Viagens À Capitania Do Espírito Santo
Viagens À Capitania Do Espírito Santo
Viagens À Capitania Do Espírito Santo
Viagens à
Capitania do
Espírito Santo
Viagens à
200 anos das expedições científicas
Capitania do
de Maximiliano Wied-Neuwied
e Auguste Saint-Hilaire
Espírito Santo
PAULO CESAR HARTUNG GOMES
Governador do Estado do Espírito Santo
Viagens à
Capitania do
Espírito Santo
200 anos das expedições científicas de
Maximiliano Wied-Neuwied e Auguste Saint-Hilaire
Vitória, 2018
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO
APEES
© Arquivo Público do Estado do Espírito Santo
Coordenação de Arte
Sergio Oliveira Dias
Revisão Ortográfica
Jória Scolforo
Ilustração da capa: Ansicht des Felsens Jucutucoara am Flusse Espirito Santo unweit Villa de Victoria. in Reise nach
Brasilien in den Jahren 1815- bis 1817. (Viagem ao Brasil nos anos de 1815 a 1817) - Príncipe Maximiliano Wied-
-Neuwied. Edição original em língua alemã, 1820-21. Frankfurt, Alemanha. http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital.
Acesso em 11 dez.2018
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca de Apoio Maria Stella de Novaes - Arquivo
Público do Estado do Espírito Santo, Brasil - Ficha catalográfica elaborada por Ana Carolina Médici.
Apresentação 9
Prefácio 15
Introdução 19
Capítulo I
Brasil: entre o real e o imaginado 25
Capítulo II
A redescoberta do Brasil: a corte no exílio e os
viajantes estrangeiros 39
Capítulo III
Maximiliano de Wied-Neuwied 55
A viagem ao Brasil 62
Os preparativos para a longa jornada. A cidade do Rio de Janeiro 65
Viagem à Capitania do Espírito Santo 67
Capítulo IV
Auguste de Saint-Hilaire 93
Os preparativos para a segunda viagem ao interior do Brasil 103
Segunda Viagem ao Interior do Brasil. Espírito Santo 107
Epílogo
Aos novos viajantes: o Espírito Santo
200 anos depois das viagens de Maximiliano e Saint-Hilaire 141
9
Dessa forma, antes de tudo, esta publicação é um convite a
novas viagens, incursões nas obras originais, cujas “paisagens”, “ro-
teiros” e “relevos” são tão bem aqui destacados. Excelente leitura.
Boas viagens.
Paulo Hartung
Governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010/2015-2018)
10
Apresentação do Secretário
11
até o Espírito Santo. Não foram só eles os que aqui vieram com um
olhar mais apurado, mais antropológico, poderíamos dizer, mas o
autor se dedica a eles, pela importância de seus relatos. Não sem an-
tes situar o leitor do contexto que gerou tais e sua importância no
país independente que estava nascendo.
Seguramente tinha importância estratégica para a Coroa
Portuguesa transferida para o Brasil, o extermínio dos índios que
chamavam de Botocudos. Eles foram construídos no imaginário
português e no das elites brasileiras como povos atrasados e san-
guinários. Exterminá-los era, nessa perspectiva, ampliar o processo
civilizatório entre nós. Foi mesmo decretada uma guerra pelo Prín-
cipe Regente. Portanto, conhecer melhor o inimigo, seu território e
seus costumes era estratégia de afirmação europeia no Brasil. Por
isso os relatos dos estrangeiros foram tão importantes.
E não eram viajantes quaisquer. Saint Hilaire, por exemplo,
era um grande intelectual de seu tempo, como muito bem registra
Bruno Nascimento. Possuía formação humanista, sustentada pelos
grandes debates dos iluministas franceses e europeus de uma forma
geral dos séculos XVII e XVIII. Além disso, era um especialista em
botânica, tendo realizado coletas e pesquisas nessa área durante sua
viagem ao Espírito Santo, como em todos os territórios brasileiros
que visitou. Fez observações importantes da trajetória de sua via-
gem, sendo seus registros da máxima importância para a constru-
ção de uma ideia de passado dos capixabas. Não é por acaso que seus
escritos são tão citados até hoje.
Mas, é no epílogo deste livro que o autor nos dá o que talvez
seja sua maior contribuição a uma reflexão sobre o Espírito Santo
e sua história. Ao invés de aceitar passivamente a tese da simples
decadência da Capitania, ele mostra evidências de um espírito
organizado e dinâmico entre nós. Convergindo sobre uma nova
tendência no estudo da história brasileira, de entender melhor o que
se passava no interior do Brasil e o que era de fato a tal agricultura
12
de subsistência da qual falavam nossos grandes explicadores. Nisso
o trabalho nos dá indicações importantes.
Apoiando-se em texto do grande historiador capixaba
Fernando Achiamé, ele faz uma interessante especulação sobre a
nossa própria sobrevivência como Capitania, Província e depois
Estado Federado ao lado dos gigantes territoriais que nos cercam.
Tema instigante e que merece mesmo ser melhor compreendido
pelos que estudam e pelos que amam o Espírito Santo. Assim, é
grande a contribuição intelectual deste pequeno grande livro. Tenho
certeza que os leitores gostarão tanto quanto eu.
João Gualberto
Secretário de Estado da Cultura
13
Prefácio
15
Vieram os anos 1980 e 1990 e aqueles estudos sobre os
viajantes continuaram, acentuando-se a existência de filtros e
preconceitos que de algum modo inventavam um Brasil que não
era exatamente o Brasil concreto. Negar a realidade, pelo menos
no plano do discurso era a chave para dizer que nem tudo o que
diziam aqueles estrangeiros era representação exata ou fiel ao
real. Nos encontros e desencontros das imagens forjadas e sua
relação com a auto-imagem que se criava do país, aprofundou-se
a crítica aos relatos dos viajantes e, ao mesmo tempo, definiram-
se contornos mais nítidos do que realmente havia sido o passado
brasileiro diante do ritmo imperativo das mudanças vividas no
país. O que antes parecia belo e vigoroso, agora escancarava
vícios e incorreções. Era preciso reconduzir o país à rota da
modernização em sintonia com o mundo globalizado. Assim, nem
os estrangeiros viam melhor nossa terra, tampouco nós mesmos
éramos capazes de a interpretar com precisão. As palavras e as
coisas seguiam sua trajetória de estranhamento no descompasso
dos tempos. Mas uma coisa era certa, nem tudo aqueles viajantes
poderiam nos ensinar. Por algum tempo, entre os anos 2000 o
interesse pelos viajantes estagnou-se.
No Espírito Santo coube a Levy Rocha, no início dos anos
1970, apresentar uma das melhores sínteses acerca dos viajantes
estrangeiros que passaram pelas terras capixabas no século XIX.
Estudo rigoroso que localizou nomes e trouxe à lume informações
preciosas sobre o passado daquela província a partir do olhar dos
viajantes que aqui estiveram. Ainda corria naqueles anos a inter-
pretação corrente de que o Espírito Santo era o primo pobre da Fe-
deração. Estado tampão, barreira verde, terra que teria conhecido
pouca prosperidade, cuja modernização era devida exclusivamen-
te ao café ou à ferrovia; enfim o Espírito Santo era visto como um
estado atrasado porque, como constataram alguns viajantes, era
terra de grandes belezas naturais, mas de povo pouco empreende-
dor. No melhor dos casos, porque era atrapalhado pelos seus vizi-
16
nhos. Essa narrativa grassava na imprensa, nos discursos políticos
e em muitas obras produzidas. Aliás, ela ainda seduz e convence
muitas pessoas, a despeito de sua incorreção.
Para nossa sorte, e partir de 2010 o estudo dos viajantes
ganhou grande impulso no Espírito Santo, graças, sobretudo aos
esforços do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo que es-
timulou a produção de pesquisas e a publicação de novos estudos
e traduções. O livro que o leitor tem em mãos parece coroar esse
processo. Ele é o resultado alvissareiro de variados esforços coleti-
vos e do mérito individual de seu autor que realizou façanha consi-
derável de pesquisa num curtíssimo espaço de tempo, cujo mérito
foi reconhecido em premiação e escolha face a outros trabalhos em
edital da Secretaria de Cultura do Estado do Espírito Santo para
publicação.
Esta obra de Bruno Nascimento é um convite para rea-
valiarmos o passado e a história do Espírito Santo. Fruto de uma
pesquisa louvável realizada por um historiador jovem, provido de
talentos quase renascentistas tanto no domínio das fontes quanto
das máquinas e do tempo. Mas também, no manuseio dos textos
e na produção das imagens. Um autor capaz de produzir livros,
da tecla, à tela e desta até o offset. Neste livro primoroso, repleto
de análises pontuais e de imagens belíssimas, temos a possibili-
dade de encontrar as raízes de nossa terra, produzido por um au-
tor meticuloso e detalhista, que habilidosamente discute textos
e contextos. Seus capítulos são um convite para mergulharmos
novamente naquele passado capixaba tal como foi captado pelo
naturalista francês Saint-Hilaire e pelo príncipe germânico Ma-
ximiliano. Nos labirintos entre o real e o imaginado, entre o pas-
sado e o presente, Bruno Nascimento nos conduz com segurança,
apontando soluções bastante originais para a compreensão dos
textos daqueles dois ilustres viajantes que passaram há dois sécu-
los pelo Espírito Santo. Seu livro é capaz de nos reconduzir a pro-
blemas decisivos de nossa história, ao mesmo tempo em que nos
17
apresenta novas reflexões sobre eventos emblemáticos. Sua leitura
é um convite generoso para encontrarmos nestas narrativas de
viagem histórias e informações pertinentes e, acima de tudo, en-
cantadoras.
Julio Bentivoglio
Professor do Departamento de História
Universidade Federal do Espírito Santo
18
Introdução
19
se de um lado haviam problemas no que concerne à gestão adminis-
trativa, do outro floresciam os frutos do projeto religioso, que marcou
presença em grande parte da região litorânea centro-sul da capitania,
indo desde Santa Cruz até Itapemirim, compondo-se de pequenas vi-
las, responsáveis, em sua grande maioria, pela construção dos relatos
e estereótipos que fartamente foram dominando o imaginário euro-
peu ao longo de três séculos, e que ainda se fazia presente em pleno
século XX, como pode ser visto em Claude Levi-Strauss.
O fato é que, por ser uma Capitania Real em seu fim, o Es-
pírito Santo se transformou em um "imenso laboratório", e entre os
"testes" estão: a formação da população colonizadora a partir do pe-
queno excedente populacional, católico, que via no Brasil a "terra da
oportunidade" e os degredados dos mais diversos cantos do Império
Ultramarino Português; o desenvolvimento em larga escala, como
possibilidade de "amansamento" dos indígenas, de diversos aldea-
mentos que contavam com vilas como a de Nova Almeida, Riritiba,
Guarapari e até mesmo Vitória; o investimento no sistema de fortes
e fortins, como elemento de defesa contra as ameaças de invasões
estrangeiras, que marcou os séculos XVI e XVII; e o sistema de Ca-
pitania Real. E assim foi, lentamente, moldando a Capitania, o que
acaba por tornar conveniente a construção da "narrativa do atraso
histórico" inculcada no capixaba, e que foi questionada por Rafael
Cerqueira em trabalho intitulado A narrativa histórica da superação
do atraso: um desafio historiográfico do Espírito Santo (2016).3
Por fim, somente com a chegada da Corte ao Brasil, em 1808,
tornou-se possível a saída, não somente do Espírito Santo, mas de
grande parte do Brasil, do estado de letargia que acometia a popu-
lação dessa colônia portuguesa, já que no início do século XIX ainda
parecia viver em meados do século XVI.
20
Assim, batido o pó, abertas as janelas e postas melhores
roupas e porcelanas para receber os novos e ilustres governantes,
é correto afirmar que basicamente duas questões tiravam o Espí-
rito Santo do anonimato que o cercava: os índios e sua guerra de
resistência contra os colonizadores, que a partir da declaração da
chamada "Guerra Justa", passaram a surgir em maior número e vo-
lume; e a constante disputa dos limites com as Capitanias de Minas
Gerais e Bahia.
Contudo, se as questões limítrofes de uma pequena capitania
pouco importavam à grande maioria da população colonial, os índios,
em muito, incomodavam e debatiam-se, e foi exatamente essa presença
marcante, aliada ao imaginário preconcebido pelos estrangeiros, que
fez com que um significativo número de viajantes voltassem seu olhar
para esse pequeno pedaço de terra escondido sob o olhar de todos.
Apesar desse aspecto idílico e imaginativo que passou a cer-
car o Espírito Santo,
21
Então, se parcos foram os ilustres visitantes que no Espírito
Santo aportaram até o ano de 1816, muitos foram os que se seguiram
após esse ano, pois, foi a partir desse ponto que se "abriu" definitiva-
mente o caminho para o rompimento do isolamento em que se en-
contrava o Espírito Santo frente às demais capitanias que o cercava.
Tendo chegado ao Brasil em 1815, para uma grande expedição,
foi somente no final de 1816, e nas vésperas de seu retorno à Europa,
que o Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied adentrará em terras
capixabas. Após quatro anos de seu retorno ao velho Mundo ele publi-
ca sua obra Rise nach Brasilien in den Jahren 1815 bis 1817,5 que amplia
as visões estrangeiras sobre o Brasil e dá o primeiro passo no caminho
pelas e para as terras capixabas e seus "famigerados" botocudos.
Nem bem as pegadas de Maximiliano tinham se apagado,
chega, em 1817, ao Espírito Santo, aquele que será considerado um dos
maiores naturalistas que estiveram no Brasil, o francês Auguste de
Saint-Hilaire, que com a publicação da obra Voyage dans le District
des Diamans e sur le littoral du Brésil em 1833,6 abre definitivamente as
portas do Espírito Santo aos viajantes estrangeiros.
