POSFÁCIO Alteridade Literal PDF

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JEAN ALLOUCH

A Alteridade
Literal
Posfácio 2021 Letra a Letra
Jean Allouch (1984), Lettre pour lettre, Transcrire, traduire, translittérer, seguido de
L’altérité littérale (posfácio, 2021), Paris, Epel, 2021.

Sumário

A ALTERIDADE LITERAL ....................................................................................................................................... 3

DO ESCRITO NA ANÁLISE ....................................................................................................................................... 3


Demonstração algébrica, demonstração icônica ...................................................................................... 4
A alteridade literal ................................................................................................................................................... 7
Dois exemplos ........................................................................................................................................................ 14

MUTAÇÃO EPISTÊMICA ........................................................................................................................................ 17

NECESSIDADE VERSUS CAUSALIDADE ....................................................................................................... 22

POTÊNCIA DA IMAGEM ........................................................................................................................................ 27


O despertar, a vigília ........................................................................................................................................... 28
Freiheitsdrang ......................................................................................................................................................... 30
Do fantasma ............................................................................................................................................................. 35

SOBRE A ENCARPAÇÃO ........................................................................................................................................ 40


A ALTERIDADE LITERAL

Mais de trinta anos depois de sua publicação, a presença nas livrarias de uma obra
que ficou durante muito tempo inacessível, deve ser tomada como um retorno de... E
não então como um saudosista, senão nostálgico e enganador, retorno à... Não uma
repetição, e sim uma retomada. Também me dedicarei, neste “Posfácio 2021”, a
revisitar, a ponderar certas posições até então sustentadas, considerando o que,
nesse intervalo, surgiu em minha leitura de Lacan, e que participa desses retoques
[repentirs] tratar-se-á de pintura [peinture]). Recusar que a interpretação seja uma
resolução para uma palavra insensata, dar outro valor à imagem, reduzir o alcance
atribuído à causa, limitar a relevância do objeto nas mentes e práticas, exercer a
análise sem jamais excluir que o analisante possa ter exercido sua liberdade (que ele
possa igualmente exercê-la durante sua análise), reavaliar o problema do despertar,
não mais negligenciar a incidência da vontade ao lado do desejo, são todos traços
suscetíveis de inflectir o exercício analítico tal como ele se exerce ainda hoje sob a
dominação de um pensamento pretensamente “lacaniano” da intersubjetividade e da
“estrutura”.

A LITERALIDADE foi primordial no que hoje é visto como um percurso por alguns
de meus leitores, os quais me assinalaram. Letra à Letra (1984)i buscou esclarecer
tornando mais explicito o que se entende por “clínica psicanalítica”, limitando a
incidência muito ampla e assim imprecisa da tradução – aliás um emprego que foi
valorizado não sem excelentes razões, embora parciais. Com esse fim, propus
situar a tradução no centro de um ternário: transcrever, traduzir e transliterar, que
distinguia três diferentes maneiras de escrita – ou seja, do som, do sentido e da
letra, respectivamente. Em Lacan, a clínica analítica é uma clínica do escrito.

DO ESCRITO EM ANÁLISE

Com os recursos do alfabeto latino, como se expressa o nome próprio daquele que
foi um dos grandes mestres do taoísmo? Duas soluções se leem nos textos eruditos
ou populares, conforme escolhemos nos basear no som ou na letra. Escreve-se
“Chouang-tse” quando se elege o som, “Zhuangzi” quando se prefere a letra
(adotando a convenção internacional pinyin). No primeiro caso transcreve-se, no
outro translitera-se. Uma ou outra escolha são indicadores de certa relação à
língua chinesa falada, ideografada (chinês clássico). Gozo e saber não estão aí em
jogo da mesma maneira: a transcrição permanece ligada à voz, a transliteração a
dispensa. E claro ninguém pensa em traduzir esse nome, pois um nome próprio
enquanto tal não é portador de nenhum sentido e, portanto, não se presta a ser
traduzido. Traduzi-lo é trai-lo, e às vezes, é uma maneira de se zombar de quem o
porta.
A citação de Freud a seguir, escolhida entre várias outras igualmente significativas,
deixa entrever certa oscilação na teorização, assim como uma última palavra
oferecida à tradução (reforçada por duas ocorrências de “conteúdo” [Inhalt]):

Os pensamentos do sonho e o conteúdo do sonho nos aparecem como duas


apresentações dos mesmos fatos em duas línguas diferentes: ou melhor, o
conteúdo do sonho nos aparece como uma transcrição (Übertragung,
transferência) dos pensamentos do sonho em outro modo de expressão, cujos
signos e regras só podemos conhecer quando comparamos a tradução
(Übersetzung) e o original 1.

Seria pertinente denominar «tradução» essa passagem de um a outro conjunto de


signos? Freud suspeita da existência dessa dificuldade, nem que seja pelo fato de
empregar dois termos nessa mesma proposição: Übertragung e Übersetzung. Ou de
maneira geral: o que então torna necessário, para que adquira consistência o conceito de
tradução, recorrer a esse registro que faz com que se louve ou se condene uma tradução
pelo motivo de que ela seja considerada como literal?

A tradução parte do sentido, inicialmente lido e assim sabido, capturado na língua


de origem, nesse mesmo sentido transportado para a língua de destino (Umberto
Eco, prudente e vago, propõe ao tradutor exprimir “quase a mesma coisa”). Não há,
de partida, nenhum sentido quando se está prestes a decifrar o que quer que seja
que, já de início assinala por alguma bizarrice seu estatuto de cifra. A transliteração
não parte do sentido; ela o dispensa; ela diz respeito não tanto ao significante ou
ao signo, mas à cifra, reconciliando assim notadamente com a maneira pela qual
Freud analisava os sonhos na Traumdeutung – o sonho interpretado como um
rébus (Bilderschrift) é ali assim decifrado. Podemos ir verificar (Letra a letra se
dedicou a isso) que cada uma das retomadas2 por Lacan dos casos de Freud e de
outros (até “Joyce o sintoma [sinthome]”) consistiu em revisitá-los lendo-os com a
ajuda de uma cifração (um matema) de sua própria autoria. A operação se releva
heurística: esses matemas convidam Lacan a colocar certas questões a respeito do
caso que seriam inconcebíveis sem eles.

Demonstração algébrica, demonstração icônica

A despeito deste alcance heurístico, a transliteração permanece na sombra,


inclusive ali mesmo onde a praticamos. Não somente entre os antiquistas e os
especialistas do código genético (que frequentemente preferem os termos
“transcrição” ou “tradução”), mas também na matemática. Dominique Bourn 3,
matemático, se interessou pelos escritos e desenhos de Pierre Soury publicados

1 Sigmund Freud, L’Interprétation des rêves [1926], trad. Ignace Meyerson, Paris. PUF, 1967, p.241.
2 Pelo menos para algumas.
3 Dominique Bourn, “Tresses et détresses; voiler/dévoiler” (Tranças e sofrimentos; velar/desvelar),
conferência ministrada por ocasião do Colóquio « Lacan, le moment Soury » (Lacan, o momento Soury), École
lacanienne de psychanalyse, Paris, 26-27 de setembro de 2020.
por Christian Léger e Michel Thomé nos três espessos volumes de Chaînes et
noeuds 4. Bourn notou inicialmente que a relação texto/desenho era muito peculiar
nessas páginas, pois o desenho habitualmente serve para ilustrar ou como simples
suporte. Em Soury “parecem, ao contrário, ter a vocação de significar por si
mesmos” (itálico de Bourn). Assim se encontrava colocada a questão “de um rigor
bidimensional”, enquanto que, na escrita de tipo clássico, a prova se apresenta “sob
a forma de um texto linear ou então extremamente linearizado”. Bourn
fundamentou essas observações com a ajuda de um exemplo que retomarei aqui,
por serem suas consequências tão decisivas no que concerne à teoria da
demonstração. Trata-se, então, de um trapézio cujos vértices são denominados de
a, b, c, d. E ω o ponto de intersecção das diagonais.

Busca-se (de)monstrar que os triângulos aωc e bωd têm a mesma superfície, isso
que a fórmula algébrica do cálculo da superfície do triângulo não permite [ A =
(b.h)/2, onde b é a base e h a altura adjacente], pois não se conhece nem sua base,
nem sua altura. “O recurso à fórmula algébrica é inibidor”, escreve Bourn, “um
impasse”. Em contrapartida, uma solução se apresenta, que vem dos antigos
Gregos, que sabiam que dois triângulos tendo uma mesma base e cujos vértices
estão situados em uma linha paralela a essa base têm a mesma superfície. Por
conseguinte, os triângulos acb e adb têm uma superfície igual. Se subtraio do
triângulo acb o triângulo acω, obtenho o triângulo aωb. Se do triângulo adb
subtraio o triângulo dωb, obtenho igualmente o triângulo aωb. Ora, se de dois
valores iguais subtraio um valor desconhecido e cujo resultado dessas duas
operações é idêntico, então os dois valores subtraídos são iguais. Portanto aωc =
bωd. CQFD (C’est Qu’il Fallait Démontrer [O que era necessário demonstrar]).

Esse raciocínio bidimensional 5, Bourn o denomina de “fórmula icônica”, diferente


pois da solução algébrica. “Mensuramos melhor, acredito, prossegue Bourn, com
esse exemplo em que a fórmula algébrica mascara, ofusca, abafa uma solução
ultrarrápida e ultraeficaz fornecida naturalmente pela fórmula icônica que foi
desqualificada e esquecida.” Duas escritas operam aqui para uma mesma
demonstração, o que me conduziu a colocar uma questão para Bourn sobre sua(s)
possível(eis) relação(ões), tendo em mente a ideia de que essa relação poderia ser
uma transliteração. Quando então fico sabendo, surpreso, que esse problema tem
ocupado atualmente os matemáticos.

4 (Cadeias e nós). Esses volumes podem ser encomendados junto a Michel Thomé.
5 Ei-lo aqui desdobrado: se de duas quantidades iguais abc e abd subtraímos de cada uma delas uma
quantidade desconhecida e o resultado é o mesmo para as duas, então cada uma das duas quantidades é igual à
outra: aωc = bωd.
As coisas chegam ao ponto em que um pouco mais de culhão e de desembaraço em
relação à Lacan teria podido (devido) me fazer escrever – e teria sido mais
eloquente – “a cifra representa o sujeito para outra cifra. ” 6 Pois, mais claramente
do que o significante, a cifra está ajustada à estrutura formal S1 → S2. Uma cifra não
está ela própria voltada para seu sentido ou sua significação, nem tampouco para
seu suposto referente. Ela apresenta-se, de início, opaca, ilegível; diferentemente
do significante, ela é ostensivamente enigma. Ela interrompe o fluxo; como com um
significante, não se pode passar rapidamente acreditando tê-lo lido ou entendido
sem precisar se questionar mais a respeito. Tanto é que podemos nos perguntar se
Lacan já não teria em mente a cifra quando produziu o matema S1 → S2.

Até aqui ainda não a havíamos percebido e Lacan não a observou, mas essa
estrutura oferece seu lugar à magia, em particular aquela que evocamos quando
constatamos certos efeitos produzidos pela descoberta de uma homofonia, “l’effet
yau de poêle” 7, como se diz para zombar o primeiro Lacan (poderíamos também
criticar a poesia em seu conjunto – exceto o verso livre -, como Boby Lapointe, Jean
Tardieu8 e muitos outros, assim como o jornal Libération). Ao se questionar sobre
a eficácia dos signos, Alain de Libera escreve:

A hipertrofia do significante, a inflação dos signos, as “milhares observações – ou


observâncias – insanas” (inanissimarum observationum) que fazem o ordinário do
encantamento do mundo têm uma única fonte, o erro que consiste em acreditar
que “é em razão de seu valor que se reconhece os signos”, quando, ao contrário, “é
fazendo certas coisas dos signos que se os faz valer” (II, XXIV, 37)9.

Tendo em vista a palavra escrita “significante”. Ela se mantém de pé, tal como um
edifício isolado sustentado em seu interior por três pilares, seus três [i] – a vogal
reconhecida como sendo a mais fechada dos “graus de abertura” (da mais aberta à
mais fechada: [a], [é], [ê], [i]. “Significante” é estável, convida a habitá-lo, enquanto
que a cifra é como um e com acento agudo (o [é] “vogal anterior não arredondada
semiaberta”)10. O circunflexo desse outro [ê], de alguma forma, o mantém no lugar.
[ê] convida a olhar o que estava escrito antes. O [é] semiaberto faz ir mais longe 11.
Uma vez reconhecido ter que enfrentar uma enigmática cifra (o que de início não
sabemos ler, mesmo sabendo que não o sabemos) e, salvo que se perca a voz,
somos dirigidos para outra cifra como em espera e que falta descobrir (o S1 foi

6 Enquanto o signo (versão Lacan) “representa algo para alguém”. Para uma abordagem menos abrupta do
signo em Lacan, nos reportaremos ao artigo de Mayette Viltard “Parler aux murs. Remarques sur la matérialité
du signe” (Falar com as paredes. Observações sobre a materialidade do signo), L’Unebévue, nº5, Paris, 1994.
7 François George, L’Effet ‘yau de poêle de Lacan et des lacaniens, Paris, Hachette, 1979. Um exemplo foi
discutido na Escola Freudiana, que lembrarei mais adiante.
8 Jean Tardieu, Um mot pour un autre (Uma palavra por outra), Paris, Gallimard, 1951.
9 Alain de Libera, “La face caché du monde » (« A face escondida do mundo »), Critique, nº 673-674, juin-juillet
2003, « 2000 ans de magie » (« 2000 anos de magia) (as citações reenviam à De doctrina christiana d’Augustin).
10 Agradeço aqui Isabelle Simatos que, quando a consultei, compartilhou comigo esse pedacinho de seu saber
fonológico.
11 A oposição fechado/aberto reenvia ao espaço entre a língua e o palato. O [è] aberto deixa um espaço entre o
palato e língua, essa última se expondo assim a ser mais facilmente cortada. O mesmo ocorre para o [o]: chose
[coisa] pronunciada por um parisiense da gema vale como fechado, enquanto que o sotaque meridional marca
uma abertura para “chose”.
declarado “o começo do saber 12”); assim nos vemos solicitados, convidados,
levados a considerar a flecha. Tomada sozinha (o que permanece sem nenhum
interesse) uma cifra se escreve: c →? É, se quisermos, um significante – se não fosse
porque ele estivesse “rebaixado ao signo13”, ou à cifra – já tendendo, não em sua
significação, seu sentido ou seu referente, mas à outra cifra; assim ele convida seu
leitor/decifrador a proceder um pouco como um campeão de esqui a atravessar
um portal em uma competição de slalom especial (onde os portais são muito
próximos uns dos outros). Nesse atravessamento, o esquiador hábil, ágil, já tem em
vista a maneira pela qual vai negociar com o portal seguinte. Da mesma forma que
esse esquiador só sabe com certeza que de fato atravessou um portal depois de ter
atravessado o seguinte, assim também o sentido alojado silenciosamente em uma
cifra só surge depois do reconhecimento dessa outra cifra, cuja eleição depende do
esclarecimento que ela possibilita à primeira.

A alteridade literal

E eis que recebemos agora (2019) de Michel Foucault uma notável confirmação
dessa ênfase lacaniana então dada à escrita da letra14. Um único gesto de Foucault
matou três coelhos com uma única cajadada. Ele foi apresentá-lo na Tunísia, entre
meados dos anos 1960 e início dos anos 1970. Sua proposição esclarece quatro
problemas que até ali permaneciam sem resolução, embora muito já havia sido
escrito a respeito: a loucura, o estruturalismo, a literatura moderna e a análise
literária contemporânea. Caracterizar com um só traço esses quatro problemas, foi
o que Foucault fez, e esse traço nada mais é do que a literalidade – certa
literalidade, a que remete a letra à letra, aquela, eu diria, da “alteridade literal”. Ela
mostra discretamente a ponta do nariz quando Lacan denomina seu S2 como “o
outro significante” (sublinho), aquele junto ao qual intervém S1 em um lugar
reconhecido como “lugar do Outro”.

Seja então a loucura. Como para melhor aproximar-se dela, Foucault primeiro a
desaloja do lugar onde foi atribuído seu domicílio (seu encarceramento) nas
sociedades ocidentais modernas: “A assimilação loucura-doença se tornou uma
evidência sobre a qual dormimos tranquilamente”, escreve ele (p. 42). Ou ainda,
marcando sua distância em relação a essa designação da loucura:

O sistema que se manifesta na oposição loucura/razão é totalmente outro do que


aquele que apoia a oposição normal/patológico, saúde/doença (p. 78).

