Contos - Contos Fantasticos 02
Contos - Contos Fantasticos 02
Contos - Contos Fantasticos 02
FANTÁSTICOS
02
TOMMY E O CÃO FALANTE - Lewis Shiner
– Se você puder responder três perguntas, – disse o cão, – poderá usar dos tênis
mágicos.
Tommy olhou para um lado e o outro da rua deserta. – Você... falou alguma
coisa?
– Isso mesmo. Não me ouviu?
Era uma voz rouca e irritada, com um sotaque inglês e com certeza vinha do cão.
– Você é um cachorro
De fato, um enorme e gordo bulldog, com dobras de pele penduradas nos lados
da cara. De onde estava sentado, nos degraus da frente de um motel abandonado,
parecia olhar para Tommy direto nos olhos.
– Correto – disse o cão.
Tommy encarou as janelas empoeiradas do escritório do motel.
– É um truque, não é? A câmera de TV está escondida e você quer me fazer de
bobo.
– Não é uma pegadinha Tommy. São só três perguntas.
– Vamos lá!- disse Tommy e engrossou a voz e disse:- Senta.- O cão
continuava a olhar para ele.
– Role. Finge de morto.
– Para de babaquice, você quer ou não os tênis?
– Deixe-me vê-los.
O cachorro moveu-se, revelando um par de tênis All Star Converse vermelhos,
velhos e acabados.
– Estão usados.
– Talvez, mas são mágicos.
– Quais são as perguntas?
– Qual dos presidentes morreu durante o mandato? Lincoln, McKinley ou
F.D.R.?
– Qual é! Todos eles. Esta é o mesmo tipo de pergunta estúpida que fazem
quando querem te vender porcarias pelo telefone.
– O que pesa mais, um quilo de chumbo ou um quilo de penas?
– Ambos pesam um quilo. Isso é besteira. Vai me perguntar agora quem está
enterrado no tumulo de Grant?
O cão apertou os olhos – Já fez isso antes?
– Ulysses S. Grant- disse Tommy. - Me dá os tênis.
Eram do seu tamanho e sentiu-se bem com eles, mesmo estando gastos e mesmo
com aquelas coisinhas de metal tendo caído.
– Não sinto nenhuma diferença.
– Você precisa deles para procurar pelo tesouro – disse o cão.
– Que tesouro?
– Quando está usando os tênis mágicos, você consegue abrir as portas dos
quartos do motel.
– Sei, sei. Não obrigado, meus pais me disseram para não entrar lá. Alem de
tudo estão vazios.
O cão deu de ombros. Tommy nunca vira um cão fazer isso antes.
– Você é quem sabe.
– Ei, espere um minuto. me fale do tesouro.
– Vai ter que achar sozinho.
O cão começou a ir embora.
– Ei, volte aqui- disse Tommy.
O cão continuou a se afastar.
Tommy mexeu com seus dedos dentro dos tênis. Mágica. Olhou para a fileira de
quartos do motel, a poeira das paredes parecia dourada na luz da tarde de Maio.
Estaria em apuros se o seu pessoal descobrisse que estava ali.
Foi até a primeira porta e a abriu.
Dentro, uma mulher sentada na cadeira, assistindo televisão. Tommy sentiu uma
onda quente beijar seu rosto. – Caramba, desculpe- ele disse, - não sabia que
tinha gente aqui.
– Tudo bem Tommy,pode entrar- ela disse.
Tommy deu um passo para dentro do quarto.
– Você me conhece?
– Claro- disse a mulher. - Você está usando meus tênis.
Ela era um pouco mais velha do que sua mãe, e muito gorda. Uma caixa de
chocolates aberta, junto ao seu braço.
– Quem é você?- perguntou Tommy.
– Ninguém. Só uma mãe.
O quarto era maior do lado de dentro do que fora e não se parecia com um
motel. Tinha um berço no canto escuro, com duas crianças dentro.
Um deles batia no outro com uma cobra de plástico. Uma terceira criança se
arrastava no chão, puxando um cobertor. O lugar fedia, como leite estragado e
café velho e banheiro da escola.
A voz de um homem saia do aparelho de televisão e dizia – Susan está grávida
do meu filho.
– O que voe está vendo?- perguntou Tommy educadamente.
– Nada. Só um programa.
O garoto que apanhava do outro, começou a chorar. A mãe jogou um chocolate
na boca.
– Bem...
Tommy se sentia daquele jeito, como quando está chovendo e ele queria ir nadar
na piscina.
– Eu tenho que ir
– Shhh! Esta parte é boa.
Tommy saiu sem fazer barulho e fechou a porta. Pensou no que o cachorro
esperava que ele encontrasse. Foi para a porta seguinte e bateu gentilmente.
– Entre- disse a voz de um homem grande.
Tommy abriu a porta e viu a sua frente uma longa mesa de madeira. Atrás do
homem na mesa havia uma janela com persianas estreitas, impedindo o sol de
entrar. Assim era difícil ver o rosto do homem.
– Tommy! Vamos, entre!-
Ele se levantou e esticou a mão. Tommy a apertou e eu um passo para trás.
– Como você está?
– Bem. Como sabe quem eu sou?
Tommy sentou-se numa cadeira, grande demais para ele. Reparou em um cheiro
esquisito e cheirou a mão. Loção apos barba, tão forte que fez os olhos de
Tommy se encherem de lágrimas.
– Sabe alguma coisa a respeito de um tesouro?- ele perguntou.
– Um tesouro...
O homem se recostou e Tommy pode ver seu bigode e como ele penteava o
cabelo por cima da careca. Não era velho, mas tinha olheiras e seu sorriso
serpenteava, parecia querer sair do rosto.
– Bem, acho que não posso dizer onde achar um baú cheio de dobrões de ouro,
mas posso lhe dizer o que o fará rico.
Debruçou-se sobre a mesa e sussurrou: – Supercondutores.
Tommy pensou num homem de azul e vermelho, usando uma capa, pegando
tíquetes em um trem.
– O que?
– Supercondutores. São como metal, sabe como transportam eletricidade? Mas
fazem melhor e são frios, muito frios... bem,diabos, não sei muito como
funcionam, mas tem uma fortuna lá.
E bateu na mesa.
– Uma fortuna!
Uma caixinha na mesa zuniu e ele apertou um botão e disse: – Sim?
Em resposta uma voz feminina se ouviu:
– Mister Cornell na linha sete.- disse como se quisesse sussurrar e cantar ao
mesmo tempo.
– Segure o velho gordo um pouco meu doce- E não se esqueça do nosso
encontro esta noite. Arranjei um quarto para nós no motel.
O homem piscou para Tommy e apertou outro botão da caixa.
Sobre a mesa a foto de uma mulher e duas crianças. Aquela mulher não parecia
com aquela da voz na caixinha.
– Não diga nem uma palavra pra minha esposa Tommy. Sabe como é.
– Não- respondeu Tommy – Como é?
Antes que ele pudesse responder, a caixa zuniu de novo.
– Desculpe, mas Mister Connel diz que é urgente.
O homem agarrou o telefone e socou a luz piscante.
– Maldição JC, o que diabos está te comendo o rabo agora? ,,,você o que? ...você
o que?
Colocou o fone de novo na mesa. Seu rosto estava da cor de cimento.
– Supercondutores- sussurrou e começou a jogar umas pílulas sob a língua.
– Melhor eu ir agora- disse Tommy. O homem não respondeu e Tommy correu
para fora.
Nunca viu mais o cachorro. Até olhava pela janela quebrada mas os tênis tinham
desaparecido. Seus pais sabiam que algo o aborrecia e seu pai tentou conversar
com ele: - Você acredita em Mágica papai? Animais que falam, coisas assim?-
– Bem Tommy- começou a dizer e limpou a garganta.
Tommy reparou que o pai começara a repartir o cabelo, cobrindo uma área da
cabeça.
– Coisas assim são chamadas de alegorias. Quer dizer que não são reais, mas
existem por algum motivo real. Entende? É como se um animal em uma história
fala alguma coisa, pode significar que você está recebendo uma mensagem do
seu consciente ou algo assim.
– Mas não é real.
– Não de verdade.
Olá!
Se vocês estão recebendo esta mensagem (e se estão tendo sucesso em
compreendê-la, é claro) então vocês já passaram pelo teste mais difícil. Vocês
possuem a competência básica no que se refere à física e a engenharia, além de
alguma compreensão do universo em que vivem, para interceptar sinais da Rede
de Informações Galáctica,
Congratulações! Isso é muito mais do que a maioria das culturas alcançam,
então vocês estão bem avançados! Congratulem-se com uma pancadinha no...
bem, onde quer que vocês dêem pancadinhas de agrado entre vocês.
O próximo passo se escolher seguir em frente, é responder esta mensagem para a
Rede de Informação Galáctica. É fácil - tudo que precisam fazer é gerar um sinal
de onda gravitacional modulado de uma fonte de quatro bilhões de megawatts.
Pode parecer muito, mas não é verdade – trata-se de apenas um por cento da
energia emitida pela estrela tipo-G que seu planeta orbita.
Vamos lá - não vão desistir agora!
Mas espere! Antes de enviar a mensagem de retorno (e estamos ansiosos por
ouví-la) existem algumas poucas coisas que devem ter em mente! Chamem de
regras, de orientações, do velho bom senso - não importa, desde que obedeçam
sem questionar!
É brincadeira. Mas, existem algumas pequenas coisas que devem ter em mente.
apenas para evitar gastar uma dispendiosa banda galáctica.
Para tal, vamos lhes dar algumas dicas e que podem vir a achar úteis.
Primeiro, as novas culturas gostam de saber um pouco sobre a Grande
Comunidade Galáctica - e quem pode culpá-las! É uma velha e grande Galáxia
lá fora e vocês acabaram de chegar à festa!
Por agora, tudo que vocês precisam saber é que vocês são um dos membros mais
novos a habitarem esta galáxia e existem alguns testes pelos quais precisam
passar, antes de ascender a um segundo nível de senciência.
Não fiquem desmotivados, vocês vão chegar lá no fim, se esforçarem-se para
isso! Tudo que precisam é de inteligência, determinação, e talvez uma breve
extensão na seqüência de vida normal da sua estrela! Enquanto isso, preparamos
um Primeiro Pacote para que vocês possam iniciar. Existe tanta informação
neste Primeiro Pacote - que é demais para ser comprimida em um sinal de onda
gravitacional! Então o que fizemos foi pre-instalar o Primeiro Pacote de
informações no oceano de hidrogênio metálico do maior planeta gigante gasoso
do seu sistema!
É isso - ele já está lá!
E se vocês já encontraram este Primeiro Pacote, devem estar se perguntando
para que serve aquela bola cinzenta, ela serve para - bem, agora vocês já sabem!
Tenham cuidado a abrí-la - ou vocês já descobriram? Bem, era um belo gigante
gasoso enquanto durou.
Brincadeirinha! Mas uma das coisas que vocês devem ter percebido no Primeiro
Pacote é que ele não fala nada sobre viajar mais rápido do que a luz! As novas
espécies ficam ansiosas sobre aprender como funciona, por alguma razão
inexplicável! Tudo que podemos dizer neste momento é que uma vez que vocês
tenham ascendido para o segundo nível de senciência, vocês acharão a questão
do - mais rápido que a luz- tão interessante quanto - métodos rápidos de curar
doenças de pele- ou - maneiras rápidas de fermentar o fluido lácteo mamífero- !
Acredite em nós! Já fomos assim, uma vez há muito tempo! (e não, nós não
ligamos mais para nisso!) O Primeiro Pacote deve responder várias perguntas
básicas e ainda mais! Quase sempre, acreditem, vocês acabarão com mais
perguntas do que gostariam! Não nos incomodamos com isso - estamos aqui
para isso! Mas antes de começarem a disparar um monte de perguntas
aleatoriamente, dêem uma rápida olhada no que se segue! Isso irá poupar seu
tempo - e o nosso!
Primeiro, tenha certeza de que a sua pergunta não está respondida no Primeiro
Pacote! Parece obvio - e é, mas vocês ficariam surpreso como muitas culturas
não parecem ler seus primeiros pacotes por completo! Lembre que o Primeiro
Pacote é altamente coerente e certas camadas de conteúdo podem não estar
acessíveis diante do seu atual horizonte de percepção espaço-temporal! Sejam
pacientes!
Segundo, alguns poucos tópicos estão cobertos pelo Primeiro Pacote que -
podem parecer deixar a desejar quanto a perguntas de um certo nível cultural,
que não são de nosso interesse! Francamente, estamos satisfeitos! Alguns - mas
nem todos - destes tópicos, incluem perguntas relativas a Seres Supremos, O
Nascimento, A Vida, A Morte, O Além, a possibilidade de outros universos, a
explicação oficial sobre o grande vazio de z=10, e a imprevista inatividade da
rota do Braço de Orion durante o décimo quinto ciclo de rotação galáctica e a
possível implicação disso para a Nona Extinção em Massa (e o subseqüente
encobrimento)!
Se vocês conseguirem passar além destes tópicos, camaradas, será ótimo!
E também, por favor, não respondam a nenhuma transmissão originalmente
gerada do aglomerado globular de M13 em Hércules - e nunca mandem
mensagens não solicitadas! Especialmente por rádio - eles odeiam rádio!
Também cuidado com mensagens originadas de culturas ascendentes do nível
três, especialmente daquelas que oferecem conversões baratas e suspeitas para
seu sistema solar! Acreditem em nós - são boas demais para serem verdade!
Vocês também irão querer se manter distantes de qualquer entidade que finge ser
herdeiro legal de ativos de culturas descidas do nível dois, no limite de Cisne -
definitivamente não passem para eles as coordenadas de seu sistema!
Ah, antes que esqueçamos - nunca, jamais perguntem o que aconteceu com os
humanos! A menos que vocês queiram descobrir!
Dizer que Henry Armstrong estava enterrado não era motivo suficientemente
convincente para acreditar que estava morto. Sempre havia alguém difícil de se
convencer.
O testemunho de seus sentidos o obrigava a admitir que estava realmente
enterrado.
Sua posição, estendido com a boca para cima, as mãos cruzadas sobre o
estômago e presas com algo que se rompeu facilmente, sem que se alterasse a
situação - e o estrito confinamento, a negra escuridão e o profundo silêncio
constituíam uma evidência impossível de contradizer, e Armstrong aceitou sem
perder-se em outros pensamentos.
Mas morto... não. Apenas doente, muito doente, assim que com a apatia de um
inválido, não se preocupou em demasiado com tal estranha sorte. Não era um
filósofo, mas uma pessoa comum, e naquele momento de uma patologia, o órgão
que em certa ocasião deveria inquietar-se estava agora quieto. De modo que,
sem nenhuma apreensão quanto ao seu futuro imediato, se pôs a dormir e tudo
foi paz para Henry Armstrong.
Mas algo se movia na superfície.
Era uma noite escura de verão, rasgada por freqüentes relâmpagos que
iluminavam nuvens prenhas de tempestade. Aqueles breves e relampejantes
fulgores revelavam uma cidade fantasma, os monumentos e lápides do
cemitério.
Não era uma noite adequada para que uma pessoa normal andasse
vagabundeando ao redor de um campo santo, de modo que os três homens ali,
cavando a tumba de Henry Armstrong, se sentiam razoavelmente seguros.
Dois deles eram jovens estudantes de uma Faculdade de Medicina, que ficava a
alguns quilômetros de distância dali, o terceiro era um negro chamado Jess.
Jess fora contratado pelo cemitério para trabalhar como coveiro fazia muito
tempo , e sua pá predileta conhecia todas as almas do lugar. Pela natureza do que
naquele momento estava sendo feito, podia-se crer que o lugar não estava tão -
povoado- como o livro de registros do cemitério fazia supor.
Do outro lado do muro, ao largo da estrada, podia-se ver um cavalo e uma
carroça, esperando.
O trabalho de escavação não foi difícil, a terra com a qual havia sido coberta a
tumba, algumas horas antes, oferecia pouca resistência e não tardou a quedar-se
amontoada do lado de fora.
Erguer o ataúde requereu mais esforço, mas Jess era experiente na tarefa e
terminou por colocar o caixão sobre o monte de terra cuidadosamente, deixando
a descoberto o cadáver vestido com calça negra e camisa branca.
Naquele preciso instante um raio ziguezagueou no ar, arrancando a escuridão, e
quase imediatamente explodiu um trovão.
Arrancado de seu sonho, Henry Armstrong ergueu a metade superior de seu
corpo, até ficar sentado.
Proferindo gritos inarticulados, os homens fugiram possuídos pelo terror, cada
um em uma direção diferente.
Dos fugitivos, dois não regressariam por nada deste mundo.
É motivo de tristeza, para aqueles que andam por esta grande cidade, ou viajam
pelo país, verem as ruas, as estradas ou as portas dos barracos apinhados de
mendigos do sexo feminino, seguidos por três, quatro ou seis crianças, todas
esfarrapadas, a importunar os passantes com solicitações de donativos. Essas
mães, em vez de poderem trabalhar pelo seu honesto sustento, são forçadas a
perambular o tempo todo atrás de esmolas a fim sustentar os seus pequenos
desvalidos, os quais, à medida que crescem, se tornam ladrões, por falta de
trabalho, ou deixam sua terra natal para lutar pelo Pretendente na Espanha ou se
vendem para ir às Barbados.
Creio que todos os partidos concordam em que esse número prodigioso de
crianças nos braços, ou nas costas, ou mesmo nos calcanhares de suas mães, e
freqüentemente nos de seus pais, é no presente estado deplorável do reino um
grande transtorno adicional; de modo que quem quer que encontre um método
razoável, barato e fácil de transformar tais crianças em membros saudáveis e
úteis da comunidade não mereceria menos do público do que uma estátua
erguida em sua homenagem, aclamando-o como benfeitor da nação.
No entanto minha intenção está longe de se restringir aos filhos dos mendigos
declarados: é de uma amplitude muito maior e há de envolver todas as crianças
de certa idade que nasceram de pais tão efetivamente incapazes de sustentá-las
quanto aqueles que demandam nossa caridade nas ruas.
De minha parte, tendo aplicado meus pensamentos durante muitos anos a esse
importante assunto e tendo pesado com maturidade os diversos trabalhos de
nossos avaliadores, sempre os achei grosseiramente equivocados em seus
cômputos. Com efeito, uma criança que saltou recentemente do ventre de sua
mãe pode muito bem ser mantida com o leite dela durante um ano inteiro, e com
pouca nutrição adicional: quando muito, não mais que o valor de dois xelins, ou
mesmo com as sobras, que a mãe poderá certamente conseguir por meio de uma
honesta mendicância. E é exatamente na idade de um ano que proponho aplicar-
lhes tal solução, de modo que, em lugar de se tornarem um fardo para seus pais
ou para a paróquia, ou de carecerem de alimento e vestuário pelo resto de suas
vidas, virão, pelo contrário, a contribuir para alimentar e, em parte, para vestir
muitos milhares de outros.
Existe, igualmente, uma outra grande vantagem no meu método, que é a de
prevenir esses abortos voluntários e aquela prática horrenda das mulheres de
matarem seus filhos bastardos – ai! –, tão freqüente entre nós, sacrificando seus
bebês inocentes não sei se, mais, para evitar os custos do que a vergonha –
prática que há de suscitar lágrimas e piedade mesmo no peito mais selvagem e
desumano.
Sendo o número de almas neste reino comumente estimado em um milhão e
meio, entre essas calculo que haverá cerca de duzentos mil casais cujas esposas
possam procriar. Desse número subtraio trinta mil casais que têm condições de
sustentar seus próprios filhos (embora receie que nem haja tantos assim, dadas
as atuais dificuldades do reino), mas, admitindo-se o cálculo, ainda restarão
umas cento e setenta mil parideiras. De novo subtraio cinqüenta mil, para
aquelas mulheres que malogram ou cujos filhos morrem de acidente ou de
doença antes do primeiro ano de vida. Apenas restam cento e vinte mil crianças
que nascem todos os anos de pais pobres. A questão, portanto, é: como esse
número pode ser criado e mantido?; o que – como já referi – nas presentes
circunstâncias é absolutamente impossível, se adotarmos os métodos até agora
propostos. Pois não podemos empregá-las na manufatura ou na agricultura, nem
construímos casas (quero dizer, no interior), nem cultivamos terras. Muito
dificilmente poderão obter sustento pelo roubo, antes de chegarem à idade de
seis anos, a menos que sejam excepcionalmente aplicadas, embora eu confesse
elas aprendam os rudimentos bem antes; e durante esse tempo elas só poderão
ser tomadas como aprendizes, como tenho sido informado por um cavalheiro
importante do condado de Cavan, que me asseverou nunca ter conhecido mais
que um ou dois casos antes da idade de seis, e isso numa parte do reino bastante
renomada por sua grande proficiência naquela arte.
Nossos traficantes me têm assegurado que um menino ou uma menina de idade
inferior a doze anos não é artigo vendável e, mesmo quando chegam a essa
idade, ainda não alcançam mais que três libras ou três libras e meia coroa, no
máximo, na venda; o que não é bom negócio nem para os pais nem para o reino,
já que os gastos em nutrição e vestuário atingem pelo menos quatro vezes esse
valor.
Agora, pois, proporei humildemente minhas próprias idéias, as quais acredito
não serão suscetíveis da menor objeção.
Um americano muito experiente, conhecido meu, me disse em Londres que uma
criança nova, saudável e bem nutrida é, com a idade de um ano, um petisco
bastante delicioso e salutar, seja servido ensopado, assado, grelhado ou cozido; e
não tenho dúvida de que poderá ser preparada como um fricassê ou um ragu.
Assim, ofereço humildemente à consideração do público o seguinte: que das
cento e vinte mil crianças, já computadas, vinte mil possam ser apartadas para a
reprodução, das quais apenas uma quarta parte serão machos, o que é mais do
que costumamos fazer com as ovelhas, as vacas ou os porcos. E a razão que
apresento é que essas crianças quase nunca são frutos do casamento, uma
circunstância muito pouco considerada pela plebe, portanto um macho será
suficiente para cobrir quatro fêmeas. Que as cem mil remanescentes possam ser,
com um ano de idade, oferecidas para a venda a pessoas de qualidade e posses
em todo o reino, sempre advertindo as mães para que as amamentem bem no
último mês, de modo que fiquem bem cheinhas e fornidas para uma boa mesa.
Uma criança dará dois pratos numa recepção de amigos, e quando a família
jantar sozinha os quartos anteriores ou posteriores fornecerão um prato razoável;
e, com uma pitada de pimenta e de sal, agüentará bem até o quarto dia,
especialmente no inverno.
Fui informado por fonte segura de que uma criança recém-nascida, podendo
pesar 12 libras, dentro de um ano, se convenientemente nutrida, aumentará para
28 libras.
Admito que esse alimento será caro, e portanto adequado aos proprietários, os
quais, já tendo devorado os pais, parecem ter todo o direito de fazer o mesmo
com os filhos.
A carne das crianças será de época durante todo o ano, mas mais
abundantemente em março, e um pouco antes e depois, pois somos instruídos
por um grave autor e eminente médico francês de que, sendo os peixes uma dieta
prolífica, há mais crianças nascendo nos nove meses posteriores à Quaresma. Os
mercados estarão mais abarrotados do que de costume, devido a que o número
de crianças católicas alcança pelo menos três por um neste reino, o que leva a
supor uma outra vantagem adicional, que é a diminuição do numero de papistas
entre nós.
Já computei os custos de nutrição de uma cria de mendigo (em cuja lista incluo
todos os aldeões, trabalhadores braçais e quatro quintos dos roceiros) como
orçando em torno de dois xelins por ano, farrapos incluídos; e acredito que
nenhum cavalheiro se queixaria de dar dez xelins pela carcaça de uma boa
criança gorda, a qual, como já disse, fornecerá quatro pratos de carne excelente e
nutritiva, quando ele tiver apenas algum amigo pessoal ou sua própria família
para jantar. Então o proprietário aprenderá a ser um bom patrão e ganhará
popularidade entre seus peões, a mãe açambarcará oito xelins de lucro líquido e
estará em condições de trabalhar até produzir outro filho.
Aqueles que são mais econômicos (como, devo confessar, estes tempos andam a
pedir) poderão esfolar a carcaça, cuja pele, adequadamente curtida,
proporcionará luvas admiráveis para as senhoras e botas de verão para os
cavalheiros.
Quanto à nossa cidade de Dublin, açougues especiais podem ser designados para
esse propósito, nas partes mais convenientes da mesma, e açougueiros –
podemos estar certos – não faltarão, embora eu prefira recomendar que se
comprem as crianças vivas e que sejam abatidas na hora do consumo, como
fazemos com os leitões para assar.
Uma pessoa de muito valor, um verdadeiro amante deste país, cujas virtudes
estimo em alta conta, teve recentemente, ao discutir comigo tal matéria, a
bondade de propor um refinamento ao meu projeto. Ele disse que, já havendo
diversos cavalheiros deste reino dizimado seus cervos, a carne de veado poderia
ser substituída facilmente pelos corpos de jovens rapazes e moças, sem exceder
a idade de quatorze anos, nem abaixo de doze, havendo agora tão grande número
de ambos os sexos em cada região em vias de morrer de fome por falta de
trabalho ou de serviço. E esses, se vivos, poderiam ser fornecidos pelos seus
próprios pais ou, de outro modo, por seus parentes mais próximos. Mas, com o
devido respeito a tão excelente amigo e tão respeitável patriota, não posso
compartilhar totalmente de suas opiniões, pois, quanto aos machos, meu
informante americano me assegurou, com base em experiência, que a carne
deles era geralmente dura e seca, como a de nossos meninos de escola, devido ao
contínuo exercício, além de ter gosto desagradável, e engordá-los não
compensaria os gastos. Então, quanto às fêmeas, seria – suponho humildemente
– uma perda para os consumidores, porque logo estariam em condições de parir
elas mesmas; e, além disso, não é improvável que algumas pessoas escrupulosas
se sentissem prontas a censurar tal prática (embora, certamente, com alguma
injustiça), acusando-a de bordejar com a crueldade, o que, confesso, tem sido
sempre para mim a maior objeção contra qualquer projeto, por mais bem-
intencionado que seja.
Mas – defendendo meu amigo – ele confessou que tal expediente lhe foi
proposto pelo famoso Salmanazar, um nativo da ilha de Formosa, que de lá veio
a Londres há cerca de vinte anos e numa conversa contou a ele que em seu país,
quando acontecia de alguma pessoa jovem ser levada à morte, o carrasco vendia
a carcaça a pessoas de qualidade, como refinada iguaria; e que, em seu tempo, o
corpo de uma garota gorducha de quinze anos, crucificada por tentativa de
envenenar o Imperador, foi cortado em postas ao pé do patíbulo e vendido ao
primeiro ministro de sua Majestade Imperial e a outros mandarins da Corte, por
quatrocentas coroas. Nem, com efeito, posso negar que, se o mesmo emprego
fosse dado a muitas garotas gorduchas desta cidade – as quais, sem um tostão de
seu, não podem sair por aí sem um coche, e aparecem nos locais públicos ou nas
assembléias vestindo modas estrangeiras pelas quais nunca pagarão –, o reino
não estaria tão mal.
Algumas pessoas mais temerosas têm se preocupado muito com o grande
número de pobres que são velhos, doentes ou aleijados; e me foi solicitado
aplicar meus pensamentos a descobrir que medidas se podem tomar para aliviar
a nação de tão penosa incumbência. Quanto a mim, o assunto me preocupa
pouco, pois é mais que sabido que eles estão morrendo a cada dia, e
apodrecendo, seja de frio ou de fome, ou de sujeira, ou consumidos pelos
piolhos, e tão rápido quanto se pode esperar. E, quanto aos jovens em idade de
trabalhar, se encontram agora numa condição mais que auspiciosa: não podem
arranjar serviço e, conseqüentemente, se depauperam por falta de alimento, a tal
ponto que, se a qualquer instante forem convocados para um trabalho ordinário,
não terão forças para executá-lo; e assim, felizmente, o país e eles mesmos serão
liberados dos males vindouros.
Deixei-me levar pela digressão, e é hora de retornar ao meu tema. Suponho que
as vantagens da proposta que tenho feito são óbvias e diversas, bem como da
mais alta importância.
Primeiramente, como já tenho apontado, diminuiria em muito o número de
papistas, cujas ondas nos inundam anualmente, sendo eles os principais
geradores da nação, bem como nossos mais perigosos inimigos, os quais
permanecem em casa com o único propósito de entregar o reino ao Pretendente,
na expectativa de obterem vantagens com a ausência de tantos bons protestantes,
enquanto estes últimos preferem deixar o país a ficar em casa e pagar dízimos a
um coadjutor episcopal contra a sua consciência.
Em segundo lugar, os arrendatários mais pobres, que nunca souberam o que é ter
dinheiro, possuirão alguma coisa de valor, a qual por lei poderá estar sujeita a
confisco, a fim de ajudar a pagar o aluguel aos proprietários, já tendo sido o seu
gado e o seu milho devidamente pilhados.
Em terceiro lugar, ao passo que a manutenção de cem crianças, de dois anos para
cima, não pode ser computada em menos de dez xelins anuais por cabeça, as
reservas nacionais serão incrementadas em cinqüenta libras por ano. Além disso,
haverá o advento de um novo prato, a ser introduzido nas mesas de todos os
afortunados cavalheiros do reino que tenham algum refinamento de gosto. E o
dinheiro circulará entre nós mesmos, sendo todos os bens de nossa própria
extração e manufatura.
Em quarto lugar, as parideiras constantes, além do ganho de oito xelins
esterlinos por ano com a venda de seus filhos, estarão livres do fardo de
sustentá-los após o primeiro ano de vida.
Em quinto lugar, esse alimento traria igualmente maior freguesia para as
tavernas, onde os negociantes terão por certo grande cuidado em providenciar as
melhores receitas para prepará-lo com perfeição e, assim, para ter suas casas
freqüentadas por todos os cavalheiros refinados, que muito se gabam de seu
conhecimento da boa comida. E um cozinheiro habilidoso, que entenda bem de
como obsequiar seus fregueses, se esmerará em torná-la tão cara quanto a estes
lhes agradar.
Em sexto lugar, haveria um grande incentivo ao casamento, o qual todas as
nações sábias têm encorajado por meio de retribuições ou mesmo têm forçado
por meio de leis e de penalidades. Aumentaria, então, o cuidado e a ternura das
mães pelos filhos, pois estariam certas de uma colocação para seus pobres bebês
no futuro, patrocinada de algum modo pelo poder público, obtendo ganhos
anuais em vez de despesas.
Observaríamos em breve um honesto sentimento de emulação entre as mães, a
fim de verem quem traria o filho mais gordo para o mercado. Os homens teriam
tanto interesse por suas esposas, durante o tempo da gravidez, quanto têm agora
por suas éguas, suas vacas ou suas porcas em vias de parir; e não mais se
prontificariam a bater nelas (como é a prática freqüente), receando com isso um
aborto.
Muitas outras vantagens poderiam ser enumeradas. Por exemplo, o acréscimo de
alguns milhares de peças em nossa exportação de carne bovina em barris, um
aumento na oferta de carne suína e a melhoria na arte de produzir bacon de
qualidade, em grande falta entre nós devido à matança excessiva dos porcos, tão
constantes em nossas mesas; porcos que de modo algum se comparam em gosto
ou magnificência a uma criança bem criada e bem gorda, a qual, assada no
ponto, há de fazer grande figura na festa do senhor prefeito ou em qualquer
comemoração pública. Mas isso e outras coisas omitirei por amor à brevidade.
Na suposição de que mil famílias nesta cidade sejam consumidoras usuais de
carne infantil, além de outras que a teriam em suas alegres comemorações,
particularmente nos casamentos e batizados, calculo que Dublin daria fim,
anualmente, a umas boas vinte mil carcaças, e o resto do reino (onde
provavelmente seriam vendidas mais barato) às restantes oito mil.