As obras de Maximiliano e Saint-Hilaire talvez estejam, jun-
tamente com Spix e Martius, no hall dos relatos estrangeiros mais
analisados e citados em trabalhos que se debruçam sobre o "debate
civilizatório" brasileiro e sobre a formação e alvorecer dessa nova na-
ção no início do século XIX. Esses, somados a Jean Baptiste Debret e
Johan Moritz Rugendas, compõem a galeria dos primeiros grandes
ilustrados no Brasil.
A publicação na Europa das obras resultantes dos diários de
viagem desses "desbravadores" do gênero científico, que se apoiaram
principalmente na História Natural, tendo como arcabouços
complementares a Botânica, a etnografia, a zoologia e as artes, despertou
uma onda de novos aventureiros, que tinham o Brasil como destino,
5 Traduzida para o português sob o Título: Viagem ao Brasil nos anos de 1815 a 1817.
6 Traduzida para o português sob o Título: Viagem ao Distrito dos diamantes e litoral
do Brasil: segunda viagem ao interior do Brasil.
22
principalmente, a partir da segunda metade do século XIX, período em
que o Espírito Santo recebeu um significativo número desses visitantes.
Entre os que estiveram presentes em terras capixabas, e
deixaram relatos, destacam-se: Charles Landser (Inglaterra - 1826);
Jean Descourtilz (França - 1851); Edward Wilbeforce (Inglaterra -
1851); François-Auguste Biard (França - 1858); Victor Frond (França
- 1860); Johann Jakob von Tschudi (Suíça - 1860); Dom Pedro II (1860);
Charles Hatt (Canadá - 1865); Julie Keyes (EUA - 1867); Paul Ehrenreich
(Alemanha - 1884); Teresa da Baviera (Alemanha - 1888); e por fim, o
único viajante do início do período republicano brasileiro, Paul Walle
(França - 1910); além, é claro, de uma enorme massa de esquecidos
ou, que de passagem em algum momento, deixaram escapar a
oportunidade de produzir alguma obra substancial sobre o local.
Demonstrado a grande massa de estrangeiros presentes no
Espírito Santo ao longo do século XIX, fica latente a necessidade de
se dedicar, mesmo de maneira breve, um estudo sobre aqueles que
de certa forma foram os pioneiros desses passos e que lançaram um
novo olhar sobre os capixabas e seus costumes, legando-nos uma
imensa massa de informações sobre um tempo já há muito perdido.
Assim, Maximiliano e Saint-Hilaire merecem, pelo seu pio-
neirismo e pelos 200 anos de sua visita, o direito a mais algumas
breves palavras, afinal, como proposto pelo primeiro, sua obra
8 LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 45.
9 Uma das possíveis traduções de “Hy Brazil”, nome dado ao conjunto de ilhas míti-
cas da cultura céltica e irlandesa que descreve a presença de uma terra repleta de paz,
felicidade e livre de preocupações e doenças. Uma terra onde predomina a abonança.
Cf. VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil Colonial (1500 – 1808). Rio de Janeiro:
Objetiva, 2000, p. 81-82; ABREU, Capistrano. O descobrimento do Brasil. Brasília: Edito-
ra UNB, 2014, p. 125; KANGUSSU, Imaculada. Brasil e as utopias. Trama disciplinar, São
Paulo, v. 5, n. 2, p. 23-24, 2014.
25
calvinista Jean de Léry (1578),10 que esteve no Brasil durante o pro-
cesso de instauração da França Antártica, e do mercenário alemão
Hans Staden (1557), sendo que o relato desse “teve nada menos que
dez reedições em cinco anos, foi rapidamente traduzida para o ho-
landês (1558), para o latim (1559) e para o flamengo (1560), bem como
para o inglês e o francês”.11
Relatos que eram marcados por uma linguagem carregada
de metáforas e sujeitos a uma simbologia predominantemente cris-
tã, de caráter tanto católico, quanto protestante, que, por diversas
vezes, devido ao desconhecimento da cultura daqueles que por aqui
estavam e, principalmente, pela barreira da língua, acabaram por
deturparem a realidade cultural, social e humana do Novo Mundo.
Outro fator preponderante para a compreensão do tipo de
relato construído é o conhecimento prévio da atividade exercida
por aquele que escreve, pois isso auxilia na compreensão do tipo
de olhar lançado sobre o contexto, isso porque, segundo Mirian
Moreira Leite,
10 Cf. LÉRY, Jean de. História de uma viagem feita à Terra do Brasil, também chamada
América. Trad. Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro,
2009.
11 BUENO, Eduardo. Como era gostoso Hans Staden: um livro para devorar. In.: STA-
DEN, Hans. Duas viagens ao Brasil: primeiros registros sobre o Brasil. Trad. Angel Boja-
dsen. São Paulo: L&PM Pocket, 2008, p. 11.
12 SARAT, Magda. Literatura de viagem: olhares sobre o Brasil nos registros dos via-
jantes estrangeiros. Patrimônio e Memória, São Paulo, v. 7, n. 2, p. 38, 2011.
26
Ritual de canibalismo dos índios Tupinambás. Fonte: STADEN, Hans. Duas viagens ao
Brasil: primeiros registros sobre o Brasil (1592). Edição de Theodor de Bry.
27
central no processo de racionalização iniciado no século XVII, e que
possui a observação como um dos pilares da fundamentação do co-
nhecimento, dessa maneira, “um cego do século XVIII pode ser per-
feitamente geômetra, não será naturalista”.13
Dentro desse contexto de experiência e observação como
elemento constitutivo de um determinado saber, Magnus Roberto
de Mello Pereira e Ana Lúcia Rocha Barbalho da Cruz defendem que
13 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.
8 ed. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 142.
14 PEREIRA, Magnus R. M.; CRUZ, Ana Lúcia R. B. O viajante instruído: os manuais
portugueses do iluminismo sobre métodos de recolher, preparar, remeter, e conservar
produtos naturais. In.: DORÉ, Andréa; SANTOS, Antonio C. A. Temas Setecentistas: go-
vernos e populações no Império Português. Curitiba: UFPR/Fundação Araucária, 2009,
p. 247.
28
tringia às produções do mundo natural, mas abarcava também a in-
vestigação sobre a “natureza humana” dos habitantes autóctones.15
15 CRUZ, Ana Lúcia R. B. da. Verdades por mim vistas e observadas Oxalá foram fá-
bulas sonhadas: cientistas brasileiros do setecentos, uma leitura auto-etnográfica. Tese
(Doutorado em História). Programa de Pós Graduação em História, Universidade Fe-
deral do Paraná. Curitiba, 2004, p. 123.
16 O caso mais emblemático de restrição ao território brasileiro foi o de Alexander
Von Humboldt no ano de 1800. Segundo Levy Rocha “em março de 1800, o Barão de
Humboldt e o cientista Aimé Bompland, integrante da comitiva, preocupados em des-
cobrir a ligação dos rios Orenoco e Amazonas, embrenharam-se na selva brasileira.
Um soldado da guarnição fronteiriça com a Venezuela, julgando-os espiões, deu-lhes
voz de prisão.” ROCHA, Levy. Viajantes estrangeiros no Espírito Santo. Brasília: Editora
29
dar a conhecer o maior número possível de espécies tornara-se uma
questão nacional”,17 afinal, os “álbuns eram, sobretudo, evidências do
poder das nações que patrocinavam as missões e possuíam conhe-
cimento e recursos das terras americanas, ainda mal conhecidas”.18
30
Gravura confeccionada durante as Viagens Philosóficas Portuguesas no final do século XVIII
- Expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira. Máscaras do índios Jurupixunas. Pintura de
Joaquim José Codina, c.1790.
31
Tal restrição aos estrangeiros perdurou até a chegada da Fa-
mília Real Portuguesa ao Brasil no ano de 1808, quando o acesso a
terras brasileiras ganhou fôlego após a abertura dos portos às nações
amigas, da institucionalização das missões artísticas e científicas e do
tratado de paz com a França em 1815, assinado após a derrota de Na-
poleão Bonaparte.
Isso fez com que os anos posteriores a 1808, até a virada
para o século XX, fossem notadamente marcados pela presença
desses interlocutores estrangeiros que levavam a outras nações as
suas impressões, vislumbres e espantos sobre essa terra “onde tudo
que se planta, dá”.20
O fato é que, por mais que Claude Levi-Strauss tenha
desdenhado e demonstrado asco à literatura de viagem,21 a mesma se
tornou altamente consumida, tanto por leigos, quanto por doutos,
pelo fascínio que a mesma traz aos seus leitores, transpondo-os
às profundas selvas brasileiras ou às bravias savanas africanas.
Até mesmos as literaturas ficcionais, que utilizam do artifício de
transposição do leitor, são avidamente devoradas, dadas as suas
riquezas de detalhes e profunda penetração no imaginário social,
exemplos clássicos são as obras de Júlio Verne, Agatha Christie e,
mais recentemente, Dan Brown.
A repulsa por esse tipo de literatura, expressado claramente
por Levi-Strauss, está no fato de que os “grandes viajantes” realizavam
a construção de relatos que via o outro, no entanto, não compreen-
dia o outro. Uma representação realizada por personagens desloca-
dos da realidade local, que possuíam uma clara e preponderante carga
identitária e que não se enxergava na diferença, contribuindo, dessa
maneira, para o aumento do abismo que havia entre os diversos tipos
culos XVII e XVIII. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 15, p. 8, 2000.
20 Cf. Carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei D. Manuel.
21 Cf. LEVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Editora Anhembi Limitada,
1957.
32
e estágios de civilização. Confronto que chegou ao seu ápice no sé-
culo XIX, principalmente após a chegada da Família Real que impôs
ao Brasil, um indiscutível processo civilizador embasado em moldes
europeizantes.
Apesar de todas as construções, algumas vezes idílicas, outras
depreciadoras sobre o Brasil, o fato é que, inegavelmente, os viajan-
tes estrangeiros nos deixaram relatos fundamentais sobre parte do
cotidiano brasileiro nos séculos passados. Uma visão de nós a partir
do “outro”, ou nos termos de Norbert Elias, do outsider. Uma histó-
ria reveladora e em alguns momentos perturbadora, no entanto, uma
história que nos interessa, nos diz respeito, e acima de tudo, que nos
pertence e que auxilia na compreensão da formação cultural e do povo
brasileiro, afinal, como já dito por José Honório Rodrigues,
22 RODRIGUES, José Honório. Viajantes do Brasil no século XVII. Revista de História,
São Paulo, n. 37, p. 155, 1959.
33
(2013), Hugo Wernicke (2013) e Johann Jakob Von Tschudi (2004)
tiveram como alvo de descrição as imigrações estrangeiras e a ins-
talação de diversos povos e etnias em solo capixaba. Até mesmo o
Imperador D. Pedro II produziu uma vasta literatura de viagem,
tendo o diário que descreve sua passagem pela província do Es-
pírito Santo, no ano de 1860, transcrito e editado por Levy Rocha
(2008), e a atualidade da leitura nos trouxe a obra de Cilmar Fran-
ceschetto, Victor Frond – 1860 (2015).
A atualidade dos resgates das literaturas de viagem torna
possível o ressurgimento de grandes obras publicadas sob essa ban-
deira que, de maneira significativa, contribuíram para a compreen-
são do Brasil, ou melhor dizendo, dos Brasis, nesse caso em parti-
cular, as obras do naturalista e etnólogo Prince Alexander Philipp
Maximilian Zu Wied-Neuwied, conhecido como Príncipe Maximi-
liano de Wied-Neuwied, Viagem ao Brasil (1820), e do botânico e
naturalista Auguste de Saint-Hilaire, Segunda Viagem ao interior do
Brasil: Espírito Santo (1833), que foram produzidas a partir de suas
respectivas visitas em 1817 e 1818, e que hoje, encontram-se às véspe-
ras de comemorar 200 anos, por isso merecem significativa atenção.
No caso do Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied sua
viagem teve a duração de dois anos (1815 - 1817) e percorreu as capi-
tanias do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia.
Possivelmente Maximiliano tenha sido o primeiro viajante
estrangeiro, com intenções voltadas à pesquisa científica e autoriza-
do pela coroa portuguesa a sistematizar e publicar um estudo sobre
o Brasil, visto que os relatos descritivos que o antecederam eram
embasados em diários de viagens e impressões, geralmente superfi-
ciais, que seus autores possuíam de nossa terra e nossa gente.
Considerado como um dos pais fundadores dos estudos et-
nográficos no Brasil, Maximiniano de Wied-Neuwied teve conta-
to com diversas etnias indígenas ao longo de seu trajeto, entre elas
Botocudos, Coroados, Coropós, Capoxo, Cumanaxo, Guerén, Ka-
makã, Maxakali, Maconi, Malali, Menién, Panhame, Puris, e Pata-
34
xós, o que lhe permitiu uma análise complexa e mais profunda das
populações nativas do Brasil.
Segundo Igor de Lima e Silva “o trajeto executado pelo via-
jante, do Rio de Janeiro até a Bahia, não coincidiu com o de nenhu-
ma outra expedição estrangeira”,23 o que faz com que a análise de
Maximiliano caracterize-se como de grande relevância, tanto para
a História Natural, como para diversas outras ciências, tais como a
botânica, biologia e ornitologia, visto o rico descritivo de uma área
hoje ameaçada, que é a Mata Atlântica, além da antropologia, da
história, e da geografia.
Francisco Adolpho Varnhagen afirma que:
23 SILVA, Igor de Lima. Viagem ao Brasil: produção e circulação entre o público euro-
peu do século XIX. Clio: Revista de pesquisa Histórica, Recife, n. 32, p. 176 - 195, 2014.
24 VARNHAGEN, Francisco Adolpho. História Geral do Brazil: antes da sua separação
e independência de Portugal. 2. ed. rev. T. II. Rio de Janeiro: E & H. Laemmert, 1877, 2
v, p. 1178.