12 J. Lacan, L’insu que sait de l’unebévue s’aile à mourre, in L’Unebévue, nº 21, 2003-2004. (Versão bilíngue
francês-espanhol no site www.ecole-lacanienne.net).
13 J. Lacan, “Radiophonie”, in Autres écrits, Paris, Seuil, 2001, p.413. Esse « rebaixado ao signo » intervém no
seio de proposições de difícil acesso. Lacan afirma aí “ter para a lógica do significante encontrado uma maneira
de romper com a armadilha do signo”.
14 Michel Foucault, Folie, langage, littérature, (Loucura, linguagem, literatura), texto estabelecido por H.-P.
Fruchaud, D. Lorenzini e J. Revel, introdução de J. Revel, Paris, Vrin, 2019. As indicações das páginas no texto
referem-se a essa obra.
A loucura pode então ser objeto de uma observação que explicita de que maneira,
muito própria a ela, ela se exerce na (e com a) linguagem. Assim como com a
literatura moderna, avança Foucault apoiando-se notadamente em Artaud,
Roussel, Blanchot, Robbe-Grillet e alguns outros15, a loucura atenta contra a língua
enquanto código 16 (p. 105); a fala reconhecida como louca (e/ou literária) põe a
língua em perigo. Como? Tendo em si mesma sua cifra (p. 106). Enquanto tal, a
loucura não recorre ao código comum, e sim veicula seu próprio código na sua fala
(um pouco como o amor, eu acrescentaria, uma alusão à “linguagem privada” dos
amantes, aquela que, enquanto cúmplices, somente eles entendem):

A loucura não obedece a nenhuma língua (e é por isso que é insensata); mas
contém seu próprio código nas falas que pronuncia (e é por isso que tem sentido)17
(p.120).

“Insensata”: quase sempre, não se dá suficiente atenção à que tipo de resposta faz
apelo uma declaração “insensata” – enquanto que Foucault parece aqui in fine dar
sentido a essa fala, embora considerada não ter nenhum. O que seria acolher, e não
recolher, uma fala insensata? Justamente, “fala” não convém, e podemos aqui
lamentar que Jacques Lacan, no momento em que se interessava pelo furo do
simbólico, não acreditou ser oportuno voltar à ênfase colocada, muito antes, na
“fala plena”, em contraste ou mesmo em oposição à “fala vazia” que lhe serviu de
contraponto 18. Cada fala louca é uma declaração no sentido em que se declara sua
amizade, seu amor, seus pecados ou ainda os direitos do homem. Essas declarações
“loucas” são outros tantos performativos cuja maneira tão específica não foi levada
em conta por um Austin tão envergonhado, no entanto (como observamos), com
sua descoberta (desmentida no final da obra). Quando Artaud declara ao
interessado: “Mudamos Breton19” depois que Breton negou o que acabava de lhe se
dito (uma fala julgada por ele como insensata, ou seja, que ele teria atacado com
tiros de metralhadora o cárcere onde Artaud estava encerrado), esse dizer remete
a um evento que realmente aconteceu – sua mudança. Breton não a percebe,

15 Uma observação a respeito de Robbe-Grillet torna sensível essa mudança que Foucault descreve e que
constituiu, segundo ele, a literatura moderna (reler “La pensée du dehors” (“O pensamento do exterior”, 1966),
Dits et écrits (Ditos e escritos), Paris, Gallimard, 1974, vol. I, p. 518-539): enquanto que Balzac descreve o
contexto extralinguístico da obra, Robbe-Grillet começa Le Labyrinthe (O Labirinto) com um simples “aqui”,
sem que jamais se tenha dele nenhuma outra explicitação (p. 188). Um rumor relata que Marguerite Duras
tendo proposto à Éditions Minuit um manuscrito que havia intitulado Destruir, Robbe-Grillet, que então
trabalhava como revisor para essa editora, modificou o título: Destruir, diz ela. Ela? Esse “ela” é da mesma
ordem que o “aqui”, em uma época onde Duras sempre escrevia “diz-se”, deixando seu leitor se virar com sua
questão “lacaniana”: “Quem fala? ” uma questão, sem dúvida, deslocada nesse sentido que respondê-la seria
remeter essa escrita “moderna” (Foucault) ao universo balzaquiano.
16 Foucault também se explica a respeito notadamente em “Philosophie et psychologie” (“Filosofia e
psicologia”, 1965), in Dits et écrits (Ditos e escritos), vol I, op.cit,.
17 Os termos “língua”, “fala”, “linguagem” não têm aqui o sentido que lhes atribuiu a linguística, que serviu de
referência a numerosos autores de outras disciplinas – dentre os quais Jacques Lacan. Veremos mais adiante, a
respeito de Roland Barthes, como Foucault toma explicitamente suas distâncias desta linguística e do amplo
uso de seus conceitos.
18 “Fala vazia e fala plena na realização psicanalítica do sujeito”: título da primeira parte de “Função e campo
da fala e da linguagem” (J. Lacan, Escritos, Rio de Janeiro, Zahar, 1998, p.248).
19 Gérard Mordillat & Jerôme Prieur, La Véritable Histoire d’Artaud le Mômo (A Verdadeira história de Artaud,
le Mômo), Bazas, Le Temps qu’il fait, 2020, p. 50.
embora a tenha manifestado em sua resposta. A fala vista como insensata... tem
razão. Ela é, além do mais, portadora de uma exigência que se presta a ser
formulada nos termos de Lacan: “que se diga” (“alguém” [on], não Artaud) não fica
esquecido naquilo que é dito20 - o que, propriamente, define a declaração. Artaud
não diz que seu ponto de vista sobre Breton mudou; nem tampouco que Breton
mesmo mudou. Sua frase, no neutro, é um constativo.

Contudo, eis que, ao decifrar uma frase insensata, a tentação hermenêutica de lhe
atribuir um sentido é grande, dito de outro modo, lhe dar as costas (desconhecê-la)
enquanto insensata. Esse é o erro que veicula o deciframento mais aplicado aos
enunciados que todavia são reconhecidamente insensatos, um erro, ou uma falha
na qual Freud não se precipitou (e tampouco Lacan, embora de outra forma, só de
passagem) pois soube distinguir esse ponto limite com o qual se depara a
interpretação do sonho (uma “psicose, para falar a verdade, de curta duração21”) e
que nomeou de “umbigo22” [nombril], o ponto “pelo qual o [o sonho] se coloca em
conexão com aquilo que não é identificado23”, o ponto em que é colocado (aufsitz)
como não-conhecido (Unerkannt)24. Muito cedo, Foucault se sensibilizou com essa
auto-implicação da fala insensata, onde nada é ostensivamente dito, com essa
identidade perdida de um sentido, com isso que convém considerar não como uma
provisão de sentido, mas como uma figura que suspende o sentido, que acomoda
um vazio. Por isso, só se pode escutar suas proposições na Tunísia como o
fundamento do que ele já havia dito bem antes 25 (ou escrito em outro lugar)
quando se interessava pela psiquiatria fenomenológica, pela Daseinanalyse, por
certos autores tais como Politzer26 (importante também para Lacan). Eis aqui uma
frase, dita na Tunísia a respeito de Artaud, que tomo como caracterizando também
toda fala efetivamente analisante: “Todas as palavras que Artaud escreve falam
desse vazio, remetem a esse vazio, nascem dele, mas só para se precipitar nele, e daí

20 “Qu’on dise reste oublié derrière ce qui se dit dans ce qui s’entend”. [“Que se diga fica esquecido por trás do
que se diz no que se escuta”] (J. Lacan, “L’étourdit”, in Autres écrits, Paris, Seuil, 2001, p. 449).
21 “Eine Psychose zwar von kurzer Dauer » (S. Freud, Abrégé de psychanalyse [1938], trad. do alemão por Anne
Berman, Paris, PUF, 1955, p. 39 [S. Freud, Esboço de psicanálise, Imago, OCB, Rio de Janeiro, 1975. P. 198]. Bem
ao final desse parágrafo, esse posicionamento do sonho conduz Freud a evocar (fórmula lacaniana) um
tratamento possível das psicoses. Thierry Marchaisse me indica que essa observação de Freud cruza com uma
palavra de Proust que escrevia: “esses períodos passageiros de loucura que são nossos sonhos” (Albertine
disparue (Albertina desaparecida), in À la recherche du temps perdu (Em busca do tempo perdido), Paris,
Gallimard, “Bibliothèque de la Pléiade”, 1989, t. IV, p. 117).
22 Em francês foi traduzido também como ombilic. Esse limitador é evitado pela hermenêutica que admite a
priori que um texto seja inesgotável, que oferece sempre a possibilidade de uma outra e nova interpretação (o
que destacou, depois de Schleiermacher e Dilthey, o filósofo protestante Paul Ricoeur e, recentemente,
Delphine Horvilleur, rabino em Paris, em uma breve e iluminada obra intitulada Le Rabbin et le psychanalyste
(O Rabino e o psicanalista)).
23 S. Freud, L’interprétation du rêve, trad. por Jean-Pierre Lefebvre, Paris, Seuil, 2010, p. 149. [S. Freud, A
interpretação do sonho, Imago, OCB, 1975, Vol. IV].
24 Ibid., Vol. V, p. 568.
25 Pode-se consultar a esse respeito os notáveis e importantes trabalhos de Elisabetta Basso, em particular
seu artigo “Foucault entre psichanalyse et psychiatrie “Reprendre la folie au niveau de son langage” (Foucault
entre psicanálise e psiquiatria “Retomar a loucura à nível de sua linguagem”), Archives de philosophie, 2016/1
(t. 79), pp. 27-54, on-line.
26 Ler ou reler sua Critique des fondements de la psychologie (Crítica dos fundamentos da psicologia), publicado
em 1928, reeditado pela Editora PUF em 1967 e em 2003.
só se escapam no movimento de sua perda. ” Querem disso um exemplo à maneira
das máximas de Diógenes o Cínico ou ainda à maneira dos chistes de Lacan? Eis
uma colegial, um pouco particular sem dúvida, porque, sentada no Bar do
restaurante do Dôme em Paris (no lugar marcado por Artaud27) diante de uma
xícara de café com creme e lendo Montaigne. De repente, uma voz estrondosa
ressoa em seus ouvidos: “Oh! Alguém que lê os Ensaios de Montaigne, vocês se dão
conta disso? ” Eu me desesperaria por meu leitor se ele não se apercebesse a que
ponto essa frase abre um vazio, que parte dele e remete a ele. Em seguida, se
dirigindo aos presentes no ambiente, o orador prossegue com a mesma voz alta,
tão inadequada neste lugar muito elegante e aconchegante: “Adamov28, você se dá
conta, alguém que lê os Ensaios de Montaigne!” Esse vazio, a colegial percebeu-o, a
ponto de logo perguntar a um amigo quem haveria de ser essa pessoa que pôde
dizer isso: “Mas, só pode ser Antonin Artaud. Não vejo ninguém mais que possa
fazer isso. ” O vazio permanecia presente quando, voltando mais tarde ao Dôme, a
colegial aceitou que Artaud se sentasse ao seu lado. Ela pôde então lhe perguntar:
“Mas enfim, me explica por que você me interpelou dessa maneira tão grosseira a
respeito dos Ensaios de Montaigne? ” Artaud: “Eu odeio Montaigne porque ele é um
desses que contribuíram para desesperar o espírito humano. ” Insatisfeita, a
colegial reformula pouco depois sua pergunta: “Mas, essa história de Montaigne,
decididamente, eu não entendi bem o que aconteceu. ” Resposta: “Mas, minha
criança, era preciso que eu encontrasse um meio de te abordar! ” O vazio se renova
ao longo desses intercâmbios teatrais e uma vez mais no momento atual, quando
Marthe Robert (a colegial) os relata em 2020 na obra La Véritable Histoire d’Artaud
le Mômo 29. A obra reporta também (p. 50) uma troca entre Artaud e Breton
(evocado acima) onde esse último, por maior que tenha sido sua genialidade,
responde da maneira mais comum, desconhecendo o vazio da fala insensata que
lhe foi dirigida. Breton esquecido de seu surrealismo.

Dedicar-se a interpretar frases insensatas, a atribuir-lhes um sentido, a inscrevê-


las em uma história não seria negligenciar, ao mesmo tempo esse vazio de onde
emergem, ao qual remetem e onde, uma vez pronunciadas, se perdem?30 A
dificuldade com a qual o analista, a respeito disso avisado, tem que lidar se
encontra aqui com a de Foucault que, fazendo valer “o pensamento de fora”31

27 Artaud que escrevia que a proprietária do Dôme era “uma certa Fanny que se pretendia santa Théophanie
ou a encarnação de Deus” (Lettres 1937-1943, Paris, Gallimard, 2015, p. 87). Nesta mesma longa carta ao Dr
Chapoulaud, o paciente internado descreve o Dôme como um lugar onde acontecem “batalhas graves e
escândalos retumbantes”. Um pouco mais tarde, escreverá para um doutor (não identificado) que a “gentalha
do Dôme [o] trata como mitômano e como perseguido” (p. 94).
28 Adamov, que teve que se empenhar como um diabo para liberar Artaud das mãos do Dr Ferdière, quem o
ameaçava permanentemente com eletrochoques, depois de lhe ter infligido uns quantos. Artaud não dirigiu
nenhum agradecimento a Adamov que, para tirá-lo do asilo de Rodez, havia convocado todas as celebridades
literárias e antiquistas que existia em Paris. Essa abstenção criava, também ela, um vazio. Muito pelo contrário,
Artaud deixava saber seu julgamento irônico sobre um livro de Adamov: da digestão, mas sem estômago.
29 G. Mordillat et J. Prieur, La Véritable Histoire d’Artaud le Mômo, op. cit.
30 Assim como a célebre frase de Ernesto em Ah! Ernesto de Marguerite Duras. A leitura que proponho dela
tenta alcançar esse vazio, do qual se trata acima (Jean Allouch, Transmaître, Jacques Lacan et son elève hérisson
(Transmitir[transmestre] Jacques Lacan e seu aluno ouriço), Paris, Epel, 2020, chap. IV).
31 M. Foucault, “La pensée du dehors » [O pensamento do exterior], art. cité.
(nascido com Sade e Hölderlin no instante mesmo em que Hegel e Kant
desenvolvem seu “eu penso32”) considera que “todo discurso puramente reflexivo
corre o risco (de fato) de continuar a experiência do fora na dimensão da
interioridade”. Blanchot33 soube contornar essa dificuldade, observa Foucault, em
termos que são da mesma ordem daqueles pronunciados na Tunísia em relação à
Artaud. Ali, dizia também:

A loucura, sabe-se bem desde Freud, que é sua fala que detém sua própria cifra (p.
105, sublinho).

Ou ainda a respeito de Freud:

E se pensamos que a doença mental desde Freud voltou a ser loucura [sublinho],
então compreendemos que a consciência crítica da literatura se tornou a partir daí
infinitamente próxima da consciência lírica do louco (p. 122).

Certos freudianos poderiam dar pulos a respeito desse reconhecimento bem-vindo


do deslocamento operado por Freud, objetando que se a loucura “contém seu
próprio código em suas falas”, então se trata do inconsciente, não somente da
loucura. Ao que Foucault poderia retorquir que a loucura joga com a cifra de uma
maneira que não se parece com nenhuma outra (explicarei a respeito mais
adiante). A cifragem inconsciente, por sua parte, explora amplamente o código
comum; a loucura inventa seu próprio código. Esta “auto-implicação”

Consiste em que a língua (ou o código) esteja comprometida na fala, arriscada nela
(supomos que a fala seja agora a detentora de todas as regras do código), e em
troca a fala deve valer como uma língua (p. 105).

Dizer a um vizinho de mesa a frase: “Por favor, me passe o sal”, ou qualquer outra
fala dessa mesma banalidade, não atenta contra a língua; essa fala se contenta em
se exaurir aí, ela se submete aos usos convencionais. O mesmo ocorre com a
produção de um exemplar sintoma “freudiano” reportado por Darian Leader: uma
paciente descreve sua obstinação em esfregar seu braço, “a ponto de arrancar a
pele”34. Tendo visto seu pai em um caixão, ela se recorda ter tocado seu braço tão
frio, que ela o esfregou de maneira a reaquecê-lo, ou até a lhe dar vida novamente.
Não há aí nenhum código novo, ou código no código, mas uma substituição, seu
próprio braço dando lugar ao de seu pai morto.35 Outra é a fala louca. Foucault
propõe um convincente paralelo com o teatro no teatro (Shakespeare, Artaud) que
se apresenta como sendo da mesma fatura. Ele explicita que há aí um traço que ele

32 Jacques Lacan convidou o analista a não pensar (ver minhas Nouvelles remarques sur le passage à l’acte
(Novas observações sobre a passagem ao ato), Paris, Epel, 2019, onde esse convite é apresentado.)
33 Neste dia minha sessão com Lacan estava habitada por minha leitura recente de L’Écriture du désastre [A
Escrita do desastre]. Menciono o perturbador impacto de Blanchot. Resposta de Lacan: “Ele conhece melhor
minha mulher do que eu”, se apercebendo de imediato minha reação de espanto, um pouco incomodado, pelo o
que ele acabava de me dizer...
34 Darian Leader, La Jouissance, vraiment? (O Gozo, efetivamente?), trad. do inglês por Anna Feissel-Leibovici,
Paris, Stilus, 2020, p. 26-27.
35 Ou melhor, sem dúvida, por pouco que o inconsciente se meta, poderia não se tratar de um braço paterno,
mas do órgão ereto desse pai vivo que ela masturbaria.
destaca igualmente na literatura moderna: “A literatura coloca seu código na fala.
[...] ela tem sua cifra em si mesma” (p. 106).