Não vejo nenhuma objeção que possa ser levantada contra esta proposta, a não
ser que se alegue que o número de pessoas muito se reduzirá em todo o reino.
Admito-o de bom grado, e foi esse, com efeito, um dos principais motivos que
me levou a oferecê-la ao mundo. Desejo que o leitor observe que calculo meu
remédio única e exclusivamente para o reino da Irlanda, e para nenhum outro
que jamais terá havido, ou haja, suponho, sobre a face da terra. Assim, que
ninguém me venha falar de outros expedientes: de criar um imposto de cinco
xelins por libra como fundo para os desempregados; de não usar nem roupas
nem mobílias que não sejam de nossa própria fabricação; de terminantemente
rejeitar os materiais e instrumentos que promovam luxos estrangeiros; de curar
os excessos do orgulho, da vaidade, da preguiça e do gosto pelo jogo em nossas
mulheres; de introduzir uma veia de parcimônia, de prudência e de temperança
entre as pessoas; de aprender a amar o país, no que diferimos até dos lapônios e
dos habitantes de Tupinambu; de acabar com nossas animosidades e
facciosidades, e de não agir mais como os judeus, que se matavam uns aos
outros bem no momento em que sua cidade era tomada; de ter um pouco de
consideração antes de vender nosso país e nossas consciências por qualquer
preço; de ensinar os senhorios a terem um mínimo de misericórdia para com
seus arrendatários. Finalmente, de impor um espírito de honestidade, indústria e
habilidade aos nossos comerciantes, os quais, se se tomasse agora uma resolução
de comprar apenas nossos produtos nativos, se uniriam imediatamente para nos
enganar e nos extorquir no preço, na medida e na qualidade, e que não podem
nunca ser solicitados a fazer uma única proposta de regulação honesta do
comércio, por mais que freqüente e ardentemente incentivados a isso.
Portanto, repito, que ninguém me fale desses e de outros expedientes similares,
a menos que se tenha o menor vislumbre de esperança de que um dia se venha a
efetivar qualquer tentativa sincera e bem intencionada de colocá-los em prática.
Mas, quanto a mim, exausto já de ter consumido tantos anos a oferecer
pensamentos ociosos, visionários e vãos, e por fim já desesperado de qualquer
sucesso, atinei, por um favor do destino, com esta proposta, a qual, sendo
inteiramente nova, tem qualquer coisa de sólida e de real, de pouco dispendiosa
e de nada problemática, inteiramente ao nosso alcance, e com a qual não
correremos nenhum risco de desagradar à Inglaterra. Pois esse tipo de produto
não será passível de exportação, sendo a carne de tão sensível consistência que
não admitiria uma longa conservação em salgadura, não obstante eu pudesse
nomear aqui um país que de muito bom grado nos engoliria inteiros e crus.
Finalmente, não me acho tão cioso de minha própria opinião que chegue a
rejeitar qualquer outra, sugerida por homens sábios, que porventura venha se
provar tão inocente, barata, exeqüível e eficaz. Mas, antes que qualquer coisa do
gênero seja invocada em contradição ao meu plano, ou apareça uma oferta
melhor, quero que o autor ou os autores façam a gentileza de considerar, com
maturidade, dois pontos. Primeiro, no presente estado de coisas, como poderão
achar alimento e vestuário para cem mil bocas e dorsos inúteis?
E, segundo, havendo um milhão redondo de criaturas humanas em todo o reino
cuja subsistência, somada, lhes deixaria um débito de dois milhões de libras
esterlinas, acrescentando-se esses que são mendigos de profissão, mais o volume
de roceiros, agregados e braçais, com suas esposas e filhos, que são mendigos de
fato, desejo que esses políticos que torcerem o nariz para minha sugestão e que,
talvez, tiverem a audácia de me replicar perguntem aos pais dessas criaturas se
eles não estariam mais contentes de terem sido vendidos como alimento no
primeiro ano de vida, nos moldes que prescrevi, e assim de terem sido poupados
da cena perpétua de infortúnios pelos quais têm passado, pela opressão dos
proprietários, pela impossibilidade de pagar o aluguel na falta de dinheiro e
ocupação, pela carência de subsídios básicos, tais como casa e vestuário para se
protegerem das inclemências do clima, e a inevitável perspectiva de transmiti-
los – ou outras misérias maiores – aos seus rebentos para todo o sempre.
Asseguro, com toda a sinceridade do coração, que não tenho o menor interesse
pessoal em empreender a promoção desta obra necessária, não me movendo
também nenhum outro motivo que o bem público de meu país, no
desenvolvimento do comércio, na manutenção das crianças, no desencargo dos
pobres, e no proporcionar alguma satisfação aos mais ricos. Não tenho filhos
com os quais pudesse angariar nenhum tostão, sendo que o mais velho dos meus
já fez nove anos, e minha esposa passou da idade de gerar.
NAPOLEÃO E O ESPECTRO – Charlotte
Brontë
Depois de percorrer ruas que ainda eram mais escuras e estreitas que todas por
onde passara, encontrei uma segunda hospedaria, ostentando um letreiro
similarmente batido pelo tempo, e em todos os aspectos muito parecida à
primeira. A porta estava bloqueada, e eu bati com força, e não me surpreendi de
modo algum quando um segundo indivíduo, de rosto cadavérico, me informou
em solene e sepulcral entonação:
– Não podemos acomodá-lo. Todos os quartos foram tomados por músicos e
carpideiras que atuarão nas exéquias da donzela Mariel, e todo o vinho foi
reservado para seu uso.
Então eu comecei a temer a cidade ao meu redor com medo multiplicado:
porque parecia que toda a ocupação da gente de Malnéant consistia em
preparativos para o funeral da tal donzela Mariel. E começou a ser óbvio para
mim que eu deveria perambular pelas ruas da cidade por toda a noite sem abrigo
por causa dos mesmos preparativos.
Subitamente, um cansaço arrebatador se mesclou ao terror e à perplexidade de
meu pesadelo.
"E se existisse outra forma de vida, paralela a que conhecemos, mas sem
os elementos que destróem a nossa? E se em outra dimensão existe uma
força diferente da que gera nossa vida? E se essa força emite uma energia,
que, procedente de sua dimensão desconhecida, consegue alcançar nosso
espaço-tempo e criar uma nova forma de vida celular? Decerto que não se
pode demostrar que tal forma nova de vida existia em nosso universo, mas
eu vi suas manifestações e falei com elas. De noite, em meu apartamento,
falei com os Doels. E em meus sonhos, eu contemplei seu criador. Eu vi
isto em regiões distantes, além do tempo e da matéria. Move-se através de
curvas estranhas e ângulos alucinantes. Algum dia viajarei no tempo e
ficarei cara a cara com ele."
QUEDA LIVRE - Lois McMaster Bujold
Leo prestava atenção em seu redor, como uma alternativa menos rude do que
estudar o menino. O Habitat era efetivamente uma construção barata, na sua
maioria unidades pré-fabricadas combinadas. Não era uma concepção
esteticamente elegante ... um certo aspecto acidental indicava um padrão de
crescimento orgânico na criação do Habitat, com unidades presas aqui e ali para
acomodar novas necessidades. Mas esta mesma arquitetura caótica incorporava
vantagens de segurança que Leo aprovou, como o sistema intercambiável de
selagem atmosférico, por exemplo.
Passaram pelas alas dos dormitórios, de preparo de alimentos e de áreas de
refeições, uma oficina para pequenos reparos... Leo fez uma pausa para olhar
para baixo em seu comprimento e teve de se apressar para recuperar o atraso em
relação a seu guia.
Diferentemente da maioria dos espaços habitáveis em queda-livre que Leo tinha
conhecido, não havia nenhum esforço aqui para manter uma arbitrariedade de
direções, o acima e abaixo, para facilitar a psicologia visual dos habitantes. A
maioria das câmaras eram cilindros com espaços de trabalho e de armazenagem
da embalagem, presos de forma eficiente nas paredes e ao centro-esquerda, sem
obstrução à passagem de... bem, mal dava para chamá-los de pedestres.
No caminho eles passaram por uma dúzia de... pessoas com quatro mãos, o novo
modelo de trabalhadores, o povo de Tony, ou o que quer que fossem chamados...
será que tinham uma designação oficial, Leo se perguntou.
Ele olhou disfarçadamente, desviando seu olhar sempre que outro olhava de
volta, o que ocorreu muitas vezes, eles abertamente olhavam para ele e
cochichavam entre si.
Ele entendeu porque Van Atta chamou-os de chimpanzés. Eles tinham sido
modificados, não possuíam os poderosos músculos do glúteo locomotor que as
pessoas tem por conta das pernas. O conjunto de braços menores tendia a ser
mais musculoso do que a parte superior em ambos os sexos masculino e
feminino, poderosas garras. Estavam vestidos na maioria com o traje
confortável e prático que Tony usava, evidentemente codificados por cores. Leo
passou por vários deles em amarelo, atentamente pairando em torno de um
humano normal num macacão da Galactech, que trabalhava numa unidade de
bombeamento, meio distante e falando sobre sua função e sobre o reparo em si.
Leo pensou em um bando de canários, de esquilos voadores, de macacos, de
aranhas, de lagartos ágeis brilhantes do gênero que sobe pelas paredes. Davam a
Leo a vontade de gritar, quase chorar, e não era pelos braços ou pela rapidez, ou
as demasiadas mãos. Tinha quase alcançado a Hidroponia quando foi capaz de
analisar o seu intenso mal-estar. Eram seus rostos que o incomodava, Leo
percebeu. Tinham rostos de crianças...
UMA VOZ NA NOITE – William H. Hodgson
Era uma noite escura e sem estrelas. Estávamos em uma calmaria no Pacífico
Norte. Nossa exata posição eu não sei porque o sol tinha estado oculto, durante
toda uma semana cansativa de trabalho, por uma névoa fina que parecia flutuar
acima de nós, pouco acima da altura de nossos mastros, às vezes descendo e
envolvendo o mar em torno de nós.
Como não havia vento, tínhamos prendido o leme e eu era o único homem no
tombadilho. A tripulação, que consistia de dois homens e um garoto, estava
dormindo em suas cabinas enquanto Will, meu amigo e capitão de nossa
pequena embarcação, estava em sua tarimba, Ã bombordo de sua pequena cabina
á popa.
De repente, saído da escuridão que nos cercava, veio uma saudação:
- Olá, escuna!
O grito foi tão inesperado que eu não lhe respondi de imediato, tanta minha
surpresa.
Ele soou de novo - uma voz curiosamente gutural e inumana, que chamava de
algum lugar sobre o mar escuro a bombordo:
- Olá, escuna!
- Alô! - eu declamei, depois de recuperar minha presença de espírito - O que é
você? O que quer?
- Não precisa ter medo - respondeu a estranha voz, provavelmente por notar
algum sinal de confusão no tom de minha voz - eu sou apenas um homem velho.
A pausa soou fora de lugar, mas foi só depois que eu percebi seu significado.
- Então por que não vem a bordo? - indaguei, um tanto grosseiramente, por não
ter gostado de tal sugestão de que eu pudesse ter sido assustado, mesmo que só
um pouco.
- " eu não posso. Não seria seguro. " - a voz se deteve e houve silêncio.
- O que quer dizer? - perguntei, mais atônito ainda - Quem não estaria seguro?
Onde está você?
Eu ouvi por um momento, mas não veio nenhuma resposta. Então, movido por
uma súbita e indefinida suspeita de algo que não sabia o que era e que vinha até
mim, eu fui rapidamente até a bitácula e peguei a lâmpada acesa. Ao mesmo
tempo, bati no tombadilho com o calcanhar para acordar Will. Logo em seguida,
eu estava na beirada, derramando o cone de luz amarelada na imensidão
silenciosa além do parapeito. Ao fazer isso, ouvi um grito baixo, abafado, e
depois o som de um chapinhar, como se alguém tivesse deitado remos
abruptamente. Mesmo assim eu não sei dizer com certeza se eu vi alguma coisa,
exceto que, ao que me pareceu, com a primeira luz da lanterna havia algo sobre
as águas, onde pouco depois nada havia.
- Alô, você aí! - chamei - que palhaçada é essa?
Mas só se ouvia os sons indistintos de um bote sendo remado para longe na
noite.
Então ouvi a voz de Will, vinda da direção das escotilhas da proa:
- O que está havendo, George?
- Vem cá, Will - eu disse.
- O que é? - ele perguntou, atravessando o tombadilho.
Contei-lhe a estranha coisa que havia acontecido. Ele então fez várias perguntas
e, após um momento de silêncio, levou as mãos aos lábios e saudou:
- Olá, você do bote!
De muito longe nos veio uma resposta quase inaudível e o meu colega repetiu
seu chamado. Então, depois de um curto período de silêncio, começou a crescer
em nossos ouvidos o som de remos abafados, e então Will saudou novamente.
Dessa vez houve uma resposta:
- Desliguem a luz.
- O diabo é que eu vou! - resmunguei, mas Will me convenceu a fazer o que a
voz pedia, e eu a ocultei sob a amurada.
- Vou me aproximar - ele disse, e o som dos remos continuou. Então,
aparentemente a uma distância de doze braças, eles pararam outra vez.
- Venha para cá! - exclamou Will - não há nada para ter medo aqui a bordo.
- Promete que não vai mostrar a luz?
- O que aconteceu com você - eu interrompi - que tem um medo tão infernal da
luz?
- Porque... - começou a voz, e logo parou.
- Porque o que? - logo perguntei.
Will pôs sua mão no meu ombro:
- Fique em silêncio, um pouco, camarada - ele disse numa voz baixa - deixa que
eu cuido dele.
Então ele se inclinou mais sobre a borda:
- Veja aqui, senhor - ele disse - esse é um negócio bem esquisito, você chegar até
nós desse jeito, bem no meio do bendito Oceano Pacífico. Como podemos saber
que não é um tipo de trapaça para nos enganar? Você diz que está sozinho. Como
vamos saber se não pudermos dar uma olhada, hem? Qual é o seu problema com
a luz, por falar nisso?
Quando ele terminou, ouvi o ruído dos remos outra vez, e então a voz do
homem, mas então a uma distância maior, e soando extremamente desesperada e
patética.
- Desculpem-me, desculpem-me! Eu não devia ter perturbado vocês, mas eu só
estou faminto, e também... também ela.
A voz sumiu, e o som dos remos, irregularmente agitando a água, chegava até
nós.
- Pare! - gritou-lhe Will - Não queremos espantar você. Volta aqui! Vamos ficar
com luz abaixada, já que você não gosta dela!
Will se dirigiu a mim:
- É um trato muito esquisito esse, mas eu acho que não há nada do que ter medo?
Havia uma indagação em seu tom de voz, e eu respondi:
- Não. Eu acho que o pobre diabo naufragou perto daqui e ficou louco.
O som dos remos se aproximava.
- Enfia aquela lampa de volta na bitácula - disse Will, e então se inclinou sobre a
amurada e ouviu. Eu recoloquei a lâmpada e voltei para o seu lado. O bater dos
remos parou a cerca de doze jardas de distância.
- O senhor não vai se aproximar agora? - perguntou Will, numa voz calma - eu
pus a lâmpada de volta na bitácula.
- " não posso - repetiu a voz. Eu não ouso chegar mais perto. Não ouso nem
mesmo pagar-lhes pelas... provisões.
- Tudo bem - disse Will, e hesitou. Você pode pegar o quanto quiser levar.
- Vocês são muito bons! - exclamou a voz. Que deus, que a tudo compreende,
recompense-os...
E ele parou subitamente de falar.
- A... a senhora? - perguntou Will abruptamente - ela está...?
- Eu a deixei lá na ilha - respondeu a voz.
- Que ilha? - eu perguntei.
- Não sei o nome dela - respondeu a voz - e eu queria que Deus... - ele começou,
mas logo parou de novo.
- Não podemos mandar um bote ir buscá-la? - perguntou Will nesse ponto.
- Não! - exclamou a voz, com extraordinária ênfase - Meu Deus, não!.
Houve um momento de pausa e então ele acrescentou, em um tom que parecia
uma reprimenda de si mesmo:
- Foi por causa de nossa necessidade que eu me aventurei, porque a agonia dela
me tortura.
- Sou um brutamontes desmemoriado! - exclamou Will - Espere um minuto, seja
quem for, e eu vou lhe trazer alguma coisa já.
Alguns minutos depois ele retornou, trazendo uma braçada de comida. Ele parou
na armurada:
- Você não pode vir até junto da amurada para buscar? - ele perguntou.
- Não... eu não ouso - respondeu a voz, e me parecia que, em sua entonação, se
podia detectar um sinal de desejo reprimido.
Então eu entendi que a pobre criatura lá na escuridão estava realmente sofrendo
a falta daquilo que Will tinha em seus braços mas, por algum temor
ininteligível, se recusava a abordar a nossa escuna e recebê-lo. E com essa
percepção instantânea, veio a noção de que o Invisível não era um louco, mas
alguém muito são que enfrentava algum horror intolerável.
- Foda-se, Will! - eu disse, cheio de consternação e de uma vasta simpatia pelo
ser na noite. Busque uma caixa e vamos deixar isso flutuar até ele.
Assim fizemos, propelindo-a para longe do nosso barco, para dentro da
escuridão, por meio de um gancho.
Em um minuto ouvimos a voz quase inaudível do Invisível chegar até nós, e
soubemos que ele tinha apanhado a caixa.
Pouco depois ele se despediu de nós com uma bênção tão emocionada que eu
tenho a certeza de que nos sentimos muito melhores por causa dela. Então, sem
mais tardar, ouvimo-lo remando através da escuridão.
- Muito rápido - observou Will, com uma certa intenção de ofender.
- Espere - eu respondi - eu acho que de alguma forma ele vai voltar. Ele parecia
estar mesmo precisando muito daquela comida.
- E a mulher? - disse Will, parando por um momento em silêncio, antes de
continuar - é a coisa mais esquisita com que trombei desde que comecei a
pescar.
- É - eu disse, e fiquei pensando.
Então o tempo passou. Uma hora, logo outra, e Will continuava comigo, porque
a estranha aventura tinha acabado com toda sua vontade de dormir.
Já haviam passado quase três quartos da terceira hora quando ouvimos de novo o
som de remos no oceano silencioso.
- Ouça! - disse Will, com uma discreta nota de excitação em sua voz.
- Está voltando, como eu pensei - eu murmurei.
O bater dos remos foi se aproximando, e eu notei que o rimo era mais firme e
mais amplo. A comida tinha sido bem aproveitada.
Os remos pararam de bater a uma distância bem pequena de nossa amurada, e a
estranha voz nos veio forte através da escuridão:
- Olá, vocês da escuna!
- é você? - perguntou Will.
- Sim - respondeu a voz. Eu os deixei muito rápido, mas... era porque a
necessidade era grande.
- A mulher? - perguntou Will.
- A... a mulher lhes está muito grata neste momento aqui na Terra. Mas ela lhes
será ainda mais grata dentro em breve... no Céu.
Will começou a tentar responder, com uma voz perplexa, mas ficou confuso e
parou. Eu não disse nada. Estava pensando nas curiosas pausas e, além de meu
espanto, estava cheio de certa simpatia.
A voz continuou:
- Nós... ela e " nós conversamos, enquanto dividíamos o resultado da graça de
Deus e da bondade de vocês...
Will interrompeu, mas incoerentemente.
- Eu lhes peço que não... não subestimem seu ato de caridade cristã esta noite -
disse a voz - e estejam certos de que este feito não escapará ao julgamento dEle.
Ele parou, e houve um minuto inteiro de silêncio. Então começou de novo:
- Nós conversamos sobre isso... isso que nos sobreveio. Tínhamos pensando em
partir, sem contar a ninguém do terror que aconteceu em nossas... vidas. Ela
concorda comigo em que os fatos dessa noite são parte de uma decisão especial
de Deus, e que ele deseja que contemos a vocês tudo quanto sofremos desde...
desde...
- Sim - perguntou Will, suavemente.
- Desde o naufrágio do Albatroz.
- Ah! - eu exclamei involuntariamente - Ele saiu de Newcastle para Frisco uns
seis meses atrás e não se ouviu falar dele mais.
- Sim - respondeu a voz - mas, alguns graus ao norte da Linha, ele encontrou
uma tempestade terrível e perdeu os mastros. Quando o tempo acalmou,
percebemos que estava fazendo muita água e então, por causa da calmaria, os
marinheiros pegaram os botes, deixando uma... uma jovem senhora, minha
noiva, e eu, sozinhos no barco.
"Nós estávamos no porão, pegando alguns de nossos pertences, quando eles
saíram. Eles ficaram totalmente insensíveis, por causa do medo, e quando nós
subimos ao tombadilho nós só os vimos como pequenas sombras, longe no
horizonte. Mesmo assim nós não perdemos a esperança: fizemos uma pequena
jangada e sobre ela pusemos tudo que ela podia carregar, inclusive uma boa
quantidade de água e alguns biscoitos de marear. Então, já com o navio bem
afundado na água, pulamos para a jangada e demos impulso.
Mais tarde eu observei que nós parecíamos estar no caminho de algum tipo de
corrente, que nos afastava do navio em diagonal, de forma que após três horas,
pelo meu relógio, o casco dele ficou fora de nossa visão, embora os seus mastros
quebrados ainda pudessem ser vistos por um pouco mais. Então, caindo a noite,
ficou nebuloso e continuou assim durante a noite. No dia seguinte ainda
estávamos envoltos na névoa e o tempo continuava calmo.
Por quatro dias nós flutuamos por entre a estranha bruma, até que, no anoitecer
do quarto dia, começamos a ouvir o murmúrio de ondas que quebravam Ã
distância. Gradualmente ele ficou mais claro e, pouco depois de meia noite,
parecia soar tanto a bombordo como a estibordo, e à pequena distância. A
jangada foi erguida por ondas de arrebentação várias vezes, e então entramos em
águas calmas e o barulho das ondas quebrando ficou para trás.
Quando amanheceu nós descobrimos que estávamos em um tipo de grande
lagoa, mas nós só notamos isso depois, porque diante de nós, em meio à quela
neblina opressora, assomava o casco de uma embarcação enorme. No mesmo ato
nós caímos de joelhos e agradecemos a Deus, porque imaginamos que tinham
acabado os nossos perigos. Tínhamos muito a descobrir.
A jangada aproximou-se do navio e nós lhe gritamos para que fôssemos levados
a bordo, mas ninguém respondeu. Então a jangada tocou o lado do navio e,
vendo uma corda pendurada, eu agarrei e comecei a subir. Mas eu tive muito
trabalho para subir, por causa de um tipo de fungo ou líquen que tinha crescido
na corda e que também manchava o casco do navio.
Eu cheguei à amurada e a saltei, chegando ao convés. Ali eu vi que o
tombadilho estava coberto de grandes manchas de massa cinza, algumas delas
criando nódulos de metro de altura; mas naquele momento eu não dei tanta
importância a isso quanto à possibilidade de haver gente a bordo do navio. Eu
chamei, mas ninguém respondeu. Então eu fui até a porta abaixo do convés da
popa, e a abri para olhar lá dentro. Havia um grande cheio de podridão, de forma
que soube no mesmo instante que não havia nada vivo lá, e tendo descoberto
isso eu fechei a porta rápido, porque me senti subitamente só.
Eu voltei para o lado de onde tinha subido. Minha... minha querida ainda estava
sentada quieta na jangada. Ao ver-me olhando para baixo ela me perguntou se
havia alguém no navio. Eu respondi que a embarcação parecia estar há muito
deserta, mas que se ela pudesse esperar, eu procuraria alguma coisa que pudesse
servir de escada, para que ela pudesse subir ao convés, a fim de que pudéssemos
fazer uma busca por todo ele juntos.
Um pouco depois, no lado oposto do convés, eu achei uma escada de corda.
Levei-a ao outro lado e minutos depois ela estava lá comigo.
Juntos exploramos as cabinas e apartamentos da popa do navio, mas em parte
alguma havia qualquer sinal de vida. Aqui e ali, até dentro das cabinas,
encontramos aquelas manchas incomuns daquele fungo estranho; mas isso,
minha querida disse, poderia ser limpo.
Por fim, tendo nos assegurado que a popa do navio estava vazia, nós nos
dirigimos à proa, por entre os feios nódulos cinzentos daquela infestação
estranha, e ali fizemos outra busca, que nos mostrou que não havia mesmo
ninguém a bordo, além de nós mesmos.
Como isso estava estabelecido além de qualquer dúvida, voltamos à popa do
navio e começamos a tentar nos acomodar como possível. Juntos nós
desobstruímos e limpamos duas das cabinas, e depois disso eu investiguei se
havia qualquer coisa comestível no navio. Isso eu logo confirmei, e agradeci a
Deus por Sua bondade. Além disso, eu descobri uma bomba de água doce e,
tendo-a consertado, vimos que a água era potável, apesar de ter um gosto um
pouco desagradável.
Por vários dias nós ficamos no navio, sem tentar chegar à margem. Nós
estávamos ocupados tentando fazer o lugar habitável. Mas mesmo assim nós
logo notamos que nosso lugar era bem menos desejável do que tínhamos
imaginado, pois embora tivéssemos, inicialmente, arrancado todas as manchas
de infestação que tinham coberto o chão e as paredes das cabines e do salão, elas
sempre retornavam, em seu tamanho original quase, no espaço de meras vinte e
quatro horas, o que não apenas nos desmotivava, mas nos dava uma vaga
sensação de desconforto.
Mesmo assim nós não nos dávamos por vencidos e recomeçávamos o serviço, e
não apenas arrancávamos os fungos, mas ensopávamos os lugares onde eles
tinham estado com ácido carbólico, de que eu tinha achado um latão cheio no
armazém. Mas, ao final da semana, a infestação tinha crescido com toda força e
tinha se espalhado para outros lugares, como se ao tocá-la tivéssemos permitido
que esporos dela viajassem pelo ar.
Na sétima manhã, minha querida acordou e achou uma pequena mancha de mofo
crescendo em seu travesseiro, bem perto de sua face. Com isso, ela veio até
mim, tão rápido quanto ela pôde se vestir. Eu estava então na cozinha,
acendendo o fogo para o desjejum.
"Vem cá, John", ela disse, e me levou á popa. Quando vi a coisa no seu
travesseiro, estremeci e naquele momento e lugar nós concordamos em sair do
navio e ver se podíamos achar um lugar melhor em terra.
Rapidamente reunimos nossos poucos pertences e entre eles vi que o fungo tinha
estado trabalhando, pois uma de suas mantilhas tinha uma pequena bolha dele
perto da bainha. Eu atirei a coisa pela amurada sem nem dizer-lhe nada.
A jangada ainda estava ao lado, mas ela era desajeitada de guiar. Então eu baixei
um pequeno bote que ainda estava na popa e por ele nós fizemos nossa viagem Ã
terra firme. Mas quando nos aproximávamos dela, eu percebi gradualmente que
o fungo maligno, que nos havia expulsado do navio, ali estava crescendo
descontroladamente. Em alguns lugares ele se erguia em montes fantásticos,
horríveis, que pareciam quase mover-se, como se houvesse neles uma silenciosa
inteligência, quando o vento soprava neles. Aqui e ali ele tomava a forma de
vastos dedos, e em outra ele se espalhava pelo chão plano, suave e
traiçoeiramente. Em outros lugares, parecia árvores grotescamente enfeitadas,
extraordinariamente curvadas e contorcidas. A coisa toda parecia tremer
malignamente às vezes.
A princípio nos pareceu que não havia sequer um trecho da costa que não estava
escondido pelas massas do horrendo líquen, mas nisso logo vi que estávamos
enganados, porque a seguir, margeando a costa a pouca distância, discernimos
uma mancha clara do que parecia ser areia fina, e ali desembarcamos. Não era
areia. O que era, eu não sei.
O que observei foi que sobre aquilo o fungo não crescia, embora em todo o
resto, exceto onde a coisa que parecia areia chegasse, em meio à desolação
cinzenta do líquen, não houvesse nada além de nojentos fungos.
é difícil fazê-los entender o quanto eu fiquei feliz de achar um lugar que estava
absolutamente livre da infestação, e nele depositamos os nossos pertences.
Então nós voltamos ao navio para pegar coisas que pareciam necessárias. Entre
outras coisas, eu consegui trazer à margem comigo uma das velas do navio.
Com ela construí duas pequenas tendas que, embora muito mal feitas, serviam
aos propósitos para os quais haviam sido feitas. Nelas vivemos e guardamos
nossas posses, de forma que, por um espaço de quatro semanas, tudo correu
calmamente e sem nenhuma infelicidade. De fato, eu posso até dizer que foi
com grande felicidade, porque... porque ficamos juntos.
Foi no polegar direito dela que a infestação apareceu pela primeira vez. Era só
um pequeno ponto circular, como uma pequena verruga cinza, meu Deus! Como
o medo saltou sobre meu coração quando ela me mostrou o lugar. Nós o
limpamos, juntos, lavando-o com ácido carbólico e água. Na manhã do dia
seguinte ela me mostrou sua mão outra vez. A coisa verrugosa e cinza tinha
voltado. Por um momento nós nos entreolhamos em silêncio. Então, ainda sem
palavras, começamos a removê-la de novo. No meio da operação, ela disse
subitamente:
"O que é isso na sua face, querido?"
A voz dela saiu aguda de tanta ansiedade. Eu levei a mão para sentir.
"AÃ, debaixo do cabelo, perto de sua orelha. Um pouco mais á frente"
Meu dedo pousou sobre o lugar, e então eu soube.
"Vamos cuidar do seu polegar primeiro", eu disse. E ela se submeteu, apenas
porque tinha muito medo de me tocar até que estivesse limpo. Eu terminei de
lavar e desinfetar seu polegar, então ela começou em minha face. Depois que
terminamos nós nos sentamos juntos e conversamos um pouco sobre muitas
coisas, porque haviam sobrevindo à s nossas vidas pensamentos súbitos e
verdadeiramente terríveis. Estávamos, de repente, temerosos de algo mais grave
que a morte. Falamos em carregar o bote com provisões e água e sair para o mar,
mas estávamos sem esperança, por várias razões, e... e a infestação já tinha nos
atacado. Decidimos ficar. Que Deus fizesse de nós o que fosse Sua vontade.
Esperaríamos.
Nós somos um terrível pistoleiro. Estamos num bar de uma pequena cidade do
Texas. O ano é 1880. Tomamos uísque a pequenos goles. Nós temos um olhar
soturno. Em nosso passado há muitas mortes. Temos remorsos. Por isto
bebemos.
A porta se abre. Entra um mexicano chamado Alonso. Dirige-se a nós com
despeito. Chama-nos de gringo, ri alto, faz tilintar a espora. Nós fingimos
ignorá-lo. Continuamos bebendo nosso uísque a pequenos goles. O mexicano
aproxima-se de nós. Insulta-nos. Esbofeteia-nos. Nosso coração se confrange.
Não queríamos matar mais ninguém. Mas teremos de abrir uma exceção para
Alonso, cão mexicano.
Combinamos o duelo para o dia seguinte, ao nascer do sol. Alonso dá-nos mais
uma pequena bofetada e vai-se. Ficamos pensativo, bebendo o uísque a pequenos
goles. Finalmente atiramos uma moeda de ouro sobre o balcão e saímos.
Caminhamos lentamente em direção ao nosso hotel. A população nos olha. Sabe
que somos um terrível pistoleiro. Pobre mexicano, pobre Alonso.
Entramos no hotel, subimos ao quarto, deitamo-nos vestido, de botas. Ficamos
olhando o teto, fumando. Suspiramos. Temos remorsos.
Já é manhã. Levantamo-nos. Colocamos o cinturão. Fazemos a inspeção de
rotina em nossos revólveres. Descemos.