35
visitaram o Brasil na segunda metade do século XIX, a exemplo de
Paul Ehrenreich e Teresa da Baviera, além de colocar “em dúvida a
prática da antropofagia tão fortemente imposta às populações indí-
genas do Brasil”.25
Entretanto, a obra Viagem ao Brasil não ficou restrita aos seus pa-
res, pelo contrário, a lista de compradores era extensa e diversifica-
da, entre os solicitantes estavam o imperador da Áustria, os reis da
Baviera, Dinamarca, membros da família do Czar, além de socie-
dades científicas e bibliotecas.26
25 SILVA, Igor de Lima. Viagem ao Brasil ... Op. cit., p. 184.
26 Ibidem, p. 186.
36
Já Auguste de Saint-Hilaire, nomeado como “notável ami-
go do Brasil” por Varnhagem, possivelmente foi, entre os inúmeros
viajantes estrangeiros, o que mais permaneceu e viajou pelo Brasil.
Com uma missão estrangeira que durou cerca de seis anos, Saint-
-Hilaire esteve presente nas capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo,
Minas Gerais, Espírito Santo, Goiás, Santa Catarina, Rio Grande do
Sul, chegando a alcançar até mesmo a Cisplatina. Essa vasta experi-
ência adquirida e vivida fez com que o mesmo registrasse diversos
aspectos da vida cotidiana da gente da terra, versando sobre econo-
mia, estatística, costumes, política, biografia, artes, geografia e his-
tória, o que acabou por ser extrapolado na gigantesca obra Voyage
dans le district des Diamans et sur le littoral du Brésil (1833 - 2 v.),
além desse
37
hoje permite a imersão do leitor e, principalmente do historiador,
no cotidiano daquele Espírito Santo do século XIX, servindo quase
como uma máquina do tempo, descrevendo, com o máximo de de-
talhes, que era característico dos autores, um passado belicoso àque-
les que se arriscavam em demasiado, para que hoje fosse possível
realizarmos uma boa viagem!
SAINT-HILAIRE, Auguste. Voyage dans le District des Diamans e sur le littoral du Brésil.
Paris: Librairie Gide, 1833. Capítulo VII, a Capitania do Espírito Santo.
38
Capítulo II
28 OBERACKER, Carlos. Viajantes, naturalistas e artistas estrangeiros. Op. cit., p. 119.
29 WILCKEN, Patrick. Império à deriva: a corte portuguesa no Rio de Janeiro (1808 –
1821). Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, p. 102.
39
nheiros e pajens – juntou-se à nata ilustre da sociedade lisboeta:
conselheiros de estado, assessores militares, padres, juízes e advo-
gados, juntamente com suas famílias extensas.30
Retratos de uma fuga. Embarque da Família Real Portuguesa no cais de Belém, 29 de novem-
bro de 1807. Óleo sobre tela de Henry L’Evêque, c. 1811.
40
O embarque do Príncipe Regente D. João VI para o Brasil. Gravura de Giuseppe Gianni, c.
1830, Acervo da Biblioteca Nacional – Rio de Janeiro Brasil.
31 Vale ressaltar que a proposta de transposição da Corte Portuguesa para as terras
coloniais brasileiras não é algo que surgiu simplesmente com as invasões napoleônicas.
A proposta fora feita em várias ocasiões onde a coroa e sua herança foram postas sob
ameaça. Algumas pesquisas apontam que a primeira vez que essa proposta surgiu foi no
ano de 1580, durante a crise de sucessão de D. Antônio. Sobre o assunto Cf. PEDREIRA,
Jorge; COSTA, Fernando Dores. Dom João VI. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006.
41
Chegada da Família Real Portuguesa ao Rio de Janeiro em 7 de Março de 1808. Óleo sobre
tela de Geoffrey Hunt, 1999, Acervo particular.
42
quase todos réplicas de instituições portuguesas, trazendo apenas
a seus nomes a expressão “do Brasil”. 32
43
numa área próxima a uma grande lagoa, aos pés da montanha do
Corcovado, a vários quilômetros do centro da cidade.35
Algumas das mudanças estruturais causadas pela chegada da Família Real ao Rio de Janeiro.
Aqueduto. Arcos da Carioca com a Rua Matacavalos. Óleo sobre tela de Richard Bate, c. 1820.
44
corporados por muitos estrangeiros, e até mesmo pelos portugue-
ses exilados, como é o caso do arquivista real Luiz Marrocos, que
em carta a seu pai, em Lisboa, relata que “o Brasil era uma terra
de sevandijas, com uma população indigníssima, soberba, vaidosa,
libertina”.36
No entanto, o fato é que o isolamento da colônia causado
pelo protecionismo extremo do governo português levou o Brasil ao
desenvolvimento de práticas e culturas próprias, que distanciou a
realidade da colônia cada vez mais de sua metrópole, e a ausência de
elementos culturais múltiplos e diversos fez com que a elite colonial
se tornasse bruta e desalinhada com o que se esperava de uma classe
dirigente.
Um exemplo claro desse abismo cultural e de formação so-
cial criado pelo pacto colonial português está na ausência de um
sistema de ensino, que aos moldes europeus, formasse a classe di-
rigente. Ao contrário das colônias hispânicas na América, o Brasil
não possuiu, até o século XIX, uma universidade sequer. Sabe-se que
45
turezas tornou impossível a manutenção de um isolamento apoiado
principalmente no fechamento dos portos e na negação do acesso
estrangeiro ao território brasileiro. O decreto de abertura dos portos
às nações amigas mudou em definitivo o cenário colonial, trazendo,
como pode ser percebido por meio do fluxo de embarcações aden-
tradas nos portos brasileiros (Tabela 1), uma torrente de imigrantes
provenientes dos múltiplos reinos da península italiana e da Con-
federação Germânica, além de ingleses, americanos, espanhóis, e,
após o término da guerra, uma onda de franceses, todos buscando
nesse “Novo Brasil” uma oportunidade e a sacies para a curiosidade
que cercava o imaginário estrangeiro sobre um território há muito
conquistado, porém, pouco conhecido.
Tabela 1: Navios entrados no Rio de Janeiro (1805 - 1810)
1805 810 -
1806 642 -
1807 777 -
1808 765 90
1809 822 83
46
o regime que a obrigara a fugir”,38 dessa forma, “no Brasil, o Rio
de Janeiro representaria o papel de Paris, assumindo a posição de
irradiador das luzes”.39
Arte, moda, comida, enfim, um novo estilo de vida tomou
conta do cenário tropical português. Enquanto produtos brutos de
origem inglesa chegavam à alfândega carioca, o requinte e o refi-
namento desembarcavam em obras de arte francesas, óperas ita-
lianas, músicos austríacos e germânicos e livros dos mais distan-
tes cantos do mundo, que se anteriormente eram proibidos, agora
inundavam as bibliotecas reais e particulares, além das diversas
livrarias que se espalharam pelas principais cidades brasileiras.
Dessa forma percebe-se que
47
Essa mudança radical no comportamento social fez com que
os novos parâmetros culturais fossem se fortalecendo e ampliando.
Por toda a cidade, ateliês, herbários, livrarias, cafés e até mesmo um
teatro para mil pessoas surgiram, “afinal, desde a Versalhes de Luis
XIV (1661 – 1715), as atividades do espírito tinham passado a integrar
o modelo de corte que se difundira pela Europa”.42 No entanto,
42 NEVES, Lúcia Maria Bastos P.; MACHADO, Humberto Fernandes. O Império do Bra-
sil... Op. cit., p. 47.
43 Ibidem.
48
Com a chegada das Missões Francesas diversas construções começaram a tomar forma
buscando dar suporte a esse novo espírito cultural, entre elas a Escola Real de Ciências, Artes
e Ofícios. Construção incompleta da Academia de Pintura. Thomas Ender, 1817.
49
ocasião do casamento da referida com Pedro de Alcântara (futuro
D. Pedro I, Imperador do Brasil).
Essa constante e marcante presença dos viajantes e dos
membros das missões científicas evidenciou o fato de que “nenhum
país do novo mundo era, nessa época, melhor nem tão bem estuda-
do quanto o Brasil”,44 sendo que o pioneirismo dessa sistematização
deve-se a Maximiliano de Wied-Neuwied, pois, “foi, sem dúvida, o
primeiro grande cientista que não se restringiu a colecionar mate-
rial, mas que conseguiu sistematizá-lo e publicá-lo”.45
Acompanhados, geralmente por um pequeno grupo, hora
composto por negros, índios, tropeiros, hora somados a soldados,
caçadores, ilustradores e artistas, os viajantes cortaram o Brasil
em diversas direções, tendo como ponto de partida, em sua grande
maioria, a cidade do Rio de Janeiro.
Tomados pelo espírito enciclopedista dos iluministas dos sé-
culos XVII e XVIII, que possuíam a proposta de apreensão totalizan-
te do conhecimento, característica marcante nas ciências modernas
e extrapolada na Enciclopédia de Diderot, os “cientistas viajantes”
buscaram apreender o maior número possível de informações sobre
aspectos relevantes da “exótica” natureza brasileira.
A catalogação, ilustração, descrição e armazenagem de
exemplares da fauna e da flora tornaram-se marcantes nessas ex-
pedições. Sobre os lombos de tropas de muares tornou-se possível
transportar algumas dezenas de caixas com as mais diversas espé-
cies do nosso ambiente nativo.
À medida que as viagens foram ganhando um maior núme-
ro de adeptos, maior passou a ser o número de mecenas que abra-
çaram esse novo modelo de se produzir ciência. Até mesmo países
estrangeiros passaram a fomentar e a patrocinar tais empresas com
50
Vista do Rio de Janeiro em 1817. Vista do Convento de Santo Antônio, do lado oposta à
entrada do porto, Thomas Ender, 1817.
46 RATTES, Cecília Luttembarck de Oliveira Lima. Ciência e arte: os viajantes estran-
geiros do século XIX. Disponível em: http://principo.org/cincia-e-arte-os-viajantes-
-estrangeiros-do-sculo-xix-ceclia-lu.html, acesso em: 05.07.2017.
51
metodologia de pesquisa devido “ao restrito tempo que dispunha
o viajante para observar, descrever e classificar todo o mundo re-
cém descoberto”,47 haja visto que, segundo Georges Cuvier, “um
pesquisador viajante, ao percorrer grandes distâncias, não podia
deter-se a tudo que via e o impressionava, tamanha a quantida-
de de objetos e exotismo com o qual se deparava ao longo de sua
trajetória”,48 fato que não ocorre com aqueles que se dedicam à
chamada pesquisa de gabinete.
O fato é que o alargamento desses horizontes fez com que as
viagens passassem a se tornar primordial e até mesmo central nesse
processo de crescimento das, hoje denominadas, ciências naturais,
e no caso brasileiro
47 RATTES, Cecília Luttembarck de Oliveira Lima. Ciência e arte... Op. cit.
48 Ibidem.
49 FRANÇA apud SARNAGLIA, Marcela. O Brasil sob o olhar estrangeiro: um estudo da
obra Dois anos no Brasil de Auguste François Biard. In: RANGEL, Marcelo de Mello; PE-
REIRA, Mateus Henrique de Faria; ARAÚJO, Valdei Lopes de (org.). Caderno de resumos
& Anais do 6º Seminário Brasileiro de História da Historiografia: o giro linguístico e a
historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EDUFOP, 2012, p. 2, grifos do autor.
52
Terra de lugares inóspitos e morada dos famigerados boto-
cudos, o Espírito Santo, mesmo depois de 400 anos, ainda era uma
incógnita inserida entre as três maiores províncias brasileiras da-
quele período e marcada por um rio, que apesar de receber o nome
de Doce, parecia muito mais uma ferida no orgulho português, que
por um longo tempo sangrou, com o sangue daqueles que se aven-
turaram em seu leito, e que não cicatriza. Uma pequena e misteriosa
Província que Maximiliano de Wied-Neuwied e Auguste Saint-Hi-
laire ousaram desafiar.
53
Retrato. Príncipe Maximiliano de
Wied-Neuwied e o Índio botocudo Guack.
54
Capítulo III
Maximiliano de Wied-Neuwied
50 VERNE, Júlio. Os exploradores do século XIX. Trad. Manuel Joaquim Pinheiro Cha-
gas. [S.l]: Entaur Editions, 2017, p. 6.
55
Segundo Christina R. da Costa a formação neo-humanística
oferecida por essa instituição, que tinha em vista a educação como
elemento de formação pleno e harmonioso, foi de fundamental im-
portância para o desenvolvimento do tipo de relato que mais tarde
seria construído por Maximiliano, pois
54 SALLAS, Ana Luisa Fayet. Narrativas e imagens dos viajantes alemães no Brasil do
século XIX: a construção do imaginário sobre os povos indígenas, a história e a nação.
História, Ciência, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, p. 417, 2010.
55 Vale a pena frisar que várias outras obras foram publicadas nesse mesmo período,
porém com destaque a assuntos alheios aos propostos por Maximiliano, a exemplo da
mineralogia, política, economia e sociedade, produzidas em sua grande maioria por
ingleses, que foram os primeiros estrangeiros a se estabelecerem no Brasil.
56 PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. XIII.
58
e política, Maximiliano destacou-se pelo seu eixo antropológico,
fazendo com que fosse nomeado como o “fundador” dos estudos
etnográficos no Brasil.
Nessa obra, Maximiliano dedica-se a relatar suas incursões
às províncias que compreendem ao espaço geográfico a nordeste da
capital do Reino, pois segundo o próprio viajante “grande parte, era
inteiramente desconhecida ou que, até então, não tinham sido abso-
lutamente descritas [caso do Espírito Santo]”.57
Dado interessante a ressaltar é o fato do referido viajante
acreditar, e até mesmo declarar, que o território compreendido entre
o Rio de Janeiro e a Baía de Todos os Santos, trecho que corresponde
ao território capixaba, ser desabitado, ou nas palavras do explorador,
“ainda não ocupadas por colonos portugueses”.58 Isso vem ressaltar
o status incipiente, ou até mesmo nulo, que possuía a Província do
Espírito Santo naquele período.