Um código no código, o que quer dizer? O que é então “ter [(a)voir] sua cifra em si
mesma”? O que vem primeiro à mente é a obra de Leo Strauss, A Perseguição e a
arte de escrever 36. Há um “código no código”, nessa maneira de escrever sob
perseguição política, de modo que a censura não encontre aí nada de suspeito,
enquanto que aqueles a quem endereçamos uma mensagem assim discretamente
cifrada e que a esperam saberão lê-la. Foucault, quanto a ele, não pode considerar
outra referência possível, ou seja, os anagramas saussurianos, publicados dez anos
depois de suas conferências tunisianas e que continuam sendo, eles também, um
caso exemplar, a meu ver, do código no código. Lacan reconheceu seu próprio
avanço na exploração saussuriana dos anagramas nesses termos:

Um sonho, isso não introduz a nenhuma experiência insondável, a nenhuma


mística, isso se lê no que dele se diz, e que possamos ir mais longe ao tomar os
equívocos no sentido mais anagramático da palavra. É nesse ponto da linguagem,
que um Saussure se colocava a questão de saber se nos versos saturnianos onde
ele encontrava as mais estranhas pontuações de escrito, era ou não algo
intencional. É aí onde Saussure espera Freud. E é aí que se renova a questão do
saber37.

É aí também que Lacan os esperava à ambos. No mesmo dia (10 de abril de 1973),
convidado por Lacan, Jean-Claude Milner intervém (uma proposição não mantida
pela transcrição da editora Seuil). Milner faz observar que na linguística
transformacional

Não há apenas uma estrutura que estaria copresente nos dados [entender: como
no Curso de Saussure], mas há pelo menos duas estruturas, uma que é observável
que a chamamos estrutura de superfície, e outra ou várias outras que não são
observáveis, cuja estrutura é dita profunda.

É possível que Foucault tenha sido impedido de tratar essas questões mais de
perto quanto teria sido desejado por uma outra abstenção. Ele declarou na Tunísia
querer: “escrever um livro que já tinha escrito no passado e que, bem entendido,
eu deixei passar”. Um livro que ele evoca e que não escreverá (p. 50). Em que
sentido sua História da loucura na idade clássica38 se constituiu – ao escutá-lo –
uma obra “perdida”? A razão disso é que veio no lugar deste outro livro que, como
ele explicita, “me fazia rudemente querer e que teria sido a história dos loucos [...]
sobre os quais, no fundo, nada se sabe”.

Aquilo que foi esse enxame, é isso o que eu gostaria de ter feito e isso foi o que não
fiz. [...] Pude encontrar apenas esse molde oco, de alguma maneira, no qual os

36 Leo Strauss, , La Persécution et l’art d’écrire, Paris, Presses Pocket, 1989.


37 Jacques Lacan, Encore, Paris, Seuil, 1975, p. 88 – os três sublinhados são meus.
38 M. Foucault, Histoire de la folie à l’âge classique, Paris, Plon, 1961.
colocaram, mas sobre eles mesmos, sobre a loucura, sobre os loucos em sua
existência positiva, real, histórica, eu não pude fazê-lo (p. 74).

E sem dúvida lhe teria sido necessário ter aprofundado mais nos arquivos desse
inacessível enxame e ter falado com “eles” que evoca aqui, para estar em condição
de precisar o que ele vislumbrava como sendo um “código no código”. Entretanto,
na Tunísia, há muitas indicações laterais que permitem entrever o que tinha em
mente. À guisa de exemplo dessa fala louca que “provoca uma série de reações, que
não são nem as que correspondem à fala cotidiana, nem as que correspondem à
fala religiosa”, ele convoca e descreve a fala do bufão: provocante, ofende sem ferir,
desprovida de poder está, no entanto, encarregada de dizer a verdade. É uma fala
disfarçada, que “se faz de intermediária de uma verdade que ela mesma não
possui” (p. 37). Igualmente, recorre lateralmente ao personagem do louco no
teatro barroco. Ele também, objeto do qual se zomba, ele engana os outros, brinca
com a seriedade da razão, detém, até certo ponto, “a verdade dessa famosa razão
que os outros acreditam deter”. Ele tem,

por traz do olhar um pouco cego da razão, um olhar mais penetrante que vê as
coisas, que desmascara, que denuncia, que percebe a verdade, que reconhece no
relâmpago cintilante do delírio o que a razão, em seu longo discurso, não consegue
chegar a formular (p. 57-58).

Ele fez também apelo ao teatro de Artaud que “reduz a fala à magia das palavras, a
um tipo de palpitação e de dança macabra”, onde “o que existe não é nem o sentido
nem o espírito do texto, mas o deslocamento de ar que sua enunciação provoca”,
onde o desempenho dos atores fala “uma linguagem muda que não passa pelas
palavras [...] outra linguagem, direta e violenta; uma linguagem, ao mesmo tempo,
augural e divinatória” (p. 101)39. Em Roussel, também ele convocado, as frases
estão submetidas a “explosões fonéticas e os dados sonoros uma vez caídos”
constroem “um novo edifício verbal” (p. 117), os jogos de palavras e suas rupturas
podem fazer nascer o impossível (p. 118)40. O bufão, o louco do teatro barroco,
Artaud, Roussel (dentre outros) sustentam a tese segundo à qual a fala louca, que
detém sua própria cifra, vale “como uma língua” (p. 105).

Esses diversos atentados aos códigos são como que tornados necessários pelo fato
de que uma sociedade impõe limitações ao uso da linguagem (p. 121-122): seu
vocabulário41, sua estrutura, sua gramática e as “condutas verbais” das quais é
indesejável se distanciar, mesmo empregando “uma linguagem correta (por sua
forma, seu ritmo, suas palavras, seu sentido), mas que só obedece em aparência à

39 Tudo se passa como se esses comentários tivessem sido lidos por Patrice Trigano cuja obra Artaud Passion
foi encenada por Ewa Kraska e atuada por William Mesguich e Nathalie Lucas, por ocasião do festival de
Avignon (França) em 2019.
40 Por duas vezes, em notas de página, os editores da obra (H.-P. Fruchaud, D. Lorenzini e J. Revel) observam a
“muito surpreendente ausência de Lacan”. De fato, o esperávamos.
41 Esse vocabulário não ofereceu a Jacques Lacan tudo o que ele necessitava. Ele inventou não menos de 789
“neologismos” (ver Marcel Bénabou, Laurent Cornaz, Dominique de Liège, Yan Pélissier, 789 néologismes de
Jacques Lacan, Paris, Epel, 2002).
linguagem de todo mundo [...] e que só está aberta àqueles mesmos que a
compreendem”. Além da transgressão dessas regras (nas páginas 104 e 105,
Foucault distingue três delas), eu acrescentaria, há outra maneira quase
imperceptível de introduzir um código no código, essa que Jean Genet opera em
seu prefácio a Frères de Soledad42 de George Jackson, membro do Black Panthes
Party. A obra foi escrita na prisão e “na língua do inimigo” (sem a qual o
manuscrito não seria publicado nem, portanto, a obra seria lida), mas ao mesmo
tempo corrompendo-a tão habilmente que os Brancos se deixariam pegar por ela.
O próprio Genet teve que usar essa estratégia ao publicar, ele também, a partir de
sua prisão, para sair dali e para ter dinheiro. Melhor do que qualquer outra coisa,
um detalhe indicará qual foi sua maneira de interpelar seus inimigos ao escrever. A
primeira frase de seu primeiro romance era: “Weidmann vos foi apresentado em
uma edição de cinco horas [...]. ” A gráfica lhe sugeriu mudar o “vos” para “nos”, o
que ele recusou, pois, disse “eu já marcava a diferença entre vós a quem falo e o eu
(moi) que vos fala”. A meditar...

Dois exemplos

A confrontação de dois exemplos permitirá precisar o que me leva a ratificar a


observação de Foucault concernindo a essa fala louca (e/ou literária) que,
dispensando o solo comum de uma codificação disponível 43, carrega com ela seu
próprio código. O primeiro, ao qual já me referi 44 retoma um de meus sonhos de
analisante, aquele de uma placa azul sobre a qual estava representada em branco a
letra H. Com apenas esta descrição, qualquer um vê e sabe do que se trata...45 Essa
cifra se referia ao que, por vezes, está escrito na parte de baixo de tais placas
dispostas nas ruas e nas estradas, ou seja, a palavra “silêncio” situada abaixo do
“H”. Esse sonho muito simples usava uma codificação que reconhecemos como
comum (e mesmo como uma sinalização). Seu relato ao meu analista lhe pedia com
meias palavras que se calasse. Uma mensagem cifrada, portanto, arriscada a não
ser lida por aquele a quem era contado, ou até dirigido. A censura do sonho é
claramente devida ao fato de que eu não me autorizava a dizer francamente à
Lacan: “Na última vez, você teria feito melhor se tivesse ficado em silêncio. ”

E agora, uma interpretação delirante que também já mencionei46. Um certo M.,


hospitalizado em psiquiatria, vendo um enfermeiro que usava um colarinho de

42 Jean Genet, “Préface aux Frères de Soledad», in Oeuvres complètes, t. VI, Paris, Gallimard, 1991.
43 Leitor crítico de uma primeira versão deste posfácio, Thierry Marchaisse recusou essa concepção de uma
“codificação disponível”. Ele objetou que um código no sentido criptológico é alguma coisa que se pode
“decifrar”, um traço que não poderíamos atribuir a uma língua ou a uma linguagem. A objeção se apoiaria em
uma afirmativa universal que não aceitaria a menor exceção? Deveríamos, em nome dessa universal, afastar
toda função de codificação atribuída a cada língua?
44 Aqui mesmo na contracapa de Lettre à lettre, Paris, Epel, 2021.
45 “No esquema comum, [...] sublinhamos que o destinatário deve possuir o código para que a coisa funcione.
Se não o possui, terá que conquistá-lo, terá que decifrá-lo” (J. Lacan, 09 de fevereiro de 1972).
46 Aqui mesmo, p. 224 sq. (Lettre pour Lettre, capítulo VIII: “Du discord paranoïaque”).
celuloide, decifra: “É Lulu Lloyd” [“C’est Loulou Lloyd”]. Uma certa Luluii havia lhe
enviado pela companhia de navegação Loyd (que era, à época, conhecida)47 um
jogo de damas graças ao qual ele preenchia sua vacuidade de hospitalizado.
Enquanto a ligação do “H” e do silêncio estava como que disponível no código
comum, com o que a formação do sonho recorria ao que Lacan chamava, a respeito
de Joyce, às “escadas do depósito”, aqui ocorre de forma diferente. Ninguém, exceto
M., pensaria em ler “é Lulu Lloyd” (S2) na imagem do celuloide (S1). Esta
interpretação não está já como que à disposição no código, acessível ao que quer
que seja ou a quem quer que esteja querendo se apoderar dela. O mesmo ocorre
em relação à ligação, em Schreber, entre os pássaros do céu e as mulheres, ligação
graças à qual, segundo Lacan, Freud teve acesso a “toda a cadeia do texto”, ao que
se chamou “língua fundamental” (no mínimo próximo, senão idêntica, ao que
Foucault indicava com seu “código no código”). Assim como, com Lacan
observando em sua Aimée [Amada]

Esse gosto pela escrita graças ao qual ela apela, como a tantos outros, ao círculo
restrito de pessoas, na falta de uma coletividade maior, para que lhe compensasse
seu fracasso – esse gozo quase sensível que lhe dão as palavras de sua língua –
[...]48.

Me dou conta agora de que, trazida por Letra a Letra, a proposição de cessar de
negligenciar essa relação da cifra com a cifra (na mais condensada e exemplar:
uma transliteração) não era diferente daquela que Foucault, vinte anos antes,
apresentava a seu público tunisiano. Me dou conta também de que eu não soube,
como ele, desenvolver a descoberta.

A página 156 de Lettre pour lettre, (página 122 de Letra a letra) reproduz uma
prancha de Champollion: as correspondências uma vez estabelecidas
(inicialmente, graças a uma leitura sem sentido de nomes próprios de faraós) entre,
de uma parte, o alfabeto grego e, de outra parte, as duas escritas egípcias (hierática
e demótica) permitiram à Champollion ler as frases egípcias, remetendo, ao modo
de Foucault, a um documento no documento.

Há mais aí. Realizando essa performance, Champollion reconectava, sem o saber,


com o que havia sido a alavanca da própria invenção da escrita. Os especialistas
nesse domínio estabeleceram essa tendência, James G. Février em particular49, e o
que ele dizia a respeito, não foi, até onde sei, jamais recusado 50; eles chamaram
essa alavanca de “rébus de transferência”, que nada mais é do que uma cifração.

47 A mesma companhia marítima que levou Freud aos Estados Unidos.


48 Os sublinhados são meus. Ver J. Lacan, De la psychose paranoïaque dans ses rapports avec la personnalité (Da
psicose paranoica em suas relações com a personalidade). Seguido de Premiers écrits sur la paranoïa (Primeiros
escritos sobre a paranóia), Paris, Seuil, 1975, p. 289. Jorge Baños me lembrou a tempo essa citação, a quem
agradeço aqui por isso.
49 James G. Février, Histoire de l’écriture (História da escrita), Paris, Payot, 1948.
50 O que confirmam os trabalhos de Anne-Marie Christin e de Pascal Vernus que acompanharam os primeiros
passos de Littoral (nº 2, 7 e 11-12). Escrito de alguma forma sob suas supervisões, Letra a Letra muito lhes
deve.
Por exemplo, o desenho de um íbis – - que representa o deus Thot, que o torna
presente por ocasião do ritual51. Esse desenho, que existia antes da invenção da
escrita, remetia ao “objeto”, a saber, a esse deus, e ao nome próprio desse deus.
Persistir em ler esse desenho como uma escrita “pictogramática” foi um erro, esse
que Éliane Formentelli denominou de “sonho do ideograma” 52, um erro que
sublinhava também Magritte quando assinalava com seu célebre quadro de um
cachimbo (no qual estava escrita a frase “isso não é um cachimbo”), um “obstinado
abuso de linguagem”. não é um íbis; o desenho do íbis nem voa nem come.
Existe a escrita, a escrita só decola quando esse mesmo desenho serve para
escrever a sílaba “tot” de “Thoutemosis” (um faraó da XIII dinastia) e qualquer
outra sonoridade “tot” presente em qualquer palavra do egípcio antigo. Se a
homofonia intervém, notamos, no entanto, que não se trata de uma escrita fonética,
nem de uma franca transcrição, pois o apoio na homofonia está colocado a serviço
de um jogo de escritas, onde ficam perdidos os encantos do pictograma53. Sua
imagem suprimida, o deus desaparece, o laço se rompe.

Mudamos de um modo de escrita para outro, quando serve senão para escrever
a sílaba “tot”. Suprimindo o valor representativo da imagem, o rébus de
transferência translitera: no exemplo eleito, passa-se de uma escrita
“pictogramática” para uma escrita “silábica”. Como em Champollion, há ganho de
saber e perda de gozo. Qual perda? Dentre outras, a própria beleza do desenho
encontra-se erradicada pelo efeito do rébus de transferência. Não servindo mais do
que para escrever “tot”, o desenho do íbis acaba por se simplificar, por se perder
até se tornar irreconhecível na escrita demótica.

Não deixa de ser notável que o mesmo ocorre com certos sintomas. Como uma
fobia de pequenos botões (o exemplo foi discutido no seio da Escola Freudiana de
Paris) suscita, em uma criança, uma preocupação concernindo ao que lhe disseram
ser “teu pequeno pedaço”. A imagem fóbica do pequeno botão (phobos, medo,
pavor) funcionava como a do íbis antes de sua retomada pelo rébus de
transferência. E assim como a do íbis foi suprimida, “apagada” dirá Lacan, como
imagem que serve para escrever “tot”, assim também a do pequeno botão perde

51 Por qual razão essa precisão: “durante o ritual”? Eu me expliquei a respeito durante um colóquio
consagrado “A interdição da representação”, 1981 em Montpellier e cujos artigos foram publicados pela
Editora Seuil em 1984.
52 “Rêver l’idéogramme: Mallarmé, Ségalen, Michaux, Macé » (Sonhar o ideograma : Mallarmé, Ségalen,
Michaux, Macé), in Écritures (obra coletiva, Paris, Le Sycomore, 1982, p. 209-233).
53 Esses encantos do pictograma não foram definitivamente varridos pela escrita alfabética; eles retomam
vida e vigor atualmente em um terreno especialmente eleito, o da erótica. Nos anos 1980, inicialmente
tomamos os signos dos teclados para criar imagens. Muito lento, pois eram necessários vários. Em 1997, nasce
a escrita emoji (palavra japonesa para imagem-letra), normatizada em 2010 por Unicode. Em seu artigo
“Emojis. Une orgie de sous-entendus” (“Emojis, uma orgia de subentendidos”), Fanny Guyomard (Libération,
15 de dezembro de 2020) lembra vários exemplos: uma berinjela, uma banana ou uma cenoura para um falo
(vantajosamente apresentado), para nádegas um pêssego apropriadamente sombreado, um cacho de cereja
para quem quer encontrar sua outra cereja, uma flecha orientada para cima para anunciar que será ativo no
ato sexual, um punho erguido para um fist-fucking, dois pequenos corações rosa para indicar que há amor no
ar. Ao envio de um floco de neve ou de um prato de macarrão (para dizer “você me agrada”) pode ser
respondido por um guarda-chuva (“não é recíproco”), etc.
seu caráter fóbico quando já não é mais vista e sim lida, interpretada, transliterada,
como tendo escrito “teu pequeno pedaço”. Aqui também, se reconfiguram as
relações do saber e do gozo.

