outra fórmula: “Se não existe
nenhum que faz suspensão à função fálica, a função fálica permanece, mas
não se totaliza”. Não posso fechar o cinturão desse conjunto porque não tenho
o limite do conjunto. Se não houver suspensão para a totalização mediante um
elemento que sustente a existência de pelo menos um que não é função fálica,
onde essa função é negada, não posso dizer que para todo há função. Não
existe nenhum limite determinado. Logo a função fálica está aí, mas tem que
aparecer essa coisa estranhíssima para a matemática que Lacan foi o primeiro
a acentuar, a negação sobre o todo: x x x x. Quando Lacan escreve
“para não-todo – ou não para todo, que dá na mesma – existe função fálica”,
não significa que existe pelo menos um que não seja. De modo algum! Não é
que haja exclusão de algum que faça com que o total não se realize. Não é por
somatório ou por justaposição. Significa, sim, que, se para não-todo há função
fálica, ela há a cada momento, mas não se totaliza. É da ordem do infinitivo. É
o jogo de Aquiles e a tartaruga, de Zenão. Não se trata de um momento de
exclusão que viria, outra vez, fundar um universal. Esse momento, que pinta
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quer fazer uma língua, no sentido linguístico do termo. Quando se quer fazer
da alíngua, que só se diz no feminino, a linguagem suposta como sendo universal
da língua. Momento que, em última instância, vem a ser de codificação. Estou
querendo dizer, entre outras coisas, que existe na fundação da cultura esse
processo de machificação, de massificação, essa tentativa de equacionamento
definitivo de um sistema que possa totalizar os falantes. Retornarei a isso.
* * *
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cima, ela cai, posso proibi-la de cair, mas ela cai. Ela não cai transgredindo
nada. Mas é pura metáfora, porque isto é uma lei da física... Ou pode ser uma
lei da minha experiência: se jogo uma pedra para cima, ela pode cair na minha
cabeça, realmente.
É o real sustentando a Lei, o fundamento ético da psicanálise. Essa
Lei, essa ética, se sustenta num real como impossível de ser escrito. Portanto,
impossível de ser transgredido. A diferença, como universal suposto na
psicanálise, pintará em qualquer condição. Este é um dos motivos de a
psicanálise não acreditar em revolução enquanto tal: um giratório das formas
produzindo a forma esférica perfeita... Mas pinta a diferença... graças a Deus!
Se a psicanálise é a peste, e se tem contra ela certas ordens instituídas, essas
ordens todas não conseguem cobri-la, porque ela é não-toda. Ela vem colocar
essa Lei do não-todo e, portanto, o vírus a que a psicanálise se refere é
indestrutível. Pode-se acanalhar a massa ao máximo porque, eis senão quando,
o vírus pinta. Pelo menos, a suposição que podemos fazer é de que, talvez, este
seja o único otimismo da psicanálise, pois tudo nela é pessimista. Talvez ela
tenha um único otimismo: a diferença não deixa de comparecer – para o melhor,
ou para o pior.
Não há transgressor possível no regime dessa Lei que não depende de
nenhum poder. A Lei que só se instala e se instaura porque há um precedente
na Lei enquanto tal, ou seja, o impossível não podendo ser dito, só se diz como
interdito porque há esse precedente. A lei se instala com base em algum discurso,
em algum poder, certamente, e a sua referência é pura codificação. Por exemplo,
as leis da língua brasileira que a Academia se esforça por estabelecer e que os
falantes, sem esforço algum, subvertem... porque a Lei se reporta à estrutura
e não a nenhum código.
Em qualquer proposição de história, salvo erro, quero supor que exista
um encadeamento de causas e efeitos. Se penso em história é porque estou
supondo que determinado acontecimento, determinada série, tem a ver com
outra determinada série, que foi por ela determinada. Não preciso da
determinação nessa produção de sentido de cadeia para cadeia, cadeia de
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tem seu estilo. É nesse momento que Lacan situa o Wo es war de Freud, que
muitas pessoas ficam pensando que é um comando superegóico, obrigação
moral de ir à verdade. De modo algum! É o retorno ético do sujeito à sua
própria fundação. Se ela vai pintar indefectivelmente, mesmo que seja por via
gravemente sintomática, é porque é irredutível, indestrutível. Freud está dizendo:
“Por que vou fugir da minha alíngua, da minha particularidade falante? Defronto-
me com ela e deixo que ela fale”. Isto é função de uma ética da repetição, que
tem fundamento no real, e não função de um superego que tem fundamento
numa obrigatoriedade figurada.
É a suposição de que esse real pinta, e que o sujeito – emergindo,
quer dizer, ex-sistindo, existindo fora desse real, com assento no simbólico – é
estritamente particular. Em última instância, outra vez, vem o antigamente da
Antigona. Por essa particularidade é que o sujeito existe. Aí que Deleuze-
Guattari aproveitaram para inventar o tornar-se mulher, devenir femme. Saiu
daí... por outras vias evidentemente. Ninguém começa mulher. Isto é
descoberta freudiana, e é difícil demonstrar o contrário. O mais antigo é essa
fundação, mas ninguém começa, nas suas transações em torno do subjetivo,
por esse lado. Talvez seja a coisa mais difícil de se atingir. Por isso Lacan diz
que as mulheres são muito mais homens do que os homens. Não existe estilo
no masculino.
Não é possível não renegar, porque a diferença pinta sem esteio
originário do sujeito. Não há nenhuma marca, e não é possível não produzir
recalque originário. Do contrário, é a folia. O que vai entrar aí, é outra história.
A estrutura quando funciona não pode não produzir renegação. Não pode não
produzir recalque originário. O que não significa, como querem alguns teóricos
de vocação fascistóide, que entre nesse lugar a lei codificada. Não se encontra
isso em Freud. Não se trata de nenhuma codificação privilegiada. Trata-se de
que funciona assim. A renegação tem que pintar. É preciso uma polarização.
Funda-se um recalque originário a partir desse momento que é o de entrada de
uma particularidade chamada alíngua. Seja qual for a língua que caia sobre o
sujeito, a língua do lingüista, ele jamais vai falar... nem a língua da própria mãe,
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* * *
Cada vez mais me dou conta de que Sófocles é poeta. Isto porque
quando leio um texto assim, minha intenção malévola é de derribá-lo para ver
se ele resiste. Deve-se ler um poeta sempre suspeitando que ele não o seja,
poeta. Se ele resiste, é você que cai. Em Antígona fica evidenciado o que se
passa naquela trilogia. A insistência de uma Lei fundamental contra a lei do
tirano, vigendo, apesar e contra a lei do tirano.
O próprio Édipo, com tudo o que tenha feito, ainda que numa inocência
forjada, não mereceu nenhuma punição que viesse dos Céus, ou coisa desta
ordem. Foi expulso por Creonte, etc... Nenhuma punição de destino veio sobre
ele, a não ser, o que não é uma punição, ter que tornar-se algo como Tirésias.
Ele matou o pai simbolicamente. O pai tornou-se um morto. Engraçado que o
ciclo começa com o assassínio do pai e termina com o assassínio do filho, de
que Creonte é acusado pela mulher e por todos. Não foi ele quem matou
diretamente o filho, mas seu ato resultou na morte do filho. Aí, sim, há punição,
pois não vemos Creonte virar Tirésias. Ele virou um rei troncho, fraquejante. É
interessante notar como é a questão da diferença sexual que está em jogo: a
questão da diferença entre a Lei maior e a lei menor é apontada freqüentemente
no regime da diferença sexual.
Antígona discute com Creonte sobre a questão da Lei: “Tenho que
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defender a Lei dos Deuses. Você está defendendo a sua tirania, o seu
interesse...”, etc. Creonte, imediatamente depois de condenar Antígona, diz:
“Ela está agindo como homem. Ela está sendo mais homem do que eu”. Ele
não suporta a diferença e pensa que ela está em luta de prestígio de homem
para homem. Quando o noivo dela, Hemon, que é filho de Creonte, também vai
discutir com o pai, aí, ele diz o contrário: “Você está agindo como as mulheres,
você é o herói das fêmeas”. A confusão que fica para Creonte é a distinção da
sexualidade. Antígona defende o tempo todo a postura da Lei maior, que não
suporta não se aceitar a diferença do frater, do irmão, que aqui, por acaso, é
filho do mesmo pai. Ela exige que ele seja respeitado com igualdade, porque é
diferente, mas é irmão. Ao passo que Creonte representa até o fim, até que
seu filho morra, e morre justamente por isso. O filho se mata quando vê Antígona
trancafiada. E sua mãe, que já tinha perdido o outro filho na guerra contra
Polinices, se mata quando vê o filho se matar. É uma punição total para ele, em
termos de perda de objetos. Mas, até esse momento, Creonte representa a
tirania. E essa tirania representa a absoluta caturrice em relação ao código,
pois a lei menor não diz apenas “é proibido isto”, ela diz: “Quem fizer isto, vai
ter aquilo como paga”. A caturrice de Creonte é o verdadeiro crime que
acontece nessa estória toda.
No fim, Antígona acaba por vencer. Ela se ferra, se enforca dentro da
caverna... Vemos Ismênia, junto com o chamado povo, se pendurando de um
lado e do outro. Quando pinta, de novo, Tirésias para avisar a Creonte que ele
está fazendo besteira e que vai pintar coisa ruim, não é o mesmo caso de
Édipo, que é contra o povo. Ocorre, outra vez, briga com Tirésias, parecida
com a briga de Édipo. Mas Creonte admite tudo, menos que se toque no seu
poder. Quando acontece – até do ponto de vista da opinião do povo, quando
começa a pintar a palavra de Tirésias e a possibilidade de vir a punição por via
de destino – de ele perceber que estava fazendo asneira, e ele sai correndo
para consertar, não dava mais tempo, o filho já tinha se matado. Ele vai lá
pegar o cadáver de Polinices para fazer o enterro, as libações, etc., mas aí já
havia tudo acontecido. Pela caturrice – o texto deixa isso claro – de ele se
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reportar duramente à função do código. Era o machão. Não teve como aprender
a postura de um Nome do Pai, que é a função Lei/Desejo.
Por outro lado, acho que, talvez, encontremos outras posturas simétricas
à de Creonte: a de uma têmpera histérica de Jocasta, a de Eurídice, mulher de
Creonte que se mata, a do próprio Hemon, filho dele, noivo de Antígona.
Antigona fica um pouco afastada disso, mais na referência ao Nome do Pai o
tempo todo. Creonte quer fabricar um Pai Ideal que faça a abolição do Pai
Simbólico. Quer produzir-se e produzir um Pai Ideal que diz a Lei contra o
Desejo, não a Lei como Desejo. E, imediatamente, vira obsessivo – naquilo
que Daniel Sibony chama la haine du désir, o ódio do desejo – caindo numa
postura absolutamente homossexual de que não há diferença: “Não admito
diferença no meu reino. A lei é igual para todos e vai ser cumprida assim,
porque quero!” Jocasta estaria do lado não da haine du désir, mas do désir
de l’amour, o desejo do amor, que não é o amor, é a postura histérica. É o
desejo de ser amada. Nesse momento aí é que dizem que há diferença. Não a
diferença pura e simples, como artigo “a” diferença. É a postura justamente
das feministas, mães, etc., quer dizer, “eu sou o objeto amado”. A histérica não
é bem uma mulher, ela se faz de homem. O que Antígona quer relembrar, custe
o que custar, sem nenhum medo da morte, é o que ela insiste em dizer: “A
morte não vai me libertar”. É a diferença pura e simplesmente, a Lei do Pai. É
isso que Lacan chama a função paterna, o Nome do Pai. Lei e Desejo são a
mesma face da mesma uniface. Se a Lei não supõe Desejo, se Desejo não
supõe a Lei, estamos no arbítrio de algum senhor, de algum dono.
Há, a meu ver, clivagem entre uma postura supostamente de emergência
do feminino e outra que não é que se masculinize pura e simplesmente, é que
se homossexualiza, o que é muito diferente. Ou seja, abole a diferença. Não
existe outra homossexualidade pensável pela psicanálise, senão a tentativa de
abolir a diferença. Trata-se daquilo que eu disse no final do ano passado, quando
falava de Se é que Só é Isso, que era um grande complô homossexual das
instituições contra a diferença. Não se trata de nenhuma indicação neces-
sária de corpos, de relações homo corporais. É indicação dessa abolição
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PERGUNTAS
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a língua para fora, e faz a sua própria careta. Todo mundo fica apavorado
porque pensa que ele é um transgressor. Rosa não transgrediu nada porque
não disse o impossível de dizer, disse o que era possível, senão não dizia. É
claro que ele disse coisas proibidas pela idiotia dos normativistas, mas não
transgrediu coisa alguma. Existe estética da transgressão? Não. Existe est’ética
do corte. Quer dizer, na medida em que penso que a cultura decanta o sujeito,
estou tratando de Pedagogia.
•P – Mas a questão é que, em função desse corte, parece que não há
outra maneira de realização da Lei, que não seja a partir dos seus efeitos.
À Lei mesma, nunca se chega. Que lugar é esse aonde ela pode exercer a
sua função, portanto, aonde se possa depreender os seus efeitos, que
não seja da ordem disso que até agora entendemos por cultural? Ou
seja, as normas, as regras, as repetições, as decisões?
Não há onde. Você está definindo isto como cultural, eu não. Estou
diferenciando cultura de artifício. O artefato, o artifício, não é cultura. O que
estou chamando de cultura, não é tudo isso que o homem faz e,
megalomaniacamente, chama de cultura. Quando se observa os textos desses
culturalistas, sejam eles antropológicos, o que for, vemos que eles assentam
sempre o fenômeno da cultura na ordem do parentesco e, portanto, na interdição
do incesto. É a isto que estou chamando de cultura, e não o artificio. Que
outros artifícios podem fazer os homens para viver em sociedade? Que outros
artifícios os homens podem inventar, que não essa facilidade (que me parece
de imaginário animal) da cultura? Quer dizer, vê-se até Freud, e mesmo Lacan,
com cuidado, mantendo a interdição do incesto como fundamental, embora me
pareça que eles no fundo subvertem isso. Digo que é possível pensar a produção
do artifício com outros meios.
Saber é aquilo que ocupa o lugar do Outro, S2. Pintou S1, pintou S2. Só
pintou S1 porque há S2, que vai dar passagem. S2 não é senão o apelido sensível
do A. É isto que é S2 para Lacan. Em vez de falar o Outro, é o Saber que
transa por aí. Minha crítica à cultura não é, de modo algum, supor que as
ordenações, as invenções de regras, etc., sejam a cultura. O que chamo de
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CORTE REAL
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LE MIROIR DANS LA REINE OU
LE MI-ROI DANS L’ARÈNE
Ainda é o tema da Lei que estávamos tentando abordar e que, parece,
exige repetição. Vamos pedir o testemunho de um poeta, melhor que isto, de
um poema, de uma obra de arte, considerada uma das obras primas da produção
ocidental da pintura e que tem inspirado, a pessoas as mais sutis, lúcidos e
poéticos pensamentos.
Pretendo com-siderar essa obra, partindo da suposição de que se trata
de uma obra de arte. Com-siderar, siderar com ela, ou siderar em torno dela. O
que tentei conceituar como com-sideração, falando da obra de arte, em dois
trabalhos. Primeiramente, no texto chamado Senso Contra Censo: Da Obra-
de-Arte, onde fiz um esboço inicial do que penso poder ser, do ponto de vista da
teoria psicanalítica, o lugar da obra de arte. Não se trata de nenhuma crítica, de
nenhuma avaliação da obra, mas de achar o seu lugar. E continuei num outro
texto, Rosa Rosae: Leitura das Primeiras Estórias de Guimarães Rosa.
Agora, gostaria de conseguir que este trabalho, em torno dessa obra suposta,
fosse do mesmo estofo, do mesmo padrão desses dois, ou seja, mais um trabalho
em continuação.
O que chamei com-siderar vem em substituição a qualquer possibilidade
de crítica da arte, e mesmo de estética, na medida em que, mesmo do ponto de
vista da teoria psicanalítica, temos que repudiar, como sem assentamento em
qualquer base freudiana, o que tem aparecido no campo da psicanálise como
abordagem da obra de arte.
Há uma verdadeira interdição, em Freud, de se psicanalisar a obra de
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problemas para artistas e para teóricos. Não se trata de cópia. Ele reinventou o
quadro 44 vezes. Numa dessas reinvenções é que vou buscar a dica de
certa impostação do quadro. O quadro de Goya chamado A Família Real.
Já no século XIX, Goya pinta a família real de então baseando-se em Velázquez,
mas, a meu ver, sem entender o que estava no quadro. Goya é um
grande poeta, mas foi em outro lugar e de outro modo que ele foi dizer
suas coisas. Há mais dois quadros de Velázquez que gostaria que vissem: Jesus
em Casa de Maria e Marta e Vênus no Espelho. Há ainda um terceiro
que vou mostrar, Retrato do Infante Balthazar Carlos, e, mais para o final,
ainda iremos ver um outro, As Fiandeiras. Já mais atual, há Escher, que fez
uma pintura toda lógica, e do qual vou me referir a O Espelho Mágico. E
Marcel Duchamp, em quase tudo, especialmente as perspectivas pintadas sobre
vidro, a Mariée, por exemplo, onde ele estudou coisa semelhante ao que vou
mostrar em Velázquez.
Se uma obra é obra de arte, se ela porta o que quero chamar de ato-
poético, ela chega a uma perda de sentido, a um puro corte, um absoluto corte
enquanto borda do significante, simples momento e lugar de instalação do
significante. Diante da obra, o analisando acaba perdendo o sentido, de tanto
falar. De tanto com-siderar, ele acaba perdendo os sentidos que possa arrumar
na obra. Surge então, puramente, a Lei de instalação do simbólico, o puro corte
do significante, a diferença pura, e seu lugar. Por isso chamei esse conjunto de
quatro sessões do nosso Seminário, de Côrte Real ou Córte Real. Trata-se da
Côrte Real, onde está inscrito um Córte Real.
Peço desculpas pelo título da sessão de hoje ser em francês. Só funciona
em francês, não é por esnobismo. Mesmo porque o primeiro esboço que fiz
deste trabalho era para Jacques-Alain Miller, que me encomendara alguma
coisa para sair em Ornicar?. Entretanto, eu não havia chegado aonde cheguei
agora. Então resolvi não mandar. O trabalho tinha esse título, que posso ler de
duas maneiras: Le Mi-Roi dans l'Arène ou Le Miroir dans ia Reine, ou seja,
O Semi-Rei ou O Meio-Rei dentro da Arena, ou então, O Espelho dentro da
Rainha. Veremos porquê.
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“meio rústico”, querendo com isto dizer que pretendia uma ligação mais direta
com os objetos, sem as regrinhas renascentistas, ou mesmo sem as regrinhas
barrocas de representação. Ele foi considerado, também, o inventor do
impressionismo, que só vem aparecer muito mais tarde e porque, afinal de contas,
os artistas impressionistas declararam que foi na tessitura luminosa e no colorismo
de Velázquez que eles teriam buscado inspiração para isolar o que chamariam de
impressionismo na pintura. Renoir chegou a dizer que “toda arte da pintura está
na fitinha cor de rosa da Infanta Margarida”, falando d’As Meninas. Mas será
que Velázquez é isto, embora tenha inventado tudo isto? Ele dizia mesmo que
preferia ser o primeiro entre os rústicos do que o segundo entre os delicados.
Uma certa rudeza, uma certa crueldade no tratamento da pintura.
Velázquez pintava desde os 23 anos para Felipe IV, por influência de seu
mestre e sogro Pacheco, no palácio de Alcazar. Para demonstrar certa coisa que
vou mostrar a vocês depois, era preciso que o palácio de Alcazar estivesse de pé,
ou que, pelo menos, eu tivesse uma planta desse palácio; mas, infelizmente, esse
palácio pegou fogo num certo Natal de mil setecentos e não sei quanto, não
sobrou nada dele. Coisa interessante na vida de Velázquez é que ele era pintor da
Corte, mas exerceu cargos importantes, cargos oficiais, como Rubens, por exemplo,
que foi embaixador. Rubens, aliás, também esteve durante algum tempo pintando
na Corte de Felipe IV, ensinou muita coisa a Velázquez e se tornou seu amigo.
Mas Velázquez teve cargos interessantes como, por exemplo, o de Chefe de
Câmara Real, o de Oficial do Guarda-Roupa Real, que são cargos oficiais muito
metidos dentro da fofoca da alcova do rei. Quer dizer, ele tinha, assim, uma
grande transação íntima com aquele pessoal da Corte. Foi Auxiliar da Câmara
com uma chave, que era coisa importante naquele tempo, foi Valet de Chambre,
Assistente das Construções Reais, Inspetor das Construções e, no final de todos
esses cargos, ainda pintando, chegou a ser o Grande Marechal do Palácio, em
1652, um pouco antes de morrer. Morreu em 1660. As Meninas foi pintado em
1656, quando tinha 57 anos, momento em que consegue achar a grande dica.
Grande Marechal do Palácio é justamente o responsável pela ordem
da casa, quer dizer, é o pai da casa. O pai da Casa Real não é bem o rei. O rei
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toma conta do reino, o Marechal do Palácio toma conta da casa do rei. N’As
Meninas está representado o Grande Marechal da época em que o quadro foi
pintado, que era do tio de Velázquez. Interessante essa relação de Velázquez
com o poema, e com a ordem instituída. Ele está no lugar adequado, talvez,
para pensar A Lei. Vários autores insistem em que não lhe interessava quando
pintava, nem um pouco, a pessoa, a psicologia do personagem. Ele botava o
sujeito lá, como se fosse uma pedra, uma cadeira, como Cézanne, aliás. Mas
notam que ele se utilizava do lugar social do personagem para estabelecer
associações muito interessantes, muito importantes. Os dois grandes quadros,
as duas grandes obras da vida de Velázquez, são As Meninas e, posteriormente,
As Fiandeiras. Veremos a relação especial que existe entre eles.
No livro da Skira, tentando refletir sobre o que pensa Velázquez, o
autor diz que “o quadro possui uma realidade que lhe é própria. Não lhe cabe
figurar o mundo pela pintura, mas transformar o mundo em pintura. Já o artista
não toma mais o mundo por uma realidade, a qual a tela deva subordinar-se em
expressão, nem mesmo por aparência de realidade, não tendo mais que dar
conta das formas ordinárias do real” – no sentido da realidade –, “mas devendo,
ela própria, a pintura, criar sua ordem interior, no interior da tela. A pintura
metamorfoseia os dados fundamentais da sensação”. Então, onde podemos
inserir o ato de pintura de Velázquez? Justamente em algo que é uma longa
tradição, em certa franja do pensamento ocidental que poderíamos situar em
dois momentos que não são iniciais nem terminais: o obstinado rigor, o “hostinato
rigore” de Leonardo da Vinci, quando dizia que a pintura é “cosa mentale”,
que a pintura não era feita para os olhos nem o refresco do olhar, mas era coisa
mental. A única regra fundamental na pintura, dizia Leonardo, era o obstinado
rigor, ou seja, aquilo que Lacan diz que ele próprio faz como o psicótico.
Encontraremos depois, recentemente, a grande revolução de Marcel Duchamp,
que diz isto de outro modo. Mas em ambos trata-se da produção de uma obra
plástica, visual, não-retiniana, quer dizer, feita para se pastar com a mente.
Insisto em que independentemente de qualquer consciência, porque o
poeta não é obrigado a ter consciência do que faz, algum rigor obstinado e
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Psicanálise & Polética
ordem, para poder dizer o poema. É o caso, por exemplo, de Leonardo, que é
um dos fundadores dessa ordem visual, mas em cuja pintura encontramos
deformações da perspectiva, se não mudanças bruscas de pontos de vista,
como o que ocorre na Mona Lisa. Ele construiu aí uma perspectiva de cima,
de um lado, e outra de baixo, do outro lado da mesma paisagem, e como a
cabeça da Mona Lisa está junto ao céu, e o céu é um ponto neutro em
perspectiva, ele faz, pelo céu, a passagem de um lado para outro, criando com
isto uma estranheza muito maior do que a do “sorriso” da Mona Lisa, que não
é tão estranho assim. No Tratado da Pintura mesmo, Leonardo mostra as
regras da composição, da anatomia, de que ele era pesquisador – é claro que
cheio de erros –, e, no caso da perspectiva exata, ele aponta todos os elementos,
mas, quando chega ao final – e não havendo naquela época uma ótica
desenvolvida como temos hoje na base eletrônica, etc. – , vemos a graça de
Leonardo, se aproveitando da grande ignorância sobre o assunto naquele
momento, para dizer que existe “a perspectiva aérea, que trata das cores, das
densidades”... Ali ele faz o seu bordel e acaba conseguindo fazer obra de arte,
apesar da caretice, da idiotice da perspectiva do renascimento.
Não há dúvida de que a perspectiva é uma grande invenção. É a
descoberta do geometral do olho. Mas um quadro que só se prende a idiotia da
perspectiva não consegue dizer nada. Nem mesmo uma fotografia, que é da
mesma ordem geometral, é tratada desse modo pelo poeta.
* * *
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Le Miroir ou Le Mi-roi
Esquema 1
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Psicanálise & Polética
Temos ainda esta outra linha, a horizontal AB, que mostra o meio do
quadro no sentido da altura, e estes dois triângulos, indicados pelas letras RST
e XYZ, que são apenas dois momentos que pude distinguir como de deformação.
Deformação como aquela que os renascentistas já faziam e que encontramos,
com grande quantidade de exemplos, no livro chamado Anamorphoses, de
Baltrusaïtis. Neste livro, que é citado no Seminário 11 de Lacan, podemos ver
brinquedos e distorções das quais muitos artistas se utilizaram, no sentido poético,
para quebrar a idiotice da estrutura renascentista, como é o caso do quadro Os
Embaixadores, de Holbein, que está na capa do Seminário 11, onde aparece
aquele crânio deformado. Em seu livro, Baltrusaïtis vai colher, a partir do
renascimento e mesmo até o barroco, essas deformações mais ou menos
violentas na ordem renascentista, para que o poeta possa dizer, inserir ali a
violência significante.
Do mesmo modo que Leonardo na Mona Lisa, no Retrato do Infante
Balthazar Carlos, Velázquez também constrói duas perspectivas
completamente diversas. É um jogo de deformação no sentido que os críticos
dizem “expressivo” – e veremos que muitas vezes, é significativo, se não
produção de significante. O infante, no quadro, está sendo visto de baixo para
cima e, no mesmo horizonte, Velázquez faz, ao fundo, uma perspectiva vista de
cima para baixo. Está tudo certo geometricamente, porque o horizonte é o
mesmo. Entretanto, esse efeito de-baixo-para-cima e de-cima-para-baixo cria
uma distorção significante. É importante notar isto porque veremos a repetição
desses momentos em Velázquez, e como ele vai juntar tudo isso numa só obra,
nesse quadro d’As Meninas, sua s’obra. Ele nos tapeia aí dando a impressão
de um certo ponto de vista, declarando formalmente o seu ponto de vista. Em
perspectiva, o ponto de vista, como sabemos, é o ponto que denota o olho do
observador, o olho de quem vê o quadro, e a projeção desse ponto sobre o
quadro se chama ponto principal.
Neste quadro, há erros propositais. Assim, essas duas retas do teto, RT
e ST, do triângulo RST, têm seu ponto de fuga sobre o braço desse personagem,
no fundo do quadro, no ponto T, que não é absolutamente o ponto de vista do
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Le Miroir ou Le Mi-roi
quadro. E isto é notável porque essas duas retas são perpendiculares ao plano
do quadro, portanto, deveriam ter, como ponto de fuga, o ponto principal, que é
a projeção do ponto de vista. Velázquez aproveitou-se da grande distância em
que se encontram essas retas e foi deformando suas posições, para nos
embaralhar a posição do ponto de vista.
Da mesma forma, as duas luminárias do teto, as quais também pertencem
a uma perpendicular ao plano do quadro, ou melhor, ao plano do fundo, também
estão deslocadas, pois se observarmos com cuidado – somente no quadro
original seria possível uma determinação mais precisa – veremos que seu ponto
de fuga – elas estão indicadas pelas retas XZ e YZ –, aparentemente, ou está
na cabeça do cachorro, ponto Z, ou está na borda inferior do quadro, quase fora
dele. Contudo, prefiro supor que a localização correta dessa fuga é no ponto Z,
vértice do triângulo XYZ. Veremos porquê. Velázquez deforma a perspectiva
do quadro para nos deixar em complicações a respeito do ponto de vista.
Foucault, em seu texto, que citamos no início, pretende dar conta deste
quadro como sendo um momento em que Velázquez representa – o sentido aí é
de Vorstellung, representação, representação imaginária, e não de
Repräsentanz – a imagética da ordem do século XVII. Foucault diz isto porque,
para produzir aquele livro, precisava de um testemunho. Foi buscá-lo em
Velázquez e o encontrou, de certo modo, embora eu tenha que discordar
radicalmente de certas observações que ele faz sobre o quadro. Todos os autores
ficam perplexos diante desse quadro. Ele cria uma trama tal de linhas dentro da
perspectiva, de luzes dentro da perspectiva aérea, de cores dentro da pincelada,
de olhares dentro da representação imagética dos personagens... É uma tal
tapeçaria, que deixa todo mundo perplexo, sem saber como se situar diante
dele. Pretendo mostrar o que acho que seja o modo de construção deste quadro
de Velázquez.
Vamos nomear os personagens que estão representados no quadro.
Da esquerda para a direita temos: no canto esquerdo, uma tela virada ao
contrário, presa no cavalete, um pedacinho da tela; um pouco mais atrás, uma
das Meninas, que se chama Dona Maria Augustina Sarmiento, uma das Damas
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ir. O que ele mostra é que quando ocupo esse lugar do rei e da rainha, esse lugar
elidido, passo a ser, enquanto sujeito, o centro mesmo dessa composição, uma vez
que o lugar é o mesmo. Ele termina o texto dizendo: “E livre, enfim, dessa relação
de encadeamento, a representação pode se dar como pura representação”.