De acordo com Maximiliano,
59
de Maximiliano ao Brasil, também estavam por aqui os naturalis-
tas Spix e Martius,60 os artistas Debret e os irmãos Taunay,61 além
dos integrantes das expedições científicas que acompanharam a Ar-
quiduquesa Leopoldina por ocasião de seu casamento com Príncipe
Pedro I. Definitivamente um período marcado pela efervescência
estrangeira, contagiada pela curiosidade que cercava o Brasil, e pela
significativa expansão dos elementos culturais e sociais que tomaram
conta das maiores províncias, com destaque para o Rio de Janeiro.
Maximiliano se propôs a visitar áreas até então não descritas
por outros viajantes, que em sua grande maioria dedicaram-se a re-
latar e registrar o cotidiano da cidade do Rio de Janeiro e seus entor-
nos, além da região das cobiçadas minas. Por esse motivo a escolha
do Espírito Santo, do sudeste de Minas Gerais e do sertão da Bahia.
Superado os primeiros obstáculos, sejam de caráter burocrá-
tico, material ou humano,62 Maximiliano inicia o seu conjunto de via-
gens, que na Província do Rio de Janeiro contemplou a cidade do Rio
de Janeiro, São Cristóvão, Praia Grande, São Gonçalo, Maricá, Gua-
rapina, Ponta Negra, Saquarema, Araruama, São Pedro dos Índios
(hoje São Pedro da Aldeia),63 Cabo Frio, Campos Novos, Vila de São
60 Cf. LISBOA, Karen Macknow. A nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civili-
zação na Viagem pelo Brasil (1817 - 1820). São Paulo: Hucitec: FAPESP: 1997.
61 Artistas que chegaram ao Brasil compondo a primeira Missão Artística Francesa
logo após o fim das guerras Napoleônicas em 1815.
62 Cf. PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 8.
63 Apesar de não ser o seu primeiro relato sobre os índios - Maximiliano já havia
encontrado os "nativos da terra" em São Lourenço -, é a primeira vez que o aspecto ca-
racterizado como "civilizador" aflora nesse viajante. Nesse sentido Maximiliano deixa
o seguinte relato: "devo também observar que parte das acusações sobre a rudeza e o
frequente mau caráter desses índios se devem descontar do tratamento errado e opres-
sivo que outrora lhes dispensaram os europeus, os quais, muitas vezes, nem reconhe-
ciam neles criaturas humanas, associando, aos apelidos de caboclos e tapuias, à ideia de
animais, criados apenas para serem maltratados e tiranizados. Em linhas gerais, porém,
deve-se reconhecer que Koster lhes descreve corretamente o caráter; porque ainda mos-
tram invariável tendência para a vida indolente e desregrada. Gostam de bebidas fortes
60
João, Rio das Ostras, Macaé, Rio Bragança, Vila de São Salvador, São
Fidelis; já na Bahia, registrou passagem por Vila Viçosa, Caravelas,
Alcobaça, Mucuri, Prado, Comechatiba, Rio do Frade, Trancoso, Por-
to Seguro, Santa Cruz, Mogiquiçaba, Belmonte, Quartel dos Arcos,
Quartel dos Saltos, Rio Pardo, Canavieiras, Ilhéus, grande parte do
sertão baiano e Salvador; na Capitania de Minas Gerais discorre sobre
o sertão mineiro que faz divisa com a Capitania da Bahia; no Espíri-
to Santo relatou sua passagem por Quartel de Barreiras, Itapemirim,
Benevente, Guarapari, Vila Velha, Vitória, Barra do Jucu, Araçatiba,
Nova Almeida, Barra do Riacho, Rio Doce, Linhares e São Mateus.
Dentro desse imenso caminho percorrido por esse viajante,
ele teve contato com os índios Tupinanbás em São Lourenço, Purís
e Coroados em São Fidelis, Machacalis do Rio Pardo e Camacãs ou
Meniens em Minas Gerais, porém, nenhum outro despertou maior
fascínio e curiosidade, pode-se dizer até mesmo espanto, do que
aqueles que o governo português vinha há séculos tentando paci-
ficar em vão, e que naquele momento estava em guerra claramente
declarada: os Botocudos da região do Rio Mucuri. Esse povo rendeu
um capítulo específico na obra de Maximiliano, intitulado Algumas
palavras sobre os Botocudos.64 É a partir da confecção e reflexão des-
sa parte específica da obra que, segundo Christina R. da Costa,
e detestam o trabalho, não tem firmeza em suas palavras e são poucos os exemplos, entre
eles, de caracteres dignos de nota.[...]Contudo, à proporção que se fizerem mais civiliza-
dos, a originalidade desse povo e as últimas sobrevivências dos antigos costumes se irão
desvanecendo, de modo que deles não se encontrará futuramente nenhum vestígio e só
serão conhecidos através das inscrições de Hans Staden e de Léry". PHILIPP, Maximilian
Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 63-65, grifo nosso.
64 Cf. PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 283 - 326.
61
Maximiliano se vê diante do desafio não só de mudar seu próprio
discurso, mas também de possivelmente sugerir novos meios para
a produção de conhecimento científico sobre os indígenas; tarefa
que os futuros antropólogos iriam se encarregar.65
A viagem ao Brasil
62
Mapa de expedição Arrowsmith utilizado por Maximiliano para seguir pelo território
brasileiro. MAXIMILIAN ZU WIED-NEUWIED, Príncipe (1782-1867). Reise nach Brasilien in
den Jahren 1815 bis 1817. Frankfurt: Heinrich Ludwig Bronner, 1820- [1821]. Disponível em:
https://www.aradernyc.com/products/maximilian-zu-wied-neuwied-prince-1782-1867-reise-
nach-brasilien-in-den-jahren-1815-bis-1817-frankfurt-heinrich-ludwig-bronner-1820-1822.
Acesso: 18.09.2017.
63
do em sua bagagem todo um aparato técnico, necessário à emprei-
tada proposta, como também, todo um horizonte de expectativas68
em torno de um futuro excitante, porém ao mesmo tempo nebuloso.
Partindo da Europa em um período correspondente a prima-
vera, nosso viajante, apesar de toda a expectativa de mar calmo e tran-
quilo, encontra em sua partida uma grande resistência do oceano, o que
acaba por lhe “prender” em terras inglesas por vários dias.
Rompido os primeiros desafios, finalmente a jornada tem
seu início, e Maximiliano se encontra a caminho do Brasil.
Narrando, com uma riqueza de detalhes que lhe é caracte-
rístico, os diversos acontecimentos diários, Maximiliano contribui
sistematicamente para a compreensão do dia a dia no, e sob, os con-
veses das diversas embarcações que se aventuraram ao longo de sé-
culos na travessia do Atlântico em direção ao “Novo Mundo”.
Chegando à costa do Brasil em fins do mês de junho, o navio
em que viajava Maximiliano conheceu a violência das tempestades
tropicais. Tendo sido retido pelo mau tempo em 27 de junho no li-
toral de Pernambuco e forçado a se afastar ligeiramente da costa
devido aos fortes ventos, somente em 8 de julho é que novamente
terá contato com a terra, já na Baía de Todos os Santos.
Finalmente, após vários dias sob forte tempestade, o tem-
po firme volta a fazer companhia e sob ventos favoráveis o Janus
adentra a Baía do Rio de Janeiro em 16 de julho de 1815. No dia 17, já
ancorado e às vésperas de seu desembarque, Maximiliano deixa o
registro de sua primeira visão do Rio de Janeiro:
68 Segundo Koselleck, experiência e expectativa são duas categorias adequadas para
nos ocuparmos com o tempo histórico, já que elas entrelaçam passado e futuro, pois
enriquecidas em seu conteúdo, elas dirigem ações concretas no movimento social e po-
lítico. KOSELLECK, Reinhart. Espaço de experiência e horizonte de expectativa: duas
categorias históricas. In.: KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semân-
tica dos tempos históricos. Trad. Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Rio de
Janeiro: Contraponto/PUC Rio, 2006, p. 308.
64
Deste ponto se avista grande parte da baía do Rio, a qual é cercada
de altas montanhas, entre as quais a serra dos Órgãos se destaca
por seus picos, semelhantes aos Alpes Suíços. Muitas ilhas lindas
se acham espalhadas pelo porto, o mais belo e seguro do Novo
Mundo, e cuja entrada é defendida de ambos os lados por fortes
baterias. De onde nos encontrávamos, via-se, em frente, a cidade
do Rio de Janeiro, construída sobre várias colinas à beira-mar. Ofe-
rece ela uma bela perspectiva, com suas igrejas e conventos situa-
dos no alto. O fundo do cenário por trás da cidade é constituído
por montanhas de forma cônica, arredondadas em cima e cobertas
de florestas; embelezam extraordinariamente a paisagem, cujo pri-
meiro plano é animado por grande quantidade de navios de todas
as nacionalidades. É ai que reinam a atividade e a vida; canoas e
chalupas passam em contínuo movimento, e as pequenas embar-
cações de portos vizinhos enchem os intervalos entre os grandes
navios das nações da Europa.69
65
por Wilhelm C. G. von Feldner à São Lourenço,70 o príncipe conheceu
os remanescentes dos Tupinambás, o que o levou a profundas refle-
xões sobre o vocabulário e ações dos portugueses frente a tais povos.71
Após pequena estadia preparou-se para sua marcha. Segun-
do Maximiliano,
70 PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 27 et. seq.
71 Ibidem, p. 28 et. seq.
72 Ibidem, p. 33.
73 Ibidem, p. 32.
74 Ibidem.
66
rico Sellow 75 e George Guilherme Freyreiss76, que “conheciam muito
bem os costumes e a língua da região”,77 além desses, sua comitiva
era composta por 10 homens - portugueses, escravos e índios - e 16
muares, que transportavam todo o aparato técnico, mantimentos e
espécies coletadas ao longo do caminho.
Maximiliano parte da cidade do Rio de Janeiro, percorren-
do e relatando diversas cidades e vilas em território carioca, como
citado anteriormente, porém, como a intenção de nos dedicarmos
ao caminho percorrido no Espírito Santo, vamos deixar essa análise
para estudos futuros. Dessa maneira podemos iniciar a narrativa
dizendo que partindo da fazenda Muribeca, às margens do Itaba-
puana, ele adentrou em terras capixabas entre os dias 02 e 05 de
novembro de 1815, iniciando sua jornada em nossa companhia.
75 Naturalista alemão, natural de Potsdan, com data de chegada ao Brasil registrada
no ano de 1814. Com muitas de suas expedições iniciais patrocinadas pelo Barão de
Langsdorff, receberá mais tarde o título de Naturalista Subvencionado concedido por
D. João VI.
76 Zoólogo, ornitologista e taxidermista. Partindo de São Petersburgo, veio para o
Brasil em 1813 para trabalhar sob os auspícios do Barão de Langsdorff. Assim como
Sellow receberá o título de Naturalista Subvencionado.
77 PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 33.
67
Primeiros passos em terras capixabas. De Itabapoana à Itapemirim em 2 e 3 de nov. 1815.
Disponível em: http://www.folhadomeio.com.br/fma_nova/noticia.php?id=4144. Acesso.
18.09.2017.
Apesar de seu contato anterior com os Puris, Maximiliano
optou por cruzar o mais rápido possível a região do extremo sul do
território capixaba, haja vista que nesse trecho, que compreende de
seis a oito léguas,78 “os Puris sempre se têm mostrado hostis”,79 o que
tornou “conveniente estabelecer um posto militar chamado Quartel
ou Destacamento das Barreiras”.80
68
Sob a constante pressão de possíveis ataques aos índios
Puris, o comboio em que seguia Maximiliano finalmente chega
à foz do rio Itapemirim e à vila de Itapemirim sem maiores
problemas, excetuando-se os ocasionados pelas fortes chuvas às
quais estiveram expostos durante a estadia no posto militar do
Destacamento de Barreiras. Sobre Itapemirim o príncipe deixa a
seguinte descrição:
69
Após a estadia de alguns dias em Itapemirim, Maximilia-
no segue sua jornada rumo à região Norte da Capitania do Espírito
Santo.87 Passando pela fazenda Agá, homônima à montanha que a
cerca, o príncipe segue em direção a Piúma, onde o fator que mais
lhe chamou a atenção foi “uma ponte de madeira de trezentos passos
de comprimento, assentada no ponto de maior largura do riacho,
verdadeira raridade nessas paragens”.88
Seguindo viagem chega a Iriri, que chama a atenção pela di-
versidade da fauna, no entanto, sem muito se ater à região segue em
direção à vila de Benevente,89 onde temos
70
Rio Benevente. Gravura de Maximiliano Wied-Neuwied.
71
de pequeno bosque, formam uma aldeia dispersa, cujos habitantes,
descendentes de negros portugueses, receberam-nos bem”,98 de lá,
“vimos, numa montanha distante, o convento de Nossa Senhora da
Penha, perto da vila de Espírito Santo, para chegarmos à qual tínha-
mos de viajar cinco léguas”.99
Transposto o percurso entre Ponta da Fruta e a Vila do Es-
pírito Santo, finalmente a comitiva de Maximiliano atinge Vila Ve-
lha, uma “pequena e miserável vila aberta, construída quase toda
numa praça. Numa das extremidades fica a igreja, e na outra, a Casa
da Câmara (edifício real, de Câmara Municipal)”.100
Mesmo espantado com o paupérrimo estado em que se en-
contra essa vila, Maximiliano não deixa de registrar sua breve visita
ao Convento de Nossa Senhora da Penha, dizendo:
72
é bem penoso subir aí a íngreme elevação para gozar o indescrití-
vel e amplo panorama que daí se descortina; domina-se a imensa
superfície oceânica, e, do lado da terra, veem-se belas cadeias de
montanhas, com vários picos e vales intermediários, donde surge
pitorescamente o largo rio.102
73
alguns dos quais de bronze. A cidade está edificada um tanto de-
sigualmente, sobre colinas aprazíveis, e o rio, que lhe passa atrás,
corre entre altas encostas, em parte rochosas e em muitos lugares
nuas e cobertas de liquens. A bela superfície do grande rio é semea-
da de numerosas ilhas verdejantes, e a vista, onde quer que lhe siga
o curso através da região, encontra sempre um pouso ameno em
altaneiras e fragrantes montanhas vestidas pela mataria.105
Perspectiva da Vila de Vitória, 1805, pelo Cap. José Antônio Caldas, Engenheiro Militar e lente
da Aula Régia. Copiada por José Castanheda Vasconcellos Pimentel. Fonte: Arquivo Histórico
do Exército.