Como o sabemos, o espírito científico é particularmente desconfiado, até mesmo


hostil em relação à vidência (como para poder melhor se diferenciar?), enquanto
que a psicanálise, depois de ter se interessado por ela, manteve o oculto à margem
de suas questões. No entanto, uma vez mais aqui é o rébus de transferência que
pode operar, e Bertrand Méheust fornece disso um caso exemplar54. Céticos, os
especialistas colocam à prova um vidente inglês. Apresentam-lhe um envelope
fechado contendo uma foto, e o desafiam a dizer de quem se trata, e desta forma
provar que é mesmo esse vidente que se diz ser. Ele responde pelo desenho de
uma colina e de uma igreja, e imediatamente se dizem (aliviados?) que ele nada
soube ver, o infeliz. A razão triunfa, a vidência é descartada. Entretanto, a abertura
do envelope vai logo trazer seu desmentido a essa primeira e esperada conclusão.
Ele continha a foto de Churchill, cujo nome havia sido escrito efetivamente pelo
desenho do vidente: church hill. Méheust observa que “o vidente fez apenas a
metade do caminho, não foi ele quem decifrou o rébus”. Ele fez algo muito melhor,
como o sonho, ele o configurou. Assim, levanta-se uma questão: a magia estaria já
presente e operante na colocação em relação de S1 → S2? Estudando o chiste, Freud
não convoca a iluminação? Pierre Vesperini vê na iluminação (ellampsis) um fogo
jorrando, uma luz inflamada onde “culmina a experiência da iniciação
eleusiniana55”. Contar um chiste de judeus a alguém que ignora tudo sobre o
judaísmo permanecerá sem nenhum efeito. O relato não provocará nem iluminação
nem riso. Aparecerá então que algo ficou... oculto – experiência onde se encontra
confirmada a incidência do oculto na relação S1 → S2.

MUTAÇÃO EPISTÊMICA

2019. Outra obra foi publicada muito oportunamente56. Désirer désobéir. Ce qui
nous soulève I veio como que sustentar o tipo de descoberta inesperada que
constituiu, em 1994, a publicação de Letra à letra, seguido de minha recente
discriminação, em Lacan, de duas diferentes analíticas do sexo 57: a primeira, uma
analítica do laço (focalizada no objeto a, reconhecido como causa do desejo) e, até
então despercebida, uma analítica celibatária 58, onde se manifesta a inexistência

54 Spy 2020, “Le spirituel se manifestant”, Paris, Epel, p. 37.


55 Pierre Vesperini, La philosophie antique. Essai d’histoire, Paris, Fayard, 2019, p. 142. Esse livro deve ser
tomado como uma necessária vacina contra a epidemia de hegelianismo, do qual foram vítimas os
contemporâneos de Lacan e, sem dúvida, Lacan mesmo, embora estivesse advertido disso.
56 Georges Didi-Huberman, Désirer désobéir. Ce qui nous soulève I, Paris, Éditions de Minuit, 2019.
57 J. Allouch, Pourquoi y a-t-il de l’excitation sexuelle plutôt que rien ?, Paris, Epel, 2017.
58 Entenderemos “celibatário” no sentido de Marcel Duchamp: “Adágio de espontaneidade = o celibatário mói
o seu chocolate sozinho” (Marcel Duchamp, Duchamp du signe, Paris, Flammarion, 2013, p.52). Ou ainda (p.
73): “A noiva tem um centro de vida – os celibatários não o têm. Vivem pelo o carvão ou outra matéria prima
extraída não deles, mas de seus não-eles. ”
de uma relação sexual reconhecida sem razão. Esta distinção salientou um certo
número de temáticas negligenciadas pelas diversas correntes da psicanálise e da
psiquiatria atuais: a literalidade, a liberdade, o levante, a vontade.

Embora a VONTADE em Lacan figure no topo subjetivamente rotatório do “grafo


do desejo”59, embora tenha sido explorada por ele com um tanto de bravura (ao
jogar com “Eu me pergunto o que você quer” articulado à “Eu te pergunto o que eu
quero”60), embora concebida como “vontade de gozo”, ela seja um elemento chave
em “Kant com Sade”, embora revisitando a interpretação do sonho, Lacan explicite
que a questão a ser colocada não é “o que quer dizer isso?”, e sim “o que é que, ao
dizer, isso quer? 61”, embora o fantasma masoquista tenha sido situado como uma
vontade de gozar por ser o objeto de um gozo do Outro 62, embora, sobretudo, a
vontade esteja conjugada ao desejo (e portanto, admitida como diferente do
desejo) quando no final da análise o sujeito é “chamado a renascer para saber se
quer o que deseja” 63, ela como que cedeu todo lugar ao desejo64. Infeliz desejo que,
por ter sido convocado o tempo todo (e de longe, quando é declarado sem mais ser
“inconsciente”) terminou por irritar alguns!

A LIBERDADE foi, também ela, colocada de escanteio porque se persistia nesse


credo que se lê em Taine: “Que os fatos sejam físicos ou morais, não importa, eles
sempre têm uma causa.”65 Transportado pelo “sempre”, esse preconceito foi
mantido durante toda a história da psiquiatria (e retomado por alguns
psicanalistas). Assim Jean-Pierre Delteil, chefe de serviço no Hospital Sainte-Anne e
perito judicial, escrevia em 1995:

As passagens ao ato antissociais [elas o seriam? 66] cometidas por esses sujeitos
são motivadas por um determinismo que escapa totalmente ou parcialmente a
suas vontades e aos seus controles.67

59 Com a questão: Che vuoi? (J. Lacan, Écrits, op. cit., p. 805 sq. [ Escritos, op. cit., p. 829.]).
60 J. Lacan, Seminário de 11 de dezembro de 1968, onde “vontade” e “desejo” parecem equivalentes enquanto
que em “Subversão do sujeito e dialética do desejo” a vontade é distinguida do desejo (Écrit, op. cit., p. 815.
Escritos, op. cit., p. 841)
61 J. Lacan, De um Outro ao outro, 26 de fevereiro de 1964.
62 J. Lacan, A Angústia, 06 de março de 1963 (sublinho).
63 J. Lacan, Écrit, op. cit., p. 649. [Escritos, op. cit., p. 682] (sublinho).
64 A lista que acabamos de percorrer é apenas indicativa; ela permanece longe de um estudo, o qual falta
realizar sobre a vontade em Lacan.
65 Citado por Marc Renneville, Crime et folie. Deux siècles d’enquête médicales et judiciaires, Paris, Fayard,
2003, p. 190. A ideia, sem mais, de uma « causa orgânica » ou « psíquica » é uma outra coisa do que uma
asserção vazia de sentido? Sobre a vã busca freudiana de uma causa do sintoma histérico, ler, de Guy Le
Gaufey, L’”abandon” de la théorie de la séduction”, Littoral, n° 34-35 e 36 (acessível nos sites da École
Lacanienne de psychanalyse e da Editora Epel).
66 Uma das exigências que se impõe ao psiquiatra pode formular-se nos termos de Michel Foucault (odiado
por Henri Ey): “defender a sociedade”. E esta exigência hipoteca, ou até contamina, a outra dimensão (médica)
de sua prática: o exame do paciente, a “conversa”. Poderemos ler a esse respeito a obra de Jonathan Metzl,
Étouffer une revolte (Paris, Autrement, 2020). Ou também, e sobretudo, a “Lettre aux médecins-chefs des asiles
de fous”, assinada por Antonin Artaud (internado em psiquiatria compulsoriamente durante nove anos) e
Robert Desnos (carta inicialmente publicada em La Révolution surréaliste e retomada em A. Artaud, Lettres
1937-1943, op. cit., p. 31-32). Artaud e Desnos viram perfeitamente que o psiquiatra tinha um poder dado pela
sociedade, o “de sancionar por encarceramento perpétuo suas investigações no domínio da mente”. (Seria esse
poder psiquiátrico que fascina os filósofos, que conduziu Foucault, Hipólito, Ricoeur a ir escutar Lacan?)
Qual determinismo? Buscaríamos em vão uma resposta atinente à experiência; no
fundo, parece que aqui só o que conta é o pensamento “tudo tem uma causa” 68.
Este enunciado se perde rápido na areia, pois, como a causa também faz parte
desse “tudo”, nos perguntaremos qual é a causa da causa. Uma resposta vem quase
de imediato, suscetível de deter a infernal fuga para trás e que só nos resta colher.
Ela faz apelo a uma transcendência: Deus, a causa das causas, como último recurso.
Frédéric Nef:

os sábios que acreditavam que as coisas estavam bem fundamentadas, que


possuíam uma essência intrínseca e que a linhagem das causas se detinha em uma
causa suprema intrínseca, repugnavam em geral a assegurar a existência de um
vazio físico, até que a observação lhes mostrasse, sobre a base de uma inferência
causal, sua inelutável presença nos fenômenos. 69

“Deus crê em Deus? ” se perguntava aquele que havia dado um primeiro grande
passo ao interrogar a paranoia e que fez notar bem mais tarde que Napoleão não se
tomava por Napoleão, nem um rei por um rei – nem, eu acrescentaria, pois estava
aí o que era sem dúvida visado, um psicanalista por um psicanalista. Enquanto
Jacques Lacan redigia sua tese de psiquiatria, seu colega Paul Guiraud70 escrevia:

Toda ciência só é possível se ela admite ao menos como postulado a determinação


rigorosa dos fenômenos que ela estuda. Os alienistas devem então estar
convencidos de que todos os atos dos alienados, por mais extravagantes e
inesperados que sejam, têm causas precisas, assim como os mais normais dos atos.
71

Confrontado com uma psicanálise que se esboçava como junguiana, Freud escriva:
“O psicanalista se distingue por uma crença [sublinho] particularmente rigorosa no
determinismo da vida da alma.”72 Se essa crença devia rechaçar tudo o que, na
experiência analítica, se manifesta como contingência (que Freud não negligencia),
se devia não dar nenhum lugar ao acaso, então sim, poderíamos descartá-la como
intempestiva. Freud reconheceu em seus relatos de casos outros tantos relatos

Artaud e Desnos acrescentam: “A repressão das reações antissociais é tão quimérica quanto inaceitável em seu
princípio. Todos os atos individuais são antissociais. Os loucos são as vítimas por excelência da ditadura
social.” Teremos um panorama geral sobre o tom dessa carta (convido meu leitor a consultá-la sem mais
tardar) lendo as duas primeiras frases: “As leis, os costumes, vos concedem o direito de mensurar o espírito;
essa jurisdição soberana, temível, é com vossos entendimentos que vocês a exercem. Que piada! ”
67 M. Renneville, Crime et folie, op. cit., p. 425.
68 Se se pode fazer de Tales de Mileto o primeiro dos filósofos e dos cientistas foi porque ele soube atribuir ao
universo uma causa material, nada mais do que a água (ver P. Vesperini, La Philosophie antique, op. cit., p. 34-
35).
69 Frédéric Nef, La Force du vide, Paris, Seuil, 2011, p. 320.
70 Autor em 1922 (com Maurice Dide) de um manual de psiquiatria que foi autoridade durante muito tempo,
Guiraud pretendeu ser um amigo da psicanálise afirmando que as alucinações se deviam a uma disfunção
cerebral; ele ensinou seu aluno Henri Ey sobre Jackson. Seu nome é atualmente o de um hospital psiquiátrico
sediado em Villejuif. Uma homenagem é assim prestada a sua obra e a sua memória.
71 Paul Guiraud, “Les meurtres immotivés”, L’Évolution psychiatrique, nº 2, 1931.
72 S. Freud, “Sur la psychanalyse”, in Cinq leçons sur la psychanalyse, trad. par Yves Le Lay, Paris, Payot et
Rivages, 2001. [S. Freud, OCB, Cinco lições de psicanálise, Vo. XI]. Freud vê também um obstáculo no caminho
do pensamento psicanalítico no fato de não ter “o hábito de contar com o determinismo rigoroso e válido sem
exceção”.
literários, romances, um registro onde, pelo menos à primeira vista, o
determinismo não reina como senhor e mestre. “Literário”, o que quer dizer?
Segundo Foucault, já o lembramos, a literatura moderna põe em jogo o código no
código, e é mesmo esse traço que a distingue de outros escritos e que a torna
vizinha da escrita de casos tal como Freud a exerceu:

A literatura é um certo uso da linguagem tal que a fala corre o risco, a cada
instante, de ser para si mesma sua própria língua (p. 146).

Igualmente para a análise literária, segundo Foucault, que tomou um novo rumo no
século XX. De julgadora, ela se transformou em analisante:

E agora, a análise literária se tornou uma relação não mais da escrita com a leitura,
mas da escrita com a escrita (p. 179).

Pensamos em Pierre Ménard, autor de Quichotte de Borges. A pintura não ficou de


fora. Picasso, pintando As Meninas, instaura uma relação da pintura com a pintura,
que provém, salta aos olhos, de um registro distinto daquele dos comentários da
obra, mesmo os assinados por Jacques Lacan ou Michel Foucault 73. Falar de
inspiração é ficar muito longe do que teve lugar, embora Picasso tivesse escrito em
um pequeno desenho de sua própria mão: “Greco, Velásquez, INSPIREM-ME!”74 De
17 de agosto a 3 de dezembro de 1957, durante quatro meses de intensa atividade
pictural, ao mesmo tempo de um grande desconforto e de uma grande felicidade
também, Picasso pintou não menos do que 58 estudos, quer do geral quer de
detalhes dessa tela de Velásquez. Ele muda seu formato; ele move um pouco as
figuras, dando-lhes novas dimensões a algumas delas; ele abre as janelas; modifica
os jogos de luz. Picasso travou combates semelhantes com outros mestres: pintou
O Rapto das sabinas de Jacques-Louis David, As Mulheres de Argel de Delacroix, O
Almoço na relva de Manet, ele “copia” Goya, El Greco, os grandes mestres
venezianos. Pinta um Retrato de Góngora segundo Velásquez, assim como
Jacqueline vestida de menina ou ainda Jacqueline (musa, amante, modelo) a cavalo
segundo Velásquez. Evocando sua primeira visita ao museu do Prado, ele declarava:

Me defrontei pela primeira vez com meus ídolos. Eles me esperavam no museu do
Prado. Desde então ficou fixado em minhas retinas, de uma maneira obsessiva, o
quadro de Velásquez As Meninas. 75

O termo “paráfrase” é utilizado pelo autor de As Meninas de Picasso para dizer essa
relação da pintura com a pintura. Seria devido à falta de algo melhor? Parece que
nenhum conceito atualmente disponível seja suscetível de dar conta da operação
da qual se trata. Em outros trabalhos debruçados sobre esse problema, lê-se

73 Mayette Viltard, “Foucault-Lacan: la leçon des Ménines », L’Unebévue, n° 12, 1999.


74 Citado com essa grafia por Claustre Rafart i Planas, Las Meninas de Picasso, Prólogo de Valeriano Bozal,
Barcelona, Editorial Meteora, 2001, p. 25.
75 Ibid, p. 21 (a tradução para o francês é de Jean Allouch).
“paródia”, “reinterpretação”, ou até “canibalismo”. Esta operação, teria ela sido
negligenciada por não ter podido ser denominada?

Em que consiste precisamente essa novidade que Foucault trazia à tona e que veio
marcar com seu selo inclusive a pintura moderna? A descrição foucaultiana dessa
guinada, que marcou, ao mesmo tempo, a literatura moderna e a crítica literária,
vale também para a psicanálise, ao menos para essa que recebo de Lacan. Foucault:

É essencialmente agora a possibilidade de constituir, a partir de uma linguagem


dada que chamam a obra, uma nova linguagem, e uma nova linguagem que seja tal
que essa segunda linguagem obtida a partir da primeira possa falar da primeira (p.
179, sublinho).

“Obtida a partir da primeira” e “falar da primeira” pronuncia o fim do comentário


sua inanidade, sua inconveniência. Ou ainda esta questão foucaultiana:

Qual transformação se deve operar na linguagem de uma obra para que a


linguagem assim transformada fale dessa obra e manifeste algo a respeito dessa
obra 76 (p. 179-180, sublinho)?

Esta maneira inédita de ler um texto (que pode ser trazido por uma fala)
remetendo-se ao texto no texto (à cifra), a uma “segunda linguagem” 77, oferece à
Foucault a possibilidade de definir o estruturalismo (na diversidade de suas
manifestações) como ciência do documento que trata “do documento enquanto

76 Essa questão é transponível: o que é que As Meninas de Picasso torna manifesto nas de Velásquez?
77 Em “Função e campo da fala e da linguagem”, Lacan aproximou essa “segunda linguagem”. Ele observa que
“um discurso de outrora em sua língua arcaica, ou mesmo estrangeira” encontra-se “no epos onde ele [o
sujeito] relaciona com o momento presente as origens de sua pessoa” (Écrits, op. cit., p. 255. [Escritos, op, cit, p.
256]).
documento”. Ele denomina então “deixologia” essa ciência78 que cobre vários
domínios, chegando a preferir esse nome em vez de “arqueologia”, julgado então
“afinal não ser bom” (p. 207). A análise deixológica trata dos enunciados. Ela
ratifica esse gesto pelo qual Foucault se diferenciava daquilo que foi amplamente
adotado como “ciência piloto”, a saber a linguística. A esse respeito, a abordagem
de Roland Barthes lhe parece exemplar desse intempestivo linguistic turn

que consiste em dizer: visto que o método fonológico teve sucesso à nível dos
fonemas, são os mesmos esquemas que devemos transportar para a obra literária
mesma. Dito de outro modo, passa-se do nível fonemático para a totalidade do
discurso; e deixamos escapar, acredito, a realidade própria do enunciado (p. 200-
201).

