Viagens À Capitania Do Espírito Santo

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Bruno César Nascimento 27

Viagens à
Capitania do
Espírito Santo
Viagens à
200 anos das expedições científicas
Capitania do
de Maximiliano Wied-Neuwied
e Auguste Saint-Hilaire

Espírito Santo
PAULO CESAR HARTUNG GOMES
Governador do Estado do Espírito Santo

CÉSAR ROBERTO COLNAGO


Vice-governador do Estado do Espírito Santo

JOÃO GUALBERTO MOREIRA VASCONCELLOS


Secretário de Estado da Cultura

RICARDO SAVACINI PANDOLFI


Subsecretário de Gestão Administrativa

CILMAR CESCONETTO FRANCESCHETTO


Diretor Geral do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo

AUGUSTO CÉSAR GOBBI FRAGA


Diretor Técnico Administrativo

Arquivo Público do Estado do Espírito Santo


Rua Sete de Setembro, 414 – CEP: 29.015.905
Centro – Vitória – ES - 27 3636-6100
www.ape.es.gov.br
27

Bruno César Nascimento

Viagens à
Capitania do
Espírito Santo
200 anos das expedições científicas de
Maximiliano Wied-Neuwied e Auguste Saint-Hilaire

2ª edição revista e ampliada

Vitória, 2018
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO
APEES
© Arquivo Público do Estado do Espírito Santo

Conselho Editorial Projeto Gráfico e Capa


Cilmar Franceschetto Alexandre Alves Matias
João Gualberto Vasconcellos
José Antônio Martinuzzo Agradecimentos
Michel Caldeira de Souza Grupo de Trabalho Paisagem Capixaba
Rita de Cássia Maia e Silva Costa
Sergio Oliveira Dias Impressão e Acabamento
Gráfica Dossi
Coordenação Editorial
Cilmar Franceschetto

Coordenação de Arte
Sergio Oliveira Dias

Revisão Ortográfica
Jória Scolforo

Ilustração da capa: Ansicht des Felsens Jucutucoara am Flusse Espirito Santo unweit Villa de Victoria. in Reise nach
Brasilien in den Jahren 1815- bis 1817. (Viagem ao Brasil nos anos de 1815 a 1817) - Príncipe Maximiliano Wied-
-Neuwied. Edição original em língua alemã, 1820-21. Frankfurt, Alemanha. http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital.
Acesso em 11 dez.2018

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca de Apoio Maria Stella de Novaes - Arquivo
Público do Estado do Espírito Santo, Brasil - Ficha catalográfica elaborada por Ana Carolina Médici.

N244v Nascimento, Bruno César


Viagens à Capitania do Espírito Santo: 200 anos das expedições
científicas de Maximiliano de Wied-Neuwied e Auguste Saint-
Hilaire/Bruno César Nascimento. 2. ed. rev. amp. Vitória, Arquivo
Público do Estado do Espírito Santo, 2018.
166p. : 21 cm.: il.. -- (Coleção Canaã, v. 27).
ISBN 978-85-98928-26-5

1. História – Espírito Santo. 2. Historiografia. 3. Viajantes. 4. Espírito


Santo. Século XIX. I. Título.
CDD 981.52
Sumário

Apresentação 9
Prefácio  15
Introdução 19

Capítulo I
Brasil: entre o real e o imaginado 25

Capítulo II
A redescoberta do Brasil: a corte no exílio e os
viajantes estrangeiros 39

Capítulo III
Maximiliano de Wied-Neuwied 55
A viagem ao Brasil 62
Os preparativos para a longa jornada. A cidade do Rio de Janeiro 65
Viagem à Capitania do Espírito Santo 67

Capítulo IV
Auguste de Saint-Hilaire 93
Os preparativos para a segunda viagem ao interior do Brasil 103
Segunda Viagem ao Interior do Brasil. Espírito Santo 107

Epílogo
Aos novos viajantes: o Espírito Santo
200 anos depois das viagens de Maximiliano e Saint-Hilaire 141

Referências bibliográficas  159


Na minha opinião existem dois tipos de viajantes: os
que viajam para fugir e os que viajam para buscar.
Érico Veríssimo
Apresentação do Governador

Trata-se este livro de uma memória acerca de memórias de via-


gens. Mas, avisa-se, não se abordam deslocamentos comuns. Pelo
contrário, essa descrição assertiva apenas indica a natureza essen-
cial de uma obra sobre eventos ímpares.
Tem-se aqui um relato acerca de viagens que fizeram histó-
ria, seja pelas notáveis descrições pormenorizadas do olhar europeu
sobre o “desconhecido” solo espírito-santense, seja pela relevância
que tais obras conquistaram no rol das narrativas sobre o “novo
mundo”.
Este livro nasce por ocasião dos 200 anos da realização de
expedições às terras capixabas feitas pelo príncipe Maximiliano
de Wied-Neuwied, em périplo no País de 1815 a 1817, cujo relato foi
editado no livro “Viagem ao Brasil” (1820), e pelo botânico e na-
turalista Auguste de Saint-Hilaire, em viagem por aqui em 1818,
relatada na obra “Segunda Viagem ao Interior do Brasil: Espírito
Santo” (1833).
Além de apresentar ao leitor contemporâneo os marcos
narrativos constantes de impressões e observações desses inquie-
tos viajantes, o livro constitui uma análise sobre o contexto da
“redescoberta” do Brasil, executada por observadores estrangei-
ros, a partir de um tipo de expedição tornada comum durante o
século XIX.
Tais viagens, a despeito da polêmica em torno de sua cienti-
ficidade, acabaram por abrir caminhos para novos olhares sobre o
Brasil, e o Espírito Santo, sem falar que produziram memórias que
se colocam como fontes privilegiadas de leituras sobre um tempo
com escassos recursos para pesquisas históricas.
Enfim, tem-se aqui um relato acerca de memórias euro-
peias dos anos 1800 sobre a condição de ocupação e de vida em
terras conquistadas no início do século XVI pelos portugueses.

9
Dessa forma, antes de tudo, esta publicação é um convite a
novas viagens, incursões nas obras originais, cujas “paisagens”, “ro-
teiros” e “relevos” são tão bem aqui destacados. Excelente leitura.
Boas viagens.

Paulo Hartung
Governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010/2015-2018)

10
Apresentação do Secretário

A maioria dos estudos sobre a história do Espírito Santo tem uma


mesma base de argumentos. Um dos mais importantes deles é o de
que tivemos em todo o período colonial uma atividade econômica
entregue ao que se tem chamado de marasmo. Ou seja, nossa pro-
dução enquanto sociedade foi mínima. Isso significa que estávamos
muito atrás do que se passava no restante da colônia e que no olhar
da metrópole pouco avançamos no chamado processo civilizatório,
prova disso é que ainda tínhamos os temíveis índios Botocudos, so-
bretudo aqueles que viviam às margens do Rio Doce.
Em Viagens à Capitania do Espírito Santo, Bruno César
Nascimento discute com inegável pertinência e bom estilo literá-
rio vários desses argumentos genéricos e, inclusive, o da existência
de tão poucas atividades no Espírito Santo. Nos lembra, desde a in-
trodução, que o florescimento dos frutos do projeto religioso que
marcou presença em grande parte da região litorânea centro sul da
Capitania, indo desde Santa Cruz até Itapemirim, era um conjunto
de pequenas vilas que expressavam estereótipos que dominaram o
imaginário europeu. Foi, para ele, a partir desses estereótipos cons-
truídos, que vários viajantes se interessaram em visitar a Capitania.
Terra de lugares inóspitos e morada dos famigerados botocudos,
erámos depois de 400 anos ainda uma incógnita inserida entre as
três maiores províncias brasileiras.
Uma das questões que mais instigaram os viajantes nesse
novo olhar foi a dos indígenas, em especial aos então chamados Bo-
tocudos, por sua valentia e capacidade de luta. A grandiosidade de
nossos vizinhos – Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro – nos ofus-
caram durante séculos, mas os viajantes estrangeiros movidos pelo
espírito cientificista do século XIX tinham muito o que estudar em
terras capixabas, além dos índios. E foi justamente esse espírito que
trouxe o Príncipe Maximiliano e o francês Auguste de Saint Hilaire

11
até o Espírito Santo. Não foram só eles os que aqui vieram com um
olhar mais apurado, mais antropológico, poderíamos dizer, mas o
autor se dedica a eles, pela importância de seus relatos. Não sem an-
tes situar o leitor do contexto que gerou tais e sua importância no
país independente que estava nascendo.
Seguramente tinha importância estratégica para a Coroa
Portuguesa transferida para o Brasil, o extermínio dos índios que
chamavam de Botocudos. Eles foram construídos no imaginário
português e no das elites brasileiras como povos atrasados e san-
guinários. Exterminá-los era, nessa perspectiva, ampliar o processo
civilizatório entre nós. Foi mesmo decretada uma guerra pelo Prín-
cipe Regente. Portanto, conhecer melhor o inimigo, seu território e
seus costumes era estratégia de afirmação europeia no Brasil. Por
isso os relatos dos estrangeiros foram tão importantes.
E não eram viajantes quaisquer. Saint Hilaire, por exemplo,
era um grande intelectual de seu tempo, como muito bem registra
Bruno Nascimento. Possuía formação humanista, sustentada pelos
grandes debates dos iluministas franceses e europeus de uma forma
geral dos séculos XVII e XVIII. Além disso, era um especialista em
botânica, tendo realizado coletas e pesquisas nessa área durante sua
viagem ao Espírito Santo, como em todos os territórios brasileiros
que visitou. Fez observações importantes da trajetória de sua via-
gem, sendo seus registros da máxima importância para a constru-
ção de uma ideia de passado dos capixabas. Não é por acaso que seus
escritos são tão citados até hoje.
Mas, é no epílogo deste livro que o autor nos dá o que talvez
seja sua maior contribuição a uma reflexão sobre o Espírito Santo
e sua história. Ao invés de aceitar passivamente a tese da simples
decadência da Capitania, ele mostra evidências de um espírito
organizado e dinâmico entre nós. Convergindo sobre uma nova
tendência no estudo da história brasileira, de entender melhor o que
se passava no interior do Brasil e o que era de fato a tal agricultura

12
de subsistência da qual falavam nossos grandes explicadores. Nisso
o trabalho nos dá indicações importantes.
Apoiando-se em texto do grande historiador capixaba
Fernando Achiamé, ele faz uma interessante especulação sobre a
nossa própria sobrevivência como Capitania, Província e depois
Estado Federado ao lado dos gigantes territoriais que nos cercam.
Tema instigante e que merece mesmo ser melhor compreendido
pelos que estudam e pelos que amam o Espírito Santo. Assim, é
grande a contribuição intelectual deste pequeno grande livro. Tenho
certeza que os leitores gostarão tanto quanto eu.

João Gualberto
Secretário de Estado da Cultura

13
Prefácio

Houve um tempo em que livros sobre viajantes estrangeiros faziam


muito sucesso. Corria os anos 1970 e a editora Itatiaia em parceria
com a Edusp lançou várias traduções que se tornaram célebres e
muito difundidas no Brasil. Sob a Ditadura e vivendo ainda a eu-
foria ufanista e cívica disseminada pelo regime militar era curioso
observar aquela busca pela identidade ou pela essência do chamado
“Brasil profundo”, captado pela pena de cientistas, exploradores e
viajantes que por aqui se aventuraram em séculos pretéritos.
A busca pelas origens, acrescida do interesse em saber como
éramos vistos “de fora” ou sob “outros olhares”, era exercício podero-
so de alteridade que, ao fim e ao cabo, revelou que não eles, mas nós
é que éramos “os outros”. A perplexidade e a estranheza de encontrar
naquelas imagens traços que ainda existiam no presente foi impac-
tante. O Brasil seguia arcaico e atrasado. O reencontro das origens,
de algum modo, mostrava que o presente não era muito diferente do
passado. O país seguia com suas mazelas, sua rusticidade e seus males
de formação. Repetia-se a constatação feita pelos próceres da geração
de 1930, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Jú-
nior. Mas, de algum modo, toda miséria social e econômica contras-
tava com a grandiosidade da natureza. A verdadeira riqueza da nação
estava, como sempre esteve, localizada na fauna e na flora exuberan-
tes, que irrompiam em descrições poderosas nas narrativas daqueles
viajantes que pareciam identificar o quanto éramos afortunados em
nossa terra. O Brasil era, sem dúvida, o país do futuro. Explorar os te-
souros escondidos nessa natureza e descobrir seus segredos deveriam
ser a chave para o desenvolvimento material e cultural; uma verdadei-
ra missão para os brasileiros. Aqueles estrangeiros tinham algo a nos
ensinar. De todo modo, aquela leitura, com a abertura do regime e o
início da Nova República, desbotou-se, afinal, destruía-se, velozmen-
te, a natureza e o desenvolvimento não surgia.

15
Vieram os anos 1980 e 1990 e aqueles estudos sobre os
viajantes continuaram, acentuando-se a existência de filtros e
preconceitos que de algum modo inventavam um Brasil que não
era exatamente o Brasil concreto. Negar a realidade, pelo menos
no plano do discurso era a chave para dizer que nem tudo o que
diziam aqueles estrangeiros era representação exata ou fiel ao
real. Nos encontros e desencontros das imagens forjadas e sua
relação com a auto-imagem que se criava do país, aprofundou-se
a crítica aos relatos dos viajantes e, ao mesmo tempo, definiram-
se contornos mais nítidos do que realmente havia sido o passado
brasileiro diante do ritmo imperativo das mudanças vividas no
país. O que antes parecia belo e vigoroso, agora escancarava
vícios e incorreções. Era preciso reconduzir o país à rota da
modernização em sintonia com o mundo globalizado. Assim, nem
os estrangeiros viam melhor nossa terra, tampouco nós mesmos
éramos capazes de a interpretar com precisão. As palavras e as
coisas seguiam sua trajetória de estranhamento no descompasso
dos tempos. Mas uma coisa era certa, nem tudo aqueles viajantes
poderiam nos ensinar. Por algum tempo, entre os anos 2000 o
interesse pelos viajantes estagnou-se.
No Espírito Santo coube a Levy Rocha, no início dos anos
1970, apresentar uma das melhores sínteses acerca dos viajantes
estrangeiros que passaram pelas terras capixabas no século XIX.
Estudo rigoroso que localizou nomes e trouxe à lume informações
preciosas sobre o passado daquela província a partir do olhar dos
viajantes que aqui estiveram. Ainda corria naqueles anos a inter-
pretação corrente de que o Espírito Santo era o primo pobre da Fe-
deração. Estado tampão, barreira verde, terra que teria conhecido
pouca prosperidade, cuja modernização era devida exclusivamen-
te ao café ou à ferrovia; enfim o Espírito Santo era visto como um
estado atrasado porque, como constataram alguns viajantes, era
terra de grandes belezas naturais, mas de povo pouco empreende-
dor. No melhor dos casos, porque era atrapalhado pelos seus vizi-

16
nhos. Essa narrativa grassava na imprensa, nos discursos políticos
e em muitas obras produzidas. Aliás, ela ainda seduz e convence
muitas pessoas, a despeito de sua incorreção.
Para nossa sorte, e partir de 2010 o estudo dos viajantes
ganhou grande impulso no Espírito Santo, graças, sobretudo aos
esforços do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo que es-
timulou a produção de pesquisas e a publicação de novos estudos
e traduções. O livro que o leitor tem em mãos parece coroar esse
processo. Ele é o resultado alvissareiro de variados esforços coleti-
vos e do mérito individual de seu autor que realizou façanha consi-
derável de pesquisa num curtíssimo espaço de tempo, cujo mérito
foi reconhecido em premiação e escolha face a outros trabalhos em
edital da Secretaria de Cultura do Estado do Espírito Santo para
publicação.
Esta obra de Bruno Nascimento é um convite para rea-
valiarmos o passado e a história do Espírito Santo. Fruto de uma
pesquisa louvável realizada por um historiador jovem, provido de
talentos quase renascentistas tanto no domínio das fontes quanto
das máquinas e do tempo. Mas também, no manuseio dos textos
e na produção das imagens. Um autor capaz de produzir livros,
da tecla, à tela e desta até o offset. Neste livro primoroso, repleto
de análises pontuais e de imagens belíssimas, temos a possibili-
dade de encontrar as raízes de nossa terra, produzido por um au-
tor meticuloso e detalhista, que habilidosamente discute textos
e contextos. Seus capítulos são um convite para mergulharmos
novamente naquele passado capixaba tal como foi captado pelo
naturalista francês Saint-Hilaire e pelo príncipe germânico Ma-
ximiliano. Nos labirintos entre o real e o imaginado, entre o pas-
sado e o presente, Bruno Nascimento nos conduz com segurança,
apontando soluções bastante originais para a compreensão dos
textos daqueles dois ilustres viajantes que passaram há dois sécu-
los pelo Espírito Santo. Seu livro é capaz de nos reconduzir a pro-
blemas decisivos de nossa história, ao mesmo tempo em que nos

17
apresenta novas reflexões sobre eventos emblemáticos. Sua leitura
é um convite generoso para encontrarmos nestas narrativas de
viagem histórias e informações pertinentes e, acima de tudo, en-
cantadoras.

Julio Bentivoglio
Professor do Departamento de História
Universidade Federal do Espírito Santo

18
Introdução

Durante grande parte de sua existência a Capitania do Espíri-


to Santo esteve envolvida em querelas administrativas com a Corte
Portuguesa. Entre as principais discussões estavam: os problemas
de gestão gerados pela suposta inabilidade administrativa por parte
dos donatários; o baixo interesse e investimentos reais, que em di-
versas ocasiões estavam com os olhos voltados para determinadas
áreas ou regiões de interesse, como foi o caso do nordeste açucareiro
e das Minas Gerais, com seus veios dourados; e por fim, a dificul-
dade de expansão do território colonial na referida Capitania, haja
vista, a "selvageria" de suas terras, que se consolidou como "frontei-
ra" imaginária de diversos povos indígenas, fazendo com que esse
território fosse "superpovoado", local de permanente disputa entre
povos nativos, além de lar dos temidos Botocudos.
Se Pernambuco floresceu como um próspero modelo de ad-
ministração do sistema de Capitanias Hereditárias, o mesmo não
se deu com o Espírito Santo, posto que teve seu território mutilado
com a descoberta das minas a partir de 1693 e sua reaquisição, por
parte da Coroa Portuguesa, das mãos dos descendentes do donatá-
rio Francisco Gil de Araújo1 em 1715.2
Tais fatores podem ser considerados como alguns dos elemen-
tos responsáveis pelo lento desenvolvimento dessa Capitania. Porém,

1  Francisco Gil de Araújo adquiriu a Capitania do Espírito Santo de Antônio Luís


Gonçalves da Câmara Coutinho no ano de 1674, pela quantia de 40.000 mil cruzados.
Foi durante sua administração que houve a edificação de diversos fortes na entrada da
Baia de Vitória visando a defesa contra possíveis investidas e invasões estrangeiras, a
exemplo das ocorridas nos anos de 1625, 1640 e 1653, quando os holandeses atacaram
o território capixaba.
2  Apesar da realização da compra ter sido realizada em 1715, somente em 1718 é que a
carta de aquisição e transferência foi definitivamente lavrada, gerando assim possíveis
debates sobre a data.

19
se de um lado haviam problemas no que concerne à gestão adminis-
trativa, do outro floresciam os frutos do projeto religioso, que marcou
presença em grande parte da região litorânea centro-sul da capitania,
indo desde Santa Cruz até Itapemirim, compondo-se de pequenas vi-
las, responsáveis, em sua grande maioria, pela construção dos relatos
e estereótipos que fartamente foram dominando o imaginário euro-
peu ao longo de três séculos, e que ainda se fazia presente em pleno
século XX, como pode ser visto em Claude Levi-Strauss.
O fato é que, por ser uma Capitania Real em seu fim, o Es-
pírito Santo se transformou em um "imenso laboratório", e entre os
"testes" estão: a formação da população colonizadora a partir do pe-
queno excedente populacional, católico, que via no Brasil a "terra da
oportunidade" e os degredados dos mais diversos cantos do Império
Ultramarino Português; o desenvolvimento em larga escala, como
possibilidade de "amansamento" dos indígenas, de diversos aldea-
mentos que contavam com vilas como a de Nova Almeida, Riritiba,
Guarapari e até mesmo Vitória; o investimento no sistema de fortes
e fortins, como elemento de defesa contra as ameaças de invasões
estrangeiras, que marcou os séculos XVI e XVII; e o sistema de Ca-
pitania Real. E assim foi, lentamente, moldando a Capitania, o que
acaba por tornar conveniente a construção da "narrativa do atraso
histórico" inculcada no capixaba, e que foi questionada por Rafael
Cerqueira em trabalho intitulado A narrativa histórica da superação
do atraso: um desafio historiográfico do Espírito Santo (2016).3
Por fim, somente com a chegada da Corte ao Brasil, em 1808,
tornou-se possível a saída, não somente do Espírito Santo, mas de
grande parte do Brasil, do estado de letargia que acometia a popu-
lação dessa colônia portuguesa, já que no início do século XIX ainda
parecia viver em meados do século XVI.

3  NASCIMENTO, Rafael Cerqueira do. A narrativa histórica da superação do atraso: um


desafio historiográfico do Espírito Santo. Tese (Doutorado em História). Programa de
Pós Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2016.