74
Vista da cidade de Vitória a partir de Capuaba. Gravura do acervo Solar Monjardim do
século XIX. c. 1800. Fonte: Elmo Elton.
107 Tendo em vista que nosso viajante não informa as datas dos acontecimentos,
supõe-se que o mesmo encontrava-se na Barra da Jucu entre os meses de Dezembro de
1815 e Janeiro de 1816.
108 PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 146. Os imigrantes
75
Ocupação de Viana por colonos açorianos. Gravura de André Carloni. Fonte: MARIANO, Fa-
biene Passamani. Patrimônio e memória: O Divino em Viana do Espírito Santo. Dissertação
(Mestrado em Artes) 146 f. Programa de Pós Graduação em Artes, Universidade Federal do
Espírito Santo, Vitória, 2012, p. 55.
76
tinha como principal objetivo ligar Vila Rica, em Minas Gerais, à
Vila de Vitória, no intuito de escoar parte da produção mineira pelo
porto de Vitória, Segundo Maximiliano,
77
Estrada São Pedro de Alcântara também conhecida como Estrada do Rubim. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico do Espírto Santo, Vitória, n. 3, 1922.
112 Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995.
113 PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 148.
78
poucos brancos entre eles; queixam-se logo ao forasteiro da po-
breza e indigência, que só podem provir da preguiça e da falta
de iniciativa, porque o solo é fértil. Pobres demais para comprar
escravos, e demasiado indolentes para o trabalho, preferem mor-
rer de fome.114
Ao fundo, sobre pilares de concreto e madeira, está a ponte da passagem citada por Maximil-
iano. Fonte: Acervo da Biblioteca Central UFES.
114 Ibidem, p. 149. Essa visão de indolente, preguiçoso e incapaz é a que perdurará
sobre o brasileiro nos séculos adiante, ao ponto de no início do século XX surgirem
correntes que buscavam embranquecer e sanear o povo brasileiro.
115 Benevente e Nova Almeida foram os principais aldeamentos indígenas no Espíri-
to Santo durante a Colônia.
79
Depois de quatro léguas de viagem, saímos da selva e contempla-
mos, à frente, numa eminência sobranceira ao mar, a Vila Nova
de Almeida. [...] Vila Nova é uma grande aldeia de índios civili-
zados fundada por jesuítas: possui uma grande igreja de pedra e
contém, em todo o distrito, de 9 léguas de circunferência, cerca
de 1200 almas. Os moradores da vila são principalmente índios,
havendo também portugueses e negros. [...] no convento dos je-
suítas, que serve atualmente de residência ao padre, ainda existem
algumas velhas obras dessa ordem, o que é uma raridade, porque
as bibliotecas de todos os outros conventos, deixados ao abandono,
se destruíram ou dispersaram, Aí, outrora os jesuítas ensinaram
na língua geral; diz-se que a capela deles, dos Reis Magos, foi mui-
to bonita. O lugar é morto, e não parece populoso; também se vê
muita pobreza.116
80
Igreja dos Reis Magos. Antigo convento jesuítico localizado em Nova Almeida. Gravura de
Wagner Veiga. Disponível em: http://www.wagnerveiga.com.br/imagens.tml#prettyPhoto/19/
117 Atualmente rio Reis Magos e que deságua no litoral de Nova Almeida, Serra.
118 PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 147.
119 Proximidades do que hoje é a Vila de Santa Cruz, em Aracruz.
120 PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 152.
121 Francisco Manuel da Cunha. "desde o rio Doce até o Itabapoana a estrada é sem-
pre pela costa do mar, e raras vezes dela se aparta" (Cunha apud OLIVEIRA, José Teixeira
de. História do Estado do Espírito Santo. 3. ed, Vitória: Secult-ES, 2008, p. 272.
122 Hoje Barra do Riacho.
81
Típico aldeamento indígena do séc XIX. Aldeia dos Tapuias. J. M. Rugendas.
125 Ibidem.
126 Hoje Barra do Riacho - Aracruz.
127 A localidade de Comboios abriga hoje a Reserva Biológica e Marinha, e está loca-
lizada entre os municípios de Aracruz e Linhares, tendo Regência como base de prote-
ção e preservação das tartarugas marinhas.
128 PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 155.
129 Rio Reno. Rio europeu que corta a Suíça, Áustria, Liechtenstein, Alemanha,
França, Países Baixos e deságua no Mar do Norte.
130 PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 156.
83
guerra com os Botocudos na floresta”,131 somente foi possível seguir
viagem rio acima, devido ao mau tempo que assolou o litoral da
capitania no dia 25 de dezembro de 1815, na manhã do dia seguinte.
A exuberância nativa do local contagiou Maximiliano. A pre-
sença de grande variedade da flora brasileira, bem como da fauna, ainda
em seu estado nativo, não passou despercebido, surpreendendo o viajan-
te, que até aquele momento havia seguido a maior parte do trajeto por
trilhas e vilas, raramente se aventurando a distâncias como essas.
A jornada rio acima seguiu tranquila e sem qualquer tipo de
incidente. Pernoitaram na ilha Gambim, seguindo, com o alvorecer,
viagem até Linhares, que
84
a fim de proteger toda essa colônia dos ataques e crueldades dos
Botocudos, estabeleceram-se, em diferentes direções, oito postos
no interior das florestas, os quais ao mesmo tempo se destinam
a proteger as ligações comerciais com Minas Gerais, ultimamente
tentadas pelo rio acima.133
85
Do rio Doce a São Mateus, pelo litoral, é um caminho de
aproximadamente vinte léguas, e são necessários cerca de três dias,
talvez quatro. Segundo Maximiliano
87
aproximadamente oito léguas rio acima, ergue-se a vila de São Ma-
teus, cuja situação não deve ser muito salubre, devido aos pântanos
vizinhos. Tem cerca de 100 casas, possuindo o distrito perto de
3000 habitantes, incluindo brancos e gente de cor. Apesar de ser
uma das vilas mais novas da região de Porto Seguro, acha-se em
situação bem próspera. Os habitantes cultivam grande quantidade
de mandioca, exportando, anualmente, 60.000 alqueires de farinha;
bem como toras de madeira provenientes das florestas vizinhas.138
88
diversos povos que ocupavam a região. Nesse trecho a presença dos
Botocudos, que se encontram espalhados desde as minas de Castelo
e concentrados às margens do rio Doce, já é bem reduzida. Nessa
parte é possível encontrar os Maconis, os Malalis, os Capuchos, os
Cumanachós, os Machacalis e os Panhamis, sendo que essas quatro
últimas etnias “se aliaram com os Patachos, para que assim unidos
possam fazer frente aos Botocudos, mais numerosos”.140
Mesmo com todos esses “perigos” que o cercavam, apesar
de andar em permanente estado de alerta e atenção, estando sua co-
mitiva sempre armada, nenhum contato mais inesperado aconteceu
desde sua partida no Rio de Janeiro.
Durante todo o trajeto da viagem, Maximiliano teve pou-
cos e ocasionais contatos com os tão desejados índios, sendo alguns
Tupiniquins, ainda no Rio de janeiro, e outros Puris em São Fideles,
no entanto, nada pululava mais o seu imaginário do que o possível
contato com os “mitológicos” Botocudos do rio Doce, algo que espe-
rou ser possível em Linhares e que não se concretizou.
Apesar da imensa frustração que se seguiu pela ausência
desses possíveis acontecimentos, o contato com os Botocudos veio
acontecer já em território da comarca de Porto Seguro, na altura da
vila de Viçosa, e com os índios civilizados do aldeamento de Bel-
monte, porém o espanto superou a excitação e até mesmo a anti-
ga frustração, haja vista que Maximiliano registrou o seu primeiro
contato da seguinte maneira:
89
como asas largas sobre os ombros; os corpos bronzeados estavam
completamente sujos. [...] Muitos deles tinham tido varíola havia
pouco tempo; ainda estavam completamente cobertos de cicatrizes
e crostas, que, somando-se à grande magreza trazida pela doença,
aumentavam ainda mais a fealdade natural.141
91
Auguste Saint-Hilaire (1779-1853).
Acervo do Ministério Público de Minas Gerais.
92
Capítulo IV
Auguste de Saint-Hilaire
93
Segundo Lilia Moritz Schwarcz,
94
Tal conjunto de intelectuais vem subvencionados pelo esta-
do francês e sob o comando da missão estrangeira no Brasil, o em-
baixador Duque de Luxemburgo, que tinha como objetivo central
intermediar a solução para a questão da Guiana. Já os cientistas ti-
nham como tarefa coligir o maior número possível de informações,
dados e características do território brasileiro, para tanto, na quali-
dade de artistas e viajantes-naturalistas, deveriam coletar e enviar
para o Museu de Paris todas as correspondências de caráter cientí-
fico além de objetos e materiais coletados com vistas à realização de
pesquisas.
Entre esses membros que compunham esta missão france-
sa145 estava Augustin François Cesar Prouvençal, também conheci-
do como Auguste de Saint-Hilaire. Viajante-naturalista, membro
de família nobre, com importantes conexões no mundo acadêmico
francês, se destacou, mesmo antes da viagem ao Brasil, por suas pes-
quisas em História Natural e Botânica.
Grande intelectual em seu tempo, Saint-Hilaire possuía uma
formação humanista, sustentada pelos grandes debates dos ilumi-
nistas franceses dos séculos XVII e XVIII, além dos ingleses, holan-
dês, alemães, entre outros. O próprio Saint-Hilaire admitiu a signifi-
cativa influência desses grandes pensadores em sua formação, sendo
Goethe o principal deles.
Contemporâneo dos grandes acontecimentos revolucio-
nários do século XVIII, que abalaram as estruturas do poder e do
conservadorismo na Europa, principalmente na França, Auguste de
Saint-Hilaire conseguiu, de certa forma, sair ileso nesse processo,
haja vista que sua família conseguiu manter significativa influência
durante e depois desse processo.
dos artistas franceses na corte de D. João. São Pulo: Companhia das Letras, 2008, p. 13.
145 A primeira de uma tradição que vai se arrastar ao longo de quase dois séculos,
pois até o final do século XX o Brasil irá receber pesquisadores das sociedades científicas
francesas em missões internacionais de colaboração mútua de pesquisa.
95
Apesar de sua grande e profunda obra, que impressiona
não somente pelas detalhadas descrições a respeito dos elementos
da biodiversidade brasileira, mas também pelas gravuras geradas
a partir de suas análises, que assim como Spix e Martius, tornou
a análise botânica em verdadeira obra de arte, Auguste de Saint-
-Hilaire, segundo Lorelai Kury
146 KURY, Lorelai. Auguste de Saint-Hilaire, viajante exemplar. Intellèctus, Rio de Ja-
neiro, v. 2, n. 1, p. 1, 2003.
96
aos elementos da natureza, não que isso por si só não pudesse gerar
uma obra monumental, mas, como Maximiliano, realizou inúme-
ros apontamentos e registros que contribuíram sistematicamente
para a compreensão do modo de vida daquelas pessoas que gesta-
ram a ideia de uma nação brasileira, ou seja, um conjunto de obras
“interessantes, úteis e até atuais da primeira à última linha”.147
Durante a sua longa estadia no Brasil (1816-1822) percorreu
significativa parcela de nosso território, tendo centralizado suas via-
gens entre as atuais regiões Sudeste, Centro-Oeste e Sul, chegando
a visitar o Uruguai e as margens do Rio da Prata. Entre os estados
visitados estão: no Sudeste - Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de
Janeiro e São Paulo; Centro-Oeste - Goiás; e Sul - Santa Catarina e
Rio Grande do Sul.
Tendo sempre o Rio de Janeiro como ponto de partida e base
para a organização das diversas expedições que realizou, Auguste
de Saint-Hilaire percorreu ao todo, segundo Levy Rocha, duas mil e
quinhentas léguas em diversas viagens,148 sempre retornando ao Rio
de Janeiro antes de partir para uma nova jornada de pesquisa, fa-
zendo que juntamente com Spix e Martius, que percorreram aproxi-
madamente dez mil quilômetros, seja um dos naturalistas que mais
caminharam pelo Brasil nesse período.
Dentro desse contexto, Leonan de Azeredo Pena, na apre-
sentação da Brasiliana dedicada à tradução e divulgação da obra de
Saint-Hilaire,149 segue na mesma vertente defendida por Varnhagen,
afirmando que de todos os viajantes estrangeiros que se propuseram
97
a realizar uma obra sobre o Brasil durante o alvorecer do século XIX,
Auguste de Saint-Hilaire foi o mais gentil amigo do país, visto que
98
Saint-Hilaire. [detalhe] Voyage à Rio Grande do Sul (Brésil) - Acervo do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Sul.
99
de Santa Catarina, por C. da Costa Ferreira; Viagem às Nascentes
do Rio São Francisco e à Província de Goiaz, por Clado Ribeiro
Lessa; Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais,
por Clado Ribeiro Lessa; e Viagem à Província de São Paulo, por
Rubens Borba de Morais.
Mesmo depois de retornar à Europa em 1822, devido a um
envenenamento ocasionado por um ataque de vespa, cuja substância
ataque o sistema nervoso central, Auguste de Saint-Hilaire perma-
neceu ativo em suas produções e pesquisas, como se pode ver na
extensa lista de obras publicadas.