A deixologia tornou-se possível por esse gesto foucaultiano que retirava o


estruturalismo de sua ancoragem na linguística estrutural. Mencionando Georges
Dumézil, que ao colocar em relação a estrutura dos mitos indo-europeus e aquela,
tripartida, da sociedade, faz notar que o estruturalismo é “um prodigioso
instrumento de análise comparativa” (p. 203-204). Encontra-se então deste modo
e assim colocado o seguinte problema: Esses isomorfismos são indicativos de uma
causalidade?

E quando tentei distinguir a análise econômica, que é a análise da produção de


coisas, e a análise deixológica, que é a análise da estrutura documental da coisa, é
precisamente a isso que eu queria fazer alusão (p. 204).

Isso? Constatando a presença de relações entre os elementos (os isomorfismos), “a


sincronia da obra a respeito dela mesma” (p.183), a análise estrutural coloca sob
novos enfoques o problema da causalidade.

NECESSIDADE VERSUS CAUSALIDADE

Aquele que abre as portas de uma eclusa


é ele a causa da passagem da água?

Um isomorfismo seria a indicação de uma causalidade? Foucault convoca a


embriologia a fim de tornar seus interlocutores sensíveis a sua resposta negativa.
Do mesmo modo que ele distinguia a análise da produção das coisas e a análise
deixológica, e como eu distingo uma analítica do objeto a e outra da inexistência da
relação sexual, ele também isola duas “camadas” em embriologia: a dos processos
energéticos e a dos processos informacionais (p.176). A embriologia se perguntava
como é que “duas ou quatro pequenas células” podiam dar lugar a um indivíduo;
ela colocava o problema em termos de causalidade, em termos energéticos, e...

78 Que Foucault não tenha dado continuidade a essa apreensão não me parece razão suficiente para
negligenciá-la.
“não se chegou a lugar nenhum” (p.205)79. Sabe-se agora, prossegue ele, que
intervém um processo informacional, um isomorfismo entre a constituição do
núcleo da célula e o organismo, “como se houvesse tido uma mensagem depositada
no núcleo da célula e depois que essa mensagem tivesse sido como que entendida”
(lembramos aqui da leitura de “celuloide”). Ele observa que então “nada se
conhece da causalidade, penetramos no processo informacional” 80. Descobriu-se
“um objeto novo e um objeto no qual não há mais substância, no qual não há mais
causa” (p. 207).

Essa constatação de uma ausência de causa foi assim possibilitada pelo isolamento
deixológico de duas diferentes camadas: em embriologia, a dos processos
energéticos e informacionais; na loucura, as do código no código e, igualmente, na
literatura moderna “analisante” e o estruturalismo. Sem o saber, a distinção de
duas analíticas do sexo entrava na lista – o que indica que, se na analítica do objeto
a, esse pôde ser reconhecido como “objeto causa” (do desejo), não há causalidade
na analítica celibatária da não-relação sexual. Não há causa, mas como em outras
questões que acabam de ser evocadas, razões, laços se não de necessidade, ao
menos compostos de relações contingentes que se solidificaram até ao ponto em
que se chega, erradamente, a declará-las causadas por não se sabe o quê.

Foi por ter escolhido o terreno logico-matemático que Lacan foi levado a
pronunciar o enunciado “não existe relação sexual”. Um discurso é composto de
enunciados, essa “forma terceira, ao mesmo tempo dependente e independente da
fala e da linguagem” (p. 246). E não se fica nem um pouco surpreso com o fato de
que em 1969 Lacan tenha tão rapidamente e tão amplamente repercutido sobre a
conferência de Foucault “O que é um autor? ” que introduzia a discursividade.

“Corte um, os dois outros se separam”, eis aqui o borromeano. Essa separação foi
causada pelo corte de um dos círculos de corda? Somente o a priori que sugere que
tudo tem uma causa permite afirmá-lo. É um laço de necessidade que se encontra
então desfeito, fabricado com todas as peças por esse evento contingente que foi a
fabricação do nó. Um nó se reconhece como borromeano em razão do fato de que
ele se compõe de pelo menos três círculos de corda que não se atravessam jamais
uns pelos outros, que não se interpenetram, ao mesmo tempo que estão
interligados. Vislumbra-se que mudança de universo do discurso estaria em
operação ao se substituir, na frase acima, o “em razão de” por “por causa de”.

Ainda não avaliamos a dimensão das consequências do borromeano. Um exemplo?


O borromeano devia definitivamente (e silenciosamente) afastar a foraclusão. A

79 Semelhante tentativa surgiu no campo freudiano, sem que jamais, parece, tenha sido amplamente adotada.
Darian Leader considera isso em La Jouissance, vraiment? (op. cit., p. 35). Pretendeu-se substituir um modelo
cibernético de codificação das excitações pelo modelo energético freudiano que apresentava muitas
dificuldades, Freud mesmo tendo observado que excitação genital objetava ao prazer definido como redução
das tensões (que, ademais, supunha “a multiplicação de homúnculos na psique, encarregado de promover a
aumento das excitações”).
80 Foucault teria podido escolher, pensa-se aqui, os jogos literais do código genético.
razão disso é que ela só se sustentava pelas distinções do simbólico, do imaginário
e do real (“o que está foracluído do simbólico reaparece no real”), enquanto que o
borromeano permitia situar a paranoia como uma colocação em continuidade
dessas três dimensões (atadas em um nó de trevo, elas desaparecem enquanto
distintas 81). O que não impediu, muito depois, certos lacanianos de promover,
atualmente ainda, a foraclusão. Ignorantes do borromeano e querendo sem dúvida
agradar ao Lacan que haviam “abandonado”, Jean Laplanche e Jean-Bertrand
Pontalis dedicaram três páginas inteiras à foraclusão em seus Vocabulário da
psicanálise.

O que fez com que Jacques Lacan tenha se precipitado tão decididamente,
intensamente e mesmo (é sua palavra, sua última palavra, diz-se) obstinadamente
na exploração do borromeano? Qual fúria o tomou82, que foi perceptível àqueles
que iam lhe escutar ou que, desde seu divã, o via manipular sem parar as cordas ou
desenhar nós enquanto eles lhe falavam? 83 Isso, desde esse momento em que lhe
foi trazido o borromeano (08 de fevereiro de 1972 à noite; ele menciona esse nó
pela primeira vez publicamente no dia seguinte). Ele havia, outrora, deixado sua
marca em sua invenção maior, essa apresentada em 08 de julho de 1953, o ternário
simbólico imaginário real. O que se passou nesses dias 08 e 09 de fevereiro de
1972? Eu diria, para logo me explicar: um tremor de terra que sacudia até os
fundamentos de sua doutrina 84, o surgimento em um clarão de questões que até
então não tinham sido abordadas senão lateralmente. Em 1972, vinte anos de
seminários se mostravam sob uma nova perspectiva arrepiante. S. I. R. já não era
mais somente isso mesmo que o havia permitido tratar a maioria das questões
levantadas no campo freudiano e outros, sendo novas, ou até inesperadas; tomado
pelo borromeano, de repente iluminado pelo borromeano, seu paradigma era
objeto de uma e até mesmo de várias questões ao mesmo tempo novas e cruciais. E
isso, o borromeano o fazia saber. Por qual razão três dimensões? O que as fez ter

81 Damos com os burros n’água ao perguntar aos escritos e outros seminários de Jacques Lacan de onde, em
1953, pode lhe advir sua proposição – embora mais decisiva do que qualquer outra – de distinguir o simbólico,
o imaginário e o real. Nos vemos obrigados a formular conjecturas. Um filósofo poderia propor que ele a
obteve de Kant, o qual pensava que entre nossos afetos e nossos conceitos o intervalo era tão importante que
era preciso uma “arte oculta da imaginação” para produzir uma síntese. Um teólogo poderia propor a Trindade
(um pensamento não em dois, mas em três) fazendo observar, aliás, que Jacques Lacan foi imerso em um
banho de cristianismo em seus primeiros anos, isso ao ponto de mergulhar muito cedo em Agostinho e alguns
outros. Uma outra conjectura se apresenta aqui, bizarra é verdade, mas permanecendo no domínio do possível.
Se Lacan então idoso pôde apresentar a paranoia como uma colocação em continuidade do simbólico, do
imaginário e do real, não seria porque talvez tivesse emergido de seu encontro com Marguerite Anzieu
(apresentado em sua tese) habitado pela ideia de que na paranoia de sua “Aimée” [Amada] essa distinção
faltava? Foi também o momento em que ele revisou seu diagnóstico.
82 Em suas cartas, bilhetes e mesmo correio pneumáticos (era urgente) a Pierre Soury e a Michel Thomé, um
“estou furioso” aparece com frequência.
83 Uma situação de fala que Soury reteve, observando que as melhores chances para uma criança se dirigir a
uma mãe minimamente disponível era abordá-la enquanto ela estivesse ocupada com outra coisa, em uma
“pequena atividade” (costurando, por exemplo).
84 Quando ele retorna pela primeira vez em seu seminário sobre o nó borromeano, Jacques Lacan relata ter
sonhado que não havia ninguém no auditório (09/02/1972). “Só me restava continuar a luta da vida”.
Interpreta ele minimizando e sem ligar seu sonho ao borromeano. Contudo, isso era o que iria efetivamente
acontecer, o auditório se esvaziando cada dia mais, enquanto ele, frequentemente silencioso, explorava o
borromeano.
um mesmo estatuto embora sejam reconhecidas como diferentes? E qual é esse
mesmo estatuto? Há aí uma que prevalece sobre a outra, ou seriam equivalentes? O
que é então as liga? Elas são indispensáveis umas às outras? Sobre a supressão de
uma dentre elas poderia ser causa ou então razão do desmembramento do
conjunto?

Para dispor de um começo de resposta a essa última questão, nos reportaremos a


um caso de algum modo fútil. Em 09 de dezembro de 1975, Lacan se pergunta se
um nó borromeano pode ser feito de vários nós de trevo. Ele não conseguiu
produzir um tal nó de quatro, não encontrou “a razão demonstrativa do que não
existe” (sublinho). Esse nó existe, Pierre Soury e Michel Thomé lhe entregariam em
breve. Lemos nessa última citação um discreto indício de que Lacan pensa o
borromeano como uma questão de razão. Mas, não dizia ele, afastando a causa: “O
que me perturba nos nós é uma questão de matemática, e é matematicamente que
pretendo tratá-la (20/01/1979)?

Teria acontecido com Lacan uma desventura da mesma ordem daquela ocorrida
com os embriologistas segundo Foucault? Lacan teve problemas com a
causalidade: em 11 de abril de 1956, ele mostrou sua “repugnância” a respeito da
causa, em seguida a confirmou dez anos mais tarde: “Aquilo que chamamos a
causa, se podemos dar uma existência a este ser fantasmático” (07/12/1966).
Lacan estava advertido de que “a causa” cheirava a enxofre. Nem por isso, a causa
foi radicalmente afastada, mas foi como que colocada em concorrência com “razão”
– sem que essa proximidade que assombrou muitas filosofias (Descartes, Spinoza,
Leibniz, Schopenhauer e outros) fosse explicitada. O contraste segue sendo
impressionante entre, de uma parte, a “Proposição sobre a causalidade psíquica”
(1946), como também, à beira da morte, a lamentável promoção de uma “causa
freudiana” e, de outra parte, o artigo “A insistência da letra no inconsciente ou a
razão desde Freud” (1957). Uma proposição de 1960 parece promover essa razão
que provinha da letra no inconsciente (1957) e uma causa, ela também ligada à
linguagem:

O efeito de linguagem é a causa introduzida no sujeito [advertidos, leremos


atualmente aqui uma alusão ao pequeno a não ainda encontrado]. Graças a esse
efeito ele não é causa de si mesmo, mas porta em si o germe da causa que o cinde.
Pois sua causa é o significante, sem o qual não haveria nenhum sujeito no real. 85

Assim nos encontrávamos plenamente expostos à crítica da psicanálise que


formulava Wittgenstein observando que ela confundia causa e razão. Segundo ele,
que o sintoma seja recebido como um retorno do recalcado não justifica de modo
algum que se possa afirmar que sua verdade seja dele a causa. Contudo, foi o que
afirmava Lacan questionando assim os analistas:

85 J. Lacan, “Position de l’inconscient” (1960), in Écrits, op. cit., p. 835. [Escritos, « Posicção do inconsciente », p.
849].
Sim ou não, o que vocês fazem, tem o sentido de afirmar que a verdade do
sofrimento neurótico é ter a verdade como causa?

Pouco antes em seus escritos, ele havia tomado a precaução de sugerir a boa
resposta: “A verdade como causa, irão vocês psicanalistas, recusarem-se a assumir
sua questão, quando foi a partir disso que se alçou sua carreira? ” 86 O desafio assim
lançado e a cilada do “sim ou não” encobrem uma dificuldade. Essa dificuldade foi
ainda manifestada quando Lacan fez do sujeito uma causa, sem atentar para o fato
de que assim negligenciava sua concepção do sujeito representado por um
significante, fazendo apelo a um sujeito enquanto agente. Seja a sessão de 12 de
dezembro de 1961 do seminário A Angústia. Onde lemos:

O animal, vos digo, apaga suas marcas e faz falsos rastros. Faz ele, com isso,
significantes? Há uma coisa que o animal não faz, não faz falsos rastros para nos
fazer crer que eles são falsos. Ele não faz rastros falsamente falsos, o qual é um
comportamento, não diria essencialmente humano, mas justamente,
essencialmente significante. Aí é onde está o limite. Vocês me escutam bem, rastros
feitos para que os acreditemos falsos e que são, no entanto, rastros de minha
verdadeira passagem, e é o que eu quero dizer quando digo que aí se presentifica
um sujeito, quando uma marca foi feita para que a tomemos como uma falsa marca,
aí nós sabemos que há, como tal, um sujeito falante, e aí sabemos que há um sujeito
como causa e a noção mesma da causa não tem outro suporte do que esse.

Um agente é ativo, ele “faz marcas”, e alojar seu sujeito no lugar ativo desse agente
contravém à definição de sujeito como “representado por...”. Esse jeito de passar ao
lado a respeito de suas próprias posições promoveu assim um sujeito como causa,
a ser acrescentado nessa lista que acabamos inoportunamente 87 de estabelecer de
um psiquismo, de uma verdade ou do significante, cada um e todos feitos causa ao
longo dos tempos.

Assim Lacan teve que se lançar em “uma revisão do processo da causalidade” 88.
Conhecemos o resultado disso, amplamente retomado por seus alunos: o objeto a
reconhecido “como objeto causa do desejo”. Muito antes, em 02 de maio de 1956,
ele havia observado que enquanto fenômeno de conexão, de contiguidade, de
contato, a metonímia contém (no sentido de retém?) o esboço da noção de
causalidade. O que então tomou consistência a partir do momento em que o objeto
metonímico deu lugar ao objeto a. Tendo produzido pouco antes seu objeto a,
Lacan podia dizer:

Se essa causa se mostra tão irredutível [em Kant, que acaba de ser discutido] é na
medida em que ela se sobrepõe, que é idêntica em sua função ao que aqui eu vos
ensino esse ano a delimitar, a manejar, ou seja, justamente essa parte de nós
mesmos, essa parte da nossa carne que necessariamente fica, se posso dizer, presa

86 Id., “La Science de la vérité »., in Ibid., p. 869-870. [Escritos, “A Ciência e a verdade”, p. 883].
87 “Inoportunamente”, pois ela vincula enunciados de épocas diferentes.
88 J. Lacan, “La chose freudienne”, Écrits, op. cit., p. 416. [Escritos, “A Coisa freudiana”, p.436].
na máquina formal. Aquilo sem o qual esse formalismo lógico não seria para nós
absolutamente nada, a saber que, não apenas nos requer, que não apenas nos dá
um quadro, não somente de nosso pensamento, mas de nossa própria estética
transcendental, que nos toma por alguma parte e que, essa alguma parte a qual não
só damos matéria, não somente nosso pensamento e nossa estética própria
transcendental: nos toma por algum lado e esse algum lado... da qual damos não
somente a matéria, não somente a encarnação como ser de pensamento, mas o
pedaço carnal como tal arrancado de nós mesmos... é esse pedaço enquanto é
aquele que circula no formalismo lógico tal que já foi elaborado por nosso trabalho,
do uso do significante; é essa parte de nós mesmos presa na máquina, para sempre
irrecuperável. Esse objeto como perdido, nos diferentes níveis da experiência
corporal onde se produz seu corte, é ele que é o suporte, o substrato autêntico de
toda função como tal da causa.89

Era preciso não cortar essa citação de maneira que se pudesse sentir o fato de que
Lacan solicita aí a experiência carnal (“corporal”) a fim de fazer passar melhor aos
seus alunos (aos quais ele faz sentir frio na barriga) sua concepção de um objeto a
causa do desejo. Não obstante, trata-se aí de um casamento da carpa e do coelho.
Se não há efetivamente causalidade na lógica, como pretender manter junto uma
lógica da análise (sem causalidade) e um objeto a reconhecido como causa? 90 Essa
antinomia é eliminada pela distinção de duas analíticas do sexo tendo, sim, para a
primeira, o objeto a causa do desejo e, para a outra, a ausência de relação sexual,
que somente uma abordagem dessa relação em termos formais (que, portanto,
prescinde da causalidade) pôde identificar.