A rua está deserta, mas por trás das cortinas corridas adivinhamos os olhos da
população fitos em nós. O vento sopra, levantando pequenos redemoinhos de
poeira. Ah, este vento! Este vento! Quantas vezes nos viu caminhar lentamente,
de costas para o sol nascente?
No fim da Rua Alonso nos espera. Quer mesmo morrer, este mexicano.
Colocamo-nos frente a ele. Vê um pistoleiro de olhar soturno, o mexicano. Seu
riso se apaga. Vê muitas mortes em nossos olhos. É o que ele vê.
Nós vemos um mexicano. Pobre diabo. Comia o pão de milho, já não comerá. A
viúva e os cinco filhos o enterrarão ao pé da colina. Fecharão a palhoça e
seguirão para Vera Cruz. A filha mais velha se tornará prostituta. O filho menor
ladrão.
Temos os olhos turvos. Pobre Alonso. Não se devia nos ter dado suas bofetadas.
Agora está aterrorizado. Seus dentes estragados chocalharam. Que coisa triste.
Uma lágrima cai sobre o chão poeirento. É nossa. Levamos a mão ao coldre.
Mas não sacamos. É o mexicano que saca. Vemos a arma na sua mão, ouvimos o
disparo, a bala voa para o nosso peito, aninha-se em nosso coração. Sentimos
muita dor e tombamos.
Morremos, diante do riso de Alonso, o mexicano.
Nós, o pistoleiro, não devíamos ter piedade.
PROVÁVEL AVENTURA DE TRÊS
HOMENS DE LETRAS – Lord Dunsany
Quando os nómadas vieram para El Lola, já não tinham mais canções, e a ideia
de roubarem a caixa dourada surgiu-lhes em toda a sua magnitude. Por um lado,
muitos tinham tentado encontrar essa mesma caixa, que (como os Etíopes
sabem) é um receptáculo de poemas de incrível valor, sendo o seu destino ainda
hoje comentado na Arábia. Por outro lado, era muito desolador terem de se
sentar à noite, em volta da fogueira do acampamento,sem novas canções.
Tinha sido a tribo de Heth que tinha discutido estas coisas durante um serão, nas
planícies, abaixo do cume de Mluna. A sua terra natal era ponto de passagem
pelo mundo de errantes de que não há memória; e instalara-se uma certa
apreensão entre os nómadas mais velhos, porque não havia novas canções;
enquanto, intocável pelas preocupações humanas, intocável ainda pela noite que
escondia as planícies, o cume de Mluna, sereno no resplendor crepuscular,
olhava para a Terra Dúbia. E foi aí, na planície do lado conhecido de Mluna, à
medida que a estrela da noite surgia timidamente e as chamas da fogueira
levantavam as suas ermas plumas sem serem aclamadas por qualquer canção,
que aquele precipitado esquema a que o mundo chamou A Busca da Caixa
Dourada foi rapidamente elaborado pelos nómadas.
A única medida acertada que os nómadas mais velhos podiam ter tomado era a
de escolher para seu ladrão um tal Slith, precisamente aquele que (mesmo
enquanto escrevo) se antecipou ao rei de Westalia, tantas vezes quantas as
preceptoras ensinaram em salas de aula. Porém, o peso da caixaera tal que
outros tiveram que o acompanhar, e Sippy e Slorg eram ladrões tão ágeis como
aqueles que hoje se podem encontrar entre os vendedores de antiguidades.
Foi assim que estes três subiram, no dia seguinte, ao cume de Mluna e dormiram
como puderam na neve, para evitar passar a noite no meio da floresta da Terra
Dúbia. E a manhã chegou radiante com os pássaros a cantar, mas a floresta em
baixo, de uma imensidão a perder de vista, com os seus despidos e sinistros
despenhadeiros, representava uma ameaça indescritível. Apesar de vinte anos de
experiência em roubo, Slith pouco dizia.
Apenas se um dos outros fizesse rolar alguma pedra com o pé, ou, mais tarde já
na floresta, se algum deles pisasse um graveto, ele sussurrava-lhes rispidamente
sempre as mesmas palavras: — Assim não vamos longe. — Sabia que não podia
fazer deles melhores ladrões em apenas dois dias de viagem, e quaisquer que
fossem as suas dúvidas, não interveio mais. Das altas encostas de Mluna
desceram até às nuvens, e das nuvens para a floresta, onde havia animais, tal
como os três ladrões sabiam, para os quais toda a carne era alimento, fosse ela
de peixe ou humana. Aí, cada um deles tirou idolatramente do bolso um deus
diferente, rezando por protecção no bosque desafortunado, na esperança de
conseguirem uma tripla hipótese de fuga, dado que se alguma coisa pudesse
comer um deles, era mais do que certo que os comeria a todos. Fiaram-se em
que o corolário poderia ser verdadeiro e que todos escapariam se um escapasse.
Se um desses deuses estava de boa maré e acordado, ou todos eles; ou se foi a
sorte que os trouxe pela floresta sem serem devorados por detestáveis criaturas,
ninguém o sabia, mas certamente que nem os emissários do deus que a maioria
temia, nem a ira do deus local daquele lugar ameaçador, infligiram a sua
maldição sobre os três aventureiros, naquele lugar e nessa altura.
E foi assim que chegaram ao Brejo Ressoante, no coração da Terra Dúbia, cujas
tormentosas colinas não passavam da ondulação do terreno e da erosão
provocada por um terramoto agora adormecido. Algo tão gigantesco, que parecia
injusto que se pudesse mover tão delicadamente, aproximou-se
esplendidamente deles, e tão à justa lhes passou despercebido, que uma palavra
soou e ecoou na imaginação dos três… — Se… se… se. — E quando esse perigo
finalmente passou, continuaram cautelosamente de novo o seu caminho,
deparando-se, passado pouco tempo, com um pequenino e inofensivo ser, meio
mágico e meio gnomo, soltando sons estridentes, contentes guinchos nos confins
do mundo. Afastaram-se um pouco para não serem vistos, pois, segundo
disseram, a curiosidade do pequenino ser tornara-se incrível, e inofensivo como
era, não lidaria bem com segredos.
Além disso eles, provavelmente detestaram a maneira como ele fossava porentre
os brancos ossos dos mortos, e não admitiriam essa profanação, pois não ficava
bem a aventureiros interessarem-se por quem pudesse comer os seus ossos.
Fosse como fosse, afastaram-se cuidadosamente do pequenino ser, e chegaram
quase no mesmo instante ao pé da árvore mirrada, a meta da sua aventura, e
sabiam que perto deles se encontrava a fenda do mundo e a ponte do Mau para o
Pior, e que por baixo ficava a casa rochosa do Dono da Caixa.
Eis o simples plano deles: entrar furtivamente pela passagem aberta no rochedo
mais elevado; descer delicadamente por ali abaixo (descalços, é claro) sob o
aviso aos transeuntes que está gravado na pedra, que os intérpretes supõem ser
«É Melhor Não»; não tocar nos frutos silvestres que Mluna, se encontrasse bem
entre eles e o Dono da Caixa.
A porta no rochedo estava aberta. Desceram pelos frios degraus sem um único
murmúrio, com Slith a conduzi-los durante todo o percurso. Cada um deu aos
belos frutos silvestres uma olhadela de desejo, nada mais. O guardião ainda
dormia em cima do seu pedestal. Slorg subiu por uma escada, que Slith sabia
onde encontrar, até ao grampo de ferro que fechava a fenda do Mundo, e esperou
a seu lado, com um cinzel na mão, atento a qualquer sinal adverso, enquanto os
seus companheiros entravam sorrateiramente na casa, e nenhum som se ouvia.
Passado pouco tempo, Slith e Sippy encontraram a caixa dourada: tudo parecia
estar a correr conforme planeado, só faltava saber se era a correcta, e fugir com
ela daquele lugar medonho. Sob o abrigo do pedestal, tão perto do guardião que
lhe conseguiam sentir o calor do corpo (que, paradoxalmente, tinha o efeito de
gelar o sangue do mais corajoso), partiram o fecho de esmeralda e abriram a
caixa dourada; e ali, à luz de engenhosas faíscas que Slith sabia como engendrar,
inspeccionaram o seu conteúdo, procurando tapar com os seus corpos mesmo
aquela luz tão fraca. Qual não foi a sua alegria, naquele arriscado momento,
enquanto se escondiam entre o guardião e o abismo, ao verificarem que a caixa
continha quinze inigualáveis odes na forma alcaica; cinco sonetos, que eram de
longe os mais harmoniosos do mundo; nove baladas à maneira provençal, de que
não havia igual nos tesouros do homem; um poema dirigido a uma traça, em
vinte e oito perfeitas estrofes;uma composição em versos brancos com mais de
cem linhas, de um nível que ainda não parece ter sido atingido pelo homem;
assim como quinze letras de canções, nas quais nenhum negociante se atreveria
a pôr um preço. Teriam voltado a ler estes tesouros de boa vontade, pois
traziam-lhes à memória coisas queridas, passadas na infância, e melodiosas
vozes vindas de longínquas sepulturas. Mas Slith apontou imperiosamente para
o caminho por onde tinham vindo, e apagou a luz. Slorg e Sippy suspiraram, em
seguida pegaram na caixa.
O guardião ainda dormia o sono que perdurava há mil anos. À medida que se
afastavam, viram uma complacente cadeira, perto dos confins do Mundo, na
qual o Dono da Caixa se sentara nos últimos
tempos, lendo sozinho e egoisticamente as mais maravilhosas canções e versos
com que os poetas alguma vez sonharam. Desceram até ao fundo das escadas em
silêncio, e depois sucedeu que, quando estavam quase a chegar a um lugar
seguro, pela calada da noite, uma mão, num dos aposentos de cima, acendeu
uma luz horrível, sem emitir qualquer som.
Por instantes pareceu-lhes tratar-se de uma luz vulgar, podendo mesmo assim
ser fatal num momento como aquele, mas, quando os começou a seguir como
um olho e a ficar cada vez mais rubra, enquanto os observava, fez com que o
optimismo deles desaparecesse rapidamente. De um modo muito insensato,
Sippy tentou a fuga e, com a mesma insensatez, Slorg tentou esconder-se.
Porém, Slith, sabendo bem porque é que aquela luz fora acesa naquela câmara
secreta mais acima, e quem a acendera, saltou para lá dos confins do Mundo e
ainda hoje está em queda, através dessa abismal escuridão sem eco.
O MESTRE DE MOXON – Ambrose Bierce
— Está a falar a sério?… Então acredita que uma máquina possa pensar?
Não obtive logo resposta. Moxon estava aparentemente entretido a avivar as
brasas da lareira, com um atiçador, até que estas revelassem, através de um
brilho mais intenso, o resultado dessa sua atenção. Durante semanas, tinha vindo
a observar nele um hábito crescente para se demorar a responder-me, mesmo
quando se tratava das perguntas mais triviais. O seu aspecto, porém, era o de um
indivíduo preocupado e não apenas ausente. Poder-se-ia mesmo dizer que
«andava a remoer qualquer coisa».
Naquele momento, apenas me perguntou:
— O que é uma «máquina»? A palavra foi definida de vários modos. Eis uma
que retirámos de um dicionário popular: «Qualquer instrumento ou organismo
através do qual se aplica uma certa energia para o tornar efectivo, isto é, capaz
de produzir efeitos.» Ora, assim sendo, não será um homem também uma
máquina? E terá de admitir que ele pensa… ou acredita que pensa…
— Se não deseja responder à minha pergunta — disse eu, um pouco irritado —,
porque não mo diz? O que acabou de afirmar não passa de uma mera evasiva. Já
estará cansado de saber que, quando digo «máquina», não me refiro a um
homem, mas a algo que o homem inventou e pode controlar.
— Quando a mesma não acaba por o controlar… — disse ele, levantando-se de
repente e olhando através de uma janela onde nada se via através da escuridão de
uma noite de tempestade. Momentos depois, voltou-se e, com um sorriso,
acrescentou: — Desculpe, mas nunca me passou pela cabeça recorrer a evasivas.
Considero que o inconsciente do homem do dicionário já é um testemunho
sugestivo que vale a pena discutir. Posso dar, sem qualquer dificuldade, uma
resposta directa à sua pergunta: penso realmente que uma máquina é capaz de
refelectir acerca do trabalho que está a fazer.
Tal foi decerto suficientemente directo. Mas não era muito satisfatório, pois
tendia a confirmar a triste suspeita de que a devoção que Moxon revelava pelo
estudo e pelo seu trabalho na sua oficina de máquinas não fora muito boa para
ele. Sabia, além do mais, que ele sofria de insónias, o que não era um problema
menor. Será que isso afectara a sua mente? A sua resposta à minha pergunta
parecia indicar-me que sim, mas talvez, presentemente, eu deva ver essa questão
de um modo diferente. Era ainda muito novo nesse tempo e uma das bênçãos
que não são recusadas à juventude é, de facto, a ignorância. Excitado por esse
grande estimulante à controvérsia, afirmei:
— E diga-me então como será que ela pensa se não tem um cérebro?
A resposta, vinda com o seu atraso costumeiro, tomou a sua forma favorita de
contra-interrogatório:
— E com que pensa uma planta se também não tem cérebro?
— Ah, as plantas também pertencem à classe dos filósofos?! Gostaria de
conhecer algumas das suas conclusões. Poderá omitir as premissas.
— Talvez possa inferir as suas convicções — respondeu ele, aparentemente sem
ficar afectado pela cortante ironia — através dos seus altos. Poupar-lhe-ei os
exemplos familiares da mimosa sensitiva, das várias flores insectívoras e
daquelas cujos estames se vergam para poderem cobrir de pólen a abelha que aí
entrou, para que esta possa fertilizar outras plantas distantes. Mas observe isto:
num lugar aberto do meu jardim plantei uma trepadeira. Quando esta mal
despontava, enterrei uma estaca no solo a um metro de distância. A trepadeira
dirigiu-se logo para aí, mas, como estava quase a atingir essa estaca ao fim de
alguns dias, resolvi desviá-la alguns palmos. A trepadeira alterou logo o seu
percurso, descrevendo um ângulo agudo, e não demorou a continuar a crescer
em direcção à estaca. Esta manobra foi repetida várias vezes até que, finalmente,
como se se pudesse sentir já desencorajada, a trepadeira acabou por ignorar essa
sua busca e, ignorando já outras tentativas da minha parte para a desviar,
começou a dirigir-se a uma árvore não muito grande, um pouco mais longe, que
começou então a subir.
» Do mesmo modo, as raízes dos eucaliptos prolongar-se-ão incrivelmente em
busca de humidade. Um horticultor muito conhecido relata que uma delas
entrara num velho cano e que o seguiu até chegar a um ponto em que um pedaço
desse cano fora removido para dar lugar a uma parede de pedra que fora
construída no seu caminho. A raiz abandonou então o cano e começou a seguir a
parede até descobrir uma abertura provocada pela queda de uma pedra.
Atravessou então essa abertura e, continuando pelo outro lado da parede, entrou
de novo no cano para descobrir essa parte ainda por explorar e continuar o seu
caminho.
— Mas a que propósito me conta tudo isso?
— Não estará você a compreender o seu significado? Serve para mostrar que as
plantas têm uma consciência, provando assim que elas pensam.
— Mesmo que assim seja, que nos adiantará? Estávamos a falar de máquinas
não de plantas. Estas poderão em parte ser compostas por madeira… por
madeira morta, é claro… ou apenas por metal. Será que o pensamento também é
um atributo do reino mineral?
— Se assim não fosse, como poderia justificar os fenómenos, por exemplo, da
cristalização?
— Não os explico.
— Porque não o poderá fazer sem afirmar o que deseja negar, nomeadamente,
uma cooperação inteligente entre os elementos constitutivos dos cristais.
Quando os soldados formam fileiras, chamamos-lhe razão, mas quando os
gansos selvagens formam a letra V chamamos-lhe instinto. No entanto, quando
os átomos homogéneos de um mineral se movem livremente numa solução, se
arranjam de acordo com padrões matematicamente perfeitos; ou partículas de
humidade congelada dão lugar às formas belas e simétricas dos flocos de neve,
já não tem nada para me dizer. Você nem sequer inventou um nome para ocultar
a sua heróica falta de razão.
Moxon estava a falar muito animado e cheio de entusiasmo. Logo que ele
acabou, ouvi numa sala adjacente conhecida pela «sala das máquinas», onde
mais ninguém a não ser ele poderia entrar, um forte batimento, como se alguém
tivesse batido com a mão aberta no tampo de uma mesa. Moxon também o ouviu
nesse momento e, visivelmente agitado, levantou-se e apressou-se a entrar nessa
mesma sala. Achei estranho que alguém pudesse estar ali e o facto de se
interessar pelo meu amigo, talvez com um toque de indesejada curiosidade, fez
com que me pusesse propositadamente à escuta, embora (sinto-me feliz por
dizê-lo) não através do buraco da fechadura. Ouviram-se sons confusos, como se
alguém estivesse a lutar, e o chão tremia. Escutei distintamente uma respiração
forte e um sussurro rouco que disse:
— Maldito sejas! — Depois tudo ficou silencioso e Moxon voltou a aparecer,
dizendo, com um sorriso amarelo:
— Desculpe se o deixei aqui tão abruptamente. Tenho ali uma máquina que
perdeu as estribeiras e se portou mal.
Fixando os meus olhos na sua face esquerda, marcada por quatro escoriações
paralelas que ainda sangravam, observei:
— Que tal se lhe cortasse as unhas?…
Poderia ter evitado essa piada a que ele não prestara a mínima atenção.
Endireitou-se melhor na cadeira, de onde acabara de sair momentos antes e
retomou o seu monólogo interrompido como se nada se tivesse passado:
— Decerto não se associa àqueles… e não necessito mencioná-lo a um indivíduo
com as suas leituras… que nos ensinaram que toda a matéria possui uma
capacidade de sentir, que cada átomo é um ser vivo e detentor de uma
consciência. Contudo, é essa precisamente a minha opinião. A matéria morta e
inerte é algo que não existe. Tudo está vivo, todo e qualquer instinto possui uma
energia, real e potencial. Tudo é sensível às mesmas forças quando colocado no
seu ambiente, e susceptível ao contágio de outras ainda, mais altas e subtis, que
residem em organismos superiores, tais como aqueles com os quais possa entrar
em contacto, como os do homem, quando este transforma essa mesma matéria
num instrumento ao seu serviço. Para além do mais, essa matéria absorve algo
da inteligência e intencionalidade humanas, mais ainda daquelas mentes, em
proporção à complexidade da máquina que possa constituir e ao seu trabalho
final.
» Será que ainda se lembra da definição de “Vida” de Herbert Spenser? Eu li-a
há cerca de trinta anos. Tanto quanto sei, ele poderia tê-la alterado mais tarde,
mas, durante todo este tempo, não fui capaz de pensar noutra palavra que, com
justeza, pudesse ser mudada, acrescentada ou removida dessa mesma definição
que, para mim, se trata não apenas da melhor mas da única possível.
» A “Vida”, segundo o que ele afirma, “é uma combinação definitiva de
mudanças heterogéneas, sendo estas, ao mesmo tempo, simultâneas e sucessivas
e em correspondência com coexistências e sequências externas”.
— Isso define o fenómeno — disse eu —, mas nada nos revela acerca da sua
causa.
— Isso é afinal o que qualquer definição nos poderá dar — respondeu ele. — Tal
como Stuart Mill observou, nada sabemos da causa que não seja um antecedente,
e nada sabemos do efeito que não se traduza numa consequência. Quanto a
certos fenómenos, um nunca ocorre sem um outro que lhe é dissimilar: ao
primeiro, num ponto específico do tempo, chamamos causa; ao segundo, efeito.
Uma pessoa que tivesse visto muitas vezes um coelho a ser perseguido por um
cão, e que nunca antes tivesse visto cães ou coelhos, pensaria que os últimos
seriam causa dos primeiros.
» Mas receio — acrescentou, rindo-se com muita naturalidade — que esse
coelho me esteja a conduzir para bem longe do meu raciocínio original: estou a
entregar-me ao prazer da caça por si mesma. O que eu gostaria que observasse é
que a definição de “vida” de Herbert Spencer também inclui a actividade de uma
máquina, pois nada existe nessa definição que não se lhe possa aplicar. De
acordo com os observadores mais apurados e com os mais profundos
pensadores, se um homem está vivo durante o seu período de actividade, o
mesmo ocorre com uma máquina sempre que esta se encontre em
funcionamento. Como inventor e construtor de tais maquinarias creio, que isto é
uma verdade.
Moxon ficou calado durante muito tempo, olhando concentradamente para o
lume. Estava a tornar-se tarde e pensei que me deveria ir embora, porém, até
certo ponto, não me agradava a ideia de o deixar completamente só nessa casa
isolada, à excepção da presença de uma pessoa de cuja natureza as minha
concepções não poderiam ir mais longe do que concebê-la como uma presença
hostil e maligna. Inclinando-me mais para ele e olhando-o insistentemente nos
olhos, enquanto com o braço estendido ia apontando para a porta do seu
escritório, disse-lhe:
— Moxon, quem está aí consigo?
Até certo ponto, e para minha grande surpresa, ele riu-se e respondeu-me sem
hesitar:
— Ninguém. O incidente em que está a pensar foi causado pela minha loucura
em deixar uma máquina a trabalhar sem nada sobre o que pudesse agir, enquanto
me dedicava à tarefa interminável de iluminar o conhecimento do meu caro
amigo. Será que sabe que a Consciência é uma criação do Ritmo?
— Que se danem as duas — respondi eu, levantando-me e pegando no meu
sobretudo. — Vou desejar-lhe as boas-noites, acrescentando que tenho esperança
que a máquina que deixou a trabalhar inadvertidamente possa ter luvas calçadas
na próxima vez que achar necessário pará-la.
Sem esperar para observar o efeito desse meu remate, saí de sua casa.
Estava a chover e a escuridão era intensa. No céu, por detrás da crista de uma
colina, para a qual eu tentava a custo subir, caminhando sobre passeios de tábuas
e através de ruas lamacentas sem empedrado, podia ainda ver o brilho vago das
luzes da cidade. Todavia, por trás de mim nada mais era visível, a não ser uma
janela iluminada na casa de Moxon. Esta brilhava com o que me pareceu então
ser um misterioso e trágico significado. Sabia que se tratava de uma abertura
sem cortinas na «oficina» do meu amigo, e já não duvidava que ele tivesse
retomado os estudos que interrompera devido à sua tarefa como meu professor,
acerca das características da consciência mecânica e da paternidade do Ritmo.
Se bem que estranhas e até certo ponto cómicas as suas convicções me
parecessem na altura, eu não me conseguia libertar totalmente da impressão de
que as mesmas se relacionavam de um modo trágico com a sua vida e com o seu
carácter (talvez mesmo com o seu destino), embora eu já não me atardasse na
noção de que ambas consistissem apenas nos caprichos de uma mente confusa.
Tudo o que se pudesse pensar acerca das suas perspectivas era destruído pelo
modo lógico como ele as apresentava. Vezes sem conta, as suas últimas palavras
ressoaram-me ao ouvido: «a Consciência é uma criação do Ritmo». Apesar de
essa afirmação ser insuficiente ou demasiado curta, comecei a achá-la
absolutamente fascinante. A cada ocorrência, esta parecia aumentar de sentido,
tornar-se mais sugestiva. Ora, pensei eu, aqui está algo sobre o qual se poderá
fundar toda uma filosofia. Se a consciência é um produto do ritmo, então todas
as coisas são conscientes, pois todas têm movimento e todo o movimento é
rítmico. Comecei a cogitar se Moxon se teria apercebido do significado e do
alcance desse seu pensamento, da dimensão dessa sua generalização
momentânea. Ou será que ele atingira a sua fé filosófica através da incerta e
tortuosa estrada da observação?
Nessa altura, essa fé era para mim inteiramente nova, e o modo como Moxon a
expusera não me conseguira converter. Agora, no entanto, era como se uma luz
intensa me rodeasse, tal como a que se abatera sobre Saulo de Tarso, e foi nessa
tempestade e nessa escura solidão que acabei por experienciar o que Lewes
designa como «a infinita variedade e excitação do pensamento filosófico».
Exultei com um novo sentido do conhecimento e um novo orgulho da razão. Era
como se os meus pés mal tocassem na terra; era como se eu tivesse sido elevado
e transportado pelo ar por asas invisíveis.
Entregando-me a um impulso para procurar mais «luzes» junto daquele que eu
já considerava como sendo meu mestre e meu guia, desviara a minha rota e,
quase antes de me ter dado conta do facto, encontrava-me uma vez mais à porta
de Moxon. Estava completamente encharcado pela chuva mas não sentia
qualquer desconforto. Incapaz na minha excitação de encontrar a campainha,
tentei, inconscientemente, rodar a maçaneta da porta. Esta não estava trancada e,
logo que entrei, pus-me a subir as escadas que conduziam ao escritório de onde
eu acabara de sair há bem pouco tempo. Tudo estava em silêncio e às escuras.
Moxon, tal como eu supusera, encontrava-se na divisão contígua, ou seja, na
«oficina». Apalpando a parede em busca da porta, bati nesta várias vezes e com
alguma intensidade, se bem que não tivesse obtido resposta, o que acreditei
dever-se ao clamor dessa noite de tempestade, pois o vento soprava
intensamente fazendo com que lençóis de água chicoteassem as paredes. O
tamborilar da chuva sobre o telhado de placas de madeira dessa divisão sem
tecto ressoava incessantemente.
Nunca fora convidado para entrar na oficina. De facto, fora-me recusado o
acesso à mesma, tal como acontecera com os outros, à excepção de um
especialista em construções metálicas do qual ninguém sabia o que quer que
fosse, a não ser que se chamava Haley e que era um indivíduo muito calado.
Porém, dado o meu grande entusiasmo, esqueci-me das regras da discrição e das
boas maneiras e abri a porta. O que vi logo arrancou de mim toda a especulação
filosófica.
Moxon estava junto ao lado mais distante de uma mesa pequena sobre a qual
uma única vela fornecia toda a luz que iluminava esse espaço. Em frente dele, de
costas voltadas para mim, sentava-se uma outra pessoa. Sobre a mesa e entre
essas duas figuras via-se um tabuleiro de xadrez. Ambos estavam a jogar. Não
conhecia muito acerca desse jogo, todavia, como apenas se viam poucas peças
em cima do tabuleiro, era óbvio que o jogo estaria prestes a acabar. Moxon
estava intensamente interessado, não no jogo, segundo me pareceu, mas no seu
antagonista, no qual fixara tão intensamente os olhos que, se bem que eu me
encontrasse na sua linha de visão, ele nem sequer reparou em mim. O seu rosto
tinha uma palidez fantasmagórica e os olhos brilhavam-lhe como diamantes.
Quanto ao seu antagonista, apenas o podia observar de costas, mas isso era o
suficiente, pois não sentia muita vontade de lhe ver o rosto.
Este não teria mais do que um metro e meio de altura, com uma estatura que
sugeria a de um gorila: ombros sólidos e muito largos, um pescoço curto e largo
e uma cabeça atarracada, com um cabelo negro e emaranhado sob um fez
vermelho. Tinha uma camisa larga da mesma cor, apertada por um cinto, que lhe
chegava ao assento, aparentemente uma caixa, sobre a qual ele se sentava sem
que se lhe vissem os pés ou as pernas. O braço esquerdo parecia descansar-lhe
sobre as pernas, enquanto movia as peças com a mão direita que se me afigurava
desproporcionadamente longa.
Eu recuara um pouco e encontrava-me então na penumbra, encostado a um dos
lados da porta. Se Moxon tivesse olhado para lá do rosto do seu oponente nada
teria observado nesse momento, excepto o facto de a porta se encontrar aberta.
Algo parecia impedir-me de entrar ou de me ir embora. Tratava-se de uma
impressão (da qual desconhecida a proveniência) de que estava na presença de
uma tragédia iminente e de que poderia ajudar o meu amigo se aí permanecesse.
Quase com a minha consciência a rebelar-se ante a indelicadeza da atitude que
tomara, decidi aí ficar.
O jogo não demorou muito tempo. Moxon quase não olhava para o tabuleiro
antes de proceder às suas jogadas e, para o meu olhar pouco treinado no assunto,
parecia apenas deslocar a peça que lhe estava mais perto da mão, pois os seus
movimentos, sempre que o fazia, eram rápidos, nervosos e pouco precisos. As
reacções do seu antagonista, embora igualmente rápidas, consistiam numa série
de movimentos lentos, uniformes e mecânicos do braço, um pouco teatrais, que
pareciam atentar contra a minha paciência. Era como se neles existisse algo que
não era deste mundo, e foi quando reparei que eu próprio estava a tremer, o que
se poderia justificar dado que estava encharcado e cheio de frio.
Duas ou três vezes após ter movido uma peça, esse indivíduo estranho inclinou a
cabeça e, cada vez que o vi fazê-lo, reparei também que Moxon mudava o rei de
lugar. De súbito, ocorreu-me a ideia de que o homem era mudo e, em seguida, de
que o mesmo se tratava de uma máquina, de um autómato que jogasse xadrez!…
Foi quando me lembrei de Moxon me explicar em tempos ter inventado um
mecanismo semelhante, embora eu não tivesse percebido que, de facto, o mesmo
chegara a ser construído. Será que toda a sua conversa acerca da consciência e
da inteligência das máquinas não fora senão um prelúdio à exibição dessa
máquina, um truque, afinal, para intensificar ante os meus olhos (dado que não
estava a par desse segredo) o efeito da sua acção mecânica?
Isso acaba por pôr assim termo a todos os meus arrebatamentos de ordem
intelectual, à minha «variedade infinita e à excitação do pensamento filosófico
Estava quase a retirar-me aborrecido com o que via, quando algo me despertou a
curiosidade. Observei «essa coisa» enorme a encolher os ombros, como se
estivesse irritada e, de um modo tão natural, tão inteiramente humano, que, ao
vê-lo, me invadiu um sobressalto. Mas isso não era tudo, uma vez que, um
instante mais tarde, vi que esse monstro dava um forte murro na mesa. Perante
esse gesto, Moxon parecia ter ficado ainda mais sobressaltado do que eu, pois
viu-o desviar-se na cadeira um pouco mais para trás, como se receasse um
ataque.
E foi quando Moxon, ao fazer a sua jogada, ergueu o braço bem por cima desse
tabuleiro e caiu sobre uma das peças como um milhafre, exclamando:
— Xeque-mate!… De seguida, levantou-se para se colocar por trás da sua
cadeira. O autómato permanecia sentado sem se mexer.