20
Assim, batido o pó, abertas as janelas e postas melhores
roupas e porcelanas para receber os novos e ilustres governantes,
é correto afirmar que basicamente duas questões tiravam o Espí-
rito Santo do anonimato que o cercava: os índios e sua guerra de
resistência contra os colonizadores, que a partir da declaração da
chamada "Guerra Justa", passaram a surgir em maior número e vo-
lume; e a constante disputa dos limites com as Capitanias de Minas
Gerais e Bahia.
Contudo, se as questões limítrofes de uma pequena capitania
pouco importavam à grande maioria da população colonial, os índios,
em muito, incomodavam e debatiam-se, e foi exatamente essa presença
marcante, aliada ao imaginário preconcebido pelos estrangeiros, que
fez com que um significativo número de viajantes voltassem seu olhar
para esse pequeno pedaço de terra escondido sob o olhar de todos.
Apesar desse aspecto idílico e imaginativo que passou a cer-
car o Espírito Santo,

sabe-se que a capital da província espírito-santense não estava in-


cluída na escala dos navios que se dirigiam para as Índias Orien-
tais, conforme ocorria com a Bahia e o Rio de Janeiro, tão bem
aquinhoadas em descrições e referências nos livros de viagens
transoceânicas de célebres expedições científicas.4

Definitivamente os viajantes estrangeiros, movidos, inega-


velmente, pelo espírito cientificista do século XIX, mas atiçados pelo
imaginário mítico alimentado por mais de 300 anos que pairou so-
bre a Europa no tocante ao Brasil, lançaram luz sobre o Espírito San-
to, que até aquele momento ficara ofuscado pela "grandiosidade" de
seus vizinhos, tornando acessível a todos, os modos de viver, fazer e
estar dessa capitania.

4  ROCHA, Levy. Viajantes estrangeiros no Espírito Santo. Brasília: Editora de Brasília,


1971, p. 20.

21
Então, se parcos foram os ilustres visitantes que no Espírito
Santo aportaram até o ano de 1816, muitos foram os que se seguiram
após esse ano, pois, foi a partir desse ponto que se "abriu" definitiva-
mente o caminho para o rompimento do isolamento em que se en-
contrava o Espírito Santo frente às demais capitanias que o cercava.
Tendo chegado ao Brasil em 1815, para uma grande expedição,
foi somente no final de 1816, e nas vésperas de seu retorno à Europa,
que o Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied adentrará em terras
capixabas. Após quatro anos de seu retorno ao velho Mundo ele publi-
ca sua obra Rise nach Brasilien in den Jahren 1815 bis 1817,5 que amplia
as visões estrangeiras sobre o Brasil e dá o primeiro passo no caminho
pelas e para as terras capixabas e seus "famigerados" botocudos.
Nem bem as pegadas de Maximiliano tinham se apagado,
chega, em 1817, ao Espírito Santo, aquele que será considerado um dos
maiores naturalistas que estiveram no Brasil, o francês Auguste de
Saint-Hilaire, que com a publicação da obra Voyage dans le District
des Diamans e sur le littoral du Brésil em 1833,6 abre definitivamente as
portas do Espírito Santo aos viajantes estrangeiros.
As obras de Maximiliano e Saint-Hilaire talvez estejam, jun-
tamente com Spix e Martius, no hall dos relatos estrangeiros mais
analisados e citados em trabalhos que se debruçam sobre o "debate
civilizatório" brasileiro e sobre a formação e alvorecer dessa nova na-
ção no início do século XIX. Esses, somados a Jean Baptiste Debret e
Johan Moritz Rugendas, compõem a galeria dos primeiros grandes
ilustrados no Brasil.
A publicação na Europa das obras resultantes dos diários de
viagem desses "desbravadores" do gênero científico, que se apoiaram
principalmente na História Natural, tendo como arcabouços
complementares a Botânica, a etnografia, a zoologia e as artes, despertou
uma onda de novos aventureiros, que tinham o Brasil como destino,

5  Traduzida para o português sob o Título: Viagem ao Brasil nos anos de 1815 a 1817.
6  Traduzida para o português sob o Título: Viagem ao Distrito dos diamantes e litoral
do Brasil: segunda viagem ao interior do Brasil.
22
principalmente, a partir da segunda metade do século XIX, período em
que o Espírito Santo recebeu um significativo número desses visitantes.
Entre os que estiveram presentes em terras capixabas, e
deixaram relatos, destacam-se: Charles Landser (Inglaterra - 1826);
Jean Descourtilz (França - 1851); Edward Wilbeforce (Inglaterra -
1851); François-Auguste Biard (França - 1858); Victor Frond (França
- 1860); Johann Jakob von Tschudi (Suíça - 1860); Dom Pedro II (1860);
Charles Hatt (Canadá - 1865); Julie Keyes (EUA - 1867); Paul Ehrenreich
(Alemanha - 1884); Teresa da Baviera (Alemanha - 1888); e por fim, o
único viajante do início do período republicano brasileiro, Paul Walle
(França - 1910); além, é claro, de uma enorme massa de esquecidos
ou, que de passagem em algum momento, deixaram escapar a
oportunidade de produzir alguma obra substancial sobre o local.
Demonstrado a grande massa de estrangeiros presentes no
Espírito Santo ao longo do século XIX, fica latente a necessidade de
se dedicar, mesmo de maneira breve, um estudo sobre aqueles que
de certa forma foram os pioneiros desses passos e que lançaram um
novo olhar sobre os capixabas e seus costumes, legando-nos uma
imensa massa de informações sobre um tempo já há muito perdido.
Assim, Maximiliano e Saint-Hilaire merecem, pelo seu pio-
neirismo e pelos 200 anos de sua visita, o direito a mais algumas
breves palavras, afinal, como proposto pelo primeiro, sua obra

não tem a pretensão de apresentar algo perfeito, ouso entretanto


esperar que os estudiosos de história natural, da geografia, dos há-
bitos e costumes de cada povo, encontrarão nas minhas informa-
ções contribuição não totalmente despida de importância para os
interesses da ciência e da humanidade.7

7  PHILIPP, Maximiliano Alexander. Viagem ao Brasil. Trad. Edgar Süssekind de Men-


donça; Flávio Pope de Figueiredo. São Paulo: EDUSP, 1989, Coleção reconquista do Bra-
sil, v. 156, p. 10.
23
Capítulo I

Brasil: entre o real e o imaginado

Uma terra exótica e restrita. Misteriosamente selvagem e com


riquezas inimagináveis. Acima de tudo, cercada e marcada pela
brutalidade de seus nativos, que, sem o menor pudor, devoravam
àqueles que são diferentes e alheios as suas crenças e práticas. Defi-
nitivamente o Novo Éden.
Essa é uma das possíveis descrições idílicas e fantasiosas que
predominou e norteou os relatos dos viajantes de diversas naciona-
lidades que estiveram por essas paragens, e que se perpetuou desde
a “certidão de nascimento” do Brasil, como pode ser percebido nas
palavras de Claude Lévi-Strauss, por ocasião de sua vinda ao Brasil
como professor da Universidade de São Paulo na década de 1930.
O Antropólogo revelou que ao sair da Europa possuía a seguinte
perspectiva do Brasil: “O Brasil esboçava-se em minha imaginação
como feixes de palmeiras torneadas, ocultando arquiteturas estra-
nhas, tudo isso banhado num cheiro de defumador”.8
A Terra da Felicidade9 seguiu cercada de fantasias e misté-
rios, como os amplamente difundidos pelos relatos dos mareantes
que por aqui estiveram no século XVI, a exemplo do missionário

8  LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 45.
9  Uma das possíveis traduções de “Hy Brazil”, nome dado ao conjunto de ilhas míti-
cas da cultura céltica e irlandesa que descreve a presença de uma terra repleta de paz,
felicidade e livre de preocupações e doenças. Uma terra onde predomina a abonança.
Cf. VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil Colonial (1500 – 1808). Rio de Janeiro:
Objetiva, 2000, p. 81-82; ABREU, Capistrano. O descobrimento do Brasil. Brasília: Edito-
ra UNB, 2014, p. 125; KANGUSSU, Imaculada. Brasil e as utopias. Trama disciplinar, São
Paulo, v. 5, n. 2, p. 23-24, 2014.

25
calvinista Jean de Léry (1578),10 que esteve no Brasil durante o pro-
cesso de instauração da França Antártica, e do mercenário alemão
Hans Staden (1557), sendo que o relato desse “teve nada menos que
dez reedições em cinco anos, foi rapidamente traduzida para o ho-
landês (1558), para o latim (1559) e para o flamengo (1560), bem como
para o inglês e o francês”.11
Relatos que eram marcados por uma linguagem carregada
de metáforas e sujeitos a uma simbologia predominantemente cris-
tã, de caráter tanto católico, quanto protestante, que, por diversas
vezes, devido ao desconhecimento da cultura daqueles que por aqui
estavam e, principalmente, pela barreira da língua, acabaram por
deturparem a realidade cultural, social e humana do Novo Mundo.
Outro fator preponderante para a compreensão do tipo de
relato construído é o conhecimento prévio da atividade exercida
por aquele que escreve, pois isso auxilia na compreensão do tipo
de olhar lançado sobre o contexto, isso porque, segundo Mirian
Moreira Leite,

a lista de profissões era extensa. Entre eles estavam professores, gover-


nantas, pastores protestantes, missionários, cientistas, representantes
diplomáticos, oficiais da marinha, advogados, comerciantes, solda-
dos, artistas, artesãos, naturalistas, mercenários, aventureiros, etc.12

O fato é que durante os séculos que se seguiram, diversos ou-


tros relatos floresceram sobre a Terra Brasilis. Espanhóis, em sua pe-

10 Cf. LÉRY, Jean de. História de uma viagem feita à Terra do Brasil, também chamada
América. Trad. Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro,
2009.
11  BUENO, Eduardo. Como era gostoso Hans Staden: um livro para devorar. In.: STA-
DEN, Hans. Duas viagens ao Brasil: primeiros registros sobre o Brasil. Trad. Angel Boja-
dsen. São Paulo: L&PM Pocket, 2008, p. 11.
12  SARAT, Magda. Literatura de viagem: olhares sobre o Brasil nos registros dos via-
jantes estrangeiros. Patrimônio e Memória, São Paulo, v. 7, n. 2, p. 38, 2011.

26
Ritual de canibalismo dos índios Tupinambás. Fonte: STADEN, Hans. Duas viagens ao
Brasil: primeiros registros sobre o Brasil (1592). Edição de Theodor de Bry.

regrinação as terras dos veios de prata, holandeses, que ocuparam o


nordeste brasileiro, franceses e ingleses. Um movimento contínuo de
narrativas construídas, principalmente, durante o processo de dispu-
ta e expansão das possessões coloniais que se deu durante os séculos
XVI e XVII, mas que sofreu drástica redução após a definitiva instala-
ção do monopólio português sobre o território da colônia do Brasil e
do decreto de restrição de estrangeiros em territórios ultramar.
Entretanto, com a franca expansão do espírito iluminista
pela Europa do século XVIII retoma-se o processo de peregrinação
pelos domínios coloniais, agora, com vistas à construção de um
conhecimento global e total, tendo a História Natural e a Biologia
como elementos norteadores, afinal, a experiência é um elemento

27
central no processo de racionalização iniciado no século XVII, e que
possui a observação como um dos pilares da fundamentação do co-
nhecimento, dessa maneira, “um cego do século XVIII pode ser per-
feitamente geômetra, não será naturalista”.13
Dentro desse contexto de experiência e observação como
elemento constitutivo de um determinado saber, Magnus Roberto
de Mello Pereira e Ana Lúcia Rocha Barbalho da Cruz defendem que

se, para o naturalista do século XVIII, a viagem se impunha como


experiência indissociável da prática científica, por outro lado, a
ideia de viagem instrutiva arrebanhava inúmeros adeptos entre os
europeus cultos. O mundo natural, decodificado pelas ciências da
natureza, parecia excitar a curiosidade de homens e mulheres ins-
truídos. Aqueles que dispunham de recursos, viajavam, os que se
deixavam ficar, deliciavam-se em colecionar “exotismos” da natu-
reza transformados em índices de atualização cultural e erudição.14

No caso português, esse processo de observação teve início


com a instauração das chamadas Viagens Philosóphicas, organiza-
das pelo Ministro do Ultramar Martinho de Melo e Castro e pelo
naturalista Domingos Vandelli, caracterizadas

pela pretensão enciclopedista de produzir um conhecimento exten-


sivo e detalhado do território visitado. O levantamento minucioso
e exaustivo a que devia proceder o viajante naturalista não se res-

13  FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.
8 ed. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 142.
14  PEREIRA, Magnus R. M.; CRUZ, Ana Lúcia R. B. O viajante instruído: os manuais
portugueses do iluminismo sobre métodos de recolher, preparar, remeter, e conservar
produtos naturais. In.: DORÉ, Andréa; SANTOS, Antonio C. A. Temas Setecentistas: go-
vernos e populações no Império Português. Curitiba: UFPR/Fundação Araucária, 2009,
p. 247.

28
tringia às produções do mundo natural, mas abarcava também a in-
vestigação sobre a “natureza humana” dos habitantes autóctones.15

A exemplo de outras grandes Sociedades Científicas euro-


peias, Portugal viralizou expedições por todos os seus domínios e
apoiou oficialmente tais empresas por meio de seu Ministério de
Ultramar, que mirando melhores condições de envio e conservação
das espécies coletadas, encomendou e editou manuais de trabalho,
tais quais Viagens filosóficas ou dissertação sobre as importantes re-
gras que o Filósofo Naturalista nas suas peregrinações deve princi-
palmente observar (1779) de Domingos Vandelli, Breves instrucçoens
aos correspondentes da Academia das Sciencias de Lisboa sobre as
remessas dos productos e notícias pertencentes a história da Natureza
para formar um Museo Nacional (1781) da Academia de Ciências de
Lisboa, Méthodo de recolher, preparar, remeter e conservar os produ-
tos naturais. Segundo o plano que tem concebido, e publicado alguns
naturalistas, para o uso dos Curiosos que visitam os sertões, e costa do
Mar (1781) de autoria não identificada, entre outros.
Outra ação do governo português, que contribuiu imensu-
ravelmente para o aumento do fascínio pelas terras brasileiras, nesse
processo de racionalização das ciências naturais, foi o aumento sig-
nificativo da restrição, surgida no século XVII, de acesso estrangei-
ro a terras que estivessem sob a égide portuguesa,16 pois, “recolher e

15  CRUZ, Ana Lúcia R. B. da. Verdades por mim vistas e observadas Oxalá foram fá-
bulas sonhadas: cientistas brasileiros do setecentos, uma leitura auto-etnográfica. Tese
(Doutorado em História). Programa de Pós Graduação em História, Universidade Fe-
deral do Paraná. Curitiba, 2004, p. 123.
16  O caso mais emblemático de restrição ao território brasileiro foi o de Alexander
Von Humboldt no ano de 1800. Segundo Levy Rocha “em março de 1800, o Barão de
Humboldt e o cientista Aimé Bompland, integrante da comitiva, preocupados em des-
cobrir a ligação dos rios Orenoco e Amazonas, embrenharam-se na selva brasileira.
Um soldado da guarnição fronteiriça com a Venezuela, julgando-os espiões, deu-lhes
voz de prisão.” ROCHA, Levy. Viajantes estrangeiros no Espírito Santo. Brasília: Editora

29
dar a conhecer o maior número possível de espécies tornara-se uma
questão nacional”,17 afinal, os “álbuns eram, sobretudo, evidências do
poder das nações que patrocinavam as missões e possuíam conhe-
cimento e recursos das terras americanas, ainda mal conhecidas”.18

Exemplo de manual escrito durante o período das


Viagens Philosóficas portuguesas. Breves instrucçoens
aos correspondentes da Academia das Sciencias de
Lisboa sobre as remessas dos productos e notícias
pertencentes a história da Natureza para formar um
Museo Nacional.Lisboa: Academia de Ciências de
Lisboa, 1781.

Para Jean Marcel Carvalho França,

Em virtude dessa postura xenófoba e lacônica de Portugal, a nar-


rativa de viagem transformou-se num dos poucos instrumentos de
que dispunha o europeu medianamente culto para conhecer um
pouco o exótico Brasil. Destarte, acabou por ser das notas quase
sempre apressadas tomadas por aventureiros durante curtas arri-
badas em portos brasileiros que, por mais de três séculos, os habi-
tantes da velha Europa tiraram os subsídios para compor a sua ima-
gem do mundo que o português estava construindo nos trópicos. 19

de Brasília, 1971, p. 18.


17  PEREIRA, Magnus R. M.; CRUZ, Ana Lúcia R. B. O viajante instruído... Op. cit., p. 242.
18  BELLUZZO, Ana Maria. A propósito d’ o Brasil dos viajantes. Revista USP, São Paulo,
n. 30, p. 8 – 19, 1996.
19  FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Imagens do Brasil nas relações de viagem dos sé-

30
Gravura confeccionada durante as Viagens Philosóficas Portuguesas no final do século XVIII
- Expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira. Máscaras do índios Jurupixunas. Pintura de
Joaquim José Codina, c.1790.

31
Tal restrição aos estrangeiros perdurou até a chegada da Fa-
mília Real Portuguesa ao Brasil no ano de 1808, quando o acesso a
terras brasileiras ganhou fôlego após a abertura dos portos às nações
amigas, da institucionalização das missões artísticas e científicas e do
tratado de paz com a França em 1815, assinado após a derrota de Na-
poleão Bonaparte.
Isso fez com que os anos posteriores a 1808, até a virada
para o século XX, fossem notadamente marcados pela presença
desses interlocutores estrangeiros que levavam a outras nações as
suas impressões, vislumbres e espantos sobre essa terra “onde tudo
que se planta, dá”.20
O fato é que, por mais que Claude Levi-Strauss tenha
desdenhado e demonstrado asco à literatura de viagem,21 a mesma se
tornou altamente consumida, tanto por leigos, quanto por doutos,
pelo fascínio que a mesma traz aos seus leitores, transpondo-os
às profundas selvas brasileiras ou às bravias savanas africanas.
Até mesmos as literaturas ficcionais, que utilizam do artifício de
transposição do leitor, são avidamente devoradas, dadas as suas
riquezas de detalhes e profunda penetração no imaginário social,
exemplos clássicos são as obras de Júlio Verne, Agatha Christie e,
mais recentemente, Dan Brown.
A repulsa por esse tipo de literatura, expressado claramente
por Levi-Strauss, está no fato de que os “grandes viajantes” realizavam
a construção de relatos que via o outro, no entanto, não compreen-
dia o outro. Uma representação realizada por personagens desloca-
dos da realidade local, que possuíam uma clara e preponderante carga
identitária e que não se enxergava na diferença, contribuindo, dessa
maneira, para o aumento do abismo que havia entre os diversos tipos

culos XVII e XVIII. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 15, p. 8, 2000.
20 Cf. Carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei D. Manuel.
21 Cf. LEVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Editora Anhembi Limitada,
1957.

32
e estágios de civilização. Confronto que chegou ao seu ápice no sé-
culo XIX, principalmente após a chegada da Família Real que impôs
ao Brasil, um indiscutível processo civilizador embasado em moldes
europeizantes.
Apesar de todas as construções, algumas vezes idílicas, outras
depreciadoras sobre o Brasil, o fato é que, inegavelmente, os viajan-
tes estrangeiros nos deixaram relatos fundamentais sobre parte do
cotidiano brasileiro nos séculos passados. Uma visão de nós a partir
do “outro”, ou nos termos de Norbert Elias, do outsider. Uma histó-
ria reveladora e em alguns momentos perturbadora, no entanto, uma
história que nos interessa, nos diz respeito, e acima de tudo, que nos
pertence e que auxilia na compreensão da formação cultural e do povo
brasileiro, afinal, como já dito por José Honório Rodrigues,

A literatura de viagem é fundamental para a reconstrução histórica.


Ela fornece ao historiador a imagem que os estrangeiros fazem de
nós, sempre tão diferente da ideia que nós mesmos fazemos da nossa
terra e da nossa gente e da própria história que produzimos e que os
historiadores procuram recriar.22

Inquestionavelmente, as literaturas de viagem, mesmo nos


dias atuais, continuam a seduzir, encantar e a colecionar um pú-
blico cada vez maior e mais cativo. Relatos como o do antropó-
logo alemão Paul Ehrenreich (2014), da princesa Bávara Therese
Charlotte (2013) e do comerciante francês Paul Walle (2015), recém-
traduzidos e analisados por Júlio Bentivoglio, trazem o cotidiano
da vida capixaba a partir da segunda metade do século XIX e as
incursões ao interior que buscavam “desvendar” os mistérios dos
selvagens e assustadores botocudos. Já trabalhos como os desen-
volvidos por Mintaha Alcuri Campos (2014), Júlia Louisa Keyes

22  RODRIGUES, José Honório. Viajantes do Brasil no século XVII. Revista de História,
São Paulo, n. 37, p. 155, 1959.

33
(2013), Hugo Wernicke (2013) e Johann Jakob Von Tschudi (2004)
tiveram como alvo de descrição as imigrações estrangeiras e a ins-
talação de diversos povos e etnias em solo capixaba. Até mesmo o
Imperador D. Pedro II produziu uma vasta literatura de viagem,
tendo o diário que descreve sua passagem pela província do Es-
pírito Santo, no ano de 1860, transcrito e editado por Levy Rocha
(2008), e a atualidade da leitura nos trouxe a obra de Cilmar Fran-
ceschetto, Victor Frond – 1860 (2015).
A atualidade dos resgates das literaturas de viagem torna
possível o ressurgimento de grandes obras publicadas sob essa ban-
deira que, de maneira significativa, contribuíram para a compreen-
são do Brasil, ou melhor dizendo, dos Brasis, nesse caso em parti-
cular, as obras do naturalista e etnólogo Prince Alexander Philipp
Maximilian Zu Wied-Neuwied, conhecido como Príncipe Maximi-
liano de Wied-Neuwied, Viagem ao Brasil (1820), e do botânico e
naturalista Auguste de Saint-Hilaire, Segunda Viagem ao interior do
Brasil: Espírito Santo (1833), que foram produzidas a partir de suas
respectivas visitas em 1817 e 1818, e que hoje, encontram-se às véspe-
ras de comemorar 200 anos, por isso merecem significativa atenção.
No caso do Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied sua
viagem teve a duração de dois anos (1815 - 1817) e percorreu as capi-
tanias do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia.
Possivelmente Maximiliano tenha sido o primeiro viajante
estrangeiro, com intenções voltadas à pesquisa científica e autoriza-
do pela coroa portuguesa a sistematizar e publicar um estudo sobre
o Brasil, visto que os relatos descritivos que o antecederam eram
embasados em diários de viagens e impressões, geralmente superfi-
ciais, que seus autores possuíam de nossa terra e nossa gente.
Considerado como um dos pais fundadores dos estudos et-
nográficos no Brasil, Maximiniano de Wied-Neuwied teve conta-
to com diversas etnias indígenas ao longo de seu trajeto, entre elas
Botocudos, Coroados, Coropós, Capoxo, Cumanaxo, Guerén, Ka-
makã, Maxakali, Maconi, Malali, Menién, Panhame, Puris, e Pata-

34
xós, o que lhe permitiu uma análise complexa e mais profunda das
populações nativas do Brasil.
Segundo Igor de Lima e Silva “o trajeto executado pelo via-
jante, do Rio de Janeiro até a Bahia, não coincidiu com o de nenhu-
ma outra expedição estrangeira”,23 o que faz com que a análise de
Maximiliano caracterize-se como de grande relevância, tanto para
a História Natural, como para diversas outras ciências, tais como a
botânica, biologia e ornitologia, visto o rico descritivo de uma área
hoje ameaçada, que é a Mata Atlântica, além da antropologia, da
história, e da geografia.
Francisco Adolpho Varnhagen afirma que:

Do príncipe Maximiliano cumpre-nos dizer que além de que, na


sua viagem por terra do Rio à Bahia, pelo Espírito Santo, llheos e
Porto Seguro, fez várias observações importantes não só geogra-
phicas, como relativas à historia natural, elle foi o primeiro que,
com estampas fielmente copiadas e gravadas, offereceu à Europa
quasi como photographia dos os aspectos physionomicos dos nos-
sos Indios.24

Quando publicada na Europa em 1820, a obra Viagem ao


Brasil rapidamente se espalhou pelo continente, sendo traduzida
para o inglês, francês, italiano e holandês. A contribuição de Ma-
ximiliano na sistematização da flora, da fauna e das populações in-
dígenas brasileiras, certamente fomentou futuras visitas ao Brasil e
à Capitania do Espírito Santo, como é possível assistir nos relatos
de seu contemporâneo Auguste de Saint-Hilaire, e nos daqueles que

23  SILVA, Igor de Lima. Viagem ao Brasil: produção e circulação entre o público euro-
peu do século XIX. Clio: Revista de pesquisa Histórica, Recife, n. 32, p. 176 - 195, 2014.
24  VARNHAGEN, Francisco Adolpho. História Geral do Brazil: antes da sua separação
e independência de Portugal. 2. ed. rev. T. II. Rio de Janeiro: E & H. Laemmert, 1877, 2
v, p. 1178.