Mais tarde, ele considerou uma dita “causalidade metonímica” 91, sem que jamais
tenha extraído dela uma consequência convincente. A referência à metonímia
aparece agora mais clara, pois como vimos, o reenvio do sujeito do S1 ao S2 (S1 →
S2) concebido como uma relação entre duas cifras, não se deixa localizar sobre o
eixo paradigmático dos linguistas, e sim no jogo foucaultiano do código no código.
Lacan precisou apenas de uma única linha para formalizar a metonímia; para a
metáfora foi-lhe necessário duas, sobrepostas. 92

POTÊNCIA DA IMAGEM
Pensar é esquecer diferenças,
é generalizar, abstrair.
No mundo sobrecarregado de Funes
Só havia detalhes, quase imediatos.
BORGES 93

89 J. Lacan, L’Angoisse, séance du 08/05/1963, transcrição Roussan, p. 188.


90 Seria por não ter abandonado a causalidade, que Lacan inventou uma nova lógica dita “lógica do
significante”? Mas, como calcular com um significante não idêntico a si, a partir do momento em que todo
cálculo reclama que um termo várias vezes empregado não mude de valor de uma ocorrência para outra?
91 Jacques-Alain Miller, “Action de al structure », Cahiers pour l’analyse, nº 9, Paris, Seuil, 1968.
92 Página 515 de seus Écrits (op. cit.). [Escritos, p. 519].
93 Jorge Luis Borges, “Funes el memorioso”, in Ficciones [1944], Madri, Alianza Editorial, 1998, p. 135.
“Sobrecarregado” para abarrotado: cheio demais (a saber a prodigiosa memória de Funes).
Chega de pensar, filósofo
Há demasiado tempo que tu sonhas
Sem luz, nessas paredes taciturnas,
Enquanto resplendecia o verão.
Alma que varre espaços, com que triste refrão
Vais tu fechar de novo teus devaneios.
ELLIS 94

Enquanto que em 2016-2017 eu escrevia A Cena lacaniana e seu círculo mágico:


loucos se levantam, acontecia em Paris uma exposição intitulada “Levante”
[“Soulèvements”]. Ela se deveu à Georges Didi-Huberman que, prolongando seu
gesto, publicou em 2019 seu Desejar desobedecer: aquilo que nos levanta95. Trata-se
de uma soma (682 páginas, 15 das quais estão preenchidas de referências
bibliográficas). Parece ser um bom método abordar esse pavimento onde ele trata
de um ponto cego da psicanálise, retomado de Binswanger e de Foucault. Esse
ponto não é negligenciável: trata-se do sonho. Em conformidade com a crítica
foucaultiana de uma psicanálise que não soube de início acolher as observações de
Binswanger sobre a função da imagem, o autor destaca o que denomina um
“despertar ao sonho”. O que entende ele por isso? Um insólito ponto de emergência
do que ele vai chamar “levante” onde se exerce e se torna manifesta uma liberdade.
Mas, o que?

O despertar, a vigília [Réveil, éveil]

A problemática do despertar foi colocada no campo freudiano, ainda que seja pelo
fato de Freud ter sabido ver no sonho um guardião do sono e porque há sonhos
que despertam, os pesadelos. Deparando-se frontalmente e como por antecipação
com a proposição que viria a ser a de Didi-Huberman, Lacan declarava, magistral:
“Não nos despertamos jamais: os desejos mantêm os sonhos. ”96, ou também, e na
mesma época: “A ideia de um despertar é propriamente impensável. ” 97 Será que
ele pensava nesses versos de Éluard: “A luxúria em perigo lamenta o sono”? Deduz-
se que esse curto instante do despertar que Lacan via como “subir as cortinas” 98
não abria ao desperto nenhuma cena específica, senão àquela do sonho, ou então a
qualquer outra cena que, no despertar, permanecesse presente ainda que de modo
distinto de uma memória do sonho; aquele que se desperta assim não atravessa
essa cortina distribui o dormir (condição do sonho, avaliado por Lacan como não
necessário ao sonho99) e a vigília que, embora ficando um breve instante aberta, só
pode continuar a sonhar já estando acordado. Em resumo, no que se refere ao

94 Ellis: pseudônimo escolhido por Emily Brontë (Les soeurs Brontë, Autolouanges et autres poèmes, Paris,
Gallimard, coll. « Folio », 2008, p. 23).
95 G. Didi-Huberman, Désirer désobéir, op. cit. As indicações de páginas no texto reenviam a essa obra.
96 J. Lacan, « Désir de mort, désir de réveil », L’Âne, nº 3, 1981.
97 J. Lacan, Le Moment de conclure, sessão de 15/11/1977.
98 J. Lacan, La Logique du fantasme, sessão de 25/01/1967.
99 Assim encontrava-se silenciosamente afastada essa metapsicologia do sonho que suscitou tanta dificuldade
a Freud enquanto escrevia o capítulo VII da Traumdeutung.
despertar, não há, segundo Lacan, senão “sonho de despertar”100: um devaneio, um
sonho, uma ilusão. Era, de antemão, não oferecer nenhum lugar possível ao
“despertar ao sonho” de Didi-Huberman. No entanto, Lacan não era tão unívoco
sobre o despertar como dão a entender as citações acima. Convidado a intervir por
ocasião do XXIII centenário de Aristóteles (06/01/1978), retoma por duas vezes o
despertar. A primeira vez, a respeito do analisante: “É enquanto que o
psicanalisante sonha [escutar: sonha acordado] que o psicanalista deve intervir. ”
Tratar-se-ia de acordá-lo? Mas, ele não o quer de jeito nenhum – “ele sonha, quer
dizer, apega-se à particularidade de seu sintoma”. A segunda vez, Lacan
compartilha um sonho:

Aconteceu que sonhei recentemente que o despertador tocava. Freud diz que
sonhamos com o despertador quando não se quer de modo algum se despertar. [...]
Que eu alucine em meu sonho o despertador tocando, considero isso como um bom
sinal, uma vez que, contrariamente ao que diz Freud, ocorre que me acordo. Ao
menos, nesse caso me despertei.101

Por outro lado, se o autor Jacques Lacan quis que seus escritos fossem
incompreensíveis, foi justamente a fim de que seus leitores se despertassem.

A contaminação do discurso pelo dormir valeria a pena que fosse salientada, antes
de ser valorizada pelo que se chama a experiência intencional, ou seja tomada
como mandamento imposto aos fatos, um discurso é sempre adormecedor, salvo
quando não o compreendemos (fala muito alto), nesse caso, nos desperta!102

Há um “despertar no próprio sonho” para Didi-Huberman. Até na vida desperta, o


sonho pode atravessar a hermética cortina lacaniana do despertar sem que por isso
esse despertar, ainda habitado pelo sonho, se encontre dele destituído como
despertar. Em Lacan, a distinção do sonho e da vida desperta permanece
amplamente radical, ao ponto de que se o sonho se prolonga na vida desperta, essa
última é ipso facto reconhecida como um dormir. Vida es sueño, “A vida é um
sonho” (portanto não “um devaneio”), traduz para o francês Denise Laroutis 103. E
Musset vem, ele também, apoiar essa opinião de Lacan: “A vida é dormir, o amor é
o sonho. ” Quanto a ele, Didi-Huberman escreve:

Maravilha de palavra despertar [réveil] que contém ao mesmo tempo sonho [rêve]
e a vigília [l’éveil]. Como se, no despertar, o sonho mesmo se revelasse já
tensionado pelo desejo de sair de si. E como se, inversamente, a vigília soubesse

100 J. Lacan, « Désir de mort, désir de réveil », art. citado.


101 J. Lacan, “Le rêve d’Aristote”, acessível em Pastout Lacan (site ecole-lacanienne.net).
102 J. Lacan, L’Insu qui sait de l’une-bévue s’aile à mourre, op. cit., p. 118.
103 Pedro Calderon de la Barca, La vida es un sueño, peça barroca encenada pela primeira vez em 1635. Sua
escolha de “sonho” para o título é devida ao fato de que na peça trata-se não de “devaneios”, mas sim de
“sonhos”. Além disso, me faz saber Denise Laroutis, no século XVII, o usual impôs “sonho” ali onde se dizia
“devaneio”, o que confirmava Descartes, e raramente se lhe presta homenagem por isso. Sobre o ato do
tradutor considerado de um ponto de vista pulsional leremos com prazer o efervescente artigo de Denise
Laroutis “Je suis une serial...” L’Unebévue, nº 22, “La politique sexuelle des mots”, Paris, inverno de 2004.
nesse momento não esquecer, não apagar esse sonho do qual acaba de sair,
fazendo-o então viver de uma nova maneira (p. 460).

Ele não deixa de citar Binswanger, ponto de surgimento dessa problemática:

O homem em vigília surge do sonhador no momento insondável em que decide,


não somente querer conhecer o que lhe acontece, mas também intervir ele próprio
na marcha do acontecimento, introduzir na vida que se levanta e cai, [...] a história.
Uma abordagem do sonho e do despertar em termos de estilística em vez de
semiologia (p. 465).

Prolongado no seio da vida desperta, o sonho seria esse evento que traria a essa
vida uma “direção de significação” (“Bedeutungsrichtung” em Sonho e existência
104). Assim, por exemplo, fruto da reminiscência (e portanto, não da repetição 105),

Em busca do tempo perdido seria – segundo uma observação de Walter Benjamin


retomada ao seu modo por Didi-Huberman (p. 528) – um “despertar aos sonhos”.
Didi-Huberman lhe dá sua consistência, ou melhor, sua carne a esse despertar. O
sonho engendraria uma “alegria de existir que é antes de tudo uma alegria de um
levante” (p. 475), “a alegria de uma liberdade que sabe se reconhecer”. Ele seria “o
mundo na aurora de sua primeira eclosão” (p. 470). E ainda seria preciso, a fim de
que essa aurora alcance seu meio-dia, que intervenha uma vontade (ou talvez um
desejo, encontramos esses dois termos indiferenciados em Desejar desobedecer).
Essa vontade não negligencia o sonho, ela o prolonga na vida desperta.

Seria muito fácil eliminar essas eclosões com um simples gesto da mão.
Poderíamos fazê-lo com Freud, que condenava o espiritualismo em Binswanger 106,
com Lacan, que afastava (quase) toda ideia de despertar. Isso seria negligenciar o
fato de que um problema foi e continua assim colocado à análise, e negligenciar
que Freud mesmo havia considerado um impulso de liberdade (Freiheitsdrang)
notadamente em O Mal-estar na civilização 107. Anos antes, em A Interpretação do
sonho 108, ele já havia considerado esse Freiheitsdrang, nome freudiano para
“levante” – se por “levante” entendemos esse impulso que decola de uma liberdade
e acompanha seu movimento durante toda sua duração.

Freiheitsdrang

104 Ludwig Binswanger, Rêve et existence, trad. por Jacqueline Verdeaux, Introd. e notas de Michel Foucault,
Paris, Desclée de Brouwer, 1954.
105 Sören Kierkegaard, La répétition, Paris, Rivage poche, 2003.
106 Binswanger, sem ficar para trás, condenava o naturalismo em Freud. Mal-entendidos?
107 Citado por Didi-Huberman página 459. Temos o benefício de reler novamente essa passagem do Mal-estar
na civilização (Capítulo III) onde Freud apresenta esse “impulso de liberdade” (Freiheitsdrang) como sendo
“um movimento de revolta contra uma injustiça vigente”, ou ainda “um resto de um individualismo indomável
pela cultura”. [S. Freud, OCB, Vol XXI].
108 S. Freud, L’Interprétation du rêve, trad. de Jean-Pierre Lefebvre, Ed. du Seuil, 2010, p. 291. Esta tradução é
tão útil (ela torna observável os diferentes estratos históricos da escrita), que hesitamos em observar que a
proposta de Freiheitsdrang como “aspiração à liberdade” atenua a proposição. Que sejam aqui agradecidos
Ginette Barrantes e Lionel Klimkiewicz que fizeram chegar até mim uma observação sobre Freiheitsdrang.
Sob a pena de Freud o termo Freiheitsdrang 109 (comprovado em outro lugar)
recebe uma conotação específica, pois Drang, a pressão, é um dado reconhecido da
pulsão. Assim a tradução de Jean-Pierre Lefebvre de Freiheitsdrang como
“aspiração à liberdade” parece não convir. Eu confirmei isso com Isabelle
Kalinowski 110, que aqui agradeço por ter me fornecido os elementos que agora
retomo. Drang 111, me escreve ela, é “menos uma pressão, para o que seria preciso
encontrar o motor e que poderia ser contínua, regular, do que um afã brutal que
“toma” de repente. Situada em um contexto de hostilidade entre irmãos e irmãs, de
ciúmes infantis, de invejas, de disputa, a tradução de Freiheitsdrang na
Traumdeutung deve fazer com que se entenda o impulso (impetus libertatis,
traduziram os irmãos Grimm). Freiheitsdrang, esse “impulso de liberdade” deu
lugar a uma gravura de Alfred Kubin, que mostro a seguir:

Encontro-me ainda mais determinado a não negligenciar esse fio do levante de


Binswanger à Foucault, em seguida até Didi-Huberman, quando ao expor uma
segunda analítica do sexo, foram essas mesmas temáticas (liberdade, levante,
vontade) que se viram... levantadas, saídas como de brandões ainda quentes das
cinzas onde as haviam designado o desejo e seu objeto a declarado causa do
desejo.

109 Esta temática freudiana não foi de modo algum conservada por seus sucessores. Seria porque Freud não
considerou adequado desenvolvê-la amplamente? Nesse caso seria preciso afastar o que ele observou e que, a
força de ser retomado, adquiriu o nome de “Fort Da”. Ou ainda o einziger Zug. Há, no entanto, uma exceção.
Julia Kristeva, que dedicando uma obra ao Futuro de uma revolta (Paris, Flammarion, 2012) escreveu uma
primeira frase do capítulo “Psicanálise e liberdade” que de imediato vem limitar o questionamento: “A
liberdade não é um conceito psicanalítico. ” Um julgamento de juízo comum se nos remetemos, como ela o faz,
ao índice da Standard Edition, mas que joga o bebê com a água da bacia. Escrita com fluidez pela autora, a obra
é uma alegação em favor da “revolta íntima”, aquela de um indivíduo psicológico. É preciso lembrar que essa
revolta nada tem a ver com o que eu chamo de levante?
110 Germanista, tradutora, dentre outros, de Weber, diretora de pesquisa no CNRS.
111 Sobre esse Drang poderemos nos reportar à sessão de 06 de maio de 1964 (Os fundamentos da
psicanálise) onde Lacan luta para se afastar do que ele qualifica de “mitologia da pulsão”.
Em que consiste então o ponto que pôde fazer ruptura e distribuir dois campos
(psicanálise, Daseinanalyse) mantidos desde então impermeáveis um ao outro?112
Lembraremos aqui o que foi o pensamento descoberta freudiana concernindo ao
sonho:

O conteúdo do sonho é de algum modo (gleichsam) dado em uma escrita figurativa


(Bilderschrift), na qual devemos transferir (übertragen) os signos (Zeichen) um a
um na língua dos pensamentos do sonho... Seríamos evidentemente induzidos ao
erro se quiséssemos ler esses signos segundo seu valor de imagem (Bilderwert) e
não do ponto de vista do signo (Zeichenbeziehung). O sonho é esse enigma
figurativo (Bilderrätsel) e nossos predecessores 113 no domínio da interpretação
dos sonhos cometeram o erro de considerar o rébus como composto por desenhos.
114

Foi dado assim um certo cunho à imagem lida a justo título como um signo 115 e
onde ficou, no entanto, perdida enquanto imagem, enquanto potência. Foucault,
que foi ver Binswanger em seu sanatório Bellevue, escreve: “A psicanálise não deu
ao sonho outro estatuto do que aquele da fala” (sim, assim é, se não fosse que aqui
esperávamos mais por “escrita”), ou ainda (o que vou aqui tentar nuançar): “a
psicanálise não conseguiu jamais fazer falar as imagens” (citado p. 467).