O vento amainara um pouco, mas eu ainda ouvia, a intervalos cada vez mais
pequenos e cada vez mais alto, o ribombar dos trovões. Entre esses momentos e
a acalmia, tornei-me então consciente da presença de um zumbido e de um ruído
que, tal como a trovoada, parecia crescer de intensidade para se tornar cada vez
mais distinto. Este, segundo me pareceu, provinha do autómato e tratava-se, sem
dúvida, de um rolar de engrenagens. Deu-me a impressão de um mecanismo
desordenado que se tivesse acabado de libertar de uma acção reguladora ou de
uma parte que o controlasse, um efeito que se poderia esperar se o gancho que
controlasse uma roda dentada se tivesse partido. Porém, antes mesmo que eu
tivesse tempo para tecer conjecturas acerca de tal facto, os movimentos do
autómato acabaram por captar a minha atenção. Um pequeno mas contínuo
movimento convulsivo parecia ter-se apossado dele. A cabeça e o corpo
abanavam como os de um homem atacado por tremores incontroláveis ou os de
uma criança com sezões, e esse movimento ia aumentando a cada instante até
que toda essa criatura se agitasse violentamente. De repente, pôs-se de pé e, com
um movimento quase rápido de mais para que o pudéssemos seguir, atirou-se
para cima da mesa e da cadeira, com os braços esticados para a frente, com a
postura e o salto de um mergulhador. Moxon recuou de súbito para se desviar
dele, mas era já tarde de mais. Vi as mãos dessa coisa horrível apertarem-lhe a
garganta e reparei que as dele lhe tentavam segurar nos pulsos. Depois, vi a
mesa cair por terra. A vela rolou pelo chão e apagou-se. Tudo estava mergulhado
na mais densa escuridão. Mas o ruído dessa luta era tremendamente audível e,
mais terrível ainda, os sons ásperos e roucos feitos pelo homem que estava a ser
estrangulado e que se debatia numa tentativa desesperada para respirar. Guiado
pelo som desse tumulto infernal, corri para ajudar o meu amigo, mas, mal ainda
dera um passo pelo escuro, quando toda essa oficina se encheu de uma luz
branca e intensa, que me cegava, e que me gravou no cérebro, no coração e na
memória uma imagem vívida desses dois corpos que combatiam, rolando pelo
chão. Moxon estava por baixo, com a garganta ainda apertada por essas mãos de
ferro, a cabeça atirada para trás, os olhos muito saídos, a boca aberta e a língua
de fora. Como um hórrido contraste, via-se no rosto pintado do seu assassino
uma expressão de tranquilo e meditabundo pensamento, como se este ainda
estivesse a tentar resolver um problema de xadrez! Foi isso que observei, antes
de a escuridão e o silêncio me rodearem uma vez mais.
Três dias depois, recobrei a consciência num hospital. Enquanto a memória
dessa noite trágica se me ia tornando mais nítida, o meu cérebro doente
reconheceu Haley, o discreto colaborador de Moxon. Respondendo a um olhar
meu, vi-o aproximar-se a sorrir.
— Conte-me o que se passou… — foi tudo o que consegui pronunciar entre
dentes. — Conte-me tudo…
— É claro — disse ele —, o senhor foi retirado, ainda inconsciente, de uma casa
a arder, da casa de Moxon. Ninguém pôde explicar por que motivo aí se
encontrava. A origem desse fogo também é um pouco misteriosa. A minha
opinião é que a casa deveria ter sido atingida por um raio.
— E Moxon?
— Enterram-no ontem… O que ainda restava dele…
Aparentemente, esse sujeito extremamente reservado poderia tornar-se bem
mais comunicativo. Ao transmitir chocantes informações a uma pessoa doente,
revelava-se um indivíduo suficientemente afável. Após alguns momentos,
dominado pelo mais intenso sofrimento mental, aventurei-me a fazer-lhe outra
pergunta:
— E quem me salvou?
— Bem, se isso o interessa assim tanto, fique a saber que fui eu.
— Obrigado, senhor Haley, e que Deus o abençoe. Será que também salvou esse
interessantíssimo produto que o senhor construiu, esse autómato jogador de
xadrez que acabou por assassinar o seu inventor?
O homem permaneceu calado durante longos instantes, desviando os olhos de
mim. Momentos depois, encarou-me para me perguntar, muito compenetrado:
— Tem a certeza disso?
— Pois tenho — respondi-lhe. — Acabei por ver tudo.
Todavia, tudo isso se passou há muitos anos. Se me fizessem hoje essa mesma
pergunta, não estaria tão seguro da resposta.
UBBO-SATHLA - Clark Ashton Smith
Paul Tregardis encontrou o cristal leitoso numa pilha de restos de muitas terras e
eras.
Havia entrado na loja do vendedor de curiosidades, seguindo um impulso sem
objetivo, sem qualquer objetivo específico em mente que não a distração ociosa
de olhar e tocar uma miscelânia de coisas reunidas de muitos locais distantes.
Passando os olhos pelo material, sem método algum, seu atenção foi atraída por
um brilho embotado em uma das mesas; e extraiu a esquisita pedra em formato
de orbe de sua posição sombria e atulhada entre um pequeno e feio ídolo asteca,
o ovo fossilizado de uma moa, e um obsceno fetiche nigeriano, feito de madeira
negra.
A coisa tinha mais ou menos o tamanho de uma pequena laranja, e era
levemente aplanada nas extremidades, como um planeta em seus polos. Aquilo
intrigava Tregardis, pois não era um cristal comum, sendo nebuloso e mutável,
com um brilho intermitente em seu âmago, como se fosse alternadamente
iluminado e escurecido a partir de dentro. Segurando-o à luz da janela cheia de
neve, estudou-o um pouco, sem conseguir determinar o segredo daquela singular
e regular alternação. Sua confusão logo foi complicada por uma sensação cada
vez maior de vaga e irreconhecível familiaridade, como se houvesse visto a
coisa antes, em circunstâncias agora totalmente esquecidas.
Chamou o vendedor de curiosidades, um hebreu diminuto de ar de antiguidade
empoeirada, que dava a impressão de estar perdido em considerações
comerciais, em alguma rede de devaneios cabalísticos.
- Pode dizer-me alguma coisa sobre isto?
O vendedor contraiu de maneira indescritível e simultânea os ombros e as
sobrancelhas.
- É bastante antigo – paleogênico, poder-se-ia dizer. Não posso dizer muito, pois
sabe-se pouco. Um geólogo encontrou-o na Groelândia, sob o gelo glacial, em
terreno mioceno. Quem sabe? Pode ter pertencido a algum feiticeiro da Thule
primeva. A Groelândia era uma região quente e fértil sob o sol da época
miocena. Sem dúvida é um cristal mágico; e pode-se ter estranhas visões em seu
âmago, caso seja observado por tempo suficiente.
Tregardis ficou bastante surpreso; pois a sugestão aparentemente fantástica do
vendedor trouxe à mente suas próprias sondagens de um ramo da sabedoria
obscura; em particular lembrava-se do Livro de Eibon, aquele volume esquecido
e oculto tão estranho e raro, que diz-se ter sido passado adiante através de uma
série de múltiplas traduções, a partir de um original pré-histórico escrito no
idioma perdido da Hiperbórea. Tregardis, com bastante dificuldade, obtera a
versão francesa – cópia que estivera em posse de muitas gerações de feiticeiros
e satanistas – mas nunca conseguira encontrar o manuscrito grego a partir do
qual aquela versão fora derivada.
O original remoto e fabuloso era tido como a obra do grande mago hiperbóreo
que lhe dava o título. Era uma coleção de mitos sombrios e ominosos, de
liturgias, rituais e encantamentos tão malignos quanto esotéricos. Não sem
sentir calafrios, no decorrer dos estudos que uma pessoa comum acharia mais
que singular, Tregardis havia feito comparações do volume francês com o
temível Necronomicon, do árabe louco Abdul Alhazred. Encontrara muitas
correspondências de significância bastante sombria e aterradora, junto com
vários dados proibidos que eram desconhecidos do árabe ou omitidos por ele...
ou por seus tradutores.
Seria isso o que estava tentando relembrar, pensou Tregardis? – a referência
breve e casual no Livro de Eibon a um cristal nebuloso que fora propriedade do
mago Zon Mezzamalech, em Mhu Thulan? É claro, era tudo fantástico demais,
hipotético demais, incrível demais – porém Mhu Thulan, a porção norte da
antiga Hiperbórea, supostamente correspondia mais ou menos à Groelândia
moderna, que antes seria uma península do continente principal. Será que a
pedra em suas mãos, por um acaso fabuloso, seria o cristal de Zon
Mezzamelech?
Tregardis sorriu consigo mesmo, diante da ironia que era sequer conceber essa
noção absurda. Tais coisas não aconteceriam – pelo menos não na Londres
contemporânea; e de qualquer forma, muito provavelmente o Livro de Eibon não
passava de fantasia supersticiosa. Mesmo assim, havia algo no cristal, que
continuava a tentá-lo e persuadi-lo. Terminou por comprar o cristal, por um
preço razoavelmente moderado. A soma foi declarada pelo vendedor e paga pelo
comprador, sem qualquer barganha.
Com o cristal no bolso, Paul Tregardis apressou-se em voltar a seu alojamento,
ao invés de continuar o passeio de lazer. Instalou o globo leitoso em sua mesa de
trabalho, onde ficou firme sobre uma de suas extremidades oblatas. E então,
ainda sorrindo com o próprio absurdo, pegou o manuscrito em papel de
pergaminho amarelado, o Livro de Eibon, de seu lugar numa coleção um tanto
abrangente de literatura incomum. Abriu a capa de couro vermiculado, de fechos
de aço manchado, e leu para si mesmo, traduzindo a partir do francês arcaico, o
parágrafo que referia-se a Zon Mezzamelech: “Este mago, bastante poderoso
entre os feiticeiros, encontrara uma pedra nebulosa, semelhante a um orbe, um
tanto achatada nas extremidades, na qual podia contemplar muitas visões do
passado terreno, e até mesmo dos começos da Terra, quando Ubbo-Sathla, a
fonte incriada, repousa vasta e inchada e fermentescente em meio à geleia
vaporosa... Mas daquilo que chegou a contemplar, Zon Mezzamalech deixou
poucos registros; e as pessoas dizem que ele desapareceu de maneira
desconhecida; e depois disso o cristal nebuloso se perdera.”
Paul Tregardis colocou o manuscrito de lado. Mais uma vez, havia algo que o
tentava e seduzia, como um sonho perdido ou uma memória condenada ao
esquecimento.
Impelido por uma sensação que não ponderou ou questionou, sentou-se diante da
mesa e começou a fitar resoluto as profundezas da orbe gelada e nebulosa.
Sentia uma expectativa que, de alguma forma, era tão familiar, uma parte de sua
consciência tão permeante, que nem chegou a dar-lhe um nome.
Minuto após minuto, ficou ali sentado, observando o reluzir e apagar alternados
da misteriosa luz no âmago do cristal. Quase que imperceptivelmente, foi
abatendo-se sobre ele uma sensação de dualidade onírica quanto à sua pessoa e
seu ambiente. Ele ainda era Paul Tregardis – mas também era outro alguém: o
aposento era o do seu apartamento em Londres – mas também uma câmara em
algum lugar estrangeiro, embora bastante conhecido. E em ambos os lugares, ele
fitava com resolução o mesmo cristal.
Após um ínterim, sem surpresa da parte de Tregardis, o processo de
reidentificação tornou-se completo. Ele sabia que era Zon Mezzamalech,
feiticeiro de Mhu Thulan, estudante de toda a sabedoria anterior à sua própria
época. Sábio em segredos terríveis não conhecidos por Paul Tregardis, que era
um amador em antropologia e ciências ocultas na Londres dos dias recentes,
buscou através do cristal leitoso uma maneira de conseguir conhecimentos ainda
mais antigos e terríveis.
Ele havia adqurido a pedra de maneira duvidosa, vinda de fonte mais que
sinistra. Era singular e incomparável, em todas as terras ou tempos. Em suas
profundezas, todos os anos anteriores, todas as coisas que já haviam acontecido,
supostamente eram espelhadas e revelar-se-iam ao visionário paciente. E através
do cristal, Zon Mezzamalech sonhava recuperar a sabedoria dos deuses que
morreram antes que a Terra houvesse nascido. Haviam passado para além do
vácuo sem luz, deixando sua sabedoria inscrita em tabuletas de pedra
ultraestelar; tabuletas guardadas no lodaçal primordial pelo demiurgo amorfo e
idiota, Ubbo-Sathla. Apenas através do cristal conseguiria encontrar e ler as
tabuletas.
Pela primeira vez, estava testando as virtudes propaladas do globo. Em volta de
si, uma câmara enfeitada de marfim, cheia de livros e parafernálias mágicas,
estava lentamente esvaindo de sua consciência. Diante dele, numa mesa de
alguma madeira negra hiperbórea, gravada com cifras grotescas, o cristal
parecia inchar e aprofundar-se, e em suas profundezas translúcidas contemplou
um rápido e desconexo turbilhão de cenas vagas, transitórias como as bolhas na
calha de um moinho. Era como se estivesse testemunhando o mundo real, com
suas cidades, florestas, montanhas, mares e prados fluindo abaixo dele,
iluminando-se e escurecendo-se como se a passagem dos dias e noites fosse
bizarramente acelerada no fluxo do tempo.
Zon Mezzamalech esquecera Paul Tregardis – perdera a lembrança de sua
própria existência e dos arredores em Mhu Thulan. Momento a momento, a
visão fluente no cristal ficava mais definida e distinta, e a própria orbe
aprofundava-se até causar vertigens, como se estivesse de uma altura insegura,
espreitando um abismo jamais antes sondado. Ele sabia que o tempo retrocedia
no cristal, desenrolando diante dele o cortejo de todos os dias já passados; mas
um estranho alarmismo o arrebatou, e temeu continuar observando. Como
alguém que quase caiu de um precipício, forçou-se para fora do transe da orbe,
com um arranco violento.
Mais uma vez, diante de seu olhar, o enorme mundo rodopiante que havia
espreitado não passava de um pequeno e nebuloso cristal, na sua mesa rúnica em
Mhu Thulan. E então, pouco a pouco, pareceu que o grande aposento de painéis
esculpidos de marfim de mamute estava estreitando-se para formar outro lugar,
mais escuro; e Zon Mezzamalech, perdendo sua sabedoria sobrenatural e poder
feiticeiro, retornou, em uma estranha regressão, a ser Paul Tregardis.
Porém, aconteceu que não conseguiu retornar completamente. Tregardis, tonto e
cogitabundo, encontrava-se diante da mesa de trabalho onde havia posto a esfera
oblata. Sentiu a confusão daquele que sonha e ainda assim não despertou
totalmente do sonho. O aposento o confundia de maneira vaga, como se algo
estivesse errado com seu tamanho e mobília; e sua lembrança da compra do
cristal das mãos de um vendedor de curiosidades misturava-se esquisita e
discrepantemente com a impressão de que havia adquirido o objeto de maneira
bastante diversa.
Sentia que algo muito estranho havia acontecido com ele, ao espreitar o cristal;
mas exatamente o quê, não conseguia lembrar. A experiência havia deixado
aquele tipo de turvação que advém de uma orgia de haxixe. Assegurou-se de que
era Paul Tregardis, que vivia em tal e tal rua em Londres, que o ano era 1932;
mas tais verdades e lugares-comum tinham de certa forma perdido seu
significado e validade; e tudo ao seu redor parecia fantasmagórico e
insubstancial. As próprias paredes pareciam evanescer como fumaça; as pessoas
nas ruas eram espectros de espectros; e ele mesmo não passava de uma sombra
perdida, um eco vagante de algo há muito esquecido.
Resolveu não repetir o experimento de cristalomancia. Os efeitos eram
demasiado desagradáveis e duvidosos. Mas no mesmo dia seguinte, seguindo um
impulso irracional ao qual sucumbiu quase que mecanicamente e sem relutância,
encontrou-se sentado diante do orbe nebuloso. Mais uma vez tornou-se o
feiticeiro Zon Mezzamelech, em Mhu Thulan; mais uma vez sonhou para
recuperar a sabedoria dos deuses pré-mundanos; mais uma vez fugiu do cristal
aprofundante, com o terror daqueles que temem cair; e mais uma vez – embora
de forma tênue e duvidosa – ele se tornava Paul Tregardis.
Três vezes Tregardis repetiu a experiência, em dias sucessivos; e a cada vez, sua
própria pessoa e o mundo ao seu redor tornavam-se mais tênues e confusos. Suas
sensações eram as de um sonhador prestes a despertar; e a própria Londres era
tão irreal quanto as terras que somem diante do sonhador, desaparecendo numa
bruma viscosa, numa luz nebulosa. Era como se a fantasmagoria do tempo e do
espaço dissolvesse ao seu redor, revelando alguma realidade mais crível – ou
outro sonho de espaço e tempo.
Veio então, por fim, o dia em que ele sentou-se diante do cristal – e não mais
retornou como Paul Tregardis. Foi em dia em que Zon Mezzamalech,
impetuosamente desconsiderando certos alertas malignos e portentosos,
resolveu superar seu curioso medo de cair corporalmente no mundo visionário
que contemplava – medo que até então o impedia de seguir muito o fluxo
inverso do tempo. Ele deveria, repetia a si mesmo, conquistar esse medo, se
quisesse ver e ler as tabuletas perdidas dos deuses.
Havia contemplado apenas pouco mais que alguns fragmentos dos anos de Mhu
Thulan imediatamente posteriores aos anos contemporâneos de sua própria vida;
e haviam ciclos inestimáveis entre esses anos e o Princípio.
Mais uma vez, diante de seu olhar, o cristal aprofundou-se imensuravelmente,
mostrando cenas e acontecimentos que fluíam de maneira retrógrada. Mais uma
vez as cifras mágicas da mesa escura saíram de seu campo de percepção, e as
paredes feiticeiramente inscritas de sua câmara desfizeram-se como algo menos
que um sonho.
Mais uma vez ficou tonto de uma enorme vertigem, ao curvar-se diante do
turbilhão e sorvedouro dos terríveis abismos de tempo naquele orbe que parecia
um planeta.
Sentindo medo, apesar de sua resolução, quase acabou por afastar-se; mas
observara e espreitara por tempo demais. Houve uma sensação de queda abissal,
uma sucção como se de ventos inelutáveis, de redemoinhos que o esmagou
através de visões instáveis e efêmeras de sua própria vida passada, até chegar a
anos e dimensões pré-natais. Parecia suportar a agonia da dissolução invertida; e
que não era mais Zon Mezzamalech, o sábio e erudito observador do cristal, mas
uma parte real do fluxo esquisitamente rápido que corria em reverso para
reatingir o Princípio.
Pareceu viver inúmeras vidas, morrer miríades de mortes, esquecendo a cada
vez a morte e a vida que aconteciam antes. Lutou como guerreiro em batalhas
semilendárias; foi uma criança brincando nas ruínas de alguma antiga cidade de
Mhu Thulan; foi um rei que reinava quando a cidade estava em seu ápice, o
profeta que prevera sua construção e seu fim. Como uma mulher, chorou pelos
mortos há muito falecidos, em necrópoles há muito em ruínas; como um antigo
mago, murmurou os feitiços rudimentares das primeiras feitiçarias; como
sacerdote de algum deus pré-humano, empunhou a adaga sacrificial em templos-
cavernas de pilares de basalto. Vida por vida, era por era, retraçou os longos e
trôpegos ciclos através dos quais a Hiperbórea ascendera da selvageria para a
alta civilização.
Tornou-se um bárbaro de alguma tribo troglodita, fugindo do gelo lento e
torreado de uma prévia era glacial, invadindo terras iluminadas pelo fulgor
rubicundo dos vulcões perpétuos. E então, após incomputáveis anos, não era
mais um homem, mas uma fera similar a homem, vagando em florestas de
samambaias e calamitas gigantes, ou construindo um ninho improvisado nos
galhos de poderosas cicadáceas.
Através de éons de sensação anterior, de luxúria e fome básicas, de terror e
loucura aborígenes, havia alguém – ou algo – que retrocedia no tempo. A morte
tornou-se nascimento e o n nascimento era a morte. Numa lenta visão de
mudança reversa, a terra pareceu derreter, e desfez-se das colinas e montanhas
de seus estratos posteriores. O sol ficava sempre maior e mais quente sobre os
pântanos fumegantes, que pululavam de vida grosseira, em meio a uma
vegetação mais exuberante. E a coisa que havia sido Paul Tregardis, que havia
sido Zon Mezzamalech, era parte de toda essa monstruosa involução. Voou com
as asas de garras de um pterodáctilo, nadou em mares tépidos com o volume
vasto e comprido de um ictiossauro, urrou grosseiro com a garganta armadurada
de algum behemote esquecido, urrando para a enorme lua que queimava em
meio a névoas primordiais.
Com o passar do tempo, após éons de brutalidade imemorial, tornou-se um dos
homens-serpente perdidos, que preparavam suas cidades de gneisse negra e
lutavam suas guerras venenosas no primeiro continente do mundo. Caminhou
onduladamente em ruas pré-humanas, em estranhas criptas curvas; espreitou as
estrelas primevas do topo de torres altas e babélicas; ajoelhou-se nas litanias
sibilantes dos grandes ídolos serpentinos. Com o passar de anos e épocas da era
ofídica, ele voltou a ser uma coisa que rastejava no limo, uma coisa que não
havia ainda aprendido a pensar e sonhar e construir. E veio o tempo em que não
havia mais continente, mas apenas um charco vasto e caótico, um mar de limo,
sem limites ou horizontes, sem costas ou elevações, fervilhando no contorcer
cego dos vapores amorfos.
E então, no princípio cinzento da Terra, a massa disforme que era Ubbo-Sathla
repousava por entre o limo e os vapores. Sem cabeça, sem órgãos, sem
membros, expelia de suas laterais lodosas, numa onda lenta e incessante, as
formas ameboides que constituíam os arquétipos da vida terrena. Era algo
horrível, se fosse possível apreender o horror; algo repugnante, se houvesse
alguém ali capaz de sentir repugnância. Perto dele, largadas ou lançadas na
lama, estavam as poderosas tábulas de pedra minerada nas estrelas, onde estava
escrita a inconcebível sabedoria dos deuses pré-mundanos.
E para ali, para o objetivo de uma busca esquecida, foi atraída a coisa que havia
sido – ou que algum dia haveria de tornar-se Paul Tregardis e Zon
Mezzamalech.
Transformado numa salamandra amorfa do começo dos tempos, a coisa
rastejava preguiçosa e indiferente sobre as decaídas tábulas dos deuses, e lutava
e devorava cegamente outras crias de Ubbo-Sathla.
Num país distante onde as cidades tinham nomes improváveis, uma mulher
contemplou a figura inerte do seu bebé recém-nascido e recusou-se a ver o
mesmo que a parteira. Era o seu filho. Trouxera-o ao mundo em agonia, e agora
ele tinha de mamar. Encostou-lhe os lábios ao seio.
– Mas ele está morto! – disse a parteira.
– Não – mentiu a mãe. – Ainda agora o senti mamar. – A sua mentira era como
leite para o bebé, que na realidade estava morto, mas abria agora os olhos e
pontapeava com as pernas.
– Está a ver?
E obrigou a parteira a chamar o pai para conhecer o seu filho. O menino morto
nunca chegou a mamar no seio da mãe. Nunca bebeu água, nem provou comida
de nenhuma espécie, e por isso, claro, nunca cresceu. Mas o pai, que tinha jeito
para coisas mecânicas, construiu uma armação para o esticar, para que, com o
passar dos anos, pudesse ser da altura das outras crianças.
Tendo visto seis Invernos, os pais mandaram-no para a escola. Embora fosse da
altura dos restantes alunos, o menino morto era uma coisa estranha de se ver. A
cabeça calva era quase do tamanho certo, mas o resto do corpo era delgado,
como uma tira de couro, e seco como um pau. Tentava compensar a fealdade
com diligência, e ficava acordado até tarde a ensaiar as letras e os números.
A sua voz era como o restolhar de folhas secas. Por ser tão difícil escutá-lo, a
professora obrigava os outros alunos a prender a respiração sempre que ele dava
uma resposta. Ela chamava-o muitas vezes ao quadro, e ele estava sempre
correcto.
Como é natural, as outras crianças desprezavam-no. Por vezes, os rufias faziam-
lhe esperas à saída da escola, mas bater-lhe, mesmo com paus, nunca lhe
causava dano. Não chegava sequer a gritar.
Certo dia de vento, os rufias roubaram um novelo de cordel da secretária da
professora e, depois da escola, prenderam o menino morto ao chão com os
braços esticados em forma de cruz. Enfiaram-lhe um pau pela manga esquerda
da camisa até sair pela direita. Esticaram-lhe as abas da camisa até aos
tornozelos, ataram tudo no sítio, prenderam o novelo de cordel à casa de um
botão, e lançaram-no ao ar. Para grande alegria sua, o menino morto fazia um
papagaio excelente. Só os alegrava mais ver que, devido ao peso da sua cabeça,
voava de pernas para o ar.
Quando se fartaram de ver o menino morto voar, largaram o cordel. O menino
morto não voltou ao solo, como um vulgar papagaio de papel. Pairou. Era capaz
de se guiar um pouco, embora estivesse sobretudo à mercê dos ventos. E não
conseguia descer. Na verdade, o vento impelia-o cada vez mais para o alto. Pôs-
se o Sol, e o menino morto continuou a ser levado pelo vento. Nasceu a Lua, e ao
luar viu sucederem-se prados e florestas. Viu cordilheiras passar por baixo de si,
oceanos e continentes.
Por fim, os ventos acalmaram, e depois cessaram, e ele aterrou a pairar no chão
de um estranho país. O chão estava despido. A Lua e as estrelas tinham
desaparecido do céu. O ar parecia cinzento e encoberto. O menino morto
inclinou-se para o lado e abanou-se até o pau lhe cair da camisa.
Enrolou o cordel que tinha puxado atrás de si e esperou pelo nascer do Sol. Com
o alongar das horas, viu apenas o mesmo ar pardacento. Começou por isso a
vaguear.
Encontrou um homem muito parecido consigo, uma cabeça calva a encimar
membros como cabedal.
– Onde estou? – perguntou o menino morto.
O homem olhou o ar cinzento em redor.
– Onde? – perguntou. A sua voz, tal como a do menino morto, parecia o sussurro
de folhas mortas.
Da névoa, surgiu uma mulher. Também a sua cabeça era calva, e o corpo
ressequido.
– Isto! – disse em voz rouca, tocando a camisa do menino morto. – Eu lembro-
me disto! – Puxou pela manga. – Tinha uma coisa destas!
– Roupa? – perguntou o menino morto.
– Roupa! – gritou a mulher. – É isso!
Outras pessoas encarquilhadas surgiram do ar cinzento. Juntaram-se para ver o
estranho menino morto que envergava roupa. O menino morto sabia agora onde
estava.
– É a terra dos mortos.
– Porque tens tu roupa? – perguntou a morta. – Chegamos aqui sem nada!
Porque tens tu roupa?
– Sempre estive morto – disse o menino – mas passei seis anos com os vivos.
– Seis anos! – disse um dos mortos. – E só agora te juntaste a nós?
– Conheces a minha mulher? – perguntou um morto. – Ela ainda está entre os
vivos?
– Dá-me novidades do meu filho!
– E que é feito da minha irmã?
Os mortos aproximaram-se mais.
Disse o menino morto:
– Como se chama a tua irmã?
Mas os mortos não se conseguiram lembrar dos nomes dos seus entes queridos.
Não se lembravam sequer dos próprios nomes. De igual maneira, os nomes dos
lugares onde tinham vivido, os números dos seus anos, as modas e costumes das
suas épocas, tudo isso tinham esquecido.
– Bom – disse o menino morto – na cidade em que nasci havia uma viúva. Se
calhar era a tua mulher. E sabia de um rapaz cuja mãe tinha morrido, e uma
velha que podia ter sido a tua irmã.
– Vais voltar?
– Claro que não – disse outra pessoa morta. – Nunca ninguém volta.
– Acho que sou capaz – disse o menino morto. Explicou-lhes o seu voo. – Mal
sopre o vento…
– O vento nunca sopra aqui – disse um homem falecido há tão pouco que ainda
recordava o vento.
– Então corram com o meu cordel.
– Isso resulta?
– Dá um recado ao meu marido! – disse uma morta.
– Diz à minha mulher que tenho saudades dela! – disse um morto.
– Diz à minha irmã que não a esqueci!
– Diz ao meu namorado que ainda o adoro!
Deram-lhe os seus recados, sem saber se os seus entes queridos continuavam
vivos. Na verdade, dois amantes falecidos bem podiam estar lado a lado na terra
dos mortos, passando mensagens um ao outro através do menino. Ainda assim,
memorizou-as a todas. Os mortos recolocaram-lhe então o pau nas mangas da
camisa, ataram tudo no sítio e desenrolaram o cordel.
Correndo tanto quanto as pernas encarquilhadas lhes permitiram correr,
lançaram o menino de volta ao céu, soltaram o cordel e ficaram a vê-lo afastar-
se com o seu olhar morto.
O menino pairou muito tempo sobre o cinzento da morte até que, por fim, uma
aragem o levantou, e um sopro de vento o levantou ainda mais, e uma rajada o
levou até onde podia ver a Lua e as estrelas. Lá em baixo, viu o luar espelhado
no oceano.
Ao longe, erguiam-se os picos das montanhas. O menino morto aterrou numa
aldeola. Não conhecia ninguém ali, mas foi à primeira casa que encontrou e
bateu na persiana do quarto. Disse à mulher que lhe abriu a janela:
– Um recado da terra dos mortos – e transmitiu-lhe uma das mensagens.
A mulher chorou e, em troca, deu-lhe outro recado.
Casa a casa, entregou as mensagens. Casa a casa, reuniu mensagens para dar aos
mortos. Pela manhã, encontrou uns rapazes para o pôr a voar, para o devolver à
mercê do vento, para assim levar estas novas mensagens de regresso à terra dos
mortos.
E assim tem sido desde então. A qualquer noite, com a cabeça cheia de recados,
o menino morto pode bater a qualquer janela para lembrar alguém – para te
lembrar a ti, quem sabe – de um amor que sobrevive à memória, de um amor
que não carece de nomes.
TEXTOS CURTOS – Clark Ashton Smith
O LAGO NEGRO
Há dias em que toda a beleza do mundo é tênue e estranha; quando a luz do sol
ao meu redor parece cair numa terra mais remota que os polos da lua. As rosas
no jardim me surpreendem, como monstruosas orquídeas de cor desconhecida,
que brotam nos planetas além de Aldebarã. E estou chocado com as folhas
amarelas e púrpuras de Outubro, como se no véu de algum tremendo e horrendo
mistério fosse quase levantado, por um momento. Em tais horas, ó coração do
meu coração, sinto medo de tocar-te, evito tuas carícias, temendo que tu
desapareças como se num sonho diante da aurora, ou que eu reconheça em ti um
fantasma, o espectro daquela que morreu e foi esquecida milhares de anos atrás,
numa terra distante onde o sol não mais reluz.
O JARDIM E A TUMBA
I
Beijo tuas mãos -- tuas mãos, cujos dedos são delicados e pálidos como as
pétalas da lótus branca.
II
Beijo teu cabelo, que tem o lustre das joias negras, e que é mais escuro que o
Rio Lethe, fluindo à meia-noite através do sono sem luar de terras perfumadas
por papoulas.
III
Beijo tua testa, que lembra uma lua nascendo num vale de cedros.
IV
Beijo tuas bochechas, onde permanece um leve enrubescer, como o reflexo de
uma rosa sobre uma urna de alabastro.
V
Beijo tuas pálpebras, e as comparo às flores de veias púrpuras, que fecham-se
sob a opressão de uma noite tropical, numa terra onde os ocasos são tão
luminosos quanto as chamas do âmbar flamejante.
VI
Beijo tua garganta, cuja palidez ardente é a palidez do mármore aquecido pelo
sol de outono.
VII
Beijo tua boca, que tem o sabor e perfume da fruta molhada do orvalho de uma
fonte mágica, no paraíso secreto que apenas nós dois encontraremos; um paraíso
de onde jamais partiremos, pois as águas que nele vadeiam são as do Lethe, e a
fruta é a fruta da Árvore da Vida.
AO DEMÔNIO
Eras e eras atrás, numa época cujos mundos maravilhosos já haviam ruído, e
cujos poderosos sóis eram menos que sombra, habitava eu uma estrela cujo
curso, já sem retorno, em sua decadência vinda dos altos céus do passado, estava
cada vez mais aproximando-se de um abismo onde, diziam os astrônomos, seu
ciclo imemorial encontraria um fim sombrio e desastroso.