35
visitaram o Brasil na segunda metade do século XIX, a exemplo de
Paul Ehrenreich e Teresa da Baviera, além de colocar “em dúvida a
prática da antropofagia tão fortemente imposta às populações indí-
genas do Brasil”.25

Entretanto, a obra Viagem ao Brasil não ficou restrita aos seus pa-
res, pelo contrário, a lista de compradores era extensa e diversifica-
da, entre os solicitantes estavam o imperador da Áustria, os reis da
Baviera, Dinamarca, membros da família do Czar, além de socie-
dades científicas e bibliotecas.26

Capa da edição alemã do livro do Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied. Viagem ao Brasil


nos anos de 1815 a 1817. Frankfurt, 1821.

25  SILVA, Igor de Lima. Viagem ao Brasil ... Op. cit., p. 184.
26  Ibidem, p. 186.

36
Já Auguste de Saint-Hilaire, nomeado como “notável ami-
go do Brasil” por Varnhagem, possivelmente foi, entre os inúmeros
viajantes estrangeiros, o que mais permaneceu e viajou pelo Brasil.
Com uma missão estrangeira que durou cerca de seis anos, Saint-
-Hilaire esteve presente nas capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo,
Minas Gerais, Espírito Santo, Goiás, Santa Catarina, Rio Grande do
Sul, chegando a alcançar até mesmo a Cisplatina. Essa vasta experi-
ência adquirida e vivida fez com que o mesmo registrasse diversos
aspectos da vida cotidiana da gente da terra, versando sobre econo-
mia, estatística, costumes, política, biografia, artes, geografia e his-
tória, o que acabou por ser extrapolado na gigantesca obra Voyage
dans le district des Diamans et sur le littoral du Brésil (1833 - 2 v.),
além desse

publicou trabalhos científicos sobre a flora brasileira e deu algumas


contribuições de valor ao estudo das línguas indígenas, apresen-
tando, entre outros, pequenos vocabulários malali, monoxó, ma-
cuni, maxacali e coroado.27

A parte dessa gigantesca obra dedicada ao Espírito Santo


está compreendida entre os capítulos VII e XV do tomo II do segundo
volume, e aborda assuntos tais como: panorama geral da Capitania
do Espírito Santo, reproduzido por Carlos Madeira na Revista do
Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo no ano de 1935; os
índios; as vilas de Itapemirim, Benevente, Vitória, Nova Almeida,
Viana; dentre outros.
Assim, se em seu primeiro instante, os relatos de Maximi-
liano de Wied-Neuwied e Auguste de Saint-Hilaire permitiram aos
seus leitores um vasto acesso ao Brasil que lhes era contemporâneo,

27  OBERACKER, Carlos. Viajantes, naturalistas e artistas estrangeiros. In.: HOLANDA,


Sérgio Buarque (org.). História geral da civilização brasileira: o Brasil monárquico. T. II.
Vol. 1. Rio de Janeiro: Editora Bertrand do Brasil, 1993, p. 121.

37
hoje permite a imersão do leitor e, principalmente do historiador,
no cotidiano daquele Espírito Santo do século XIX, servindo quase
como uma máquina do tempo, descrevendo, com o máximo de de-
talhes, que era característico dos autores, um passado belicoso àque-
les que se arriscavam em demasiado, para que hoje fosse possível
realizarmos uma boa viagem!

SAINT-HILAIRE, Auguste. Voyage dans le District des Diamans e sur le littoral du Brésil.
Paris: Librairie Gide, 1833. Capítulo VII, a Capitania do Espírito Santo.

38
Capítulo II

A redescoberta do Brasil: a corte no


exílio e os viajantes estrangeiros

Aquele ano de 1808 mudou definitivamente a face do Brasil como


era até então conhecido, ou melhor ..., desconhecido, afinal “pode-
-se afirmar que até o começo do século XIX o mundo não conhecia a
respeito da flora, da fauna e da geografia do nosso país”.28
Todo aquele processo colonizador que tinha o “arcaísmo
como projeto” caiu por terra. Segundo Patrick Wilcken “com um
único e histórico decreto, o Príncipe Regente [D. João VI] eliminou
o mais oneroso fardo colonial do Brasil: abriu os portos à navegação
de todas as nações amigas”.29 O atraso não era mais aceitável e nem
mesmo possível. Essa terra era, naquele momento, a sede de um dos
maiores Impérios Coloniais que se conheceu, com diversos territó-
rios ocupados desde a Ásia até a América.
A fuga de Lisboa, devido à ameaça napoleônica de invasão,
fez com que aquele imenso “Império à deriva”, nas palavras de Pa-
trick Wilcken, lançasse ferros e fundeasse seus navios na baía de
Guanabara em março de 1808. Uma verdadeira esquadra composta
por aproximadamente 36 grandes navios, ocupada, entre os diversos
objetos de arte, riquezas, documentos, livros, bens pessoais da famí-
lia real, por cerca de 15 mil pessoas, a nata da burocracia portuguesa,

um vasto séquito de cortesãos – cirurgiões reais, confessores, da-


mas de companhia, encarregados do guarda roupa do rei, cozi-

28  OBERACKER, Carlos. Viajantes, naturalistas e artistas estrangeiros. Op. cit., p. 119.
29  WILCKEN, Patrick. Império à deriva: a corte portuguesa no Rio de Janeiro (1808 –
1821). Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, p. 102.

39
nheiros e pajens – juntou-se à nata ilustre da sociedade lisboeta:
conselheiros de estado, assessores militares, padres, juízes e advo-
gados, juntamente com suas famílias extensas.30

Uma enorme operação de guerra com um objetivo em men-


te: “transportar Portugal pelo mar” para que o mesmo não fosse
conquistado por Napoleão, a exemplo do que havia acontecido com
diversos outros pequenos e grandes reinos por toda a Europa, onde
as antigas dinastias reais tiveram que abdicar de seus títulos, e pri-
vilégios, em prol de conquistadores franceses indicados diretamente
por Bonaparte.

Retratos de uma fuga. Embarque da Família Real Portuguesa no cais de Belém, 29 de novem-
bro de 1807. Óleo sobre tela de Henry L’Evêque, c. 1811.

30  WILCKEN, Patrick. Império à deriva... Op. cit., p. 52.

40
O embarque do Príncipe Regente D. João VI para o Brasil. Gravura de Giuseppe Gianni, c.
1830, Acervo da Biblioteca Nacional – Rio de Janeiro Brasil.

A transposição da corte para os trópicos tornou-se, ao mes-


mo tempo, real31 e inimaginável. Apesar de compor elemento de des-
taque dentro do cenário colonial português, o Rio de Janeiro, capital
da colônia naquele momento, ou até mesmo Salvador, não possuíam
qualquer tipo de estrutura para receber um acontecimento de tal
magnitude, dessa forma a Família Real não tinha a mínima ideia do
que lhe aguardava no Brasil.
Com uma recepção marcada pela pompa, os portugueses
chegam ao Rio de Janeiro e ao desembarcarem se depararam com

31  Vale ressaltar que a proposta de transposição da Corte Portuguesa para as terras
coloniais brasileiras não é algo que surgiu simplesmente com as invasões napoleônicas.
A proposta fora feita em várias ocasiões onde a coroa e sua herança foram postas sob
ameaça. Algumas pesquisas apontam que a primeira vez que essa proposta surgiu foi no
ano de 1580, durante a crise de sucessão de D. Antônio. Sobre o assunto Cf. PEDREIRA,
Jorge; COSTA, Fernando Dores. Dom João VI. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006.

41
Chegada da Família Real Portuguesa ao Rio de Janeiro em 7 de Março de 1808. Óleo sobre
tela de Geoffrey Hunt, 1999, Acervo particular.

o abismo que havia entre a Lisboa, capital de um império, e seus


subalternos. Com problemas de moradia, adequação de espaços, e
ausência de uma estrutura burocrática capaz de atender as deman-
das do aparato imperial, a chegada ao Rio de Janeiro se transformou
em uma verdadeira catástrofe do ponto de vista político. Devido a
essa insuficiência institucional,

No palácio real, o trabalho prosseguiu em ritmo acelerado. Os cai-


xotes repletos de arquivos, documentos estatais, correspondência
ministerial e livros que tinham viajado com a frota foram arruma-
dos em seus lugares, criando-se toda uma estrutura institucional.
O protótipo era Lisboa, e não tardou a haver um completo apare-
lho de Estado em funcionamento. Os primeiros meses assistiram à
criação de entidades por ordem real de D. João: uma Suprema Cor-
te, uma Tribuna de Recursos, um Conselho Militar, um Ministério
da Fazenda e uma Câmara de Comércio, Indústria e Navegação,

42
quase todos réplicas de instituições portuguesas, trazendo apenas
a seus nomes a expressão “do Brasil”. 32

Para além da implantação de todo esse aparelho de estado,


fez-se brotar sobre a antiga cidade colonial do Rio de Janeiro, que es-
tava “espremida entre o mar e uma série de manguezais insalubres,
do morro do Castelo ao de São Bento, delineada por ruas estreitas
e tortuosas, com casas desprovidas de comodidades”,33 um novo es-
paço urbano, agora tomado totalmente pela perspectiva de se tornar
uma cidade imperial, com “A Escola de Marinha, instalada no Mos-
teiro de São Bento; a Escola de Artilharia e Fortificações, na Casa do
trem; o Jardim Botânico; a Fábrica de Pólvora; o Hospital do Exérci-
to, entre outros, alteraram radicalmente o cenário da cidade”.34 En-
tão, com o início do processo de reformulação da estrutura urbana

as varandas mouriscas de treliça, que compunham a fachada de


muitas casas do centro, foram proibidas e substituídas por jane-
las ou grades de ferro. Sua retirada desobstruiu algumas ruas mais
estreitas, permitindo a passagem da luz e deixando que o ar circu-
lasse mais livremente. As praças da cidade foram esvaziadas e, de
acampamentos improvisados para as tropas de mulas que vinham
do interior, foram convertidas em praças de armas em estilo ibé-
rico. Pavimentaram-se ruas, drenaram-se charcos e se projetaram
diversas obras de infraestrutura. A construção de casas, incentiva-
da por generosas isenções de impostos, aos poucos teve início ao
norte das áreas centrais superpopulosas e, com o tempo, a Cidade
Nova ergueu-se das terras alagadiças aterradas. [...] Aprovou-se a
criação de um Jardim Botânico, e D. João inaugurou o Horto Real,

32  WILCKEN, Patrick. Império à deriva. Op. cit.,p. 145.


33  NEVES, Lúcia Maria Bastos P.; MACHADO, Humberto Fernandes. O Império do Bra-
sil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 30.
34  Ibidem, p. 35.

43
numa área próxima a uma grande lagoa, aos pés da montanha do
Corcovado, a vários quilômetros do centro da cidade.35

Algumas das mudanças estruturais causadas pela chegada da Família Real ao Rio de Janeiro.
Aqueduto. Arcos da Carioca com a Rua Matacavalos. Óleo sobre tela de Richard Bate, c. 1820.

As mudanças estruturais foram remodelando não somente


o espaço urbano, mas as sociedades de corte e coloniais, já que para
muitos, a chegada da Família Real ao Brasil foi, definitivamente, a
engrenagem que faltava para a inserção dessa colônia em um coeso,
e bem definido processo civilizador, tendo em vista que aquela visão
idílica contida na “certidão de nascimento do Brasil” foi substituída
por características mais brutas, e que denegriam a população colo-
nial brasileira, quando a mesma passou a ser nomeada de indolente,
selvagem, ociosa, pagã e degenerada pela mestiçagem. Estigmas in-

35  WILCKEN, Patrick. Império à deriva... Op. cit., p. 151.

44
corporados por muitos estrangeiros, e até mesmo pelos portugue-
ses exilados, como é o caso do arquivista real Luiz Marrocos, que
em carta a seu pai, em Lisboa, relata que “o Brasil era uma terra
de sevandijas, com uma população indigníssima, soberba, vaidosa,
libertina”.36
No entanto, o fato é que o isolamento da colônia causado
pelo protecionismo extremo do governo português levou o Brasil ao
desenvolvimento de práticas e culturas próprias, que distanciou a
realidade da colônia cada vez mais de sua metrópole, e a ausência de
elementos culturais múltiplos e diversos fez com que a elite colonial
se tornasse bruta e desalinhada com o que se esperava de uma classe
dirigente.
Um exemplo claro desse abismo cultural e de formação so-
cial criado pelo pacto colonial português está na ausência de um
sistema de ensino, que aos moldes europeus, formasse a classe di-
rigente. Ao contrário das colônias hispânicas na América, o Brasil
não possuiu, até o século XIX, uma universidade sequer. Sabe-se que

enquanto a Espanha espalhou universidades pelas suas colônias –


eram 26 ou 27 ao tempo da independência – com o objetivo de
formar profissionais indispensáveis ao processo de expansão de
suas possessões, Portugal não permitiu o ensino superior em terras
brasileiras a não ser para as carreiras eclesiásticas, pois o intuito era
manter o Brasil sob o seu domínio.37

Dessa forma, o que de fato pode ser compreendido nesse


processo é que a demanda real por serviços das mais diversas na-

36  WILCKEN, Patrick. Império à deriva... Op. cit., p. 221.


37  FERREIRA, Alexandre Marcos de Mattos Pires. A criação da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da USP – um estudo sobre o início da formação de pesquisadores e pro-
fessores de Matemática e de Física em São Paulo. In: 13º Seminário Nacional de História
da Ciência e da Tecnologia. São Paulo: EACH/USP, 2012, p. 1.

45
turezas tornou impossível a manutenção de um isolamento apoiado
principalmente no fechamento dos portos e na negação do acesso
estrangeiro ao território brasileiro. O decreto de abertura dos portos
às nações amigas mudou em definitivo o cenário colonial, trazendo,
como pode ser percebido por meio do fluxo de embarcações aden-
tradas nos portos brasileiros (Tabela 1), uma torrente de imigrantes
provenientes dos múltiplos reinos da península italiana e da Con-
federação Germânica, além de ingleses, americanos, espanhóis, e,
após o término da guerra, uma onda de franceses, todos buscando
nesse “Novo Brasil” uma oportunidade e a sacies para a curiosidade
que cercava o imaginário estrangeiro sobre um território há muito
conquistado, porém, pouco conhecido.
Tabela 1: Navios entrados no Rio de Janeiro (1805 - 1810)

Ano Portugueses Estrangeiros

1805 810 -

1806 642 -

1807 777 -

1808 765 90

1809 822 83

1810 1214 422

Fonte: NEVES; MACHADO, 1999, p. 37.

Nesse contexto de acesso estrangeiro aos brasileiros, po-


de-se afirmar que, se com as Guerras Napoleônicas a influência
inglesa se tornou predominante até 1815, o que ocasionou uma
inundação dos mercados brasileiros por produtos manufaturados
britânicos, o fim do conflito fez reascender na sociedade portugue-
sa o gosto pelo refinamento e requinte francês. A partir de 1816 é
dada a largada para as denominadas missões culturais francesas,
e “a meta de civilizar seu antigo porto colonial, perseguida pela
corte no Rio, superou qualquer resíduo de ressentimento contra

46
o regime que a obrigara a fugir”,38 dessa forma, “no Brasil, o Rio
de Janeiro representaria o papel de Paris, assumindo a posição de
irradiador das luzes”.39
Arte, moda, comida, enfim, um novo estilo de vida tomou
conta do cenário tropical português. Enquanto produtos brutos de
origem inglesa chegavam à alfândega carioca, o requinte e o refi-
namento desembarcavam em obras de arte francesas, óperas ita-
lianas, músicos austríacos e germânicos e livros dos mais distan-
tes cantos do mundo, que se anteriormente eram proibidos, agora
inundavam as bibliotecas reais e particulares, além das diversas
livrarias que se espalharam pelas principais cidades brasileiras.
Dessa forma percebe-se que

nos avisos da Gazeta do Rio de Janeiro, aumentaram vertiginosamente


as ofertas de produtos franceses de luxo, tais como quadros, papel pin-
tado, ourives francês; panos de linho, cambraias, plumas; vestígios das
últimas modas oferecidos por Carlos Durand; vinhos em barrica e em
garrafas de Bordeaux, licores engarrafados, vinhos de Champagne; e,
mesmo, pão fabricado “com trigo lavado à moda de França”.40

Enfim, a vida cultural começa a dar novos ares ao Rio de Ja-


neiro, e ao mesmo tempo contribui para aumentar o distanciamento
social entre aqueles que aqui já estavam e os que chegaram sob a tu-
tela real. “Essa sociedade aristocrática ditava as regras do bom gosto
e, com ele, o luxo penetrou na cidade”.41

38  WILCKEN, Patrick. Império à deriva... Op. cit., p. 254.


39  BARBATO, Luis Fernando Tosta. Relatos de viajantes: de meras histórias de aventu-
ra ao saber voltado à instrução pública. In.: Anais do XXI Encontro Estadual de História
- ANPUH-SP. Campinas: ANPUH, 2012, p. 7.
40  NEVES, Lúcia Maria Bastos P.; MACHADO, Humberto Fernandes. O Império do Bra-
sil... Op. cit., p. 45.
41  Ibidem.

47
Essa mudança radical no comportamento social fez com que
os novos parâmetros culturais fossem se fortalecendo e ampliando.
Por toda a cidade, ateliês, herbários, livrarias, cafés e até mesmo um
teatro para mil pessoas surgiram, “afinal, desde a Versalhes de Luis
XIV (1661 – 1715), as atividades do espírito tinham passado a integrar
o modelo de corte que se difundira pela Europa”.42 No entanto,

se a civilidade, o luxo, o conforto, o gosto pelas artes, o teatro e


a música enraizaram-se nas camadas da elite, costumes rudes e
violentos persistiam, de modo geral, no cotidiano das populações
rurais, e, no próprio meio urbano, a presença da escravidão conti-
nuava a exigir o recurso indispensável da força e da violência para
garantir a ordem e os privilégios da minoria branca.43

Dentro desse contexto de abertura de portos e fortalecimen-


to de novas perspectivas culturais é que começam a desembarcar
no Brasil um número cada vez maior de estrangeiros com vistas a
“desvendar” e “desbravar” o Brasil, a exemplo das missões culturais
francesas compostas por nomes como o dos irmãos Taunay, Debret,
Sigismund Neukomm e Joachin Lebreton, que para realizar tal pro-
jeto ganharam apoio e financiamento real.
Se raros eram os relatos de viagem sobre o Brasil durante
os séculos XVI e XVIII, percebe-se uma efervescência desse
gênero literário a partir do século XIX. O elevado número de
estrangeiros, das mais diversas nacionalidades e ocupações,
como comerciantes, burocratas, médicos e artistas, começaram
a produzir uma vasta gama de registros, que iam de simples
cartas à família que ficou do outro lado do atlântico, a complexos
livros contábeis. Entretanto, dois gêneros ganharam significativo

42  NEVES, Lúcia Maria Bastos P.; MACHADO, Humberto Fernandes. O Império do Bra-
sil... Op. cit., p. 47.
43  Ibidem.

48
Com a chegada das Missões Francesas diversas construções começaram a tomar forma
buscando dar suporte a esse novo espírito cultural, entre elas a Escola Real de Ciências, Artes
e Ofícios. Construção incompleta da Academia de Pintura. Thomas Ender, 1817.

destaque nesse período: os diários de viagem e as grandes obras


analíticas da fauna e flora brasileiras.
Produções do período que merecem significativo destaque
são a do Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied, que esteve no
Brasil entre os anos de 1815 e 1817; Auguste de Saint-Hilaire (1817
– 1822), que publicou vasta obra sobre a flora, fauna, costumes,
política e administração brasileira; Carl P. Von Martius e Johann B.
Von Spix (1817 – 1820), provavelmente no hall dos viajantes que mais
percorreram o Brasil; Louis-François Tollenare (1816 – 1818), com
um significativo relato sobre os acontecimentos e personagens da
Revolução Pernambucana de 1817; Jean-Baptiste Debret (1817 – 1831),
que publicou entre os anos de 1835 e 1839 a magnífica obra Viagem
pitoresca ao Brasil com uma riqueza de desenhos, gravuras e pinturas
que retratavam o cotidiano, principalmente, da cidade do Rio de
Janeiro; e Thomas Ender, pintor austríaco que esteve no Brasil em
1817, como membro da delegação da Arquiduquesa Leopoldina, por

49
ocasião do casamento da referida com Pedro de Alcântara (futuro
D. Pedro I, Imperador do Brasil).
Essa constante e marcante presença dos viajantes e dos
membros das missões científicas evidenciou o fato de que “nenhum
país do novo mundo era, nessa época, melhor nem tão bem estuda-
do quanto o Brasil”,44 sendo que o pioneirismo dessa sistematização
deve-se a Maximiliano de Wied-Neuwied, pois, “foi, sem dúvida, o
primeiro grande cientista que não se restringiu a colecionar mate-
rial, mas que conseguiu sistematizá-lo e publicá-lo”.45
Acompanhados, geralmente por um pequeno grupo, hora
composto por negros, índios, tropeiros, hora somados a soldados,
caçadores, ilustradores e artistas, os viajantes cortaram o Brasil
em diversas direções, tendo como ponto de partida, em sua grande
maioria, a cidade do Rio de Janeiro.
Tomados pelo espírito enciclopedista dos iluministas dos sé-
culos XVII e XVIII, que possuíam a proposta de apreensão totalizan-
te do conhecimento, característica marcante nas ciências modernas
e extrapolada na Enciclopédia de Diderot, os “cientistas viajantes”
buscaram apreender o maior número possível de informações sobre
aspectos relevantes da “exótica” natureza brasileira.
A catalogação, ilustração, descrição e armazenagem de
exemplares da fauna e da flora tornaram-se marcantes nessas ex-
pedições. Sobre os lombos de tropas de muares tornou-se possível
transportar algumas dezenas de caixas com as mais diversas espé-
cies do nosso ambiente nativo.
À medida que as viagens foram ganhando um maior núme-
ro de adeptos, maior passou a ser o número de mecenas que abra-
çaram esse novo modelo de se produzir ciência. Até mesmo países
estrangeiros passaram a fomentar e a patrocinar tais empresas com

44  DERBY apud OBERACKER, Carlos. Viajantes, naturalistas e artistas estrangeiros...


Op. cit., p. 120.
45  OBERACKER, Carlos. Viajantes, naturalistas e artistas estrangeiros... Op. cit., p. 120.