Com um acervo gigantesco, oriundo das constantes remes-
sas realizadas do Rio de Janeiro para o Museu de Paris, na França,
Saint-Hilaire pôde continuar e aprofundar suas análises, pois,
100
Jessieu à Academia de Ciências de Paris onde o mesmo enfatiza a
grande obra de Auguste de Saint-Hilaire destacando a persistência e
precisão apresentadas pelo citado viajante.152
Outro notável que o exalta na mesma Academia de Ciências
é Alexander von Humboldt, dizendo:
152 Cf. Ibidem, p. 5.
153 HUMBOLDT apud KURY, Lorelai. Auguste de Saint-Hilaire, viajante exemplar...
Op. cit., p. 5.
154 KURY, Lorelai. Auguste de Saint-Hilaire, viajante exemplar... Op. cit., p. 5.
101
dedica um capítulo ao viajante. Podemos ainda citar um artigo da
Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo de 1935,
redigido por Carlos Madeira, o tradutor da obra.
Mesmo sendo um expoente da botânica do século XIX, e
possuidor de farta produção, Auguste de Saint-Hilaire foi legado
ao esquecimento histórico, haja vista a incipiente produção analí-
tica em torno de seus escritos. O fato é que durante os séculos que
seguiram, os viajantes foram enquadrados ora como perfeitos es-
pelhos da realidade social que se desdobrava frente aos seus olhos
e que narraram com “profunda” riqueza de detalhes, ora como
execrados pelo misticismo da imposição de um novo processo ci-
vilizador que tinha como objetivo a transformação dos trópicos
em uma nova Europa.
A problematização de seus relatos de viagem somente vie-
ram à tona mais recentemente dada a possibilidade analítica perante
as novas ferramentas teóricas e conceituais que se desenvolveram
nas últimas décadas. Exemplo disso são as apropriações de ideias
de Michel Foucault no que tange ao discurso, autor e poder, outra
contribuição está em Roger Chartier e as representações culturais,
assim como em Norbert Elias e o processo civilizador, além, é claro,
da história dos conceitos.
Enfim, uma série de novas possibilidades de leitura dos re-
latos de viagem que ganharam força após essa larga expansão dos
horizontes da pesquisa histórica na década de 1980. Esses resgates
vêm ganhando significativa força e volume, principalmente, após a
comemoração dos 200 anos do processo de chegada da Família Real
portuguesa ao Brasil, que, como já visto, proporcionou uma abertu-
ra sem precedentes na história do Brasil colonial.
Nesse embalo, é justa e necessária, no limiar dos 200 anos de
sua viagem à Capitania do Espírito Santo, uma nova visita à obra de
Saint-Hilaire, não com o profundo objetivo de problematizá-la ou
rotulá-la, mas sim de levar o capixaba a um passado recente, a fim de
que ele possa reivindicar para si um passado alternativo a esse das
102
narrativas de atraso que cercam o discurso histórico dominante até
os presentes dias.
155 SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagens pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil...
Op. cit., p. 242.
156 Ibidem, loc. cit.
103
um número de animais de carga suficiente para transportar minha
bagagem e minhas coleções, meu doméstico francês, o índio Fir-
miano, um tropeiro chamado José, que me foi enviado de Ubá e do
negro Zamore, que um negociante francês estabelecido no Rio de
Janeiro me havia pedido para levar comigo afim de habituá-lo às
viagens e ao serviço dos animais.157
157 SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagens pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil...
Op. cit., p. 242.
158 Ibidem, loc. cit.
159 Ibidem, p. 243. Vale aqui a pena resgatar o fato disso já ter sido comentado ao
longo da viagem de Maximiliano, que durante a maior parte de seu percurso percorreu
o caminho do Rio de Janeiro ao Espírito Santo pela beira mar.
104
Barra do rio Itabapoana - Foto de Albert Richard Dietze (1877)
160 DAEMON, Basílio Carvalho. Província do Espírito Santo... Op. cit., p. 294.
161 HARUF apud DAEMON, Basílio Carvalho. Província do Espírito Santo... Op. cit.,
p. 294.
162 OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado... Op. cit., p. 280.
105
Capa do Caderno de Campo B1 - Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo. Acervo: Herbário
Virtual A. Saint-Hilaire.
106
Segunda Viagem ao Interior do Brasil.
Espírito Santo
107
tomada, haja vista, que desde sua saída do Rio de Janeiro ele foi
constantemente alertado dos perigos que dominam o trajeto entre
Muribeca e Itapemirim.
Na saída de Muribeca ele conseguiu convencer o adminis-
trador de lhe fornecer reforço à comitiva que com ele seguia, com
isso novos elementos foram adicionados à caminhada,pois “o bom
padre deu-me três escravos, que já haviam combatido contra os ín-
dios, armados de espingardas e de facão do matto”.163
Segundo Saint-Hilaire
108
Itinerário de Auguste de Saint-Hilaire. Adaptado de: http://www.estacaocapixaba.com.
br/2016/01/o-espirito-santo-em-principios-do.html
109
Após breve estadia nesse posto de guarda, Saint-Hilaire se-
gue sua jornada rumo à vila de Itapemirim. Uma nova adição foi
feita a sua comitiva, dessa vez de quatro soldados, com o objetivo de
proteger o grupo que ainda seguiria por um caminho considerado
crítico e alvo de constantes ataques dos índios.
Apesar das constantes narrativas descritas por aqueles que
o acompanhavam, sobre os ataques e as práticas canibalísticas dos
nativos da região, Auguste de Saint-Hilaire questionou a veracidade
de tais histórias e acontecimentos. Para ele
esses factos, dos quaes um dos meus soldados havia sido, disse-me
elle, testemunha occular, e aquelles que me haviam narrado os es-
cravos de Muribéca, tendiam provar a realidade da antropophagia;
mas, é aconselhavel, eu creio, não acceitar plenamente essas narra-
tivas de homens incultos, animados pelo rancor e susceptiveis de
crear phantasias, em torno das suas acções.166
110
Representação das guerras entre colonos e índios. Guerrilhas. Aquarela. Rugendas, c. 1835.
111
dado ao seu territorio pelos índios, provavelmente mesmo antes
da descoberta do Brasil, porque já se o encontra citado na relação
tão interessante de Jean de Lecy, publicada por volta do meiado
do 16º seculo. [...] A população inteira desse pequeno districto se
eleva, disseram-me, a uma media de 1.900 almas. [...] A pretensa
villa não é senão logarejo composto, quando muito, de 60 casas,
das quaes a maior parte é coberta de palha e estão nas condições
as mais deploraveis. Essas cabanas formam uma só rua muito curta
e a praça inacabada, de que fallei mais acima. A egreja, um pouco
distante da villa, é demais pequena e não tem mesmo campanario,
mas, do alto da colina em que está construida, descortina-se um
panorama pittoresco, aquele que eu já havia admirado, atravessan-
do o Rio Itapemirim.170
112
Saindo de Itapemirim em 4 de outubro de 1818, a comitiva
de Auguste de Saint-Hilaire retoma a marcha rumo ao norte da Ca-
pitania. Se à medida em que ele se aproximava de tal vila maior era
a incidência de moradias, à medida que caminha, dela se afastando,
novamente volta a rarear as moradias. A marcha torna-se enfadonha
nesse trecho, haja vista que
113
Sem uma parada significativa em Piúma, a comitiva segue
viagem, encontrando, a partir da pequena povoação indígena de
Piúma, um número cada vez maior de moradias, deixando evidente
que o trecho é de significativa importância.
Após algumas léguas percorridas, ele finalmente chega a Be-
nevente, que “mostra-se logo, entre os arvoredos; esconde-se muitas
vezes, para reapparecer, instantes depois, e dá ao viajante uma se-
quencia de paisagens agradabilissimas”.177
Em Benevente Saint-Hilaire esbarrou no misticismo, no pre-
conceito e no medo. Firmino, índio botocudo de origem, foi execra-
do e sofreu grandes injúrias devido a sua origem e à péssima relação,
e fama que os Botocudos têm entre as demais etnias e, principal-
mente, entre os ditos civilizados, “o pobre moço, confuso, perturba-
do, baixava os olhos sem proferir uma palavra sequer, e escondia seu
rosto entre as mãos”.178
Resolvidas as querelas que foram postas a cabo pelo coman-
dante da vila, Saint-Hilaire fora alojado no antigo convento dos jesuí-
tas e pôde novamente pôr em prática as suas análises a respeito do lo-
cal, da paisagem e da sua gente. Sob o olhar de Saint-Hilaire, Benevente
114
ga redução foi erigida em Villa, sob o nome de Benevente, e, em
1795, foi feita cabeça de comarca de uma parochia independente.
Após a extinção da Companhia de Jesus, o governo apoderou-se do
mosteiro; unia parte do edificio serve hoje de alojamento ao cura; o
resto tem sido consagrado a muitos destinos differentes; nelle se fez
uma prisão; dispuzeram de uma sala para a camara; em outra peça o
Ouvidor dá suas audiencias, quando vem cumprir suas funcções de
corregedor; emfim, tiveram a generosidade de reservar um quarto
para da-lo aos estrangeiros honestos, que passam pela região.179
115
Anchieta no século XIX. Disponível em: http://espiritosantonoticias.com.br/anchieta-mais-de-
450-anos-de-historia/.
181 Ibidem, p. 68. Ainda hoje a questão das terras indígenas na antiga região de Be-
nevente, atual município de Anchieta, é uma questão mal resolvida, tendo em vista que
os grandes empreendimentos ainda visam as terras que permaneceram sob a posse dos
índios remanescentes. Sobre tal debate ver. MATTOS, Sônia Missagia de. Resistência e
ação política: os índios “mansos” da aldeia de Iriritiba, Anchieta, ES – Brasil. Revista do
Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, Vitória, n. 1, p. 25-44, 2017.
116
obrigado a dirigir-se, posto que, os Juizes ordinarios de Benevente
são exclusivamente portugueses. E, ainda, como é que as queixas
de uma raça de homens pobres e sem appoio chegarão até aos ma-
gistrados superiores, a uma tão grande distancia desses infelizes,
e surdos, a mais das vezes, á voz daquelles que se apresentam de
mãos vasias?182
117
A estrada que deixa Benevente leva o naturalista a Meaípe,
pequena aldeia litorânea já em território administrado pela paró-
quia de Guaraparí. Nessa pequena aldeia vale a pena dar destaque à
análise quase que etnográfica feita por Auguste de Saint-Hilaire dos
habitantes da região.
118
2.400 adultos”.185 Uma vila que seguiu na contramão do desenvolvi-
mento das demais vilas e povoações que margeiam os rios. Guara-
parí, aos invés de adentrar o território margeando o rio, seguiu um
crescimento perpendicular ao mesmo, montando um paralelo com
o mar. O ponto de vista do viajante sobre essa vila foi o seguinte:
119
Após a estadia em Guarapari, a viagem segue por Perocão,
Ponta da Fruta e Barra do Jucu, ponto do qual já é possível avistar o
Convento de Nossa Senhora da Penha, chegando, finalmente, à vila
de Vitória. Chegando a Vitória, Auguste de Saint-Hilaire dirigiu-se
para Jucutuquara a fim de encontrar o capitão-mor Francisco Pinto,
para o qual o viajante possuía uma carta de recomendações para
obter maior apoio a sua jornada.
Passou a noite no sítio de Santinhos, onde descobriu que o
ódio aos índios Botocudos era algo comum e que se espalhava por todo
o território da capitania do Espírito Santo, e que foi veementemente
afirmado pelo proprietário do sítio em que se alojou logo após a sua
chegada.
Se Basílio Carvalho Daemon afirma que Saint-Hilaire che-
gou a Vitória em 10 de outubro de 1818, podemos dizer que na ver-
dade o viajante chegou à capital da capitania no dia 9, visto que o
próprio naturalista afirma que
120
Perspectiva da Vila de Vitória Colonial. Por Joaquim Pantaleão Pereira da Costa. c. 1805
121
Victoria, algumas fontes publicas que tambem não contribuem
para embéllezar a cidade, mas, que, pelo menos, fornecem agua, de
excellente qualidade, aos habitantes.189
122
seus successores senão terras inuteis.190
123
esses discursos não fazia arrefecer minha curiosidade; eu havia re-
solvido ir até as fronteiras da Provincia de Porto Seguro e puz-me a
caminho”.193
Palhoça 5 léguas
TOTAL 27 léguas
Fonte: SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao Interior do Brasil. Espírito Santo. Trad.
Carlos Madeira. São Pulo: Companhia Editora Nacional, 1936, Coleção Brasiliana, v. 72, nota 96.
126
Baía de Vitória. Forte Piratininga e ao fundo monte Mestre Álvaro. Fonte: BR_ESAPEES_
JPB.1.79.
E finaliza:
128
Apesar de uma relativa independência gozada pelos índios
de Vila Nova, é certo que a aldeia não se encontrava nas melhores
condições. O convento dos jesuítas estava em ruínas e muitas das
casas estavam abandonadas.
Somada a decadência da vila pode-se encontrar o largo pro-
cesso de emigração dos índios, causado, entre outros motivos, pela
exploração da mão de obra indígena por parte dos governadores que
129
Após parada para pernoite no referido Quartel, retoma o ca-
minho à beira-mar em direção a seu destino. Segundo Saint-Hilaire
Naquelle dia fui obrigado a fazer duas vezes mais de caminho que
ordinariamente, porque, desde Riacho até a embocadura do Rio
Doce, onde cheguei, á tarde, não se acha agua doce, nem casas.