Ah, era estranha aquela estrela esquecida em seu golfo – quão mais estranha que
qualquer sonho dos sonhadores nas esferas do hoje, ou que qualquer visão que já
assomou os visionários, em sua retrospectiva do passado sideral! Ali, através de
ciclos de história cujos registros empilhados, escritos em bronze, não podiam
mais ser enumerados, os mortos vieram a superar, em definitivo, os vivos. E,
construídas de uma pedra indestrutível, salvo na fornalha dos sóis, suas cidades
cresciam ao lado das dos vivos, como as metrópoles prodigiosas dos Titãs, com
muralhas que conjuravam sombras sobre as vilas próximas. E sobre tudo aquilo,
havia a cripta fúnebre e sombria dos enigmáticos céus – um domo de sombras
infinitas, onde o triste sol, suspenso como uma lâmpada enorme e solitária, não
conseguia iluminar, e extinguindo suas chamas em face do inevitável, enviava
um raio confuso e desesperador sobre os remotos e vagos horizontes, e as vistas
ocultas eram ilimitadas, naquela terra visionária.
Éramos um povo sombrio, secreto e muito tristonho – nós, que habitávamos sob
o céu do crepúsculo eterno, penetrado por altíssimas torres e obeliscos do
passado. Em nosso sangue, sentia-se o calafrio da antiga noite do tempo; e
nossos pulsos enfraqueciam com a insidiosa presciência do langor do Lethe.
Sobre nossas cortes e campos, como vampiros invisíveis e letárgicos, nascidos
dos mausoléus, ascendiam e flutuavam as horas negras, com asas que destilavam
uma languidez maléfica, nascida do lamento sombrio e do desespero dos ciclos
encerrados. Os próprios céus eram carregados de opressão, e respirávamos sobre
eles como se num sepulcro, para sempre selado, com todas as estagnações da
corrupção e da lenta decomposição, e da escuridão impenetrável, a não ser aos
vermes que roem.
Vivíamos de forma vaga, e amávamos como se ama nos sonhos – os tênues e
místicos sonhos que flutuam sobre o limiar do sono inescrutável. Sentíamos por
nossas mulheres, com sua beleza pálida e espectral, o mesmo desejo que os
mortos podiam sentir pelos lírios fantasmagóricos dos campos do Hades. Nossos
dias se passavam num vagar por entre as ruínas das cidades solitárias e
imemoriais, cujos palácios de cobre corroído, e ruas que corriam entre linhas de
obeliscos gravados a ouro, repousavam frágeis e macabros àquela luz mortiça,
ou eram afogados para todo o sempre, em meio aos mares da sombra estagnante;
cidades cujas igrejas vastas e construídas com o ferro preservavam sua aura de
mistério e fascínio primordial, a partir da qual os simulacros de deuses
esquecidos há séculos buscavam, com olhos inalteráveis, nos céus
desesperançosos, a noite pressagiada, o esquecimento definitivo.
Languidamente, cultivávamos nosso jardins, cujos lírios cinzentos ocultavam
um perfume necromântico, que tinha o poder de evocar-nos para os sonhos
mortos e espectrais do passado. Ou, errando pelos campos cinzas do outono
perene, buscávamos as raras e místicas margaridas imortais, cujas folhas
sombrias e pétalas pálidas, que floresciam debaixo de salgueiros de folhagem
lívida e velada; ou cobertas por um orvalho doce e narcótico, pelo silêncio
fluente das águas aquerônticas.
E um por um, morremos, e nos perdemos na poeira do tempo acumulado.
Percebemos os anos como um passar de sombras, e conhecemos a própria morte
como o render-se do crepúsculo à noite.
UM SONHO NO LETHE
Procurando aquela que perdi, cheguei a tempo às costas do Lethe, sob a abóbada
de um céu imenso, vazio e ébano, a partir do qual todas as estrelas sumiam, uma
por uma. Vinda não sei de onde, uma luz pálida e fugidia, como a da lua
minguante, ou a fosforescência fantasmagórica de um sol morto, caiu tênue e
sem lustre sobre a torrente obsidiana, e sobre os prados negros e sem flor
alguma. Sob esta luz, enxerguei muitas almas errantes, de homens e mulheres,
que vinham, hesitantes ou sôfregas, beber das lentas águas que nunca
murmuram. Porém entre todas essas, nenhuma partia sôfrega, e muitos que
permaneciam contemplavam, com olhos que não enxergavam, o movimento
calmo e sem ondas da torrente. À distância, na forma graciosa e alta como um
lírio, e no rosto imóvel e altivo de uma mulher que permanecia separada do
resto, enxerguei aquela a quem buscava; e, correndo para estar ao seu lado, com
um coração onde antigas memórias cantavam como um ninho de rouxinóis, fui
ávido em tomar da sua mão. Porém nos olhos pálidos e imutáveis, e nos lábios
imóveis e descorados, que achegaram-se aos meus, não enxerguei luz alguma de
memórias, nenhum tremor de reconhecimento. E sabendo agora que ela havia
esquecido, fugi desesperado, e encontrei o rio diante de mim, de súbito senti
minha antiga sede por suas águas, uma sede que um dia pensei satisfazer em
muitas e diversas fontes, mas em vão. Abaixando-me apressado, bebi, e
levantando mais uma vez, percebi que a luz havia morrido ou desaparecido, e
que toda a terra era como a terra de um sono sem sonhos, onde eu não conseguia
mais distinguir os rostos de meus companheiros. Nem nunca mais conseguiria
lembrar jamais por quê eu desejei beber das águas do esquecimento.
A FLOR-DEMÔNIO
Encontrei o livro com facilidade. Pelas últimas décadas de sua vida, Amos
Tuttle havia vivido em reclusão cada vez maior, entre livros coletados em toda
parte do globo; textos antigos, roídos pelas traças, com títulos que apavorariam
um homem menos rijo - o sinistro De Vermis Mysteriis, de Ludwig Prinn, o
terrível Culte de Ghoules do Comte d'Erlette, o condenável Unaussprechlichen
Kulten de von Juntz. Não sabia então o quão raros eram esses livros, nem
compreendia a raridade sem preço de certas peças fragmentárias: o aterrorizante
Livro de Eibon, os Manuscritos Pnakóticos, cheios de passagens horrorosas, e o
temível Texto de R'lyeh; pois estes, descobrir ao examinar os balancetes, depois
da morte de Amos, haviam sido comprados por somas fabulosas. Mas em parte
alguma eu encontraria um número tão alto quanto aquele pago pelo Texto de
R'lyeh, que havia chegado a ele de alguma parte do interior sombrio da Ásia; de
acordo com os arquivos, ele havia pago não menos que cem mil dólares pelo
livro; mas além disso, no registro do manuscrito amarelado, havia uma notação
que me confundiu na época, mas que me dá ânsia pressagiosa em relembrar -
depois da menção da soma, Amos Tuttle havia escrito, com sua caligrafia de teia
de aranha: além do cumprimento da promessa.
Estes fatos não aconteceram até que Paul Tuttle tomasse posse, mas antes disso,
várias ocorrências estranhas aconteceram, coisas que deveriam ter levantado
minhas suspeitas quanto às lendas interioranas que falam de poderosas
influências sobrenaturais ligadas à casa antiga. A primeira dessas ocorrências
foi de pouca consequência, comparada às outras; aconteceu apenas que, ao
devolver o Necronomicon à biblioteca da Universidade Miskatonic, em Arkham,
encontrei-me levado por uma bibliotecária de lábios franzidos, direto ao
escritório do diretor, Dr. Llanfer, que pediu-me diretamente para que eu
explicasse a razão pela qual o livro estava em minhas mãos. Sem hesitação em
responder, descobri que o raro volume jamais recebera permissão para sair da
biblioteca e que, na verdade, Amos Tuttle o havia subtraído em uma de suas
raras visitas, após ter falhado em persuadir o Doutor Llanfer a emprestá-lo. E
Amos havia sido astuto o suficiente ao preparar de antemão uma imitação
maravilhosamente razoável do livro, com a encadernação quase idêntica, e a
reprodução do título e de suas páginas iniciais reproduzidas de memória; na
ocasião de seu furto do livro do árabe louco, Amos havia substituído a imitação
pelo original e saído com uma das duas únicas cópias disponíveis desta obra
temida no continente norte-americano e uma das cinco conhecidas no mundo.
A segunda das ocorrências foi um pouco mais alarmante, embora tenha a
aparência de sair das histórias mais convencionais de casas assombradas. Tanto
Paul Tuttle quanto eu ouvimos na casa, em momentos estranhos da noite,
particularmente enquanto o cadáver de seu tio estava ainda lá, o som de passos
acolchoados, mas com algo esquisito neles: não era como se os passos fossem
dentro da casa, mas passos de alguma criatura de tamanho quase além da
concepção do homem, andando uma boa distância nos subterrâneos, de modo
que o som na verdade vibrava na casa, a partir das profundezas da terra abaixo
desta. E quando faço referência a passos, é apenas por falta de uma melhor
palavra para descrever os sons, pois não eram passos limpos mas sons
esponjosos, gelatinosos, chapinhantes, feitos com a força de tanto peso, que o
consequente tremor de terra naquele lugar não era mais que isso. Mas agora o
barulho se foi, coincidentemente logo após termos despachado o cadáver de
Amos Tuttle, 48 horas antes do planejado. Os sons, classificamos como apenas
os assentamentos da terra ao longo da costa distante, não só porque não demos
muito importância a eles, mas devido à coisa final que aconteceu antes de Paul
Tuttle tomar posse oficial da velha casa na Estrada Aylesbury.
A última coisa foi a mais chocante de todas, e dos três que a presenciaram,
apenas eu permaneço vivo hoje, já que o doutor Sprague faz um mês de morto
hoje, mas na época fora ele que observou e disse, “Enterre-o logo!” E assim o
fizemos, pois as mudanças no corpo de Amos Tuttle eram macabras além da
compreensão, especialmente horríveis no que sugeriam, e assim porque o corpo
não estava caindo em decadência visível, mas mudando sutilmente para outra
coisa, infundindo-se de uma iridescência esquisita, que escurecia até o ponto de
parecer quase ébano, e a aparência da carne de suas mãos inchadas e de seu rosto
mostrava o crescimento de pequenas escamas. Da mesma forma haviam
mudanças no formato de sua cabeça; parecia alongar-se, assumir uma forma
curiosa e pisciana, acompanhada de uma leve emanação de cheiro de peixe,
saindo do caixão; e o fato dessas mudanças não serem mera imaginação foi
chocantemente comprovado quando o corpo foi depois encontrado no lugar para
onde seu maligno sucessor havia levado, e lá, finalmente apodrecendo, outros
viram comigo as terríveis e sugestivas mudanças que haviam ocorrido, embora
devam dar graças que não tenham conhecimento do que aconteceu antes. Mas no
período em que Amos Tuttle estava na casa velha, não haviam pistas do que
estava para acontecer, e fomos rápidos em fechar o caixão e mais rápidos ainda
em levá-lo até o mausoléu dos Tuttle, coberto de hera, no cemitério de Arkham.
Naquela época, Paul Tuttle estava no final da casa dos quarenta anos, mas como
muitos homens de sua geração, tinha o rosto e a constituição de um jovem de
vinte. De fato, a única pista de sua idade estava nos leves toques de cinza no
cabelo de seu bigode e têmperas. Ele era um homem alto e de cabelos escuros,
um tanto acima do peso, com olhos azuis e francos, que anos de pesquisa erudita
não haviam reduzido à necessidade de óculos. Ele não ignorava os termos da lei,
pois rapidamente nos fez saber que se eu, como executor testamentário de seu
tio, não estivesse disposto a ignorar a cláusula que ordenava a destruição da casa
na Estrada Aylesbury, contestaria em juízo com base na insanidade de Amos
Tuttle. Apontei a ele que ele estaria sozinho contra mim e o dr. Sprague, mas ao
mesmo tempo não estava cego ao fato de que a irrazoabilidade da ordem poderia
muito bem nos trazer uma derrota jurídica; e além disso, eu mesmo considerava
a cláusula, nesse sentido, esquisitamente gratuita e sem sentido nesse apelo à
destruição, e não estava preparado para lutar no tribunal por uma questão tão
menor. Ainda assim, se tivesse previsto o que viria depois, teria atendido ao
último pedido de Amos Tuttle, não importando qualquer decisão da corte.
Contudo, tal capacidade de previsão não me ocorreu.
Eu e Tuttle fomos ver o juiz Wilton, e expomos o caso a ele. O juiz concordou
conosco que a destruição da casa parecia desnecessária, e mais de uma vez fez
sutil menção de concordar com a crença de Paul Tuttle na insanidade de seu
falecido tio.
– O velho parecia alienado, sempre o conheci assim, – disse secamente. –
Quanto a você, Haddon, poderia levantar-se no tribunal e jurar que ele era
absolutamente são?
Lembrando, com certo desconforto, o roubo do Necronomicon na Universidade
Miskatonic, tive de confessar que não poderia fazê-lo.
De modo que Paul Tuttle tomou posse da propriedade na Estrada Aylesbury, e eu
retornei a meu escritório advocatício em Boston, não exatamente descontente
com a resolução das coisas, mas ainda assim sentindo um desconforto oculto,
difícil de ser definido, uma sensação insidiosa de tragédia iminente, com certeza
também alimentada por minha memória do que havia visto no caixão de Amos
Tuttle, antes que este fosse selado e trancado no secular mausoléu do cemitério
de Arkham.
II
Não muito tempo depois, mais uma vez fui ter com os telhados de duas águas e
balaustradas georgianas da cidade de Arkham, amaldiçoada pelas bruxas, e
estava então lá a serviço de um cliente que desejava assegurar que sua
propriedade na antiga Innsmouth fosse protegida dos agentes governamentais e
policiais que haviam tomado posse dessa temida e assombrada aldeia, embora
não houvesse passado apenas alguns meses desde as misteriosa dinamitação dos
blocos de prédios da orla, e de parte daquele terror - o Recife do Diabo, erguido
no mar logo além - mistério que fora cuidadosamente guardado e oculto desde
então, embora eu houvesse lido um artigo que se propunha a revelar os
verdadeiros fatos do horror de Innsmouth, um manuscrito publicado
privadamente, escrito por um autor de Providence. Seria impossível, naquele
momento, ir até Innsmouth, porque o Serviço Secreto havia fechado todas as
estradas que levavam até lá; contudo, redigi representações para as pessoas
apropriadas e recebi uma confirmação de que a propriedade de meu cliente seria
totalmente protegida, já que estava longe da orla; de modo que procedi a lidar
com outras pequenas questões em Arkham.
Fui almoçar, naquele dia, num pequeno restaurante próximo à Universidade
Miskatonic, e enquanto ali, fui abordado por uma voz familiar. Olhei e vi o dr.
Llanfer, diretor da biblioteca da universidade. Ele parecia um tanto irritado, e
suas feições traíam claramente seu estado. Convidei-o a partilhar de minha
mesa, mas ele recusou; contudo, sentou-se, por assim dizer, na ponta da cadeira.
– Você tem visto Paul Tuttle? – perguntou abruptamente.
– Pensei em visitá-lo esta tarde, – repliquei. – Aconteceu algo errado?
Ele ruborizou, com um ar um tanto culpado. – Não posso dizer com certeza, –
respondeu firme. – Mas correm alguns rumores medonhos em Arkham. E o
Necronomicon sumiu novamente.
– Bom Deus! Certamente não está acusando Paul Tuttle de tê-lo roubado? –
Exclamei, numa mescla de surpresa e incômodo. “Não consigo imaginar que uso
ele poderia dar a esse livro.
– Ainda assim - está nas mãos dele, – persistiu o dr. Llanfer. “Mas não penso
que ele o roubou, e gostaria que não pense que eu disse isso. É da minha opinião
que um de nossos atendentes passou o livro para ele, e agora está relutante em
confessar a enormidade de seu erro. Mas qualquer que seja a verdade, o livro
ainda não reapareceu, e temo que teremos de ir atrás dele.
– Eu poderia perguntar a Paul sobre o livro, – disse.
– Se fizer isso, ficarei grato, – respondeu o dr. Llanfer, com uma certa avidez. –
Imagino que não ouviu nada dos rumores que andam por aqui?
Balancei a cabeça negativamente.
– Muito provavelmente, apenas o resultado de alguma mente imaginativa, –
continuou, mas seu ar sugeria que ele não estava disposto ou apto a aceitar uma
explicação tão prosaica. – Parece que os passantes da Estrada Aylesbury ouvem
estranhos ruídos à noite avançada, todos aparentemente emanando da casa
Tuttle.
– Que ruídos? – Perguntei, e não sem uma apreensão imediata.
– Aparentemente, ruídos de passadas; ainda assim, sei que ninguém pôde
precisar a natureza desses ruídos, salvo um jovem que os caracterizou como
esponjosos, e que disse que soaram como se fossem de algo grande, andando no
lodo e água próximos.
Os estranhos ruídos que Paul Tuttle e eu ouvimos na noite seguinte à morte de
Amos Tuttle passaram em minha mente, mas nesta menção de passadas, feita
pelo dr. Llanfer, a memória de tudo que havia ouvido voltou. Temi ter
demonstrado isso de alguma forma, pois o dr. Llanfer percebeu meu súbito
interesse; felizmente ele escolheu interpretá-lo como evidência de que eu havia
escutado alguma coisa dos tais rumores, mesmo que eu tivesse dito o contrário.
Preferi não corrigi-lo nesse sentido, e ao mesmo tempo experimentei um
repentino desejo de não ouvir mais nada sobre o assunto; de modo que não
pressionei-o em busca de detalhes adicionais, e quando ele levantou para
retornar a seus deveres, deixou-me com a promessa de perguntar a Paul Tuttle
sobre o livro perdido.
Sua história, por mais rasa que fosse, ainda assim soava uma nota de alarme
dentro de mim; não consegui evitar lembrar as várias coisinhas que mantinha na
memória - os passos que ouvimos, a estranha cláusula do testamento de Amos
Tuttle, a horrenda metamorfose de seu cadáver. Já havia uma leve suspeita em
minha mente, de que alguma sinistra cadeia de eventos estava manifestando-se
ali; minha curiosidade natural atiçou-me, não sem uma certa sensação de
desagrado, desejo consciente de evitar o caso, e a recorrência daquela estranha e
insidiosa convicção de tragédia iminente. Mas estava determinado a ver Paul
Tuttle o mais cedo possível.
Meu trabalho em Arkham consumiu toda a tarde, e somente no crepúsculo
consegui estar diante da massiva porta de carvalho da velha casa Tuttle, na
Estrada Aylesbury. Minha batida um tanto hesitante foi atendida pelo próprio
Paul, que veio espreitar a noite crescente com sua lâmpada em mãos.
– Haddon!, – exclamou, abrindo mais a porta. – Pode entrar!
Estava genuinamente grato em ver-me, disso não podia duvidar, pois a nota de
entusiasmo em sua voz excluía quaisquer outras suposições. A afabilidade de
suas boas-vindas também serviram-me para confirmar minha intenção de não
falar dos rumores que ouvira, e proceder as perguntas sobre o Necronomicon no
seu devido tempo. Lembrei que logo antes da morte de seu tio, Tuttle estava
trabalhando num tratado filosófico ligado ao desenvolvimento do idioma
indígena Sac, e passei a perguntar sobre o artigo, como se não houvesse nada
mais importante.
– Já jantou, imagino, – disse Tuttle, levando-me pelo corredor para a biblioteca.
Respondi que já havia comido em Arkham.
Ele colocou a lâmpada sobre uma mesa cheia de livros, empurrando alguns
papéis para o lado, ao fazê-lo. Convidando-me a sentar, ele voltou à cadeira que
ele havia evidentemente deixado para atender à porta. Percebi nesse momento
que ele estava um tanto desgrenhado, e que havia permitido que sua barba
crescesse. Também havia engordado um pouco, sem dúvida consequência de
seus estudos reforçados, que traziam confinamento à casa e falta de exercícios
físicos.
– E quanto ao tratado Sac? – Perguntei.
– Coloquei-o de lado, – respondeu rápido. “Pode ser que o retome mais tarde.
Mas agora, estou preso a algo bem mais importante - o quão importante, ainda
não posso precisar.
Vi então que os livros nas mesas não era os mesmos tomos eruditos que havia
visto em sua mesa de Ipswich, mas com alguma apreensão, notei que eram os
mesmos livros condenados pelas explícitas instruções do tio de Tuttle, e uma
olhadela na direção dos espaços vazios nas prateleiras proscritas veio a
confirmar o fato.
Tuttle voltou-se para mim com avidez e abaixou a voz, como se com medo de
ser ouvido.
– Na verdade, Haddon, é algo colossal - um gigantesco feito da imaginação, se
não fosse por isso: não tenho mais certeza de que é algo imaginado, de fato, não
tenho mais certeza. Fiquei imaginando qual seria a razão por trás da cláusula do
testamento de meu tio; não podia compreender a razão pela qual a casa deveria
ser destruída, e imaginei que a razão deveria estar nas páginas dos livros que ele
tão cuidadosamente condenou. E estava certo. – Ele gesticulou em direção ao
incunábulo à sua frente. – De modo que os examinei e posso dizer que descobri
coisas de tal incrível estranheza, de tal horror bizarro, que às vezes hesito em
aprofundar-me no mistério. Francamento, Haddon, a coisa que descobri é tão
alienígena, e devo dizer que envolveu considerável pesquisa da minha parte,
além de ler os livros coletados pelo Tio Amos.
– Certo, – disse secamente. – E ouso dizer que você viajou bastante para tal?
Abanou a cabeça negativamente. – De forma alguma, exceto uma viagem à
Biblioteca da Universidade Miskatonic. O fato é que descobri poder conseguir o
que queria através de carta. Lembra-se dos documentos de meu tio? Bem,
descobri entre eles que Tio Amos pagou cem mil por um certo manuscrito
encadernado - encadernado em pele humana, aliás - junto a uma linha
enigmática: além do cumprimento da promessa. Comecei a perguntar-me que
promessa Tio Amos poderia ter feito e a quem; se ao homem ou mulher que o
vendera o Texto de R'lyeh, ou outra pessoa. Procedi portanto procurando o nome
do homem que a ele vendera o livro, e cheguei a seu endereço: é um certo
sacerdote chinês, do Tibete interior, e escrevi para ele. Sua resposta chegou há
cerca de uma semana.
Curvou-se e remexeu rapidamente nos papéis da mesa, até que encontrou o que
buscava e passou-me.
– Escrevi em nome de meu tio, não confiando totalmente na transação, e mais
ainda, escrevi como se tivesse esquecido ou tivesse esperança de evitar a
promessa, – ele continuou. – Sua resposta é tão enigmática quanto a notação de
meu tio.
De fato assim era, pois o papel amarrotado que me foi passado exibia, numa
estranha caligrafia forçada, uma única linha, sem assinatura nem data: Oferecer
um refúgio Àquele que Não Deve Ser Nomeado.
Ouso dizer que fitei Tuttle com uma estupefação que era espelhada claramente
nos olhos dele, já que sorriu antes de responder.
– Não significa nada para você, certo? Nem significava nada para mim, quando
li pela primeira vez. Mas não por muito tempo. Para compreender o que se
segue, deve conhecer pelo menos um breve esboço da mitologia - se de fato
trata-se de mitologia - na qual o mistério se enraíza. Meu Tio Amos
aparentemente sabia dela e nela acreditava, pois as várias notas espalhadas nas
margens dos livros proscritos aludem a um conhecimento muito além do meu.
Aparentemente, a mitologia advém de uma fonte em comum de nossa Gênese
lendária, mas com apenas umas poucas similaridades; às vezes sou tentado a
dizer que esta mitologia é mais antiga que qualquer outra – certamente em suas
implicações vai muito além das outras, sendo cósmica e imemorial, pois seus
seres são de duas naturezas distintas: os Antigos, ou Deuses Anciões,
simbolizando o bem cósmico, e aquelas entidades de mal cósmico, exibindo
muitos nomes e categorizando-se em diferentes grupos, como se associados com
os elementos e ao mesmo tempo transcendendo-os: pois existem os Seres da
Água, ocultos nas profundezas; aqueles do Ar, que são os espreitadores primais
de além do tempo; aqueles da Terra, horríveis sobreviventes animados de eras
distantes. Há muito e muito tempo, os Anciões baniram dos lugares cósmicos os
Malignos, aprisionando-os em muitos locais; mas com o tempo esses Malignos
geraram lacaios infernais, que começaram a prepará-los para seu retorno à
grandeza. Os Anciões não têm nomes, mas seu poder e vontade aparentemente
sempre será maior, o suficiente para deter o poder dos outros.
– Agora, entre os Malignos aparentemente muitas vezes há conflito, bem como
entre os seres inferiores. Os Seres da Água opõem-se aos do Ar; os Seres do
Fogo opõem-se aos Seres da Terra, porém mesmo assim juntos odeiam e temem
os Deuses Anciões e esperam sempre derrotá-los em algum tempo futuro. Entre
os papéis de meu Tio Amos, aparecem muitos nomes temíveis, escritos em sua
caligrafia difícil: Grande Cthulhu, Lago de Hali, Tsathoggua, Yog-Sothoth,
Nyarlathotep, Azathoth, Hastur o Indizível, Yuggoth, Aldones, Thale, Aldebaran,
as Híades, Carcosa, e outros nomes; e é possível dividir alguns desses nomes em
classes vagamente sugestivas, a partir dessas notas que são a mim inteligíveis -
embora muitas apresentem mistérios insolúveis, que não posso esperar penetrar
algum dia; e muitas estão também escritas em idioma que não conheço, junto a
símbolos e sinais enigmáticos e estranhamente assustadores. Mas através do que
aprendi, é possível saber que o Grande Cthulhu é um dos Seres da Água,
enquanto Hastur é um dos Seres que espreitam os espaços estelares; e é possível
inferir, a partir dessas pistas vagas nesses livros proibidos, onde estão alguns
desses seres. De modo que posso crer que, nesta mitologia, o Grande Cthulhu foi
banido para um lugar sob os mares da Terra, enquanto Hastur foi lançado ao
espaço exterior, aquele lugar onde as estrelas negras encontram-se, indicado
como Aldebarã da Híades, que é o lugar mencionado por Chambers, que estava
por sua vez repetindo a Carcosa de Bierce.
– À luz dessas coisas, da comunicação do sacerdote tibetano, posso certamente
tornar claro um fato: Haddon, certamente, além de qualquer sombra de dúvida,
Aquele Que Não Deve Ser Nomeado não pode ser outro senão Hastur, o
Indizível!
O súbito cessar de sua voz perturbou-me; havia algo hipnótico em seus ávidos
sussurros, e algo que também me enchia de uma convicção muito além do poder
das palavras de Paul Tuttle. Em algum lugar lá no fundo, nos recessos de minha
mente, uma corda havia sido tangida, uma conexão mnemônica que não
conseguia descartar, e que deixou-me com uma sensação de antiguidade
ilimitada, uma ponte cósmica para outro lugar e outro tempo.
– Parece lógico, – Disse por fim, com cautela.
– Lógico, Haddon, é decerto lógico; deve ser lógico! – exclamou ele.
– Considerando que seja isso mesmo, – Eu disse, – Que deduz daí?
– Veja só, considerando que seja isso mesmo, – ele prosseguiu com ânsia, –
sabemos que meu Tio Amos prometeu oferecer um refúgio em preparo para o
retorno de Hastur, vindo de qualquer seja a região do espaço exterior que agora o
aprisiona. Onde seja isto, ou que tipo de lugar seja, até então não me preocupei
em saber, embora possa talvez cogitar. Este não é tempo de cogitações, e ainda
assim parece, a partir de certas outras evidências à mão, que podem haver outras
deduções permissíveis a serem feitas. A primeira e mais importante delas é de
natureza dupla - ergo, algo imprevisto impediu o retorno de Hastur, durante a
vida de meu tio, e ainda assim, algum outro ser tornou-se manifesto. – Neste
ponto ele fitou-me com franqueza incomum e não pouco nervoso.
– Quanto à evidência desta manifestação, seria de bom alvitre não falar dela
agora. É suficiente dizer que acredito ter tal evidência ao alcance. Retornemos
então à minha premissa original.
– Entre as poucas anotações marginais feitas por meu tio, existem duas ou três
especificamente notáveis no Texto de R'lyeh; de fato, à luz do que é conhecido,
ou que pode justificadamente ser inferido, são notas sinistras e agourentas.
Assim falando, abriu o antigo manuscrito e passou para um ponto bem próximo
ao começo da narrativa.
– E agora preste atenção, Haddon, – disse ele, e eu levantei e curvei-me sobre
ele para observar a caligrafia aracnídea e quase ilegível que eu sabia ser de
Amos Tuttle. – Observe a linha de texto que está sublinhada: Ph’nglui
mglw’nafh Cthulhu R’lyeh wgah’ nagl fhtagn, e o que se segue foi escrito, sem
qualquer dúvida, pela mão de meu tio: Seus lacaios preparando sua vinda, e ele
não mais está sonhando? (WT: 2/28) e numa data mais recente, a julgar pela
mão trêmula que aqui escreveu, uma única abreviação: Inns! Fica óbvio que isto
não significa nada, sem uma tradução do texto. Sem isso, quando vi pela
primeira vez a nota, voltei minha atenção à notação em parênteses, e em pouco
tempo resolvi seu significado como sendo uma referência a uma revista popular,
a Weird Tales, exemplar de fevereiro de 1928. Aqui a tem.
Ele abriu a revista junto ao texto sem sentido, ocultando parcialmente as linhas
que começaram a assumir uma inaudita atmosfera de idade sobrenatural perante
meus olhos, e logo abaixo da mão de Paul Tuttle estava a primeira página de
uma história que obviamente pertencia a essa inacreditável mitologia diante da
qual eu não conseguia reprimir um começo de atordoamento.
O título, apenas parcialmente coberto pela mão dele, era O Chamado de Cthulhu,
de H.P. Lovecraft. Mas Tuttle não se deteve na primeira página; foi bem ao
cerna da história, antes de pausar e apresentar a meus olhos a linha, idêntica e
ilegível, que estava abaixo da escrita difícil de Amos Tuttle, no incrivelmente
raro Texto de R'lyeh, sobre o qual repousava a revista. E ali, apenas um
parágrafo abaixo, aparecia o que se passava por uma tradução de um idioma
totalmente desconhecido do Texto: em sua casa de R'lyeh, o morto Cthulhu
espera sonhando.
– E aqui está, – continuou Tuttle com certa satisfação, – Cthulhu também
aguarda pelo tempo de seu ressurgimento - quantas eras, ninguém saberá dizer;
mas meu tio questionou se Cthulhu ainda continuava sonhando, e seguindo isto,
escreveu e sublinhou duas vezes uma abreviação que só pode significar
Innsmouth! Isto, junto com as coisas macabras mal descritas nesta história
reveladora, que passa por obra de ficção, abre uma visão de um horror jamais
sonhado, um horror maléfico e ancilário
– Bom Deus! – Exclamei involuntariamente. – Certamente você não acha que
esta fantasia ganhou vida?
Tuttle voltou-se e me ofereceu um olhar estranhamente distante. – O que eu
acho, não importa, Haddon, – replicou de maneira grave. – Mas há uma coisa
que eu gostaria bastante que você soubesse - o que aconteceu em Innsmouth? O
que aconteceu ali, por décadas, que fez as pessoas evitarem o lugarejo? Por qual
razão este antes próspero porto caiu no esquecimento, com metade de suas casas
vazias, suas propriedades praticamente sem valor? E por qual razão foi
necessário que homens do governo explodissem rua após rua de armazéns e
residências de sua orla? E por fim, por qual razão, diacho, enviaram um
submarino para torpedear os espaços marinhos além do Recife do Diabo, ali
perto de Innsmouth?