50
Vista do Rio de Janeiro em 1817. Vista do Convento de Santo Antônio, do lado oposta à
entrada do porto, Thomas Ender, 1817.

vistas a empreendimentos econômicos futuros. No caso da coroa


portuguesa, que patrocinou diversas dessas incursões, às vezes di-
retamente, outras indiretamente, vislumbrou-se o grande potencial
político-econômico das incursões realizadas por todo território.
Porém um fato deve ser colocado sob atenção. Apesar do
crescente número de viagens e expedições científicas que des-
pontaram durante todo o século XIX, com vistas à ampliação dos
horizontes de pesquisa da história natural e “para a operação ra-
cional de transformação da natureza em saber científico”,46 como
defendido por Humboldt, diversos foram os contestadores dessa

46  RATTES, Cecília Luttembarck de Oliveira Lima. Ciência e arte: os viajantes estran-
geiros do século XIX. Disponível em: http://principo.org/cincia-e-arte-os-viajantes-
-estrangeiros-do-sculo-xix-ceclia-lu.html, acesso em: 05.07.2017.

51
metodologia de pesquisa devido “ao restrito tempo que dispunha
o viajante para observar, descrever e classificar todo o mundo re-
cém descoberto”,47 haja visto que, segundo Georges Cuvier, “um
pesquisador viajante, ao percorrer grandes distâncias, não podia
deter-se a tudo que via e o impressionava, tamanha a quantida-
de de objetos e exotismo com o qual se deparava ao longo de sua
trajetória”,48 fato que não ocorre com aqueles que se dedicam à
chamada pesquisa de gabinete.
O fato é que o alargamento desses horizontes fez com que as
viagens passassem a se tornar primordial e até mesmo central nesse
processo de crescimento das, hoje denominadas, ciências naturais,
e no caso brasileiro

depois desse impulso inicial, de paisagistas a botânicos, de nego-


ciantes a aventureiros, inúmeros foram aqueles que quiseram ver
com os próprios olhos os exotismos, as belezas e as riquezas do terri-
tório que durante séculos o português protegera dos curiosos. Desse
heterogêneo grupo de visitantes, não foram poucos os que, com
mais ou menos detalhes, com mais ou menos simpatia, relataram
as suas pitorescas experiências no Novo Mundo.49

Enfim, foi nesse contexto de fugas e descobertas, de místico


e profano, de barbárie e civilidade, que as expedições científicas do
século XIX inseriram a Capitania do Espírito Santo no mapa das ter-
ras bravias a serem desbravadas.

47  RATTES, Cecília Luttembarck de Oliveira Lima. Ciência e arte... Op. cit.
48  Ibidem.
49  FRANÇA apud SARNAGLIA, Marcela. O Brasil sob o olhar estrangeiro: um estudo da
obra Dois anos no Brasil de Auguste François Biard. In: RANGEL, Marcelo de Mello; PE-
REIRA, Mateus Henrique de Faria; ARAÚJO, Valdei Lopes de (org.). Caderno de resumos
& Anais do 6º Seminário Brasileiro de História da Historiografia: o giro linguístico e a
historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EDUFOP, 2012, p. 2, grifos do autor.

52
Terra de lugares inóspitos e morada dos famigerados boto-
cudos, o Espírito Santo, mesmo depois de 400 anos, ainda era uma
incógnita inserida entre as três maiores províncias brasileiras da-
quele período e marcada por um rio, que apesar de receber o nome
de Doce, parecia muito mais uma ferida no orgulho português, que
por um longo tempo sangrou, com o sangue daqueles que se aven-
turaram em seu leito, e que não cicatriza. Uma pequena e misteriosa
Província que Maximiliano de Wied-Neuwied e Auguste Saint-Hi-
laire ousaram desafiar.

53
Retrato. Príncipe Maximiliano de
Wied-Neuwied e o Índio botocudo Guack.

54
Capítulo III

Maximiliano de Wied-Neuwied

Se o século XIX se destacou como o século das ciências, a História


Natural se destacou como a Ciência do século XIX. A experiência e a
sensibilidade, preconizadas como elementos essenciais para a cons-
trução e solidificação das ciências modernas, fizeram carreira entre
os naturalistas que pululavam as academias de ciências na França
e na Confederação Germânica, além das principais universidades
desses mesmos países.
No entanto, nesse universo de expedições e relatos, existiu,
segundo Júlio Verne,

um país que preludia, logo no princípio deste século, as grandes


descobertas que os seus viajantes tinham de fazer: é a Alemanha.
Os seus primeiros exploradores procedem com tanto cuidado, são
dotados de uma vontade tão firme e de um instinto tão seguro, que
não deixam aos seus sucessores senão o cuidade de verificar e de
completar as suas descobertas.50

Dentro desse universo de descobertas a Universidade de


Göttingen se destacou como o principal centro de formação desses
novos “caçadores de tesouros” do século XIX, tendo grandes nomes
como Blumenbach, Alexander von Humboldt além dos famosos
Irmãos Grimm (Jacob e Wilhelm) em suas fileiras de mestres. E
foi nessa mesma universidade que se formou, em 1812, Alexander
Philipp Maximilian, Príncipe de Wied-Neuwied.

50  VERNE, Júlio. Os exploradores do século XIX. Trad. Manuel Joaquim Pinheiro Cha-
gas. [S.l]: Entaur Editions, 2017, p. 6.

55
Segundo Christina R. da Costa a formação neo-humanística
oferecida por essa instituição, que tinha em vista a educação como
elemento de formação pleno e harmonioso, foi de fundamental im-
portância para o desenvolvimento do tipo de relato que mais tarde
seria construído por Maximiliano, pois

para além de seus préstimos acadêmicos e descobertas científicas,


o viajante deveria incluir desenhos, imagens em seu texto, pois,
através deles, outros estudiosos poderiam começar e continuar
seus estudos, e, simultaneamente, serviriam como meio de tornar
a ciência mais acessível ao público leigo.51

Oitavo na linha de sucessão do Conde de Wied, Maximilia-


no, como a grande maioria dos herdeiros de segunda ordem, optou
pela carreira militar, e no caso do Príncipe, o exército prussiano se
mostrou como uma excelente oportunidade.
Seguiu a carreira militar até o ano de 1815, quando che-
gou ao fim as chamadas Guerras Napoleônicas. Com as reestru-
turações propostas pelo Tratado de Viena e a ociosidade do corpo
militar após o fim do conflito, Maximiliano, que havia conhecido
Alexander von Humboldt e seu trabalho em Paris, se dispõe a re-
alizar viagens de caráter científico a fim de completar a formação
iniciada em Göttingen.
Se anos antes, Humboldt havia realizado uma grande mar-
cha por parte da América do Sul e Central, sendo impedido de en-
trar em território brasileiro, essa possibilidade agora era possível.
Com o fim do exclusivo colonial português e a abertura dos portos,
o Brasil passa a ser o destino, e desejo, de inúmeros estrangeiros
com vistas a realização de grandes expedições científicas, quadro no
qual se encaixou Maximiliano.

51  COSTA, Christina R. O Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied e sua Viagem ao


Brasil (1815 - 1817)... Op. cit., p. 10.
56
Em uma viagem que durou cerca de 18 meses - entre julho
de 1815 e janeiro de 1817 - Maximiliano coletou diversos elementos
da fauna e flora brasileira, descreveu e desenhou os aspectos do
elemento indígena nativo do Brasil e realizou os registros, que re-
sultou em uma obra dividida em dois tomos, na qual dedica-se à
exaustão em relatar os mínimos pormenores de sua viagem. Para
Olivério Pinto

lê-lo é acompanhar o viajante em sua longa e acidentada peregri-


nação através das matas virgens e dos agrestes descampados, sentir
com ele todas as emoções que salteavam a cada trecho da jornada,
admirar a solene beleza dos quadros admiravelmente descritos, e
até participar dos sustos, riscos e privações, a que não se poderia
inevitavelmente furtar.52

Ainda para Olivério Pinto, essa riqueza de detalhes que en-


contramos na obra de Maximiliano nos transpõe para o caminho
percorrido por esse viajante, pois, ao contrário de outros,

não lhe escaparam inexpressivos lugares comuns, exageros ou fan-


tasias, deslizes tão frequentes nas obras dos melhores autores, e
ainda muito menos conceitos tendenciosos ou deprimentes sobre
a gente e a terra alvo de sua curiosidade esclarecida.53

Isso devido ao fato de que, segundo Ana Luisa Fayet Sallas,


o Príncipe Maximiliano era

absolutamente pragmático, atento à observação detalhada e ex-


pressão de um espírito relativizador, que busca ponderar o obser-
vado em face de outros autores e relatos - seguindo, pode-se dizer,

52  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. XII.


53  Ibidem, p. XI.
57
uma perspectiva antropológica. Viajou independente, a serviço
apenas do progresso e da ciência.54

Guiado por esse espírito naturalista e humanístico forte nas


ciências na Europa durante o século XIX, dominando técnicas de
análise desenvolvidas nas melhores universidades da Confederação
Germânica, além de possuir um grande senso de luta e sobrevivên-
cia, Maximiliano deu início à jornada que resultará na primeira
obra de caráter técnico e científico, sobre a história natural do Brasil,
a ser publicada na Europa.55
Entretanto, mesmo tendo sido publicada em 1820 em ale-
mão, a obra de Maximiliano permanecerá “oculta” ao grande pú-
blico brasileiro, pois tardará a possuir uma tradução em português,
surgindo a mesma somente em 1989, oriunda de uma mescla das
edições francesa e alemã.56
Apesar de contribuir de maneira imensurável para a botâ-
nica, a zoologia e ornitologia, é pela riqueza de detalhes sobre os
brasileiros e indígenas que compunham essa terra, que a obra de
Maximiliano ganhou destaque. O viés etnográfico se destacou, so-
bressaindo frente aos demais, mesmo a vida selvagem do Brasil está
largamente presente em toda a sua obra.
Dentro desse contexto, se a obra de Spix e Martius jogou
luz sobre a imensa biodiversidade com destaque para a flora brasi-
leira e Saint-Hilaire deu ênfase aos aspectos da vida cotidiana por
onde passou, versando até mesmo sobre a economia, administração

54  SALLAS, Ana Luisa Fayet. Narrativas e imagens dos viajantes alemães no Brasil do
século XIX: a construção do imaginário sobre os povos indígenas, a história e a nação.
História, Ciência, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, p. 417, 2010.
55  Vale a pena frisar que várias outras obras foram publicadas nesse mesmo período,
porém com destaque a assuntos alheios aos propostos por Maximiliano, a exemplo da
mineralogia, política, economia e sociedade, produzidas em sua grande maioria por
ingleses, que foram os primeiros estrangeiros a se estabelecerem no Brasil.
56  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. XIII.

58
e política, Maximiliano destacou-se pelo seu eixo antropológico,
fazendo com que fosse nomeado como o “fundador” dos estudos
etnográficos no Brasil.
Nessa obra, Maximiliano dedica-se a relatar suas incursões
às províncias que compreendem ao espaço geográfico a nordeste da
capital do Reino, pois segundo o próprio viajante “grande parte, era
inteiramente desconhecida ou que, até então, não tinham sido abso-
lutamente descritas [caso do Espírito Santo]”.57
Dado interessante a ressaltar é o fato do referido viajante
acreditar, e até mesmo declarar, que o território compreendido entre
o Rio de Janeiro e a Baía de Todos os Santos, trecho que corresponde
ao território capixaba, ser desabitado, ou nas palavras do explorador,
“ainda não ocupadas por colonos portugueses”.58 Isso vem ressaltar
o status incipiente, ou até mesmo nulo, que possuía a Província do
Espírito Santo naquele período.
De acordo com Maximiliano,

até agora [1815], só um pequeno número de caminhos, acompa-


nhando os rios que as atravessam, foram abertos com grande di-
ficuldade. Nessas florestas é que os primitivos habitantes do país,
fustigados de todos os lados, continuam a encontrar um seguro
abrigo, e é aí que ainda se podem observar esses povos em seu es-
tado original [...]. Os jesuítas e vários antigos viajantes, na verdade,
nos deram algumas notícias dessas regiões cobertas de florestas
ininterruptas, porém muito imperfeitas e misturadas de acidentes
fabulosos; não fornecem, também, pormenor algum referente à
história natural.59

No mesmo período, que corresponde a chegada e estadia

57  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 7.


58  Ibidem, p. 8.
59  Ibidem.

59
de Maximiliano ao Brasil, também estavam por aqui os naturalis-
tas Spix e Martius,60 os artistas Debret e os irmãos Taunay,61 além
dos integrantes das expedições científicas que acompanharam a Ar-
quiduquesa Leopoldina por ocasião de seu casamento com Príncipe
Pedro I. Definitivamente um período marcado pela efervescência
estrangeira, contagiada pela curiosidade que cercava o Brasil, e pela
significativa expansão dos elementos culturais e sociais que tomaram
conta das maiores províncias, com destaque para o Rio de Janeiro.
Maximiliano se propôs a visitar áreas até então não descritas
por outros viajantes, que em sua grande maioria dedicaram-se a re-
latar e registrar o cotidiano da cidade do Rio de Janeiro e seus entor-
nos, além da região das cobiçadas minas. Por esse motivo a escolha
do Espírito Santo, do sudeste de Minas Gerais e do sertão da Bahia.
Superado os primeiros obstáculos, sejam de caráter burocrá-
tico, material ou humano,62 Maximiliano inicia o seu conjunto de via-
gens, que na Província do Rio de Janeiro contemplou a cidade do Rio
de Janeiro, São Cristóvão, Praia Grande, São Gonçalo, Maricá, Gua-
rapina, Ponta Negra, Saquarema, Araruama, São Pedro dos Índios
(hoje São Pedro da Aldeia),63 Cabo Frio, Campos Novos, Vila de São

60 Cf. LISBOA, Karen Macknow. A nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civili-
zação na Viagem pelo Brasil (1817 - 1820). São Paulo: Hucitec: FAPESP: 1997.
61  Artistas que chegaram ao Brasil compondo a primeira Missão Artística Francesa
logo após o fim das guerras Napoleônicas em 1815.
62 Cf. PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 8.
63  Apesar de não ser o seu primeiro relato sobre os índios - Maximiliano já havia
encontrado os "nativos da terra" em São Lourenço -, é a primeira vez que o aspecto ca-
racterizado como "civilizador" aflora nesse viajante. Nesse sentido Maximiliano deixa
o seguinte relato: "devo também observar que parte das acusações sobre a rudeza e o
frequente mau caráter desses índios se devem descontar do tratamento errado e opres-
sivo que outrora lhes dispensaram os europeus, os quais, muitas vezes, nem reconhe-
ciam neles criaturas humanas, associando, aos apelidos de caboclos e tapuias, à ideia de
animais, criados apenas para serem maltratados e tiranizados. Em linhas gerais, porém,
deve-se reconhecer que Koster lhes descreve corretamente o caráter; porque ainda mos-
tram invariável tendência para a vida indolente e desregrada. Gostam de bebidas fortes

60
João, Rio das Ostras, Macaé, Rio Bragança, Vila de São Salvador, São
Fidelis; já na Bahia, registrou passagem por Vila Viçosa, Caravelas,
Alcobaça, Mucuri, Prado, Comechatiba, Rio do Frade, Trancoso, Por-
to Seguro, Santa Cruz, Mogiquiçaba, Belmonte, Quartel dos Arcos,
Quartel dos Saltos, Rio Pardo, Canavieiras, Ilhéus, grande parte do
sertão baiano e Salvador; na Capitania de Minas Gerais discorre sobre
o sertão mineiro que faz divisa com a Capitania da Bahia; no Espíri-
to Santo relatou sua passagem por Quartel de Barreiras, Itapemirim,
Benevente, Guarapari, Vila Velha, Vitória, Barra do Jucu, Araçatiba,
Nova Almeida, Barra do Riacho, Rio Doce, Linhares e São Mateus.
Dentro desse imenso caminho percorrido por esse viajante,
ele teve contato com os índios Tupinanbás em São Lourenço, Purís
e Coroados em São Fidelis, Machacalis do Rio Pardo e Camacãs ou
Meniens em Minas Gerais, porém, nenhum outro despertou maior
fascínio e curiosidade, pode-se dizer até mesmo espanto, do que
aqueles que o governo português vinha há séculos tentando paci-
ficar em vão, e que naquele momento estava em guerra claramente
declarada: os Botocudos da região do Rio Mucuri. Esse povo rendeu
um capítulo específico na obra de Maximiliano, intitulado Algumas
palavras sobre os Botocudos.64 É a partir da confecção e reflexão des-
sa parte específica da obra que, segundo Christina R. da Costa,

o príncipe passa a ver os Botocudos não só como passíveis de se-


rem civilizados como também questiona todas as representações
feitas sobre eles por europeus. Ao questionar as representações,

e detestam o trabalho, não tem firmeza em suas palavras e são poucos os exemplos, entre
eles, de caracteres dignos de nota.[...]Contudo, à proporção que se fizerem mais civiliza-
dos, a originalidade desse povo e as últimas sobrevivências dos antigos costumes se irão
desvanecendo, de modo que deles não se encontrará futuramente nenhum vestígio e só
serão conhecidos através das inscrições de Hans Staden e de Léry". PHILIPP, Maximilian
Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 63-65, grifo nosso.
64 Cf. PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 283 - 326.

61
Maximiliano se vê diante do desafio não só de mudar seu próprio
discurso, mas também de possivelmente sugerir novos meios para
a produção de conhecimento científico sobre os indígenas; tarefa
que os futuros antropólogos iriam se encarregar.65

Finalizou o seu trajeto em Salvador no dia 10 de maio de


1817, onde embarcou no “Princesa Carlota” retornando à Europa
para dedicar-se à transformação de seus diários e rascunhos de via-
gem na obra Rise nach Brasilien in den Jahren 1815 bis 1817 (1820),
lançada em Frankfurt.
Conhecida parte de sua trajetória, pode-se a partir daqui
ater-se à expedição empreendida por Maximiliano pelas terras onde
“até agora, a natureza realizou mais pelo Brasil do que o homem”.66

A viagem ao Brasil

O Príncipe de Weid-Neuwied partiu de Londres em 07 de maio de


181567 e adentrou a Baia de Guanabara em 16 de julho de 1815, trazen-

65  COSTA, Christina R. O Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied e sua Viagem ao


Brasil (1815 - 1817)... Op. cit., p. 6.
66  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 25.
67  Em nota o tradutor informa que segundo a edição francesa da obra, o embarque de
Maximiliano teria acontecido em 15 de maio de 1815, no entanto tal indicação não apa-
rece descrita na edição em alemão, além de não abrir precedente para uma data clara da
partida de Londres em direção ao Rio de Janeiro, entretanto, na página 21 da obra, que
compreende a viagem da Inglaterra ao Rio de Janeiro, Maximiliano deixa o seguinte
relato: "Um bote, trazido de terra por oito remadores índios, nos trouxe dois pilotos, que
guiaram o Janus, ao seu ancoradouro, em frente à cidade. Esses marinheiros nos trou-
xeram belíssimas laranjas, que nos pareceram tanto melhores quanto, depois de setenta
e dois dias que nos achávamos a bordo, não havíamos tido nenhuma fruta fresca." Esse
relato foi escrito às vésperas de seu desembarque no Rio de Janeiro, 17 de julho de 1815,
o que acaba indicando a possibilidade da data aqui proposta. Cf. PHILIPP, Maximilian
Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 11, p. 21, nota 9.