Segue-se, constantemente, uma praia arenosa, marginada de flo-
restas, onde crescem, misturados, mas em grupos, os quiriris, ana-
nases e diversos arbustos.207
132
lente meio de escoamento das riquezas e mercadorias produzidas
nessa última, e claro, de maneira significativamente mais rápida. Foi
somente após os incentivos providos pelo então ministro do Inte-
rior, Dom Rodrigo Coutinho (Conde de Linhares) é que tal empresa
tomou forma. A partir da instalação dos destacamentos militares
na região deu-se início a prospecção de interessados em ocupar a
região, tendo João Felippe Calmon atendido ao chamado, os demais
habitantes seriam nas palavras de Eduardo Bueno, Náufragos, trafi-
cantes e degredados.214
Em Linhares teve a oportunidade de visitar a Lagoa Jupa-
ranã, privilégio que não foi concedido a Maximiliano alguns anos
antes. Saint-Hilaire propõe que “Parece que a lagoa Juparanan deve
a sua origem a um corrego do qual não se conhece a nascente”, e
que dadas as gigantes proporções dessa lagoa, as mesma deve ter
se se formado a partir das “aguas deste ribeiro, [que] muito pouco
inclinadas para a confluencia, ter-se-iam espalhado sobre a terra e
formado o lago”.215
Essa parte da capitania ainda permanece sem a presença do
homem, o que contribui significativamente para a exuberância do
local. Mesmo compreendendo a inevitabilidade da chegada do ho-
mem às margens da lagoa Juparanã, o naturalista conclui que “dia
virá em que ellas se animarão com a presença do homem e se em-
bellezarão com habitações numerosas; esse lugar será, certamente,
então, um dos mais bellos do imperio do Brasil.216
Partindo de Linhares de volta a Regência, Saint-Hilaire des-
cobre que não era somente seu companheiro Prejent que havia caído
214 Refiro-me ao título da obra de Eduardo Bueno sobre a formação do Brasil. Para
mais Cf. BUENO, Eduardo. Náufragos, Traficantes e degredados. São Paulo: Objetiva,
1998.
215 SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...
Op. cit., p. 198.
216 Ibidem, p. 199, grifo nosso.
133
Lagoa Juparanã. Linhares - Fonte: BR_ESAPEES_FCES.07.
134
que cavalgou com febre e sonolência durante todo o trajeto até Com-
boios, apresentou, nesse lugar, significativa melhora.
A recuperação desses dois companheiros possibilitou a reto-
mada do caminho. Prosseguiram até Aldeia Velha, onde realizaram
parada para conhecer a Aldeia Piriquiassú,217 aldeia essa que surgiu
após a junção das moradias que encontravam-se dispersas ao longo
do rio e que eram alvos constantes dos Botocudos, afinal, ao oeste
da vila, existe um grande ramo de floresta que se estende até as mar-
gens do rio Doce, domínio dos Botocudos. Saint-Hilaire descreve a
pequena aldeia possuindo a seguinte forma:
217 Hoje reserva ambiental no município de Aracruz e está composta por nove aldeias
indígenas, sendo elas Tupiniquins e Guaranis. Fica às margens do rio Piraqueaçu e está
localizada entre Santa Cruz e Coqueiral de Aracruz.
218 SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...
Op. cit., p. 220.
135
Nesse mesmo dia, Saint-Hilaire foi espectador das ações
exaustivamente reclamadas pelos índios à imposição do trabalho
por parte do governo. Nesse dia “os soldados da companhia de linha
tinham vindo buscar 20 homens que deviam no dia seguinte partir
para a Villa de Vianna ou S. Agostinho”.219
Retorna finalmente sem maiores transtornos a Vitória. Hos-
peda-se novamente sob a guarda do Capitão Francisco Pinto e tem,
novamente, Luis da Silva designado como guia, dessa vez porém
para acompanhá-lo a Viana.
No caminho para Viana recebe maiores informações sobre
a estrada que está sendo construída entre as Capitanias do Espírito
Santo e Minas Gerais com o objetivo de interligá-las, possibilitan-
do acesso mais rápido a essa e dando acesso a mais produtos e
serviços àquela. Em Viana tomou conhecimento da, ainda paupér-
rima, condição dos colonos. As reclamações feitas a Maximiliano
repetiram-se a Saint-Hilaire, que fez a seguinte descrição da peque-
na vila:
136
A igreja de Vianna não é muito grande, mas é bem illuminada e or-
nada com muito gosto. E' certamente uma das mais bonitas que eu
vi desde que estou no Brasil. Não poderei fazer o mesmo elogio da
casa do Governador, grande construcção de janellas perfeitamente
quadradas, pesadas, mal distribuida, com entrada ao lado e á qual
não se pensou nem em juntar um jardim. O governador Rubim,
que foi o creador de Vianna., passava tempos nesta casa á qual se
dava o pomposo nome de palacio, mas é de crer que ella tenha sido
abandonada pelo seu successor.220
137
quarenta. As menos estragadas se alongavam mais ou menos juntas
até o mar e o lado opposto a este é tomado pela igreja.221
138
Ao fim, depois de uma longa jornada e após deixar nosso
viajante embarcado e despachado sua comitiva por terra, finaliza-
mos a nossa companhia a tão ilustres personagens.
139
Epílogo
223 Cf. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Uni-
versitária, 2006.
141
do com que esse discurso se tornasse uma determinada memória
coletiva de uma comunidade imaginada.
O que se propõe, a partir da análise das narrativas dos via-
jantes do século XIX, é que o capixaba “viaje no tempo” a fim de
compreender os constructos narrativos de caráter historiográfico e
mitográfico que se estabeleceram sobre sua realidade. Compreen-
são “necessária pelo fato de estarmos aqui diante do problema da
natureza mesma de nossa vida política. Trata-se da concepção e da
prática da cidadania entre nós, em especial entre o povo”.224
Tal constructo narrativo, arraigado no imaginário coletivo
se espalhou entre os anos iniciais da república, principalmente entre
1890 e 1920, e desenvolveu na elite política e intelectual do país um
amplo desejo pelo desenvolvimento estrutural da nação, atrelando,
invariavelmente tal avanço às demandas do processo civilizador. A
aclamação pela renovação dos ambientes urbanos passou a ser uma
pauta predominante nos debates, e termos como progresso, arcai-
co, futuro, regeneração, saneamento, desenvolvimento e civilizado,
passaram a compor o vocabulário daqueles frentes à nação, isso por-
que “a república era aí vista dentro de uma perspectiva mais ampla
que postulava uma futura idade do ouro em que os seres humanos se
realizariam plenamente no seio da humanidade mitificada”.225
Ao fim, a chegada do século XX, com todo seu aparato téc-
nico-científico urbano fez-se presente, e a cidade do Rio de Janeiro
foi a primeira a sentir a força do golpe do martelo do progresso.
Ruas, praças, avenidas, parques, quarteirões e vilas inteiras foram
remexidas e postas abaixo. A cidade virou um imenso canteiro de
obras a céu aberto. Por meio das mãos de milhares de trabalhadores
a cidade se transformou, e entre os anos de 1903 e 1906 a dinâmica
224 CARVALHO, José Murilo. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não
foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 10.
225 Idem. A formação das almas: o imaginário da república do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990, p. 9.
142
da cidade mudou, fazendo com que aquele Rio de Janeiro colonial
passasse a ser chamado de a "Paris brasileira".
O tilintar das picaretas e martelos que "esmagavam", "tritu-
ravam" e "transformavam" o passado colonial brasileiro em aterro
e pó reverberou pelo Brasil, preenchendo o ar com “progresso” e
dominando as mentes republicanas com o sentimento de nova “or-
dem”, tudo isso porque “a história é feita então em nome do futuro
e deve ser escrita do mesmo modo. O movimento futurista [no qual
incluo os republicanos positivistas brasileiros] estimulou essa pos-
tura ao extremo”.226
Sendo vizinho e espectador das mudanças que ocorriam na
capital da nação, o capixaba foi deveras acometido pelo seu sentimen-
to de pequinês frente ao novo mundo e a nova era que chegava ao
Brasil pelos portos cariocas e que passavam ao largo da realidade im-
posta a esse estado. Há muito herdeiro de uma chusma de afirmações
que lhe incutiram a “verdade histórica” de atrasado, o Espírito Santo
pegou carona no carro da história e produziu, como foi comum nesse
início de século XX, uma narrativa que buscava legitimar um conjun-
to de práticas e ações da elite política a fim de produzir um “novo”
presente, que ao contrário da herança colonial, levaria o estado a um
“futuro esperançoso”, como afirma o próprio hino capixaba.
Segundo José Carlos Reis a construção de narrativas regio-
nais, legitimadoras de um conjunto de práticas políticas e identitá-
rias foi algo relativamente normal na história do Brasil, produzindo
passados gloriosos ou trágicos a fim de produzir um sentimento de
união e de ideal em uma dada localidade. Na obra Identidade do
Brasil 3,227 Reis elenca algumas das narrativas elaboradas com esse
objetivo, dando destaque: à narrativa carioca do “tempo saquare-
143
ma”; à paulista do “tempo bandeirante”; gaúcha, por ele chamada
de “tempo farroupilha” e que Jeferson Teles Martins chamou de
“narrativa lusitana”228; pernambucana do “tempo confederador”;
além dos “tempos amazônida-igaraúna”, e “tempo inconfidente”. Se
fossemos incluir a capixaba nesse contexto de compreensões de tem-
po histórico na matriz brasileira, certamente a “narrativa histórica
de superação do atraso” seria evidenciada dentro desse conjunto de
compreensões dos tempos brasileiros.
Inegavelmente a compreensão da construção da narrativa
histórica do atraso perpassa pela análise das narrativas regionais. A
descentralização de uma história geral do Brasil para uma história
plural do Brasil, como proposta por Reis, desmitifica e desmonta o
elemento padronizador do país e proporciona uma leitura que leva
em conta a pertinência das especificidades, tornando possível a vi-
sualização de múltiplos Brasis contidos em um Brasil. É dentro des-
sas leituras que se insere o caso capixaba.
Cada narrativa constituída na regionalidade brasileira fun-
damentou-se em um tipo de horizonte de expectativa para o século
que nascia - no caso o XX. No caso capixaba a superação de um atraso
histórico do desenvolvimento é o mote central da narrativa. A heran-
ça de uma visão de atraso é fruto de expedientes como o emitido pelo
governador Inácio de Acioli em 1824, onde afirma que “é preciso en-
fim que S. M. Imperial esteja cabalmente ciente de que esta Província
é a mais miserável do Império: não tem agricultura nem comércio:
seus habitantes são pobríssimos”,229 ou pelo presidente de província
Pedro Leão Veloso, que em seu relatório redigido às vésperas da visita
imperial à província - 1860 - discorre que:
144
tenho gostado da terra em relação ao clima e à gente que não é má,
mas acho-a sumamente atrasada em todos os sentidos; vivesse mal
porque sobre ser a vida muito cara falham todas as vantagens de
um país civilizado.230
230 ROCHA, Levy. Viagem de Pedro II ao Espírito Santo. 3 ed. Vitória: APEES/ SECULT,
2008, col. Canaã v. 7, p. 46, grifo nosso.
231 HARTOG, François. Regimes de historicidade... Op. cit., p. 170, grifo nosso.
232 Cf. FOCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Còllege de France,
pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 24 ed. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio.
São Paulo: Edições Loyola, 2014, Coleção leituras filosóficas.
233 Para ver como o campo intelectual retroalimenta as narrativas históricas e fo-
menta a presentificação de um passado há muito descolado da atual realidade capixaba
ver: NASCIMENTO, Rafael Cerqueira do. A narrativa histórica da superação do atraso...
Op. cit. Nesse trabalho Rafael Cerqueira demonstra como as obras de José Teixeira de
Oliveira, Neida Lúcia, Maria Stella de Novais e Gabriel Bittencourt colaboram para
corroboração de tal construção.
145
“no caminho do progresso”, entre tantos outros mais; ou até mesmo
na população mais desfavorecida, que em sua compreensão, a au-
sência de serviços fundamentais representa que a república não se
promoveu de maneira completa.
Dentro desses quadros podemos estabelecer como elemen-
tos analíticos da perpetuação da narrativa de superação do atraso,
entre diversos, os mesmos que François Hartog utilizou para anali-
sar a sobrevivência da memória revolucionária na França e que José
Murilo de Carvalho lançou mão ao analisar o estabelecimento da
república no Brasil, quais sejam: bandeira, hino, brasões e heróis; ou
seja, um conjunto de simbologias que busca a apropriação e utiliza-
ção de representações coletivas, haja vista que
234 CARVALHO, José Murilo. A formação das almas... Op. cit., p. 10.
235 Ibidem, p. 55.
146
No caso da representação mítica a nível nacional, houve
todo um esforço em torno da figura de Tiradentes, haja vista que
os “criadores” da república não eram identificados como sujeitos do
povo, vide Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto, Benjamin Cons-
tant, Quintino Bocaiúva, entre tantos outros. Todos os elementos
ligados a um determinado grupo da elite Imperial, seja militar, seja
oligárquica, e para José Murilo, “herói que se preze tem de ter, de
algum modo, a cara da nação [..] [pois] na ausência de tal sintonia, o
esforço de mitificação de figuras políticas resultará vão”.236
O fato é que no Espírito Santo foi escolhido um personagem
local que possuiu, em algum momento da história, alguma relevân-
cia política que atendesse os anseios daqueles que estavam poder e
Domingos José Martins caiu-lhes como uma luva. A partir da insti-
tucionalização desse personagem como “o” grande cidadão capixa-
ba, toda a simbologia passou a girar em sua órbita.
Domingos Martins representava o anseio de libertação dos
grilhões do passado que sufocavam o povo. Sua participação na Re-
volução Pernambucana de 1817, que possuiu caráter republicano, de-
monstra a insatisfação do projeto arcaico que se mantinha sobre o país.
E acima de tudo, sua bravura demonstrava a fibra do povo capixaba,
que declara ao Brasil que “verás que um filho teu não foge a luta”.
Com a elevação de Domingos Martins ao panteão de heróis
da nação, a simbologia capixaba passa a ser instrumentalizada. Um
busto de bronze é constituído em sua homenagem e instalado na pra-
ça lateral à sede do governo estadual. O brasão de armas capixaba
conta com a data de sua execução, após a debandada da revolução -12
de junho de 1817. E o ápice desse elemento afirmativo é a renomeação
do município de Santa Isabel como Domingos Martins em 1921.