– Não sei nada sobre isso, – repliquei. Mas ele não prestou atenção; levantou a
voz um pouco, incerta e trêmula, dizendo, – Posso dizer a razão, Haddon. É
como meu Tio Amos escreveu: o Grande Cthulhu despertou novamente!
Por um momento senti um tremor; e então disse, – Mas é Hastur que ele estava
esperando.
– Precisamente, – concordou Tuttle numa voz direta e profissional. – Então
gostaria de saber quem, ou o quê, caminha pela terra, nas horas sombrias em que
Fomalhaut ascende e as Híades estão no leste!
III
Não foi senão até ele ter saído e eu ter ficado sozinho em meu quarto, que o
significado do que ele falou, e a forma como ele o falara, ficaram claros. Veio-
me a ideia de que esta era a confirmação dos rumores terríveis que haviam
enchido Arkham, e que Tuttle comentara o assunto com uma ponta de medo.
Despi-me vagarosa e pensativamente, sem desviar um só instante da
preocupação com a estranha mitologia dos livros antigos de Amos Tuttle, que
enchiam minha cabeça. Nunca fui de fazer julgamentos precipitados e
certamente não os faria naquele momento; apesar do aparente absurdo da
estrutura, era ainda assim suficientemente bem formulada, de modo a merecer
mais que um escrutínio casual. E ficara claro para mim que Tuttle estava mais
que meio convencido de sua verdade. Isto, por si só, me fez pensar, pois Paul
Tuttle havia distinguido-se inúmeras vezes pela cabalidade de suas pesquisas, e
seus artigos publicados não foram desafiados nem sequer nos menores detalhes.
Como resultado de pesar estes fatos, estava preparado para admitir que pelo
menos haveria alguma base para a estrutura mitológica que Tuttle me delineara,
mas quanto à sua verdade ou falsidade, estava claro que, naquele momento eu
estava em posição de comprometer-me, mesmo que guardasse isso apenas para
mim; pois uma vez que um homem aceita ou condena algo em sua mente, é
duplamente, não, triplamente difícil livrar-se de sua própria conclusão, por mais
infeliz que ela subsequentemente prove ser.
Pensando nisso, fui para a cama, e nela deitei esperando o sono. A noite se
aprofundou e escureceu, embora eu pudesse enxergar, através da tênue cortina
na janela, que as estrelas estavam visíveis, Andrômeda alta no leste, e as
constelações do outono começando a tomar o céu.
Estava no limiar do sono, quando fui desperto violentamente por um som que já
estava audível há algum tempo, mas que só então chegara ao ponto de assolar-
me com toda sua significância: o passo levemente trêmulo de alguma criatura
gigantesca, vibrando por toda a casa, embora o som não viesse de dentro da casa,
mas do leste, e por um momento confuso pensei em algo levantando-se do mar,
e andando pela praia, sobre a areia molhada.
Mas esta ilusão passou quando ergui-me pelos cotovelos e ouvi com mais
atenção. Por um momento, não ouvi som algum; e então veio novamente,
irregular, quebrado - um passo, uma pausa, dois passos em rápida sucessão, um
estranho ruído de sucção. Perturbado, levantei de vez e fui à janela aberta. A
noite estava quente, e o ar parado, quase opressivo; bem longe, ao nordeste, um
raio cortava um arco sobre o céu, e do norte distante vinha o zumbido leve de de
um avião noturno. Já passava da meia-noite; baixas no leste, brilhavam a
vermelha Aldebarã e as Plêiades, mas naquele momento, ao contrário de depois,
não conectei os distúrbios que ouvi com a aparição da Híades sobre o horizonte.
Enquanto isso os estranhos sons continuavam sem cessar, e ocorreu-me que,
naquele momento, estavam de fato se aproximando da casa, embora com
progresso lento. E vinham da direção do mar, sem dúvida, pois naquele local não
haviam configurações de terra que pudessem desviar o foco direcional dos sons.
Comecei a pensar novamente naqueles sons parecidos, que ouvi quando o corpo
de Amos Tuttle estava na casa, embora não lembrasse então que, muito embora
as Híades fossem visíveis agora no leste, naquela época pousavam no oeste. Se
havia qualquer diferença na maneira de aproximação, não conseguia discernir, a
não ser o fato de que os distúrbios pareciam de certa forma mais próximos, mas
era menos uma proximidade física que uma proximidade psíquica. Esta
convicção era tão forte, que comecei a sentir um crescente desconforto, sem
dúvida misturado ao medo; comecei a experimentar uma inquietude selvagem,
um desejo por companhia; e corri rapidamente para a porta de meu quarto, abri-
a e passei logo para o corredor, buscando meu anfitrião.
Mas agora, uma nova descoberta se revelava. Enquanto estava no meu quarto, os
sons que ouvira pareciam inquestionavelmente vir do leste, não obstante os
leves e quase intangíveis tremores parecerem sacudir por toda a casa velha; mas
ali, na escuridão do corredor, onde havia parado sem qualquer tipo de luz, fiquei
ciente de que os sons e tremores emanavam de alguma parte abaixo - não de
qualquer lugar na casa, mas abaixo dela - ascendendo como que de lugares
subterrâneos. Minha tensão nervosa aumentou, e fiquei ali incerto, tentando
perceber o que acontecia no escuro, quando percebi, na direção da escada, uma
tênue radiância, vinda de baixo. Fui em sua direção, sem fazer ruídos, e ao olhar
por sobre o corrimão, vi que a luz vinha de um lampião elétrico na mão de Paul
Tuttle. Ele estava em pé, no corredor inferior, vestido de roupão, embora ficasse
claro, mesmo de onde eu estava, que ele não havia removido suas roupas
anteriores. A luz que caía sobre seu rosto revelava a intensidade de sua atenção;
sua cabeça se voltava um pouco para o lado, em atitude de audição, e ele ficou
ali imóvel, enquanto eu o observava de cima.
– Paul! – Chamei num sussurro rouco.
Ele olhou para cima e instantaneamente viu meu rosto, sem dúvida pego pela luz
de seu lampião. – Consegue ouvir? – ele perguntou.
– Sim - o que, em nome de Deus, é isso?
– Já ouvi isso antes,” respondeu. – Desça.
Fui até o corredor inferior, onde pro um momento fiquei sob seu olhar
penetrante e questionador.
– Não está com medo, Haddon?
Balancei minha cabeça negativamente.
– Então venha comigo.
Virou-se e foi pelo caminho que levava aos fundos da casa, onde desceu até os
porões.
Durante esse tempo, os sons aumentaram de volume; era como se estivessem
chegando perto da casa, de fato, quase como se estivessem diretamente abaixo, e
agora havia um tremor óbvio e definitivo no prédio, não apenas nas paredes e
suportes, mas no tremelique e calafrio da própria terra ao redor; era como se
algum distúrbio das profundezas subterrâneas houvesse escolhido aquele ponto
na superfície da terra para manifestar-se. Mas Tuttle não parecia abalado com
aquilo, pois sem dúvida havia passado pelo fenômeno anteriormente. Passou
direto pelo primeiro e segundo porões, chegando a um terceiro, colocado um
tanto abaixo dos outros, e aparentemente uma construção recente, mas como os
outros dois, construído a partir de blocos de calcário em cimento.
No centro deste subporão, fez uma pausa e ficou quieto, escutando. Os sons,
naquele momento, haviam chegado a uma tal intensidade que parecia que a casa
fora pega num vórtice de atividade vulcânica, mas sem sofrer de fato a
destruição dos suportes; pois o tremor e os movimentos, o estalido e arrastar das
vigas sobre nós deu-nos evidência da tremenda pressão exercida dentro da terra
abaixo de nós, e mesmo o chão de pedra do porão parecia vivo sob meus pés
descalços. Mas neste momento os sons pareceram voltar a um pano de fundo,
embora na verdade não tenham de fato diminuído, e apenas ilusoriamente
pareceram assim devido à nossa crescente familiaridade com eles, e porque
nossos ouvidos estavam prestando uma atenção a outros sons, ressoando em
claves maiores, estes também ascendendo do subterrâneo, como se vindos de
grande distância, mas carregando consigo um caráter infernal insidioso nas
implicações que cresciam ao nosso redor.
Pois os sons de assobio que ouvíamos não eram claros o suficiente para
justificar qualquer inferência de suas origens, e foi somente ao passar algum
tempo escutando que ocorreu-me que os sons que passavam por um bizarro
assobio ou lamúria derivavam de algo vivo, algum ser consciente, pois podiam
ser compreendidos como murmúrios chocantes e grosseiros, indistintos e
ininteligíveis, mesmo quando eram claramente audíveis. Nesta vez, Tuttle pôs o
lampião no chão e ajoelhou-se, pondo o ouvido próximo da pedra.
Imitando seus movimentos, descobri que os sons vindos de abaixo eram
reconhecíveis como sílabas, embora não menos sem sentido. Pois primeiramente
não ouvi nada que não ululações incoerentes e aparentemente desconexas, então
interpoladas com sons de cantoria, que seriam mais tarde identificadas por mim
como o seguinte:
Em pouco mais de um mês, mais uma vez estava eu na propriedade Tuttle, vindo
de Arkham, respondendo a um chamado urgente de Paul, em cujo cartão ele
havia rabiscado, com o punho trêmulo, uma única palavra: Venha! Mesmo que
não houvesse escrito isto, eu já estava considerando ser meu dever retornar à
velha casa da Estrada Aylesbury, apesar de meu desagrado pela pesquisa de
Tuttle, que abalava minha alma, e do meu agora ativo medo, que não podia mais
evitar. Ainda assim, vinha procrastinando, desde que tomara a decisão de tentar
dissuadir Tuttle a afastar-se das pesquisas, até a manhã do dia em que seu cartão
chegou. Naquela manhã eu vira no jornal Transcript uma reportagem confusa de
Arkham: não haveria notado nada, se não fosse pela pequena manchete, que me
capturou o olhar: Ultraje no Cemitério de Arkham, e logo abaixo: Cripta dos
Tuttle Violada. A reportagem era breve, e revelava muito pouco além da
informação já transmitida pelas manchetes:
Descobriu-se cedo nesta manhã que vândalos invadiram e destruíram
parcialmente a cripta dos Tuttle, no cemitério de Arkham. Uma das paredes foi
esmagada de maneira quase irreparável, e os caixões foram perturbados. Foi
reportado que o caixão do falecido Amos Tuttle está desaparecido, mas havia
confirmação do fato quando da impressão deste número.
De imediato, ao ler o vago boletim, foi assaltado pela mais forte das apreensões,
vinda não se sabe de que lugar; ainda assim eu sentia que o ultraje perpetrado
contra a cripta não era um crime comum, e não conseguia deixar de conectá-lo,
em minha cabeça, com as ocorrências na velha casa dos Tuttle. Resolvi portanto
ir até Arkham e assim ver Paul Tuttle, antes da chegada de seu cartão; sua breve
mensagem alarmou-me mais ainda, se é que isso é possível, e ao mesmo tempo
convenceu-me do que temia - que alguma revoltante conexão existia entre o
ultraje no cemitério e as coisas que andavam na terra sob a casa da Estrada
Aylesbury. Mas, ao mesmo tempo, sentia uma profunda relutância em deixar
Boston, obcecado por um medo intangível do perigo invisível que viria de uma
fonte desconhecida. Ainda assim, o dever compelia minhas viagens, e por mais
forte que fosse a sensação eu deveria pô-la de lado e ir até Arkham.
Mais uma vez ele pausou para ouvir, e mais uma vez sons vagos e distantes
chegaram a meus ouvidos. Ouvi com atenção, percebendo apalpadelas ominosas,
como se alguma criatura estivesse testando uma porta, e tentei descobrir ou
adivinhar de onde vinha o som. Pensei a princípio que o som emanava de algum
lugar da casa, e quase que instintivamente me veio a ideia do sótão; pois parecia
vir de cima, mas num momento fiquei certo de que o som não derivava de lugar
algum dentro da casa, nem de qualquer porção da casa do lado de fora, mas
crescia de um lugar além, de um ponto no espaço além das paredes da casa - um
ruído de apalpadelas e puxões que não conseguia se associar, em minha
consciência, a qualquer som material reconhecível, mas a uma invasão
extraterrena. Observei Tuttle, e vi que sua atenção também estava voltada para o
exterior, pois sua cabeça estava de certa forma levantada e seus olhos buscavam
além das paredes circundantes, exibindo uma expressão curiosamente extasiada,
embora não despida de medo, e não despida de um estranho ar de espera
fatalista.
– É o símbolo de Hastur, – disse numa voz sussurrante. – Quando ascenderem as
Híades e Aldebarã espreitar o céu noturno, Ele virá. O Outro também estará
aqui, com Seu povo aquático, das raças escamosas primevas.
E então começou subitamente a rir, sem fazer sons, apenas balançando, e num
olhar arisco e meio insano, adicionou, – E Cthulhu e Hastur lutarão aqui pelo
refúgio, enquanto o Grande Órion passa pelo horizonte, lá onde está Betelgeuse
dos Deuses Anciões, somente eles podem impedir os planos malignos dessas
crias do inferno!
Meu espanto diante de suas palavras sem dúvida ficou patente em meu rosto, e
por sua vez fê-lo compreender o tamanho da hesitação chocada e da dúvida que
eu sentia, pois alterou sua expressão de maneira abrupta, suavizando os olhos,
torcendo e destorcendo as mãos, e tornando a voz um tanto mais natural.
– Mas talvez isto o canse, Haddon, – disse. – Não falarei mais, pois o tempo é
curto, o crepúsculo se aproxima, e pouco depois a noite. Imploro que não discuta
quanto a seguir as instruções que delineei para você nesta breve nota. Minhas
ordens devem ser seguidas cegamente. Se for como eu temo, pode ser que nem
mesmo elas sirvam para alguma coisa; e se for o caso eu o contatarei a tempo.
Com isto pegou o pacote de livros, colocou-o em minhas mãos, e levou-me até a
porta, para onde segui sem protestos, pois estava atônito e certamente
desarmado pela estranheza das ações de Paul, pela atmosfera sinistra de horror
crescente que se acumulava naquela antiga e ameaçadora casa.
Na soleira da porta, fez uma breve pausa e segurou com leveza meu braço. –
Adeus, Haddon, – disse com intensidade amigável.
Vi-me então na varanda, sob os raios do sol que baixava, tão luminoso que
cheguei a fechar os olhos, até que pudesse mais uma vez acostumar-me ao seu
brilho, enquanto o riso alegre de um pássaro azul, sozinho na cerca da estrada,
soava prazerosamente em meus ouvidos, como se para me ajudar a deixar para
trás aquela atmosfera de medo sombrio e horror sobrenatural.
V
Chego agora àquela porção de minha narrativa que temo iniciar, não apenas
devido à credibilidade do que devo escrever, como porque, na melhor das
hipóteses, será um registro vago e incerto, repleto de inferências e evidências
notáveis, embora desconexas, de um mal ancilário e pleno de horror, vindo de
além do tempo, de coisas primais vagando logo após os limites da vida comum
que conhecemos, de sobrevivências animadas terríveis nos lugares ocultos da
Terra. O quanto disto Tuttle aprendeu daqueles textos infernais que confiou-me
para que eu os enviasse às prateleiras proibidas da Biblioteca da Universidade
Miskatonic, não sei. Certo é que ele deduziu muitas coisas que não sabia até que
fosse muito tarde; de outras teve pistas, embora haja dúvida que ele tenha
compreendido totalmente a magnitude da tarefa a qual tão descuidadamente se
propusera, quando buscou descobrir a razão por trás da ordem de deliberada
destruição dos livros e da casa de Amos Tuttle.
Logo após meu retorno às antigas ruas de Arkham, os eventos sucederam com
indesejada rapidez. Depositei o pacote de livros na biblioteca com o dr. Llanfer,
e imediatamente parti para a casa do Juiz Wilton, onde fui feliz em encontrá-lo.
Ele estava para começar a jantar, e convidou-me para juntar-me a ele, o que
aceitei, embora não tivesse apetite algum; de fato toda comida parecia-me
repugnante. Naquele momento todos os medos e dúvidas intangíveis que havia
guardado conflitavam dentro de mim, e Wilton percebeu logo que eu estava sob
grave e incomum estresse nervoso.
– Coisa curiosa o incidente da cripta Tuttle, não é mesmo? – comentou com
destreza, adivinhando a razão de minha presença em Arkham.
– Sim, mas não mais curiosa que as circunstâncias da reposição do corpo de
Amos Tuttle aos pés de seu jardim, – respondi.
– De fato, – disse ele sem sinais visíveis de interesse, sua calma servindo para
restaurar algum senso de tranquilidade em mim. “Ouso dizer que você veio de lá
e sabe exatamente do que está falando.
Neste ponto, relatei o mais brevemente possível a história que havia vindo
contar, omitindo apenas uns detalhes mais improváveis, mas não tendo sucesso
total em afastar suas dúvidas, embora ele fosse educado demais para permitir
que essas dúvidas fossem forçadas sobre mim. Ele sentou um pouco, num
silêncio pensativo, depois que terminei, fitando uma ou duas vezes o relógio,
que mostrava que a hora já havia passado das sete. Interrompeu então seu
devaneio para sugerir que eu telefonasse à Lewiston House e arranjasse para que
qualquer chamada para mim fosse transferida para a casa do juiz Wilton. Fiz
isto de imediato, um tanto aliviado com o fato dele ter consentido em levar o
problema a sério o suficiente para devotar sua noite a ele.
– Quanto à mitologia, – disse ele, logo após eu retornar à sala, – pode ser
descartada como uma criação de uma mente louca, a do árabe Abdul Alhazred.
Eu havia aconselhado sobre isso, mas à luz das coisas que aconteceram em
Innsmouth, talvez fosse melhor que não apostar em nada. Contudo, eu não
estava presente na sessão. A preocupação imediata é o próprio Paul Tuttle;
proponho que examinemos suas instruções de antemão.
Mostrei o envelope e o abri. Continha apenas uma folha de papel, com as
seguintes linhas enigmáticas e agourentas:
– Minei a casa e o terreno. Vá imediatamente, sem demora, ao portão do pasto, a
oeste da casa, onde, no arbusto do lado direito da pista próxima a Arkham,
escondi o detonador. Meu Tio Amos estava certo - isto deveria ter sido feito
desde o começo. Se você me falhar, Haddon, então, diante de Deus, terá solto na
terra um tal flagelo como o homem jamais conheceu e jamais verá novamente -
se de fato o homem sobreviver a ele!
Uma amostra daquela verdade cataclísmica deve ter, naquele momento,
começado a penetrar minha mente, pois quando o juiz Wilton acabou de ler o
trecho, fitou-me embaraçado e perguntou, – O que irá fazer?
Respondi sem hesitar: – Vou seguir estas instruções ao pé da letra!
Ele observou-me por um momento, sem comentar; e então aceitou o inevitável e
afastou-se.
– Devemos então esperar as dez da noite, juntos, – disse gravemente.
O ato final do incrível horror que teve seu ponto focal da casa Tuttle ocorreu
pouco antes das dez, caindo sobre nós, em seu início, de maneira tão
desconcertantemente prosaica, que o horror total, quando veio, foi sem dúvida
chocante e profundo. Pois às cinco para as dez, o telefone tocou.
O juiz Wilton pegou do aparelho e mesmo de onde eu estava sentado consegui
ouvir a voz em agonia de Paul Tuttle, chamando meu nome.
Tomei o telefone da mão do juiz Wilton.
– É Haddon, – disse numa calma que não sentia. – Que foi, Paul?
– Faça-o! – gritou. – Oh, Deus, Haddon - faça-o agora - antes... tarde demais.
Oh, Deus - o refúgio! O refúgio!... Você conhece o lugar... portão do pasto. Oh,
Deus, seja rápido!...” E então aconteceu aquilo que jamais esquecerei; a súbita e
terrível transformação de sua voz, de modo que foi como se ela entrasse em
colapso e degenerasse em balbucios abismais; pois os sons que vieram pelo fio
eram bestiais e grosseiros, sons brutais e salivantes, dentre os quais alguns se
repetiam e se repetiam, e eu ouvia num horror cada vez maior aquele matraquear
triunfante, antes que ele se fosse:
O génio Al-faq vivia na fresta entre a noite e o dia. Raramente se aventurava nos
mundos dos seus semelhantes, e muito menos no mundo dos mortais. Só Deus e
o próprio Al-faq sabiam se este era ou não um génio de confiança, pelo que tanto
os espíritos obedientes como os desobedientes o consideravam um dos seus.
Génios de ambos os géneros visitavam Al-faq para lhe contar as suas histórias.
Tayab, o génio das cinzas, dirigiu-se uma vez à fresta entre a noite e o dia.
Rindo, chamou:
– Primo! A história que eu tenho para te contar!
– Que fizeste agora, Tayab?
O génio das cinzas apenas se riu mais, pelo que Al-faq disse:
– Ora, entra, primo, e serve-te de chá. Vais ter de me contar essa história do
princípio.
Fervido o chá, Tayab disse:
– Conheces a gente do deserto vermelho? A que vive junto ao rio?
Al-faq não respondeu, mas fez sinal com a cabeça para que Tayab prosseguisse.
– Apareceu-lhes a peste – disse o génio das cinzas. – Todas as casas tiveram os
seus mortos. Nunca ouviste prantos iguais! Foi o que me chamou a atenção,
primo. A angústia dos vivos. Toda aquela lamúria trazida no vento… eu sei
reconhecer uma oportunidade quando a ouço!
Disse Al-faq:
– Continua.
– De certa casa, ouvi gritos mais terríveis do que das restantes.
Aí, uma mulher rasgava as roupas e arrancava o cabelo. O marido tentava-lhe
segurar as mãos. Também ele chorava, mas não da mesma maneira. Tinha a cara
lavada em lágrimas, mas permanecia em silêncio. Os braços de ambos estavam
ensanguentados de ela os arranhar. E o carpir! Oh, raras vezes ouvi sofrimento
como o dela. Era uma delícia – disse Tayab – porque estava certo de me poder
aproveitar disso.
– Mas que grande diabrura – disse Al-faq. Sorveu o chá.
– É melhor do que isso – respondeu Tayab. – Agora ouve. Farejei a casa, e em
sete lugares encontrei a sombra do anjo negro. Sete vezes tinha a peste entrado e
colhido uma alma. Crianças, imaginei eu. Aquela mulher tinha parido sete
filhos, e agora estavam todos mortos. Quando já se encontrava demasiado
exausta para gritar, sussurrei-lhe os seus nomes. – Contou a Al-faq o nomes das
crianças. – O marido tentou consolá-la. Em vão. Chamou-a, mas ela recusou-se a
responder. Quando tentou olhá-la nos olhos, ela afastou-se.
– O seu sofrimento deve ter sido igual.
– Talvez, talvez. Quem sabe, quando não fazem tanto barulho, quando não
rasgam a roupa? Por isso esperei até ele estar a dormir. Os olhos dela
continuavam bem abertos, embora estivesse muito escuro para ver. Ajoelhei-me
à beira dela e sussurrei:
“Ó mortal, sou o anjo da porta e ouvi as tuas preces”.
– O anjo da porta? – perguntou Al-faq.
– Não é nada. É inventado. Mas eu disse-lhe: “Devolverei os teus filhos à vida se
tiveres fé em mim”.
– E se um anjo ouve?
– Não invoquei o nome de nenhum anjo, primo. Não acabei de dizer que foi
inventado? Disse à mulher: “Levanta-te. Sai. Parte para oeste. Caminha até não
mais poderes. Dar-te-ei um sinal de que os teus filhos regressaram, mas terás de
permanecer aí, sozinha junto ao mar, sem nada. Não voltarás a falar. Nem
procurarás os teus filhos, porque se encontrares um, então morrem os sete.”
– E ela concordou com isso?
– Concordou! Levantou-se sem acordar o marido. Levou apenas a roupa que
tinha no corpo, e partiu! Caminhou noite e dia! Pelo deserto e sobre as
montanhas, até ao mar!
– E tu? Devolveste-lhe os filhos à vida?
Tayab riu-se.
– Devolvê-los à vida? – Agarrou-se à barriga e continuou a rir. – Bom, fiz os
possíveis, primo. Fiz tudo o que estava ao meu alcance. Apareci-lhe durante a
noite e disse-lhe para olhar para o céu a oriente. Caíram estrelas do céu, e a cada
uma que caiu, dei-lhe o nome de um dos seus filhos.
– E ela acreditou em ti.
– Melhor do que isso, primo. Esse é que é o açúcar no chá! Deixei-a. E quando
voltei na noite seguinte, ali estava ela à vista das ondas, abrigada numa caverna
na falésia! Disse-lhe: “Agora escuta, mortal. Não sou nenhum anjo. Sou um
génio. Quanto a ti, nunca encontrei mulher mais tola, porque tanto posso
devolver os teus filhos à vida como obrigar o Sol a nascer no poente. Não
precisas de ficar aqui a passar fome junto ao mar. Vai para casa, já. Vai para
casa!”
– E ela, foi?
– A maravilha é essa! – O génio das cinzas riu-se mais uma vez. – Recusou-se a
responder, uma vez que lhe dissera que não podia falar. E recusou-se a acreditar
em mim, uma vez que lhe dissera para ter fé no anjo da porta. Por isso ali ficou,
muda, desamparada, com uma caverna apenas para se abrigar, inabalável na fé
num servo divino que não existe!
– Mas tu existes, primo.
– Eu existo, com certeza – respondeu Tayab, sorridente.
– E ela, passou fome?
– Uns aldeões deram com ela. Trazem-lhe comida. Pensam que é uma santa. –
Voltou a rir.
– E o marido?
– Não faz parte da minha história. Calculo que ainda viva, se é que não morreu
já.
– Fiquei curioso acerca dele.
Tayab afastou a ideia com um gesto.
– Mas que te parece? Tirei tudo à mulher, mais até do que era minha intenção! E
agora, mesmo que tente restituir tudo o que roubei, ela não aceita! Alguma vez
ouviste falar de um roubo como o meu?
Al-faq passou os dedos compridos pela cara e não deu resposta.
Era possível que Tayab não a esperasse.
Quando o génio das cinzas se tinha ido embora, Al-faq abandonou o seu lar na
fresta entre a noite e o dia. Dirigiu-se ao mundo dos mortais. Esteve muito
tempo para dar com o deserto vermelho, e ainda mais para dar com a casa das
sete sombras já esbatidas. Os campos junto à casa estavam cobertos de ervas
daninhas. O homem que aí vivia era magro e de olhos cavos. Al-faq esperou que
anoitecesse. Quando o homem caiu finalmente na cama, murmurou o nome da
mulher. Al-faq debruçou-se sobre ele no escuro e disse:
– Ó mortal, sou o anjo da porta e ouvi as tuas preces. Como receavas, a tua
mulher, tal como os teus filhos, está morta. Devolvê-los-ei todos à vida se
tiveres fé em mim.
– Sim? – disse o homem. – És capaz?
– Levanta-te – disse Al-faq. – Sai. Parte para sul. Caminha até não mais poderes.
Dar-te-ei um sinal de que a tua mulher e filhos regressaram, mas terás de
permanecer aí, sozinho junto ao mar, sem nada. Não voltarás a falar. Nem
procurarás os teus queridos, porque se encontrares um, então morrerão os oito.
O homem levantou-se. Vestiu-se. Pegou na bengala e partiu sem demora.
Caminhou toda a noite. Caminhou todo o dia. Mais tarde, atravessou o deserto.
Mais tarde, atravessou as planícies. Al-faq seguiu-o, invisível. Quando o homem
percorreu o caminho todo até ao mar, o génio esperou pelo cair da noite e
mostrou-lhe oito estrelas cadentes no céu para norte. A cada uma, Al-faq deu um
nome.
– Lembra-te – disse o génio. – Nunca mais fales. Nunca os procures.
O rosto do homem estava lavado em lágrimas. Acenou afirmativamente.
– Nunca percas a tua fé em mim, aconteça o que acontecer.
O homem voltou a acenar com a cabeça e sorriu, cansado. Fez um gesto de
gratidão e de bênção.
– Não, não me abençoes – disse Al-faq. – Não o mereço.
Na aldeia mais próxima, o génio foi de casa em casa e sussurrou ao ouvido dos
muitos que dormiam:
– Há um homem santo a viver junto ao mar. Procurem-no. Cuidem dele.
O génio Al-faq, que talvez seja de confiança ou talvez não, regressou depois à
fresta entre a noite e o dia. E se o mundo não acabou ainda, é aí que continua a
viver.
O ERRANTE DAS ESTRELAS - Robert
Bloch
(Dedicado a H. P. Lovecraft)
I
Eu sou o que professo ser – um escritor de ficção bizarra. Desde a mais tenra
infância, fui escravizado pela enigmática fascinação do desconhecido e do
indecifrável. Os medos sem nome, os sonhos grotescos, os caprichos mórbidos e
quase intuitivos que assombram nossas mentes, sempre causaram em mim um
prazer potente e inexplicável.
Na literatura, tenho caminhado pelas trilhas da meia-noite com Poe, ou
furtivamente andado pelas sombras com Machen; esquadrinhado os reinos das
estrelas horrendas com Baudelaire, ou imerso na loucura interna da terra, entre
as histórias da sabedoria antiga.
Um talento medíocre em esboços e trabalho com crayon levou-me a tentar rudes
pinturas envolvendo os habitantes alienígenas de meus pensamentos noturnos. O
mesmo tipo soturno de intelecto que atraiu-me na arte interessava-me nos
obscuros reinos da composição musical; as melodias sinfônicas da Suíte dos
Planetas e coisas do gênero eram as minhas favoritas. Minha vida interna logo
tornou-se um banquete macabro de horrores sobrenaturais e irresistíveis.
Minha existência mundana era comparativamente morna. Conforme passava o
tempo, encontrei-me caindo cada vez mais na vida de um recluso pobretão; uma
existência tranquila e filosófica entre um mundo de livros e sonhos.
Mas um homem tem de viver. Por natureza constitucional e espiritualmente
averso ao trabalho manual, a princípio fiquei confuso diante da escolha de uma
vocação adequada. A depressão complicou as coisas a um grau quase
intolerável, e por um certo tempo, estive perto do total desastre econômico. Foi
então que decidi escrever.
Procurei uma máquina de escrever gasta, uma resma de papel barato, e alguns
papéis carbono. Que melhor campo, se não os reinos infinitos da imaginação
colorida? Poderia escrever sobre horror, medo, e sobre o enigma que é a Morte.
Pelo menos, na insensibilidade de minha falta de sofisticação, era isto que eu
tencionava.
Minhas primeiras tentativas logo convenceram-me de quão completamente eu
havia falhado. Triste e miseravelmente, não havia atingido minha meta aspirada.
Meus vívidos sonhos, no papel, tornavam-se amontoados sem sentido de
adjetivos ponderosos, e não encontrei palavras comuns para expressar o terror
maravilhado do desconhecido. Meus primeiros manuscritos eram documentos
miseráveis e fúteis; as poucas revistas que utilizaram tais materiais foram
unânimes em sua rejeição.
Mas eu tinha de viver. De forma lenta, mas constante, comecei a ajustar meu
estilo às minhas ideias. Laboriosamente, experimentei com palavras, frases,
estruturas de sentenças. Era um trabalho, e um trabalho duro. Logo aprendi a me
esforçar. Todavia finalmente uma de minhas histórias foi bem recebida; e então
uma segunda, uma terceira e uma quarta. Logo, tive de começar a dominar os
truques mais óbvios da área, e o futuro enfim parecia mais brilhante. Foi com a
mente menos carregada que voltei à minha vida de sonhos e a meus amados
livros. Minhas histórias rendiam-me um viver um tanto apertado, e o por um
tempo isto foi suficiente. Mas não por muito tempo. A ambição, essa ilusão
eterna, foi a causa de minha ruína.