No texto de Lacan sobre “o quadro”, no Seminário 11, temos, como
vou desenvolver aqui, que uma pintura, um quadro, nada tem a ver com nenhuma
representação. Não é enquanto representação que um quadro interessa, mas
sim enquanto ordenador de um olhar. Tentarei ir a um ponto dessa mesma
postura colocada por Lacan, mostrando que é enquanto demonstrador do corte,
demonstrador do significante – portanto, no momento em que aparece o sujeito,
a Lei, a castração –, que um quadro interessa enquanto obra de arte.
Não posso aceitar a postura de Michel Foucault porque me parece que
há nele um erro grave de perspectiva e de análise formal do quadro. Se eu
quiser o rei e a rainha do lado de cá, fora do quadro, preciso necessariamente,
apesar da deformações que Velázquez introduz, considerar o lugar do rei e da
rainha como ponto de vista do quadro, se não os olhares não convergem para
mim. Isto está na perspectiva do renascimento que, aliás, é a que informa o
quadro. É preciso, portanto, conceber o lugar do rei e da rainha como ponto
principal, ou seja, ponto de fuga de todas as perpendiculares ao quadro.
Fiz há algum tempo um pequeno artigo, meio embaralhado, apenas como
comentário a algumas colocações de McLuhan – que está como etc. no Senso
Contra Censo –, chamado Alffabetto e Esquizousia, onde tentei mostrar que
não posso conceber essa ordem visual, que Foucault coloca no século XVII,
como sendo a invenção e a construção daquele século. Posso dizer, sim, que o
século XVII primou pelo reconhecimento dessa ordem, mas ela é invenção do
Quatrocentos. Até à possibilidade de ruptura disso, que não foi certamente com
o impressionismo, estamos sob a ordem visual do renascimento, sob o reino da
perspectiva linear. E se o século XVII faz coincidir Descartes com o quadro
renascentista, ou até, digamos, com o sistema tonal bachiano – o sistema, não o
sintoma de Bach enquanto poeta –, por outro lado, a invenção disso se deu
muito antes.
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* * *
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Esquema 2
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Le Miroir ou Le Mi-roi
pouco de pintura sabe que, hoje, ou você copia de uma fotografia, ou você se
surpreende num espelho.
Entretanto, tenho dois testemunhos que me ajudam a pensar que
Velázquez pintou mesmo o quadro olhando para um espelho. Primeiro a in-
tuição de um museólogo que lá no Museu do Prado, onde eu nunca estive,
aonde moram As Meninas de Velázquez, botou uma sala só para este quadro e,
diante do quadro, um espelho, no qual se vê o quadro refletido por inteiro.
Ele não demonstrou nada, que eu saiba, mas estou cada vez mais con-
vencido de que Velázquez pintou este quadro vendo tudo isto que ele está
representando num espelho. Por isso ele pôde se representar, dentro do quadro,
pintando o quadro.
Mas tenho um testemunho mais grave, dois, aliás. Primeiro, o testemunho
posterior de Goya que, ao tentar seguir a idéia deste quadro, soubesse ele
ou não do fato, pintou a Família Real de seu tempo diante de um espelho,
e se retratou ele mesmo, lá no canto, por trás dos personagens, pintando
o quadro. Pintou diante de um espelho e disse que era uma reflexão no
espelho, mas não conseguiu as coisas que, a meu ver, Velázquez conseguiu.
Ele apenas aproveitou a idéia da especularidade. Segundo, o testemunho,
bem mais grave, de Picasso que ficou encucado com este quadro de Velázquez,
como se fosse o centro de algum pensamento fundamental, e fez 44 telas
baseadas nele. Ninguém faz isso sem estar de certo modo possuído pelo quadro.
Numa dessas quarenta e quatro telas, a que talvez seja o ápice dessa série,
seja ela ou não a final, ele incluiu tudo que está no quadro de Velázquez.
Ele repensa o quadro de cima abaixo. Encontramos todos os personagens
representados: a tela, o pintor, as duas Meninas, a Infanta, o cachorro, a anã, o
liliputiano, a aia, o Guarda-Damas, o Aposentador, a janela por onde a luz entra...
Mas onde estão o rei e a rainha? Ele não botou. No lugar do rei e da
rainha, Picasso colocou apenas o espelho. Ele o representou – e certamente foi
aí que ele sacou a estrutura do quadro – justamente do modo como acontece
com um espelho diante de outro espelho, que dá aquela reprodução infinita dos
espelhos. Ele infinitizou o espelho.
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Psicanálise & Polética
Picasso: As Meninas
* * *
Onde estão o rei e a rainha para que possam aparecer no espelho que
Velázquez está olhando? Na frente? Se estiverem na frente, tapam o espelho e
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Esquema 3
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Esquema 4
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Psicanálise & Polética
Se Velázquez está vendo esta cena diante de um espelho, ele tem que ver o
que vemos aí no desenho, e não o que está no quadro, que é o avesso daquilo.
Para ele pintar este quadro, ele está vendo o seu avesso. Por que ele não
pintou igual? Penso que tudo isto tem alguma razão. Para se dizer que há um
espelho em frente, há que se dizer que ele não está vendo assim como no
quadro, ele está vendo pelo avesso como no desenho. O que está no quadro é
o avesso do que está no espelho. O que ele vê no espelho é tudo isso, inclusive
o reflexo do Casal Real. Basta ele ficar no ponto de vista dele, que ele vê tudo.
O rei e a rainha não estão ausentes, só que só aparecem, no quadro,
refletidamente.
É preciso que Velázquez veja ao contrário. Isto é fundamental no
raciocínio. Deixemos em suspenso, por enquanto.
* * *
/ 1, conforme a
O rei e a rainha estão ali, no mesmo plano do espelho E
planta baixa e o desenho, talvez em simetria ao Aposentador que está na porta
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/ 2, que
em frente, e aparecendo necessariamente naquele espelho do fundo, E
/ 1. Tratam-se, então, de dois espelhos. A questão
Velázquez vê do outro espelho, E
que Velázquez está estudando aí é O Espelho. Posso dizer isto baseado em,
pelo menos, mais dois de seus quadros.
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Esquema 5
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Mas, voltando, o que está em Lucas, X, 38? Jesus entrou numa cidade
e uma mulher chamada Marta o recebeu em sua casa. Ela tinha uma irmã
chamada Maria que, assentando-se aos pés do Senhor, escutava sua fala.
Marta estava atarefada num serviço complicado, veio a Jesus e disse: “O
Senhor não acha nada de minha irmã me deixar sozinha fazendo o serviço?
Diga-lhe que venha me ajudar”. E Jesus lhe respondeu: “Marta, Marta, você
se inquieta com um bocado de coisas, mas só uma coisa é necessária, e foi
Maria quem escolheu a melhor parte. Essa parte não lhe será tomada”. É
interessante Velázquez se incomodar com essa passagem da Bíblia. Marta
por um lado, a favor de certa lei, da regra, do trabalho, do comportamento
em casa. Maria, por outro, preocupada com outro tipo de Lei, com alguma
coisa Outra. É isto que Velázquez vai representar aí n’As Meninas.
Retomaremos isto.
* * *
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Deixei com vocês uma batata fria. Não foi uma batata quente porque,
me parece, consegui explicar alguma coisa. Batata fria porque esperei que
vocês cozinhassem a batata que Velázquez nos entregou.
O interessante, como veremos, é a função da alíngua, nas possibilidades
de articulação que o sujeito acontece produzir.
A língua de Velázquez, no sentido mais geral, era o espanhol e era,
certamente, o português, na sua origem familiar. Assim como a nossa língua é
o português, ou seja, o brasileiro. Assim como a língua de Picasso, por mais
francês que ele se fingisse, era o espanhol. Acredito que é por esta razão que
Picasso nos dá o testemunho mais importante a respeito daquela reflexão
especular dupla, que tentei apontar na construção d’As Meninas: há um espelho
diante de um espelho. Isto porque em espanhol assim como em português,
diferentemente do francês, do inglês e de outras línguas, há na palavra REAL
a feliz equivocidade de realeza e realidade.
Real, de rei, rex/regis em latim, vai dar royal em francês e royal em
inglês, por exemplo. Real, de coisa, res/rei em latim, dá réel em francês e real
em inglês... sendo tudo real em espanhol. É mediante essa equivocidade que
Velázquez – certamente no que ele freqüenta essa língua – situa o lugar do
espelho por outra equivocidade que funciona também em espanhol como em
português: a de côrte e córte. É pela realeza e/ou realidade de Corte Real,
aonde a diferença se instala entre Rei/Rainha, como indicação de Nome do
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Psicanálise & Polética
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Esquema 6
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V.v.V.
sapremo o quadro como objeto a. Velázquez nos obriga a ver o rosto do outro,
que, no caso de ser Vênus, Afrodite, é Outro mesmo, o lugar do feminino. Só
fui até aí neste quadro, mas esta questão é importante porque, como veremos,
vai se repetir n’As Meninas.
Há, ainda, uma coisa para observarmos nesse quadro, uma questão
que deixo em suspenso: para quem, para onde olha o Cupido? Não é para o
espelho. Para Velázquez também não é, pois o olho do Cupido não acompanha
o olhar do observador. Tentei, no Esquema 6, traçar a direção do olhar de
Cupido e penso que ele olha exatamente para o lugar onde há falta. Ele olha
para a chamada “xota”, para o púbis, mas não o vê, porque há um pano na
frente. Pela reprodução, fica difícil resolver estas questões. Seria preciso medir
o quadro real, pois ainda podemos supor que há um ângulo de incidência, da
direção do olhar de Cupido, sobre o olhar da Vênus espelhada. Isto, de tal
modo que, se houvesse um espelho no púbis de Vênus, Cupido veria o quê?
Não sei. Aí é que teríamos que pensar. A questão está em suspenso, pois, do
ponto de vista da pintura, podemos dizer que Cupido veria o rosto de Vênus,
mas, do ponto de vista do espelho, não seria isto. Há uma reflexão especular
desse Cupido com dois espelhos: um é o que ele segura, o outro é o que estaria
no lugar da falta, só que ele não a vê porque há um pano na frente.
Esquema 7
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Psicanálise & Polética
veremos adiante, a questão da Lei, sobre o lugar onde ela realmente opera, que
é o lugar da diferença – em última instância, diferença sexual. Trata-se,
portanto, para Velázquez, de tentar inscrever, em termos pictóricos, aquilo
que, suponho eu, Lacan escreveu formularmente como as “fórmulas quânticas
da sexuação”, com seus dois lados.
* * *
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V.v.V.
Esquema 8
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Esquema 9
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Outro, também é furado. Mas, o sujeito, para não sofrer desse furo, tasca um
pedaço, tipo Adão e Eva na maçã, e se arrolha com essa importação significante
do campo do Outro. Eles mostram como, por exemplo, essa importação se dá no
caso da menininha que mete o dedo na boca da analista. Rosine, saca a borda do
furo e depois traz esse dedo, para arrolhar sua boca. Quer dizer, com esse significante
do furo do corpo do Outro, a criancinha arranca aquela borda de lá, fatura uma
zona erógena do Outro, e arrolha a sua a constituir-se, também, como zona erógena.
Mas, se o corpo do Outro não é, para o sujeito, furado de modo significante
– o corpo do Outro, como o corpo do sujeito, como o mundo, são realmente furados,
ou seja, há muitos furos reais tanto no corpo como no mundo –, de modo que o
significante furo venha distanciar esses furos, ausentificá-los significantemente, ou
melhor, faltando o significante que situe o furo, o sujeito cai no caso da psicose. Isto
quer dizer que se o sujeito não pode considerar o corpo do Outro como furado
significantemente, esse furo se apresenta no corpo dele, e no corpo do Outro,
como no mundo em geral, como um furo real, do qual ele não pode dar conta, por
não ter articulado esse real dos furos como significante que ele capturou do campo
do Outro, e com o qual ele se arrolhou para poder, inclusive, sacar esse furo. É aí
que Rosine e Robert Lefort situam a psicose, e eu estou plenamente de acordo.
Vamos, agora, pensar o segundo tempo, o advento da fase seguinte,
como os Lefort dizem: a estrutura especular. O estádio do espelho, aquele que
Lacan articulou, vem aí nesse momento, com uma duplicação e um distanciamento.
Eles chamam a atenção para este fenômeno – a duplicação e o distanciamento
– com toda correção. Nesse regime, o do estádio do espelho, o sujeito se depara
com a duplicação do seu furo, seja onde for esse furo – boca, por exemplo,
fundamentalmente boca-ânus –, assim como com a duplicação do furo do Outro.
Com o que o furo do sujeito pode ser considerado por ele, que agora está em
emergência, pela intervenção do Outro, a indicar, a nomear mesmo o seu furo –
por exemplo, o seu nome. Isto é, em suma, aquilo que Lacan articula no estádio
do espelho. Não tem nada de novo.
Tentarei representar, com uma figuração, estas fases:
Na primeira fase, ou primeiro tempo, temos um furo no corpo do Outro
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V.v.V.
/ ) que é reconhecido pelo sujeito (S/ ). E o furo que o sujeito (S/ ) teria é suturado,
(A
/ ) de modo significante.
arrolhado, por aquilo que o sujeito tira do corpo do Outro (A
Então, a referência da sutura para o sujeito é o furo do Outro. Ele, o sujeito (S/ ),
joga para lá o furo, para não ter o furo do seu lado. O sujeito (S/ ) só pode fazer
/ ) um objeto constituído significantemente.
isto tomando do Outro (A
Esquema 10
Esquema 11
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Esquema 12
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Vou, agora, dar mais um passo, para ver se acham outro furo. Como o
sujeito vai passar, eventualmente, dessa postura que seria feminina, para qualquer
sujeito, no começo, para uma postura masculina? Como é que ele vai passar?
Não na via libidinal, a de Freud, mas nesta via da inserção significante, a de
Lacan. O que será preciso para um sujeito, ao contrário do que acontece,
segundo Freud, com a menina – para Freud é a menina, o feminino, que tem
um segundo tempo, mas agora é o menino, o masculino –, encontrar um segundo
tempo para se tornar masculino?
A construção é cruzada, é reversa. Do ponto de vista libidinal, tudo é
menino e um deles vai passar para o outro lado, feminino, numa segunda
instância, num segundo momento. Mas, do ponto de vista da inserção significante
– Lacan e os Lefort –, tudo é feminino, e um deles, o masculino, vai ter que
passar para o outro lado. Como isto pode acontecer?
Em vista disso que foi proposto, ofereço à discussão um quarto tempo,
ou quarta fase. A via masculina só pode vir depois, mediante alguma coisa
que vou tentar chamar de “encarnação” do falo. O falo não é senão aquele
significante que se instala mediante a metáfora paterna propiciada no estádio
do espelho. É o falo como significante de haver significante, aquilo que Lacan
veio ressaltar: o falo é puro significante da diferença. Então, findo o terceiro
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V.v.V.
tempo, ele já está inscrito de algum modo, operando como diferença, de furo
para furo.
Esquema 13
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sujeito. Por isso é que eu disse que as mulheres não têm identidade. Isto não é uma
ofensa, é um elogio. As feministas acham isto uma ofensa porque não querem ser
mulheres, querem ser homens. O que irrita na sapatice feminista é que elas não
querem arcar com a diferença. Elas querem ser homens, querem ser iguais aos
homens, o que é uma merda absoluta.
A referência idiota, então, ainda por cima, se escora nesta encarnação do
falo, que é uma espécie de feiticização sobre o corpo ou, pelo menos, uma instalação
sintomática enxertada ali no corpo. Vem, então, o verbo ter como garantia para a
sua relação com o significante fálico. Com esse “pau na mão” – a expressão tem
que ser assim –, o sujeito pode agora arrolhar, ainda que como promessa, o Outro.
Aí ele vira homem. É o inverso daquela posição original, da primeira fase.
A posição masculina invoca esse falo encarnado para, como promessa,
pelo menos, arrolhar o Outro, suturar o Outro, produzir uma sutura no campo do
Outro. É isto que Lacan vem nos dizer naquelas formulações.
Cria-se aí um problema sério porque, ao mesmo tempo que a castração é
condição sine qua non para se suspender o narcisismo, há uma função narcísica
posterior, e isto deixa muita gente embananada. Há uma função narcísica de
invocação de um falo tido, mediante o qual o sujeito vai poder fechar o círculo e
dizer: todo homem é função fálica. O corpo do Outro é suturado pela empolgação
do falo. Empolgação no sentido de conceito, que toma o falo enquanto significante
encarnado e capaz de suturar, arrolhar o corpo do Outro. Ainda que não esteja
arrolhando o tempo todo, a qualquer susto, o que faz um bom macho? Oferece o
falo, arrolha o campo do Outro, e está encerrado. Ele segura o tal do pau, o tal do
cetro ou coisa que o valha, e o oferece como uma espécie de ato apotropéico. O
Outro se cala.
Afinal, não é esta a postura que a mãe do psicótico exige do seu filho,
quando tenta arrolhar, suturar, seu próprio corpo? Ela, que está na posição de ser
Outro furado, para com o filho? Essa postura que ela exige, não é com o falo que
o filho tem, mas com um falo que o filho é chamado a representar, a ser. Ela se
masculiniza porque pega o filho como se fosse o falo e tapa o buraco. Ele tem que
ficar psicótico, pois não encontra o furo no corpo do Outro.
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V.v.V.
O que diz o homem se a mulher pode dizer: “Meu corpo é furado como o
do Outro”? Basta acrescentar uma pontuação e é o que ele diz: “Meu corpo é
furado: como o do Outro”. Agora o verbo é comer. Por isso os homens pensam
que comem as mulheres, quando, na verdade, é o contrário: elas é que andam
comendo os homens por aí – elas é que são furadas. Então, com essa pontuação –
“Meu corpo é furado: como o do Outro” –, o imbecil passa a vida pensando que
tem o falo e que arrolha, com a oferta desse falo, o corpo do Outro. O corpo do
Outro sendo inteiro, não tem mais problema: quando o furo dele coça, ele come o
do Outro. Com isso ele fica espedaçando em pedacinhos, momento em que a
posição masculina vai poder considerar o Outro, não como tal, mas como objeto.
Neste momento é que aquele a que fica na meia divisão entre as duas
posições das fórmulas quânticas – naquela reta que chamei de bussetriz, a
bissetriz do ângulo formado pelas duas posturas femininas –, quando o Outro é
tomado como objeto, vai pintar para o homem como esse outro que ele “come”.
Maternidade é produção de psicose. Felizmente, há intervenções outras
que não permitem que ela sempre se dê assim. Lacan já disse que “mãe é
jacaré”. A maternidade é em si essa maternidade que se produziu simbolicamente
nesse percurso que fizemos com base nos Lefort e Lacan, ou se não, é a produção
da psicose. “Ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração...”. O filho é o falo da
mãe. Ela tem aquele falo. Quer dizer, ela não tem o direito nem de ser mulher. A
mulher tem o direito – porque funciona assim – de dizer: “Não tenho falo, sou
falo enquanto significante, enquanto furo”. Mas o homem, encarnando o falo
sintomaticamente, diz assim: “Tenho o falo”. Então, cadê a anatomia? Num
outro texto, Freud repete Bonaparte: “A anatomia é o destino”. Ele não está
errado dizendo isto porque a anatomia é o destino, sim. Resta saber o que ele
está querendo dizer com isto. Temos que ler Freud com o que ele produziu e não
com o anedotário da leitura pedestre, se não pederasta. A anatomia é o destino –
resta saber qual. Pois, na verdade, a anatomia é o des-tino.
O verbo ter é o que rege o processo masculino, é ele que paratodiza.
Sem o verbo ter não se pode paratodizar. Só posso dizer “todo homem é isto-
assim-assim”, porque tem isto. Sem esse ter não há paratodização. Já o verbo
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Psicanálise & Polética
ser não pode paratodizar, porque não passa por captura de objeto, ele só passa
pela palavra. A palavra é infinitizante: ninguém é. Mas acontece que quando
alguém diz que “é isto-assim-assim”, no regime da sua boçalidade, está dizendo
que tem tal configuração imaginária. É como dizer: “Eu sou um objeto”. Qualquer
um pode ter, basta pagar o preço. Se uma pessoa pode dizer: “Sou professor”,
é porque a universidade pode cobrar isso dela, e ela pagou para ter. Ou, se
não, aluga-se um pouquinho... a prostituição é universal. Entretanto, o verbo
ser designa o que passa pela fala, ou seja, pelo que Lacan chama de
“obscurantismo do mal-entendido”, e não encontra esteio sobre o corpo.
Mesmo assim, é claro que a anatomia é o destino, como Freud inventou.
Só que, ao invés disso, digamos que “o a, na tomia, é o destino”. Agora fica
certo. Tomia é partição, logo, na partição há um lugar para o objeto a que, na
tomia, é o destino. Se a leitura que Lacan fez de Freud está certa, e é da
suposição dessa correção que partimos, o que Freud tentou pensar como
anatômico – porque é anatômico onde a diferença, digamos, evidentemente,
ou pelo menos, geometralmente, visualmente, pinta – vai dar para ele, em última
instância, a distinção de masculino e feminino, a qual recai, ulteriormente, nessa
postura formulada por Lacan: as fórmulas quânticas da sexuação. Não se
trata de pênis, trata-se de Falo. Em se tratando de falo, quando a referência
do sujeito é o gozo fálico, quando este sujeito é o masturbador que empolga
alguma coisa como sendo encarnação do falo, ele constrói essa anatomia das
fórmulas de Lacan que é da ordem da estrutura do inconsciente. O sujeito
constrói, por cima de qualquer aparelho da anatomia que rege esse discurso
científico, um órgão real, porque é sintomático, sobre o qual ele esteia o gozo
fálico, que passa a ser a sua referência.
Se no lugar daquilo que Freud chama de anatomia, menino/menina,
instalarmos, não um pênis mas, uma referência fálica, de gozo fálico estrito,
veremos o que ele disse ficar perfeitamente correto: essa anatomização que
dali se destaca, é o destino. Isto que dizer que, ou o sujeito se escora no gozo
fálico e fica imbecil, ou ele não se escora só no gozo fálico, e portanto nem no
gozo fálico, pois se escora também no furo do Outro, o que acaba embaraçando
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como sendo aquilo que se reflete num espelho. O rei e a rainha estão numa porta
ao lado do grande espelho no qual o quadro se reflete e, portanto, em frente à
cena que se representa neste quadro, conforme foi desenhado.
Pudemos ver que em alguns quadros da sua produção mais antiga,
Velázquez já vinha situando a questão do espelho. O espelho foi um objeto de
interesse constante na sua vida e na sua obra, assim como também foi muito
comparecente e repetitivo por toda a fatura da teoria da pintura no Renascimento
e no Barroco. Fizemos algumas considerações a respeito de dois quadros seus,
Jesus em casa de Marta e Maria e A Vênus ao Espelho. Verificamos que, no
primeiro quadro, Velázquez apresenta a mesma composição que As Meninas,
sendo que representou a cena toda, inclusive os elementos que não estão no
espelho – n’As Meninas representou apenas o que via no espelho. Com o quadro
da Vênus, chegamos a concluir que o que Velázquez está colocando em relação
à problemática dos espelhos não é senão a questão do ponto de vista do quadro
e, portanto, a questão da situação do sujeito no quadro.
Tomamos, também, a referência da leitura do Seminário 11, onde Lacan
pensa o que seja o olhar e o que seja um quadro, e nos diz que um quadro é, em
última instância, a construção de um certo olhar. Uma vez que ele afirmara antes
que o olhar é objeto a, vai ter que dizer, em seguida, que o quadro, afinal de
contas, é alguma que se dá por objeto a. Não que um quadro seja um objeto a,
mas é aquilo que se oferece como um objeto a.
Lacan também situa a questão do sujeito no quadro, retomando certos
estudos de Merleau-Ponty, em Le Visible et l’Invisible e num outro livro mais
antigo, Phénoménologie de la Perception, onde este autor pensa a questão da
experiência de Gelb e Goldstein quanto à questão do anteparo no processo da
visão, numa idéia de quiasmo existente entre o sujeito e o quadro, onde o sujeito
se coloca sobre o quadro e o quadro se coloca no olho, numa mesma reversão.
Lacan acaba demonstrando que há um quiasmo entre o observador e o quadro e
que, portanto, o sujeito enquanto tal, S/ , está situado no quadro.
Se tomarmos o modelo de construção de Velázquez n’As Meninas,
veremos que, realmente – e este será o tema da próxima sessão –, há aí uma
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E-Sexão
naturalmente, foram a favor da vitória de Apolo, mas o Rei Midas foi a favor de
Mársias. Houve empate e não se conseguiu desempatar. Apolo ficou tão
enraivecido que castigou Midas e infligiu a Mársias o terrível suplício de ser
escorchado vivo e pendurado num pinheiro. Entretanto, Apolo, depois, fica
arrependido dessa vingança tão violenta e transforma Mársias num rio.
É uma belíssima figura: Mársias é transformado num rio e sua flauta,
que ele pegara do lixo de Atena, é consagrada a Dionísio – este é uma espécie
de outro-Apolo; assim como Apolo é seguido das Musas, Dionísio é seguido das
bacantes; essa dialética Apolo/Dionísio é uma velha dialética em nossas cabeças.
Esse pequeno falo, então, esse menos-um que sobrou de Atena, vai parar na
mão do poeta Mársias e, na vingança com os deuses, porque Mársias consegue
dominar o mundo de Apolo, ela, a flauta, vai parar em Dionísio. A flauta atravessa
todo o panorama da “cosa mentale”, a produção poética, o panorama grego, e
sobra como um resto maravilhoso, representando a possibilidade de ato-poético.
Apolo é aquele mesmo que inspira as profecias, aquele que dissera a
Édipo o que iria acontecer, através de sua pitonisa – a pítia, de onde vem a
palavra pitiatismo, ou seja, ataque histérico. Ele é, também, o inspirador dos
músicos e dos poetas. Atena, a tal que jogou a flauta fora, é a Minerva dos
romanos.
Atena era filha de Júpiter – Deus-pater – e de Metis, que era a Prudência.
Um dia Metis foi devorada por Júpiter, que a engoliu porque estava grávida dele.
Ele assim o fez para que o filho não viesse a destroná-lo – filho da Prudência
com Deus-Pai... destrona qualquer um... Imediatamente depois de engoli-la, ele
sente uma terrível dor de cabeça e vem a parir Atena, pela cabeça. Ele teve que
pedir a Hefaistos, que não é outro senão Vulcano, aquele da forja, para que
abrisse a sua cabeça. Assim, se fizermos o percurso de Atena, com sua flauta,
que vai cair na mão de Mársias, Apolo, Dionísio, etc., mais uma vez se reitera
que a Arte, e sobretudo o ato poético, é “cosa mentale”, representada nessa
gravidez encefálica de Júpiter.
Atena, que é a deusa da sabedoria e da Lei, às vezes é representada
com armas de guerra, porque ela vai à luta. É interessante que no escudo que ela
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Psicanálise & Polética
usa como guerreira está figurada a cabeça de Medusa, que, esta, é aquela que
representa o ato apotropeico por excelência: paralisa as pessoas. Como sabemos,
Freud tem um texto sobre ela, onde tenta explicar o que é essa aparição do falo
enquanto significante, que paralisa a todos. Se Atena é a deusa da sabedoria, da
Lei, e portador da cabeça de Medusa no seu escudo, há uma relação, digamos,
por tabela, entre ela e Édipo.
Na história do Édipo, podemos tomar como centro de aparecimento da Lei,
isto é, da palavra da Lei, do ato-poético, a presença de Tirésias, o qual ficou cego
porque foi surpreender Atena tomando banho. Ele quis ver a nudez da sabedoria e da
Lei e, por isso, ficou cego, não foi nenhuma punição. Tirésias foi enceguecido pela
presença nua e crua da sabedoria e da Lei. A Lei da diferença, aliás que se indica
numa outra versão do mito, quando Tirésias separa a copulação de duas cobras.
Há, também, o que já contei aqui, que Tirésias é o único na história
mítica da Grécia que foi testemunha dos dois sexos. Não que fosse bissexual,
porque isto simplesmente não existe, mas pelo fato de que passou de homem a
mulher, levou sete anos mulher, e depois pôde retornar. Certa vez, numa discussão
no Olimpo, Tirésias foi chamado a dar o seu testemunho para os deuses. Eles
estavam discutindo sobre quem gozava mais, se os homens ou as mulheres.
Embora os deuses gregos sejam bastante situáveis, eles não são o Outro, quer
dizer, eles não são representantes ou a representação do Outro. Eles são
pedacinhos desse Outro, eles caem no real como frações, por isso não sabiam
chegar a uma conclusão sobre a contenda. Tirésias, então, respondeu: “É muito
fácil. Se fizermos uma partilha de dez, os homens gozam um, enquanto que as
mulheres gozam nove. As mulheres gozam muito mais que os homens”. É
absolutamente verdadeiro. É o gozo do Outro, o de que Tirésias estava falando.
Interessante Velázquez colocar escolhidamente esse quadro de Apolo e
Mársias naquela parede do fundo d’As Meninas. Talvez com isto, trazendo o
testemunho de que, na sua obra, quis falar do ato-poético enquanto tal. Ou, talvez,
estivesse na tentativa de expor a questão em torno da Lei, da sabedoria, da
recuperação daquela flauta, menos-fi (- ), cadente. Com o que poderemos,
também, dizer que ele estaria situando a questão em torno da diferença sexual
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E-Sexão
por tabela, entre Apolo e Atena pelo menos. Talvez a presença da representação
do quadro de Jordaens estivesse como que a glosar o próprio quadro d’As
Meninas. Esta seria a necessidade do tema de Apolo e Mársias aí. Certamente,
é na mão do Mársias-Velázquez que está aquela flauta – a sua batuta.
Passemos ao outro quadro representado ao lado daquele de Jordaens, e
que vem glosar tanto este de Jordaens quanto o do próprio Velázquez. Trata-se
de um quadro de Rubens, o amigo de Velázquez e mestre de Jordaens, chamado
Atena e Aracne.