No entanto, qual é o papel de Domingos Martins nesse
conjunto narrativo acerca do atraso? Aparentemente nenhum. No
entanto, com um olhar um pouco mais cirúrgico, pode-se enxer-
236 Ibidem.
147
gar entre as frestas do panteão cívico nacional que esse personagem
representa, aos olhos daqueles que o escolheram para tal posição, a
tentativa de abandono das “velhas” práticas políticas, pois a monar-
quia representa o atraso e a república é o bastião da liberdade, e a
escolha desse, e não de outro, se dá pelo fato do mesmo se constituir
como sujeito do povo.
Entretanto, existem algumas páginas da história que devem
ser analisadas mais de perto... Em pesquisa recente, Bruna Breda
Bigossi questiona esse passado heróico do suposto capixaba Domin-
gos José Martins. Isso mesmo... Suposto. Segundo análise de Bigos-
si, Domingos Martins é um constructo imaginário idealizado nos
salões do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo,237 um
elemento alegórico que contribuiu para a constituição de um de-
terminado lugar de fala com objetivos claros de afirmar a narrativa
republicana e que a posteriori foi tomado com fins outros, o de com-
bate e de superação do atraso.
Afirmada a partir de um conjunto simbólico e mítico, a
narrativa histórica de superação do atraso se alastrou pelo sen-
timento capixaba da mesma forma que a ideia de regeneração
atingiu o Rio de Janeiro e a paulistanidade traspassou o estado
de São Paulo. As tradições mitográficas pululavam a mente dos
republicanistas assim como o medo do regresso monarquista. A
fundação da república demandou, aos olhos dos mais apaixonados
do movimento, a refundação do Brasil. Paixões e mitos herdeiros
de uma tradição monárquica foram execrados de seus bastiões e
novos heróis foram entronados.
Ao fim e ao cabo, a história do Espírito Santo acabou por
alicerçar-se muito mais sobre elementos mitográficos do que histo-
237 Cf. BIGOSSI, Bruna Breda. Domingos José Martins: a Invenção de um herói para os
capixabas no Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Dissertação (Mestrado
em História). Programa de Pós-graduação em História Social das Relações Políticas,
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2018.
148
riográficos propriamente ditos. A construção de uma identidade e
de um sentimento de pertencimento universal a uma nova nação le-
vou os republicanos capixabas, que se entrincheiraram sob as asas do
Instituto Histórico, a reformularem o presente das terras capixabas a
fim de apagar um passado monárquico recente.
Com todo o exposto compreende-se que a sobrevivência da
narrativa do atraso se dá pelo fato de que a concepção da tempo-
ralidade moderna, ou da modernidade, ainda não foi superada por
aqueles que policiam os discursos mitográficos no Espírito Santo, e
a não superação da própria narrativa é o elemento comprobatório
dessa nossa hipótese.
Essa compreensão moderna do tempo “prende” o Espírito
Santo em um passado que se torna permanente, ou seja, quando
aqueles que estabeleceram os alicerces da república optaram por um
“novo tempo” acabaram por inserir o estado em um presente per-
manente que se sustenta na necessidade perene de superar o atraso
que se abate sobre essa terra. É a apropriação prática do passado
a fim de estabelecer elementos que caracterizam o atraso com fins
de construir um presente que seja artífice de uma nova realidade
que pavimente o caminho para o futuro deleitoso. No entanto, essa
própria concepção dos usos da história e do passado rendeu ao Es-
pírito Santo um “loop temporal” no qual o lema “trabalha e confia”
se tornou o fardo de Sísifo, que é pesado, árduo e com um objetivo
inalcançável.
Hoje, se fizéssemos uma comparação com uma antiga propa-
ganda que afirmava que “o tempo passa, o tempo voa”, acertadamen-
te poderíamos afirmar, a partir da compreensão de temporalidade
daqueles que perpetuam as narrativas históricas, que nem sempre,
afinal a constituição de algumas narrativas históricas contribuem,
mesmo que de maneira indireta, para a sobrevivência do passado em
nosso presente, passado esse que não passa e que acaba por se estabe-
lecer como “verdade histórica”, e esse é, definitivamente, o caso capi-
xaba. Assim sendo, está o Espírito Santo legado a um eterno atraso?
149
O que de fato constitui parâmetro de identificação do atraso? Atra-
sado em comparação a quem ou a o que? De fato o tempo até ‘voa’,
como metaforicamente anuncia o comercial, porém passar, pelo que
até aqui podemos ver, é uma questão para outra hora...
A nosso ver, para que tal concepção de atraso se dilua no
imaginário do capixaba é necessária a construção de uma nova rea-
lidade histórica dos sujeitos, que perpassa, indispensavelmente, pela
admissão de que o Espírito Santo é, assim como os demais entes da
federação, um estado com obstáculos e desafios históricos, e que isso
não se constitui como atraso, mas sim como demandas de aperfei-
çoamento social.
Para tanto, se compreende que a análise crítica de nosso pas-
sado histórico pode vir a contribuir de maneira significativa, e as
narrativas dos viajantes constituem parte desse corpus informacio-
nal, que a despeito das demandas locais, sempre teve a visão de que
o Brasil era atrasado, uma herança nefasta do processo civilizador
do século XIX e que o capixaba agarrou com unhas e dentes, e que
hoje possui uma dificuldade homérica de abandonar, ou seja, um
passado que não se deixa passar e que se sustenta em uma narrativa
de superação que hoje já se encontra atrasada.
O fato é que os discursos apoiados nessa primazia de atraso
“esquecem” de informar que o Brasil, em sua grande maioria, estava
na mesma situação econômica e administrativa. Esse tipo de dis-
curso ocupou lugar não somente no Espírito Santo, mas no Brasil,
principalmente após a Proclamação da República, onde aqueles que
passaram a ocupar o poder desejavam produzir um esquecimento, o
do Brasil Monárquico. Um tipo de produção discursiva que buscava
ao fim, segundo Valdei Lopes de Araújo,
que a relação com o passado moderno não podia mais estar susten-
tado por uma familiaridade - falsa - que entendia a história inde-
pendente do Brasil como formando uma grande narrativa de sua
incapacidade para o moderno, o reconhecimento de um abismo
150
crescente entre sua situação atual e a consciência histórica norma-
lizada nas retóricas do atraso.238
238 ARAÚJO, Valdei Lopes. História dos conceitos e história da historiografia: um per-
curso brasileiro. In.: BENTIVOGLIO, Julio; NASCIMENTO, Bruno César (org.). Escrever
História: Historiadores e Historiografia Brasileira nos Séculos XIX e XX. Serra: Editora
Milfontes, 2017, p. 46.
239 PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 9. ed. São Pulo:
151
Uma vasta empresa colonial, como afirma Caio Prado Júnior
em sua obra Formação do Brasil Contemporâneo (1969). Segundo o autor,
152
mento esparso, sem adensamento populacional ou comercial de
maior vulto.241
241 MACEDO, Fernando Cézar de. História econômica e organização espacial: o caso
capixaba. Vitória: Gráfica e Editora América/ IHGES, 2013, p. 17.
242 GOMES, Antônio Carlos Sant Ana; REIS, Fábio Paiva. Cartografia histórica, estu-
dos capixabas. Vitória: IHGES, 2013, p. 42-43, grifo nosso.
153
Nordeste, tornando Salvador o principal porto de escoamento desse
produto em direção a Europa.
Já em segundo lugar tem-se o Rio de Janeiro. Com a expan-
são das fronteiras territoriais o porto do Rio de Janeiro passou a
ser um dos principais pontos de parada para abastecimento para
aqueles que buscavam atingir a parte mais ao sul da colônia. Com
a descoberta do ouro no interior do Brasil a capital é transferida de
Salvador para o Rio de Janeiro a fim de estabelecer uma alfânde-
ga com o objetivo de melhor administrar o escoamento da riqueza,
além de diminuir o contrabando. A presença do ouro de Minas Ge-
rais, além de uma massa burocrática, transformou o Rio de Janeiro
em uma grande cidade.
Por fim, Minas Gerais. Devido ao elevado índice de riquezas
minerais presentes em seu solo, Minas ganha destaque durante o
século XVIII. Os investimentos reais na região são vultosos com o
objetivo de defender o rico território. A massa populacional que se
desloca das demais capitanias para o interior da colônia, atingindo
até mesmo Goiás, é gigantesca, todos atiçados pela febre do ouro.243
Exposto esse contexto, deve-se resgatar as proposições do
historiador capixaba Fernando Achiamé. Sobre essa delicada posi-
ção em que se encontrava a capitania do Espírito Santo o autor rea-
liza a seguinte proposição:
243 Talvez o único movimento migratório idêntico, e que seja comparável com aquele
ocorrido no Brasil no século XVIII, seja a marcha para o oeste nos EUA durante o sé-
culo XIX, onde a corrida pelo ouro tornou-se uma febre em grandes cidades do leste
estadunidenses.
154
causadora do atraso econômico e isolamento territorial da capita-
nia, com reflexos na vida socioeconômica da província e do estado.
Se, em linhas gerais, o posicionamento está correto, os pesquisadores
nunca registraram o outro lado da questão. A partir dessas medi-
das político-administrativas da metrópole, a capitania do Espírito
Santo - governada militarmente por capitães-mores em quase todo
o referido século - teve garantida sua sobrevivência como unidade
política. Não se levam em conta os desaparecimentos das outrora
importantes capitanias de Porto Seguro e Ilhéus - incorporadas à
Bahia - e de São Tomé, assimilada ao Rio de Janeiro. Assim, na ex-
tensa costa entre as cidades de Salvador e do Rio - as duas capitais
da colônia brasileira -, somente o Espírito Santo permaneceu como
ente político.244
155
são do Brasil e o pouco que ele era ocupado. Pinturas que revelam,
apesar de todo o preconceito civilizatório daquele que formulou a
imagem, o quanto tínhamos de rural e tropical, e o pouco de in-
dustrial e europeu que éramos. As próprias expedições de Roquette
Pinto, já na década de 1910, demonstravam que o Brasil ainda não
havia chegado a todo Brasil.
Nesse contexto os relatos de Maximiliano de Wied-Neuwied
(1816) e Auguste de Saint-Hilaire (1818) são de significativa relevância
para a compreensão das mudanças ocorridas no Espírito Santo e em
outras áreas do Brasil ao dos os séculos XIX e XX.
Se a ocupação territorial era um problema no período das
primeiras expedições científicas estrangeiras, dificultando des-
sa maneira a mobilidade e o acesso a áreas de grande relevância
para a pesquisa, hoje, duzentos anos depois, essa realidade já não
é presente. Na capital da capitania, onde havia em 1818, segundo
Saint-Hilaire, cerca de 4000 habitantes, há, segundo estimativas
do IBGE, mais de 363.000 pessoas, o que contribui para uma densi-
dade demográfica estadual de aproximadamente 76 habitantes por
km². Áreas anteriormente totalmente desabitadas e dominadas pe-
los índios, como era o caso do trecho compreendido entre a Fazen-
da Muribeca e a vila de Itapemirim, hoje abriga os municípios de
Presidente Kennedy e Marataízes.
As regiões de Linhares e São Mateus, que antes ficavam há
10 dias da capital, em uma viagem realizada exclusivamente pelo
litoral, hoje é feita em aproximadamente duas horas245 pelas estru-
turas viárias que cortam o estado de norte a sul.
Em localidades que anteriormente não passavam de meros
quartéis hoje florescem verdadeiras cidades, como é o caso de Bar-
ra do Riacho e Regência. Regiões ao norte do estado que floresce-
245 No caso de Linhares. São Mateus um pouco mais ao norte demanda cerca de três
horas.
156
ram, principalmente a partir da década de 1920, com a expansão
da fronteira do café e da extração das chamadas madeiras de lei,
deixando claro que “no início do século XX essa vasta região estava
saindo de um longuíssimo período colonial”.246
Os processos de urbanização e industrialização que se
alastraram pelo Brasil a partir dos anos 1870 e que culminaram
com os grandes projetos sanitaristas da década de 1910 também
atingiram o Espírito Santo. Reformas das áreas urbanas da capi-
tal levaram a inserção de bondes, linhas férreas, parques, grandes
jardins, alargamento de vias e sistemas de esgotamento sanitário.
Também fomos cenário fulgurante dos chamados “Mila-
gres econômicos” das décadas de 1930, com a inserção da Com-
panhia Vale do Rio Doce; da década de 1960 com os projetos de
expansão da malha viária e modernização do porto; e por fim da
década de 1970, com a implantação de grandes empreendimentos
industriais, tais como CST, Aracruz Celulose e Samarco.247
Enfim, aquela capitania que figurava como “abandonada”,
quase como que desabitada no período das expedições científicas,
despontou com o crescimento social, econômico e político, e ape-
sar de todas as dificuldades, hoje, não somente aos novos viajantes,
mas também àqueles que essas terras habitam, o discurso de atraso
deve ser deixado de lado, buscando compreender as diversas eta-
pas de desenvolvimento de uma sociedade, seu tempo e o contexto
que ela está inserida.
246 ACHIAMÉ, Fernando A. M. O Espírito Santo na era Vargas (1930-1937)... Op. cit.
p. 53.
247 para maiores informações a respeito dos projetos econômicos desenvolvidos no
Espírito Santo ver: RIBEIRO, Luiz Cláudio M.; QUINTÃO, Leandro do Carmo; FOLLADOR,
Kellen Jacobsen; FERREIRA, Gilton Luis. Modernidade e modernização no Espírito San-
to. Vitória; Edufes, 2015; BITTENCOURT, Gabriel. Indústria: a modernização do Espírito
Santo. Vitória: Secretaria Municipal de Cultura, 2011; MACEDO, Fernando Cézar de.
História econômica e organização espacial: o caso capixaba. Vitória: Gráfica e Editora
América/ IHGES, 2013.
157
Apesar dos pré-conceitos que cada um possui, e dos discur-
sos incutidos no imaginário social, uma coisa é certa! O passado nos
permite até certo ponto questionar as construções no presente.
Assim, àqueles que desejam empreender novas expedições
ao Espírito Santo e escrever novas visões dessas terras frente a esse
panorama. Boa viagem!
158
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