Meu lacaniano afastamento da compreensão não foi eliminado, antes pelo


contrário, pela leitura que fiz do caso de Ellen West apresentado por Binswanger
como um dos cinco casos dados como exemplos de Daseinanalyse 116. O terapeuta
traduz permanentemente para sua linguagem as afirmações da paciente e, fazendo
isso, assegura-se que a compreende (um belo exemplo do mau uso da tradução).
Haveria, contudo, algo escondido, um mal-entendido na observação de Foucault,
segundo a qual a psicanálise não soube fazer falar as imagens? Não seria
exatamente a isso ao que ela se dedica ao lê-las como uma cifra portadora de
sentido? Segundo Didi-Huberman fica então negligenciada a potência da imagem.
117

112 Embora Lacan tenha contribuído à recepção de Heidegger na França, Heidegger que, com Husserl, foi uma
fonte, dentre outras, da Daseinanalyse inventada e promovida por Binswanger.
113 Artemidoro sem dúvida. Ver a esse respeito a contribuição de Gonzalo Percovich, “Oneirôgmos freudien?
Rêves érotiques. Un parcours sinueux”, em Sandra Boehringer e Laurie Laufer (orgs.), Après “Les Aveux de la
chair”. Généalogie du sujet chez Michel Foucault, Paris, Epel, 2019.
114 Citado por Mayette Viltard no seu artigo « Le trait de la lettre dans les figures du rêve », Littoral, nº 2, 1981
(acessível no site da École Lacanienne de psychanalyse).
115 O deciframento do rébus é ele mesmo sua própria prova.
116 Ludwig Binswanger, Le Cas Ellen West, trad., intrud. e observações por Philippe Veysset, Paris, Gallimard,
2016.
117 Ainda é infundado fazer um julgamento da psicanálise tomada como um conjunto quando diferentes
escolas floresceram, que são outras tantas sustentações de teses diferentes. E sem dúvida Didi-Huberman não
leu “Para além do ‘princípio de realidade’ ” de Jacques Lacan, onde, para dizê-lo em seus termos, trata-se da
“potência da imagem” tal como opera na transferência considerada fenomenologicamente.
Retomada por Didi-Huberman de Deleuze118, a distinção potência/poder é um
operador essencial de Desejar desobedecer. Didi-Huberman fundamenta larga
manu sua eleição da potência. Vários autores são mencionados. Aristóteles,
certamente, com a noção de dynamis, “princípio do movimento ou da mudança” (p.
49); Kant (p. 73), segundo quem a vida é “a potência (Vermögen) que tem um ser
de agir segundo as leis da faculdade de desejar (Begehrungsvermögen)”; Nietzsche,
assim apresentado por Deleuze (p. 144): “A vontade de potência se manifesta como
o poder de ser afetado, como o poder determinado da força de ser ela mesma
afetada”; Deleuze ainda, notando que “a potência é criadora e doadora, tendendo a
qualquer outra coisa do que um poder sobre o outro” (p. 51) 119. A diferença
potência/poder salta aos olhos se notamos, com Didi-Huberman (p. 138), que ter a
potência de tocar piano equivale a poder não tocar. Tal é precisamente a potência –
e não o poder - do analista.

O efeito, no sujeito, de uma imagem de sonho refere-se unicamente e sempre só à


cifragem? Foucault e Didi-Huberman afirmam que não, e só podemos dar-lhes
razão, se apenas lembramos que uma imagem de sonho pode levar alguém a ter
um orgasmo. Basta aliás que uma imagem não esteja presente, mas simplesmente
que seja evocada por um escrito para que um fulano acordado chegue ao mesmo
resultado ao se masturbar (a dita “leitura com uma só mão”). E alguns, no ato
sexual, ficam excitados não pelo parceiro presente (suas carícias, sua excitação),
mas por uma imagem à qual apelam para, como se diz, “chegar lá”. Uma vara tendo
duas pontas, observava Raymond Devos, se cortamos uma ponta, terá sempre duas
pontas. Conclusão do humorista: “Uma ponta é irredutível. ” O mesmo se passa
com o “chegar lá” da relação sexual. Uma irredutível ponta fica na mão: não há
relação sexual. A cena do fantasma, o fantasma enquanto cena, enquanto quadro
vivo (caso paradigmático de “Bate-se uma criança”) não seria ela mesma outra
coisa do que o efeito de uma gramática 120 (Freud, Lacan), ou seja uma imagem
potente? Não seria enquanto imagem que o fantasma solicita a libido? Em seu
Diário clínico, Sandor Ferenczi relata o caso de uma mulher que não podia ver
nenhum sofrimento, notadamente, acreditava ela, o de um homem com uma
ereção. Esse pensamento fantasmático lhe era “a tal ponto insuportável que ela
[devia, para “deve”] se oferecer a esse homem para amenizar seu sofrimento” 121.
Aparece aqui, ao mesmo tempo, como um fantasma pode incitar ao ato e de que
maneira esse fantasma vem recobrir o “troumatisme” da inexistente relação sexual.
Mais delicado de tratar, se apresenta o problema seguinte: praticando cortes nas

118 Ele mesmo tomando suas referências em Nietzsche: “O conceito vitorioso da força, graças ao qual nossos
físicos criaram Deus e o universo, necessita de um complemento, é preciso lhe atribuir um querer interno que
chamarei a vontade de potência” (Friedrich Nietzsche, La Volonté de puissance, trad. Geneviève Bianquis, Paris,
Gallimard, 1942, § 51).
119 Outras referências são também oferecidas: Lorca, Canetti, Brecht, Bataille, Blanchot, Michaux, Guattari,
Negri, Agamben...
120 Ou então, em Lacan, um axioma, “uma resolução tão clara quanto violenta”, escreve a esse respeito Guy Le
Gaufey (Le Cas em Psychanalyse. Essai d’épistémologie clinique, Paris, Epel, 2020, p. 91-98).
121 Sandor Fereczi, Journal clinique, trad. pela equipe do Coq Héron, prefácio de Michael Balint, prólogo de
Judith Dupont, posfácio de Pierre Sabourin, Paris, Payot, 2014, p. 264.
pernas daquelas que elas acabavam de matar, as irmãs Papin não teriam em mente
a imagem das marcas que o padeiro faz com a incisões em suas baguettes de pão?
122 Afastar esses fatos, contudo tão patentes, seria repelir a crítica foucaultiana de

uma psicanálise que desconhece (versão Didi-Huberman) a potência da imagem. “A


potência de sonhar se desenvolve muito além de uma organização em rébus”,
escreve Didi-Huberman (p. 466). Que seria esse além?

Basta considerar a potência das imagens nas diversas devoções católicas (devoção
ao menino Jesus, ao sagrado coração de Jesus, à pessoa humana do salvador, etc),
para eliminar qualquer dúvida a esse respeito. Em O Cristo imaginário do século
XVII 123, Jacques Le Brun estabelece que os dogmas da teologia trinitária, a
Cristologia, a doutrina da salvação e da redenção não conseguiram enfraquecer as
“crenças e práticas ligadas às imagens” (p. 124). Ele escreve (p. 73): “O desejo de
ver e de se apoiar em signos e imagens era grande no catolicismo. ” Chegou-se
mesmo a atribuir a certas imagens o que estava reservado à hóstia, onde era
admitida a “presença real” do Cristo.

É também o amor que suscita a imagem, isto desde a Antiguidade grega 124. Freud a
vislumbrou, mesmo que fosse apenas na aventura de Norbert, o arqueólogo
apaixonado por uma (imagem de) mulher: Gradiva, “com seu radiante andar”.
Freud instala em seu consultório uma cópia que viu na Itália. Norbert ficou
fascinado por essa imagem em movimento e um canto de canário (analítica do
laço) enquanto que intervinha ali mesmo e como subterrâneamente um levante
(analítica celibatária) se, por “levante”, entendemos, como Didi-Huberman, “um
movimento fora de si” (p. 296), uma avalanche, um elã feliz, uma potência poética,
um desejo de liberdade com consequências imprevisíveis 125 e, como Foucault, um
evento que escapa à história, uma “subjetivação”, ou seja “a transformação do
sujeito assujeitado em sujeito de liberdade” (p. 471). Poderíamos julgar defasada a
visão de um tal percurso subjetivo. Poderíamos salientar sua origem em Hegel ou,
mais distante (acredita-se), na escatologia cristã. Nietzsche já não havia
diagnosticado nas filosofias da história uma das mais potentes “sombras de Deus”?
Seria preciso qualificar, no caso, de maneira semelhante os percursos descritos por
Lacan (a rocambolesca descrição do percurso de uma análise desde seu começo até
seu final na inaugural conferência de 1953, o recorte do pequeno a no plano
projetivo, a série de Fibonacci e seu limite, a operação aritmética da divisão do
sujeito [em A Angústia], e outros mais). A partir do momento em que recusamos
ver no sujeito uma inabalável figura em suspenso em sua vida, a partir do

122 Francis Dupré, La “Solution” du passage à l’acte. Le double crime des soeurs Papin, Toulouse, Érès, 1984, p.
243 (reedição Paris, Beauchesne, 2021, prefácio de Jean Allouch).
123 Jacques Le Brun, Le Christ imaginaire au XVII siècle, Paris, Jérôme Millon, 2020.
124 John J. Winkler, Désir et contraintes en Grèce ancienne, Prefácio de David Halperin, trad. Sandra Boehringer
e Nadine Picard, Paris, Epel, 2005.
125 Didi-Huberman cita Brecht: “A liberdade só pode ser criada pela liberdade, quer dizer, pela sublevação de
todo o povo” (p. 254).
momento em que não se trata mais desse inalterável sujeito, somos levados a
conceber tais percursos.

Como se suspeita, depois do que acaba


de ser descrito, Desejar desobedecer é
um livro de imagens; ele tem várias
delas. Pelo menos a meu ver, a mais
impressionante imagem do levante
apresentada nessa obra é a de um
menino. Ei-la aqui (intifada é a palavra
árabe para “levante”).

Quando eu encontro em Desejar


desobedecer certas temáticas que, em
parte, me foram impostas pela
apresentação da segunda analítica do
sexo (levante, liberdade, vontade) ou
que impuseram essa analítica
celibatária, chego à conclusão de que foi

Éric Feferberg, Intifada, 1988. Fotografia


publicada na Revue d’études palestiniennes,
N. 27, 1988 (“Soulèvement général: la
revolte des pierres”) in Désirer désobéir, p.
425. (N. do T.)

por ter se fixado na analítica do laço, do pequeno a (a primeira) que Lacan passou
ao lado da imagem enquanto potência de levante (erótico, amoroso, ético, político,
guerreiro, etc). Era de pequeno a atrás da imagem [matema i(a)], pensava-se 126,
que essa tomava sua pregnância e seus efeitos – e não da imagem em si mesma.
Dito de outro modo, foi a noção de objeto foi a que esmagou e mascarou o
problema que volta agora na análise a partir de seu exterior. Seria correto chamar
de “objeto” tanto um parceiro (erótico, amoroso) como um objeto pequeno a? Que
aproximemos os dois ao ponto de colá-los um ao outro? O matema i(a) parecia
resolver o problema; em parte, ele nada mais fazia do que evacuá-lo.

Do fantasma

O mesmo ocorreu no que concerne ao fantasma, então me dedicarei a esse respeito


a devolver à Lacan o que é de Lacan e aos lacanianos o que é obra deles. Segundo
alguns, uma suposta “travessia do fantasma” seria o ponto final de cada análise.

126 O agalma permanece aqui em segundo plano, objeto apropriado para encantar Alcibíades, que o busca no
corpo de Sócrates (J. Lacan, Le Transfert dans sa disparité subjective, sa prétendue situation, ses excursions
techniques, (versão crítica transcrição).
Desde logo vemos que não é assim em Lacan quando observa, em sua construção
progressiva do “grafo do desejo”, que o fantasma ($ <> a) está situado apenas como
uma estação em um percurso, uma estação salientada, na versão 3 inacabada desse
grafo, e logo suplementada no “grafo completo”127.

Versão 3
Grafo completo

Em Lacan, encontramos apenas uma única ocorrência dessa “travessia do


fantasma” 128 que se difundiu tal como um rumor flamejante, como o fez uma usina
classificada Seveso 129 depois de uma explosão em um de seus prédios. Lido
rapidamente, o único enunciado de Lacan parecia oferecer em efeito sua sede ao
que ocorreu depois. Em 24 de junho de 1964, ele se colocava uma curiosa questão,
“curiosa” pois, psicanalista, ele não tinha nenhum meio de responder a isso e o
sabia:

Como um sujeito que atravessou o fantasma radical pode viver a pulsão? Isso está
para além da análise, e jamais foi abordado. Ele é até o presente momento
abordável apenas no nível do analista, uma vez que será exigido dele ter
precisamente atravessado [segunda ocorrência] na sua totalidade o ciclo da
experiência analítica. 130

De uma questão sem dúvida interessante, embora mal colocada (ao apelar a uma
resposta fora de alcance da experiência), constitui-se o núcleo e a conclusão do
dito “ciclo” analítico. Foram vários que se dedicaram a isso: primeiramente Érik
Porge, em um artigo publicado em Delenda n° 4 em 1981. Tendo sido

127 Essas duas versões nas páginas 829 e 831 dos Escritos, op. cit.
128 É perfeitamente possível dar uma grande importância a um enunciado de Lacan não repetido mil vezes
como alguns, mas formulado uma única vez.
129 Várias diretivas europeias classificaram certos sítios industriais como “Seveso”, assim reconhecidos como
perigosos depois da catástrofe sobrevinda em uma usina próxima da cidade italiana de Seveso.
130 J. Lacan, Les Quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Paris, Seuil, 1973, p. 246.
imediatamente seguido por Moustapha Safouan e muitos outros: Gérard Pommier,
Contardo Galligaris, Jean-François Chabaud, Jeanne Granon-Lafont. A travessia do
fantasma agradou [a plu], ou melhor, choveu [il a plu] travessia do fantasma. Com
esse efeito, talvez secundário, de que conservamos em mente descobrir um dito
“fantasma fundamental” durante todo o percurso de cada cura. Habitado por essa
intenção (ou de qualquer outra, curar, por exemplo) um psicanalista abandona sua
função.

Ao que então atribuir essa chuva, esse sucesso? O momento Delenda onde foi
lançada essa opinião invasora foi um momento marcado no qual se gritava forte
em favor da destruição da École freudienne porque se estava prestes a fundar uma
nova escola que iria reconduzir muitos traços da antiga, mas não sem desviá-los
(notadamente o passe promovido por alguns que se mostravam reticentes a ele).
Delenda? Um momento de consternação, uma travessia no deserto. Esta ausência
momentânea de pontos de referência, essa flutuação, era tão mais explícita quanto
mais os praticantes vindos da École freudienne se perguntavam inquietos: “Eu
realmente terminei minha análise? ” – subentendido: “conforme o que Lacan pode
avançar concernindo a esse final de análise” – isso sem que jamais uma versão
definitiva do que seria esse término tivesse sido proposta. Em vez disso, veio nesse
terreno em repouso uma proposição, aquela de outubro de 1967. Lacan se rendia
aos lobos131, ou melhor, aos ouriços132.

Retomando por sua conta as variações apresentadas por Freud que culminaram na
fórmula “Bate-se uma criança”, Lacan insistiu na gramática do fantasma, voltarei a
isso. Menos conhecida, em contrapartida, é a afirmação, também única, segundo a
qual o fantasma tinha seu estatuto de um axioma. A ideia de que atravessaríamos
um axioma não tem nenhum valor: o adotamos ou não. E, igualmente inapropriado,
fazer referência a uma “lógica do fantasma” equivalia a mudar de registro, a não se
contentar mais com o fato de que uma gramática possa dar conta de sua incidência
no sujeito.

O que vocês têm que fazer é encontrar em cada estrutura, definir as leis de
transformação que assegurarão a esse fantasma, na dedução dos enunciados do
discurso inconsciente, o lugar de um axioma.133

Um axioma não é nem verdadeiro nem falso. 134 Adotá-lo permite a produção de
enunciados que, por sua vez, podem ser verdadeiros ou falsos (os teoremas). Essa
proposição de Lacan parece indicar que se deve realizar de trás para a frente este
procedimento dos matemáticos à maneira de Hilbert ou de Bourbaki: segundo
Lacan, não se dar de início um axioma, e sim resultar em um axioma a partir dos
“enunciados do discurso inconsciente”. Por que razão chamar de “axioma” esse

131 “Lobos” no plural, pois eles eram vários a se encontrar implicados no dispositivo do passe.
132 J. Allouch, Transmaître, Jacques Lacan et son éleve hérison, op. cit.
133 J. Lacan, A Lógica do fantasma, 21/06/1967.
134 Poderemos consultar a esse respeito o parágrafo “Valor axiomático do fantasma” da obra de G. Le Gaufey,

Le Cas en Psychanalyse, op. cit., p. 91-98.


resultado? Denominá-lo assim é dar-lhe o estatuto de um “indicador ou índice da
enunciação” [embrayeur] (eu diria) dos ditos enunciados inconscientes. Supomos
que provenham dele como um teorema depende da axiomática eleita de início.
Segundo a palavra que, sem dúvida, teremos retido, esse fantasma axioma seria o
resultado de uma “dedução” – o que não convém ao axioma135 e contraria sua
função nos cálculos. Sem dúvida Lacan pensava mais em “indução”, ainda que
evitasse esse termo, que acarreta muitos problemas.

Além disso, o convite que faz aos analistas (“o que vocês devem fazer”, o que Lacan
mesmo já havia feito) para que busquem o fantasma axioma em cada “estrutura”
insere o problema em uma nosografia. Como já ocorria em Freud, haveria um
fantasma histérico, um outro obsessivo, etc 136. Era referir-se à psicopatologia cujo
discurso vem parasitar o discurso analítico pretendendo ao mesmo tempo, por
vezes, inspirar-se nela (“psicopatologia” não tem nem o mesmo sentido, nem o
mesmo domínio em Freud, que a aplica à vida cotidiana, que nos adeptos dessa
disciplina). Este convite renova o gesto de Freud que, tendo atualizado os
“pensamentos latentes” do sonho, induz-se deles que esses mesmos pensamentos
se encontravam no início do sonho – um gesto raramente interrogado. Ademais,
esse fantasma axioma, suposto indicador dos enunciados inconscientes, produz um
efeito inconveniente: uma vez que tenha sido trazido à luz, conduz o analista a
selecionar somente nos “enunciados inconscientes” aqueles que o confirmam. Um
pouco como esse motorista que, por ter recentemente comprado um carro verde,
só vê carros verdes por toda cidade e se espanta com isso. Os outros carros, já não
os percebe mais. Enquanto que, cúmplice sem se dar conta, o analisante pode,
também ele, alimentar essa lamentável seleção.