62
Mapa de expedição Arrowsmith utilizado por Maximiliano para seguir pelo território
brasileiro. MAXIMILIAN ZU WIED-NEUWIED, Príncipe (1782-1867). Reise nach Brasilien in
den Jahren 1815 bis 1817. Frankfurt: Heinrich Ludwig Bronner, 1820- [1821]. Disponível em:
https://www.aradernyc.com/products/maximilian-zu-wied-neuwied-prince-1782-1867-reise-
nach-brasilien-in-den-jahren-1815-bis-1817-frankfurt-heinrich-ludwig-bronner-1820-1822.
Acesso: 18.09.2017.

63
do em sua bagagem todo um aparato técnico, necessário à emprei-
tada proposta, como também, todo um horizonte de expectativas68
em torno de um futuro excitante, porém ao mesmo tempo nebuloso.
Partindo da Europa em um período correspondente a prima-
vera, nosso viajante, apesar de toda a expectativa de mar calmo e tran-
quilo, encontra em sua partida uma grande resistência do oceano, o que
acaba por lhe “prender” em terras inglesas por vários dias.
Rompido os primeiros desafios, finalmente a jornada tem
seu início, e Maximiliano se encontra a caminho do Brasil.
Narrando, com uma riqueza de detalhes que lhe é caracte-
rístico, os diversos acontecimentos diários, Maximiliano contribui
sistematicamente para a compreensão do dia a dia no, e sob, os con-
veses das diversas embarcações que se aventuraram ao longo de sé-
culos na travessia do Atlântico em direção ao “Novo Mundo”.
Chegando à costa do Brasil em fins do mês de junho, o navio
em que viajava Maximiliano conheceu a violência das tempestades
tropicais. Tendo sido retido pelo mau tempo em 27 de junho no li-
toral de Pernambuco e forçado a se afastar ligeiramente da costa
devido aos fortes ventos, somente em 8 de julho é que novamente
terá contato com a terra, já na Baía de Todos os Santos.
Finalmente, após vários dias sob forte tempestade, o tem-
po firme volta a fazer companhia e sob ventos favoráveis o Janus
adentra a Baía do Rio de Janeiro em 16 de julho de 1815. No dia 17, já
ancorado e às vésperas de seu desembarque, Maximiliano deixa o
registro de sua primeira visão do Rio de Janeiro:

68  Segundo Koselleck, experiência e expectativa são duas categorias adequadas para
nos ocuparmos com o tempo histórico, já que elas entrelaçam passado e futuro, pois
enriquecidas em seu conteúdo, elas dirigem ações concretas no movimento social e po-
lítico. KOSELLECK, Reinhart. Espaço de experiência e horizonte de expectativa: duas
categorias históricas. In.: KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semân-
tica dos tempos históricos. Trad. Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Rio de
Janeiro: Contraponto/PUC Rio, 2006, p. 308.

64
Deste ponto se avista grande parte da baía do Rio, a qual é cercada
de altas montanhas, entre as quais a serra dos Órgãos se destaca
por seus picos, semelhantes aos Alpes Suíços. Muitas ilhas lindas
se acham espalhadas pelo porto, o mais belo e seguro do Novo
Mundo, e cuja entrada é defendida de ambos os lados por fortes
baterias. De onde nos encontrávamos, via-se, em frente, a cidade
do Rio de Janeiro, construída sobre várias colinas à beira-mar. Ofe-
rece ela uma bela perspectiva, com suas igrejas e conventos situa-
dos no alto. O fundo do cenário por trás da cidade é constituído
por montanhas de forma cônica, arredondadas em cima e cobertas
de florestas; embelezam extraordinariamente a paisagem, cujo pri-
meiro plano é animado por grande quantidade de navios de todas
as nacionalidades. É ai que reinam a atividade e a vida; canoas e
chalupas passam em contínuo movimento, e as pequenas embar-
cações de portos vizinhos enchem os intervalos entre os grandes
navios das nações da Europa.69

Os preparativos para a longa jornada. A cidade do


Rio de Janeiro

Como muitos dos viajantes estrangeiros que por aqui estiveram e


um pouco do seu tempo doaram com o objetivo de registrar o coti-
diano desse “novo” Brasil que surgiu a partir de 1808, Maximiliano
dedicou as páginas iniciais a uma descrição da cidade do Rio de
Janeiro, passando pela sua exuberância e mudanças estruturais so-
fridas a partir da chegada da corte.
Foi durante sua estadia no Rio de Janeiro, que Maximiliano
teve seu primeiro contato com os índios. Em uma visita organizada

69  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 22.

65
por Wilhelm C. G. von Feldner à São Lourenço,70 o príncipe conheceu
os remanescentes dos Tupinambás, o que o levou a profundas refle-
xões sobre o vocabulário e ações dos portugueses frente a tais povos.71
Após pequena estadia preparou-se para sua marcha. Segun-
do Maximiliano,

graças ao apoio do governo, de cujas disposições liberais tive a


prova na benévola atitude para conosco do ministro Conde da
Barca, pude ativar os preparativos da minha viagem. Obtive um
passaporte e cartas de recomendações lisonjeiras para mim, que
duvido se tenham dado iguais aos viajantes que me precederam. As
autoridades eram solicitadas a nos prestar auxílio e proteção toda
vez que o necessitássemos e a fazer chegar nossas coleções ao Rio,
fornecendo-nos, quando pedíssemos, soldados, guias, carregado-
res, e animais de carga.72

Tendo preparado os itens necessários à jornada e elabora-


do enfim o programa da expedição, Maximiliano partiu do Rio de
janeiro em 04 de agosto de 1815, pois, “por mais agradável que fos-
se pra mim [Maximiliano] uma longa permanência na capital, não
entrava em meus planos estacionar aí por muito tempo”,73 afinal,
são “nos campos e nas florestas, e não nas cidades, que a natureza
ostenta as suas riquezas”.74 Tendo a sua frente o desafio de desbra-
var terras até então desconhecidas pelos estrangeiros e, em alguns
pontos, temidas pelos portugueses, seguiu acompanhado de Frede-

70  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 27 et. seq.
71  Ibidem, p. 28 et. seq.
72  Ibidem, p. 33.
73  Ibidem, p. 32.
74  Ibidem.

66
rico Sellow 75 e George Guilherme Freyreiss76, que “conheciam muito
bem os costumes e a língua da região”,77 além desses, sua comitiva
era composta por 10 homens - portugueses, escravos e índios - e 16
muares, que transportavam todo o aparato técnico, mantimentos e
espécies coletadas ao longo do caminho.
Maximiliano parte da cidade do Rio de Janeiro, percorren-
do e relatando diversas cidades e vilas em território carioca, como
citado anteriormente, porém, como a intenção de nos dedicarmos
ao caminho percorrido no Espírito Santo, vamos deixar essa análise
para estudos futuros. Dessa maneira podemos iniciar a narrativa
dizendo que partindo da fazenda Muribeca, às margens do Itaba-
puana, ele adentrou em terras capixabas entre os dias 02 e 05 de
novembro de 1815, iniciando sua jornada em nossa companhia.

Viagem à Capitania do Espírito Santo

Finalizadas as atividades na fazenda de Muribeca, Maximiliano


e sua comitiva partem para a segunda parte de sua jornada, as terras
da Capitania do Espírito Santo.
Partindo da fazenda Muribeca, as margens do rio Itabapu-
ana, ainda em terras cariocas, Maximiliano e sua comitiva partem
rumo ao “desconhecido” território da Capitania do Espírito Santo,
isso segundo as análises do relato, deu-se, aproximadamente, entre
os dias 02 e 05 de novembro de 1815.

75  Naturalista alemão, natural de Potsdan, com data de chegada ao Brasil registrada
no ano de 1814. Com muitas de suas expedições iniciais patrocinadas pelo Barão de
Langsdorff, receberá mais tarde o título de Naturalista Subvencionado concedido por
D. João VI.
76  Zoólogo, ornitologista e taxidermista. Partindo de São Petersburgo, veio para o
Brasil em 1813 para trabalhar sob os auspícios do Barão de Langsdorff. Assim como
Sellow receberá o título de Naturalista Subvencionado.
77  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 33.

67
Primeiros passos em terras capixabas. De Itabapoana à Itapemirim em 2 e 3 de nov. 1815.
Disponível em: http://www.folhadomeio.com.br/fma_nova/noticia.php?id=4144. Acesso.
18.09.2017.
Apesar de seu contato anterior com os Puris, Maximiliano
optou por cruzar o mais rápido possível a região do extremo sul do
território capixaba, haja vista que nesse trecho, que compreende de
seis a oito léguas,78 “os Puris sempre se têm mostrado hostis”,79 o que
tornou “conveniente estabelecer um posto militar chamado Quartel
ou Destacamento das Barreiras”.80

Seguimos através de grandes matas virgens, alternados com


extensões arenosas e descampadas onde descobrimos muitos
rastros de antas (Tapirus americanus) e veados. Afinal, perto de
uma alta cruz de madeira, alcançamos a praia lisa, da qual se
avistava uma leve enseada, terminando ao longe numa língua
de terra, onde se erguia o quartel, no litoral montanhoso. Como
essas paragens fossem infestadas pelos selvagens, estávamos bem
armados, e em caso de ataque teríamos vinte cargas prontas para
a defesa.81

A caminhada iniciada em Muribeca segue por


aproximadamente oito léguas, cortando a faixa litorânea que hoje
corresponde aos municípios de Presidente Kennedy e Marataízes.

78  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 129.


79  Ibidem, loc cit.
80  Ibidem, loc cit.
81  Ibidem.

68
Sob a constante pressão de possíveis ataques aos índios
Puris, o comboio em que seguia Maximiliano finalmente chega
à foz do rio Itapemirim e à vila de Itapemirim sem maiores
problemas, excetuando-se os ocasionados pelas fortes chuvas às
quais estiveram expostos durante a estadia no posto militar do
Destacamento de Barreiras. Sobre Itapemirim o príncipe deixa a
seguinte descrição:

Ao meio-dia, mais ou menos, chegamos ao rio Itapemirim, em cuja


margem sul fica a vila do mesmo. Está a sete léguas de Muribeca,
num local recentemente edificado, e possui algumas boas
construções, não podendo, porém, ser considerada mais que uma
vila. Os habitantes são ou agricultores pobres, cujas plantações
ficam nas vizinhanças, ou pescadores, além de artífices.82

O fato que mais chamou a atenção de Maximiliano no tra-


jeto de Muribeca à Itapemirim e durante sua estadia nesta, foram
os constantes relatos de ataques dos índios aos colonos portugue-
ses. Entre os registros, dois, foram mais citados: o da lagoa de Siri,
que levou “após esse assalto, o sargento-mor de Itapemirim, com
cinquenta homens armados [a fazer] uma ‘entrada’ na mataria em
busca dos Puris”;83 e o segundo caso o das minas de Castelo, onde “o
distrito era, entretanto, tão assolado pelos Tapuias84 que aos poucos,
colonos portugueses o abandonaram há cerca de trinta anos e foram
morar na vila e arredores”.85
Apesar do terror infligido pelos Puris aos habitantes da re-
gião, “os botocudos, porém, que são os verdadeiros tiranos desses
ermos, ainda fazem grandes incursões rio abaixo”.86

82  Ibidem, p. 132.


83  Ibidem, loc cit.
84  Nome genérico para índio.
85  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 133.
86  Ibidem, loc cit.

69
Após a estadia de alguns dias em Itapemirim, Maximilia-
no segue sua jornada rumo à região Norte da Capitania do Espírito
Santo.87 Passando pela fazenda Agá, homônima à montanha que a
cerca, o príncipe segue em direção a Piúma, onde o fator que mais
lhe chamou a atenção foi “uma ponte de madeira de trezentos passos
de comprimento, assentada no ponto de maior largura do riacho,
verdadeira raridade nessas paragens”.88
Seguindo viagem chega a Iriri, que chama a atenção pela di-
versidade da fauna, no entanto, sem muito se ater à região segue em
direção à vila de Benevente,89 onde temos

à direita, o espelho azul do oceano, e, à esquerda, o rio Benevente,


que se espraia. Em derredor, soberbas e sombrias matas e, atrás
destas, montanhas rochosas fechando o horizonte. 90

Vila Nova de Benevente foi fundada, à margem do rio Iritiba, ou


melhor, Reritigba, pelos jesuítas, que aí reuniram grande número
de índios convertidos. A igreja deles e o convento contíguo ain-
da existem,91 este, que nos serviu de pouso, e utilizado atualmente
como casa da Câmara. [...] Há muito pouco comércio, e aqueles
navios apenas se abrigaram do vento desfavorável. [...] Vila Nova,
propriamente, é um lugar pequeno, com algumas casa, mas anima-
-se aos domingos, porque os moradores dos arredores vão aí assis-
tir à missa.92

87  Não é possível precisar a data da partida do nosso viajante.


88  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 135.
89  Hoje Anchieta.
90  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 136.
91  Lembrando que os jesuítas haviam sido expulsos dos territórios portugueses em
1759. Seus bens foram confiscados pelo estado. Para maiores informações ver: SANTOS,
Estilaque Ferreira dos. Uma devassa contra os jesuítas do Espírito Santo (1761). Vila
Velha: Edição do Autor, 2014.
92  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 136 et. seq.

70
Rio Benevente. Gravura de Maximiliano Wied-Neuwied.

Finalizada a visita a Benevente, o caminho segue até


Guaraparim,93 passando por Obu,94 que é “constituída de algumas
cabanas de pescadores, a duas léguas de Vila Nova”,95 e por Miaipé,96
chegando finalmente a Guaraparim. Segundo Maximiliano

A vila tem cerca de 1600 habitantes, sendo, portanto, um tanto


maior que a Vila Nova de Benevente: o distrito inteiro contém
mais ou menos três mil almas. As ruas não são pavimentadas, ten-
do apenas medíocres calçadas junto as casa, que são pequenas e
quase todas de um só andar. O lugar é, de modo geral, pobre; na
vizinhança, porém, existem grandes fazendas.97

Após breve estadia em Guaraparim, a tropa segue viagem,


passando por Perocão e Ponta da Fruta, “onde várias casa, à sombra

93  Hoje Guarapari.


94  Hoje Ubu.
95  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 138.
96  Hoje Meaipe.
97  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 139.

71
de pequeno bosque, formam uma aldeia dispersa, cujos habitantes,
descendentes de negros portugueses, receberam-nos bem”,98 de lá,
“vimos, numa montanha distante, o convento de Nossa Senhora da
Penha, perto da vila de Espírito Santo, para chegarmos à qual tínha-
mos de viajar cinco léguas”.99
Transposto o percurso entre Ponta da Fruta e a Vila do Es-
pírito Santo, finalmente a comitiva de Maximiliano atinge Vila Ve-
lha, uma “pequena e miserável vila aberta, construída quase toda
numa praça. Numa das extremidades fica a igreja, e na outra, a Casa
da Câmara (edifício real, de Câmara Municipal)”.100
Mesmo espantado com o paupérrimo estado em que se en-
contra essa vila, Maximiliano não deixa de registrar sua breve visita
ao Convento de Nossa Senhora da Penha, dizendo:

Numa alta colina coberta de vegetação, junto à vila, ergue-se o fa-


moso convento de Nossa Senhora da Penha, um dos mais ricos do
Brasil, dependente da abadia de São Bento do Rio de Janeiro. Cons-
ta que possui uma imagem milagrosa de Maria, razão por que o
procuram numerosos peregrinos. Na época de nossa visita só havia
dois eclesiásticos no lugar.101

Nesse ponto vale um pequeno parênteses. Sabemos que


há muito se perdeu o Espírito Santo descrito por Maximiliano de
Wied-Neuwied, no entanto, algo ainda continua, assim como antes,
a encantar os visitantes que se fazem presentes por aqui, a vista da
baía de Vitória a partir do Convento da Penha. Desse belo panora-
ma Maximiliano relata que

98  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 140


99  Ibidem, loc cit.
100  Ibidem, p. 141.
101  Ibidem, loc cit., grifo nosso.

72
é bem penoso subir aí a íngreme elevação para gozar o indescrití-
vel e amplo panorama que daí se descortina; domina-se a imensa
superfície oceânica, e, do lado da terra, veem-se belas cadeias de
montanhas, com vários picos e vales intermediários, donde surge
pitorescamente o largo rio.102

Alojados em Vila Velha, Maximiliano e sua comitiva se-


guem em canoas até a vila de Vitória, descrita por ele como “um
lugar limpo e bonito”.103
Se na descrição de Maximiliano Vila Velha era pobre e pe-
quena, a Vila de Vitória era exatamente o oposto, descrita como
possuidora de bons edifícios construídos no velho estilo português,
com balcões e rótulas de madeira,104 ruas calçadas, uma Câmara
Municipal razoavelmente grande, e o convento dos jesuítas, ocupa-
do pelo governador, que tem, à sua disposição, uma companhia de
tropa regular.

Além de vários conventos, há uma igreja, quatro capelas e um hos-


pital. A cidade é, entretanto, um tanto morta, e os visitantes, sendo
raros, são objeto de grande curiosidade. O comércio marítimo não
é desprezível; por isso, diversas embarcações estão sempre aí an-
coradas, e fragatas podem aportar na cidade. As fazendas vizinhas
produzem muito açúcar, farinha de mandioca, arroz, bananas, e
outros artigos que são exportados ao longo da costa. Vários fortes
protegem a entrada do belo rio Espírito Santo: um logo na foz; o
segundo, construído de pedra, um pouco acima, com oito canhões
de ferro; e ainda um pouco mais acima, numa colina entre o último
e a cidade; e um terceiro forte com dezessete a dezoito canhões,

102  Ibidem, p. 142, grifo nosso.


103  Ibidem.
104  Vale a pena relembrar que com as reformas realizadas no Rio de Janeiro essa ca-
racterística se perdeu.

73
alguns dos quais de bronze. A cidade está edificada um tanto de-
sigualmente, sobre colinas aprazíveis, e o rio, que lhe passa atrás,
corre entre altas encostas, em parte rochosas e em muitos lugares
nuas e cobertas de liquens. A bela superfície do grande rio é semea-
da de numerosas ilhas verdejantes, e a vista, onde quer que lhe siga
o curso através da região, encontra sempre um pouso ameno em
altaneiras e fragrantes montanhas vestidas pela mataria.105

Perspectiva da Vila de Vitória, 1805, pelo Cap. José Antônio Caldas, Engenheiro Militar e lente
da Aula Régia. Copiada por José Castanheda Vasconcellos Pimentel. Fonte: Arquivo Histórico
do Exército.

Após a visita à Vila de Vitória, onde foram recebidos pelo


governador Francisco Alberto Rubim, Maximiliano e seus compa-
nheiros foram estabelecidos, juntamente com toda a tropa, em uma
fazenda na Barra do Jucu, de propriedade do Coronel Falcão, “um
dos maiores lavradores dessa parte do país”.106

105  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 142.


106  Ibidem, p. 143. Segundo Maximiliano, a Fazenda Araçatiba pertencente ao co-
ronel Falcão foi a maior fazenda que ele encontrou em sua viagem com 400 escravos
negros e extensas plantações de açúcar.

74
Vista da cidade de Vitória a partir de Capuaba. Gravura do acervo Solar Monjardim do
século XIX. c. 1800. Fonte: Elmo Elton.

Realizaram preparativos para uma longa permanência nes-


sa fazenda, haja vista que nela pretendiam permanecer ao longo de
toda estação chuvosa.107
Durante sua estadia na Barra do Jucu, Maximiliano dedicou
parte de seu tempo para visitar o entorno com o objetivo de ampliar
sua coleção de elementos da fauna e da flora brasileira. Nesse per-
curso ele chega às imediações de Santo Agostinho, atual município
de Viana, onde tem contato com os primeiros imigrantes estrangei-
ros estabelecidos no Espírito Santo, os açorianos, observando que

o governo estabelecera em Santo Agostinho cerca de quarenta fa-


mílias, que vieram dos Açores sobretudo da Terceira e São Miguel,
e algumas poucas de Faial. Essa gente, que vive em grande pobreza,
queixa-se amargamente de miséria; fizeram-lhe magníficas pro-
messas, que não foram cumpridas.108

107  Tendo em vista que nosso viajante não informa as datas dos acontecimentos,
supõe-se que o mesmo encontrava-se na Barra da Jucu entre os meses de Dezembro de
1815 e Janeiro de 1816.
108  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 146. Os imigrantes

75
Ocupação de Viana por colonos açorianos. Gravura de André Carloni. Fonte: MARIANO, Fa-
biene Passamani. Patrimônio e memória: O Divino em Viana do Espírito Santo. Dissertação
(Mestrado em Artes) 146 f. Programa de Pós Graduação em Artes, Universidade Federal do
Espírito Santo, Vitória, 2012, p. 55.

Percebe-se nesse relato a continuidade dos problemas que


mais tarde serão descritos por Tschudi, durante o processo de esta-
belecimento das colônias suíças na segunda metade do século XIX.

Essas promessas eram sedutoras e os emigrantes caíram na armadi-


lha. Chegando à Colônia de Rio Novo viram-se cruelmente decep-
cionados. Nenhuma das promessas foi cumprida. [...] Os colonos
ficaram totalmente desanimados. A direção nada fez para reparar a
injustiça cometida, eles tiveram que lutar durante dois anos contra
dificuldades e sofrimentos de todo gênero.109

Outro acontecimento registrado por Maximiliano é a cons-


trução da Estrada do Rubim, talvez o maior feito de engenharia re-
alizado em terras capixabas durante o período colonial, a estrada

açorianos foram estabelecidos no Espírito Santo em 1813 durante o governo de Fran-


cisco Alberto Rubim.
109  TSCHUDI, Johann Jakob von. Viagem à Província do Espírito Santo: imigração e
colonização suíça (1860). Vitória: APEES/ SECULT-ES, 2004, p. 47.