Aracne era uma jovem mortal da Lídia, cidade que era extremamente
importante naquele momento grego por suas tinturas de púrpura e excelência na
arte da tecelagem. Por esta razão, muita coisa da mitologia se passa em torno
dessa cidade, das suas representações pragmáticas. Um dia, porém, Aracne,
que era extremamente perita na arte da tecelagem e da tapeçaria, gabou-se de
ser melhor fiandeira do que Atena, desafiando-a. Atena, que, no Olimpo, era
reconhecida como a deusa mais excelente na arte da fiação, aceitou o desafio de
Aracne. É outro desafio. Antes era o desafio de Mársias a Apolo, e Atena entrava
por tabela, aqui ela entra direto.
Aracne, então, teceu uma peça onde figurou os amores dos deuses do
Olimpo, ou seja, contou a fofoca toda... E o fez com tanta perícia, que Atena não
pode encontrar, naquela peça, nada a retomar, nada a melhorar. Quer dizer,
Aracne, além de fazer uma peça extremamente bem-feita, também fofocou –
tipo de coisa de mulher: O Outro fala pelos cotovelos e acaba contando quase
tudo. Atena ficou extremamente encolerizada com Aracne tanto pela fofoca
como pela perfeição do trabalho. Rasgou a obra da rival e a atacou tanto,
perseguiu-a tanto que Aracne acabou se enforcando. Façamos aqui uma longínqua
referência ao le pendu femelle, o enforcado fêmea, no Grand Verre de
Duchamp. Aracne se enforcou e Atena, então, transformou-a numa aranha,
penduradinha no seu fio. Será que é do beijo dessa mulher que Puig está tratando
no seu livro? É uma mulher-aranha, de qualquer forma.
Temos, portanto, nos dois quadros que aparecem n’As Meninas, de
um lado, a tessitura que Freud chamou de apanágio das mulheres nas culturas.
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Psicanálise & Polética
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E-Sexão
o analista, razão pela qual não se pode fazer psicanálise de uma obra e sim ser
analisando diante dela. Mas, como diz o Zen que “quando se aponta para a lua,
o imbecil olha para o dedo”, é preciso não confundir porque quando a obra
aponta para o espelho, o imbecil olha para a imagem. Guimarães Rosa,
justamente, mostra no seu conto central das Primeiras Estórias que, diante do
espelho, na nossa debilidade, nos deparamos com a imagem e esquecemos o
espelho. O poeta constrói esse espelho. É para ele que temos que olhar, e
tentar desfazer as imagens. Não no que ele reflete o imaginário, que aliás é
extremamente útil na formação do eu, no estádio do espelho, mas enquanto
espelho vazio.
Em algum lugar do Seminário 2, Lacan declara numa frase o que é o
lugar do analista: “... que o analista não seja um espelho vivo, mas um espelho
vazio”. Em páginas tantas de meu trabalho sobre Rosa, tento mostrar esta
metáfora, muito antiga em Lacan, apontando também o que acontece na análise
e situando naquele esquema da espiral elíptica o lugar do analista no lugar do
espelho plano, central na dialética dos espelhos côncavos.
O segundo motivo que está me interessando é que temos no quadro,
além da construção da obra, a explicitação dessa construção. Vez por outra
encontramos uma obra em que o artista, ou melhor, o poeta, além de construir,
explicita, dá os dados da construção, da estruturação que utilizou para nos
entregar seu espelho. Foi o que encontrei, por exemplo, em Guimarães Rosa e
encontro agora nesta obra de Velázquez. Não é só que o espelho esteja lá,
construído logicamente como obra, mas também lá está explicitado aquilo do
que está tratando. Ele poderia não explicitar. Todas essas referências que estou
buscando no quadro são no sentido de mostrar que lá está a construção do
espelho e sua explicitação, como se Velázquez legasse esse achado, essa
“reflexão”, à nossa com-sideração, enquanto analisandos que somos.
Tentemos, agora, descobrir essas duas coisas: a construção do espelho
enquanto tal e a questão que importa quanto ao real do espelho. Isto, uma vez
que o espelho é aquela partição: esbarra-se num real diante dele, e ele devolve
tudo para o mesmo lado. A questão é a de que nesse espelho vai a marca da
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Psicanálise & Polética
Esquema 14
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E-Sexão
Esquema 15
Duchamp dizia, então, que, para fazer o rebatimento de uma quarta dimensão,
precisamos de uma terceira dimensão como charneira. Ele disse isto e isto não
nos foi dado, simplesmente porque não precisamos pensar em nenhuma quarta
dimensão para pensar que a charneira de reviramento de uma superfície é ela
própria. É o próprio furo que ela porta, através do qual, como se faz com uma
luva ou uma meia, nós a viramos pelo avesso. Esta é a estrutura do espelho.
O espelho é aquele furo que é charneira de rebatimento, virando pelo
avesso. É a operação que chamei de “viravesso”, operação que sobra. Quando,
diante de um espelho, podemos reconhecer a imagem que ele nos apresenta é
porque podemos trazê-la para o outro lado – viramos pelo avesso –, e o que
sobra é a operação do “viravesso” que é o espelho enquanto borda única,
enquanto banda de Moebius – superfície unilátera.
Portanto, para que se possa dizer que Velázquez está construindo um
espelho – segundo a tese que estamos defendendo, uma obra teria que
comportar isto –, teríamos que dizer que, em algum ponto, pelo menos, do
quadro, ele não só teria feito esse reviramento, como, ainda por cima, teria
explicitado isto. É como se Velázquez nos dissesse: “Deixem de ser tolos, olhem
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Psicanálise & Polética
como eu reviro o quadro”. Quero dizer que temos ali inscrita uma banda de
Moebius aparentemente invisível. Mas, se estudarmos o quadro, vamos retirá-
la de lá e apresentá-la limpinha. Ou seja, Velázquez construiu uma banda de
Moebius neste quadro d’As Meninas. É só procurá-la que a acharemos.
Vamos recompor tudo outra vez.
Velázquez está pintando Velázquez enquanto representado no quadro.
Ele está pintando um quadro que, se minha operação lógica está certa, ele está
vendo, no real, como reflexo no espelho. Portanto, temos que dizer que Velázquez
está pintando naquele quadro em que ele aparece pintando – o quadro que está
de costas para nós – o próprio quadro em que ele está se representando: As
Meninas. O quadro que está lá dentro é o mesmo quadro que nós vemos.
Então, ele está diante do espelho pintando As Meninas. Por esta razão, o rei e
a rainha lá estão representados do modo que mostrei: há uma dupla reflexão
para que eles possam aparecer.
Neste ponto, temos que ter certo cuidado. Se Velázquez está vendo
aquela cena do modo como está representada no desenho de Luiz Carlos
Miranda que mostrei, ou seja, se da sua posição real Velázquez vê aquilo como
está no desenho, temos que pensar que eventualmente – e talvez o mais correto
seja isto –, ele está vendo o avesso do que está representando: lá no espelho,
conforme mostra o desenho, e se foi isso que ele viu, o quadro está pelo avesso.
Temos aí neste fato uma grande ambigüidade. Há uma tradição desde
o Renascimento, desde a invenção da perspectiva exata, por conselho de
Leonardo, Dürer, Piero Della Francesca, Paolo Uccello, etc. – sobretudo
Leonardo e Dürer, que são os mestres da construção da perspectiva, da
construção renascentista –, da farta utilização do espelho para um artista.
Leonardo chegou a dizer que todo quadro, ao ser considerado terminado, ou
quase, deve ser posto pelo artista diante de um espelho para ver se ele é tão
bom de forma especular quanto da forma normal. Ou seja, que a composição
tenha uma estruturação de equilibração tão bem-feita que o quadro possa ser
visto diante do espelho sem incomodar. Mas, pode-se dizer que Leonardo tinha
um cacoete, pois ele era absolutamente ambidestro, escrevia, pintava, fazia de
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E-Sexão
tudo, do mesmo modo, com as duas mãos. Este “cacoete” passou a ser uma
espécie de “recomendação didática” para os artistas que vieram em seguida.
Não podemos saber se Velázquez entrou nessa de usar as duas mãos e, também,
não se sabe se era canhoto ou destro. O fato é que se ele pintasse com a mão
direita, poderíamos afirmar que este quadro d’As Meninas está pelo direito, ou
melhor, é o avesso do que mostra o espelho. Isto porque, no quadro, Velázquez
segura o pincel com a mão direita. Mas, quanto a isto, nada se pode afirmar.
Somente uma pesquisa mais apurada poderia nos esclarecer.
Talvez Velázquez fosse ambidestro como Leonardo. Leonardo até
escrevia ao contrário, quer dizer, escrevia cadernos inteiros da direita para a
esquerda, ao contrário da esquerda para a direita que é a nossa maneira. Assim,
para lermos os manuscritos de Leonardo, temos que olhar por um espelho.
Seria, mais ou menos, como o exemplo que se segue:
291
Psicanálise & Polética
tapeçarias são aquelas que não têm avesso nem direito. Se nelas há alguma
indicação geométrica ou figurativa, isto será visto tão bem pelo direito como
pelo avesso. É a mesmíssima coisa que ocorre com o espelho, ou que ocorre,
por exemplo, com uma transparência, com um slide.
Assim, poderíamos dizer que este quadro d’As Meninas que estamos
vendo é o quadro que veríamos se aquela tela está lá dentro, de costas para
nós, fosse um vidro. Se aquela tela, a que está lá no quadro representada,
fosse, então, de vidro, Velázquez pintaria normalmente pelo avesso, e veria o
quadro como nós o vemos, na mesma superfície.1
O mais importante é que Velázquez, nessa mesma superfície, constitui
de tal modo as coisas que temos que pensar o tempo todo nesse “viravesso”, e
já vai aí algo da natureza do espelho e da banda de Moebius na nossa reflexão,
na nossa consideração sobre o quadro. No que começamos a considerar o
quadro, não há como não pensar esse pelo-direito-pelo-avesso, se é que nosso
caminho é válido. Poderíamos, também, dizer que Velázquez teria uma perícia
tão grande, tipo Leonardo, que seria capaz de pintar o quadro pelo direito,
mesmo quando vendo o seu avesso. Se o sujeito tem uma perícia lógica e uma
perícia perspéctica bem grande, pode perfeitamente representar, de imediato,
o avesso daquilo que está vendo. Entretanto, onde está o viravesso? Tem que
estar em algum lugar para que o quadro As Meninas seja pensado. Este lugar
é a cabeça dele, a cosa mentale de Velázquez.
Poderiam dizer que estou forçando a barra. E fica difícil demonstrar o
contrário, pois Velázquez, realmente, se pintou representando o quadro. Com
isso poderíamos dizer que ele só poderia estar vendo aquilo como está no
espelho. Porém, o próprio Velázquez nos dá uma segunda dica desse
reviramento.
Se Velázquez acaso estiver pintando o quadro pelo avesso, seja qual
for o direito ou o avesso, ele representou o rei e a rainha naquele espelho que
está lá no fundo. Eles só puderam aparecer segundo a planta baixa que fiz do
quadro – Esquema 4, acima – porque estavam, digamos, num plano do real
1
Cf. Anexo, nota 1, p. 296 adiante
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E-Sexão
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Psicanálise & Polética
que Velázquez está vendo daquela posição em que se encontra, como está
indicado no seu quadro. À frente dele há um grande espelho onde ele está
vendo toda a cena. O que está no espelho, então, é o avesso do que está no
quadro. Em seguida, ao lado do espelho, há uma porta onde estão o rei e a
rainha: é a posição em que eles se encontram no real.
Pela planta baixa que fiz do quadro, Esquema 4 acima, fica bem
claro que, para que Velázquez possa ver o rei e a rainha refletidos no espelho
grande que está à sua frente, é preciso que haja aquela angulação, com
relação ao espelho do fundo, que reflete a imagem dos dois. Nessa angulação,
Velázquez vê o rei e a rainha segundo uma dupla reflexão – de espelho para
espelho –, o que faz com que, naquele espelho grande, E/ 1, a imagem deles
se apresente, justamente, como eles estão no real. Ou seja, lá no espelho
grande, o rei e a rainha aparecem sem torção. Então, o rei e a rainha são
representados como reais, e o resto é representado pelo avesso. É isto que
cria, na superfície mesma do quadro, logicamente, como construto, uma
uniface, uma contrabanda, de Moebius.
Podemos, então, concluir que, com o quadro As Meninas, é como se
Velázquez nos dissesse que tanto faz pensar nisto como avesso ou como direito,
pois só há uma face – e o quadro tem a mesma topologia de um espelho.
Para terminar o raciocínio, ainda diria que, se o quadro é uma superfície
unilátera, se ele tem a estrutura da banda de Moebius, é porque ele porta o
furo que é o Corte Real, representado segundo a Corte Real, reiterando o
meu título.
* * *
São o rei e a rainha que vêem a cena como ela está representada no
quadro: eles estão em cena real. É como se fizéssemos a seguinte torção: o rei
e rainha são a posição Real; seguramos o resto e torcemos, apareceu uma
contrabanda. Quer dizer, aquilo tudo que está ali representado está, ao mesmo
tempo, pelo direito e pelo avesso.
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Psicanálise & Polética
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Psicanálise & Polética
então, a orientação da luz? Foi isto que Velázquez fez no quadro: ele
desorientou a luz. É o cúmulo! E ainda não havia um Einstein para pensar
isto, só foi pensado muito depois. Velázquez chegou e disse: “A luz não tem
orientação possível se ela é considerada enquanto tal”.
Pura maluquice da cabeça do artista? É como isto, como pura
maluquice que, no Impressionismo e um pouco mais tarde, os artistas, aos
gritos, urrando como feras, fauves, vão conseguir a pura luz, não orientada.
Quanto a isto ainda não tenho nada para dizer. O que me interessou até aqui
foi a luz enquanto tal, a pura superfície do espelho.
* * *
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E-Sexão
__
acentuam a diagonal GH
GH, do Esquema 2, na disposição dos_dois anões e na
inclinação do corpo da menina da direita, a outra diagonal, IJ
IJ, acompanha o
movimento da luz juntamente com a inclinação do corpo da outra menina, a
que está à nossa esquerda. É pura questão de composição dinâmica.
Mas, do ponto de vista da estruturação perspética dos volumes,
Velázquez modificou, ali no teto, o lugar de, pelo menos, uma daquelas
luminárias. Como já dissemos, se aquelas luminárias estão numa
perpendicular ao plano do quadro, elas, obrigatoriamente, teriam o ponto
de fuga no ponto principal, que, no caso, seria no olho de Velázquez, ali
representado no quadro. Então, podemos dizer que, do ponto de vista de
Velázquez, aquela primeira luminária, a que está em primeiro plano, estaria
na sua posição correta, ao passo que a outra, a luminária que se encontra
mais ao fundo, estaria deslocada da sua posição correta. Velázquez fez
uma torção na perspectiva para nos enganar, para construir aquele tal olhar
de que falamos.
Para determinar o ponto de fuga dessas luminárias, uma vez que
isto só seria possível corretamente no quadro original, fiz uma forçagem
perspética, o que me deu aquele ponto Z, na cabeça do cachorro – Esquema
1, triângulo XYZ. Mas desconfio que esse ponto de fuga, se determinado
sobre o original, estaria localizado ali no canto inferior do quadro: ponto H,
no Esquema 2. Este seria o ponto em que se encontra o Casal Real, em sua
posição real. Este ponto H estaria justamente entre o rei e a rainha, aos pés
do rei e da rainha.
Há, portanto, um ponto de massa naquele cachorro, que força o
nosso olhar para aquele canto do quadro. Além do que, podemos dizer que o
cão é o objeto mais próximo do espelho e, também, o mais próximo do rei e
da rainha no real.
_Se
______considerarmos,
___ agora, as linhas de força do quadro – Esquema
2, retas HM e JN –, no que elas determinam os pontos dominantes do quadro,
M e N, poderemos estabelecer uma cruz em perspectiva, conforme o
Esquema 16, abaixo.
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Esquema 16
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E-Sexão
Esquema 17
Quero supor que existe um espaço dividido pela cruz, no que ela
separa, pelo seu eixo maior, dois campos: o campo do rei e o campo da
rainha.
Apenas como lembrete, naquele momento vige o Barroco, e Lacan diz
no Seminário 20 que o Barroco é “a história de Cristo, são corpos em gozo”.
A cruz estava lá como símbolo de gozo, de morte, o corte de tudo. É como essa
cruz, no quadro de Velázquez, onde temos a separação masculino/feminino.
Nessa divisão promovida pela cruz, temos, então, um jogo de imaginário
e simbólico muito intrincado. Eu diria que neste momento, na dinâmica desta
partição, Velázquez re-instituiu a diferença sexual e mostrou dois campos,
com a Lei vigendo no meio.
O Aposentador é o tal, o pai da família. Não é o pai simbólico, é o
representante da paternidade na casa real – lugar que Velázquez um dia veio
a ocupar. Pela cruz que traçamos, Rei e Aposentador estão do mesmo lado,
e duplamente, porque, lá no espelho para o qual Velázquez está olhando, eles
também comparecem do mesmo lado. Quer dizer, é uma repetição entre
imagem real e imagem virtual, que no caso do Rei é a mesma, e no caso do
Aposentador é cruzada.
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Psicanálise & Polética
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E-Sexão
tudo bem. Tampouco são o dissexual, aquele que é isto ou aquilo. E nem unissex,
nem do ponto de vista da indumentária.
O transexual é um problema particular, que espanta as pessoas e mesmo
os analistas. O transexual é alguém que “nasceu com o corpo errado”. Está
absolutamente convencido de que, no caso, por exemplo, de ter um corpo macho,
sofreu uma injustiça ao nascer, pois ele pertence a outro sexo. Ele não tem a
menor vontade de ser homossexual. A maioria deles, ou quase todos, por exemplo,
um macho transexual que quer ser mulher, se recusa a transar com homens,
ou mesmo com mulheres, porque, se não, vai haver homossexualidade. Ou,
então, aceitam transar com alguém da mesma corporeidade, mas não aceitam
tirar a roupa; o outro tipo tira a roupa, mas ele não. Do contrário tudo fica
falso. Eles declaram isto. O transexual está absolutamente convencido da sua
identidade num determinado sexo, que é, supostamente, o outro daquele que o
seu corpo lhe deu. Por isso, ele vai querer uma mudança na sua identidade. Ele
quer mudar de sexo em juízo, através de novo registro, e no corpo, através de
uma cirurgia. Isto cria um problema terrível porque, até o momento, ainda não
se conseguiu uma cirurgia adequada.
Os ditos especialistas em transexualidade, endocrinologistas, cirurgiões,
etc., fora da psicanálise, dizem até que, freqüentemente, o transexual já fica
satisfeito com apenas mudar de identidade – livra-se metaforicamente da
anatomia –, desde que seja reconhecido por outrem como o que ele supõe ser.
Um autor diz ser isto uma diferença de sexo-gênero. É meio difícil aceitar, mas
isto vem figurar, pelo menos, essa necessidade de mudar, simbolicamente, de
sexo, não exigindo necessariamente uma mudança anatômica. Mas, em última
instância, o que os transexuais querem mesmo é que haja um tratamento
adequado para mudá-los, radicalmente, inclusive anatomicamente, de sexo.
A sexão, que é a diferença sexual – a sexão que está entre os dois
sexos, o espelho que é a sexão –, é o próprio núcleo da estrutura psíquica. Por
isso Freud coloca a psicanálise girando em torno do sexo. Em qualquer lugar
desses que citei, seja no sexo do dissexual, anfissexual, transexual, travesti,
homossexuais machos ou fêmeas, sejam masculinos ou femininos, eles são
305
Psicanálise & Polética
completamente diferentes uns dos outros, não têm a mesma estrutura, não há
simetria de espécie alguma entre eles. Qualquer deles está em mal-estar diante
da sexão, porque não existe nenhuma posição que seja a verdadeira. Só existe
a verdadeira naquilo que a análise supõe que é reconhecer o Outro, não fugir,
não achar rolhas para tapar buraco do Outro, ao contrário da homossexualidade
masculina que impera na face desta Terra.
Neste número de Ornicar? Há um pequeno artigo de Cathérine Millot
que me pareceu feliz. Ela é quem procurou o transexual para tentar fazer um
estudo sobre o assunto. A demanda parte dela, portanto, não se trata de um
analisando seu. Ela mostra um caso – não um caso analítico – de transexualismo
a partir de ter conversado muito com um transexual que é um rapaz, que ela
tem o respeito de chamar de Sr. Fulano (o nome é Gabriel), só, que ele era
uma moça. Gabriel está absolutamente enquadrado no clube masculino: é
homem que nasceu “xotal”, digamos. Esse transexual se submeteu a todos os
tratamentos, fez cirurgias, tirou os seios, etc., tudo direitinho. Na França, a
legislação já está avançada neste sentido, e estão trabalhando uma última
legislação para tentar a passagem radical para o outro lado.
Eles fazem uma cirurgia toda especial, e, quando a moça já é bem-
dotada, com um clitóris grande, a coisa fica mais fácil, digamos: puxam os
lábios, colocam umas bolinhas de isopor... Vocês estão rindo? Mas é isto sim,
por que não? É uma tecnologia como outra qualquer. Há cirurgiões
especializados que dão declarações sobre o assunto. Eles fazem uma “prótese
peniana”, como chamam, e conseguem um pênis relativamente satisfatório,
funcionando com orgasmo e tudo. Embora o negócio seja um pouco precário,
os caras se sentem muito bem. É bom lembrar que existem homens com clitóris
que funcionam muito bem.
O caso desse transexual – que já tem papéis com nome masculino e,
portanto, é um rapaz – é considerado por Cathérine Millot como um caso bem
particular: l’étrange, como diz ela. Aquilo que Lacan, no Seminário 20, mostra
que é o significante mesmo: “besta”. L’étrange, o estranho, ou seja, l’être-
ange, o ser anjo. É uma espécie de go-between, como também diz Cathérine
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E-Sexão
Millot. O que ela mostra muito bem é que, depois da operação, esse sujeito
passa para um estado aonde ele se sente muitíssimo bem, mas que não é uma
passagem para o masculino. Depois da operação, não se tratava mais do falo
imaginário de que ele suportava a função, mas do falo simbólico, como
significante da diferença.
Cathérine Millot vai, pois, surpreender esse sujeito, Gabriel, num grande
bem-estar, tentando ser transexual, mais caindo num lugar intermediário, o que
me parece bastante plausível. A cuca do cara deu uma volta terrível e foi se
situar, depois da cirurgia, como numa espécie de anjo, num lugar intermediário.
Ele não faz questão nem de transar sexualmente. Ele só fazia questão daquele
lugar simbólico que funciona na sua fala, na sua postura, como uma espécie de
anjo, de coisa intermediária.
A autora se pergunta: será que ele é psicótico? O encaminhamento de
certa psicanálise quer situar os transexuais no lugar da psicose. Eu não acredito
nisto. Ela mesma diz que nada permite afirmar tal coisa. E se situarmos o
transexualismo no caso da perversão propriamente dita, diríamos que se trata de
uma defesa contra a psicose, que para Gabriel funcionou com sucesso. É um
espanto! Quer dizer, se seguirmos a via da perversão, uma perversão bem-sucedida
não cria nenhum perverso: ela defende contra a psicose e cria um anjo.
Qual é o sexo dos anjos? Sejamos dignamente medievais. Um certo
racionalismo clarividente quis acabar com esta questão, como se a Idade Média
fosse completamente imbecil. Lacan disse que o analista é “a-sexuado”, o que
tem conotações as mais diversas: poderíamos dizer que ele não tem sexo, é
assexuado, ou, que este lugar do analista é lugar de sexo, objeto a. Ora, qual é
o sexo do objeto a? Ele cai do lado feminino, mas é bem difícil dizer que o sexo
a é feminino. O a é uma espécie de objetinho, de diamante, que corta, que
percorre essa borda. Ele se imaginariza para o sujeito, porque não pode se dar
como tal. É como imaginário que o sujeito o surpreende, mas a topologia e a
lógica do objeto a é intersticial.
O lugar do analista, se é lugar de espelho, de obra, de ato-poético, se é
lugar, não de Tirésias, mas, dos passos de Tirésias, não será senão essa espécie
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Psicanálise & Polética
de lugar neutro, angelical, como esse que está apontado no relato de Cathérine
Millot. Eu diria que o sexo dessa “pessoa”, Gabriel, como o sexo da obra, como
o sexo do analista, são todos o mesmo lugar. Por isso é que o analisando pode
jogar imaginariamente, botar o analista de qualquer lado, na transferência. Ou
seja, é o sexo da Lei, que é o Sexão, puro corte, aquilo que escande os dois
campos, como mostramos com aquela cruz no quadro de Velázquez.
* * *
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E-Sexão
24/JUN
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Apareceu a Margarida
13
APARECEU A MARGARIDA
O Seminário começa com a
audição da abertura da cantata
Carmina Burana, de Carl Orff,
enquanto são distribuídas
margaridas a todos os presentes.
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Esquema 18
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dizer pérola – cor de pérola. Engraçado que é o nome de uma flor que na
verdade, é flor do campo.
Em francês, a palavra margarita deu muitas outras, inclusive uma
muito usada no jargão menor, digamos assim, que é margot, que já deu nome a
muita gente. Margot em francês significa boneca, ou putinha. Uma putinha, o
objeto a do que sobra da família, aliás Real no caso. Putinha no sentido diminutivo,
uma garota que anda dando por aí para as pessoas. Margaridinhas do amor.
O que é uma pérola? Uma vez que Velázquez situa esse objetinho, é
para que se pense sobre ele. A pérola é uma concreção dura e brilhante que é
considerada preciosa, quer dizer, vem no lugar de uma pedra preciosa.
Freqüentemente ela é esférica, mas pode, às vezes, ser irregular. Ela é formada
por camadas sobrepostas – aquela sua rotundidade – de um material chamado
nácar que é secretado pelo epitélio da capa de certos moluscos. A ostra, por
exemplo, é um deles. Entre a capa interna do molusco e a concha, o epitélio
produz essa dureza de nácar para separar e isolar um corpo estranho. Daí que
certas pessoas, folcloricamente, dizem que a pérola é uma doença da ostra.
Ela é uma formação, digamos, reativa, não com o sentido que se pode dar em
psicanálise propriamente, mas uma formação reativa a um corpo estranho.
Isto que acontece na formação da pérola, não é exatamente o mesmo
que se dá com cada um de nós? Para se instalar na ordem simbólica, o sujeito
tem que receber o corpo estranho de um significante do Outro, o chamado S1:
do campo do Outro se retira um significante para que se possa ter entrada na
ordem simbólica com a senha desse corpo estranho, o significante sê-lo. Isto
porque não havia nada lá naquele instante, de antes da passagem. É justamente
em torno desse corpo estranho, ou a partir dele, de sua presença, desse exame
de significantes que o sujeito vai tomar do Outro, que ele vai ter que fundar a
sua pérola: o objeto a que o sujeito acaba produzindo para se separar e poder
isolar sua diferença. Por isso Lacan insiste que o final da análise exige que o
sujeito se aproxime desse objeto, da sua pérola, da sua mais preciosa formação,
absolutamente, radicalmente diferente de qualquer outra, na maior
irregularidade.
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Apareceu a Margarida
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Psicanálise & Polética
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Apareceu a Margarida
um texto de Freud, Lacan nos diz que “nenhuma práxis, mais do que a análise,
é orientada para aquilo que, no coração da experiência, é o núcleo do real”.
E nos aponta que o visado na repetição é um encontro, aliás sempre faltoso,
com o real: “É, com efeito, de um encontro, de um encontro essencial que se
trata no que a psicanálise descobriu - de um encontro marcado ao qual somos
sempre chamados, com um real que escapole”. A tiquê, “nós a traduzimos
por encontro do real. O real está para além do autômaton... O real é o que
vige sempre por trás do autômaton... O que se repete, com efeito, é sempre
algo que se produz... como por acaso”. O “por acaso” aí é essa Tiquê. O
que se reproduz nessa repetição é o traumatismo inassimilável, ou seja, o
mal-entendido, o não ter-se podido saber: não se ter podido dar conta da
cena, seja ela qual for.
“...É por isso que não se poderia conceber o princípio da realidade
como tendo, por sua ascendência, a última palavra”, como querem tantos
analistas: fazer do analisando um princípio da realidade. Não se trata disso, ele
tem que chegar ao que está por trás do princípio de realidade, por trás da
fantasia: à repetição do trauma que exige um encontro marcado com o sujeito.
Encontro que se ilustra no texto do sonho: “pai, não vês que estou queimando?”,
com o surgimento do real do inconsciente, da estrutura – a reinvocação da
estrutura. A estrutura nos reinvoca na deriva da pulsão, a qual não é
absolutamente uma compulsão de repetição no sentido obssessivo do termo,
pois é a exigência de repetição do trauma que nos remete ao nível da pulsão.
É, portanto, a partir de um encontro marcado com a pulsão que o sujeito tem
futuro. Não há futuro fora da pulsão. Pulsão que seja destilada, digamos assim,
e que reconheça o seu objeto: para a devida sublimação.
* * *
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Psicanálise & Polética
As Fiandeiras, 1657/60
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Apareceu a Margarida
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Psicanálise & Polética
1º/JUL
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As três demontrações do viravesso
ANEXO
AS TRES DEMONTRAÇÕES DO
VIRAVESSO
no quadro As Meninas de Velázquez
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Psicanálise & Polética
3 - A Luz.
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Introdução à Heterofagia
HETEROFAGIA
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Psicanálise & Polética
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Introdução à Heterofagia
14
INTRODUÇÃO À HETEROFAGIA
O que coloquei até agora sobre esse tema que nomeei Psicanálise e
Polética é, em suma, a insistência da psicanálise sobre seu fundamento ético,
que tem como decorrência ações centradas no real. Daí, dessa referência
indefectível ao real, é que tiramos o vigor de uma Lei que, na sua essencialidade
– segundo não nenhuma evidência mas um percurso da teoria analítica –, aponta
para esse real impossível de se inscrever na estrutura e que, também, no seu
aspecto de impossibilidade da relação sexual, nos exibe, incessantemente, o
ôntico da falta.