Essas discussões sobre a travessia do fantasma ou o fantasma axioma negligenciam


um dos traços do fantasma que eu gostaria agora de lembrar e problematizar – a
saber, o fantasma como cena, uma situação já sublinhada por Lacan quando
observa que o fantasma surge em uma janela, tal como um quadro pintado. O
fantasma é cena, ou ainda imagem. Ele tira daí seu alcance erógeno. Retomar o
problema desde seu ponto de partida (o artigo de Freud em 1919, “Bate-se uma
criança”) permitirá perceber a espécie de forçagem que terá operado a escrita
$<>a. Essa forçagem foi em seguida reduplicada por alguns lacanianos que
passaram daí à cadeia de Whitehead, afirmando que era “o nó do fantasma” – era

135 Não se trata aqui das reflexões que conduziram um matemático a adotar certo axioma em vez de outro, mas
uma vez essa escolha feita, de seu papel na axiomática que se depreende disso.
136 Ver o início de seu artigo de 1919 “Bate-se uma criança. Contribuição ao conhecimento da gênese das

perversões sexuais” (trad. por D. Guérineau, in Névrose, psychose, perversion, introdução de Jean Laplanche,
Paris, PUF, 1973). Esse texto foi escrito por um “médico analista”, designado como tal página 223. Ele é
frequentemente citado sem a menção de “contribuição ao ...”. Freud elegeu seis casos e só reteve quatro deles
(as meninas) e construiu uma espécie de retrato típico, obtido por abstração a partir desses quatro casos (que
perdem com isso suas literalidades). Esse procedimento é do início ao fim médico e buscaríamos em vão
(exceto os três enunciados prometidos a um belo futuro) essa literalidade que o mesmo lamentava em suas
apresentações de outros casos (Estudos sobre a histeria, “O Homem dos lobos”, “O Homem dos ratos”, etc).
aparentemente mais conforme ao último Lacan, ao qual ninguém compreendia,
inclusive, sem dúvida, Lacan mesmo, tão embaraçado.

Cadeia de Whitehead

Eu não poderia agora retomar esse tão discutido fantasma “Bate-se uma criança”
sem recordar primeiro o que Artaud havia escrito a propósito de “bater uma
carne” (é de fato uma carne que é batida – uma carne inocentemente gozante,
embora reconhecida como culpada, um clitóris segundo Lacan -, o que
negligenciamos ao afirmar que se trata de uma criança) uma frase que vale a pena
ser meditada137. Segundo ele, Deus (estando mergulhado na questão, como em
Lacan que, dentre outros lugares de seu ensinamento, o implicou em seu
desmantelamento do sadomasoquismo)138, Deus, portanto, cometeu o crime do
“pecado universal”. Qual crime? “Aquele de ter desejado ter uma carne para ser
batida, fazê-la maturar e tirar dela uma progenitura.”139 Bater uma carne produz
uma criança. Não poderíamos dizer melhor como o fantasma pode contribuir para
fazer existir a relação sexual.

Freud havia distinguido três tempos que me perdoarão por relembrar. Tempo I:
“Meu pai bate na criança que odeio”; tempo II (reconstruído por Freud): “Eu, sou
batido por meu pai”; tempo III: “Uma criança é batida”. Já em Freud, os três
personagens do tempo I parecem não ser mais que dois nos tempos II e III. A
fórmula do tempo I apresenta uma cena vista por uma criança que pode tirar
várias conclusões dela, segundo Freud, por exemplo, que batendo diante dela no
irmão mais novo a quem odeia, seu pai lhe passa uma mensagem de amor, ou
então, encontrar nessa violência paterna uma satisfação de seu ódio. No entanto,
não é nisso que gostaria de me deter, mas sim na notória passagem de três para
dois personagens, na transformação do tempo I em tempo II e depois em III. O que
poderia ser discutido: bastaria notar que (tempo II) a fórmula “Eu sou batido por
meu pai”, a partir do momento em que é dita a alguém, reconduziria a situação aos
três do início; e o mesmo para o tempo III, mais neutro ainda. Em todo caso, é fato

137 Nos ajuda nisso tomar conhecimento do jogo de três termos corpo/carne/espírito em Sara Vassallo, Le Désir
el la Grâce, Lacan, Pascal, Paris, Epel, 2020.
138 Sadismo: angústia do outro (sem maiúscula), gozo de Deus; masoquismo: gozo do outro, angústia de Deus

(J. Lacan, A Angústia, 06/03/1963).


139 Antonin Artaud, carta à Rolande Prevel, setembro de 1947, citada em G. Mordillat e J. Prieur, La Véritable

histoire d’Artaud le Mômo, op.cit., p. 99.


que ao escrever $<>a, Lacan como que selou uma situação de dois termos. E com
esse efeito não problematizado é então evacuada, com o espectador, a dimensão
cênica do fantasma, a imagem vista de uma criança batida140. Ademais, ficamos
com um problema no colo, pois escrever essa cena $<>a, afirmar que essa fórmula
decorre de uma lógica do fantasma bem como atribuindo ao pequeno a o estatuto
de causa do desejo, iria de encontro com a concepção corrente nos lógicos segundo
a qual não existe causalidade na lógica (ver nota 90).

É, portanto, sua álgebra que prega uma peça em Lacan, quem, como os algébricos,
prescinde da imagem. Para dizer a verdade, essa relação viciada com a imagem não
concerne somente à cena fantasmática. Agora é oportuno considerar, a esse
respeito, uma crítica à psicanálise que foi muito bem formulada e a qual, até o
presente, não se soube levar em conta, isto é, que não se soube responder.

SOBRE A ENCARPAÇÃO

Com o conceito de encarpação, a segunda analítica do sexo ofereceu à imagem um


outro estatuto. A imagem é potente (uma potência de apelo), é erógena; ela suscita
o desejo; bela, lhe prepara uma armadilha. Sua potência é então como aquela
desses fogos que acendiam na borda do oceano aqueles que não estavam ainda
colonizados bem ao sul da América Latina, luzes pelas quais se orientavam os
navios da grande Espanha conquistadora, assim conduzidos a fracassar de tal
maneira que os nativos pudessem se apropriar das riquezas que transportavam.
Está na mesma configuração a posição geralmente outorgada, no Ocidente, ao
personagem feminino que, ao mesmo tempo, encarna o Outro (em uma abreviação
notável, dizia-se na época clássica, alguém “do sexo” e sabia-se de imediato de qual
se tratava141; como se diz “o outro sexo”142, ou ainda e com Freud o “continente
negro”) e ocupa seu lugar.

Ainda será preciso questionar o papel que foi atribuído ao que a análise chama
“objeto”. Tendo feito apelo a uma pintura semi-figurativa para apresentar o efeito
possível do objeto erógeno143, posso agora precisar melhor esse efeito.
Dispensando o figurativo, o autor de Do espiritual na arte e na pintura em
particular escreveu: “o objeto prejudica meus quadros”, ou ainda “o objeto pode se

140 “A criança autora do fantasma não intervém mais, à rigor, senão como espectadora” (S. Freud, “Bate-se uma
criança”, art. citado, p. 230).
141 Assim no Tartuffe (ato II, cena 3) Marianne, dando a réplica à Dorine: “Mas por uma alta recusa e explosivos

desprezos/ Farei em minha escolha ver um coração demasiado apaixonado? / Trarei para ele algum vigor do
qual ele brilha, / Do pudor do sexo e do dever de garota? / E queres tu que meus ardores pelo mundo
manifestados...? ” Le Dictionnaire historique de la langue française observa que “O sexo para as mulheres
(1440-1475) saiu completamente de uso”, como também desapareceram “soberano sexo” e “sexo promíscuo”.
142 Até o momento, não soubemos apreender todas as consequências de uma perturbadora proposição de

Jacques Lacan (perturbação no gênero) que afirmava: “Digamos heterossexual por definição esse que ama as
mulheres, qualquer que seja seu sexo próprio. Isso será mais claro” (“O Aturdito”, 1973).
143 Em Jean Allouch, L’Autresexe, Paris, Epel, 2015, p. 185.
fundir no ato mesmo que o pinta”144, Kandinski experimentou primeiro esse dano
na presença de um quadro de Claude Monet onde notava ele que se o catálogo da
exposição não lhe tivesse indicado que se tratava de um monte de feno, não teria
podido discerni-lo. Esse Monet vibrava um “brilho luminoso”. Ele extraiu desse
quadro uma lição: o objeto “enquanto elemento indispensável do quadro caiu em
descrédito.”145 O mesmo ocorre quando se trata do objeto em psicanálise, pelo
menos em Lacan, onde distingo uma segunda analítica do sexo. Primeira analítica,
aquela do laço: o objeto é nela reconhecido como erógeno; o devendo também à
potência de imagem, sustentada por sua vez pelo pequeno a (pelo agalma, para
Alcibíades seduzindo Sócrates). Ele suscita o desejo. O que, então cego, fascinado, o
desejante não percebe é sua função de defesa (termo aqui retomado de Lacan
quando afirma que a sexualidade é uma “defesa contra o sexo”) ou ainda, a beleza
do objeto146 vista por Lacan como uma barreira contra a segunda morte:

Nesse campo [aquele “onde nós, cristãos147, nós varremos de seus deuses”, foi
precisado pouco antes] o limite do qual se trata, essencial para que apareça ali por
reflexão certo fenômeno que, em uma primeira aproximação, chamei de fenômeno
do belo, foi que eu comecei a apontar, a definir como o da segunda morte.

Uma defesa como essa se eleva contra a pintura mesma, segundo Kandinski; defesa
contra a inexistência da relação sexual segundo Lacan. Que o objeto não seja mais
considerado no ato mesmo de pintar (como em Kant segundo Lacan 148), que não
seja mais uma indispensável figura, como se passa também em Mondrian 149, e sim
um impedimento para esse ato, dá lugar, faz lugar à ausência de relação sexual, à
segunda analítica do sexo, aquela que faz o sujeito celibatário. Sua descoberta do
objeto a, sua insistência nesse objeto reconhecido como “causa do desejo” não
permitiram à Jacques Lacan considerar essa reviravolta na pintura moderna. Muito
pelo contrário, elas o impediram. E nos espantamos ainda mais porque ele soube
fazer notar que a invenção da escrita mesma (capítulo VII – Lettre pour Lettre,
Paris, Epel, 2021) provinha de um mesmo gesto onde a imagem do objeto era
dispensada.

144 Vassily Kandinski, Regards sur le passé et autres textes (1912-1922), edição estabelecida e apresentada por
Jean-Paul Bouillon, Paris, Hermann, 2014, p. 97. Kandinski retorna a essas observações nas páginas 105, 109,
115, 126 e 196 da obra.
145 Id., Regards sur le passé, op. cit., p. 60.
146 Sobre essa beleza do objeto, podermos nos reportar aos três esclarecedores estudos de Jacques Le Brun,

capítulo III da obra Le Christ imaginaire au XVII siècle, op. cit.


147 “Nós cristãos” é repetido por três vezes nessa breve passagem (A Ética da psicanálise, sessão de

01/06/1960). O que não impede a Lacan, muito pelo contrário, declarar que a imagem do Cristo crucificado é
uma ”apoteose do sadismo”. Nem de acrescentar que “dos devaneios das jovens puras até os acasalamentos
das matronas, o fantasma que guia o desejo feminino pode estar, por essa imagem de Cristo na cruz,
literalmente envenenado”. “Envenenado” eu não saberia encontrar um termo mais justo para dizer a peça
pregada a cada mulher pelas mídias de todas as ordens (revistas femininas, canções, romances, etc) que lhes
atribuem ao lugar do Outro (encarpação) e que o resumiria com um chiste: “Seja bela e cale-se.”
148 “As formas que operam no conhecimento, nos diz Kant, estão implicadas no fenômeno do belo, mas sem que

o objeto esteja concernido” (Sublinho). (J. Lacan, A Ética da psicanálise, 01/06/1960).


149 George-Henri Melenotte dedica um capítulo de sua obra L’Insistance de la lettre chez Lacan (Epel, 2021) à

apresentação e ao estudo do desaparecimento da figura pintada em Mondrian por Hubert Damisch (Fenêtre
jaune cádmium ou Les Dessous de la peinture, Paris, Seuil, 1984).
Por essas frequentações, suas visitas às galerias e aos museus, Lacan estava de
alguma forma informado, ou até advertido, do passo ao lado realizado pela pintura
moderna em relação ao “objeto”, id est ao personagem feminino. Não é, no entanto,
essa pintura de sua época que inspirou sua teoria do quadro como logro para o
olhar150. Ele compra A Origem do mundo (logro para o olhar, se é que existe); para
melhor surpreender seus visitantes a quem ele a mostrava, ele recobre essa peça
de Courbet com um tapa-sexo, um quadro de Masson que retoma abstratamente a
primeira pintura, enquanto que a modernidade pictórica deveria tê-lo incitado a
realizar exatamente o contrário.

Lacan se remeteu aos Embaixadores de Holbein, pintado em 1533, para


fundamentar seu logro para o olhar. Em 1973, promove esse Holbein na capa dos
Quatro Conceitos fundamentais da psicanálise. Em suma, tratando-se de pintura,
não se acomodou ao que, no entanto, ele prescrevia aos seus alunos, ao mesmo
tempo, que se dizia pertencente às Luzes, ou seja, reencontrar-se com a
subjetividade de seu tempo. Sobre esse ponto, ficou dependente da primeira
analítica do sexo – e podemos ver aí um caso disso, também exemplar, com as
infelizes incidências da descoberta e da promoção do pequeno a 151: a ênfase
colocada no objeto olhar fez naufragar a análise da pintura.

“Em arte, o essencial não é o que o artista representa (entendamos por isso não o
conteúdo estético, mas a natureza), mas como o representa” 152: assim Kandinski
formula o credo impressionista, que ele não adota (p. 196). Ele, por sua parte, só
alcançou o espiritual na arte ao abandonar toda tentativa de pintar o objeto, ao
apreender que o objeto era um obstáculo ao ato de pintar, como também, a
focalização do analista no objeto a é um obstáculo ao ato analítico, ao seu término.

O objeto desaparecendo deixa advir a analítica celibatária. O eco dessa passagem,


ou viragem, da primeira para a segunda analítica foi mostrada por Kandisnski que,
tendo escutado um célebre pintor declarar: “Pintando, um olhar na tela, um meio

150 “Eu não lhes mostrei esse objeto, [...] que está aqui, para apanhar, e eu diria quase para apanhar na
armadilha, aquele que olha [le regardant]” (Os Fundamentos da Psicanálise, 04/03/1964).
151 Embora a teria que ele trouxe à luz a partir dos Embaixadores foi produzida antes mesmo da invenção de

um “objeto pequeno a” diferente do outrinho.


152 V. Kandinski, Regards sur le passé..., op. cit., p. 196.
olhar na paleta e dez no modelo”153, replicou: “Para mim, isso deveria ser o
inverso.” Uma outra maneira do exercício pictórico e analítico está aqui em jogo.

Em outras épocas, em outras culturas, outros “objetos” puderam ser eleitos como
tendo a mesma potência de apelo. Aliás, qualquer figura pode comparecer nesse
lugar e com esse valor bivalente maliciosamente oferecido às mulheres ocidentais.
Mais vale mais dar um passo ao lado e se afastar.

O que será então que mantém sentadas durante tanto tempo essas pessoas na
borda desse jardim em Kyoto (o Ryoan-ji, templo budista zen)? Colocado na
presença dessa imagem, meu leitor não poderia aceder à resposta, pois apenas
aqueles que forem até essa borda podem ter uma experiência surpreendente e
talvez desapercebida por eles: em qualquer lugar que eles decidam se sentar,
nunca poderão ver o conjunto dos quinze rochedos depostos com este fim sobre
um cascalho cuidadosamente rastelado. Ao menos um rochedo estará sempre
subtraído do olhar.

i Jean Allouch, Lettre pour lettre (1984), Transcrire, traduire, translittérer, suivi de L’altérité littérale
(postface 2021), Paris, Epel, 2021. (Letra a Letra: transcrever, traduzir, transliterar. Trad. Dulce
Duque Estrada. Rio de Janeiro, Campo Matêmico, 1995.) [N.d.T].
ii « Consideraremos então, a interpretação delirante diversas vezes mencionada por Guiraud e

extraída da observação de um certo M.: “Uma vez, vendo um enfermeiro que usava um colarinho de
celuloide, concluiu disso que o jogo de damas que usava lhe foi enviado da Alemanha por Lulu, a
filha de seu patrão. Com efeito, pronunciando sempre com o sotaque alsaciano, celuloide [celluloïd]
representa c’est Loulou Lloyd (é Lulu Lloyd), sendo Lloyd a companhia de navegação que
transportou a encomenda. ” Essa interpretação atrai várias observações». (J. Allouch, Letra a letra,
Rio de Janeiro, Campo Matêmico, 1995, p. 171).

153 Ibid., p. 115.

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