76
tinha como principal objetivo ligar Vila Rica, em Minas Gerais, à
Vila de Vitória, no intuito de escoar parte da produção mineira pelo
porto de Vitória, Segundo Maximiliano,

o governador começara a construir uma igreja em Santo Agosti-


nho, não longe de Coroaba, razão por que estava residindo nes-
se lugar. Existe aí um posto militar de guarda contra os selvagens,
nessa época, os soldados estavam ocupados em abrir uma estrada
para Minas Gerais, para onde já viajara um oficial, por ordem do
governador, a fim de abrir caminho através das matas.110

Após problemas com equipamentos necessários à expedi-


ção, que erroneamente foram despachados para Caravelas ao invés
de Vitória, Maximiliano e Freyreiss viram-se forçados a abandonar
sua hospedagem na Barra do Jucu e se dirigirem a Caravelas com
vistas a resolver tais pendências. Em um grupo diminuto, pois a
maior parte de sua comitiva ficou hospedada e trabalhando na fa-
zenda Coroaba (vizinha de Santo Agostinho) ele partiu em 19 de
dezembro de 1815.
Saindo de Vitória eles passaram pelo Romão, Jucutucoara,
pelo Rio Muruim ou da Passagem,111 até atingirem Praia Mole onde
se hospedaram para pernoitar.
Durante essa estadia Maximiliano encontrou aquilo que
Sérgio de Holanda (1936) chamou de homem, elemento caracterís-
tico do povo brasileiro, que abraça com grande presteza o viajante
estrangeiro. Segundo Sérgio Buarque representa

110  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 146.


111  Onde hoje liga a parte insular de Vitória ao continente pela ponte Carlos Linden-
berg, próximo às entradas do campus da UFES e do bairro Jardim da Penha. "Cruzamos
o pequeno Rio Muruim ou Passagem, sobre o qual passa uma ponte de madeira, geral-
mente fechada por uma porteira". PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil...
Op. cit., p. 148.

77
Estrada São Pedro de Alcântara também conhecida como Estrada do Rubim. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico do Espírto Santo, Vitória, n. 3, 1922.

um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em


que permanece viva e fecunda a influência ancestral dos padrões
do convívio humano.112

Isso pode ser vislumbrado por Maximiliano na pequena po-


voação de Praia Mole. Segundo nosso viajante:

Se o amor à música e à dança é geral entre o povo, também o é a


hospitalidade, pelo menos na maioria dos lugares. Encontramo-la
aí; com efeito, nossos hospedeiros fizeram tudo para nos agradar e
o tempo, assim, passou suavemente.113

Seguindo o caminho à beira mar, agora em direção a Nova


Almeida, Maximiliano observa que

nos cerrados que margeiam a costa, habitam famílias pobres e


esparsas, que vivem da pesca e da colheita de suas plantações.
São em geral negros, mulatos e outras gentes de cor. Há muitos

112 Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995.
113  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 148.

78
poucos brancos entre eles; queixam-se logo ao forasteiro da po-
breza e indigência, que só podem provir da preguiça e da falta
de iniciativa, porque o solo é fértil. Pobres demais para comprar
escravos, e demasiado indolentes para o trabalho, preferem mor-
rer de fome.114

Ao fundo, sobre pilares de concreto e madeira, está a ponte da passagem citada por Maximil-
iano. Fonte: Acervo da Biblioteca Central UFES.

À medida que se aproximava de Nova Almeida, Maximilia-


no percebeu o surgimento de numerosos habitantes, não mais ne-
gros, mulatos ou brancos, mas sim “índios civilizados”, elemento
humano predominante na região, haja vista o grande esforço que foi
realizado ao longo dos séculos XVI e XVIII pelos jesuítas em prol do
sistema de aldeamentos.115

114  Ibidem, p. 149. Essa visão de indolente, preguiçoso e incapaz é a que perdurará
sobre o brasileiro nos séculos adiante, ao ponto de no início do século XX surgirem
correntes que buscavam embranquecer e sanear o povo brasileiro.
115  Benevente e Nova Almeida foram os principais aldeamentos indígenas no Espíri-
to Santo durante a Colônia.

79
Depois de quatro léguas de viagem, saímos da selva e contempla-
mos, à frente, numa eminência sobranceira ao mar, a Vila Nova
de Almeida. [...] Vila Nova é uma grande aldeia de índios civili-
zados fundada por jesuítas: possui uma grande igreja de pedra e
contém, em todo o distrito, de 9 léguas de circunferência, cerca
de 1200 almas. Os moradores da vila são principalmente índios,
havendo também portugueses e negros. [...] no convento dos je-
suítas, que serve atualmente de residência ao padre, ainda existem
algumas velhas obras dessa ordem, o que é uma raridade, porque
as bibliotecas de todos os outros conventos, deixados ao abandono,
se destruíram ou dispersaram, Aí, outrora os jesuítas ensinaram
na língua geral; diz-se que a capela deles, dos Reis Magos, foi mui-
to bonita. O lugar é morto, e não parece populoso; também se vê
muita pobreza.116

Dirigindo-se rapidamente rumo ao norte da capitania, Ma-


ximiliano não deixa escapar o fato dessa ter ser um grande vazio
demográfico, haja vista o longo período de colonização férrea pelo
qual passou o Brasil.
Tal fato decorre da “relativa ausência” do colono, principal-
mente, a partir da povoação de Praia Mole. Grande parte do litoral
norte da capitania está ocupado por índios “civilizados” ou descen-
dentes de índios aldeados pelos jesuítas.
É claro que essa “ausência”não leva em questão o elevado
número de indígenas que ocuparam os sertões do Brasil, e que re-
sistiam veementemente contra a imposição sociocultural a qual o
europeu o impelia, porque a partir da abertura dos portos não era
somente os portugueses que tentavam impor o chamado “processo
civilizador”, buscando submetê-los direta ou indiretamente.
Esse “vazio” em direção ao norte da Capitania e a predominân-
cia dos indígenas são registrados por Maximiliano, o mesmo afirma que:

116  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 149.

80
Igreja dos Reis Magos. Antigo convento jesuítico localizado em Nova Almeida. Gravura de
Wagner Veiga. Disponível em: http://www.wagnerveiga.com.br/imagens.tml#prettyPhoto/19/

Mais além, do Saí-anha117 ao Mucuri, o litoral é quase que exclusi-


vamente habitado por famílias esparsas de índios. Falam apenas a
língua portuguesa e trocam o arco e a flecha pela espingarda; até as
moradas diferem muito pouco das dos colonizadores portugueses.118

A reduzida comitiva segue de Nova Almeida até as margens


do rio Piraque-açu, onde chega a povoação de Aldeia Velha.119 Para
“além do rio viam-se matas extensas, onde se espalhavam as planta-
ções dos índios; cultivavam principalmente milho, e ‘baga’, de cuja
semente extraem óleo”.120
Permanecendo no litoral,121 rapidamente chegam ao quartel
do Riacho122 onde recebem informações preciosas do conflito com

117  Atualmente rio Reis Magos e que deságua no litoral de Nova Almeida, Serra.
118  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 147.
119  Proximidades do que hoje é a Vila de Santa Cruz, em Aracruz.
120  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 152.
121  Francisco Manuel da Cunha. "desde o rio Doce até o Itabapoana a estrada é sem-
pre pela costa do mar, e raras vezes dela se aparta" (Cunha apud OLIVEIRA, José Teixeira
de. História do Estado do Espírito Santo. 3. ed, Vitória: Secult-ES, 2008, p. 272.
122  Hoje Barra do Riacho.

81
Típico aldeamento indígena do séc XIX. Aldeia dos Tapuias. J. M. Rugendas.

os Botocudos, que “têm oferecido, até agora, obstinada resistência


aos portugueses”.123
Segundo Maximiliano, os Botocudos

se algumas vezes se mostram amigáveis em certo lugar, cometeram


excessos e hostilidades em outro; daí nunca ter havido um enten-
dimento duradouro com eles.124

Essa instabilidade no relacionamento entre colonos e índios,


além dos constantes ataques desferidos por esses a aqueles, foi o ele-
mento definidor para que o Conde de Linhares, então Ministro do
Interior, declarasse guerra aberta contra essa etnia. Assim,

123  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 153.


124  Ibidem, loc. cit.
82
desde então não se deu trégua aos Botocudos, que passaram a ser
exterminados onde quer que se encontrassem, sem olhar idade ou
sexo; e só de vez em quando, em determinadas ocasiões, crianças
muito pequenas foram poupadas e criadas. Essa guerra de exter-
mínio foi mantida com a maior perseverança e crueldade, pois
acreditavam firmemente que eles matavam e devoravam todos os
inimigos que lhes caíam nas mãos.125

Após breve estadia no Quartel do Riacho126 Maximiliano


segue viagem até Comboios127 e Regência, essa já foz do Rio Doce.
Tanto Comboios, quanto Regência, assim como Riacho, são
pequenos quartéis com guarnições diminutas, que tem como prin-
cipal objetivo, manter a comunicação entre os locais mais distantes
da capitania e suas principais vilas. No caso específico de regência,
ainda havia a função de “transportar viajantes através do rio e vigiar
as comunicações com a povoação de Linhares”.128
Maximiliano e sua comitiva haviam, enfim, atingido seu ob-
jetivo primário, chegar ao “místico” e “intransponível” rio Doce, que
segundo o próprio Maximiliano, parecia ter o leito duas vezes mais
largo que o Reno,129 e era o lar, e principal domínio do “rude selva-
gem Botocudo, habitante aborígene dessas paragens, [e] é mais for-
midável que todas as feras, e o terror dessas matas impenetráveis”.130
Apesar da grande excitação e impaciência geradas pela che-
gada a esse lugar mítico, e pelo ávido desejo de conhecer “o teatro de

125  Ibidem.
126  Hoje Barra do Riacho - Aracruz.
127  A localidade de Comboios abriga hoje a Reserva Biológica e Marinha, e está loca-
lizada entre os municípios de Aracruz e Linhares, tendo Regência como base de prote-
ção e preservação das tartarugas marinhas.
128  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 155.
129  Rio Reno. Rio europeu que corta a Suíça, Áustria, Liechtenstein, Alemanha,
França, Países Baixos e deságua no Mar do Norte.
130  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 156.
83
guerra com os Botocudos na floresta”,131 somente foi possível seguir
viagem rio acima, devido ao mau tempo que assolou o litoral da
capitania no dia 25 de dezembro de 1815, na manhã do dia seguinte.
A exuberância nativa do local contagiou Maximiliano. A pre-
sença de grande variedade da flora brasileira, bem como da fauna, ainda
em seu estado nativo, não passou despercebido, surpreendendo o viajan-
te, que até aquele momento havia seguido a maior parte do trajeto por
trilhas e vilas, raramente se aventurando a distâncias como essas.
A jornada rio acima seguiu tranquila e sem qualquer tipo de
incidente. Pernoitaram na ilha Gambim, seguindo, com o alvorecer,
viagem até Linhares, que

é ainda um povoado insignificante, apesar do trabalho desenvolvi-


do, como foi dito acima, pelo Ministro Conde de Linhares para o
seu progresso. Por ordem deste, construíram-se os edifícios numa
praça situada em área aberta na mata, perto da beira do rio e so-
bre íngreme ribanceira de argila. As casas são pequenas e baixas,
cobertas de folhas de palmeira ou de uricana, feitas de barro e não
rebocadas. Ainda não tem igreja, sendo as missas oficiadas numa
casinhola. No meio da praça formada pelos edifícios há uma cruz
de madeira, para cuja feitura se desgalhou simplesmente o cimo de
uma grande e bela sapucaia, pregando-se-lhe uma viga transversal.
Os moradores estabeleceram as plantações parte na mata circunja-
cente, parte nas ilhas fluviais.132

Ainda não passa despercebido por Maximiliano o complexo


sistema de defesa que foi montado em torno de Linhares visando
proteger seus habitantes dos possíveis ataques dos botocudos. Tal
sistema é descrito da seguinte forma:

131  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 156.


132  Ibidem, p. 160.

84
a fim de proteger toda essa colônia dos ataques e crueldades dos
Botocudos, estabeleceram-se, em diferentes direções, oito postos
no interior das florestas, os quais ao mesmo tempo se destinam
a proteger as ligações comerciais com Minas Gerais, ultimamente
tentadas pelo rio acima.133

Foi relativamente longa a estadia de Maximiliano em Linha-


res e às margens do rio Doce, se comparada a demais paradas. Tal
período foi classificado pelos viajantes como “uma das etapas mais
interessantes das minhas viagens ao Brasil”,134 porém é evidente o
sentimento de insatisfação presente no relato, haja vista os inúmeros
impedimentos que se põe diante dos exploradores, tais como o de
percorrer determinadas áreas da floresta devido aos inúmeros pe-
rigos e “a desgraçada guerra sustentada contra os Botocudos no rio
Doce [o que] torna impossível conhecer de perto e estudar, nessa
região, esse notável povo”.135
Findada em 30 de dezembro a estadia em Linhares, a comi-
tiva de Maximiliano retorna a Regência e de lá o caminho rumo ao
norte, com destino a Caravelas. Continuaram a seguir pelo litoral,
decididamente o caminho mais seguro, afinal, se poucos eram aque-
les que se arriscavam a construir pequenos quartéis e povoados à
beira mar, ainda menor era o número daqueles que se aventuravam
mata adentro e obtinham sucesso. Nesse trecho entre a barra do Rio
Doce e São Mateus realizaram uma parada no Quartel de Monsáras,
onde conseguiram incluir dois soldados, para a escolta, na comitiva.

133  Ibidem, loc. cit.


134  Ibidem, p. 162.
135  ibidem, p. 163. Anos mais tarde o antropólogo alemão Paul Ehrenreich e a Prince-
sa Teresa da Baviera firmaram contato com os Botocudos da região, entretanto em um
estágio já muito menos selvagem e número bem mais diminuto. para maiores informa-
ções ver: EHRENREICH, Paul. In.: BENTIVOGLIO, Júlio (org.). Índios Botocudos no Espírito
Santo no século XIX. Trad. Sara Baldus. Vitória: APEES/ SECULT, 2014, coleção Canaã;
BAVIERA, Teresa da. In.: BENTIVOGLIO, Julio (org.). Viagem ao Espírito Santo (1888).
Trad. Sara Baldus. Vitória: APEES/ SECULT, 2013. coloção Canaã.

85
Do rio Doce a São Mateus, pelo litoral, é um caminho de
aproximadamente vinte léguas, e são necessários cerca de três dias,
talvez quatro. Segundo Maximiliano

o trecho do rio Doce a São Mateus, como já observamos antes, é


uma solidão melancólica, na maior parte da qual nem mesmo água
fresca se encontra; não se deve, portanto, de nenhum modo, deixar
de passar os poucos lugares em que ela pode ser achada, e, por isso,
um guia bem prático do caminho é de todo indispensável.136

Chegaram às margens do rio São Mateus na tarde de 2 de


janeiro de 1816, o que totalizou quatro dias de viagem desde sua par-
tida de Regência.
Maximiliano e seus companheiros não chegaram a visitar a
vila de São Mateus, que assim como a de Linhares, ficava rio acima
e para alcançá-la seria necessária árdua viagem, pois segundo infor-
mações obtidas daqueles que viviam na barra do rio, seria necessá-
rio percorrer cerca de oito léguas para chegar até a vila.
Porém, mesmo não chegando a visitar a maior vila do norte
capixaba naquele momento,137 Maximiliano deixa sobre a mesma a
seguinte descrição:

136  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 166.


137  Vale salientar que apesar da independência administrativa da capitania do Espí-
rito Santo dos laços que a ligava à Capitania da Bahia ter sido obtida de maneira defi-
nitiva em 1809, durante o governo de Manuel Vieira d'A lbuquerque e Tovar, somente
a partir de 1823 é que a região Norte (acima do rio Doce) será desvinculada da comar-
ca de Porto Seguro e novamente anexada à então Província do Espírito Santo. Assim,
mesmo compreendendo que naquele momento a Vila de São Mateus não estava sob a
administração capixaba, considero necessário o prosseguimento da análise até Carave-
las a fim de analisar todo o trecho da viagem proposto na saída da Barra do Jucu. Para
maiores informações sobre questões limítrofes do ES Cf. PHILIPP, Maximilian Alexan-
der. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 270; p. 302-303; DAEMON, Basílio Carvalho. Província
do Espírito Santo: sua descoberta, história cronológica, sinopse e estatística. Vitória:
APEES/ SECULT, 2010, p. 263; p. 315.
86
Carta Geográphica do Rio Doce e seus afluentes. Levantada por Antônio Pires da Silva
Pontes. c. 1800. Fonte: OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo... Op.
cit., p. 287.

87
aproximadamente oito léguas rio acima, ergue-se a vila de São Ma-
teus, cuja situação não deve ser muito salubre, devido aos pântanos
vizinhos. Tem cerca de 100 casas, possuindo o distrito perto de
3000 habitantes, incluindo brancos e gente de cor. Apesar de ser
uma das vilas mais novas da região de Porto Seguro, acha-se em
situação bem próspera. Os habitantes cultivam grande quantidade
de mandioca, exportando, anualmente, 60.000 alqueires de farinha;
bem como toras de madeira provenientes das florestas vizinhas.138

É claramente perceptível que quanto mais para o norte da


capitania o processo de colonização avança, maior é o número de
confrontos entre os nativos e os colonos. Nitidamente os índios ao
sul, com exceção dos Purís da região de Itapemirim, acabaram assi-
milados de maneira definitiva pelo processo civilizador europeu, a
exemplo dos encontrados por Maximiliano no Rio de Janeiro e São
Fidelis. No entanto,

nas matas à margem do rio São Mateus, os índios não civilizados


são muito numerosos, e vivem em constante guerra com os brancos.
Ainda durante o último ano[1815] mataram dezessete pessoas.139

Relatos de contatos com índios Patachós, Cumanachós, Ma-


chacalis, Botocudos, entre outros é comum da barra do rio São Ma-
teus até a vila de Mucuri. Inúmeras são as histórias contadas pelos
poucos que ainda vivem nessa terra selvagem e inóspita.
O território que cerca o rio Mucuri e a vila homônima se
estende do litoral até as divisas com a capitania de Minas Gerais.
Um território que aparentemente é o ponto de convergência de di-
versas etnias indígenas. Uma região, que se fôssemos pensar em ter-
mos geoespaciais modernos, compreenderia a fronteira entre esses

138  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 170.


139  Ibidem, p. 170.

88
diversos povos que ocupavam a região. Nesse trecho a presença dos
Botocudos, que se encontram espalhados desde as minas de Castelo
e concentrados às margens do rio Doce, já é bem reduzida. Nessa
parte é possível encontrar os Maconis, os Malalis, os Capuchos, os
Cumanachós, os Machacalis e os Panhamis, sendo que essas quatro
últimas etnias “se aliaram com os Patachos, para que assim unidos
possam fazer frente aos Botocudos, mais numerosos”.140
Mesmo com todos esses “perigos” que o cercavam, apesar
de andar em permanente estado de alerta e atenção, estando sua co-
mitiva sempre armada, nenhum contato mais inesperado aconteceu
desde sua partida no Rio de Janeiro.
Durante todo o trajeto da viagem, Maximiliano teve pou-
cos e ocasionais contatos com os tão desejados índios, sendo alguns
Tupiniquins, ainda no Rio de janeiro, e outros Puris em São Fideles,
no entanto, nada pululava mais o seu imaginário do que o possível
contato com os “mitológicos” Botocudos do rio Doce, algo que espe-
rou ser possível em Linhares e que não se concretizou.
Apesar da imensa frustração que se seguiu pela ausência
desses possíveis acontecimentos, o contato com os Botocudos veio
acontecer já em território da comarca de Porto Seguro, na altura da
vila de Viçosa, e com os índios civilizados do aldeamento de Bel-
monte, porém o espanto superou a excitação e até mesmo a anti-
ga frustração, haja vista que Maximiliano registrou o seu primeiro
contato da seguinte maneira:

os aspectos dos Botocudos causou-nos indescritível espanto; nun-


ca víramos antes seres tão estranhos e feios. Tinham o rosto enor-
memente desfigurado por grandes pedaços de pau, que trazem no
lábio inferior e nos lobos das orelhas, destarte o lábio inferior fi-
que muito projetado para a frente, e as orelhas de alguns pendem

140  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 176.

89
como asas largas sobre os ombros; os corpos bronzeados estavam
completamente sujos. [...] Muitos deles tinham tido varíola havia
pouco tempo; ainda estavam completamente cobertos de cicatrizes
e crostas, que, somando-se à grande magreza trazida pela doença,
aumentavam ainda mais a fealdade natural.141

Assim, saciado pelo contato com os Botocudos, e desaponta-


do com a maneira em que se deu tal fato, Maximiliano segue, enfim,
rumo a Caravelas, seu destino quando partiu da Barra do Jucu, na
Capitania do Espírito Santo.
Chegando finalmente ao destino dessa terceira etapa da
viagem,142 Maximiliano constatou que

Caravelas é a maior vila da Comarca de Porto Seguro. Possui


ruas retas cruzando-se perpendicularmente, cinco ou seis prin-
cipais e diversas outras menores; todas, porém, sem calçamento
e cheias de capim. A maior igreja fica num lugar aberto, perto
da Casa da Câmara. As casas da vila são bem construídas, mas
geralmente de um só andar. Caravelas mantém animado comér-
cio dos produtos da região, sobretudo farinha de mandioca, um
pouco de algodão, etc.143

Sanadas as pendências que veio resolver no que concerne aos


artigos necessários à viagem do restante da comitiva que encontra-
va-se detida na capitania do Espírito Santo, Maximiliano apronta-se
para uma nova etapa da jornada que se propôs realizar, no entanto,

141  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 177-178.


142  A primeira etapa se deu da cidade do Rio de Janeiro até a Fazenda Muribeca, às
margens do rio Itabapuana, divisa das capitanias do Rio de Janeiro e Espírito Santo. Já
a segunda etapa partiu do Rio Itabapuana até sua estadia na fazenda da Barra do Jucu.
A terceira etapa compreende Barra do Jucu a Caravelas. E a quarta etapa compreende
a estadia de Maximiliano entre os Botocudos de Belmonte, onde o viajante realizará
grande estudo antropológico desses nativos brasileiros.
143  PHILIPP, Maximilian Alexander. Viagem ao Brasil... Op. cit., p. 180.
90
aqui termina a parte que acompanhamos nosso aventureiro, mesmo
sabendo que não é o fim da aventura.
Até o fim de sua jornada em Salvador, quando embarcará a
bordo do navio Princesa Carlota, em 10 de maio de 1817, rumo ao lar,
muitos acontecimentos ainda hão de se dar.
Para aqueles que não estão exaustos de viajar no lombo de
burros, e, assim como o Príncipe, estão ávidos por maiores aven-
turas, desejamos boa leitura! Ou seria boa viagem? Entretanto, nós
retornaremos ao Rio de Janeiro para acompanhar uma nova expedi-
ção a terras capixabas, a do francês Auguste de Saint-Hilaire, que já
prepara os planos de viagem.