Fizemos uma breve crítica – que talvez devesse ser melhor trabalhada
– da perspectiva antropológica, sobretudo, da antropologia estrutural do tipo
Lévi-Strauss. Crítica da “universalidade” da interdição do incesto procurando
distinguir a cultura – definida como o que decorre da interdição do incesto
como princípio e, portanto, fundando-se na ordem de parentesco – da função
eminentemente e essencialmente simbólica do falante. A dependência, a
determinação simbólica do falante, como puro artifício e não como cultura,
segundo nossa definição.
Fizemos várias passagens, relativamente breves, por alguns textos onde
fomos apontar a situação de algum Pai Real, digamos assim, no nível do animal,
de sua morte, situando-se simbolicamente quando fizemos, por exemplo, uma
troca de fonemas e traduzimos o Totem und Tabu de Freud pelo nosso Botem
um Tatu. Tomamos o mito de Tarzan, inventado por Burroughs, para tentar
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Psicanálise & Polética
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Introdução à Heterofagia
* * *
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Psicanálise & Polética
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Introdução à Heterofagia
campo da alíngua bem à vontade. Lacan chega a dizer que depois desse encontro
do sujeito com o seu desejo, trata-se – e isto é problema desse sujeito e não da
análise, muito menos do analista – de ele saber se ainda quer o seu desejo.
Uma coisa é reconhecer um desejo, outra, é decidir o que se quer fazer dele.
Esta afirmação de Lacan é muito rica, cheia de sentido, ao mesmo tempo que
equivocada, no sentido pleno do termo, pois que é equivoca. O que pode fazer
um sujeito com o seu querer a respeito de um desejo que se qualifica, se situa,
se desvela? No máximo, pode querer de outro modo, querer variar de sentido.
Se uma análise progredir e atingir aquilo, vai ficar evidenciado para o sujeito
que ele pode ser outro, o que não impede que ele assim mesmo também o
queira, sem tornar-se menos Outro por isso.
Continuando nessa via da Polética – que não deixa de ser uma postura
política, mas cujo fundamento é ético – é justamente a partir daí, de que o
sujeito vai encontrar, em última instância, não outra coisa senão as raízes do
seu sintoma, sintoma que o produz como tal falante e não como tal outro. A
psicanálise não destrói um sintoma, ela simplesmente leva o sujeito a se deparar
com ele, e talvez assumi-lo, em plena palavra, a partir desse sintoma. Um
sintoma que não se dissolve no imaginário, nem se dissolve no simbólico – a não
ser produzindo psicose, é possível que isto exista – mas eu diria que ele se
dissolve no real. Isto não significa desaparecer: ele se realiza, se mistura com o
que há de real, em emergência diante dos outros sintomas.
A partir, então, dos pontos a que chegamos semestre passado – o
vigor da diferença, a Lei como referência radical, a diferença irredutível, aquilo
que Lacan chama a “Lei do coração”, ou seja, a Père-version – eu não veria
outra postura política para o sujeito em travessia no campo psicanalítico, senão
a afirmação da diferença. Para cada sujeito, em particular, a afirmação da
diferença, da sua diferença. O que simplesmente anula qualquer possibilidade
de grupo. Seria uma política não-partidária – se é que isto pode ser pensado já
por nós – porque não seriam possíveis os grupetos que se ordenassem em
torno de uma sintomática comum, mas apenas sujeitos que se organizariam
em função de um intocável respeito pela diferença que, aliás, é sua como é
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Psicanálise & Polética
* * *
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Introdução à Heterofagia
etc., não se tratava, para nós, de acompanhar essas vias sociológicas, filosóficas,
antropológicas, etc., que ficam coletando as produções e os dados para tentar
uma espécie de, digamos, estatística ou somatório de emergências intelectuais,
etc. Mas, sim, que, do nosso ponto de vista, da nossa perspectiva, o que
poderíamos talvez pensar seria uma espécie de escuta, de auscultação que nos
permitisse, eventualmente, sacar, destacar, o sintoma do que pinta por aqui. É
uma via completamente diferente da de se atuar sociológica ou
antropologicamente.
Será que nós outros teríamos algo a colocar no sentido da distinção de
alguma sintomática, de um sintoma básico, nisso que chamamos de cultura
brasileira? Uma vez que fiz a distinção entre cultura e artificio, tenho que ver
que, é claro, estamos todos aprisionados na cultura, pois não houve nenhuma
transformação, nenhuma mutação pós-neolítica, na face do planeta, que nos
mostrasse em qualquer lugar, alguma mudança de tipo. Por isso estamos
mergulhados na cultura, mesmo sem pensarmos em aspectos culturais no sentido
antropológico, em termos de ordem de parentesco, de família, da produção
discursiva, da agitação simbólica neste país, ou algo que se chama “este país”.
No campo do artifício, há algum sintoma ou sintomas que pudéssemos destacar
como base, a ponto de nos dar um pouco do endereçamento sobre nós mesmos?
Claro que são muitos sintomas. Penso que não é só por uma convivência com tal
cultura, no cotidiano, mas, sobretudo, por uma pergunta que possamos fazer àqueles
que, supostamente, por terem ocupado um lugar, digamos, de poeta, um lugar de
onde brotou a invenção poética, que talvez devêssemos tentar sacar o que eles
farejam no ambiente, de modo a nos dizer, como Tirésias lá do lugarzinho dele.
Aí é que trago, como abertura da continuação do Seminário, o título
Introdução à Heterofagia. Heterofagia é devorar o Outro. Trata-se de comer
o Outro, uma coisa muito cara aos brasileiros. Acho que o verbo mais importante
do Brasil é o verbo comer, sobretudo quando se trata de comer um outro.
Brasileiro é vidrado em comer, em vários sentidos. Há uns passando fome,
outros gulosos, afora esse tesão nacional que se oraliza a cada momento, sempre
dito, sempre explicitado, da musiquinha de carnaval à piadinha de rua, do grande
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na cabeça de um sujeito que nasce por aqui. Ele não está tipificando um
determinado sujeito. É de se pensar, não que cada brasileiro seja assim, mas
que há uma subjetividade solta, a de um sujeito Brasil aí representado de
significante para significante. Uma certa posição de sujeito que não é de se
esperar que cada um seja esse sujeito, mas é o que há como efeito da passagem
de significante a significante nesta nossa zona – em todos os sentidos – nacional.
Acho que Oswald sacou certo, quando tira daí essa antropofagia, como ele a
chama: o brasileiro é esse oralista comedor do Outro. O que, às vezes, abordado
com ingenuidade – o que se faz freqüentemente –, parece uma coisa
completamente diferente, mas que, acompanhado no processo, é de se ver que
não se trata bem do que estávamos pensando. Quando, por exemplo, se pensa
que brasileiro é puxa-saco de estrangeiro. Não é bem assim...
Num outro momento, depois de situar essa antropofagia como marca
da cultura brasileira, ele faz um estudo sobre o Messianismo, com veleidade a
tomar cátedra na Universidade de São Paulo. É uma tese espantosamente
louca, muito mais interessante, aliás, do que as que a Universidade costuma
produzir, embora uma balbúrdia.
Em outro momento, ainda, aborda a questão das Utopias. Faz uma
oposição, para pensar o fenômeno brasileiro, entre messianismo e antropofagia.
Messianismo seria, segundo ele, uma idéia completamente fora da nossa
perspectiva cultural, já que é a de sempre procurar por um Messias com idéia
redentora que venha resolver os problemas dos homens, que venha a ordenar,
organizar o mundo. Oswald nos mostra que isto não é deste país: o Brasil não é
dado a acreditar em redentoras, nem na recente, generalizada, nem na parcial.
de uma outra princesa de antanho. A antropofagia, para ele, é que seria a
tipicidade da nossa cultura. Aqui não se procura nenhum messianismo, nenhuma
idéia salvadora: come-se de tudo e, certamente, que se digere um bocado e não
se deixa de cagar um pouquinho, é claro, senão se fica entupido.
Quando ele situa essa oposição messianismo/antropofagia, põe,
conjuminadamente, outra oposição, que chama de patriarcado e matriarcado.
Para ele, o messianismo é patriarcal e a antropofagia, matriarcal. Ele quer
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Introdução à Heterofagia
fazer o brasileiro se dar conta de sua vocação matriarcal e fazer uma grande
revolução contra os messianismos e os patriarcalismos. Aí vai uma grande
ingenuidade. Com o termo messianismo, ele foi preciso, a meu ver. Com o
termo antropofagia, ele foi metaforicamente preciso. Mas quando tenta
distinguir esses dois momentos colocando-os como patriarcado e matriarcado,
aí lhe falta a ferramenta com a qual eu poderia – e é o que tentarei fazer –
abordar a questão pelos termos – poderiam ser outros, mas escolhi estes – de
homologia e heterologia, ou melhor, homofagia e heterofagia. Calcado
nesse percurso que vim fazendo desde o semestre passado, posso dizer que é
o imperativo da Lei, da diferença, que Oswald, no fundo, está pensando em
todo esse processo.
Eu gostaria de chegar ao ponto de mostrar que Oswald nos dá, de
presente, a visão – muito satisfatória, gratificante, a meu ver, do ponto de vista
narcísico, e por isso é que temos tão pouco cuidado – de que é possível que a
sintomática básica deste pais seja uma vocação heterológica, heterofágica, em
alteração, em altericidade, em suma: heterossexual.
Oswald foi buscar o termo antropofagia numa velha raposa francesa,
tão antiga e tão disseminada que, hoje, é propriedade de qualquer um, bem
deglutida e digerida, que é Michel de Montaigne. Nos famosos Ensaios, livro
1º, cap. 31, Montaigne fala dos canibais, que ele comenta a partir da narrativa
de um viajante que lhe teria contado sua experiência no Brasil, onde existia um
povo que tinha um costume inteiramente interessante que era, ao invés de
simplesmente matar ou ainda espedaçar o adversário, o de comê-lo – o que é
bem mais interessante, pois não é completamente um desperdício. Essas tribos
tratavam muito bem, com todo respeito – e Montaigne chama atenção para isto
– o adversário que caísse em suas mãos como prisioneiro. Com tanto respeito
que ficavam instigando, enchendo o saco do cara, o dia inteiro, que era para ele
não se dobrar. Esperavam que o adversário não se dobrasse: o sujeito tinha que
xingá-los, tinha que fazer aparecer a diferença, até o fim. Depois de tê-lo durante
longo tempo tratado com todo conforto, mas com exigência de não acomodação,
o dono do prisioneiro amarrava uma corda a um dos seus braços, cuja outra
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Psicanálise & Polética
extremidade ele segura nas mãos, o mesmo fazendo com o outro braço cuja
corda dava a um amigo para segurar do outro lado. Os dois, então, em presença
de toda a assembléia, o assomavam de “golpes de espada” – claro que não é
espada, Montaigne não sabe que índio não tem espada – despedaçavam o
inimigo vivo. Feito isto, o assavam e o comiam. E mandavam pedaços muito
delicados para amigos ausentes – feito festa de aniversário de brasileiro, em
que se manda um bolinho para lá, um docinho para acolá.
Montaigne chama atenção que não é para se alimentar que faziam isto,
mas, sim, para representar uma extrema vingança. Justamente aquela que,
baseado no Totem e Tabu de Freud, e o citando, Oswald vai dizer que é a
vingança de transformar o tabu em totem, como se fez com o pai ancestral.
Pega-se, mata-se e come-se. Ou seja, ao invés de ter que viver o resto da vida
exorcizando o outro, eles simplesmente entravam simbolicamente de algum
modo na do outro, ou o outro entrava de algum modo na deles, o que é a mesma
coisa. Daí que Oswald tira a idéia da antropofagia que ele diz reconhecer sempre
nas atitudes do brasileiro. O brasileiro sempre tenta retirar o Tabu do que é
externo e o deglutir em forma de Totem.
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POR QUE ME AFANO
COM MEU PAÍS?
O verbo afanar, segundo Aurélio, tem dois sentidos, digamos, principais.
Por um lado, é uma das possibilidades do termo faina: o verbo pode ser afainar,
ou afanar. Por outro, existe, não sei de onde tirado isto, afanar no sentido de
surrupiar, de furtar. Estou me perguntando por que me afano, nos dois sentidos,
com meu pais: por que me dou ao trabalho para com ele e por que me deixo
roubar junto com ele?
Quando começamos a interrogar Oswald, nossa questão era saber se
ele nos daria alguma coisa, alguma dica, a respeito do possível destacamento
de uma sintomática nossa, um encaminhamento, o levantamento de alguns pontos
ou algum ponto mais importante, quem sabe, da nossa sintomática “cultural”,
como se costuma dizer, não no sentido que dou ao termo. Eu dizia que Oswald
era o que considero um homem de gênio. Não se está romanticamente acredi-
tando em “genialidade”. Eu disse que homem de gênio era aquele que dava a
dica certa, do tesouro, mesmo com o mapa errado. O gênio, o homem de gênio,
genial, é a mesma coisa que o que se chama de um homem “genioso”. Não
vejo a menor diferença. Não é o sujeito que tem um saber especial, um modo
especial de operação, mas, simplesmente, um sujeito que faz afirmação pública,
veemente e séria – quer dizer, em série – da sua diferença. Afirmar a diferença
é vigorar no desejo. Assim, um gênio, trata-se de um sujeito chato, genioso, que
insiste na diferença. E como insiste seriamente, ela acaba produzindo uma série
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Quero falar daquela coisa em que Lacan insistiu, dessa dialética, dessa
talvez dicotomia entre os seres falantes, os quais não têm escapatória: ou a
estupidez ou a loucura. Talvez essa opção se faça em função da pressão
significante: ou se trancam na estupidez, para sobreviver, ou partem para a
loucura. Há, também, aquele bando maior que fica assim-assim pelo meio,
fingindo um pouquinho de cada lado, o que é um depoimento velho de quem
quer que alguma vez já tenha pensado. Fernando Pessoa, por exemplo, tem um
poema, em seu Cancioneiro, que começa dizendo:
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Por que me afano com meu país?
Não sei o que ele quer dizer com “ser feliz”. Talvez, permanecer na situação de
ser falante.
Isto é brilhante, pois a estupidez não costuma ser modesta, ela é de uma avidez
incrível.
É impressionante como ele situa bem que não há outra opção: estupidez ou
loucura. Ou se namora com uma, pelo menos, ou com outra. Já na Mensagem,
falando a respeito de D. Sebastião, ele dizia:
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peculiar, que portar determinada conversão, por via dessa magia de que estou
falando, não acabam tendo que incorporar uma conversão?
Não se pode dizer que a tese de um assassinato cultural seja coisa
ingênua. Poderíamos dizer que há assassinato cultural em simplesmente se
apagar o nome, por exemplo, de um sujeito; esconder, obnubilar sua obra. Quando
se vê exalçado um determinado poeta num momento histórico, no Brasil, por
exemplo, Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, com uma mediocridade
visível e, contemporâneo a ele, poetas completamente obscurantizados pela
estupidez ambiente... Então, há assassinato cultural, em termos, para uma parte
das pessoas. Para mim, por exemplo, que não estou sabendo da existência
daquele, e que estou lendo bobagens de um outro, de algum Jornal do Brasil,
de algum Droumedário de Andrade...
Não se pode negar que uma pressão dessa ordem – certamente em
função da situação, quer dizer, da topologia, da tópica desse sujeito nesse campo
simbólico que é chamado campo social –, eventualmente, chegará ao corpo,
numa luta tão incessantemente ingente com essa derrubada constante, que
pelo menos não deixa de esperdiçar quanta energia do sujeito. Mesmo que seja
só por essa simples via de dispêndio, quando o sujeito insiste na diferença de tal
maneira, paga-se um preço dez vezes maior por uma produção. Então, sucumbe-
se fisicamente, por falta de recursos mesmo fisiológicos. Estou dizendo que
acredito nas bruxas: é que elas são tão sobrenaturais quanto os significantes. A
oposição que Lévi-Strauss faz entre psicanálise e xamanismo é uma oposição
radical, em que uma é o avesso do outro. Não estou fazendo nenhuma analogia.
Estou dizendo que o discurso psicanalítico tenta justamente destacar a diferença
a partir da fala do sujeito, no que algo da ordem do que pudéssemos, talvez,
chamar de libertação do sujeito, iria aparecer, se é que o termo serve.
De um lado, encontramos uma impregnação de fora para dentro. O
sujeito é impregnado das frases que, histericizadas, acabarão por influir mesmo
no seu corpo. Há uma coisa – que Lacan coloca no nível do real – que se
chama sintoma. Trata-se até de sintomatização de nível histérico, produzida de
fora para dentro. Isso existe, existe porque há vias de histerização no discurso.
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atrás do objeto, está em outra parte. Claro que ele leu Freud, mas nada impedia
de ele ter sacado isto. Em 1928. Lacan não sabia disso. Ele não leu Lacan.
Lacan ainda não existia enquanto Lacan. “Freud acabou com o enigma da mulher
e com outros sustos da psicologia impressa.”. Leu a obra de Freud e vai se
apoiar nela para fundar o que pretendia fazer com o nome de Revolução Caraíba.
“Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito
sonâmbulo.”. Isto é da maior importância. Faria parte dessa antropofagia não a
aceitação de uma catequese... Não é uma conversão – que o grego chama
terapia - que tem, segundo a visão de Oswald, sido a tônica do Brasil: come-se
o Bispo Sardinha, mas não se fica catequizado por isso. É extremamente
importante retomar esse tipo de coisa neste momento em que a catequese
cresce e se avoluma de todos os lados, do lado econômico, filosófico,
psicanalítico... Há uma tentativa de catequizar esse sujeito que é meio tupi
sempre, se queira ou não. Oswald está nos dizendo que a gente pega e come,
mas comer não significa transubstancializar-se na comida. Pode-se incorporar
um pouco dela, pois há sempre uma sobra fecálica, e, talvez, esse exame de
fezes é que seja importante, o que sobra dessa operação, o que resta. Afinal de
contas é um dos objetos a definidos o que sobra dessa deglutição.
Trata-se da “transformação permanente do Tabu em totem”. Aí que
ele entra na do Freud de Totem e Tabu. Ele supõe poder encontrar, por essa
não suscetibilidade à catequese, uma sintomática brasileira de, ao invés de
viver no subjugamento a um tabu, retornar, reverter o tabu em totem, devorá-
lo, ficar com algumas das suas matérias e não se transformar em obediente
cego ao tabu.
Mais adiante, dá um berro e pede “o instinto Caraíba”. A palavra não
serve, “instinto”. Melhor, talvez, o tesão caraíba, Trieb. “Nunca fomos catequizados.
Fizemos foi Carnaval.”. Daí é que certo grupo sociológico de escritores, no presente
movimento cultural brasileiro, entrou nessa de carnavalização. Processo de
carnavalização que seria a definição do Brasil. Mas interessaria, a nós, saber
como é, o que há por trás, que matemas, se os pudéssemos pensar, estão em jogo
nesse processo que acaba carnavalizando. A tal carnavalização, para mim, é um
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que um dia diz uma coisa e quando o lembram disso fica perplexo: “Eu disse
isso? Não sabia. Lá eu disse, não sei quem foi que disse. Se você está me
contando uma estória que aconteceu comigo ou com qualquer outro, dava na
mesma, eu entendo a estória”. Não deixa de ser enfraquecimento do ego. Será
que por essa coisa intrincadíssima, essa porção de sintominhas que estão
dispostos aí por Oswald, encontraríamos o caminho de recuperar - o verbo é
este, mesmo no caso de uma psicanálise – a sintomática desse suposto sujeito
chamado Brasil?
Oswald teria sacado – como se poderá ver também no Macunaíma de
Mário de Andrade –, por uma estória pelo corpo deste Brasil, a sintomática de
que encontramos sempre tentativas vigorosas de fazer de conta que nosso
sintoma não existe: tentativas de catequese. Por exemplo, há um momento que
acho espantoso – e que as pessoas interessadas na História da Arte, se é que
isto existe, poderiam pesquisar – que é a Missão Artística de l8l6. É um sufoco.
Pode ter dado coisas interessantes que estão nos álbuns de turismo do Brasil,
Grandjean de Montigny e outros, Teatro Municipal, Operinha de Paris, etc.,
tudo plantado aí. Não custa também a gente comer francês – “como era gostoso
o meu francês”, já dizia um outro...
Nessa tal missão artística”, não há como não ver uma tentativa de
catequese, pois não se estava precisando tomar arte emprestada de ninguém.
O barroco brasileiro é anterior a isso. Aleijadinho foi possível aqui dentro, e
vem sobre ele uma forte catequese. Era D. João VI pensando que era francês
quando era um galegão comedor de frangos. Ele dá uma de obediência à
catequese da cultura francesa e faz aquele escândalo que é tentar perverter –
é o nome – a nossa possibilidade de fala com uma imposição cultural. A falecida
Escola Nacional de Belas-Artes, grudada no Museu Nacional de Belas-Artes,
foi uma dessas casas francesas aonde reinou o academicismo francês que era,
naquela época, o rebotalho da Europa, pois a missão trouxe aqueles artistas que
não tinham mais emprego. Lá, até que se faziam coisas interessantes naquele
momento. Lembrar que aquela titica é contemporânea do Impressionismo...
Não é grande coisa o impressionismo, mas, pelo menos, impressiona. Pegou-se
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furo do Outro: o Outro fica igual e, então, só como os iguais. Isto é que chamo
de homossexualidade. Comer os iguais é praticamente não comer nada, é
simplesmente manter o corpo vivo. Mas existe uma vertente heterossexual,
que vai por vias do reconhecimento do Outro: comer o outro enquanto diferença,
incorporar a diferença. O que poderia ser, no que vou deglutir o outro, conseguir
incorporar a diferença, senão o que o Lacan diz que “é quando um homem ama
que ele é mulher; é quando ele deseja que ele é homem, ou seja, tem tesão”?
Estou me perguntando se a vocação heterossexual, por excelência, não é aquela
na qual vigora o desejo, ao mesmo tempo em que ele se periclita por esse
reconhecimento do Outro enquanto tal, ou seja, na medida em que esse desejo
não deixa de se acompanhar disso que está definido em Lacan como amor. Aí,
de certo modo, o homem se feminiza.
Brasil seria um lugar onde o machismo não daria certo. “Seria”, disse eu.
Se há isto na sintomática de base, quando esta sintomática é trazida à luz, explicita-
se o afastamento dessas catequeses que, no fundo, são homossexualizantes. A
obsessão religiosa é homossexualizante, não há menor dúvida.
Já disse que o Brasil é uma ilha. De um lado, temos o Oceano Atlântico
e, de outro, temos o Oceano Cucaracha. Não acredito nesse negócio de América
Latina. Não entra na minha cabeça. América Latina é um troço, Brasil é outro.
E quero supor que essa tal de América Latina, que são eles, é muito mais
catequizável. É muito mais fácil, por exemplo, ser francês na Argentina do que
no Brasil, Brasil é muito grande, muito complicado. Mas, de qualquer forma,
deve estar na língua essa espécie de rejeição, ao mesmo tempo que um certo
tesão. Por exemplo, tem-se a impressão de que o brasileiro é um típico puxa-
saco de estrangeiro. Pintou um estrangeiro todo o mundo puxa o saco. Basta o
sujeito falar enrolado... Se ele quer ganhar dinheiro, ou alguma outra coisa,
basta falar enrolado e dizer que é da estranja, que fala javanês, por exemplo,
como diz o conto... Todo mundo puxa o saco. Eu pergunto: é uma entrega, é
uma vontade de ser colonizado? Isto não é de certos grupos, é um negócio de
rua. Não acredito que seja vontade de ser colonizado. Acredito que seja vontade
de comer o outro, só porque é diferente. É só um tesão novo. Mas se o outro
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26/AGO
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PAPO DE TUCANO
O VIRAVESSO DA UTOPIA
Dois dias atrás, foi a Festa da Independência. Isto é importante. Festa
da Independência também na televisão. Tinha o Projeto Aquarius, muito bonito.
O repertório estava ruim, mas estava bonito. Pelo menos tinha mais gente do
que a Festa de João Paulo. Isto é importante. Não é de não se levar em conta.
Independência. Fica-se discutindo no nível político, econômico, etc.,
sobre a tal Independência do Brasil. Há aqueles que dizem que o Brasil ainda
não fez sua independência. Talvez foi por causa disso que o Maltrapilho foi
expulso do pais, o tal Padre. Porque dissera que o Brasil não é independente.
Mas a Independência, a Festa da Independência é que interessa, no nosso
caso, mais de perto, a festa que possibilita a Independência...
Independência mesmo não existe. Nem país rico é independente.
Depende dos outros para explorar, senão ele ia viver do quê? O Senhor depende
do Escravo. De qualquer forma, interessa essa Festa da Independência, na
medida em que, a independência que nos interessa, aonde poderíamos sacar
algo de sintomático, é exatamente aquela da nossa infância, da bandeirinha que
a gente desenhava no colégio, do Pedro I, do verde e amarelo, dessas coisas
que podem situar significantes que estejam em jogo nessa constituição de algum
sintoma de base que nos daria a marca distintiva que é marca da independência:
não existe outra.
Não existe outra marca de independência para um sujeito – e sujeito
não é pessoa – senão o apoio siguinificante que ele tenha como fundamental.
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chamado mundo civilizado – têm uma marca bem característica na sua roupa:
para situar que ali é o lugar do rei, eles usam um manto onde há uma gola feita
de pele de arminho. O arminho, que parece ter recebido o signo da pureza, vai ali
com o sentido de realeza, realeza que teria que ser pura, em todos os sentidos,
para ousar ocupar aquele lugar, de Real. Pois o tal Pedro I, no que proclama a
Independência, além de jogar os laços fora e mudar suas cores – naturalmente,
pois dizia Lacan num Seminário que “nada é mais distintivo do que as cores” –,
ele manda que se jogue fora a pele de arminho do seu manto real e que se faça
uma gola de penas de papo de tucano. O que é uma interpretação absolutamente
correta. Fez um corte, e remanejou tudo. Passou a usar um belíssimo manto,
puxado para o verde e amarelo, com gola de penas de papo de tucano. Daí para
frente, com essa interpretação, com esse significante destacado em brasileiro,
se identificou de certo modo com o tucano, tornou-se um bicão.
O tucano é de uma família complicadíssima daquelas lá da zoologia. É
aquele bicho que tem um bico enorme e cores maravilhosas. É o bicão por
excelência, na paisagem brasileira. E dentre as características que os
dicionaristas arrolam, ele é justamente um pássaro que vive de comer pequenos
frutos transando pelas árvores, e, de sobejo, pilha o ninho das outras aves. É
uma acumulação significante interessantíssima: pintou ninho de outra ave, ele
vai lá e dá uma bicada. É isto que se chama heterofagia. Come tudo que pinta
das outras aves. Nem por isso ele deixa de ser tucano. Aliás, a característica
dele é esta, a de ser bicão.
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com a loucura, por vias, digamos, de movimento desejante que varia para o
lado da loucura. Eu pergunto: isso não é mais ou menos ter uma certa paixão
ou sofrer uma certa pressão da borda, do corte, em suma, a pressão do ócio, do
gozo? Não esquecer que o gozo-fálico situa alguma borda, mas no que ele a
situa, ele a reflete, contorna. Todo gozo é causado, afinal de contas, por um
objeto que é a causa do desejo, e acaba se dando numa espécie de imantação
de uma borda, de um limite, de uma ruptura de limite.
Estou chamando gozo-fálico a ruptura e o retorno. E aí que Lacan
coloca o gozo-do-Outro, que não há: não há A mulher, logo não há o gozo-do-
Outro. Mas existe alguma coisa que extrapola o gozo, e no que extrapola,
nessa vocação heterossexual, quer tanto atingir o Outro que goza e se perde.
Parece que não gozou e, então, quer mais, outra coisa a mais, como as mulheres
pedem... Isso é que chamo de uma espécie de imantação da borda, de paixão
pela ruptura, pelo limite. A coisa é muito crua – não dá para segurar o corte
quando ele corta...
Mais adiante, p. 167, falando de Erasmo e seu Elogio da Loucura,
Oswald cita alguma coisa que parece texto de Lacan: “Quando os gregos
hesitavam em classificar a mulher entre animais irracionais, queriam apenas
exprimir a imensa dose de loucura que caracteriza o referido animal”. Lacan
está careca de dizer que as mulheres são loucas: loucas no sentido de que o
mesmo não se repete nelas: “Como o macaco é sempre macaco vestido de
púrpura”, continua ele, “a mulher é sempre mulher, isto é, sempre louca...”
Um alterossexualismo, uma coisa que vai por esta via que chamei de
sacanagem não é uma coisa da ordem do gozo-fálico, puro e simples. Não é só
isso que é pedido. A gente usa o termo sacanagem para tudo, até para produzir
o chiste: quando você faz um chiste em que o outro tropeça, fez-se a maior
sacanagem. Tem vários sentidos: alguma coisa que extrapola, que rompe não
no sentido de retornar, mas no de cair, de entrar noutra. Isso é que estou
chamando de alterofilismo, que acaba caindo nisso que Oswald quer chamar
de matriarcado e que não é senão uma espécie de chamamento ao feminino,
pelo feminino. Uma espécie de vocação para a folia que seria o que os
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psicanálise não é essa teoria que se fez. Quando Lacan afirma que ninguém
sabe o que é a psicanálise, é dessa bossalidade que se trata: uma convivência
com a bossa, suportando o não saber e denunciando que esse saber construído
não é saber de quase nada.
Por isso, insisti que, talvez, pudesse dizer – não como acontecimento,
porque os colonialismos estão aí com todo vigor, mas que é verdade como
sintomática de fundo – que o Brasil é a pátria da psicanálise.
Quando digo que essa sintomática requer o lugar do espelho, estou
dizendo uma coisa grave: que todo brasileiro quer ser psicanalista. Todo
brasileiro quer o passe, requer o passe, nessa espécie de, como chama Oswald,
p. 172, “ateísmo com Deus”, que, afinal de contas, é a definição que Lacan
dá da psicanálise: Deus existe, esse é o ateísmo verdadeiro. Oswald chama
atenção para que “hoje vivemos a cultura de um século que admite o ateísmo
com Deus”, e vai reclamar isso da nossa posição. Vai chamar o Dom Quixote,
de Cervantes, que colocou como criador dessa utopia possível, de “a epopéia
do equívoco”.