Almejava escrever uma história real; não do tipo estereotipado e efêmero que
aparecia nas revistas, mas uma obra de arte real. A criação de uma obra-prima
assim tornou-se meu ideal. Eu não era um bom escritor, mas isto não se devia
totalmente a meus erros no estilo mecânico. Na verdade, a falha estava no meu
assunto abordado. Vampiros, lobisomens, carniçais, monstros mitológicos –
estas coisas constituíam material de parco mérito. Imagética de lugar-comum,
tratamento adjetival corriqueiro, e um ponto de vista prosaicamente
antropocêntrico eram os principais detrimentos na produção de uma boa história
bizarra.
Devo buscar novos assuntos, material de tramas verdadeiramente incomum. Se
pelo menos pudesse conceber algo que fosse teratologicamente inacreditável!
Ansiava aprender as canções que os demônios cantam quando rodopiam entre as
estrelas, ou ouvir as vozes dos deuses mais antigos quando sussurram seus
segredos ao vazio ecoante. Almejava conhecer os terrores do túmulo; o beijo das
larvas em minha língua, a fria carícia de uma mortalha apodrecida sobre meu
corpo. Tinha sede do conhecimento encontrado nos poços de olhos mumificados,
e queimava pela sabedoria conhecida apenas pelo verme. E então poderia de fato
escrever, e ter minhas esperanças genuinamente realizadas.
Busquei uma forma. Quietamente, comecei a trocar correspondências com
pensadores e sonhadores isolados, de todo o país. Havia um eremita nas colinas
a oeste, um sábio nas florestas ao norte, um sonhador místico na Nova
Inglaterra. Foi deste último que aprendi sobre os antigos livros que detém
estranha sabedoria. Ele citava reservadamente o lendário Necronomicon, e
falava timidamente de um certo Livro de Eibon, que tinha a reputação de superar
o primeiro no caráter totalmente selvagem de suas blasfêmias. O místico em si
havia sido estudante desses volumes de temor primordial, mas não gostava da
ideia de me ver pesquisando longe demais. Ele ouvira muitas coisas estranhas
quando garoto na cidade de Arkham, assombrada pelas bruxas, onde as antigas
sombras ainda espreitam e caminham furtivas, e desde então havia sabiamente
evitado o conhecimento mais sombrio e proibido.
Após muita pressão de minha parte, ele relutantemente consentiu em prover-me
os nomes de certas pessoas que considerava aptas a ajudar em minha busca. Ele
era escritor de notável brilhantismo e ampla reputação entre os poucos
relevantes, e eu sabia que ele estava avidamente interessado no resultado da
demanda em si.
Tão logo sua preciosa lista chegou em minhas mãos, comecei uma ampla
campanha postal para obter acesso aos volumes desejados. Minhas cartas
atingiram universidades, bibliotecas privadas, videntes famosos e os líderes de
cultos cuidadosamente ocultos e obscuramente designados. Mas estava fadado
ao desapontamento.
As réplicas que recebia eram definitivamente inamistosas, quase hostis. Ficava
evidente que os falados possuidores de tais conhecimentos ficaram irritados com
a ideia de seus segredos assim revelados por um espião estranho. Fui
subsequentemente alvo de várias ameaças por carta, e pelo menos uma chamada
telefônica alarmante. Isto não me incomodou mais que a percepção
desapontadora de que minhas empreitadas haviam falhado. Negativas, evasões,
recusas, ameaças – estas coisas não me ajudariam. Deveria buscar em outra
parte.
Livrarias! Talvez em alguma prateleira embolorada e esquecida pudesse
descobrir o que buscava.
Comecei então uma interminável cruzada. Aprendi a suportar meus numerosos
desapontamentos com uma calma inabalável. Ninguém no tipo comum de
livraria parecia jamais ter ouvido falar do temível Necronomicon, no maligno
Livro de Eibon, ou no inquietante Cultes des Goules.
A persistência traz resultados. Numa pequena e velha livraria da South Dearborn
Street, entre prateleiras empoeiradas aparentemente esquecidas pelo tempo,
cheguei ao fim de minha busca. Ali, seguramente encaixado entre duas edições
de Shakespeare datadas de dois séculos, estava um grande volume negro, com
adornos protetores de ferro. Sobre ele, em letra manuscrita, estava a inscrição
De Vermis Mysteriis, ou, “Os Mistérios do Verme.”
O proprietário não sabia dizer como foi que aquele livro havia chegado a sua
posse. Anos antes, talvez, tenha sido incluído em algum lote variado, de segunda
mão. Obviamente não estava ciente de sua natureza, já que eu o comprei por
apenas um dólar. Ele embalou para mim a ponderosa coisa, bastante satisfeito
com a venda inesperada, e me deu um satisfeito bom-dia.
Saí apressadamente, meu preciso prêmio sob o braço. Que descoberta! Havia
ouvido falar antes deste livro. Ludvig Prinn era seu autor, que havia perecido na
fogueira inquisitorial em Bruxelas, quando os julgamentos das bruxas estavam
em seu auge.
Um estranho personagem – alquimista, necromante, reputadamente um mago –
gabava-se de ter chegado a uma idade miraculosa, quando finalmente sofreu a
imolação flamejante nas mãos do braço secular. Dizia ele ser o único
sobrevivente da malfadada Nona Cruzada, exibindo como prova certos
documentos embolorados que o atestavam. É verdade que um certo Ludvig Prinn
estava entre os cavalheiros vassalos de Montserrat, nas mais antigas crônicas,
mas os incrédulos rotularam Ludvig como um impostor insano, embora talvez
um descendente direto do guerreiro original.
Ludvig atribuía seu aprendizado feiticeiro aos anos que passara cativo entre os
magos e taumaturgos da Síria, e falava longamente dos encontros com os gênios
e efreets da mitologia do Oriente Médio. Sabe-se que ele passou algum tempo
no Egito, e existem lendas entre os dervixes líbios falando dos feitos do velho
vidente em Alexandria.
De qualquer forma, seus dias de declínio foram passados no país flamingo das
terras baixas, onde havia nascido e onde residia, apropriadamente, nas ruínas de
uma tumba pré-romana erguida na floresta próxima a Bruxelas. Ludvig tinha a
reputação de habitar ali entre um enxame de familiares e conjurações
temerariamente invocadas. Os manuscritos ainda existentes falam dele de
maneira reservada, como sendo atendido por “companheiros invisíveis” e
“servos vindos das estrelas.” Os camponeses evitavam a floresta à noite, pois
não gostavam de certos ruídos que ressoavam sob a lua, e muito certamente não
estavam ansiosos de ver o que andava venerando nos velhos altares pagãos que
erodiam em certos bosques mais soturnos.
Qualquer que seja a verdade, essas criaturas que ele comandava jamais foram
vistas após a captura de Prinn pelos lacaios inquisitoriais. Os soldados
perseguidores encontraram a tumba totalmente deserta, muito embora tenha sido
saqueada nos mínimos detalhes, antes de sua destruição. As entidades
sobrenaturais, os instrumentos e componentes incomuns – todos haviam
curiosamente desaparecido.
Uma busca nas florestas proibidas e um exame temeroso dos estranhos altares
não adicionou informação alguma. Haviam manchas frescas de sangue nos
altares, e também na roda de tortura, antes do fim das sessões de
questionamento de Prinn.
Uma série de torturas particularmente atrozes falharam em suscitar quaisquer
revelações adicionais do mago silencioso, e depois de muito os exaustos
interrogadores cessaram de tentar e lançaram o envelhecido feiticeiro numa
masmorra.
Foi na prisão, enquanto aguardava o julgamento, que escreveu as linhas
mórbidas e pressagiosas de horror do De Vermis Mysteriis, conhecido hoje
como Mistérios do Verme. Como ele fora contrabandeado para além dos guardas
atentos foi em si um mistério, mas um ano após sua morte ele foi impresso em
Cologne. Foi imediatamente suprimido, mas umas poucas cópias já haviam sido
distribuídas em privado. Estas por sua vez foram transcritas e embora houvesse
uma impressão posterior, censurada e deletada, apenas o original em latim é
aceito como genuíno. No decorrer dos séculos apenas uns poucos eleitos
houveram lido e ponderado sobre seus conhecientos. Os segredos do velho
arquimago são conhecidos hoje apenas pelos iniciados, e estes descorajam
quaisquer tentativas de espalhar sua fama, movidos por certas razões bastante
definidas.
Era isto, em resumo, o que eu sabia da história do volume, na época em que ele
me caiu nas mãos. Como item de colecionador, apenas, o livro era uma
descoberta fenomenal, mas quanto a seus conteúdos, não poderia fazer
avaliação. Estava em latim. Já que posso falar ou traduzir apenas umas poucas
palavras desse idioma erudito, fui confrontado por uma barreira, tão logo abri as
páginas emboloradas. Era enlouquecedor ter tal cofre do tesouro de
conhecimento obscuro ao meu dispor e ainda assim carecer da chave que o
abriria.
Por um momento entrei em desespero, pois estava indisposto a abordar algum
erudito clássico ou entendido em latim, portando livro tão horroroso e blasfemo.
Veio então a inspiração. Por que não ir a leste buscar a ajuda de meu amigo? Ele
era estudante dos clássicos e estaria menos propenso a ficar chocado com os
horrores das revelações nocivas de Prinn. Portanto enderecei a ele uma carta
ansiosa, e logo após recebi minha resposta. Ele teria prazer em ajudar-me – eu
devia apressar-me em ter com ele.
II
O ritual grasnante prosseguiu, e então alçou voo nas asas de um horror medonho
e noturno. As palavras pareciam contorcer-se, como chamas no ar, queimando
meu cérebro. Os tons trovejantes soavam ecos no infinito, além da mais distante
das estrelas. Pareciam passar por entre portais primevos e adimensionais,
buscando um ouvinte para convocá-lo à terra. Seria tudo aquilo uma ilusão? Não
parei para pensar em nada.
Pois a convocação involuntária foi respondida. Mal a voz de meu companheiro
se calara, naquele pequeno aposento, veio o terror. O aposento ficou frio. Um
súbito vento gritou pela janela aberta; um vento que não era da terra. Trazia um
mal que balia de longe, e com esse som, a face de meu amigo tornou-se uma
pálida máscara branca de horror recém-desperto. Então houve um rachar nas
paredes, e o peitoril da janela ruiu diante de meus olhos arregalados. Daquele
nada além da abertura veio uma súbita explosão de gargalhada lúbrica – uma
risadaria histérica, nascida da loucura completa e avassaladora. Subiu até a mais
casqueante quintessência de todo horror, horror sem uma boca que o proferisse.
O resto aconteceu com apavorante rapidez. Num átimo, meu amigo começou a
gritar, perto da janela; gritar e agitar selvagemente as mãos no ar vazio. À luz do
lampião, vi suas feições contorcerem-se num esgar de agonia insana. Um
momento depois, seu corpo ergueu-se do chão, sem que nada o estivesse
segurando, e começou a torcer-se para trás, num ângulo capaz de quebrar-lhe as
costas. Um segundo mais tarde, veio o nauseante som de ossos quebrados. Sua
forma agora pairava no próprio ar, olhos vidrados e mãos apertando
convulsivamente algo que parecia invisível. Mais uma vez atroou o som de
escárnio maníaco, mas daquela vez dentro do quarto!
As estrelas moviam-se numa angústia vermelha; o vento frio matraqueava em
meus ouvidos. Aninhei-me em minha cadeira, olhos pregados naquela espantosa
cena. Meu amigo agora estava guinchando; seus gritos misturavam-se à
exultante e atroz gargalhada que vinha do ar vazio. Seu corpo pendurado,
pendulando no espaço, mais uma vez contorceu-se e brotou sangue de seu
pescoço rasgado, esguichando como se de uma fonte de rubis.
Esse sangue jamais alcançou o chão. Parou em meio ao ar, e a gargalhada
cessou, substituída por um nojento ruído de sucção. Imerso num novo e
acelerado horror, percebi que o sangue estava sendo drenado para alimentar a
invisível entidade do além! Que criatura do espaço havia sido tão súbita e
involuntariamente invocada? O que era aquela monstruosidade vampírica que eu
não conseguia enxergar?
Naquele momento uma horrível metamorfose começou a acontecer. O corpo de
meu companheiro ficou murcho, emaciado, sem vida. Finalmente foi jogado ao
chão e ficou lá, repugnantemente imóvel. Mas no próprio ar, outra mudança,
ainda mais macabra, começou a ocorrer.
Um brilho avermelhado encheu o canto da janela – um brilho sangrento. Lenta,
mas constantemente, os contornos vagos de uma Presença começaram a se
exibir; os contornos sujos de sangue daquele invisível e desengonçado errante
das estrelas. Era vermelho e gotejante; uma imensidade de geleia pulsante se
movia; uma bolha escarlate e suas miríades de trombas tentaculares, que se
mexiam, e se mexiam...
Haviam ventosas nas pontas dos apêndices, e estes abriam e fechavam numa
volúpia carniceira... A coisa era inchada e obscena; uma massa sem cabeça, nem
rosto, nem olhos, de mandíbula voraz e as garras titânicas de um monstro
nascido nas estrelas. O sangue humano do qual havia se alimentado revelava os
contornos até então invisíveis da coisa que se banqueteava. Não era uma visão
própria para olhos de gente sã.
Felizmente para meu estado mental, a criatura não se demorou. Abandonando a
coisa morta, cadavérica e mole no chão, com decisão voltou-se para a abertura.
Nela desapareceu, e ouvi sua risada zombeteira à distância, flutuando nas asas
do vento, enquanto ele reentrava nos abismos de onde havia vindo.
Isto foi tudo. Fui deixado sozinho no aposento, com aquele corpo mole e sem
vida a meus pés. O livro havia desaparecido; mas haviam impressões sangrentas
na parede, poças de sangue no chão, e o rosto de meu pobre amigo era uma
massa sangrenta, que morta fitava as estrelas.
Por um longo período de tempo, sentei sozinho, em silêncio, antes que ateasse
fogo ao aposento e a tudo que ele continha. Depois disso, saí correndo, rindo,
pois eu sabia que as chamas erradicariam todo traço do que permanecia ali.
Havia chegado pouco antes, naquela tarde, e ninguém me conhecia, e ninguém
havia me visto, e parti antes que as chamas brilhantes me denunciassem.
Tropecei por horas por entre as ruas tortuosas, e rebentava numa gargalhada
contínua e idiota toda vez que olhava para as estrelas sempre vigilantes, sempre
ardentes, que observavam-me furtivamente através dos rolos de névoa
assombrada.
Depois de muito tempo acalmei-me e tomei um trem. Permaneci calmo durante
toda a longa jornada para casa, e calmo permaneci enquanto escrevi este relato.
Até mesmo permaneci calmo quando li sobre a curiosa morte acidental de meu
amigo, no fogo que destruíra sua morada. É somente nas noites em que as
estrelas brilham, que os sonhos devolvem-me a um gigantesco labirinto de
medos frenéticos. E então me afundo nas drogas, numa vã tentativa de banir
essas memórias insistentes de meus sonhos. Mas na verdade não me importo,
pois sei que não permanecerei aqui por muito tempo.
Tenho uma curiosa desconfiança de que verei novamente o errante das estrelas.
Penso que ele retornará logo, mesmo sem ser convocado de novo, e sei que
quando ele vier, me perseguirá e me carregará para a escuridão que abriga meu
amigo. Às vezes eu quase anseio pelo advento desse dia, pois nele desvendarei
de uma vez por todas os Mistérios do Verme.
Robert Bloch escreveu este conto com 18 anos e nem mesmo foi o seu
primeiro. Recebeu "autorização por escrito" de HP Lovecraft para
assassiná-lo na história. Seu estilo mais tarde se desviou do horror
cósmico e sua obra mais popular e famosa é "Psicose", que originou o
filme hitchcockiano.
O GHOUL – Clark Ashton Smith
Primavera
No dia seguinte a cena repetiu-se; e como desta vez o corso recomeçava de noite
com uma batalha de flores, Nébel esgotou num quarto de hora quatro imensos
cestos. Arrizabalaga e a senhora riam-se, voltando a cabeça frequentemente, e a
jovem quase não afastava os seus olhos de Nébel. Este lançou um olhar de
desespero aos seus cestos vazios. Mas sobre o almofadão do vice-rei restava
ainda um pobre ramo de sempre-vivas e jasmins do país. Nébel saltou com ele
sobre a roda do vice-rei, quase deslocou um tornozelo, e, correndo para a vitória,
ofegante, empapado em suor e com o entu-siasmo à flor dos olhos, estendeu o
ramo à jovem. Ela, atordoada, procurou outro, mas não o tinha. Os seus
acompanhantes riam-se.
— Mas, louca! — disse a mãe assinalando-lhe o peito. — Tens aí um!
A carruagem arrancava a trote. Nébel, que tinha descido aflito do estribo, correu
e apanhou o ramo que a jovem lhe estendia com o corpo quase fora do carro.
Nébel tinha chegado há três dias de Buenos Aires, onde concluía os estudos
secundários. Tinha lá permanecido sete anos, de tal modo que o seu
conhecimento da actual sociedade de Concórdia era mínimo. Deveria ficar ainda
quinze dias na sua cidade natal, gozados em pleno sossego de alma, senão
também de corpo. E logo ao segundo dia perdia toda a sua serenidade. Mas, em
compensação, que encanto!
— Que encanto! — dizia a si mesmo pensando naquele raio de luz, flor e carne
feminina que lhe tinha chegado da carruagem. Reconhecia-se real e
profundamente deslumbrado e apaixonado, obviamente.
E se ela quisesse!... Querê-lo-ia? Para se elucidar, Nébel confiava, mais do que
no ramo do seu peito, na precipitação aturdida com que a jovem tinha procurado
algo para lhe dar. Lembrava-se do brilho dos seus olhos quando o viu chegar a
correr, da inquieta expectativa com que o aguardou; e, noutro plano, da
languidez do seu jovem peito, ao estender-lhe o ramo.
E agora, está tudo acabado! Ela partia no dia seguinte para Montevideo. Que
importância tinha o resto, Concórdia, os seus amigos de antes, o seu próprio pai?
Pelo menos iria com ela até Buenos Aires.
Efectivamente, fizeram a viagem juntos e nela Nébel atingiu o mais alto grau de
paixão a que pode chegar um romântico rapaz de dezoito anos que se sente
amado. A mãe acolheu o quase infantil idílio com afável condescendência, e ria-
se frequentemente ao vê-los, falando pouco, sorrindo sem cessar, e admirando-
se infinitamente.
A despedida foi breve porque Nébel não quis perder o último vestígio de
sensatez que lhe restava, evitando correr atrás dela.
Elas voltariam a Concórdia no Inverno, talvez durante uma temporada. Iria ele?
O quê? Não voltar eu? E enquanto Nébel se afastava devagar pelo cais, voltando-
se a cada momento, ela, de peito apoiado na amurada, a cabeça baixa, seguia-o
com os olhos, e na prancha os marinheiros levantavam os seus, risonhos, àquele
idílio e ao vestido, ainda curto, da terníssima noiva.
Verão
Às três batia à porta do doutor Arrizabalaga. A sua intenção era elementar: com
qualquer mísero pretexto consultaria o advogado e talvez a visse.
Foi para lá. Uma súbita corrida pelo pátio foi a resposta à campainha e Lídia,
para deter o impulso, teve de se agarrar violentamente à porta de vidro. Viu
Nébel, soltou uma imprecação, e, ocultando com os braços a ligeireza da sua
roupa, fugiu ainda mais velozmente.
Um instante depois a mãe abria o consultório e acolhia o seu antigo conhecido
com uma complacência ainda mais viva do que quatro meses antes. Nébel não
cabia em si de prazer e como a senhora não parecia inquietar-se com as
preocupações jurídicas de Nébel, este também preferiu um milhão de vezes a
sua presença à do advogado.
Com tudo isto, Nébel sentia-se sobre brasas vivas de uma felicidade demasiado
ardente. E como tinha dezoito anos, desejava ir-se embora rapidamente para
gozar a sós e sem timidez a sua imensa felicidade.
— Tanta pressa! — disse-lhe a senhora. — Espero que tenhamos o gosto de o
voltar a ver… Não é verdade?
— Oh, sim senhora!
— Em casa todos teríamos muito prazer… Suponho que todos! Quer que
consultemos? — sorriu com maternal ironia.
— Oh, do fundo do coração! — concluiu Nébel.
— Lídia! Vem cá um momento! Está aqui uma pessoa tua conhecida.
Lídia chegou quando ele já estava de pé. Avançou ao encontro de Nébel, os olhos
cintilantes de felicidade, e estendeu-lhe um grande ramo de violetas, com
adorável torpeza.
— Se não for incómodo — prosseguiu a mãe, — poderia vir todas as segundas-
feiras… Que lhe parece?
— Que é muito pouco, senhora! — respondeu o rapaz.
— Às sextas-feiras também… Permite-me?
A senhora desatou a rir.
— Que apressado! Eu não sei… Vejamos o que diz Lídia. O que achas, Lídia?
A criatura, que não afastava os seus sorridentes olhos de Nébel, disse-lhe sim!
mesmo na cara, uma vez que a ele devia a sua resposta.
— Muito bem: então até segunda-feira, Nébel!
Nébel objectou.
— Não me permitiria vir esta noite? Hoje é um dia extraordinário…
— Bom! Esta noite também! Acompanha-o, Lídia.
Mas Nébel, com uma louca necessidade de movimento, despediu-se ali mesmo e
fugiu com o seu ramo, cujo caule já quase tinha desfeito, e com a alma
projectada para o último céu da felicidade.
Até que um dia a chama se levantou. Nébel tinha marcado o seu casamento para
18 de Outubro. Faltava mais de um mês, mas a mãe fez entender claramente ao
rapaz que queria a presença do seu pai essa noite.
— Será difícil — disse Nébel, depois de um mortificante silencio. — Custa-lhe
muito sair à noite… Nunca sai.
— Ah! — limitou-se a exclamar a mãe, mordendo rapidamente o lábio. Outra
pausa se seguiu, mas esta já de presságio. — Mas você não vai fazer um
casamento clandestino, pois não?
— Oh! — sorriu Nébel com dificuldade. — Meu pai acha o mesmo.
— E então?
Novo silêncio, cada vez mais tempestuoso.
— É por mim que o senhor seu pai não quer assistir?
— Não, não senhora! — exclamou por fim Nébel, impaciente. — É a sua forma
de ser… Se quiser falarei novamente com ele.
— Eu, querer? — sorriu a mãe, dilatando as narinas.
— Faça o que lhe parecer… Quer sair agora, Nébel? Não me sinto bem.
Nébel saiu, profundamente desgostoso. Que poderia dizer a seu pai? Este
sustinha sempre a sua rotunda oposição a tal casamento, e o filho já tinha
empreendido as gestões necessárias para prescindir da sua autorização.
— Podes fazer isso e tudo o que te der na gana. Mas o meu consentimento para
que essa depravada seja tua sogra, nunca!
Três dias depois, Nébel decidiu acabar com esta situação de uma vez por todas, e
para tal aproveitou um momento em que Lídia não estava.
— Falei com meu pai — começou Nébel — e disse-me que lhe será
completamente impossível assistir.
A mãe pôs-se levemente pálida, enquanto os seus olhos, num súbito fulgor, se
alongavam para as fontes.
— Ah! E porquê?
— Não sei — ripostou Nébel com voz surda.
— Ou seja… o senhor seu pai teme sujar-se se puser aqui os pés.
— Não sei! — repetiu ele, por sua vez obstinado.
— Então é uma ofensa gratuita o que nos faz esse senhor? O que é que ele
pensa? — acrescentou com a voz já alterada e os lábios trementes. — Quem é
ele para se dar esses ares?
Nébel sentiu então a chicotada da reacção na cepa profunda que era a sua
família.
— O que é, não sei! — concluiu por sua vez, de forma precipitada. — Mas não
só se nega a assistir, como nem sequer dá o seu consentimento.
— O quê? Nega-se? E porquê? Quem é ele? O mais autorizado para isto!
Nébel levantou-se:
— Você não…
Mas ela também já se tinha levantado.
— Sim, sim! Você é uma criança! Pergunte-lhe como fez a sua fortuna, roubada
aos seus clientes! E com esses ares! A sua família irrepreensível, sem nódoa,
enche a boca com isso! A sua família!... Peça-lhe que lhe diga quantos muros
tinha de saltar para ir dormir com a mulher antes de se casar! Sim, e vem-me
com a sua família!... Muito bem, vá-se embora; estou farta de hipocrisias!
Divirta-se!
Na manhã seguinte, muito cedo, Nébel batia à porta do pobre quarto do amigo. A
expressão do seu rosto era sobejamente explícita.
— É agora? — perguntou-lhe o paternal amigo, estendendo-lhe firmemente a
mão.
— Pff! De qualquer maneira!... — concluiu o rapaz, olhando para outro lado.
O desenhador, com grande calma, contou-lhe então o seu próprio drama de amor.
— Vá para casa — concluiu — e se às onze ainda não tiver mudado de ideias,
volte para almoçar comigo, se é que temos o quê. Depois fará o que quiser. Jura?
— Juro! — respondeu Nébel, devolvendo-lhe o seu caloroso aperto de mãos,
com uma grande vontade de chorar.
Em casa esperava-o um bilhete de Lídia:
Idolatrado Octávio: o meu desespero não pode ser maior; mas a mamã
acha que se eu me casar consigo, estar-me-ão reservadas grandes dores;
compreendi, como ela, que o melhor seria separar-mo-nos, e juro-lhe não
o esquecer nunca.
Sua, Lídia
— Ah, tinha de ser assim! — exclamou o rapaz, vendo ao mesmo tempo, com
espanto, o seu rosto alterado no espelho.
A mãe é que tinha inspirado a carta, ela e a sua maldita loucura! Lídia devia ter-
se limitado a tê-la escrito e a pobre rapariga, transtornada, chorava todo o seu
amor nessa redacção. — Ah! Se pudesse vê-la algum dia, dizer-lhe de que forma
a amei, quanto a amo agora, adorada da minha alma!...
Tremendo, foi até à mesa de cabeceira e pegou no revólver; mas lembrou-se da
sua nova promessa e, durante um infindável tempo, permaneceu ali de pé,
limpando obstinadamente com a unha uma mancha no tambor.
Outono
Uma tarde em Buenos Aires, acabava Nébel de subir para o eléctrico, quando o
carro se deteve um momento mais do que o conveniente, e Nébel, que lia, voltou
por fim a cabeça.
Uma mulher, com lento e difícil andar, avançava entre os assentos. Depois de
uma rápida olhadela à incómoda personagem, Nébel voltou à leitura. A dama
sentou-se a seu lado e, ao fazê-lo, olhou atentamente para o seu vizinho. Nébel,
embora de vez em quando sentisse o estrangeiro olhar pousado sobre ele,
prosseguiu a sua leitura; mas por fim cansou-se e levantou o rosto, admirado.
— Bem me parecia que era você — exclamou a dama — embora ainda
duvidasse… Não se lembra de mim, não é verdade?
— Sim — concluiu Nébel, abrindo os olhos. — A senhora de Arrizabalaga…
Ela reparou na surpresa de Nébel e sorriu com ar de velha cortesã que tenta
ainda agradar a um rapaz.
Dela — quando Nébel a tinha conhecido onze anos antes — só restavam os
olhos, embora muito fundos e já apagados. A cútis amarela com tons verdosos
nas sombras gretava-se em poeirentos sulcos. Os pómulos saltavam agora, e os
lábios, sempre grossos, pretendiam ocultar uma dentadura toda cariada. Por
baixo do corpo consumido via-se a morfina viva, correndo entre os nervos
esgotados e as artérias aquosas, acabando por ter convertido naquele esqueleto a
ele-gante mulher que um dia folheara a Illustration a seu lado.
— Sim, estou muito envelhecida… e doente; já tive ataques nos rins… E você
— acrescentou, olhando-o com ternura, — sempre na mesma! A verdade é que
ainda não tem trinta anos… Lídia também está igual.
Nébel levantou os olhos.
— Solteira?
— Sim… Como ficará contente quando lhe contar! Porque não lhe dá esse gosto,
à pobre? Não quer ir ver-nos?
— Com muito gosto… — murmurou Nébel.
— Sim, vá depressa; já sabe aquilo que fomos para si…Enfim, Boedo 1483,
apartamento 14… A nossa posição é tão mesquinha…
— Oh! — protestou ele, levantando-se para se ir embora.
Prometeu ir brevemente.
Doze dias depois Nébel devia voltar à obra, mas antes quis cumprir a sua
promessa. Foi até lá — um miserável apartamento dos arrabaldes. A senhora de
Arrizabalaga recebeu-o enquanto Lídia se arranjava um pouco.
— Com que então, onze anos! — observou novamente a mãe. — Como passa o
tempo! E você que poderia ter tido uma infinidade de filhos de Lídia!
— Seguramente — sorriu Nébel, olhando à sua volta.
— Oh! Não estamos muito bem! E sobretudo como deve estar montada a sua
casa… Estou sempre a ouvir falar dos seus caniçais… É essa a sua única
propriedade?
— Sim… Em Entre Rios também…
— Que feliz! Se uma pessoa pudesse… Sempre desejando ir passar uns meses
ao campo, e sempre e só o desejo!
Calou-se e lançou um fugaz olhar a Nébel. Este, com o coração apertado, revivia
nitidamente as impressões enterradas há onze anos na sua alma.
— E tudo isto por falta de relações… É tão difícil ter um amigo nessas
condições!
O coração de Nébel contraía-se cada vez mais, até que Lídia entrou.
Ela estava também muito mudada, porque o encanto da candura e da frescura
dos catorze anos não se volta a encontrar na mulher de vinte e seis. Mas sempre
bela.
O seu olfacto masculino sentiu, no seu pescoço delicado, na mansa tranquilidade
do seu olhar, e em tudo quanto é indefinível mas que denuncia ao homem o
amor já gozado, que devia guardar escondida para sempre a recordação da Lídia
que tinha conhecido.
Falaram de coisas muito triviais, com a total discrição das pessoas já maduras.
Quando ela voltou a sair por um momento, a mãe prosseguiu:
— Sim, está um pouco debilitada… e quando penso que no campo se recuperaria
rapidamente… Veja, Octávio: permite-me ser franca consigo? Já sabe que lhe
quis como a um filho… Não poderíamos passar uma temporada na sua
propriedade? Faria tão bem a Lídia!
— Sou casado — concluiu Nébel.
A senhora fez um gesto de viva contrariedade e por momentos a sua decepção
foi sincera; de seguida, cruzou as suas cómicas mãos:
— Você casado! Oh, que desgraça, que desgraça! Desculpe, já sabe!... Nem sei o
que digo… E a sua senhora vive consigo na propriedade?
— Sim, normalmente… Agora está na Europa.
— Que desgraça! Quer dizer… Octávio — acrescentou abrindo os braços e com
lágrimas nos olhos — a si posso contar-lhe, você foi quase como meu filho…
Estamos praticamente à beira da miséria! Porque não quer que eu vá com Lídia?
Vou fazer-lhe uma confissão de mãe — concluiu, com um pegajoso sorriso e
baixando a voz. — Você conhece bem o coração de Lídia, não é verdade?
Esperou pela resposta mas Nébel permanecia calado.
— Sim, você conhece-a! E acha que Lídia é capaz de esquecer, quando amou?
Agora tinha reforçado a sua insinuação com um lento piscar de olhos.
Nébel avaliou então, de repente, o abismo em que poderia ter caído antes.
Continuava a ser a mesma mãe; mas agora envilecida pela sua própria alma
velha, pela morfina e pela pobreza. E Lídia… Ao vê-la de novo tinha sentido um
brusco golpe de desejo pela actual mulher de voz grave e já marcada pela vida.
Perante o que lhe propunham, lançou-se nos braços daquela estranha conquista
que o destino lhe apresentava.