91
Auguste Saint-Hilaire (1779-1853).
Acervo do Ministério Público de Minas Gerais.

92
Capítulo IV

Auguste de Saint-Hilaire

Durante o período conhecido como Guerras Napoleônicas, como


já citado, Portugal foi invadido por forças francesas. Em retaliação a
tal invasão, a corte portuguesa, instalada no Brasil, une forças com
a Inglaterra e ataca a Guiana Francesa, uma possessão francesa na
América e anexa ao território do Brasil.
Durante os anos que se seguiram ao início do conflito na Eu-
ropa, a Guiana ficou anexada ao território brasileiro. Durante todo
esse período, se os Jardins e Museus portugueses foram saqueados
na Europa, a exemplo da campanha realizada pelo General Junot
com apoio de Geoffroy Saint-Hilaire e que formam a atual coleção
Cabinet de Lisbonne, do Museu de História natural de Paris, os por-
tugueses saquearam La Gabriele, grande complexo agrícola francês e
responsável pela produção de um grande número de especiarias. Se
as preciosidades de Portugal alimentaram os museus da França, os
jardins da Guiana abasteceram os grandes hortos do Brasil, além de
servir de elemento balizador do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Com o fim da guerra e a assinatura do Tratado de Viena em
1817 a Guiana Francesa é definitivamente devolvida à França, que
aceitou como contrapartida a redefinição das fronteiras entre as duas
nações nos termos ditados pelos portugueses.
Nesse interdito, entre os anos de 1815 (término da guerra) e
1817 (devolução da Guiana), os laços diplomáticos entre os dois pa-
íses (Portugal e França) são reatados, e no ano de 1816, na onda de
estrangeiros ligados à arte, cultura e ciências, que desembarcavam
em grande volume no Brasil, principalmente no Rio de Janeiro,
aportam os intelectuais que fizeram fama e alguns fortuna, oriun-
dos da França.

93
Segundo Lilia Moritz Schwarcz,

seguindo a voga de viajantes e naturalistas de outras nacionalida-


des- que seriam igualmente obrigados a aguardar a chegada da
corte para conhecer a rica colônia portuguesa - entrariam no Brasil
de D. João os franceses com seus costumes e civilidades, e o local
passaria a ser visto a partir de um novo jogo de espelhos, em que
se contrastava a vasta e imaginosa representação (feita de relatos
de viajantes de séculos anteriores) com a recente realidade dos tró-
picos. Assim, se algumas missões que nesse contexto adentram o
país buscavam as vantagens econômicas até então controladas pe-
los ingleses, viriam, ainda, outras, que aqui aportavam imbuídas de
um "sentimento de natureza", legado pelos relatos dos séculos XVI,
XVII, e XVIII. O Brasil era, para esses viajantes, ao mesmo tempo
um velho conhecido e um grande desconhecido. Era o país da flora
exuberante e da enorme fauna; mas também quase um continente
misterioso, caracterizado por gentes de hábitos estranhos.

Os franceses pareciam querer, pois, redescobrir um local descober-


to havia muito, e a curiosidade reprimida por tantos anos agora se
transformava em realidade. Para aqueles que já tinham ouvido fa-
lar da América Espanhola de Humboldt, mas careciam de imagens
do Brasil, este era o país mais exótico do continente - com seus
indígenas, africanos, mosquitos, serpentes e uma natureza em tudo
singular. [...] O Brasil era, sobretudo, um imenso território virgem,
que resumia e reunia riquezas dispersas por toda a América. As-
sim, com esse espírito, entraram no país cientistas como Saint-
-Hilaire, cronistas como Ferdinand Denis, ou artistas acadêmicos
como Jean-Baptiste Debret, Nicolas-Antoine Taunay, Grandjean
de Montigny e tantos outros; estrangeiros que se deixariam conta-
minar pela paisagem local, mas também a alterariam.144

144  SCHWARCZ, Lilia Moritz. O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras

94
Tal conjunto de intelectuais vem subvencionados pelo esta-
do francês e sob o comando da missão estrangeira no Brasil, o em-
baixador Duque de Luxemburgo, que tinha como objetivo central
intermediar a solução para a questão da Guiana. Já os cientistas ti-
nham como tarefa coligir o maior número possível de informações,
dados e características do território brasileiro, para tanto, na quali-
dade de artistas e viajantes-naturalistas, deveriam coletar e enviar
para o Museu de Paris todas as correspondências de caráter cientí-
fico além de objetos e materiais coletados com vistas à realização de
pesquisas.
Entre esses membros que compunham esta missão france-
sa145 estava Augustin François Cesar Prouvençal, também conheci-
do como Auguste de Saint-Hilaire. Viajante-naturalista, membro
de família nobre, com importantes conexões no mundo acadêmico
francês, se destacou, mesmo antes da viagem ao Brasil, por suas pes-
quisas em História Natural e Botânica.
Grande intelectual em seu tempo, Saint-Hilaire possuía uma
formação humanista, sustentada pelos grandes debates dos ilumi-
nistas franceses dos séculos XVII e XVIII, além dos ingleses, holan-
dês, alemães, entre outros. O próprio Saint-Hilaire admitiu a signifi-
cativa influência desses grandes pensadores em sua formação, sendo
Goethe o principal deles.
Contemporâneo dos grandes acontecimentos revolucio-
nários do século XVIII, que abalaram as estruturas do poder e do
conservadorismo na Europa, principalmente na França, Auguste de
Saint-Hilaire conseguiu, de certa forma, sair ileso nesse processo,
haja vista que sua família conseguiu manter significativa influência
durante e depois desse processo.

dos artistas franceses na corte de D. João. São Pulo: Companhia das Letras, 2008, p. 13.
145  A primeira de uma tradição que vai se arrastar ao longo de quase dois séculos,
pois até o final do século XX o Brasil irá receber pesquisadores das sociedades científicas
francesas em missões internacionais de colaboração mútua de pesquisa.

95
Apesar de sua grande e profunda obra, que impressiona
não somente pelas detalhadas descrições a respeito dos elementos
da biodiversidade brasileira, mas também pelas gravuras geradas
a partir de suas análises, que assim como Spix e Martius, tornou
a análise botânica em verdadeira obra de arte, Auguste de Saint-
-Hilaire, segundo Lorelai Kury

é, na verdade um desconhecido entre nós. Poucos detalhes de sua


vida e de sua obra foram estudados. Na França atual, ele é um perso-
nagem esquecido, o que não aconteceu em sua época, quando ocu-
pou posição de prestígio no meio científico parisiense e francês.146

Mesmo tendo caído no ostracismo após 200 anos, Auguste


de Saint-Hilaire, talvez seja, juntamente com Maximiliano, Spix,
Martius, Debret e Rugendas, um dos nomes mais representati-
vos e simbólicos daquele Brasil do oitocentos. Muitos foram, são
e certamente serão, os que citaram os seus trabalhos e viagens em
pesquisas que versem sobre a formação da sociedade, cultura, po-
lítica e nação brasileira, dada a sua enorme contribuição analítica
nesses campos.
O fato é que esses relatos e descrições realizados, não somen-
te por Saint-Hilaire, mas por todos aqueles que se aventuraram por
um Brasil que acabara de ser redescoberto, contribuíram exponen-
cialmente para a reconstrução de um passado a partir de textos e
imagens deixados para nós como colaborações à Ciência e História
Natural, e que acabaram por se cristalizar como elementos de cons-
trução de uma identidade nacional brasileira.
A exemplo do que veremos nessa breve análise de sua obra
que aqui nos dispomos a fazer, Saint-Hilaire não se ateve somente

146  KURY, Lorelai. Auguste de Saint-Hilaire, viajante exemplar. Intellèctus, Rio de Ja-
neiro, v. 2, n. 1, p. 1, 2003.

96
aos elementos da natureza, não que isso por si só não pudesse gerar
uma obra monumental, mas, como Maximiliano, realizou inúme-
ros apontamentos e registros que contribuíram sistematicamente
para a compreensão do modo de vida daquelas pessoas que gesta-
ram a ideia de uma nação brasileira, ou seja, um conjunto de obras
“interessantes, úteis e até atuais da primeira à última linha”.147
Durante a sua longa estadia no Brasil (1816-1822) percorreu
significativa parcela de nosso território, tendo centralizado suas via-
gens entre as atuais regiões Sudeste, Centro-Oeste e Sul, chegando
a visitar o Uruguai e as margens do Rio da Prata. Entre os estados
visitados estão: no Sudeste - Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de
Janeiro e São Paulo; Centro-Oeste - Goiás; e Sul - Santa Catarina e
Rio Grande do Sul.
Tendo sempre o Rio de Janeiro como ponto de partida e base
para a organização das diversas expedições que realizou, Auguste
de Saint-Hilaire percorreu ao todo, segundo Levy Rocha, duas mil e
quinhentas léguas em diversas viagens,148 sempre retornando ao Rio
de Janeiro antes de partir para uma nova jornada de pesquisa, fa-
zendo que juntamente com Spix e Martius, que percorreram aproxi-
madamente dez mil quilômetros, seja um dos naturalistas que mais
caminharam pelo Brasil nesse período.
Dentro desse contexto, Leonan de Azeredo Pena, na apre-
sentação da Brasiliana dedicada à tradução e divulgação da obra de
Saint-Hilaire,149 segue na mesma vertente defendida por Varnhagen,
afirmando que de todos os viajantes estrangeiros que se propuseram

147  PENA, Leonan de Azerevo. Auguste de Saint-Hilaire: dados biográficos e biblio-


gráficos. In.: SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagens pelo Distrito dos Diamantes e Litoral
do Brasil: com um resumo histórico das Revoluções do Brasil, da chegada de D. João
VI à América à abdicação de D. Pedro. Trad. Leonan de Azeredo Pena. Rio de Janeiro:
Companhia Editora Nacional, 1941, coleção Brasiliana, v. 210, p. IX.
148  Uma légua corresponde a 4.828 metros. Convertendo o caminho de Auguste
Saint-Hilaire em metros, seria algo equivalente a 12.070.000 metros, ou 12.070 Km.
149  Brasiliana v. 210, Coleção Biblioteca Pedagógica Brasileira, 5ª série.

97
a realizar uma obra sobre o Brasil durante o alvorecer do século XIX,
Auguste de Saint-Hilaire foi o mais gentil amigo do país, visto que

Viajando acompanhado por pessoas rudes, às quais se afeiçoara


com facilidade, muito sofreu pelo mau caráter ou pela ignorância
de seus auxiliares de jornada. Recebido aqui com cavalheirismo, ali
com indiferentismo, acolá com grosseria, soube o grande botânico
portar-se perfeitamente de acordo com as conveniências do mo-
mento e em seus escritos consignar o louvor aos que fizeram jus a
isso e à censura, sempre branda e desculposa, aos que o receberam
mal ou não o quiseram receber.150

A viagem de Saint-Hilaire ao Brasil lhe rendeu toda uma


carreira e um conjunto maciço de obras que entre elas, divididas
em 11 volumes, estão: Voyage dans les provinces de Rio de Janeiro
et Minas Gerais (1830 - 2 v.); Voyage dans le district des Diamans et
sur le littoral du Brésil (1833 - 2 v.); Voyage aux sources du Rio de S.
Francisco et dans la province de Goiaz (1847/1848 - 2 v.); Voyage dans
le interieur du Brésil (1850 - 2 v.); Voyage dans les provinces de Saint-
-Paul et de Sainte Catharine (1851 - 2 v.); e Voyage à Rio Grande do Sul
e Cisplatina (1887 - 1 v. - publicação póstuma).
Dessas obras citadas somente partes do todo encontram-se
traduzidas, a exemplo de Segunda viagem ao interior do Brasil, Espí-
rito Santo, traduzida por Carlos Madeira e que foi extraída da obra
Voyage dans le district des Diamans et sur le littoral du Brésil (1833 - 2
v.), e que corresponde aos capítulos VII a XV do segundo tomo.
Outros títulos encontram-se traduzidos, tais como: Segun-
da Viagem a Minas e São Paulo, por A. Taunay ; Viagem ao Rio
Grande do Sul, por Leonam de Azeredo Penna; Viagem à província

150  PENA, Leonan de Azerevo. Auguste de Saint-Hilaire: dados biográficos e biblio-


gráficos... Op. cit., p VIII.

98
Saint-Hilaire. [detalhe] Voyage à Rio Grande do Sul (Brésil) - Acervo do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Sul.

99
de Santa Catarina, por C. da Costa Ferreira; Viagem às Nascentes
do Rio São Francisco e à Província de Goiaz, por Clado Ribeiro
Lessa; Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais,
por Clado Ribeiro Lessa; e Viagem à Província de São Paulo, por
Rubens Borba de Morais.
Mesmo depois de retornar à Europa em 1822, devido a um
envenenamento ocasionado por um ataque de vespa, cuja substância
ataque o sistema nervoso central, Auguste de Saint-Hilaire perma-
neceu ativo em suas produções e pesquisas, como se pode ver na
extensa lista de obras publicadas.
Com um acervo gigantesco, oriundo das constantes remes-
sas realizadas do Rio de Janeiro para o Museu de Paris, na França,
Saint-Hilaire pôde continuar e aprofundar suas análises, pois,

como se tratava de alguém com conhecimentos reconhecidos em


botânica, ele mesmo decidia em última instância sobre o destino de
suas pesquisas e coletas. Ele enfatiza, aliás, em suas cartas e depois
em seus relatos de viagem que não se limitava a recolher plantas e
enviá-las ao Museu de Paris. Ao contrário, as analisava e tomava
suas notas in situ, quando ainda estavam frescas e não secas em
herbários. Por isso, pediu a seu amigo Deleuze [Joseph-Philippe-
-François Deleuze], do Museu, que guardasse os envios de plantas
que fazia, pois ele mesmo era a pessoa mais indicada para analisar
as coleções que formara.151

Esse e outros trabalhos floresceram posteriormente a partir


da gama de análises realizadas sobre o material coletado. tais traba-
lhos renderam a Auguste de Saint-Hilaire elogios em diversas aca-
demias tanto na França, quanto em outros países da Europa. Exem-
plo disso é o relatório redigido e apresentado por Antoine-Laurent

151  KURY, Lorelai. Auguste de Saint-Hilaire, viajante exemplar... Op. cit., p. 4.

100
Jessieu à Academia de Ciências de Paris onde o mesmo enfatiza a
grande obra de Auguste de Saint-Hilaire destacando a persistência e
precisão apresentadas pelo citado viajante.152
Outro notável que o exalta na mesma Academia de Ciências
é Alexander von Humboldt, dizendo:

Mas, o que concede verdadeiro valor a objetos tão numerosos, o


que distingue o viajante cientista do simples coletor, são as obser-
vações precisas que ele faz nos próprios sítios, para fazer avançar o
estudo das famílias naturais, a geografia das plantas e dos animais,
o conhecimento das variedades de solo e o estado de seu cultivo.153

Assim, segundo Lorelai Kury, Auguste de Saint-Hilaire

parece corresponder ao novo perfil de viajante-naturalista ideali-


zado no meio científico parisiense: pesquisa in loco, especializa-
ção, capacidade de produzir informações balizadas, publicação dos
resultados. A qualidade da formação científica do viajante é uma
condição prévia para que ele realize o que se espera dele: fazer com
que sua missão seja útil.154

Especificamente sobre a capitania do Espírito Santo Auguste


de Saint-Hilaire dedicará nove capítulos que versam sobre as prin-
cipais vilas, povoações e quarteis, além de um quadro geral da Ca-
pitania.
Sua obra já fora elemento anterior de análise de grandes
intelectuais capixabas, sendo a obra de maior destaque a de Levy
Rocha Viajantes estrangeiros no Espírito Santo (1971), onde o autor

152 Cf. Ibidem, p. 5.
153  HUMBOLDT apud KURY, Lorelai. Auguste de Saint-Hilaire, viajante exemplar...
Op. cit., p. 5.
154  KURY, Lorelai. Auguste de Saint-Hilaire, viajante exemplar... Op. cit., p. 5.

101
dedica um capítulo ao viajante. Podemos ainda citar um artigo da
Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo de 1935,
redigido por Carlos Madeira, o tradutor da obra.
Mesmo sendo um expoente da botânica do século XIX, e
possuidor de farta produção, Auguste de Saint-Hilaire foi legado
ao esquecimento histórico, haja vista a incipiente produção analí-
tica em torno de seus escritos. O fato é que durante os séculos que
seguiram, os viajantes foram enquadrados ora como perfeitos es-
pelhos da realidade social que se desdobrava frente aos seus olhos
e que narraram com “profunda” riqueza de detalhes, ora como
execrados pelo misticismo da imposição de um novo processo ci-
vilizador que tinha como objetivo a transformação dos trópicos
em uma nova Europa.
A problematização de seus relatos de viagem somente vie-
ram à tona mais recentemente dada a possibilidade analítica perante
as novas ferramentas teóricas e conceituais que se desenvolveram
nas últimas décadas. Exemplo disso são as apropriações de ideias
de Michel Foucault no que tange ao discurso, autor e poder, outra
contribuição está em Roger Chartier e as representações culturais,
assim como em Norbert Elias e o processo civilizador, além, é claro,
da história dos conceitos.
Enfim, uma série de novas possibilidades de leitura dos re-
latos de viagem que ganharam força após essa larga expansão dos
horizontes da pesquisa histórica na década de 1980. Esses resgates
vêm ganhando significativa força e volume, principalmente, após a
comemoração dos 200 anos do processo de chegada da Família Real
portuguesa ao Brasil, que, como já visto, proporcionou uma abertu-
ra sem precedentes na história do Brasil colonial.
Nesse embalo, é justa e necessária, no limiar dos 200 anos de
sua viagem à Capitania do Espírito Santo, uma nova visita à obra de
Saint-Hilaire, não com o profundo objetivo de problematizá-la ou
rotulá-la, mas sim de levar o capixaba a um passado recente, a fim de
que ele possa reivindicar para si um passado alternativo a esse das

102
narrativas de atraso que cercam o discurso histórico dominante até
os presentes dias.

Os preparativos para a segunda viagem ao interior


do Brasil.

Regressando de sua viagem à Capitania de Minas Gerais e de seus


distritos diamantinos, Auguste Saint-Hilaire espera poder obter no
Rio de Janeiro notícias de seus familiares na França, afinal, já se
passaram praticamente três anos de sua estadia no Brasil, e desses,
cerca de um ano e três meses (15 meses) passados em peregrinação
pelo interior de Minas.
Durante o período em que esteve no Rio de Janeiro à espe-
ra de notícias, Saint-Hilaire dedicou grande parte de seu tempo na
organização, catalogação e remessa dos itens coletados durante sua
segunda viagem a Minas Gerais.
Dada a demora no sistema de correspondências, devemos
lembrar que a viagem pelo Atlântico poderia chegar a até três meses,
sendo o trajeto cumprido, em sua grande maioria, entre 45 a 60 dias,
Saint-Hilaire decide que “para não ficar à toa durante esse intervalo,
resolvi consagrar alguns meses a visitar o litoral que se estende ao
norte da capital do Brasil”.155
Durante os preparativos da viagem o viajante reclama das
peripécias que sempre cercam os viajantes que se dedicam a percor-
rer o território brasileiro, segundo ele “tive grandes contrariedades,
como acontece sempre neste país no meio dos preparativos de uma
viagem por terra”,156 no entanto os preparativos conseguem ser finali-
zados a fim de se iniciar a caminhada. A comitiva ficara composta de:

155  SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagens pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil...
Op. cit., p. 242.
156  Ibidem, loc. cit.

103
um número de animais de carga suficiente para transportar minha
bagagem e minhas coleções, meu doméstico francês, o índio Fir-
miano, um tropeiro chamado José, que me foi enviado de Ubá e do
negro Zamore, que um negociante francês estabelecido no Rio de
Janeiro me havia pedido para levar comigo afim de habituá-lo às
viagens e ao serviço dos animais.157

Enfim, posto em marcha no dia 18 de agosto de 1818, Saint-


-Hilaire poderá perceber, já nos primeiro momentos de sua viagem,
as privações as quais estará sujeito e pelas quais Maximiliano já havia
passado, sendo talvez, a principal delas, a ausência de uma estrada
ou caminho bem estruturado para atender aqueles que para o norte
do Rio de Janeiro pretendiam seguir. Segundo Saint-Hilaire “grandes
estradas ligam a capital do Brasil a Minas e a S. Paulo; mas, à época de
minha viagem não existia nenhum caminho entre o Rio de Janeiro e
as províncias do norte”,158 isso devido, principalmente, ao fato de que

era então quase sempre por mar que se ia de um porto ao outro;


caravanas regulares nunca percorriam a costa, sendo pouco conhe-
cido o trabalho com animais de carga. Quando por acaso se dese-
java viajar por terra do Rio de Janeiro ao norte do Brasil, seguia-se
até as lagoas de Saquarema e Araruama, por um desses caminhos
que já mantém comunicação entre a capital e as fazendas das vizi-
nhanças; contornavam-se em seguida as duas lagoas, e, excetuados
pequenos trechos, não se fazia outra cousa, até ao rio Doce, que
caminhar sobre uma praia arenosa, batida pelas vagas.159

157  SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagens pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil...
Op. cit., p. 242.
158  Ibidem, loc. cit.
159  Ibidem, p. 243. Vale aqui a pena resgatar o fato disso já ter sido comentado ao
longo da viagem de Maximiliano, que durante a maior parte de seu percurso percorreu
o caminho do Rio de Janeiro ao Espírito Santo pela beira mar.
104
Barra do rio Itabapoana - Foto de Albert Richard Dietze (1877)

Assim como Maximiliano, a última paragem de Saint-Hilai-


re em terras cariocas foi na fazenda Muribeca, às margens do rio Ita-
bapoana, divisa geográfica das duas capitanias. Apesar da insistên-
cia do proprietário para que Saint-Hilaire pernoitasse na Fazenda, o
mesmo optou por prosseguir viagem rumo ao Espírito Santo. Não
há como precisar a data em que o viajante adentrou em terras capi-
xabas, a única coisa que podemos ter certeza por suas narrativas é
que os temores que avassalaram Maximiliano três anos antes, foram
os mesmos que acometeram Saint-Hilaire ao se dirigir a essas terras.
O que se tem conhecimento é que “em 10 de outubro desse
ano [1818] chega a essa capitania o notável naturalista Auguste de
Saint-Hilaire, dirigindo-se ao rio Doce e dali a Minas”,160 e que o
mesmo “conheceu de perto o Rio Doce, até Linhares, onde chegou
a 22 de outubro, conduzido em pirogas pelos soldados pedestres do
quartel de Regência Augusta”.161 Durante todo o seu percurso “ano-
tou números, dados históricos, observações sobre indústria, agri-
cultura, comércio, alinhou reflexões a respeito da civilização dos
índios, costumes dos brancos e etc”.162

160  DAEMON, Basílio Carvalho. Província do Espírito Santo... Op. cit., p. 294.
161  HARUF apud DAEMON, Basílio Carvalho. Província do Espírito Santo... Op. cit.,
p. 294.
162  OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado... Op. cit., p. 280.
105
Capa do Caderno de Campo B1 - Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo. Acervo: Herbário
Virtual A. Saint-Hilaire.