A psicanálise, a prática psicanalítica, é a epopéia do equívoco. Cada
análise é uma epopéia do equívoco...
Digo isto para chamar atenção para que não nos venham ofender com
essas “psicanálises” homossexuais e institucionalizadas como práticas corretas,
dominadas, sapientes, competentes, suficientes...
09/SET
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osome fizeram a revolução e que iam botar ordem nessa bagunça, etc. E o
tal mineirão respondia: “Deixa eles fazê o que êlis quizé, depois, devagarzinho,
nóis escuiamba tudo...”
Freud tem um pequeno texto, que é citado muito freqüentemente,
chamado A Cabeça da Medusa, no qual ele trabalha o que nomeia, sobre um
termo grego, de ato apotropéico, uma apótrope. Ele tenta, nesse trechinho,
pensar o que significa esse horror, essa paralisação que produz a exposição da
cabeça de Medusa. Perseu é quem consegue vencer a Medusa com o artifício
de levantar o escudo espelhado frente a seu rosto. Ela ao se ver, fica paralisada,
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A Revolição Caraíba
e ele pode escapulir. Ele devolve o brilho e aproveita a jogada para cortar-lhe
a cabeça. Entretanto, ele não olha para essa cabeça porque, mesmo morta,
bastava que ele a apresentasse sem olhar para que os outros ficassem
paralisados. Freud chama atenção para que a cabeça de Medusa é a exposição
da castração que paralisa, terrifica as pessoas: é deparar-se com a configuração
da castração, em termos de vulva, de órgão sexual fêmeo. Ele diz que aquela
proliferação de cabelos como serpentes, não só lembra a vulva com seus pêlos,
etc., como abranda também, de certo modo, a castração, na medida em que
repete o pênis, por outro lado. O excesso de personificação de pênis é a falta
de pênis, quer dizer, estar cercado de pênis por todos os lados é estar se
deparando com a castração. É essa exposição da Medusa como pura e
simplesmente referência à castração.
Freud chama atenção, também, para o fato de a cabeça da Medusa,
como símbolo do horror, ser usada sobre o escudo da deusa Atena, repelindo
os desejos sexuais. Quer dizer, a exposição veemente da falta é, como se diz à
brasileira, “brochante”. É ela, justamente, que acirra o desejo, mas sua violenta
exposição decepa, de certo modo, o desejo, ou o congela. Freud também cita
Rabelais, que dizia que um demônio podia ser espantado pelas mulheres de
uma maneira muito interessante: bastava levantarem a saia e mostrar a xota
que o demônio fugia... Lacan já disse que o inferno não são os outros, como
disse Sartre, o inferno é o desejo...
Vocês devem se lembrar de que as menininhas, quando éramos crianças,
de repente, nos agrediam, talvez pela nossa exibição do pênis, levantando a
saia e nos dando aquele susto: vem que tem, vem porque tem... Os menininhos
ficam se exibindo, fazendo pipi de pé, essas coisas... Há uma cena muito especial
no filme Viridiana, de Buñuel, em que a máquina fotográfica é substituída por
aquela paralisação conseguida por uma exibição vulvar. A fotografia é o
congelamento. Ela congela aquele momento sem tirar nenhuma fotografia.
Uma das mendigas, de costas para a câmera, simplesmente levanta a saia.
Freud, revertendo a posição, diz, também, que o membro, o órgão do
macho, também tem o efeito de um ato apotropéico. Aí já não talvez pelo
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mesmo mecanismo. É como se o mito estivesse dizendo: “Eu não tenho medo
de você, eu desafio você, eu tenho um pênis”. Aí, então, está outro modo de
intimidar o espírito do mal, o diabo. A coisa é ambígua, pois na medida em
que ele mostra um outro mecanismo no modo de operação, por outro lado,
estruturalmente, é a mesma coisa. Ele chama atenção para que um pênis
ereto não é senão sintoma de falta. Nada mais nitidamente sintomático do
que um pênis ereto. É um sintoma histérico na carne, exibidor do Falo. É o
caso, por exemplo, daquele texto de Moustapha Safouan sobre o Édipo em
que analisa a pederastia grega. Ele mostra que, exatamente porque está lá o
pênis em falta, é que é interessante. A coisa se reverte sobre si mesma na
medida em que a exibição do sintoma do desejo é tão faltosa quanto a exibição
da falta configurada, por exemplo, na falta do pênis. A coisa se reverte e o
efeito é o mesmo.
Em ambos os efeitos podemos encontrar uma oscilação. Oscilação
na medida em que a cabeça de Medusa é repleta de pênis, como diz Freud,
repetindo a falta, mas, por outro lado, substituindo um pouco por alguma
presença essa falta, quer dizer, abrandando a falta. Assim na exibição do
pênis ereto ao mesmo tempo que há esse terror, o surgimento fálico é um
abrandamento. Abrandamento na medida em que é terror, mas é fascinação
em ambos os casos.
Em suma, é a famosa banana brasileira, que tem uma certa graça e é
ato apotropéico por excelência: dá-se uma banana e vai-se em frente. Mas,
essencialmente, o que vigora no cotidiano da nossa fala, mais do que a banana,
seria justamente a esculhambação, que tem muitos sentidos. Posso dar uma
esculhambação no sujeito, mas também o sujeito pode montar um esquema
todo bonitinho, todo gramatical, e ser esculhambado por cima...
O mesmo gesto que pode brandir fascinatoriamente o tesão do Falo é
denunciador da castração para um outro sujeito. O que é dar essa banana ou
fazer vigorar essa esculhambação? O verbo esculhambar significa tirar os
culhões: ex-culhonar. O que faz a esculhambação como sintomática é a mesma
coisa que o “tu” e o “você”: recusar a imposição superegóica constante de
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julgo de primeira ordem. Disse ele agora a um jornal: ‘O Brasil será um dos
grandes líderes do fim do nosso século e dará à nova ordem humana
contribuições materiais e espirituais que não serão excedidas por outros povos,
mesmo os que hoje se mostram mais avançados’. É exatamente o que penso.
E minha fé no Brasil vem da configuração social que ele tomou, modelado
pela civilização jesuítica em face do calvinismo áspero e mecânico que
produziu o capitalismo na América do Norte”.
Há certo ufanismo, certo ingenuísmo, nesta postura de Oswald, mas
prefiro, ao invés de criticar, sacar no contexto dessa situação, dessa
textualidade que ele nos apresenta, não um messianismo, mas a possibilidade
de se reconhecer, na prática sintomática desse sujeito, não liderança futura
mas exibição franca, diante do mundo, dessa sintomática, de modo a exercer
alguma influência – a meu ver, bastante benéfica. É preciso não confundir –
e talvez seja isto que Oswald confunde nesse momento, talvez por falta de
ferramental teórico, embora sua sacação poética seja generosa por si – essas
duas aparências que podemos colocar sob o título de liderança.
O carisma é algo da ordem do fascínio. Falamos em líderes carismáticos,
etc. O querigma, a declaração futurível, por exemplo, é da mesma ordem. Mas
essas duas coisas, carisma e querigma, funcionam em campos diversos, talvez
mesmo opostos, que nem sempre sabemos distinguir com clareza. Embora Oswald,
para ficarmos na dicotomia que ele criou, esteja fazendo a crítica do messianismo
com esse ufanismo, cai numa espécie de messianismo brasileiro, tipo o Brasil
virá e salvará a situação, a liderança messiânica do Brasil... Não é por aí. Isto
não é compatível com a sintomática da nossa esculhambação que, se esculhamba
geral, esculhamba também a si mesmo.
Existe um outro lado que comporta, também, um certo carisma e um
querigma, que é justamente o lado da denúncia, no sentido em que chamo
atenção para a sua existência no ato-poético. Tentei, antigamente, num texto,
distinguir o que chamei de dichter, o vigor do poético como denúncia. E que não
é produção de um líder messiânico, mas de um indicador de utopia, no sentido
de vigência do Outro, de alteridade inconsciente, de Deus nesse ateísmo nosso.
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de Lei e Desejo, uma ética do real e uma política do sujeito que se instala numa
prática da diferença. A palavra polética inclui esses termos todos.
Lacan disse que o desejo é o que essencializa o sujeito, o falante. A
essência do homem é o desejo. E o é na medida em que, se o sujeito se assujeita,
é ao campo do Outro, enquanto lugar onde vigora a Lei, a Lei da diferença.
Esta é a Lei possível, em substituição do impossível Real (ela vem em suplência
ao Real impossível).
A Lei da diferença, ou a Lei simplesmente, não é senão a Lei do Amor
(do Outro Amor): aquela que sustenta a possibilidade de uma prática analítica,
isso que se chama de clínica. Lacan definiu a clínica como o real enquanto
impossível de suportar. A Lei da diferença é a Lei do amor, isto é, do Outro
Amor, na medida em que este amor propicia a possibilidade de suportar.
Essa Lei rege o campo do Outro enquanto Nome do Pai. A vigência
dessa Lei no campo do Outro é haver significante que faz a referência à Lei da
diferença, à qual Lei cada sujeito só tem acesso pelo que Lacan chamou Lei
do Coração, la Père- Version, que só consigo traduzir por P-versão, P maiúsculo
do Nome do Pai. Ou seja, a versão paterna da instalação do sujeito, por via
metafórica de fundação, por via sintomática.
A Lei do Coração é fundamental, na medida em que dá acesso à Lei
da diferença, enquanto Lei do Amor. E o desejo essencializa o homem
justamente na medida em que a sujeição desse falante é ao campo do Outro,
onde impera essa Lei.
Nesse momento Lacan faz contrabanda com essa oposição Lei/ Desejo.
O que é oposto ao Desejo não é a Lei, pois ela está do mesmo lado do desejo,
e, sim, justamente, a não assunção da subjetividade, isto é, o aprisionamento
dos enunciados – e isto não é legal, em todos os sentidos. Essa revirada que
Lacan faz amainando essa oposição é o que o garante – o que é claro nos
últimos textos em que ele reafirmava sua exigência de dissolução da Escola
Freudiana de Paris – de se manter caturramente no seu desejo. Ele sempre
disse que o importante, como resultado de uma análise, é que o sujeito não
venha mais a abrir mão do seu desejo, uma vez reencontrado.
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entra no desejo pela porta do amor. No que ela aspira, de repente gama no
desejo. É uma chance. Não há nenhuma coincidência prévia, embora
pudéssemos pensar numa necessidade ao-dispois – necessidade, podemos dizer,
corporal, com inscrições. Não há, pois, nenhuma coincidência prévia entre
anatomia e sexuação.
Na medida então em que a “escolha” se instala discursivamente, o
corpo vira esse tipo de inscrição e, ao-dispois, necessariamente o sujeito é
homem ou mulher. Mas é preciso alguma mesmação para poder haver uma
outra ação. Uma mesmice para haver uma outragem, ou ultraje. A tentativa,
pelo menos, de transar o Outro.
Naquela distinção entre H e H’, como costumo chamar Homem e
Mulher, temos que fazer uma interpolação que é meramente folclórica, mas
ajuda a desmoronar o imaginário. Vou usar um jargão bem vulgar, pois me
parece bem mais preciso. Do lado de H existem dois tipos de homem: o pirocudo
e o despirocado. O homem pirocudo é aquele que tem pênis, e o despirocado é
o homem que não tem pênis. Isto para acabarmos logo com essa confusão das
anatomias. Do lado de H’, da mulher, existe a mulher pirocuda, que tem pênis,
mas, também, a mulher que prefiro chamar de bucética, porque é cética, tem
um ceticismo quanto a estes comandos masculinos. A mulher bucética é aquela
que tem uma coincidência incrível de falta. É quase Ur-cética, um ceticismo
primordial diante, pelo menos, dos comandos masculinos.
Não vamos confundir isso com ser ou não ser fálico. Usei três termos
do baixo calão, pirocudo, despirocado e bucética, para distinguir disto. Falo é
significante, não anatomia. Uma mulher fálica é um sujeito que se “escolheu”
a identificação simbólica por via significante, mulher, mas – e daí é que Freud
deve ter tirado a famosa inveja do pênis – ela pode denegar isto. Não denega
por ser pirocuda, despirocada, ou bucética, e sim denega a “escolha” feminina
que fez. Denega isto querendo, como homem, acesso ao amor. Em vez de
partir daquilo que é seu próprio efeito, quer acesso ao amor por via do desejo,
porque denega sua “escolha”. A histérica, por exemplo, é o tipo da mulher
fálica. Ao invés de partir do seu princípio de “escolha” que fora feminino,
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denega o feminino e copia, imita o homem. Quer ter acesso ao amor, que é o
seu próprio princípio, através do desejo, em vez de fazer seu próprio percurso,
que é de ter acesso ao desejo através do amor. Isto é que é o fálico. Nada tem
a ver com anatomia.
Uma mulher fálica, mulher de “escolha” fálica, não é o mesmo que
uma mulher pirocuda, ou seja, uma mulher que tem pênis – está atrapalhando,
mas tem; como diz Lacan, são aquelas que são mulheres apesar daquele troço
atrapalhando no meio das pernas. Mulher pirocuda é anatomia macha com
“escolha” feminina.
No caso da histérica, vimos a “inveja do pênis”, para o que, talvez,
tivéssemos que sugerir outro nome, porque na verdade é inveja do desejo. A
histérica inveja o homem porque ele parte do desejo e ela também queria partir
do desejo, denegando, pois não foi por lá que ela entrou. Não é o pênis que se
inveja, embora, por interferências imaginárias, possa se invejar o pênis como
signo – enquanto aquilo que significa alguma coisa para alguém, dentro de uma
cultura –, não como significante, desse desejo. Nisso até os homens invejam os
homens que têm maior.
O homem afeminado é um sujeito que se “escolheu” homem por
identificação na sexuação e, nesse momento afeminado, o tal protesto macho
é luta de imposição de desejo. Não é de luta de prestígio que fala Freud quanto
ao protesto macho, pois a referência é a uma convergência desejante para o
mesmo objeto. Pode resultar imaginariamente em luta de prestígio, porque é o
mesmo objeto. Aí vem o conhecimento paranóico, como Lacan o colocou...
“Eu também desejo.” Este é o protesto.
A falta de protesto macho no homem afeminado é justamente porque
ele se “escolheu” homem, mas denega isto e quer, como a mulher, acesso ao
desejo – que, aliás, é o seu princípio – por via do amor. Há denegação de sua
própria instalação, tanto para a mulher fálica quanto para o homem afeminado.
Ele não quer ter acesso direto ao desejo, ele quer fazer o percurso do feminino,
não porque esteja na posição feminina, mas porque denega sua posição
masculina. Daí que o homem afeminado não é o mesmo que o homem
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impregnação imaginária. Isto que estou dizendo é um risco, porque não tenho a
menor segurança teórica para dizê-lo. É apenas abertura, uma tentativa. A
transmissão do sintoma enquanto imaginário do corpo, tomado como metáfora
de presença e ausência de falicidade. Não tenho garantia de presença ou
ausência de falicidade por pressão do imaginário do corpo entrando por via
simbólica. Mas explicar isto é outra questão...
A maioria dos não possuidores de pênis, por via simbólica, aí entraria
por pressão do imaginário do corpo, o qual daria, no momento do
equacionamento da diferença (que Freud coloca diante do ter-pênis/não-ter-
pênis, etc., pela não presença do pênis, sobretudo talvez por causa da sua
ereção, sei lá), daria a possibilidade de ancoramento num significante de não-
falicidade. Seria o significante pintando diante dos olhos, digamos assim, por
pressão imaginária. Mas é difícil dizer que é só por pressão imaginária, porque
há o real, o real da falta de carne. Aí então ponho minha questão, de que não
é referência só ao imaginário, pois existe o real de uma falta, a qual, por outro
lado, no que diz respeito a um pênis, aparece sobretudo diante de um pênis em
ereção. A multipresença do pênis não foi justamente destacada por Freud
como referência à sua falta?
Pode-se falar de homossexualidade masculina, mas a feminina não
existe. Se uma mulher, situada como tal, for capaz de tomar a outra como
Outra, é o cúmulo da heterossexualidade. Não estou falando aí de posições
neuróticas. Mulheres fálicas podem querer tomar Outra no sentido falicizante.
Mas a transação de duas mulheres seria o cúmulo da heterossexualidade. Já
os homens são homossexuais espontaneamente, tanto é que se pode dizer O
homem, titulo que serve para qualquer homem. Mas as mulheres são
heterogêneas, portanto é a alteridade enquanto tal. Elas são outras diante dos
homens... e de mulheres. Se não posso dizer A mulher, é porque só existem
mulheres no plural, elas são heterogêneas diante de mulher, como diante do
homem. Os homens são homossexuais de saída... Eles que se virem para
conseguir não sê-lo.
Tudo isto interessa fundamente no caso das leituras das produções
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Peço licença agora para tratar de algo que ainda é provisório no meu
estudo.
Num documentário que passou na televisão, Picasso disse que não
tinha estilo. Ele supunha que não tinha estilo porque estava lutando contra uma
certa crítica que queria que ele fosse radicalmente idiota, que fosse Picasso o
tempo todo. Nesse momento aí, vou tentar um começo de operação a respeito
dos estilos, digamos, os mais fundamentais do falante. Eu não diria só do
ocidental, mas do falante mesmo.
Há uma grande e velha discussão a respeito da oposição Clássico/
Barroco. Isto me interessa na medida em que é preciso fazer algumas correções
ao que venho trabalhando sobre Oswald, pois uma das afirmações dele é o
barroquismo do brasileiro. É esteado num barroco, que ele supõe de instalação
jesuítica (as ferramentas que ele tinha de crítica, de história da arte, de estilística,
eram estas), que ele nos vem com o argumento do barroquismo brasileiro como
garantia da sua antropofagia (que quero chamar de heterofagia).
A suposta oposição, no campo da estilística, entre clássico e barroco é
mais uma tentativa de travessia que Lacan faz, e muito bem, no Seminário
Encore – que traduzi por Mais, ainda –, onde ele trata do feminino. Um dos
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capítulos do Seminário é sobre o barroco, pois era preciso, para Lacan, situar
as relações do inconsciente com o estilo. As relações, digamos, dentro do estilo
de Lacan, pois ele dizia que era acoimado de barroco com certo desdém.
Sabemos que o francês tem um certo desdém pelo barroco desde que nasceu
Descartes lá dentro.
Em alguma parte desse Seminário, citando os escritos místicos e os
situando no campo do feminino (como o caso de São João da Cruz, Santa
Tereza), Lacan nota que é preciso também acrescentar ali os Escritos de
Jacques Lacan, porque se trata da mesma coisa. Nos seus Escritos Lacan se
situou do lado feminino, místico, ou ele se supõe assim naquele momento. No
campo do estilo ele aceita e veste a camisa do barroco: “Como alguém percebeu
recentemente”, diz ele, “eu me situo – quem me situa? Será que é ele ou será
que sou eu? Finura da alíngua – eu me situo mais do lado do barroco”. Ele é
prudente. Não diz “eu sou barroco” e, sim, “eu me situo mais, plutôt, du côté
du barroque”. Esse plutôt é que é preciso destacar.
Em contraposição ao barroco, ele diz o que é, para ele, o clássico: “O
que é o mais certo do modo de pensar da ciência tradicional é o que se chama
seu classicismo – ou seja, o reino aristotélico da classe, quer dizer, do gênero e
da espécie, dito de outro modo, do indivíduo considerado como especificado”.
O que é o indivíduo considerado como especificado senão a referência do
sujeito à sua postura sintomática, S1? Isto é justamente o que não acontece do
lado do feminino pois, se por um lado uma mulher tem alguma chance de se
referenciar a S1, também essa referência fica prejudicada por sua outra postura,
já que sua referência essencializante é o furo, a falta de referência, por
suspensão do Nome do Pai. Assim, eu diria que Lacan, de certa forma, situou
o classicismo na posição masculina, mas não necessariamente homossexual.
Não estou querendo desdoirar o classicismo, pois ele produz coisas
importantes. Mas não existe arte que consiga ser rigorosamente clássica. A
obra está ali, no classicismo, mas se é poesia, acaba se furando de algum modo
– e, no entanto, ela se produz canonicamente. O típico de qualquer arte clássica
é sua canonicidade. Há cânones estabelecidos, embora furados. É o caso do
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Picasso mudava de idéia e dizia que era uma fase – azul, rosa, cubista, etc.
–, quando, na verdade, ele ia era se partindo. Outros fazem isso por imitação.
Não têm coragem de pintar a vida toda a mesma coisa, tem alguma vergonha
depois que Picasso fez isso.
Ficou então essa dicotomia clássico/barroco, masculino/feminino. Eu
me pergunto se não faltou uma certa inscrição nessa história, pois nem tudo é
clássico ou barroco. Os críticos ficam perplexos, na medida em que tentam
amarrar as estruturas. Eles oscilam. No campo da abordagem dos estilos, da
estilística – não no campo da história da arte, pois esta porcaria não existe, é
sonho de historiador –, não ficou, então, faltando um termo? Não é precisamente
só um lugar, mas um modo de operação, pois afinal de contas o estilo, além de
ser um lugar, é um modo de operação. Não faltou isso que Lacan veio nos
mostrar, esse argumento que é a travessia, a transação?
Estou insistindo na heterofagia, em substituição ao termo antropofagia
de Oswald. Gostaria de situar melhor o que é essa heterofagia, que ponho
como principio de heterossexualidade. O que é isto, a rigor? Onde foi que os
falantes acaso escreveram isso por aí estilisticamente?
Há pouco eu disse que a língua, do ponto de vista do lingüista, é macha,
clássica. E o desvario, o palavrório feminino, é barroco. A alíngua, onde é que
ela fica? Ela não é barroca. Ela não tem centro fora, porque não se trata de
centro. Lacan disse que ela é feminina, mas, por outro lado, ela se regra a si
mesma, esteada em alguma coisa, por exemplo, no Nome do Pai, embora o
sustente provisoriamente. Ela participa, ao mesmo tempo, como Milner situa,
do ponto de vista da língua, da gramática, e, como Outro, do feminino. En-
tretanto, Milner também diz que alíngua tem a estrutura da banda de Moebius,
e a estrutura da banda de Moebius não é o feminino. É o entre, a travessura:
a estrutura da travessia. Só se atravessa, só se faz passe, pela alíngua. Então,
proponho, como estudo, pensar: o Clássico, o Barroco e o Heterófago, uma
outra categoria.
O heterófago não é um caso do clássico, que não quer atingir o Outro.
Também não é um caso do barroco, que quer ser Outro. Ele é o que quer
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O fato, por exemplo, de introduzir algo que dantes não estava em moda,
pode ser tomado como um furo nos costumes. Há tendência, da crítica musical,
de tomar os acontecimentos musicais através da audácia do artista de romper
com uma forma habitual. Não é aí que está a questão. A questão é que
justamente se fura uma estrutura rigorosa mesmo dentro de uma aparente
mesmice dos hábitos. Foi para isto que chamei atenção em Velázquez. Ele
finge muito bem que é careta a ponto de poder ser nomeado Aposentador
Real, no entanto ele é poeta, fura, e instala a diferença. Não se pode fazer a
crítica dos estilos pelas audácias particulares, porque isso fica frouxo. Peguem-
se, por exemplo, as produções certinhas de Beethoven. Gosto de citar a Sonata
ao Luar: é aquele negócio aparentemente quadradinho, mas com um só
acordezinho que ele pega, faz aquela loucura. Outro exemplo, a 5ª Sinfonia, a
caretona, aquela que dizem que é coisa de povão: “Tcham-tcham-tcham-
tchaaam!”. No entanto, com isto quebrado, alternado, repetido, ele faz aquela
loucura, ele fura. O tal “tcham-tcham-tcham-tchaaam” é um suspense... do
furo. Beethoven não é romântico, nem clássico. Beethoven é heterófago.
Faço distinção entre o romântico e o romantismo enquanto tal. Segundo
esse historiador espanhol e outros, não é romantismo, é barroco. Certa vez
escrevi, há tempo, um artigo que não publico porque é péssimo, mas que talvez
seja um primeiro farejamento meu a respeito desse assunto, que se intitulava
Romantismo e Neurose. O romântico não é senão o discurso da – histérica –
insisto nisto que escrevi lá. A histeria é justamente a denegação do feminino,
querendo ser homem: a histérica, como disse, quer chegar ao amor pela via do
desejo, quando a sua própria via é a do amor.
Fico tentado a fazer uma coisa perigosa, que é assimilar os quatro
lugares de que falei aos quatro discursos de Lacan. Poderíamos dizer que o
clássico é o discurso do Senhor... a sua impostação de dominação através de
S1 de auto-referência, etc., e a tentativa impossível de se apoderar do objeto.
Impossível no discurso do Senhor, significa que há lugar para o poeta, dada a
impossibilidade de fechar. Mas nem toda impossibilidade é da mesma natureza,
por isso Lacan faz diferenças na instalação dos discursos. No discurso da
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modo de aturar o Outro. Quando digo que Freud inventou a psicanálise, que já
existia, quero dizer que ele destacou o seu discurso. A psicanálise não foi criada
por Freud, ela foi inventada por Freud. Ela foi criada pelo inconsciente, já
estava aí. Freud criou a invenção chamada psicanálise. O que estou dizendo,
comparativamente, é que o português criou a invenção chamada heterofagia.
Há uma congruência, destacada por esse mesmo autor que venho
citando, entre Portugal, os Países Baixos e os países nórdicos, em termos de
filosofia. Consta que houve emigrações em conseqüência de algumas guerras,
e muita gente foi para a Bélgica, para a Holanda. É o caso, por exemplo, de
Espinosa, com o seu barroquismo holandês. Espinosa é galego, português. A
família dele era portuguesa, e não adianta escrever em holandês porque está
na cara que ele é português.
* * *
Quero ir por essa tentativa de distinguir uma terceira via, que nos foi
aberta por Lacan, nesse campo de abordagem estilística, e ver a nossa história
heterofágica pela via de Oswald. Felizmente, na minha infância, os livros que
eu lia escondido eram livros dos chamados “clássicos portugueses”, onde
podemos situar Camões, por exemplo. Então isso me passa bem na cabeça...
O Oriente, também, é demais importante, na medida em que o português
é tão heterossexual que vivia paquerando as Índias, em todos os sentidos... O
português vivia procurando o caminho para chegar às Índias. E chegou mais
às índias diversas...
O barroco brasileiro é uma coisa estranha. Esse autor espanhol quer
destacar algo que me deixa impressionado, e que merece estudo, quando fala
justamente sobre isso que chamamos de estilo colonial, que suponho inventado
por Portugal. Mas ele vem dizer justamente da dificuldade de situar esse estilo,
na medida em que é de impostação da estilística barroca e tem aparência de
construto clássico. Aí me pergunto se esse estilo, colonial, não é lugar propício
à proliferação da heterofagia, já que há nele certa relação entre mestre e
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cima da besteira. Então, não se pense que não se sabe desse risco... Estou
apenas alertando que não se deve fazer isso que a gente fez, mas insisti em
fazê-lo porque é um certo tipo de experiência, de risco que quis correr.
Por exemplo, o próprio Lacan, depois de certa insistência da televisão
francesa em entrevistá-lo, só aceitou na medida em que se pusesse tudo o que
ele disse, sem interferência, e que o entrevistador fosse fulano de tal. Isto é
possível, de vez em quando, num certo lugarzinho, de certa cultura... Mas a
televisão francesa não é assim. Ela é igualzinha à nossa, só que com menos
refinamento. Meu interesse, portanto, ao ir lá na televisão, é somente saber se
pinta, apesar de tudo, alguma diferença. Quero saber se o fato de estarmos
falando de outra postura, mesmo com os estilhaços, recortes, etc., consegue
fazer pintar alguma diferença. Vou medir isso por alguns efeitos de público,
que eu possa pegar de orelha, mas, sobretudo, quero ver a minha própria visão.
Se acaso sinto que está diferente. Não tenho certeza, preciso ver...
* * *
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igual a outra via, aonde vamos encontrar, por exemplo, um jegue inerme, que
pode, por essa via do discurso positivista, tomar o poder, daqui a pouco tem um
jegue inerme no mercado e ó... O jegue inerme quer pior...
* * *
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Isto parece com a diferença que Oswald faz entre a postura norte-
americana de civilização de status messiânico, e a postura brasileira, de status
utópico. “O colonizador português do Brasil foi o primeiro, dentre os colonizadores
modernos, a deslocar a base da civilização tropical da pura extração da riqueza
mineral, vegetal ou animal – o ouro, a prata, a madeira, o âmbar e o marfim –
para a de criação local de riqueza. Ainda que riqueza – a criada por eles sob a
pressão de circunstâncias americanas – à custa do trabalho escravo: tocada,
portanto, daquela perversão de instinto econômico que cedo desviou o português
da atividade de produzir valores para a de explorá-los, transportá-los ou adquiri-
los”, p. 23. Ele está mostrando como se foi pervertido pela ideologia, mas que
a tendência sintomática era a de entrar no barato, e não a de se ficar apenas
assentado na situação. Talvez tenha sido esta a grande condição de invenção
da sintomática brasileira, via sintomática portuguesa.
Por outro lado, se o índio apresenta, ou apresentava essa antropofagia
ritual, canibalística, do ponto de vista da heterofagia – de comer da ordem
simbólica do Outro diretamente, e não por essa via pseudo-deglutiva que fica
apenas como metáfora, como metáfora dolorosa, mastigada, carne –, o índio
foi difícil de comer simbolicamente. O português comeu do índio – taí na nossa
comida, na nossa língua –, mas o índio não quis comer. Isto é interessante,
porque há, hoje em dia, essa coisa de ficar admirando índio quando, na verdade,
ele é bastante caturra do ponto de vista simbólico. É pouco heterofágico na
medida em que se prende na dele e diz: “Daqui não saio!”. Tanto é que Gilberto
Freyre chama atenção para que o português não conseguiu transar com índio
não porque não quisesse, mas porque o índio se recusava.