— Não sabes, Lídia? — interrompeu a mãe, alvoroçada, ao voltar a filha. —
Octávio convida-nos a passar uma temporada na sua propriedade. Que te parece?
Lídia contraiu o sobrolho, fugitiva e inconscientemente, e recuperou a sua
serenidade.
— Muito bem, mamã…
— Ah! Sabes o que está a dizer? Está casado. Tão jovem ainda! Somos quase da
sua família…
Lídia voltou então os olhos para Nébel e olhou-o por um momento com dolorosa
gravidade.
— Há muito tempo? — murmurou.
— Quatro anos — concluiu ele em voz baixa. Apesar de tudo, faltou-lhe
coragem para a olhar.
Inverno
Não fizeram a viagem juntos, por causa de um último escrúpulo de Nébel, que
era muito conhecido naquela linha; mas, ao sair da estação, subiram todos no
brec da casa. Quando
Nébel ficava sozinho na propriedade não mantinha no serviço doméstico mais
do que uma velha índia, pois — para além da sua própria sobriedade — a sua
mulher levava sempre consigo todos os serviçais. Assim, apresentou as suas
acompanhantes à fiel nativa como sendo uma tia anciã e a sua filha, que vinham
recuperar a saúde perdida.
Nada mais credível, por outro lado, pois a senhora debilita-va-se
vertiginosamente. Tinha chegado desfeita, o pé incerto e pesadíssimo, e na sua
fácies angustiada, a morfina, que a pedido de Nébel tinha sacrificado quatro
horas seguidas, pedia a gritos uma corrida por dentro daquele cadáver vivente.
Nébel, que tinha abandonado os seus estudos com a morte do pai, sabia no
entanto o suficiente para prever uma rápida catástrofe; o rim atacado tinha por
vezes paragens perigosas, que a morfina não fazia senão precipitar.
Já no carro, não podendo aguentar mais, a dama tinha olhado para Nébel com
transida angústia: — Se me permite, Octávio… Não posso mais! Lídia, põe-te à
minha frente.
A filha, tranquilamente, ocultou um pouco a mãe e Nébel ouviu o restolhar da
roupa violentamente recolhida para picar a coxa.
Os olhos acenderam-se e uma plenitude de vida cobriu como uma máscara
aquela cara agónica.
— Agora estou bem… Que felicidade! Sinto-me bem.
— Deveria deixar isso — disse cruelmente Nébel, olhando-a de lado. — Quando
chegar estará pior.
— Oh, não! Antes morrer aqui mesmo.
Nébel passou todo o dia desgostoso e decidido a viver tudo quanto lhe fosse
possível, sem ver em Lídia e na sua mãe mais do que duas pobres doentes. Mas
ao cair da tarde, e tal como as feras que a essa hora começam a afiar as garras, o
cio de macho começou a relaxar-lhe a cintura em cansados arrepios.
Comeram cedo porque a mãe, debilitada, desejava deitar-se de uma vez por
todas. Não conseguiram que ela tomasse exclusivamente leite.
— Ui! Que repugnância! Não consigo bebê-lo. E quer que sacrifique os últimos
anos da minha vida, agora que poderia morrer contente?
Lídia não pestanejou. Tinha trocado com Nébel poucas palavras, e só no fim do
café o olhar dele se fixou no dela; mas Lídia baixou o seu de seguida.
Quatro horas depois, Nébel, sem fazer ruído, abria a porta do quarto de Lídia.
— Quem é? — soou de repente a voz sobressaltada.
— Sou eu — murmurou apenas Nébel.
Um movimento de roupas, como o de uma pessoa que se senta bruscamente na
cama, seguiu-se às suas palavras e o silêncio reinou de novo. Mas quando a mão
de Nébel tocou, na escuridão, um fresco braço, o seu corpo tremeu então numa
profunda sacudidela.
Depois, inerte ao lado daquela mulher que já tinha conhecido o amor antes que
ele chegasse, subiu do mais recôndito da alma de Nébel o santo orgulho da sua
adolescência, de nunca ter tocado, de não ter roubado nem sequer um beijo à
criatura que o olhava com radiante candura. Pensou nas palavras de Dostoievski,
que até esse momento não tinha compreendido: «Nada há de mais belo e que
mais fortaleça a vida do que uma recordação pura.»
Nébel tinha guardado essa recordação sem nódoa, pureza imaculada dos seus
dezoito anos e que agora jazia ali, enlameada até ao cálice, sobre uma cama de
criada.
Sentiu então sobre o seu pescoço duas lágrimas pesadas, silenciosas. Ela, por seu
lado, recordaria… E as lágrimas de Lídia continuavam uma após outra, a regar,
como uma sepultura, abominável fim do seu único sonho de felicidade.
Durante dez dias a vida prosseguiu em comum, embora Nébel estivesse quase
todo o dia fora. Por tácito acordo, Lídia e ele poucas vezes se encontravam a sós;
e, embora à noite se voltassem a ver, permaneciam ainda longo tempo calados.
A própria Lídia tinha muito que fazer cuidando da mãe, por fim prostrada. Como
não havia possibilidade de reconstruir o que já estava podre, mesmo em troca do
perigo imediato que causara, Nébel pensou em suprimir-lhe a morfina.
Mas absteve-se numa manhã em que, ao entrar bruscamente na sala de jantar,
surpreendeu Lídia, que baixava precipitadamente as saias. Tinha na mão a
seringa, e fixou em Nébel o seu olhar assustado.
— Há muito tempo que usas isso? — perguntou-lhe por fim.
— Sim — murmurou Lídia, dobrando a agulha numa convulsão.
Nébel ainda a olhou e encolheu os ombros.
No entanto, como a mãe repetia as suas injecções com uma frequência terrível
para afogar as dores dos seus rins, que a morfina acabaria por matar, Nébel
decidiu tentar a salvação daquela desgraçada, subtraindo-lhe a droga.
— Octávio! Vai matar-me! — clamou ela com rouca súplica.
— Meu filho Octávio! Não poderia viver nem um dia!
— É que não viverá duas horas se lhe deixo isso! — respondeu Nébel.
— Não me importo, meu Octávio! Dá-me, dá-me a morfina!
Nébel deixou que os braços se estendessem para ele inutilmente e saiu com
Lídia.
— Tu conheces a gravidade do estado de tua mãe?
— Conheço… os médicos tinham-me dito…
Ele olhou-a fixamente.
— É que está muito pior do que imaginas.
Lídia ficou lívida e, olhando para fora, afogou um soluço mordendo os lábios.
— Não há médico aqui? — murmurou.
— Aqui não, nem em dez léguas à volta; mas procuraremos.
Nessa tarde chegou o correio, quando estavam a sós na sala de jantar, e Nébel
abriu uma carta.
— Notícias? — perguntou Lídia, inquieta, levantando os olhos para ele.
— Sim — concluiu Nébel, prosseguindo a leitura.
— Do médico? — voltou a perguntar Lídia, ainda mais ansiosa.
— Não, da minha mulher — concluiu ele com voz dura, sem levantar os olhos.
Às dez da noite, Lídia chegou a correr aos aposentos de Nébel.
— Octávio! A mamã está a morrer!...
Correram para o quarto da doente. Uma intensa palidez cadaverizava-lhe já o
rosto. Tinha os lábios desmesuradamente inchados e azuis, e por entre eles
escapava-se um arremedo de palavras, gutural:
— Pla… pla… pla…
Nébel viu imediatamente sobre a mesa de cabeceira o frasco de morfina, quase
vazio.
— É claro que vai morrer! Quem lhe deu isto? — perguntou.
— Não sei; Octávio! Há pouco ouvi um barulho…
Certamente foi buscá-lo ao teu quarto quando tu não estavas… Mamã, pobre
mamã! — caiu, soluçando, sobre o miserável braço que pendia até ao chão.
Nébel tomou-lhe o pulso; o coração não batia mais e a temperatura caía. Poucos
segundos depois os lábios calaram o seu pla… pla, e na pele apareceram grandes
manchas arroxeadas.
À uma da manhã morreu. Nessa mesma tarde, depois do enterro, Nebel esperou
que Lídia acabasse de se vestir enquanto os trabalhadores levavam as malas para
a carruagem.
— Toma isto — disse-lhe, com ela já a seu lado, estendendo-lhe um cheque de
dez mil pesos.
Lídia tremeu violentamente e os seus olhos, avermelhados, fixaram-se em cheio
nos de Nébel, porém ele susteve o olhar.
— Toma, então! — repetiu surpreendido.
Lídia apanhou-o e baixou-se para recolher a sua mala.
Então Nébel inclinou-se sobre ela.
— Perdoa-me — disse-lhe. — Não me julgues pior do que aquilo que sou.
Na estação esperaram pouco tempo, sem falar, junto às escadas do vagão, pois o
comboio ainda não ia sair. Quando o sino tocou, Lídia estendeu-lhe a mão, que
Nébel reteve durante um momento em silêncio.
Depois, sem a soltar, agarrou Lídia pela cintura e beijou-a profundamente na
boca.
O comboio partiu. Imóvel, Nébel seguiu com o olhar a janela que se perdia.
Mas Lídia não assomou.
OS HABITANTES DA ILHA MIDDLE –
William H. Hodgson
E foi o que fizemos, mas embora percorrêssemos o navio inteiro, de proa a popa,
não encontramos o menor sinal de vida. Entretanto, em todas partes
preponderava aquela extraordinária limpeza e aquela ordem, e não a desordem
selvagem de um navio náufrago e abandonado. À medida que passávamos de um
lugar a outro e de cabine em cabine, continuava experimentando a sensação de
que tinham sido habitado até um momento antes.
Terminamos a busca, e ao não encontrar o que procurávamos, olhamo-nos
confusos, quase sem falar.
Foi Williams o primeiro que disse algo inteligível.
— É como lhe disse, senhor; não havia nada vivo a bordo.
Diante disso Trenhern não respondeu nada e um minuto depois Williams voltou
a falar.
— Não falta muito para que caia a noite, senhor, e temos que sair deste lugar
enquanto houver um pouco de luz.
Em vez de lhe responder, Trenhern lhe perguntou se algum dos botes estava ali
quando o abordaram antes e ante a resposta negativa, caiu outra vez em seu
silencioso retraimento.
Um momento depois, atrevi-me a lhe chamar a atenção sobre o que havia dito
Williams a respeito de retornar ao iate antes do escurecer. Então assentiu
vagamente com um movimento de cabeça e caminhou fazia o lado, seguido por
Williams e por mim. Um minuto depois estávamos no bote e entrávamos a mar
aberto.
Durante a noite, não havendo lugar seguro para ancorar, o iate seguiu, sendo a
intenção de Trenhen desembarcar na Ilhota Middle e procurar algum rastro da
tripulação perdida do Happy Return. Se isso não desse resultados, ia levar a cabo
uma grande exploração da Ilha Niglítingale e da Ilhota do Stoltenkoff antes de
abandonar toda esperança.
Começou a executar a primeira parte do plano assim que amanheceu porque sua
impaciência era muito intensa para esperar mais.
Entretanto, antes que desembarcássemos na Ilhota, pediu a Williams que levasse
o bote à enseada.
Tinha a crença, que de certa forma me afligia, de que ia trazer para a tripulação
a seu modo de volta à nave. Sugeriu-me - procurando sem cessar em meu rosto a
mútua esperança que talvez tivessem estado ausentes no dia anterior, devido a
alguma expedição à ilha em busca de vegetais comestíveis. E eu (recordando a
data no calendário) pude olhá-lo com simpatia. Embora não pudesse
desacreditar de todo esse fato, não podia também dar muito crédito à sua
esperança.
Tivemos que remar para sair da enseada e rodear a costa um pouco até encontrar
um lugar adequado de desembarque.
Assim que desembarcamos, colocamos o bote em um lugar seguro e dispusemos
a ordem da exploração.
Williams e eu íamos levar um par de homens cada um para rodear a costa em
direções opostas até que nos encontrássemos, examinando de passagem todas as
cavernas que achássemos. Trenhern se dirigiria ao topo e escrutinaria a Ilhota
dali.
Williams e eu cumprimos com nossa parte e nos encontramos perto do lugar
onde tínhamos levado o bote. O não tinha nada que informar e eu tampouco.
Não pudemos ver rastros de Trenhern e pouco depois, como não aparecia, disse a
Williams que ficasse junto ao bote enquanto eu subia a elevação para buscá-lo.
Logo cheguei ao topo e descobri que eu estava à beira do enorme poço em que
jazia o navio naufragado. Olhei a meu redor e, para a esquerda, vi meu amigo
estendido de barriga para baixo com a cabeça sobre a beira do abismo,
evidentemente olhando para o navio.
— Trenhern - chamei com suavidade, para não alarmá-lo.
Elevou a cabeça e olhou em minha direção, fez-me gestos e me apressei em
chegar ao seu lado.
— Se abaixe - disse em sussurro-. Quero que veja algo.
Quando me estendi junto a ele, observei-lhe o rosto, estava muito pálido. Depois
apareci por sobre a beirada e olhei a tenebrosa profundidade.
— Vê o que quero dizer? - perguntou, falando ainda em um sussurro.
— Não. Onde?
— Ali -apontou-. A estibordo do Happy.
Olhando na direção indicada, perto dos restos da nave, distingui vários objetos
pálidos, de forma oval.
— Peixes – eu disse -. Que estranhos!
— Não! - replicou ele-. Rostos!
— O quê!
— Rostos!
Ajoelhei-me e olhei.
— Meu caro Trenhern, está deixando que este assunto o afete muito... Sabe que
pode contar com toda minha simpatia. Mas...
— Olhe – disse -, estão se movendo, estão nos olhando! - falava em voz baixa,
ignorando por completo meu protesto.
Estendi-me outra vez e olhei. Tal como havia dito, estavam se movendo e
quando olhei me ocorreu uma idéia repentina. Pus-me em pé bruscamente.
— Já sei! - gritei excitado -. Se estiver certo isso poderia explicar o abandono da
nave. Pergunto-me por que não pensamos antes!
— O que? -perguntou com voz cansada e sem elevar a cabeça.
— Bem, em primeiro lugar, meu velho, esses não são rostos, como bem sabe,
mas lhe direi o que é provável que sejam: os tentáculos de algum tipo de
monstro marinho, um kraken, ou um polvo... algo do tipo. É fácil imaginar uma
criatura dessa classe habitando aí abaixo e do mesmo modo posso compreender
que se sua amada e a tripulação do Happy Return estão vivos, sintam-se
inclinados a apartá-lo mais possível do velho navio... não é mesmo?
Quando terminei de explicar minha solução do mistério, Trenhern estava em pé.
A prudência tinha voltado para seus olhos e havia um rubor de excitação
reprimida pela metade nas bochechas até então pálidas.
— Mas... mas... mas... e o calendário? - ofegou.
— Bom, podem atrever-se a subir a bordo de noite, ou em certo momento das
marés, talvez tenham descoberto que há pouco perigo. Certamente, não posso
afirmá-lo, mas parece provável e nada mais natural que levar um registro dos
dias, ou o podem ter imaginado, de passagem. Até poderia tratar-se de sua bem
amada contando os dias, desde que se separou de você.
Voltei-me e espiei outra vez por sobre a beira do escarpado; as formas flutuantes
tinham desaparecido.
Então Trenhem me tocou o braço.
— Vamos, Henshaw, vamos. Retornaremos ao iate e traremos armas. Vou matar
esse monstro se ele aparecer.
Uma hora mais tarde estávamos de retorno com dois dos botes do iate e seus
tripulantes, todos armados com facões, arpões, pistolas e tochas. Trenhem e eu
tínhamos escolhido pesados revólveres.
Os botes foram aproximados e ordenou aos homens que abordassem o navio
náufrago, e ali, contando com suficiente comida, passaram o resto do dia,
vigiando com atenção em busca de sinais de algo.
Entretanto, quando se aproximou a noite, manifestaram uma considerável
inquietação. Por último enviaram ao velho baleeiro a popa para dizer a Trenhern
que não ficariam a bordo do Happy Return depois de cair a noite: obedeceriam
qualquer ordem que lhes desse no iate, mas não tinham sido contratados para
permanecer a bordo de um navio comandado por fantasmas.
Uma vez que ouviu Williams, meu amigo lhe disse que levasse seus homens ao
iate, mas que retornasse em um dos botes com coisas para dormir, já que ele e
eu íamos passar a noite a bordo do navio. Esta era a primeira vez que eu ouvia
sobre o assunto, mas quando o repreendi me disse que tinha plena liberdade para
voltar para o iate. Por sua parte tinha decidido ficar e ver se vinha alguém.
Como é natural, depois disso tive que ficar. Logo retornaram com os
implementos de dormir e depois de receber ordens de meu amigo para que
viessem nos procuramos ao romper o dia, deixaram-nos a sós para passar a
noite.
Descemos as coisas e as acomodamos sobre a mesa da câmara; depois subimos e
passeamos pela coberta de popa, fumando, falando seriamente, e escutando, mas
nada chegava a nossos ouvidos, a não ser a voz grave do mar mais à frente do
cinturão de algas.
Levávamos os revólveres porque só sabíamos que podíamos chegar a necessitá-
los. Entretanto, o tempo foi passando sem acidentes, exceto uma ocasião em que
Trenhem deixou cair pesadamente a culatra da arma sobre a coberta.
Justamente então, desde todos os escarpados que nos rodeavam, ricocheteou
para nós um estalo grave, oco. Era como o grunhido de uma besta enorme. Logo
a escuridão se fez total no fundo daquele poço tremendo. Por isso podia julgar,
uma névoa tinha descido sobre a Ilhota e formado uma espécie de tampa enorme
sobre o poço. Quando descemos eram perto da meia-noite. Acredito que, para
então até Trenhern tinha começado a notar que ter ficado era um pouco
imprudente. Se fôssemos atacados, ao menos lá embaixo poderíamos resistir
melhor. Em certo sentido, o temor incerto que eu sentia não era induzido pela
idéia do grande monstro que acreditava ter visto perto da nave durante o dia,
mas sim por algo inominável no ar mesmo, como se a atmosfera do lugar fosse
um meio condutor do terror. Entretanto, me acalmando com esforço, atribuí tal
impressão aos meus nervos em tensão, de tal modo que logo, havendo-se
devotado Trenhem para fazer a primeiro guarda, fiquei dormindo sobre a mesa
da cabine, deixando-o sentado junto a mim com o revólver sobre os joelhos.
Então, enquanto dormia, tive um sonho de uma nitidez tão extraordinária que me
parecia estar acordado. Sonhei que de repente Trenhern escoiceava e ficava em
pé de um salto. No mesmo instante, ouvi uma voz suave que chamava: "Trem!
Trem!". Vinha da porta da câmara e, em meu sonho, dava-me volta e via um
rosto muito belo, com olhos enormes, admiráveis. "Um anjo!", sussurrei comigo
mesmo. Então soube que me tinha equivocado e que era o rosto da namorada de
Trenhern. Tinha-a visto só uma vez, antes que embarcasse. Meus olhos foram
dela para Trenhern. Tinha deixado o revólver sobre a mesa e agora ela estendia
os braços para ele. Ouvi-a murmurar "Venha!" e depois Trenhern estava ao seu
lado.
Os braços da moça o rodearam e depois, juntos, atravessaram a soleira. Ouvi os
pés dele sobre a escada e depois disso meu sonho se converteu em um descanso
vazio, sem sonhos.
No seu palácio da floresta, Sylvia, a Rainha dos Bosques, reunia a sua corte e
escarnecia dos seus pretendentes. Disse que cantaria para eles, que os honraria
com banquetes, que lhes contaria histórias de dias lendários, que os seus
malabaristas actuariam, que os seus exércitos os saudariam, que os seus bobos
da corte os iriam entreter com palhaçadas, só que ela não os podia amar.
Esse não era o modo de tratar os príncipes no seu esplendor, nem os trovadores
misteriosos, que ocultavam os nomes da nobreza. Tal não estaria de acordo com
os princípios da fábula, e no mito não havia qualquer precedente que o
justificasse. Disseram que ela deveria ter lançado a sua luva no covil de algum
leão, pedido uma contagem das cabeças das serpentes venenosas de Licantara,
exigido a morte de qualquer dragão notável ou tê-los enviado numa demanda
mortal, mas que não os pudesse amar!?… Era um ultraje nunca antes visto!
Nunca houvera um paralelo semelhante nos anais das histórias românticas.
Então, disse ela, que se eles desejassem iniciar uma demanda, ofereceria a sua
mão ao primeiro que a levasse às lágrimas, e que essa demanda deveria ser
apelidada, para que fizesse referência a histórias ou baladas, de «O Resgate das
Lágrimas da Rainha», e que o primeiro que tal conquistasse se casaria com ela,
mesmo que fosse apenas um duque insignificante, oriundo de terras
desconhecidas das histórias de amor.
Muitos enfureceram-se, pois esperavam uma demanda sangrenta; mas o
camareiro-mor disse, enquanto eles murmuravam entre si num local distante e
escuro da sala, que tal demanda era difícil mas sábia, pois se ela algum dia
chorasse, também poderia amar. Conheciam-na desde pequenina e nunca a
tinham visto sequer choramingar. Conhecera muitos homens, pretendentes e
cortesãos e nunca virara a cabeça quando partiam. A sua beleza era como um
pôr-do-sol suspenso em amargos entardeceres, quando todo o mundo se encontra
congelado e se torna uma maravilha e um arrepio. Ela era como uma montanha
atingida por um raio de Sol, altaneira e só, toda enfeitada de gelo; um brilho
desolado e solitário ao entardecer, longínquo, para além do mundo confortável,
não chegando a sentir a companhia das estrelas nem a maldição do montanhês.
Se ela pudesse chorar, disseram, talvez pudesse amar.
Ela sorriu com ternura para todos esses príncipes ardentes e para os trovadores
que ocultavam os nomes da nobreza.
Então, um a um, de mãos estendidas e ajoelhados, cada príncipe pretendente
contou a história do seu amor. Muito tristes e plangentes eram essas histórias, de
tal forma que frequentemente, nas galerias acima, alguma donzela do palácio
chorava. Graciosamente, a rainha acenava com a cabeça, como uma frágil
magnólia nas profundezas da noite, movendo-se assim ao ritmo das brisas como
uma gloriosa florescência.
Quando os príncipes acabaram de contar as histórias dos seus desesperados
amores, partiram sem outro espólio que não o das suas próprias lágrimas.
Vieram até mesmo trovadores desconhecidos para cantarem as suas histórias,
omitindo os seus nobres nomes.
Havia um, Ackronnion, vestido de farrapos, nos quais se entranhava o pó das
estradas. Por baixo dos mesmos, trazia uma armadura marcada pelas batalhas
que travara. Quando acariciou a sua harpa e cantou, as donzelas choraram, nas
galerias acima, e até mesmo o velho camareiro-mor derramou lágrimas. Mas
logo se riu do pranto das jovens, e disse: — É fácil fazer chorar os velhos e
trazer lágrimas vãs aos olhos de meninas preguiçosas; mas ele não conseguirá
fazer chorar a Rainha dos Bosques.
Graciosamente ela inclinara a cabeça, ele fora o último. Os duques, príncipes e
trovadores disfarçados partiram sem consolo. Ackronnion ainda ponderou,
enquanto se retirava.
Ele era rei de Afarmah, Lool e Haf, Lorde de Zeroora e do montanhoso Chang, e
Duque de Molóng e Mlash, nenhuma destas terras se encontrava ausente das
histórias românticas ou era omitida na construção do mito. Assim meditava ele,
enquanto partia no seu singelo disfarce.
Agora (para aqueles que já não se lembrem da sua infância, pois têm outras
coisas mais importantes para fazer), que fique claro que por debaixo do reino
das fadas, que fica, como todos sabem, na extremidade do mundo, vivia o
Monstro de Gladsome, que era um sinónimo de alegria.
É sabido como a cotovia no auge da sua ascensão, as crianças a brincar na rua,
bruxas boas e parentes velhos e alegres têm todos sido comparados — e de uma
forma bem apropriada — a esse mesmo Monstro de Gladsome. Só que ele tem
um «piquinho» (se é que me é permitido usar a gíria, por um momento, para me
fazer entender), apenas uma desvantagem, que é o facto de a sua alegria estragar
os repolhos do Ancião Que Cuida do Reino das Fadas. E, é claro, o facto de
devorar homens.
Deverá também ficar bem claro que, quem conseguir captar as lágrimas do
Monstro de Gladsome numa taça, e se embriagar com elas, poderá levar
qualquer pessoa a chorar lágrimas de alegria, enquanto conseguir permanecer
inspirado pela poção, para cantar ou tocar um instrumento.
Agora Ackronnion ponderava sabiamente sobre o seguinte tema: se ele
conseguisse obter as lágrimas do Monstro de Gladsome, através da sua arte,
enquanto domasse a sua violência pelo feitiço da música e se, enquanto isso, um
amigo seu matasse o Monstro de Gladsome, antes que o seu choro parasse (pois
este tem sempre um fim, mesmo num homem), poderia assim escapar ileso com
essas lágrimas, bebê-las perante a Rainha dos Bosques e levá-la a derramar
lágrimas de alegria. Ele procurou então um humilde cavaleiro que não se
pudesse enfeitiçar pela beleza de Sylvia, Rainha dos Bosques, mas que tivesse,
há já muito tempo no Verão, encontrado a sua donzela. E o nome desse homem
era Arrath, um súbdito de Ackronnion, um cavaleiro de armas da guarda-de-
lançeiros. Juntos, partiram pelos campos de fábula até que chegaram ao Reino
das Fadas, um reino que se ilumina a si mesmo (como é do conhecimento de
todos), e que se estende por léguas ao longo das orlas do mundo. Por um velho e
estranho caminho, chegaram à terra que procuravam, através de um vento que
soprava em sentido contrário, provindo do espaço, e que tinha o tipo de sabor
metálico das estrelas errantes. Mesmo assim, chegaram à casa ventosa, com
telhados de colmo, onde morava o Ancião Que Cuida do Reino das Fadas.
Encontraram-no sentado à janela da sala que se parecia desviar do mundo.
Recebeu-os com alegria na sua sala de estrelas, enquanto lhes relatava histórias
do Espaço. Quando eles lhe contaram a sua perigosa demanda, disse-lhes que
seria um acto de caridade matar o Monstro de Gladsome; pois ele era claramente
um dos que não gostavam dos seus modos airosos. Conduziu-os então à porta
das traseiras, pois junto à porta da frente não se via qualquer caminho, nem
mesmo um degrau, pois era daí que o velho homem costumava atirar o seu lixo
para o Cruzeiro do Sul. Assim, entraram no horto onde ele cuidava dos seus
repolhos, se bem como de certas flores, que só crescem no Reino das Fadas e
viram as corolas para os cometas. Ele indicou-lhes então o caminho para o local,
ao qual chamava «Debaixo», onde o Monstro de Gladsome tinha o seu covil.
Puseram-se então a caminho. Ackronnion deveria descer os degraus, com a sua
harpa e a sua taça de ágata, enquanto Arrath entraria através de uma falha num
rochedo, pelo outro lado. Então, o Ancião Que Cuida do Reino das Fadas voltou
para a sua casa ventosa, murmurando furiosamente, à medida que passava pelos
seus repolhos, pois não gostava dos modos do Monstro de Gladsome. E os dois
amigos partiram por caminhos separados.
Ninguém os observava, para além de um corvo agourento já há muito saturado
da carne dos homens.
Um vento vindo das estrelas soprava gélido.
A princípio havia uma perigosa subida, e Ackronnion alcançou os lisos e largos
degraus que o levaram do precipício à entrada do covil, e, naquele momento,
ouviu, no cimo desses degraus, as gargalhadas contínuas do Monstro de
Gladsome.
Naquele momento, temeu que a sua alegria pudesse ser insuperável, que não se
entristecesse com o seu mais doloroso cantar. Não obstante, não retrocedeu, mas
antes, subiu vagarosamente as escadarias e, pousando a taça de ágata num dos
degraus, começou a entoar o canto conhecido como «Doloroso». Este falava de
devastação, lamentando coisas que tinham ocorrido em cidades felizes desde o
início do mundo. Falava de como há muito tempo os deuses, os animais e os
homens tinham amado os seus belos companheiros, e de como, também há já
muito tempo, tudo era em vão. Mencionava o anfitrião dourado das ledas
esperanças, mas não as suas conquistas. Falava de como o Amor desprezava a
Morte, mas também da risada da Morte. As gargalhadas felizes do Monstro de
Gladsome cessaram. Este levantou-se e sacudiu-se. Ainda estava infeliz.
Ackronnion ainda entoava o cântico conhecido como «Doloroso». O Monstro de
Gladsome dirigiu-se então a ele, pesarosamente. Ackronnion não parou devido
ao pânico, mas ainda cantava. Versava acerca da malignidade do tempo. Duas
grandes lágrimas formaram-se nos olhos do Monstro de Gladsome. Ackronnion
empurrou com o pé a taça de ágata até um local conveniente. Cantava o Outono
e a morte. O Monstro chorou, como choram as colinas durante o degelo, e as
lágrimas caíram, uma após outra, no recipiente de ágata. Ackronnion continuava
a cantar desesperadamente. Aludia às coisas boas que os homens vêem e não
mais voltam a ver, à luz solar que se reflectia imperceptivelmente em rostos,
agora envelhecidos. A taça já estava cheia. Ackronnion sentia-se desesperado: o
Monstro encontrava-se demasiado próximo. Uma vez, apercebera-se de que a
sua boca estava molhada (mas era apenas das lágrimas que tinham corrido pelos
lábios desse Monstro). Sentiu-se como um pequeno pedaço de comida! O
Monstro ia deixando de chorar!… Cantou acerca de mundos que tinham
ofendido os deuses. E de repente, ouviu um estrondo! A lança forte de Arrath
tinha sido arremessada. As lágrimas e os modos joviais do Monstro de
Gladsome tinham acabado para todo o sempre.
Cautelosamente, transportaram o recipiente com lágrimas, deixando para trás o
corpo do Monstro de Gladsome, provocando assim uma mudança nos hábitos
alimentares do corvo agourento. Passaram pela casa ventosa, com telhados de
colmo, e despediram-se do Ancião Que Cuida do Reino das Fadas, o qual, ao
ouvir o feito, esfregou as mãos de contente e murmurou uma e outra vez: — É
uma óptima notícia. Os meus repolhos! Os meus repolhos!…
Pouco tempo depois, Ackronnion cantava novamente no palácio silvestre da
Rainha dos Bosques, após ter bebido todas as lágrimas da sua taça de ágata. Era
uma noite de gala, toda a corte estava presente, incluindo os embaixadores das
terras da lenda e do mito, e até mesmo outros da Terra Cognita.
Ackronnion cantou como nunca antes cantara, e como nunca voltaria a cantar.
Ah, mas dolorosos, bem dolorosos, são os caminhos do Homem; vagos e
arrastados os seus dias, e o fim sempre difícil e vão, tal como o seu sacrifício; e
as mulheres (quem as cantará?) têm um destino igual ao dos homens, escrito por
deuses desatentos e descuidados, com os rostos voltados para outras esferas.
Começou mais ou menos desse modo, e então, a inspiração tomou conta dele e
eu não conseguirei descrever toda a beleza do seu cantar. Havia nele muita
alegria, misturada com o desgosto. Era semelhante aos caminhos do Homem.
Era como o nosso destino.
Surgiram soluços ante o seu cantar, suspiros regressavam em eco: senescais e
soldados soluçavam, e um claro choro se apoderava das donzelas. Como uma
chuva, as lágrimas caíam de galeria em galeria. Em redor da Rainha dos
Bosques levantou-se uma tempestade de choros pesados e de mágoa.
Mas não, ela não chorava.
O DEMÔNIO DA FLOR – Clark Ashton-
Smith