O português inventou – querendo ou não, isto pouco importa – um
mediador: o negro. A intervenção do negro conseguiu mediar a relação do
português com o índio, porque o negro é, mesmo nas relações com o Senhor
imposto, mais transador. Ele era mais aproximado daquela transação do
português. O índio parece que não, ele vem de estruturas muito fechadas. E
aqui chamo atenção para o que venho colocando desde o primeiro semestre,
essa vocação cultural, essa manutenção do status quo da ordem de parentesco
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que o português não manteve: ele tinha a ordem do parentesco aqui, etc., mas
não a ordem das reproduções... foi se esculhambando, mesmo.
O princípio básico de toda heteronomia é primum vivere, princípio
que, como sabemos, Lacan recoloca em toda “relação” analítica. Mas o índio,
não. Ele é aquele que quebra, mas não curva – o que é a estrutura mesma da
estupidez. O português é mais maleável, o negro também... De qualquer modo,
pela maleabilidade dos outros e pela referência antropofágica, mítica e
canibalesca, eles acabaram entrando na nossa. Ou seja, não se precisa mais
fazer reserva negra no Brasil, mas, reserva de índio, ainda se precisa.
Nossas estupidezes culturais estão bem representadas nesses pequenos
aglomerados fechados, na suposição de que tudo parte da interdição do incesto
como estruturação da ordem de parentesco e fundação do homem. O índio
está muito nessa: “Primum vivere, não! Morro mas não dou!”. Na verdade,
há que relaxar e aproveitar. Transar o simbólico é isso, que é o que faz
correntemente o brasileiro... O tal do jeitinho, da esculhambação...
Parece pusilanimidade, mas não é, porque, com certo prazo, mais ou
menos longo, vemos que a infiltração se dá pelo outro lado, e tudo se desfaz. A
morfologia perde a característica... E se a gente não contar com essa sintomática
do brasileiro, a gente se desespera. Com os índios a coisa se dá de maneira
rígida. Aliás, uma pesquisa que eu gostaria de pedir para o pessoal que faz
antropologia, história, sociologia, essas coisas, que por acaso queira abordar
isso, é verificar algo de que suspeito: quanto mais forte e mais careta foi a tribo
de índio que tomava conta de uma certa região do Brasil, mais o local se
transformou numa pregnância de estupidez, mesmo com a presença do
português e do negro.
Vejo isto pelos índios Goitacazes que dominavam toda a bacia do
Paraíba e, sobretudo, o norte do Estado do Rio, e que eram chamados de
terríveis, ferozes, que não se dobravam nunca... Eles foram dizimados, foi o
único jeito de lidar com eles – eles não transavam. É a Baixada Fluminense, lá
para cima, sobretudo, onde dá petróleo, etc., é um antro de estupidez, mesmo
no sentido econômico, do ponto de vista de falta de condições de transar. Eu
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O que Hauser nos apresenta como sendo o maneirismo, que ele quer
retirar do esgoto, do dejeto cultural, por parte dos historiadores, e trazer
como coisa importante, na história da arte? A visão dele é por via marxista,
sociológica, etc., mas, de qualquer modo, tenta destacar o que seja o
maneirismo dando, mesmo, uma definição logo de entrada, p. 40: “É um
menoscaso e até uma falsificação da verdade dizer simplesmente que o
maneirismo é anti-clássico, omitindo acrescentar-se que é também classicista.
De igual maneira, é uma meia-verdade descrevê-lo meramente como
naturalista e formalista, ou irracional e extravagante. O maneirismo não contém
menos traços racionalistas do que irracionalistas, nem menos naturalistas do
que não-naturalistas. Um conceito utilizável de maneirismo só pode sair da
tensão entre classicismo e anti-classicismo; naturalismo e formalismo;
racionalismo e irracionalismo; sensualismo e espiritualismo; tradicionalismo
e afã de novidade, convencionalismo e protesto contra todo conformismo. A
essência do maneirismo consiste nesta tensão, nesta união de oposições
aparentemente inconciliáveis”.
Ele arranjou um lugar na história da arte onde vai meter uma quantidade
imensa de autores que eram situados de modo mais ou menos estranho:
Montaigne, Kierkegaard, Kafka, Shakespeare, Goethe, Beethoven, sem falar
na grande quantidade de artistas plásticos que já citamos. Quando chega aos
modernos, vai dizer exemplos típicos como o Picasso do cubismo e do
surrealismo, o próprio surrealismo... É de se notar a patronagem do próprio
Lacan aí, pois aqueles que poderíamos dizer que foram seus mestres são
Espinosa, Kierkegaard...
Ele coloca, também, por exemplo, Mallarmé, o rigor e aquela loucura
mallarmaica, Calderón de La Barca, Baudelaire, Proust... Vamos ficando com
a impressão de que, daqui a pouco, ele mete todo mundo aí dentro, com raras
exceções... Michelangelo, todo o surrealismo – com o que não posso concordar,
mas existe um afã de rigor nos surrealistas, sobretudo quando vão perguntar a
Freud qual é –, Rilke, Gide, Joyce, Eliot... Ele vai falar, também, dos conceitos
de alienação, de narcisismo...
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Duas vias, que são as que temos da diferença sexual. Ou ela vai pela
via masculina de partir do rigor canônico, digamos, da auto-referência fálica,
para encontrar o furo e ansiar amoriscar-se. Ou ela parte do perdido, da
perdição, do feminino, da zona amorosa, para encontrar uma postura desejante.
Ou seja, ou parte do desejo e se perde no amor, ou, perdida no amor, se encontra
no desejo. Por isso é que cabe todo mundo, desde que seja uma obra de arte,
mas não se poderia jamais pôr um acadêmico aí dentro, embora a Academia
inclua barrocos, ou ditos barrocos, talvez por essa via. O acadêmico
propriamente dito só tem fôrma, não consegue produzir o ato-poético enquanto
tal, pois se limita ao receituário.
O ato-poético, que só vigora na transação com a topologia do espelho,
esbarra na diferença, na impossibilidade de estabelecer a relação. No entanto,
consegue transar no cometimento, a partir do desejo de dissolver-se no amor,
de deparar-se com o furo, quer dizer, limitação ao princípio do prazer. É preciso
lembrar que se o inconsciente, como dizia Freud, é regido pelo princípio do
prazer, não tem nada de errado nisso. Se o princípio do prazer o faz movimentar-
se, tudo bem! Acontece que o próprio furo do significante – que postura a
própria posição do inconsciente – re-exige o princípio de realidade, ou seja,
repõe a fantasia.
O princípio do prazer não tem a ver com a fantasia e, sim, com o
fantasma. Faço questão de diferençar fantasia de fantasma. O princípio do
prazer vive do fantasma, no sentido de: aparece fantasma, pinta fantasma para
ele. Lacan não escreveu nenhuma fórmula do princípio do prazer. Ele escreveu
o princípio de realidade na fórmula da fantasia, S/ <>a – sujeito barrado punção
de a minúsculo. Ou seja: o sujeito enquanto tentando abordar o real na sua
relação de fantasia que se qualifica por essa punção. Está aí o impossível da
alienação, o impossível de coalescer. O princípio do prazer não é esse, ele é a
tentativa de arrolhar o buraco do Outro (S(A / )) com o objeto a localizado,
fazer uma bola.
Exatamente o que é o princípio da ciência renascentista, o universo
como camadas, como esferas concêntricas, tudo arrumadinho, etc., que Kepler
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O ora que emprogresse
vem feminizar. Ele puxa e faz uma elipse – o troço desbunda, os planetas são
meio desbundáveis, há uma diferença de oito minutos que ninguém explica. O
real do planeta começa, então, a pintar. A forma da Terra é terróide, é o máximo
de explicação que se pode dar – é a própria função do significante. A Terra se
parece mesmo é com a Terra. E a Terra do segundo significante não consegue
ser a mesma do primeiro.
Está aí o campo da psicanálise. Como estava dizendo, Lacan não
escreveu nenhuma fórmula do principio do prazer. Vou, então, abusar da
paternidade, e tentar escrever assim: a S(A
/ ), a sutura de S de A barrado. É
como uso. Se vocês também quiserem usar, está à disposição. A fórmula do
fantasma é então: a sutura do furo.
A construção da realidade significa, como diz Lacan, que a fantasia
protege o real na medida em que – no que ela destaca a punção entre o sujeito
e o objeto, no que ela porta esse impossível de locupletação – ela nos dá o real
nesse impossível. O objeto a está no campo do objeto desejado, ou seja, está
causando o movimento do sujeito. A causa do desejo é o objeto. E no que o
sujeito é causado pela falta desse objeto, tudo se punciona, quer dizer, é o
buraco que pinta no meio. Então, a própria construção da fantasia inconsciente
é princípio de realidade e salva o real, protege-o, digamos assim. Isso é o que
Freud chama de princípio de realidade.
O princípio do prazer é tentar não viver da fantasia, mas dos fantasmas,
quer dizer, chega ao limite da crença, na prática. Sua postura global, digamos
assim, se isto é possível, no inconsciente – isso não existe, é metáfora –,
seria a de tentar arrolhar. Mas o princípio do prazer não vive sozinho, ele se
depara no regime da fantasia com a falta por causa do próprio objeto – tudo
isso são princípios lógicos. Enquanto princípio do prazer, eu sou um sujeito
que se nega, enquanto sujeito, tentando suturar o furo do Outro com um
objeto fantasmatizado. No entanto, no momento mesmo em que consigo me
deparar com esse objeto, pinta o principio de realidade me situando a falta. É
aí que tenho que buscar no inconsciente a fantasia que me dá um pouco do
real, de impossibilidade.
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por que vou meter o nariz para falar do princípio de realidade, e fingir que
ele é do prazer?
Se não puder abordar a sua fantasia, o sujeito está na análise para
quê? Ele está lá, sim, para sacar que a fantasia o é: “Façamos de conta. Não
vou perder o meu barato, porque é um barato, mas agora estou sabendo que
não é!”. O material que está compondo a configuração de objeto a na fantasia
pode ser o mesmíssimo que está compondo no fantasma, mas o modo de
produção do fantasma não é o da fantasia. Pode ser o mesmo material, mas ou
eu a trato como fantasia, e para isso serviria a análise, ou eu a trato como
fantasma. A distinção, então, entre fantasia e fantasma está simplesmente no
modo de operação. Não está na substância da coisa. Uma fantasia inconsciente
está determinando fundações fantasmáticas. E na medida em que se possa
chegar a aproximar essa fantasia inconsciente, saca-se o quê? Que ela estrutura
o próprio real do sujeito, ela lhe empresta real, na medida em que ela falta,
porque é impossível. A punção na fórmula de Lacan é para dizer que ali, na
própria fantasia, justamente porque o sujeito está em exercício, o impossível
comparece no interstício.
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EN L’ENDROIT OÙ
VILLEGAIGNON PRINT TERRE
Francês arcaico, escrito por Montaigne no Ensaio 31, livro 1º, onde ele
fala justamente dos canibais, e onde, no Manifesto Antropofágico, Oswald
vai buscar a noção de antropofagia, citando mesmo esta frasezinha de Montaigne:
“Durante muito tempo tive a meu lado um homem que havia morado 10 ou 12
anos nessa parte do Novo Mundo descoberto em nosso século no lugar onde
Villegaignon tomou terra e a que deu o nome de França Antártica”... E escreve
Oswald: “Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Où Villegaignon print
terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau...”. Situando, pois, o lugar,
geograficamente, topologicamente, da tal antropofagia... Print Terre, tomou,
perdeu. Tomou terra e perdeu terra.
Todos se recordam da história de Villegaignon. Ele tentou fundar uma
França Antártica – que talvez só dê certo ao sul do Rio Grande do Sul... Por
isso é que os maiores poetas uruguaios, por exemplo, são de língua francesa e
não são uruguaios, ou são os únicos habitantes do Uruguai, como diz o nosso
Murilo Mendes... Justamente porque aconteceu um barato qualquer por aqui,
essa falta de transação autoritarista da cultura francesa obriga ao canibalismo
ou à expulsão. O chamado Villegaignon era assim o protótipo do paranóico bem
instalado, mas que topou com a malandragem – é o termo –, que não é nenhuma
sabedoria específica mas uma capacidade de escorregar, que naquela época já
estava fundada por aqui... E toda vez que Monsieur de Villegaignon rides again,
a gente tem história, ainda que seja na cuca, para não aceitar tal tipo de invasão.
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artesão, que não é estúpido, que não tenta entalhar a madeira com um formão
estrumbicado. É simplesmente querer exprimir-se bem, expressar-se bem, falar
bem, dizer bem. Outra coisa é botar as ferramentas enferrujadas na gaveta e
zelar, ciumentamente, por essa fechadura.
A acusação que Lacan faz à PIPA é justamente a de se ter fundado
sobre determinado desejo do Pai – portanto uma perversão de Freud – e depois
ter-se trancado na gaveta dos guardiães das relíquias do defunto. A exigência
de rigor que Lacan sempre fez, não fez com que ele se tornasse autoritário a
ponto de consolidar a Escola com um regulamento fechado, tanto é que ele
mesmo a dissolveu. Certas pessoas acham que isto é autoritarismo, quando é
um ato de esculhambação – no sentido que já trouxe aqui –, de castração. Isto
é importante quando vemos as celeumas instauradas no campo das PIPAS do
mundo e, depois, as barganhas e acomodações em função da perda de poder e
de prestígio que a instituição vem sofrendo – porque há pessoas que pensam,
do lado de fora, não é só lá dentro que moram eventuais leitores de Freud –, e
aquelas pessoas que supostamente estavam incomodando e deveriam ser expul-
sas, são acolhidas e diplomadas – até saiu no Zózimo.
Ora, pergunto eu, essa atitude de lutar pela permanência na instituição,
por amor a ela, aceitando a traficância, e que toma foros de rebeldia e de
subversão, de renovação política, não é na verdade um reforço da moral da
instituição? Sempre fiquei perplexo diante da pergunta: que autoridade extra-
pipal têm as PIPAS do mundo para alguém ter que viver se curvando a elas?
Não é discursiva. Discursivamente não se precisa trabalhar isto porque Lacan
já liquidou o assunto, e outros também. Não é nem policial – nem mesmo isto
eles têm – com certa instalação de poder, por exemplo dentro do nosso país,
que possa obrigar ninguém a nada, nem talvez mesmo em outras partes do
mundo. Que poder tem uma instituição assim para conseguir o que tem
conseguido, senão esse amor zeloso, ciumento, de alienação tipo marxista (na
definição marxista da alienação, não hegeliana ou lacaniana) a recolher mais-
valia e faturar em cima dela, nesses acordos, quando certos sujeitos ao invés
de lhe darem as costas, peidarem-lhe na venta, como faz o inconsciente (Lacan
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diz que o inconsciente peida na cara da gente) e tratarem das coisas sérias,
isto é, que têm seriedade, conseqüência, até às últimas, restam nesse jogo de
zelo por um amor do qual não podem abrir mão?
É válido pensarmos que, em anos idos, Lacan tenha brigado com a
PIPA, tenha tentado ficar, etc., e acabando por ser expulso. É válido porque é
uma experiência primeira. Mas depois de tudo que aconteceu – as pessoas
não devem estar desinformadas disso –, repetir o mesmíssimo sintoma? E sem
a mesma glória? É espantoso. São essas pessoas com essas atitudes que estão
reforçando o poder pipal – aí já sendo pipa de madeira, onde o sujeito se tranca.
E isso é puro incesto.
O incesto de que fala Freud – não o da antropologia que viria fundar o
social, etc. – é a repetição da vontade de sutura, por não se querer aceitar a
castração. Estou dizendo que isso é incesto pura e simplesmente porque se
essa mãe, dona PIPA, é sustentada no seu poder exclusivamente pelo amor
dos seus filhotes que não conseguem lhe dar as costas e tratar da vida com
outras mulheres, estamos aí no caso do “Não posso abrir mão do amor de
mamãe. Amo tanto mamãe que não vou deixá-la. Ela tem que me aceitar
assim mesmo”. É a falta radical de limites. O grande pecado de Caim, no
Velho Testamento, é justamente não poder aceitar, na sua estupidez, que o pai
tem suas preferências – gosta mais de animais do que de frutas. Ele não
consegue aceitar que o pai preferiu Abel porque ele transava carneiro. O pai
não gosta de frutas, não é frugívoro, e pronto! É um limite. Não é que ele tenha
escolhido Abel, ele escolheu foi carneiro. O tesão dele, quer dizer, a perversão
que nos transmitiu foi esta.
E aí estamos no mesmo regime. A Santa Madre se reforça com o
amor ciumento dos seus filhotes que não querem abandoná-la de modo algum,
para não serem castrados, para não se defrontarem com a castração.
O amor de que fala Pierre Legendre no Amor do Censor é essa paixão
narcísica e incestuosa, aquilo que Serge Leclaire, numa palestra aqui no Rio,
chamou de Social-Incestocracia: essa paixão pela instituição. É o amor dessa
língua, o amor institucional universitário que é a paixão pela língua. Esse amor
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Não preciso sair do caminho que vinha trilhando para continuar a refletir
sobre isto. A tendência – que, um dia, pretendo apresentar com o nome de
fagocitose do imaginário – dessa vocação de açambarcamento que o imaginário
tem, de impregnação, é e tem sido, através dos tempos, ou seja, através dos
discursos, a de tapar o sol do significante novo com a peneira da acomodação
formal. Vemos isto claramente depois da presença de Freud e de outros. No
nosso campo, Freud traz a virulência do seu discurso, e aquilo é acobertado
num psicologismo do ego. A PIPA se reforça, acontece tudo isso, as coisas se
acomodam, e portanto podem ser espelhadas no imaginário dos sistemas.
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Não pensem que isso não está vigorando para a palavra de Lacan,
porque está. Quando vemos certas vozes de força – não é porque discordo
delas que vou dizer que não sejam fortes, veementes e até honestas, no sentido
da honestas latina (sua relação limpa com o objeto do seu trabalho) –
combatendo a psicanálise e até descendências de Lacan, elas não deixam de
ter alguma razão. Isto no sentido de que o rigor que um sujeito como Lacan, no
seu discurso, é capaz de impostar pode ser facilmente transcrito de discurso
para discurso, saltado do discurso psicanalítico ou mesmo do discurso do mestre
(do ensino de Lacan) para discursos menos interessantes, para aqueles que
padecem do seu comando.
A vontade de pipação do campo lacaniano existe, e tenho brigado com
ela desde 1975. Todo tipo de efeitos neste pais já se fez, de Nordeste a Sul,
tentativas de organização do lacanismo brasileiro e luta pela chefia, esse tipo
de bobagem, no sentido, certamente, de alguém assumir a herança, ainda com
o homem vivo, de ser o representante de Lacan. Já insisti certas vezes aqui
que não me chamo Jacques Lacan e que não sou representante de ninguém
com esse nome. Meu encontro com esse sujeito, ou seja, primeiro com seu
escrito, segundo com seu divã, terceiro com seu ensino, não me põe, de modo
algum, nenhum diploma de embaixador debaixo do braço. Não posso falar
senão por mim – e ouve quem quer!
Tais coisas existem nas rebarbas do nome de Lacan – nas franjas e
dentro mesmo do lacanismo. Esforços de aglutinação e de comando são feitos,
os quais não têm surtido grande efeito nem mesmo lá do outro lado do Atlântico,
e resultaram necessariamente em explosões (não são cisões, cisão é coisa
muito precisa entre tal e tal na discussão, são explosões dentro do mesmo
discurso talvez) que mesclam de tal modo as coisas, que as compreendemos
muito mal. A explosão é tanto no nível da má leitura de Lacan quanto no nível
simplesmente da rejeição de tal sujeito dentro do campo. Isso fica embaralhado,
e é preciso analisar para discernir.
Nós outros que iniciamos essa operação que acabou resultando em
Colégio Freudiano (inicialmente eu e Betty Milan) não deixamos de sofrer
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Lacan, como sabemos, se referiu a outros discursos que ele não teria
escrito: o discurso da ciência, o discurso do capitalista... Já falei sobre isto e já
fiz algumas enrascadas na tentativa de abordá-los.
Hoje vou ousar escrever um discurso que Lacan não nos escreveu –
em outra oportunidade escrevo outros como pude estudar... Com a mesma
disjunção que, neste caso, posso traduzir não por impotência, mas por
incompetência. Aliás me pergunto se, em sua origem histórica, a incompetência,
seu surgimento no tráfego e no tráfico cotidianos das operações e dos trabalhos,
não é um conceito advindo com o capitalismo. Antes da posição capitalista,
tínhamos os mestres, e a relação de respeito recíproco entre mestre e discípulo,
as corporações, etc... Não era o conceito de incompetência, o qual é
psicologizável e transformável num regulamento que se aplica ao operário da
fábrica quando ele vai lá se inscrever. O que se está medindo? Sua competência
para servir como peça de máquina.
Suponho, então, que posso escrever assim o Discurso do Capitalista:
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mais tarde –, parece que encontro assim o discurso do capitalista. Ele participa,
por algumas posições, do discurso do senhor – no lugar do agente e no lugar da
produção. Há reversão quanto ao lugar da produção e do saber e, nessa reversão,
justamente esses dois lugares são o inverso do analista. É o inverso segundo
um eixo. Totalmente não é, porque o eixo permanece. Há uma reversão topológica
e, depois, tudo gira do mesmo jeito. Mostrarei isto com um tetraedro numa
outra ocasião.
O discurso do capitalista coloca como agente o mesmo que o mestre
coloca: uma posição particular, fundamental. No caso, aquilo que Marx trouxe,
a posição fundamental de apropriação dos bens, dos meios de produção, etc.
Esta é a minha partida. Mas não é o discurso do senhor justamente porque não
faz trabalhar o outro – ele evita uma relação com o Outro enquanto tal. Ele faz
trabalhar é a cisão, como o psicanalista faz, mas não com a mesma produção
discursiva. A cisão que ele faz trabalhar é a partição do sujeito mediante alienação
por fragmentação. É a divisão do trabalho, para Marx. O fracionamento do
sujeito a ponto de ele poder ser mera peça do sistema, em não especialização.
A especialização de que falava antes era a possibilidade de se
encomendar o trabalho de um escravo que, por seu lado, ali era mestre. Ele
partia da sua particularidade criativa. Aqui, não. O próprio sujeito é fragmentado.
Fragmenta-se um outro, faz-se operar nele, depressivamente, a cisão do sujeito
– “você e um mero sujeito a um, não ao Outro” – sem deixar de colocar no
lugar da verdade o saber. Mas não é o saber do outro como na análise se faz,
aquele que o outro apresenta como verdade. É um certo saber que é produzido
como sistema e como verdadeiro. Um certo saber que, certamente, lhe é
oferecido pelo universitário, que é o empregadinho do capitalista.
Vem então a produção de um objeto como pura mais-valia, que é o
lucro que se pode recuperar, na posição do capitalista, pelo uso dessa fórmula
discursiva. Aí está a mais-valia, puramente. No discurso do mestre, Lacan
chamou a isto de mais-gozar. Trata-se aqui do lucro financeiro, esse de que se
fala no banco e que vem neutralizado como moeda. Está tudo lá, no Marx...
Venho a transar com a moeda e com um falso lucro porque deprimo o outro,
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pela sua partição, e não o deixo ser alguém – ou seja, um sujeito, mas vigorando
a partir da sua particularidade – porque lhe digo que, no lugar da verdade, tenho
um saber dado, certamente pelo discurso universitário.
A diferença, então, é que, no discurso analítico, o saber que está no
lugar da verdade, é o saber do outro na medida em que o analista está fazendo
funcionar, como objeto, a cisão do sujeito no lugar de um outro. E se está como
objeto a, o saber do outro vai saltar, porque o a causa o desejo dele. A postura
do analista é de causa do desejo, e assim o Outro vai colocar-se verdadeiramente
com o seu saber, que é saber do Outro e não do analista. No discurso do
capitalista, não se coloca no lugar do agente a causa do desejo, e sim o imperativo
superegóico de uma posição de comando, como faz o mestre. Só que o comando,
no caso do mestre, é dialetizável, pois quando faz funcionar o saber, este está
cindido pelo sujeito. O capitalista faz funcionar depressivamente a cisão do
sujeito garantindo-se, como verdade, num saber dado, o savoir-faire do lucro.
É depressivamente, então, que o Outro é abordado.
É claro que o discurso do capitalista, como qualquer outro, tem sua
disjunção, é impossível. Se fosse possível, já haveria dominado tudo. Ele também
não pode operar, como a histérica, essa impossibilidade, pois, para ele, só há
defeito nesse saber, uma impotência, na verdade uma incompetência... dos
senhores professores que não fizeram uma tese decente para se obter todo o
lucro possível. Por isso é que há tantos professores como Ministros. Espera-se
que eles tragam um saber, que a universidade lhes deu, para que esse saber
funcione no lugar da verdade, oferecendo todo o lucro. O saber universitário
não é o saber científico. O discurso da ciência é outro...
A histérica fica produzindo saber o tempo todo, ela não faz outra coisa.
O discurso científico faz a mesma coisa, mas por outra via. O discurso do
capitalismo não consegue lidar diretamente com o discurso da ciência. Ele dá
prêmio Nobel porque tem dinheiro para isto. Ele só pode lidar com isto através
do discurso universitário, que lhe dá, como produção, um sujeito prontinho, botando
o saber como sua causa. Ele captura sujeitos “preparados” para lhe garantir
que esse saber é verdadeiro. Ele não lida diretamente com a ciência, porque
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não é besta. A ciência é doidivana, ela produz saberes e quer garantias, mas
não é pedagógica. Basta lermos os cientistas... Como eu vejo o mundo, obra
de Einstein... É a produção de um saber que se entrega, e não o convencimento
de um sujeito para acreditar nesse saber dado. A pedagogia é que garante que
vocês todos sejam bem treinados, para que eu, como capitalizador, tenha o
público certo: aquele que vai poder aceitar eu propor esse saber dado sem
maiores contestações. Se pintar um poetinha, um doidinho, vão dizer que não é
nada disso, que ele só está fazendo arruaça.
* * *
Estou, hoje, nesse papo porque, a partir das coisas que disse desde o
começo – tanto sobre a PIPA quanto sobre a MALU –, me pergunto se não há
agora uma lacanagem sem Lacan. Com Lacan era interessante; o nome é
dele, ele pode fazer com seu nome o que quiser. Agora há outro sentido da
lacanagem, que é a de quem tente fazer de forma com que Lacan habite, ou
que tenha habitado, o discurso do capitalismo...
A PIPA não me interessa nem um pouco, mas a MALU ainda me
incomoda, pois o que vejo nesse tipo de atitude me parece tentativa de
capitalização do projeto lacaniano. Não é um mero faturamento, pois todos
nós faturamos em cima dele. Estou chamando de capitalização do projeto
lacaniano o fato de se arvorar algum suposto herdeiro – ainda que a roupa do
defunto seja evidentemente maior, como disse – o qual, ao invés de continuar o
ensino do mestre, na tentativa de, pelo menos, recompor esse lugar, e ao invés
de fazer vigorar o discurso analítico, queira transformar sua suposta herança
dos meios de produção – e que é uma farsa ruim porque não há essa herança
– em mera capitalização desse projeto.
Aí é que venho denunciar tais atos que não esperam por transferências,
nem por reconhecimentos, e só querem negociar. O papo tem sido neste nível.
O que preocupa é essa transa de se pegar o que se produz, se efetiva (ou se
efetivou porque não se efetiva mais já que Lacan está morto), pegar os dejetos
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RESPOSTAS
(...)
Dizer que o saber não aparece manifestamente é dizer que ele não
aparece como saber puro e simples que é. Mas aparecer, ele aparece. O
capitalista, quando fala, diz que tal coisa está cientificamente correta, olha
para o lado e se garante: “Não é, professor?”. Ele não vai perguntar ao cientista...
E há professor para isto, sempre há. O professor é aquele que transformou o
discurso científico em discurso pedagógico. O cientista, o capitalista o premeia
– e é só.
Todo o sistema se remete à Universidade, que foi fundada não para
ensinar a ninguém, e sim para garantir que as criancinhas digam amém, para
que se formem sujeitos adaptados ao saber instituído.
(...)
Há tentativa de sufocação do discurso científico por parte do
capitalismo. Se o cientista não se comporta universitariamente, fica mal visto:
“Quer descobrir saberes para quê, esse cara?” – pergunta o capitalista – “Qual
o lucro que vou ter com isso?”.
(...)
Tanto é que se você tentar uma bolsa de estudo ou de pesquisa sobre
algo de sério – ou seja, cuja tese vai ficar certamente inacabada, porque toda
coisa séria é assim –, você não vai conseguir. A não ser por descuido. Para se
redigir um bom processo para ganhar bolsa, há que se mostrar que se vai
chegar a tal termo e que isso serve a um lucro tal. Capitalista não é besta de
financiar o que não lhe vai render lucro. Até o discurso científico – que não é
lá essas coisas –, que bem ou mal na sua histerização de base acaba produzindo
saberes. que por acidentes do Outro podem até subverter as crenças, anda
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Não é Não
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NÃO É NÃO
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que caiu lá e vai ter de redescobrir. Mas, certamente, por aí só existem dois
sexos: o sujeito ou cai num, ou cai noutro. E sexo nada tem a ver com a anatomia,
a não ser por extrema coincidência. Masculino e feminino, homem e mulher, não
são necessariamente macho e fêmea, são as posturas significantes que vão
determinar a posição do sujeito.
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falando de verde, estou situando um universal cor que está por fora disso tudo.
Há sempre referência a outra coisa no regime das oposições, como no caso da
linguística. É preciso colocar um espaço maior como englobando tudo para
estabelecer a distinção por dentro. Toda cor é cor, e isto é o universal da cor –
y y. E a cor verde precisa, para ser cor – x y –, de outra referência que
não seja cor. Existe pelo menos uma cor que nega o verde – yx –, logo todo
verde é verde: x x.
Aqui posso fazer a eliminação dos y e acabar com o y x, pois Lacan
disse que existe pelo menos um que não é função fálica: x x. Dentro desta
estruturação, basta se ter a exceção para se ter a regra, pois,por fora da exceção,
há outro universal que a está segurando. Daí a inexistência da metalinguagem,
pois trata-se de outra postura de universal, segurando uma particularidade como
diferente e fundadora desse universal. Temos aí a fórmula do distintivo, a fórmula
das oposições. Não se consegue estabelecer oposições escansivas sem esta
formação. Com isto, Lacan está garantindo que não há possibilidade de se
negar que a exceção funda a regra, que só se pode dizer o universal pela
diferença em relação ao que está por dentro.
Só posso dizer que todo verde é verde na medida em que há uma cor
que não é verde – o que está escondido aí é a referência à cor. Posso até dizer
o “absurdo” de que existe pelo menos um verde – algo que participa das
condições do verde – que não é verde, que é o seu limite. E como há um limite,
a oposição pode ser escrita.
Ora, quando Lacan escreve as fórmulas do feminino, posso dizer que
ele parte das mesmas premissas, ou seja: toda cor é cor; e todo verde é cor.
Até aí nada mudou, pois tenho que ter uma referência qualquer de escansão.
Mas, ele continua e diz que não existe nenhuma cor que não seja verde –
y x –, que é contraponto dessa outra afirmação de que existe pelo menos
uma cor que nega o verde – yx. Então, se disser que não posso reconhecer
que existe uma cor que negue o verde, é a mesma coisa que dizer que há uma
certa gradação, que as coisas não são assim tão nítidas e que, se for procurar
a distinção entre um verde e um não-verde por gradações sucessivas e sutis,
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vou perder o momento onde o verde deixa de ser verde. Então, posso dizer que
qualquer cor participa de uma certa “verdidade”.
Uma coisa é estabelecer as oposições entre x e x’. Outra, é dizer que
não se pode estabelecer nitidamente essa oposição, que a gradação é tão sutil
e tão infinita, que não se sabe onde está a oposição. Isto logo se espraia pelas
cores em geral e elas ganham certa verdidade. E os artistas garantem isso.
Basta estudarmos pintura para saber que um professor pode pedir que se
prepare um trabalho pictórico aonde o vermelho “funcione” como verde...
Em função das jogadas pictóricas, vou verdalizar o vermelho e o que
vai acontecer é que se disser que não existe nenhuma cor que diga não definitivo
ao verde, terei essa negação no universal que Lacan colocou. Poderei dizer
que não-toda cor é verde y x –, ou seja, é verde, mas não-toda. Tem uma
verdalidade, uma certa verdice, aquilo que posso atribuir gradativamente às
cores, reduzindo essas expressões... E reduzindo vai acabar... Não existe
nenhum que não seja fálico e diga não em definitivo sem gradações. Portanto,
as mulheres estão garantidas na sua posição feminina por dizerem que não-
toda é função fálica. O negócio escorrega, logo, a própria função fálica fica
prejudicada. A função fálica da mulher é algo precária, não é aquela coisa
batatal dos homens.
Posso, mesmo, trocar a palavra verde e a verdidade do verde pela
verdade. A verdade do verde está na dependência de alguma coisa externa.
Toda verdade é verdade. Todo verdadeiro é verdadeiro. Toda verdade é
verdadeira. Existe pelo menos uma verdade que não é verdadeira, então, toda
verdade é verdadeira. São os limites da verdade. E se não existe nenhum
verdadeiro que não seja verdade, não-toda verdade é verdade. Aí Lacan diz:
“Eu digo a verdade sempre, mas não-toda” – porque a língua não consegue ser
macha, nem que os gramáticos insistam nisto.
Como só posso falar alíngua, só posso dizer a verdade, mas não-toda.
Lembrando dos esqueminhas do “existe pelo menos um”, não posso dizer que
existe um horizonte distante – ao qual não preciso me referir, ao qual Lacan
não se referiu quando falou nisto –, mas existe um horizonte quando digo que
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toda cor é cor, que verde é cor, porque existe pelo menos um que não é verde
e, dentro do colorismo, o verde se destaca. Posso sempre pensar nesse hori-
zonte. É muito distante, mas posso pensá-lo.
Já no caso da mulher, esse horizonte pode estar lá, mas a falta de
existência daquele que diz não, abre o contorno do universo. Fica, então, uma
certa indistinção entre verde e cor. A distinção masculina diz que cor é cor, que
entre as cores há verde e não-verde. Já as mulheres podem até dizer que faz
de conta que cor é cor, mas que há verde em qualquer lugar. Ficando, assim,
indistinto do ponto de vista das oposições, mas extremamente distinguido do
ponto de vista da infinidade sensível de sutilezas colorísticas... Basta pegar um
bom pintor para se verificar isto.
Cheguei mesmo a pensar em dois termos para distinguir isto: o digital e
o analógico. A mente digital seria o masculino e a analógica o feminino. Mas
não vou pôr no esquema porque o digital me parece muito mais para o obsessivo
e o analógico para o histérico.
Diria melhor: há concepção e aceitação da oposição em H, e concepção
e aceitação da infinitização contra a oposição em H’. As mulheres não se
opõem a nada – muito pelo contrário, não há oposição definitiva, elas deslizam,
dão um jeito, escorregam... É o caso do artista em relação à cor. Ele distingue
o seu estilo, mas sua transação com as cores não é de eliminação. Mesmo que
ele prepare sua paleta, ele faz a maior zona dentro dela. Tem a paleta do
artista, um certo conjunto de cores que ele usa, mas justamente para fazê-la
funcionar de outro modo, para tornar sutil a relação entre as cores.
Lacan diz que sempre disse a verdade, mas não-toda. É a garantia de
que ele fazia um mi-dire. Tenho a desconfiança de que esse seu mi-dire é
mesmo estratégico. Não só porque ele está garantindo que não pode dizer toda
a verdade – porque lhe é impossível –, mas estava também usando isto como
estratégia nos seus ditos. Sempre tenho a impressão de que Lacan pensa uma
coisa mais ampla e só mostra metade. Tenho essa desconfiança com ele, que
não sei se é mítica. Cada vez que ele diz alguma coisa, pergunto pelo outro
lado... Vai ver que ele escondeu um lado aí, para não ser totalitário... Ele talvez
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tinha esse cuidado de pensar grande e dizer a metade. Como não sou obrigado
a ser Lacan, porque não o sou, fico só implicando com suas fórmulas.
* * *
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tenho que sair por aquela porta”. E eu pensava que ele estava com alguma
questão contra “aquela porta”. Até que, de tanto insistir, ele deixou claro para
mim o que era o aquela da porta que era absolutamente indecidível. Ele tinha
que sair por “aquela” porta. Eu dizia: “Então sai”. Aí ele dizia: “Não, mas eu
tenho que sair por aquela porta, não por aquela”. Quando ele disse esta última
frase, só então eu saquei: não havia jeito de fazê-lo atravessar o aquela da
porta. Eu o botei para fora no tapa, na porrada como se diz. Ele tinha que
atravessar a porta para fazer a experiência em outro nível. Agarrei-o à força e
o botei para fora. Suspendi o aquela e o fiz atravessar a porta “naquele” tapa.
Ele não podia situar na medida em que o “aquela” tem algo de shifter.
Podemos observar no texto sobre o Tratamento Possível da Psicose, como
Lacan situa as suspensões do psicótico no momento do shifter. São estes termos
da língua que, ao mesmo tempo que fazem a passagem, criam uma certa
indistinção entre enunciação e enunciado, como é o caso do pronome pessoal
eu. Eu é quem? O psicótico não pode bem dizer eu porque há uma indecisão
radical entre enunciação e enunciado. O eu fica sem a função shifter que tem
na frase, a função de referência do sujeito. Lacan acredita em Jakobson,
mostrando que é justamente naquela equivocação como está em não é não
que pinta o expletivo, a função de sujeito fundamental.
Todos os shifters acabam carregando um pouco dessa indecisão. Para
se tomar alguma decisão é preciso escolher uma via da instância do equívoco
para fazer a oposição, ou que, pelo menos, se faça uma gradação que dance.
Mas o psicótico fica inteiramente sem referência para fazer distinção aí. Ele
não podia atravessar o aquela, o aquela era um abismo. Ele só podia sair
carregado por outro que se suportasse como sujeito – foi o que fiz, contra os
medos dele, tomando porrada. Até que funcionou porque ele, pelo menos, se
hebefrenizou um pouco. Talvez, nessa hebefrenia, consiga vir a instalar-se na
função paterna.
Engraçado é que, a partir desse momento de expulsão, ele começou –
sem nenhuma transferência, claro – a dizer que eu era o seu pai. Isto é talvez
uma tentativa de salvação; antes ele não dizia isto. Porque fui responsável pela
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Este outro cai em outra loucura, porque diz que não existe nenhuma
cor que seja verde – x x –, que não há nenhuma cor que seja distinguível
como verde. A mulher não diz isso e, sim, que não há nenhum que não seja
– x x.
De um lado, então, um diz que não existe verde – x x. O outro, por
sua vez, tem certeza de que há um só – x x –, que não consegue encontrar.
Então, se um diz que não existe nenhuma cor verde, portanto, toda cor é não-
verde. Qualquer cor que pintar é tudo menos verde. Se substituirmos por verdade,
fica uma loucura porque todo verdadeiro é verdade. Existe apenas um verdadeiro
que é verdade. E esse verdadeiro não é encontrável, até segunda ordem. Ele vai
ter que explicá-lo, logo, não-toda verdade é não-verdadeira. Já imaginaram o
abismo? Não é apenas uma infinitização gradual, macia. É o abismo repentino.
O outro vai dizer que não existe nenhum que seja verdade, logo toda
verdade não é verdade. Com a cor, teremos que todo verde é não-verde –
x x –, porque o verde não existe, toda verdade é não-verdade.
Nos dois casos, temos uma impossibilidade de estabelecer a distinção
– é indecidível. Mas podemos acompanhar certas formações na tentativa da
decisão. Adianto que estou chamando o lado esquerdo de paranóia (PN), e o
direito de esquizofrenia (SF).
Todo verde é não-verde, SF, o que é muito diferente de dizer que é
verde, mas não-todo, PN. Há um reconhecimento deslizante, um buraco, não
se acha o desgraçado do verde, porque ele não existe. Remetendo, aqui, a
Rosine Lefort, onde, então, está o furo do Outro nesses dois casos? É preciso
reconhecer o furo do Outro para poder incluir o furo. Um é furado e não pode
reconhecer porque o furo do Outro não pinta; o outro esbarra no furo do Outro
e não pode incluir – são completamente diferentes.
Existe uma afirmação primeira, uma Bejahung, para poder fundar-se
a negação, mas em SF só existe foraclusão, porque a afirmação se funda
sobre coisa alguma. Isto é conseqüência de uma não-instalação da Bejahung.
As coisas se depositam, ficam assim acidentalmente, mas não têm fundamento
afirmativo, por isso só afirmam.
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S1. Não posso chamá-lo de S1 porque a função sujeito não entrou, mas entrou
um significante que se comportou como significado. Aquele chumbo faz, então,
o lastro, e a imantação suga tudo que pinta no Outro. Por isso o delírio não é
constante como dizem certos tolos da psiquiatria. Lacan diz que o delírio muda
de vez em quando. E tem que mudar porque é a maneira de reduzir de novo a
esse núcleo. Tudo que pinta no campo do Outro é uma tentativa que nem
podemos dizer que seja de suturar o Outro, porque o Outro não é concebido. O
Outro é furado porque é, e ele não consegue conceber o furo do Outro. Se
conseguisse, entrava no faz-de-conta. Mas o que ocorre é que, imediatamente,
tudo se recolhe ao núcleo.
É como se fosse uma espécie de falso S1 radiante, maravilhoso,
significado. É o S1 propriamente dito, coisa, significado, não há nenhuma função
subjetiva em jogo. É o uso próprio, perfeito, do S1... Lingüista devia saber disto
já que ele procura o uso próprio da palavra na língua – só pode ser paranóide...
O esquizofrênico fica numa ruim como essa, mas de características
completamente diferentes. O Outro não se apresenta furado. No seu acidente
lógico não há reconhecimento. O paranóico também não reconhece o furo do
Outro, mas é atacado, porque o Outro é furado mesmo e esse furo é que o
incomoda. O esquizofrênico não reconhece o furo, mas tem que trabalhar o
tempo todo para não reconhecê-lo.
SF, então, no seu acidente lógico, cai numa espécie de Outro sem furo,
como se tivesse dois e fosse compacto. O saber é saber significado, mas não
pode ter relações com esse saber significado porque sua posição aí dentro é
que é aberta, furada. Não é como aquela abertura de PN, é simplesmente um
buraco. É uma espécie de S1 falso e rasurado. PN inventa em cima de um
significado um núcleo, SF não tem nem significante nem significado, não tem
um núcleo. No lugar do núcleo tem um buraco. Isto na medida em que, para
ele, não existe nenhum que seja função fálica.
Os homens dizem que todos são função fálica, pois existe pelo menos
um. As mulheres dizem que a função fálica não é todo, porque não existe
nenhum que não diga não. O que SF vai dizer é que não existe nenhum que
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seja função fálica, ela não funciona nunca. Não há gozo-fálico por mais que se
masturbe o dia inteiro, talvez por isso mesmo, porque não encontra a função
fálica. PN tem um buraco e, toda vez que procura alguma referência do lado
de H, é um abismo. Por isso ele é um andarilho. Sai desvairado pelo campo do
Outro. A única maneira de ele subsistir um pouco é estar procurando um lado
onde tudo parece compacto para ele entender.
O paranóico diz: “Sou Napoleão. Só existo eu. O resto que se submeta
a meu núcleo”. O esquizofrênico diz: “Só existe o que está aí, porque aqui não
há nada”. Terrível!
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o obsessivo, a fobia, etc. Os lugares que o sujeito tem para se instalar de começo
são esses. Falou, ou é homem ou é mulher. Ou nada tem a ver com o ser homem
ou mulher – é paranóico ou esquizofrênico. Será isto?
O anjo, por exemplo, tinha-se alguma certeza de que era mulher de
Deus. Esta certeza não é da ordem da certeza mística, que é um voto. É
alguma coisa que se instalava corporalmente nele, direto. Diante de Deus,
ninguém é macho, todo mundo é feminino... Não encontramos em toda
literatura um Deus que seja feminino para quem o aborde. Pode ser no feminino
puro, sempre, mas quando faço a referência divina, vou de certo modo instalar
uma função paterna ali dentro e me feminizar diante desse Deus. Ele feminiza
tudo o que toca, homens e mulheres. Até na mitologia grega é assim: Zeus
transava com todo mundo... como homem.
O paranóico é aquele que não pode hesitar, porque o indecidível o joga
imediatamente naquele núcleo que é compacto – bateu, valeu! A série não se
equivoca, ela segue concretamente seu curso. Quanto ao esquizofrênico, é: bateu,
não valeu! É o abismo, um embate do lado de fora. Bateu, é isso. concretamente!
É como se realizasse tudo. Daí a questão da alucinação, etc. Não é simbolizável,
tudo se realiza. A psicose não hesita – aliás, nas suas articulações, também, o
neurótico não hesita, ele sintomatiza logo. Eu não diria que seja uma certeza. É
uma compulsão. Esbarrou na cadeia, ele segue – segue a cadeia. Ou, senão,
inclui a cadeia sintomaticamente...
Quer me parecer que, como avesso das fórmulas quânticas, Lacan deixou
em suspensão uma formulação possível da psicose. Quanto mais leio o texto Do
Tratamento da Psicose, encontro coisas que podem garantir isto. Mas veremos.
Tudo isso é para fazer a distinção entre a loucura do ser falante e a
psicose – para acabar com esse romantismo besta que quer colocar o psicótico
como a grande verdade.
Tenho mesmo que conceber que, se o esquema da esquizofrenia é
este que apresentei, poderia dizer que onticamente somos esquizofrênicos.
Começa-se, pois, por esse buraco que lá coloquei, mas ali vai se instalar alguma
coisa para poder dar conta. Ficar nesse buraco, é sem saída. Mesmo
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O que acontece, o que faz com que esses sujeitos nos dêem a impressão
de psicóticos? Certamente a nossa burrice... Mas algo tem lá que nos dá essa
aparência. Estudem os poetas, os artistas e os místicos. Façam isto e verão
que há diferença...
Tenho aqui comigo o livro Extases Féminines de Jean-Noël Vuarnet.
Não tem nada de novo, mas é interessante porque faz uma espécie de
compilação. Vê-se que o autor estudou Lacan, um pouco pelo menos. Ele
pega os místicos mais importantes, sobretudo, do fim da Idade Média até o
Racionalismo do séc. XVII, quando a Igreja permitia que existissem místicos
de verdade...
Ele cita literalmente o Seminário 20, Encore, de Lacan. Como sabemos,
na capa está a Santa Tereza, de Bernini. Lacan diz aí como a função feminina
ou, pelo menos, a heterossexualidade de o homem avançar para o feminino, se
levada muito longe, pode parecer do nível da psicose. “Levada muito longe”
porque tem gente que vai lá perto...
Lacan disse, também, que uma psicanálise levada muito longe acabaria
na psicose. Como ele não nos apresentou essa distinção com toda nitidez, eu
diria, agora, que não acaba em psicose nenhuma e, sim, numa coisa parecida
com a psicose que é uma certa exacerbação da relação ao furo, uma exacerbação
do discurso feminino. Toda vez que se é mulher extremamente, fica muito parecido
com o louco. Por isso as mulheres são mulheres, mas não-todas.
Jacques-Alain Miller escreveu um texto falando de Lacan, o mestre;
de Lacan, a histérica; de Lacan, o analista; e de Lacan, o educador – fazendo
o elogio desses Lacans. Quero colocar algo que é evidente em Lacan, que não
está nesses quatro discursos. Lacan, o Secretário.
Lacan foi secretário, por isso ele trabalhava, produzia tanto.
Secretário é um trabalho muito pesado. Lacan era secretário de quem? Da
Outra. A palavra secretário tem algo de secreto, privado. Então na sua
privação com a Outra, encarregado, porque caiu nessa de ser secretário
Dela, ele ficava testemunhando. Ou seja, ele é um mártir. Ele ficava lá,
testemunhando a Outra gozar, redigindo e secretariando esse gozo. Passou
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particular, numa relação direta com a divindade, com a Alteridade, não interessa.
Por isso Lacan disse que o marxismo só vence se se tornar cristão.
O êxtase e a possessão não são, também, da mesma ordem do culto da
Virgem Maria, que foi uma troca muito marota que a Igreja fez e que a prática
instalou definitivamente desde o século XVII. A Virgem Maria é filha do
racionalismo, embora tenha nascido na metade do século XIII, depois do amor
cortês. É uma transação anti-movimento inconsciente. Afinal de contas, é uma
boneca. No Brasil foi tipicamente objeto a, achado, uma boneca mesmo.
Quanto às resultantes mais atuais, mais próximas do que seria a vocação
extática, encontramos os aparecimentos da Virgem – de Salete, de Lourdes, etc.
– para crianças tolas. Há beocidade diante da aparição de um objeto que fica
como que sublimado, e não um confronto virulento, violento mesmo, com o dizer
do Outro. A Virgem Maria nunca disse nada. A única coisa que ela disse foi:
“Magnificat, etc.,” que está no começo da estorinha.
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de outra alma, digamos assim. Quer dizer, ser cavalo de ApoIo, ou ser cavalo
de Oxumaré dá na mesma. A possuída tenta realizar o desejo, porque do lado
de H é onde está o desejo, a referência.
Está me ocorrendo aqui, quanto à possessão, que a invocação do espírito
da Umbanda é por via de mestria, uma mestria que regula e normativiza as
relações com o Outro. Podemos dizer que a Umbanda está para o Candomblé,
assim como a Universidade está para o poeta, em níveis diferentes.
Do outro lado – H’ – está o amor, no sentido de amor divino, distinto do
amor-paixão, que é uma espécie de confusão entre a relação ao Outro e a
relação ao Falo. Amor divino é aquele que Lacan diz que é dom ativo. Gosto de
chamá-lo de HP, ágape.
Aquelas mulheres são possuídas pelo demônio, daimon, uma espécie de
alma, é um tipo de êxtase inverso. Digo isto porque os homens nunca são
possuídos. Não acredito em possessão masculina. É preciso uma certa queda
para o lado feminino para haver possessão. Isto porque ela se dá pela tentativa
de realizar o desejo por via de furo. Em vez de a postura ser diretamente masculina,
de colocar o desejo e provocar o seu conto de fodas, ela coloca o desejo e dribla
pelos encaminhamentos do Outro. Ela põe o desejo diretamente como o desejo
do Outro, incorpora uma alma externa e fica possuída. A possessão, por mais
feminina que seja, é a vertente fálica, embora precária, do lado feminino.
Já na extática, que é a mística, sempre há uma referência masculina, um
secretário. No misticismo cristão se fala de tornar-se a esposa mística de Cristo.
Trata-se de uma postura em que há necessidade de tornar-se marcada por algum
significante masculino, o qual é, em última instância, o Nome do Pai. É a referência
que está lá. Ela suspende a função paterna quando diz não ao não da castração,
mas não a abole. Sem essa referência, ela se perde. Ela vai, então, produzir os
esponsórios místicos com o Pai. Quer dizer, é a produção do incesto com o Pai,
suspendendo a castração, mas não a abolindo. É transgressão radical.
O modo como a possuída lida com a participação é de estar furada por
um lado, mas insistir, por via de captação do que vem do Outro, no gozo-fálico.
Ela vai dizer coisas que dizem respeito diretamente aos desejos que pintam
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diante dela. Ela trabalha com os desejos. Ninguém vai a um pai-de-santo para
se tornar um sujeito. Vai-se lá para demandar respostas aos seus “desejos”. A
possessão não deixa de ser um modo de produção histérica – que não é o
modo da extática, a qual não é histérica nem psicótica. Claro que encontramos
momentos histéricos aí, mas a essencialização não é histérica.
A extática não é possuída pelo desejo, ela fala na sua relação com o
Outro. Nem o desejo a interessa. Nos textos de Santa Tereza, e de todos os
outros, encontramos patente a desconfiança para com o desejo. Ela fica até se
perguntando se isso não é coisa do demônio. Encontramos mesmo vários que
partiram de uma posição praticamente histérica e vão fazendo a subida, a
ascese. Não é aquela coisa boba, repentina. É um trabalho de elaboração que
vai dissolvendo e deixando só o furo à mostra.
Santa Tereza é muito especial. Acho que Lacan tem certa queda por
ela, justamente porque tem muito a ver com o processo analítico. É um negócio
lento, desmanchando devagar e procurando uma ascese. A meu ver, a psicanálise
também é uma ascese. A extática tenta a realização do amor divino por via do
furo, da alteração – isso é ascese.
Vocês, talvez, tenham achado espantoso eu ter colocado a ninfômana do
lado direito. Sempre pensamos que a ninfomaníaca quer comer todos os homens,
quando ela só quer comer um... Só que ela não agüenta. No seu Satiricon,
Fellini mostra uma ninfomaníaca amarrada, e o marido chamando as pessoas –
porque ele não pode dar conta. Ele chama os que passam... para sempre serem
o mesmo homem. Não há outro. A ninfomaníaca simplesmente tem que estar
constantemente naquela referência fálica, mesmo que não goze, para subsistir.
Por que a coloco do lado direito? Não estou dizendo que ela tenha a
ver com o êxtase e, sim, que do mesmo modo como a possuída é uma espécie
de esposa de pacto com o demônio, a mística não faz pacto. Ela faz contrato
com Deus. É o termo que elas usam – um contrato. Temos, então, todo um
conjunto de leis funcionando aí. A possuída faz um pacto: “Você garante o meu
desejo e eu te dou isto”. A mística faz um contrato que tem algo a ver com a
via de ascensão. A ninfômana não é esposa mística, nem esposa do diabo, ela
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Há, por exemplo, uma coisa que considero muito perigosa: o romantismo
psiquiátrico, que pegou até nos Estados Unidos, depois da anti-psiquiatria, de
Michel Foucault, etc. – talvez lendo mal esses autores –, que é a colocação do
psicótico no pedestal. Acho, pois, e isto politicamente, importante tentar
rigorosamente uma distinção de tudo isso para com o que falei da vez anterior
quanto àquelas matrizes.
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tratados como artistas – que tenham ido tão longe... Isto porque, depois do
impacto de certos grandes artistas do passado, houve uma espécie de – “tudo
bem, é um direito do artista, ele pode fazer isso” – certo “reconhecimento”
que o situa de algum modo em relação a um Outro social e, portanto,
demarcado masculinamente.
A biografia de Van Gogh, por exemplo, diz que, nos hospitais, ele tinha
períodos de “norma1idade” em que voltava a produzir. Temos que admitir que
ele ia tão longe que, por assim dizer, saia do quadro. Aliás, as mulheres extáticas,
a que já me referi, dão depoimento de que, no ápice do êxtase, não podem nem
falar. Freqüentemente o depoimento é dado depois de um êxtase. Então, no
seu ápice, um Van Gogh, por exemplo, não pode pintar, a suspensão foi longe
demais. Não pude acompanhar o cara, pois não estava presente para saber
que entradas e saídas significantes lhe davam certo retorno, mas quero dizer
que não posso conceber psicose num sujeito desses. Não é um mero psicótico
borrador de telas para algum Museu do Inconsciente. Ele tem todo um percurso
e com solidez.
Teríamos aí então o partido das psicoses e, se esse pseudo-psicótico
não consegue ter poder aí nesse partido, ele é envolvido diretamente com o
psicótico. No entanto existem sujeitos não-psicóticos que tomam esse partido,
e se estabelecem no seio da sociedade...
Seguindo aquela via, apenas passando de raspão hoje, o que seria
então uma neurose? Eu disse que só há quatro partidos, e se não aparece aí
nenhum partido de neurótico é porque, certamente, a neurose é uma
sublegenda, com todos os casuísmos. Posso supor, juntamente com vários
autores, que toda neurose é essencialmente fóbica, que seu estofo é a fobia.
E a partir do núcleo fóbico que existe em toda neurose, poderíamos distinguir
estas duas matrizes fundamentais: histeria e obsessiva. Já a perversão é
uma outra sublegenda de alguma coisa.
O que poderíamos considerar como sendo a neurose, se supusermos
que seu estofo é a fobia? Isto é a mesma coisa que dizer que toda neura é,
antes de mais nada, uma fobose. Não estou fazendo um Seminário sobre a
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objetivar essa matriz recalcada. Isto nada tem a ver com fetichismo. Todos os
autores, aliás, estão de acordo que o fetichismo não é o avesso da fobia, pois
não pertence ao mesmo registro. É uma objetificação de uma matriz repelida,
eventual em certos casos. É o que se diz do fóbico propriamente dito.
Mas a histérica é fóbica, o obsessivo é fóbico, só que em vez de
objetificar, temos aí toda uma trama segurando contra a matriz repelida, a qual
ressurge. Como, aliás, também a fobia. No fim é a mesma coisa. É uma questão
de composição de objeto – e por que não dizer que a histérica compõe um
objeto complexo? –, mas é um objeto. É uma situação, uma configuração.
Estou, então, propondo a fobia como sendo a essencialidade da neurose. Neurose
e fobia seriam a mesma coisa, neste caso.
Mesmo no caso da eventual objetificação na fobia propriamente dita, o
ressurgimento dessa matriz que foi repelida funciona como retorno do repelido:
o retorno do recalcado, com a ameaça de fazer comparecer e funcionar a
matriz que está recalcada. Está lá no Joãozinho, no Seminário de Lacan sobre
ele. A conseqüência sine qua non da fobia, e da neurose em geral, é viver-se
em denegação e erigir-se a denegação em principio de relação. O
relacionamento com o repelido é sempre de denegação.
É preciso pintar uma situação em que o objeto ameace, pois quando
não está me ameaçando, não sou fóbico, só o sou sob ameaça. A matriz fóbica
está nesta ameaça. Eu diria que não se encontra uma fobia pura e, sim, obsessiva
e histérica que possam ter como recalcamento certa fobia que pinta. Na
verdade, as sublegendas são: histérica e obsessiva, porque são fobias... E, de
vez em quando, pinta uma fobia para valer.
Se, então, como já disse, no horizonte do masculino está a castração –
mas como horizonte, como promessa ou ameaça de castração, o que situa o
universal do masculino –, é no campo do feminino que essa castração pode ser
suspensa, não como alguma coisa que não irá acontecer, mas como alguma
coisa que teria acontecido. Pelo menos parcialmente, as mulheres não têm
nada a perder porque, no seu acidente, já perderam. Então, “não vem, porque
tem”, é a frase de Betty Milan, que é um lídimo representante desse troço. Ou
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Psicanálise & Polética
seja: “Não vou perder nada, não vou ser castrada. Você é que tem medo de
minha existência” – diz a mulher. É aquela história que falei sobre Viridiana:
“Se me encher o saco, levanto a saia e mostro... E você vai tomar um susto”.
Quer dizer: há furo.
* * *
520
Vae Victis
Existem umas histéricas tão óbvias que sabemos com quem elas estão
andando cada vez que as encontramos. Quando elas falam ficamos sabendo
imediatamente, porque já caíram na de outrem. É essa espécie de
descentramento da histérica que parece, às vezes, esquizofrenia. Chamo
atenção para este fato porque, com essa nosografia fóbica de nós outros
(quando temos as nossas fobias, começamos a fazer nosografias), aplicamos
diretamente sobre as pessoas por meros comportamentos acidentais ou
temporários: “Fulana está psicótica, sicrana está psicótica...”. É preciso ter
cuidado porque existem histerias com aparências de psicose. Elas vão muito
longe e, por causa dessa imitação, se tornam cronologicamente próximas para
serem confundidas com psicose... E as pessoas acabam levando o outro a se
instalar numa aparência definitiva ou longa de psicose, de tanto convencê-las
de psicose – isso é canalharia.
* * *
521
Psicanálise & Polética
disso que ele sofre. Para serenar-se, precisava estancar um pouco o processo,
o que só se daria por totalização, se ele encontrasse Metalinguagem. Mas ele
não pode estancar o processo, pois sofre incessantemente o empuxo do terceiro
em exclusão.
O obsessivo vai, então, empanando o sujeito e coagulando o Nome do
Pai, ou seja, não vai conseguindo reter-se por referência ao faz-de-conta
paterno, o que faz com que, na verdade, não consiga nem ser homem. Ele
podia, de repente, dizer, “faz de conta”, e cortar o terceiro excluído, mas não
consegue. Vive em dívida, em dúvida eterna entre duas oposições. Ou, pode-
se dizer, em dúvida interna promovida pela dívida externa. É o caso dos nossos
economistas no poder...
Qual é a base fóbica do obsessivo? É a ameaça de castração que está
no horizonte. Em vez de garantir-se na referência ao Nome do Pai, fundador do
seu para-todo, há uma espécie de coagulação, pura e simplesmente. Ele reafirma
a matriz masculina, que, aliás, lhe é própria, por ter reconhecido e renegado a
diferença sexual. Lembrem-se de que botei a renegação na base de tudo, lá no
seminário O Pato Lógico. Portanto, o obsessivo não poderia denegar tudo isso
se não tivesse de algum modo reconhecido por processo de renegação.
Ele teme a castração, teme ser castrado como o Outro, o que não é
o caso da histérica. Ela quer tapar o furo, que nele indica a castração, imitando
o Outro, que é macho, o homem. O obsessivo tenta não ver, não reconhecer
a diferença sexual, porque ele ficaria com medo de ser castrado, como o
Outro que ele supõe castrado. Esse reconhecimento é que o faz ser obrigado,
pelo Outro, a ceder em sua masculinidade. É disso que ele tem medo. Assim
como a histérica imita o esquizofrênico, o obsessivo imita o paranóico. Daí
que esse estado obsessivo em que vivemos nos dá a impressão de um estado
paranóico. O obsessivo imita o paranóico tentando centrar-se na sua matriz
e reduzir o Outro também a ele, que é o que o paranóico faz, segundo aquele
esquema da sessão anterior.
O paranóico se centra na sua base S1 – postiço, com foraclusão – e
tenta fechar o Outro. O obsessivo, não tendo foraclusão, tenta se centrar na
522
Vae Victis
sua matriz masculina, por medo de castração, e tenta reduzir o Outro, em sua
diferença, a uma pura e simples masculinidade. O obsessivo é a
homossexualidade por excelência. A homossexualidade é obsessiva. Não é a
prática homossexual como chamam por aí, é essa homossexualidade que sempre
cito, a homossexualidade do sistema: o não reconhecimento da diferença.
Quero ainda supor que essas matrizes têm outras sublegendas. Estou
tentando pincelar através dessas matrizes quais seriam as dominantes, enquanto
matriciais. Essas ortografias complicadas que existem aí nos livros são
simplesmente confusões conteudísticas por falta de conceber qual é a matriz
que está em jogo nas nosografias e nas políticas, nas diferenças anedóticas
dos casos... Cada caso é um caso, justamente por isso. O modo de entrar, o
anedótico em que o sujeito entra nessas matrizes, difere de sujeito para sujeito,
mas existe lá por baixo uma matriz que é constante. Então, quando tomamos
os tratados de psiquiatria, de nosografia, que têm aqueles números todos, vemos
que eles fazem quadros de semelhanças comportamentais dentro das matrizes.
Todo ano eles têm que fazer uma reunião, porque o número aumenta. Vai
chegar um dia em que vai ter um computador para estabelecer quinhentas mil
matrizes, a ponto de que aí poderíamos até botar a minha, quer dizer, é mais
uma. Eles estão é falando de comportamento a partir das matrizes e, não,
contemplando as matrizes, por isso há essa zorra dentro da nosologia.
O obsessivo faz uma promessa de pagamento de dívida, para não ser
castrado -– de dívida e de dúvida, eternamente pagando. A histérica porta o
furo na sua matriz e tenta tapá-lo o tempo todo, fingindo que ela é do outro
lado. O obsessivo não porta o furo na sua matriz. Sabemos que todo falante é
/ ), como constituinte de uma matriz primeira, mas o
furado, daquele furo de S(A
obsessivo não está nessa e, toda vez que vê o Outro, tem medo de ficar igual.
Então, ele constrói um sistema financeiro de pagamento de dívida, para manter
o Outro numa satisfação que não o castre...
* * *
523
Psicanálise & Polética
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Vae Victis
para que desabotoasse um vestido seu cheio de botõezinhos nas costas. Ele ia
desabotoando e, quando chegava no final, tinha um orgasmo, gozava. Mas se
visse um botão isolado, ficava fóbico. Sobretudo, se não me engano, se esse
botão caia da série. Quando caia um botão da roupa, era a fobia total.
Acho este caso mal situado porque a coisa tem característica de perversão
comum, de fazer gozar – e aí situou-se o cara como perverso: trata-se de gozo
perverso –, mas se trata de um perverso? Posso aventar, por exemplo, a hipótese
de, por um lado, uma estrutura fóbica assentada na falta, na queda, no isolamento
de um botão como iminência de castração. Por outro, uma transação perversa
comum com a série de botões que justamente exorciza a queda do botão.
Quando está em série, ela aponta para a falta na medida em que é
sempre possível mais um. Na contagem dos mais um, o sujeito goza em algum
ponto. É o caso do Don Juan, por exemplo, que mantém a falta em suspenso.
Agora, caindo um botão ou vendo um botão isolado, isso significa que ele pode
ter caído de uma série que exorciza o botão. A castração, aí, é tomada como
motivação, não podemos esquecer disto. Se aquele sujeito tivesse
reconhecimento da castração, não seria fóbico. A fobia do fóbico, num caso
como este, é simplesmente de não entender a castração: para ele é motivação.
E já que a série não apresenta motivação, ele pode simplesmente suspender a
castração na série, porque ela não é mutiladora.
* * *
Vae Victis é uma frase dita pelo general Bruno aos romanos seus
compatriotas, enquanto arrancava ouro dos gauleses que estavam pagando
por sua liberdade. Ele meteu a espada em cima da balança – quer dizer, roubou
no quilo, como se faz na feira –, a balança pesou para um lado e os vencidos
comentaram: “Puxa, mas assim?”. No que ele disse: “Ai dos vencidos”.
É preciso refletir um pouco sobre essa questão dos vencidos, sobretudo
no que diz respeito ao que trouxe a psicanálise, para que se possa,
eventualmente, situar-se em relação a qualquer política.
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Psicanálise & Polética
Lacan, por exemplo, não disse vae victis e, sim, primum vivere, que é
a base da prudência que leva em consideração a existência do Outro. Sabemos
que ele passou a vida fazendo uma série de coisas estranhas que as pessoas,
parece, não chegaram a entender, ou entenderam mal – o mal-entendido estava
sempre ao seu redor, naturalmente. No nosso caso específico, talvez seja preciso
que tenhamos bastante cautela, calma... Há, por exemplo, o cartel como idéia
fundamental do que Lacan chamou de sua escola, e aquilo parece que nunca
funcionou direito. Há, também, os chamados Analistas da Escola – em dois
sentidos: analistas que pertencem à Escola enquanto analistas e analistas que
são analistas da Escola, enquanto analisanda. E nós outros, aqui, temos que
manter um certo esforço de sustentação dessa prática: tentar botar a Escola
no divã, tanto quanto este Colégio. Veremos no resto do Seminário de hoje, e
em outros que virão, como está intricado o chamado político e o chamado
social – e não pelas vias que estão sendo trabalhadas por aí. É preciso tomar
certas posturas com base no assentamento do discurso psicanalítico e, também,
com base na prática desse discurso entre nós, aqui dentro.
De vez em quando, levo um pito de alguém do Colégio... Aliás, muito
freqüentemente – levo pito à beça. O que chamo pito é diferente de uma
interpretação, que seria manter um rigor de discurso psicanalítico. Se estou falando
num Seminário é porque pretendo me situar na histeria e, portanto, manter-me
numa análise em outro nível, o que é viável, já que Lacan fez isto. Então, nada
tenho contra, muito pelo contrário, a todo e qualquer tipo de interpretação que
possa, eventualmente, me dar um chute para frente. Mas, às vezes, ouço pitos...
E como é preciso tentar analisar um pouco a Escola, não eu no caso,
vou contar apenas o sonho da Escola – vocês têm que analisar. Hoje estou
chamando o Colégio de Escola – é coisa muito estranha que está acontecendo
na minha cabeça.
Um pito, por exemplo – um específico que já veio de várias fontes –, é
o de que tenho um sintoma muito engraçado, e que não é legal. Este sintoma
que é meu, como dizem, é que fico falando dos outros, seja em Seminário ou
em outro lugar: dou uma porradinha aqui na Internacional, outra ali em outro
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Vae Victis
grupo, e por aí vai. Neste último pito que ouvi a este respeito me disseram: “O
que você devia fazer era ficar, como Lacan, na sua produção científica, etc., e
deixar para lá esses caras, isso é um sintoma chato”. Mas não pude tomar isso
como interpretação e, sim, como pito...
O sintoma que está em jogo e que precisa ser interpretado não é o
sintoma de, eventualmente, querer saber do que se passa com os outros, coisa
que, ao contrário do que esses pitos supõem, Lacan fez o tempo todo. Se
acompanharmos seus Seminários, veremos que ele estava sempre escandindo,
dentro do discurso teórico de outros, certos comportamentos – na Internacional,
aqui e ali – para estabelecer casuísticamente o máximo de diferença. Isto pode
e deve ser feito. As pessoas, então, estão dando pito sobre coisas erradas. O
sintoma verdadeiro não é este e, sim, que falo pelos cotovelos, aqui, para tentar
manter uma análise do meu não querer saber de nada disso. É o contrário
do que dizem. Na medida em que você lida, o mais longamente e constantemente
possível, com o discurso psicanalítico, digo a vocês que a tendência é o contrário.
É de não querer saber de nada disso – não me encham o saco!
O sintoma que me aborrece não é de tratar dessa ou daquela conjuntura,
aqui e ali. É justamente de mandar tudo às favas... Aquilo que Lacan disse: “Fini,
c’est fini”, acabou a porcaria do Seminário, não falo mais. Este é que é o sintoma.
O que, sintomaticamente, me dá vontade de fazer é isto. Por isso, tenho que sair
sacalmente do meu sintoma e falar essas bobagens, porque é preciso ficar um
pouco atento. É preciso, já que estamos estabelecendo diferenças, falar dessas
diferenças e do processo de denúncia, que não é a mesma coisa que deduragem.
A denúncia é da ordem do poético e de manter uma enunciação viva,
criticando os enunciados que se vê ao redor, seja fora, seja dentro, seja em si
mesmo. Denúncia é aquilo que vigora entre enunciado e enunciação. É uma
tarefa nossa e foi tarefa de Lacan, denunciar o que não é psicanalítico. É
denunciar, no campo das teorias como no campo das práticas em geral, não
para se ficar xingando o próximo, mas para distinguir, para tentar a vigência do
discurso psicanalítico.
Por que, então, vem esse pito? É uma questão, aí, de análise do Colégio.
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Psicanálise & Polética
Digo que – e isto é apenas uma suposição, não estou analisando, estou contando
sonhos –, então sonho que esse pito pode ser o de o sujeito querer estar metido
na nossa, tentando aproximar-se do rigor que tomamos emprestado do Mestre,
mas não querer perder um pé lá do outro lado porque, eventualmente, ele
sarta. É uma coisa rigorosa você estabelecer a diferença e poder dizer: “É
diferente mesmo, e lá eu não caio”. Evitar-se o apontamento dessas diferenças
é, pura e simplesmente, dizer: “Tudo bem, mas não fica falando do outro, etc.,
porque, afinal de contas, tenho amigos lá, posso ter um interesse qualquer
lá...”. Não parece assim para vocês? Ou será que o raciocínio está errado?
Lacan não teve papas na língua. Pegava e dizia as coisas com risco
absoluto, porque sem retorno. Dizer é dizer a tal ponto que não há retorno
possível. E ele fez isto. Quando conseguia dizer, estava dito, lembro-me desta
frase de Kafka, em Fragmentos: “De um certo ponto em diante, não há retorno
possível, urgente é chegar lá”. Isto é que é escansão. Insisto nisto porque sei
que há o jeitinho do nosso meio cultural que é como se diz por aí: “Tudo bem, o
tempo lógico é tão interessante, mas já que é tempo lógico, por que não posso
marcar o horário como anteriormente?”. Não pode porque não há retorno.
Depois que se instalou esta diferença, não há retorno possível. Do contrário, é
manter as coisas em aberto, porque não se quer correr o risco do dizer...
Quando um sujeito recrimina, por exemplo, tipo pito, que eu aponte a
diferença a respeito de uma ocorrência possível com alguém numa Sociedade
qualquer, um determinado caso do qual tenho alguma notícia, por qualquer via,
ele diz: “Você não pode dizer uma coisa dessas”. Por que não? Estou trabalhando
no simbólico quando falo. E se não citei entidades nem nomes, qualquer
deduragem fica por conta de quem quer nomes, e não por minha conta. Existe
hoje confusão a respeito do que possa ser um governo. O mundo está
conturbado. Não estou falando de simples mal-estar e sim de zorra, a estrutura
social na qual vivemos. Tivemos séculos de cada coisa no seu lugar, com mal-
estar lá dentro, mas com uma espécie de saber dominando a situação. Isto não
está havendo mais.
Um dos efeitos disto tem sido a “democracia” que chamo de sovaco.
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Vae Victis
se pode até fazer a psicoterapia nazista. A tal psicoterapia analítica, por exemplo,
é o cúmulo da canalhice. A psicoterapia nada tem a ver com a psicanálise. A
psicanálise nega a psicoterapia. Inventaram até tempo lógico de 20 minutos –
isto é canalhice. Se entendo o que é o tempo lógico, não posso mais fazê-lo
cronológico. Não posso porque é um erro, se não for um embuste.
Coisa séria para quem entra no barco lacaniano, para as pessoas ligadas
ao discurso psicanalítico, é o que Lacan freqüentemente reclamou: “Tentem
não ser iletrados”. Faz parte de um letrado procurar um mínimo de informação
sobre o Outro, informar-se um pouco sobre o que acontece no chamado mundo
– se é que isto existe – para não ficar numa bobeira, que é não só ficar aquém
das descobertas e invenções da psicanálise, mas aquém até mesmo do mundo
quotidiano, o que é tão freqüente.
Se observarmos o que Lacan fez através da sua vida e de sua reflexão
e tomarmos contato um pouco maior com os acontecimentos do chamado mundo,
veremos como não só ele deu passos incríveis do ponto de vista de pensar o
que seja o falante, a psicanálise, etc., mas conseguiu interpretar, a tempo e a
hora, no tempo lógico do acontecimento, o fenômeno mundial. Se prestarmos
atenção veremos que suas invenções como a estrutura da Escola, do cartel, do
tempo lógico etc., não são senão rigor na teoria psicanalítica, ao mesmo tempo
que nos oferecendo, de antemão, ferramentas para serem aplicadas no mundo
ora emergente e que ninguém quer ver.
* * *
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Psicanálise & Polética
verdadeiro hoje em dia. Não é nenhum Juízo Final, como extermínio – é tomar
juízo, afinal. A experiência de Lacan, é uma experiência também. Não estou
dizendo que ele estava lá para fazer isso, pois não era sociólogo nem futurólogo.
Mas um dos efeitos, entre suas intenções de manejo dentro da psicanálise, é
uma experiência prévia diante da mudança – e estou falando de mudança
concreta – na sintomática mundial.
Ele disse: “Não serei eu que vencerei, mas o discurso a que sirvo”. Em
outra ocasião, já havia dito: “Le propre de la psychanalyse n’est pas de vaincre,
con ou pas”, o próprio da psicanálise não é de vencer, babaca ou não. Não se
trata de vencer no sentido competitivo, de ganhar a partida, por convencer o
outro de uma verdade que estaria previamente dada. Portanto, não se trata,
para a psicanálise, de tentar convencer ninguém, nem de ganhar a partida, no
sentido de apoderar-se do poder enquanto discursivo, coisa aliás que a psicanálise
enquanto tal jamais conseguiria.
Quando ele diz: “Não serei eu quem vencerei, mas o discurso a que
sirvo”, o verbo vencer tem aí o sentido de romper, irromper. Ou seja, o discurso
psicanalítico vencerá, junto com o processo. Aliás, é o único que tem condições
para isto.
11/NOV
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NOLI ME TANGERE
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ser ouvida no meio desse burburinho da boa filosofia. Repetindo Lacan, é bem
melhor que ela seja pouco ouvida, senão a boa filosofia, de tão boa que é, de
tão bem intencionada, vai se esforçar ainda por cima para calar essa voz fraca.
A psicanálise não é bem intencionada justamente por saber que as boas
intenções levam direto, para o inferno, para o inferno da filosofia, naturalmente.
Venho falando da Zorra que estaria se instalando no seio disso que
chamamos de social, dessa zorra que nossa época oferece como o chamado
fenômeno histórico. A única arma adequada, aí – do radical inglês arm, como
um braço, talvez, ou ferramenta adequada –, é o discurso psicanalítico. De
outra vez eu dissera mesmo que não adianta ser um jegue-inerme, ainda que
cheio de engenhocas positivas que, se levam depressa a algum poder de
circunstância, não ajudam a cruzar a Zorra. O jegue-inerme é, portanto,
desarmado, ainda que abarrotado de armas eruditas: suas armas não são as
que interessam.
São tempos de burro analítico, embora mal armado, até como um
Mallarmé, mas armado assim mesmo, de qualquer modo. Dizer que o discurso
psicanalítico é a chave certa para atravessar a Zorra não significa que fora da
psicanálise não há salvação. Não é de salvação que trata a psicanálise e, sim,
de transação. No século da Zorra – supostamente é o século em que estamos
entrando –, fora da psicanálise, não há transação... que se agüente. Mas, em
suma, o que permanece é a boa filosofia que, como toda filosofia, é discurso do
senhor, e, como sempre, oferecendo salvação. Oferta que ela faz girando em
círculos, que é o que ela pode fazer. Girar em círculos é o que define a revolução:
toda revolução acaba em devolução. Entre nós, a Revolução de 64 está passando
à Devolução de 82. Em breve, teremos completado a devolução: 18 anos, isto
é normal, é tempo de maioridade no sistema.
Tanto numa quanto noutra, não é a voz fraca do novo discurso – novo
que eu digo é o nosso – que será chamada para se ouvir. Quem vai chamar por
nossa voz não é a boa, filosofia. Por que haveria de reclamar a presença do
discurso psicanalítico quem está numa boa? Não há o menor motivo. Quem
vai, talvez, chamar, senão reclamar por outra voz, são os filhotes da Zorra.
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* * *
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Noli Me Tangere
nos fazer acreditar que está se passando para uma outra. Não vou dizer que não
haja senhores mais ou menos elásticos, depende para quem...
Darcy e Paulo Alberto, embora não tenham declarado formalmente os
fatos que digo, declararam ter tido forte influência de um sujeito que é um dos
poucos que aponto como meu Mestre: Anísio Teixeira. Darcy repetiu várias
vezes a influência que Anísio teve sobre ele. Afinal de contas, a Universidade
de Brasília saiu da cabeça de Anísio e não da de Darcy.
Anísio era professor, e foi uma figura extremamente importante no
meio educacional e cultural brasileiro, inclusive com muito poder em certos
momentos. Mas ele conseguiu manter uma relação meio distanciada com o
Poder, a ponto de conseguir continuar digno. Nunca foi ministro, por exemplo,
porque não aceitava certas barganhas, nem certos cargos. Ele era uma pessoa
extremamente cautelosa, extremamente brilhante, extremamente culta,
extremamente inteligente, extremamente ativa... e tinha algo de desbundante.
Quando conheci Anísio, ele já era velho. Tive o privilégio de ter trabalhado
com ele no Centro de Pesquisas do falecido INEP, Instituto Nacional de Estudos
Pedagógicos, de ter sido seu aluno na Universidade e, depois da Revolução, com
aquelas pressões, etc., ele se afastou e tive o privilégio de conviver com ele em
seus sete últimos anos de vida. Todas as quartas-feiras, eu passava três, quatro,
cinco horas conversando com ele, numa sala de editora onde ele trabalhava. Eu
era uma espécie de discípulo e, digo mais, havia ali algo de análise. Ele me
deixava falar horas e horas e me dava umas cortadas de vez em quando: a
chamada porradinha que botava as coisas no lugar. Anísio era um sujeito que era
amigo de Oswald. Foi a pessoa, não sei se vocês psicólogos sabem, que trouxe a
Gestalt para o Brasil. Foi o primeiro a introduzir os autores da Gestalt aqui.
Ficava todo mundo deslumbrado em São Paulo, contava ele... Até Oswald ficava
babando na gravata, achando que dali podia tirar alguma coisa.
Ele convivia com os artistas, os poetas da época, vivia metido com
jovens de 20, 30 anos, ao mesmo tempo que era Secretário de Educação da
Bahia, fazendo a Escola Parque, querendo virar a Nação de cabeça para baixo.
Ele tinha sido discípulo de John Dewey e tentava implantar a tal democracia
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Psicanálise & Polética
americana nova, porque da democracia americana ele não gostava. E ele tinha
alguma coisa diferente aí pelo meio que, para mim pelo menos, hoje, passado
muito tempo, dá a impressão de uma espécie assim de destino lacaniano.
Vocês devem se lembrar que, na televisão, Darcy Ribeiro disse que
era muito difícil trabalhar com ele. Ele estava repetindo a críitica que sempre
escutei fazerem a Anísio, de que ele era um sujeito que tinha milhares de
pessoas ao redor, ele era extremamente lógico, seu projeto de trabalho era
extremamente bem traçado, mas ele degringolava as coisas ao mesmo tempo
que as fazia. Essa crítica me pareceu, desde aquela época, ser uma incapaci-
dade de as pessoas lidarem ao mesmo tempo com o sistema e com um discur-
so que o desbundava de certo modo.
Quer dizer, havia alguma coisa de presença do discurso psicanalítico
na fala de Anísio. O que era uma coisa estranhíssima porque muitas vezes ele
estava falando comigo e eu lhe dizia: “Isso é Freud, isso parece Freud”. E ele
arrasava com Freud, mas o Freud que ele citava era aquele parecido com o da
PIPA, o qual justamente ele criticava. Nesse tempo eu não tinha Lacan para
apontar para ele.
Ao mesmo tempo, então, que exercia os cargos, metido na educação,
etc., ele não aceitava os anqüilosamentos. Uma frase sua que foi citada por
Darcy: “Não tenho comunismo como idéia”, isso era uma coisa que ele sempre
dizia. Quer dizer, ele não tinha o comunismo como enunciado, para ele, era
preciso remanejar, o tempo todo. No meio daquele pessoal, aquele velhinho
pequenininho, que parecia um mosquitinho, era o mais jovem da patota.
Uma vez lhe perguntei – e só vou contar isto porque, como vocês vão
ver, é muito ambíguo – por que, naquelas alturas em que vivia, com aquele
saber todo, etc., dava atenção a um caipira feito eu, jovem, que não estava
sabendo das coisas, por que perdia tanto tempo comigo. E ele me disse uma
coisa que, das duas uma, ou é elogio ou é gozação: “Conheço muitas pessoas
inteligentes, há pessoas extremamente inteligentes na minha vida, mas você é
uma pessoa que, além de ser inteligente, tem espírito”. Isto não quer dizer
nada, fiquei com a minha cabeça rodando, mas aí vem a segunda parte, o
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equívoco: “Só conheço duas pessoas que, além de inteligentes, têm espírito” –
não sei se ele estava se referindo apenas a uma faixa etária –, “você e o Paulo
Alberto”.
Já disse que não conheço o Paulo Alberto, talvez o Artur da Távola
seja outra pessoa... O que está me interessando aí, é justamente que ele faz
distinção entre inteligência e espírito. Eu não sabia o que era isso, não fazia
a menor idéia. Hoje, faço. Talvez ele quisesse se referir a essa dicotomia que
encontramos no percurso deste semestre. Afinal de contas, os homens podem
ser inteligentes, mas só o feminino tem espírito. Quer dizer, transar o discurso
para além da inteligência, talvez seja um pouco de espírito, talvez seja isto que
ele quis dizer.
Dei esse exemplozinho apenas para indicar isso, porque, na televisão,
pareceu que é uma boa entrar naquele partido... Só estou chamando atenção
para o fato de que se deve escutar cautelosamente porque não há ali chance
para o discurso que estamos colocando. Na verdade, aquilo é um exemplo vivo
do retorno da boa, da boa filosofia, em termos de revolução e devolução.
* * *
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* * *
Pontilhei esse percurso com uma palavra que nunca expliquei – e nem
sei se posso fazê-lo –, que é DIFEROCRACIA.
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Não me consta que Jesus Cristo falasse latim, mas quando ele levanta
da tumba, na chamada Ressurreição, encontra Madalena – logo quem! – que
corre em sua direção e ele lhe diz: “Noli me tangere”, não me toques.
Isto é uma proibição? Por que “não me toques”? Para não se sujar? Por
mais santa que ela se houvesse tornado, havia sido puta. Alguns disseram que
foi por isso. De modo algum, embora isso possa sujar, não é de impossível que se
trata. Quando se diz “é proibido tocar”, é porque é impossível tocar. Se não o
fosse, não precisava proibir. É impossível tocar o quê? Tocar o Outro enquanto
tal, ou melhor, tocar o furo do Outro. Como é impossível tocar o recalque originário.
É impossível tocar a fundação de real, simbólico e imaginário, que não são senão
os Nomes do Pai. O Pai Simbólico é o furo – ele é prévia e definitivamente
morto. Ele só retorna, e simbolicamente, para dizer: “Não me toques”. Tanto é
que, no mito de Jesus Cristo, ele leva tempo para se reimaginarizar o suficiente,
virar fantasma, entrar no meio dos homens e aí deixar tocar as chagas. Há
aquele Santo duas vezes imbecil, uma vez porque não acreditou, outra porque
tocou o imaginário e achou que estava tocando o simbólico.
O que é proibido tocar não é bem a mãe. E agora é hora de falar baixo,
pois a mãe, justamente por ser a mãe, já foi tocada. Maior que a intimidade entre
um homem e uma mulher, nomeadamente entre um pai e uma mãe – se existe o
tal pai, se é localizável – é a intimidade entre a mãe e o filho. Portanto, impossível
não tocar a mãe. O que é proibido tocar, porque é impossível, é o pai. O pai,
como fundação do simbólico, não o senhor dito pai de fulano ou de sicrano.
Cultura é metáfora, uma das metáforas possíveis da função paterna, a
qual é que, ela sim, é metáfora fundadora. A base dessa metáfora da cultura é
o genitivo: “É proibido tocar o que é do pai”. Mas o que é do pai não é
fundamentalmente proibido, pois não é do impossível. O que é proibido é tocar
o pai simbólico, pois que ele é impossível de ser tocado.
A proibição do incesto é estrutural sim, Lacan insiste. Mas por tudo o
que ele próprio articulou em seu pensamento, posso dizer que o que ela designa,
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PIPA que não me deixa mentir. No máximo virou empresa, não conseguiu nem
ser bom partido. A psicanálise já elegeu alguém? A Umbanda elege.
Não temos essa experiência senão, digamos por exemplo, na tentativa,
de Lacan, de fundar uma instituição que nem por isso tivesse que ser careta,
meramente magistral. Ele fracassou, mas deixou sua experiência por aí para
ser considerada. Afinal de contas, quando se funda uma Escola tal como ele
fundou, é na tentativa de, mesmo do ponto de vista institucional, fazer vigorar
o discurso psicanalítico. O que faria, segundo o próprio Lacan, que aquilo fosse
uma anomalia, um anomos. Isto é, uma heteronomia, uma heterofagia, uma
heterossexualidade em vigor.
Mas a barra é muito pesada, pois ao redor está todo mundo cercando,
e as prebendas dos de fora são muito boas. Não há nenhum messianismo
nessa tentativa. Lacan não estava cumprindo nenhuma missão. Trata-se
simplesmente da experiência de lidar com essa coisa que parece estar
emergindo espontaneamente no campo do Outro. Se o ser falante é
dependente do simbólico, é de se esperar que, as fechaduras não sendo
assim tão bem trancadas, de algum modo a coisa venha a sofrer um
crescendo, mesmo uma explosão. Maud Mannoni, por exemplo, falava de
institution eclatée...
Se o cartel, outra invenção de Lacan, for trabalhado tal como pensado,
não tem condições de se estratificar. Mas é muito difícil, reconheço, as pessoas
abandonarem a idéia de que o cartel tem que fazer grupo. Esta idéia está tão
ferrenha nas cabeças, que há grupos que dizem coisas como: “Não é possível
trabalhar tal assunto no cartel porque há dois que pensam uma coisa, três que
pensam outra, e não se aceitam”. “Não se aceitam”, aí, indica algo que não
está sendo dito. “A gente marca reunião e as pessoas não vão.”. Está todo
mundo imbuído da idéia bem empresarial de que o cartel é uma espécie de
operação de lucro ou salvamento. Não é não. Não tem a menor importância
um sujeito não ir. O cartel existe assim mesmo. Basta a possibilidade de
enunciação, inclusive essa de apontar que o cartel não dá certo, de que o
sintoma está lá, e o sintoma que está lá é o do grupo.
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Noli Me Tangere
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Noli Me Tangere
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Ensino de MD Magno
SOBRE O AUTOR
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Ensino de MD Magno
ENSINO DE MD MAGNO
3. 1977/78: Rosa Rosae: Leitura das Primeiras Estórias de João Guimarães Rosa
3ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1985. 220 p.
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Psicanálise & Polética
8. 1982: A Música
2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 329 p.
13. 1987: “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, Ainda // Juízo Final
Publicados em O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio
de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p.
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Psicanálise & Polética
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Formato
16 x 23 cm
Mancha
12 x 19 cm
Tipologia
Times New Roman e Amerigo BT
Corpo
11,0 | 16,5
Número de Páginas
562
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