106
Segunda Viagem ao Interior do Brasil.
Espírito Santo

A viagem Auguste de Saint-Hilaire é de certa forma uma reprodu-


ção do trajeto que o Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied reali-
zou até o Rio Doce, inclusive a obra de Saint-Hilaire, publicada anos
mais tarde à de Maximiliano, traz várias notas de referência à obra
desse que foi o primeiro viajante estrangeiro a cortar de sul a norte,
pela via terrestre, o território capixaba. No entanto, o pioneirismo
de Maximiliano não deve, e nem pode, ofuscar o trajeto de Saint-
-Hilaire, que teve como ponto de partida a foz do rio Itabapoana em
direção à vila de Itapemirim.

Típica tropa que acompanhava as expedições dos naturalistas por terra.

Acompanhado constantemente, nesse primeiro trecho da


viagem, por homens armados, Saint-Hilaire busca evitar o conta-
to com os índios que dominam esse trecho do caminho, precaução

107
tomada, haja vista, que desde sua saída do Rio de Janeiro ele foi
constantemente alertado dos perigos que dominam o trajeto entre
Muribeca e Itapemirim.
Na saída de Muribeca ele conseguiu convencer o adminis-
trador de lhe fornecer reforço à comitiva que com ele seguia, com
isso novos elementos foram adicionados à caminhada,pois “o bom
padre deu-me três escravos, que já haviam combatido contra os ín-
dios, armados de espingardas e de facão do matto”.163
Segundo Saint-Hilaire

No tempo da expulsão dos Jesuítas, não havia selvagens em todo


este districto; foi somente seis ou oito annos depois della, que elles
começaram a cometter estragos (escripto em 1818). A primeira vez
que se fizeram notar mataram animaes a dente; cavallos, homens e
depois ainda renovavam suas carnificinas e devastações.164

O medo toma conta desse trecho da viagem. O silêncio so-


mente é rompido pelos sons dos passos e dos animais que habitam
a enorme floresta que acompanha, a perder de vista, o litoral. Os
companheiros de viagem vigiam constantemente a margem da flo-
resta “da qual era possível que surgissem [a qualquer momento] os
índios”.165
Seguiu a viagem, apesar de toda a tensão que reinou nesse
trecho, sem maiores incidentes, e os temidos índios antropófagos,
mais uma vez, impuseram o medo e o terror aos viajantes estrangei-
ros sem nem ao menos expor sua face. O primeiro ponto de parada,
quartel Boa Vista, finalmente foi atingido.

163  SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo.


Trad. Carlos Madeira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936, Coleção Brasi-
liana, v. 72, p. 42.
164  Ibidem, loc. cit.
165  Ibidem.

108
Itinerário de Auguste de Saint-Hilaire. Adaptado de: http://www.estacaocapixaba.com.
br/2016/01/o-espirito-santo-em-principios-do.html

109
Após breve estadia nesse posto de guarda, Saint-Hilaire se-
gue sua jornada rumo à vila de Itapemirim. Uma nova adição foi
feita a sua comitiva, dessa vez de quatro soldados, com o objetivo de
proteger o grupo que ainda seguiria por um caminho considerado
crítico e alvo de constantes ataques dos índios.
Apesar das constantes narrativas descritas por aqueles que
o acompanhavam, sobre os ataques e as práticas canibalísticas dos
nativos da região, Auguste de Saint-Hilaire questionou a veracidade
de tais histórias e acontecimentos. Para ele

esses factos, dos quaes um dos meus soldados havia sido, disse-me
elle, testemunha occular, e aquelles que me haviam narrado os es-
cravos de Muribéca, tendiam provar a realidade da antropophagia;
mas, é aconselhavel, eu creio, não acceitar plenamente essas narra-
tivas de homens incultos, animados pelo rancor e susceptiveis de
crear phantasias, em torno das suas acções.166

Para Saint-Hilaire, toda essa história criada em torno dos


ataques “foi imaginada, a fim de tornar os índios mais odiados”,167
tendo em vista que as descrições realizadas por aqueles que narram
esses brutais ataques ora correspondem aos Botocudos, aos Coroa-
dos e por fim aos Puris, trazendo assim dúvidas sobre a veracidade e
credibilidade sobre o fato narrado e sobre o narrador.
O fato é que a viagem novamente segue sem nenhum pro-
blema de maior grandeza. A comitiva passa pela pequena aldeia de
Siri, que ainda estava destruída, como narrou Maximiliano, e segue
diretamente para Itapemirim.
A partir desse trecho e a medida que a comitiva se aproxi-
ma de Itapemirim há um maior número de habitações e pequenos

166  SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...


Op. cit., p. 46.
167  Ibidem, p. 48.

110
Representação das guerras entre colonos e índios. Guerrilhas. Aquarela. Rugendas, c. 1835.

povoados. Do ponto de vista de Saint-Hilaire “este districto parece


ter sido, outrora, coberto de mattas, mas, hoje não se lhe vêm senão
bosques esparsos, entre as plantações de cannas ou de mandioca”.168
Nessa vila ele é recebido e abastecido pelo Capitão Francisco Coe-
lho, proprietário de algumas fazendas na região.
Itapemirim, apesar de ter recebido o título de vila em 1811 é,
segundo Saint-Hilaire, “composta de uma pequena aglomeração de
casas cobertas de palha, não se assemelha a mais que uma aldeia”.169
Além Disso,

a villa de Itapemirim não está senão em formação, mas, o nome


que ella tem e que em guarany significa pequena pedra chata, foi

168  SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...


Op. cit., p. 49.
169  Ibidem, p. 50.

111
dado ao seu territorio pelos índios, provavelmente mesmo antes
da descoberta do Brasil, porque já se o encontra citado na relação
tão interessante de Jean de Lecy, publicada por volta do meiado
do 16º seculo. [...] A população inteira desse pequeno districto se
eleva, disseram-me, a uma media de 1.900 almas. [...] A pretensa
villa não é senão logarejo composto, quando muito, de 60 casas,
das quaes a maior parte é coberta de palha e estão nas condições
as mais deploraveis. Essas cabanas formam uma só rua muito curta
e a praça inacabada, de que fallei mais acima. A egreja, um pouco
distante da villa, é demais pequena e não tem mesmo campanario,
mas, do alto da colina em que está construida, descortina-se um
panorama pittoresco, aquele que eu já havia admirado, atravessan-
do o Rio Itapemirim.170

Segundo Saint-Hilaire, Itapemirim possui uma produção


diversificada, estando ancorada, principalmente, na larga produção
de açúcar que os navios de transporte, que circulam pelo rio, bus-
cam “à porta de várias fazendas”.171 Outro produtos estão entre os
cultivados às margens do rio Itapemirim, entre eles: arroz, feijão,
mandioca, algodão e cebolas; todos cultivados às margens do rio,
que podem “ser consideradas muito férteis, pois permaneceram 20
annos sem descansar jamais e sem serem estrumadas”.172
Apesar da produção diversificada, somente o açúcar e a ce-
bola são elementos economicamente ativos e passivos de exportação
para as vilas de Vitória e Campos, além da própria capital, Rio de
Janeiro, todos os demais itens são para consumo próprio daqueles
que cultivam a terra, gerando pouco excedente destinado também
a exportação.

170  SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...


Op. cit., p. 50 et. seq.
171  Ibidem, p. 52.
172  Ibidem, loc. cit.

112
Saindo de Itapemirim em 4 de outubro de 1818, a comitiva
de Auguste de Saint-Hilaire retoma a marcha rumo ao norte da Ca-
pitania. Se à medida em que ele se aproximava de tal vila maior era
a incidência de moradias, à medida que caminha, dela se afastando,
novamente volta a rarear as moradias. A marcha torna-se enfadonha
nesse trecho, haja vista que

durante toda a jornada eu não achei, florindo, senão plantas com-


muns; não percebi nenhum insecto; não encontrei um viajante e
até Taopaba não vi nenhuma cabana. Os passarinhos, esses mes-
mos, abandonaram esta praia, onde não se encontra água doce e
se fica ensurdecido pelo barulho monótono das ondas do mar que
vêm despedaçar-se sobre a areia.173

Avançando pelo litoral sul, caminhando cada vez mais


para o norte, nosso viajante passa pelo Monte Aghá174 e pelas praias
de Itaipava e Piuma, onde “acham-se na embocadura de Piúma
algumas cabanas habitadas por índios civilizados, que vivem da
pesca e cultivam um pouco de terra, perto da praia”.175 Segundo
Saint-Hilaire

Havia, antigamente, às margens do Piúma, mais índios do que hoje


há; o receio aos botocudos fez fugirem os que se adiantaram pelas
terras adentro; outros se retiraram para satisfazer a inconstância
natural da raça e para evitar os vexames de que são sempre alvo na
província do Espirito Santo.176

173  Ibidem, p. 56.


174  Na língua dos índios Puris, significa “lugar de se ver Deus”.
175  SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...
Op. cit., p. 59.
176  Ibidem, loc. cit.

113
Sem uma parada significativa em Piúma, a comitiva segue
viagem, encontrando, a partir da pequena povoação indígena de
Piúma, um número cada vez maior de moradias, deixando evidente
que o trecho é de significativa importância.
Após algumas léguas percorridas, ele finalmente chega a Be-
nevente, que “mostra-se logo, entre os arvoredos; esconde-se muitas
vezes, para reapparecer, instantes depois, e dá ao viajante uma se-
quencia de paisagens agradabilissimas”.177
Em Benevente Saint-Hilaire esbarrou no misticismo, no pre-
conceito e no medo. Firmino, índio botocudo de origem, foi execra-
do e sofreu grandes injúrias devido a sua origem e à péssima relação,
e fama que os Botocudos têm entre as demais etnias e, principal-
mente, entre os ditos civilizados, “o pobre moço, confuso, perturba-
do, baixava os olhos sem proferir uma palavra sequer, e escondia seu
rosto entre as mãos”.178
Resolvidas as querelas que foram postas a cabo pelo coman-
dante da vila, Saint-Hilaire fora alojado no antigo convento dos jesuí-
tas e pôde novamente pôr em prática as suas análises a respeito do lo-
cal, da paisagem e da sua gente. Sob o olhar de Saint-Hilaire, Benevente

Compõe-se de cerca de 100 casas, cobertas, algumas de telhas e ou-


tras de palha, e das quaes, muitas têm um andar alem do terreo. [...]
Benevente, outr'ora conhecida pelo nome de Aldeia de Reritygba
era uma das quatró reduções que se achavam comprehendidas na
província do Espírito Santo. Os jesuitas lançaram os alicerces des-
ta Aldeia, logo após sua chegadà ao Brasil. Nella reuniram um nu-
mero muito consideravel de indios; estabeteceram uma hospedaria
para os viajantes de sua Ordem e Reritygba foi o principal theatro
dos generosos trabalhos do Padre Anchieta. [...] Em 1716, a anti-

177  SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...


Op. cit., p. 60.
178  Ibidem., p. 64.

114
ga redução foi erigida em Villa, sob o nome de Benevente, e, em
1795, foi feita cabeça de comarca de uma parochia independente.
Após a extinção da Companhia de Jesus, o governo apoderou-se do
mosteiro; unia parte do edificio serve hoje de alojamento ao cura; o
resto tem sido consagrado a muitos destinos differentes; nelle se fez
uma prisão; dispuzeram de uma sala para a camara; em outra peça o
Ouvidor dá suas audiencias, quando vem cumprir suas funcções de
corregedor; emfim, tiveram a generosidade de reservar um quarto
para da-lo aos estrangeiros honestos, que passam pela região.179

Benevente compunha o conjunto de aldeamentos que a


Companhia de Jesus instalou no Espírito Santo. Juntamente com
Vila Nova de Almeida, Benevente destacou-se pela enorme massa de
indígenas aldeados que nessa região se concentrou. Após a expulsão
dos jesuítas das colônias portuguesas, os índios ficaram dispersos.
Segundo os apontamentos de Maximiliano, foi somente após a ex-
pulsão dos padres que as regiões mais ao sul da capitania do Espírito
Santo tornaram-se novamente hostis e selvagens àqueles que transi-
tam e lançam alicerces de novas povoações.
Com vistas a resolver a questão indígena na região sul da capitania

a Administração destinou aos indios civilisados de Benevente uma


extensão inalienavel de seis leguas por outras tantas, mas, como o
lugar era fertil, os governadores tão logo deram aos seus amigos
porções dessas terras, sem considerar o direito dos indigenas que
inutilmente o reclamaram.180

Com o passar dos anos a situação foi se tornando cada vez


mais insustentável na região, à medida que os brancos avançavam

179  SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...


Op. cit., p. 66 et. seq.
180  Ibidem., p. 67.

115
Anchieta no século XIX. Disponível em: http://espiritosantonoticias.com.br/anchieta-mais-de-
450-anos-de-historia/.

sobre as terras, ditas inalienáveis, dos indígenas, adquirindo-as ora


sob a doação direta dos governadores, ora por posse direta. Segun-
do Saint-Hilaire “as referidas terras teem passado, quasi todas, pe-
las mãos dos luso-brasileiros e os indios se comprazem em cultivar
campos que deveriam semear para elles proprios”.181
Segundo o naturalista, tal situação se sustentou dado o fato
de que

Quando o indio pede justiça contra o português, como poderá


obte-la? E' aos amigos e patricios de seus adversarias que elle é

181  Ibidem, p. 68. Ainda hoje a questão das terras indígenas na antiga região de Be-
nevente, atual município de Anchieta, é uma questão mal resolvida, tendo em vista que
os grandes empreendimentos ainda visam as terras que permaneceram sob a posse dos
índios remanescentes. Sobre tal debate ver. MATTOS, Sônia Missagia de. Resistência e
ação política: os índios “mansos” da aldeia de Iriritiba, Anchieta, ES – Brasil. Revista do
Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, Vitória, n. 1, p. 25-44, 2017.

116
obrigado a dirigir-se, posto que, os Juizes ordinarios de Benevente
são exclusivamente portugueses. E, ainda, como é que as queixas
de uma raça de homens pobres e sem appoio chegarão até aos ma-
gistrados superiores, a uma tão grande distancia desses infelizes,
e surdos, a mais das vezes, á voz daquelles que se apresentam de
mãos vasias?182

Findada a estadia em Benevente, Saint-Hilaire toma nova-


mente a rota rumo ao Norte. Aqui vale um pequeno adendo à des-
crição. As paradas que Auguste de Saint-Hilaire realiza ao longo do
litoral são as mesmas feitas por Maximiliano, no entanto, não há
por parte do viajante o interesse em seguir o mesmo percurso de seu
antecessor, até mesmo porque a obra de Maximiliano somente há
de se tronar pública três anos após a viagem de Saint-Hilaire. O que
acontece é que as demais povoações ao longo do litoral e interior da
futura Província do Espírito Santo, somente hão de se desenvolver
em maior número e volume de pessoas a partir da segunda metade
do século XIX, principalmente com a inserção dos colonos estrangei-
ros, de origem majoritariamente italiana e alemã.
Com isso os pontos de parada para pouso e abastecimento
tornam-se os mesmos, porém, uma análise não anula a outra, haja
vista que sempre existem novos elementos descritivos a serem soma-
dos à narrativa histórica, e que auxilia ainda mais na compreensão do
cotidiano e do modo de vida daqueles capixabas do século XIX. Exem-
plo de tal situação é a descrição das disputas de terra entre índios e co-
lonos portugueses na região de Benevente, acima descrita por Saint-
-Hilaire, e que não encontramos em Maximiliano de Wied-Neuwied.
Dados os devidos esclarecimentos no que concerne à rotina
de viagem seguida por ambos cientistas, retornamos a caminhada.

182  SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...


Op. cit., p. 68-69.

117
A estrada que deixa Benevente leva o naturalista a Meaípe,
pequena aldeia litorânea já em território administrado pela paró-
quia de Guaraparí. Nessa pequena aldeia vale a pena dar destaque à
análise quase que etnográfica feita por Auguste de Saint-Hilaire dos
habitantes da região.

Não obstante os habitantes de Meiaipe se jactarem de serem bran-


cos reconhece-se logo, sem custo, que a mór parte, não pertence,
nem por misturá, á raça européa. Elles não têm, na verdade, olhos
differentes e a cor bistrada dos indigenas; mas, é de observar-se
que esses caracteres se perdem, quasi sempre, pela preponderan-
cia dos brancos e dos indios; aliás, os colonos de Meiaipe teem o
peito largo e os hombros sem saliencia, como os americanos; sua
cabeça é mais volumosa do que a dos verdadeiros portugueses, e
os ossos da maçã do rosto são nelles mais proeminentes que nos
europeus; emfim a brancura de sua pelle tem algo de embaçado e
pallido que não se nota nos homens que pertencem inteiramente
á raça caucasica.183

Ainda em movimento o naturalista segue para Guarapari, que

foi na origem uma das quatro reduções que os jesuitas formaram


na província do Espírito Santo e o celebre José Anchieta ali fez,
como em Benevente, triumphar seu zêlo pela civilisação e pelo
bem estar dos indios.184

Elevada ao título de vila em 1689, Guarapari contava na


ocasião da visita de Saint-Hilaire com “mais de 300 casas e mais de

183  SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...


Op. cit., p. 72.
184  Ibidem, p. 74.

118
2.400 adultos”.185 Uma vila que seguiu na contramão do desenvolvi-
mento das demais vilas e povoações que margeiam os rios. Guara-
parí, aos invés de adentrar o território margeando o rio, seguiu um
crescimento perpendicular ao mesmo, montando um paralelo com
o mar. O ponto de vista do viajante sobre essa vila foi o seguinte:

A rua pela qual cheguei ao rio Guarapary é bastante larga e ladeada


de casas mal entretidas, a mór parte coberta de telhas. Em frente
das portas e das janellas de sacadas ha, ordinariamente, uma espe-
cie de téla muito fina que substitue as venezianas e se assemelha
á que se emprega em muitas partes do Brasil, para fazer peneiras.
Não se teve o cuidado de calçar a rua de que acabo de falar e nella
cresce, como em Cabo Frio, um gramado muito fino, de effeito bem
bonito. Uma colina coberta de matto e corôada pelo antigo con-
vento dos Jesuitas, parte da villa e arroja-se diante da embocadura
do rio. Aquelle que em face da rua principal tem apenas a largura
de nossas ribeiras de terceira ou quarta ordem, arremessa-se diante
da pequena bahia, distando a cerca de um tiro de fuzil, das ultimas
casas.[...] A cidade de Guarapary tem muito mais importancia do
que Itapemirim e Benevente, pelo seu commercio. Seus habitan-
tes são em geral pobres e teem poucos escravos. As cannas que
suas terras produzem não podem ser empregadas senão para fazer
aguardente e se colhem algodão, arroz, feijão, mandioca, não é em
abundancia para que se entretenha commercio regular com a Ca-
pital. De vez em quando, negociantes da Bahia ou do Rio de Janeiro
entram no Guarapary com pequenas embarcações e compram dos
agricultores os generos excedentes do consumo da região, porém,
esse commercio se effectua com extrema morosidade.186

185  Ibidem, loc. cit.


186  Ibidem, p. 75-76.

119
Após a estadia em Guarapari, a viagem segue por Perocão,
Ponta da Fruta e Barra do Jucu, ponto do qual já é possível avistar o
Convento de Nossa Senhora da Penha, chegando, finalmente, à vila
de Vitória. Chegando a Vitória, Auguste de Saint-Hilaire dirigiu-se
para Jucutuquara a fim de encontrar o capitão-mor Francisco Pinto,
para o qual o viajante possuía uma carta de recomendações para
obter maior apoio a sua jornada.
Passou a noite no sítio de Santinhos, onde descobriu que o
ódio aos índios Botocudos era algo comum e que se espalhava por todo
o território da capitania do Espírito Santo, e que foi veementemente
afirmado pelo proprietário do sítio em que se alojou logo após a sua
chegada.
Se Basílio Carvalho Daemon afirma que Saint-Hilaire che-
gou a Vitória em 10 de outubro de 1818, podemos dizer que na ver-
dade o viajante chegou à capital da capitania no dia 9, visto que o
próprio naturalista afirma que

No dia seguinte de manhã, (10 de Outubro de 1818) o capitão-


-mór, conforme me promettera, mandou-me uma barca até o sitio
de Santinhos. Minha bagagem foi transportada para o outro lado
da bahia e meus burros atravessaram-na a nado, fazendo uma pa-
rada numa ponta de terra.187

Saint-Hilaire discorre durante longa parte de sua obra so-


bre os aspectos gerais da Vila de Vitória. Dedica-se, inicialmente, a
descrever os aspectos geográficos e hidrográficos, dando ênfase aos
pontos mais marcantes das adjacências da capital.188
No que concerne à vila o viajante aponta as seguintes carac-
terísticas:

187  SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...


Op. cit., p. 87.
188  Ibidem, p. 91 et. seq.

120
Perspectiva da Vila de Vitória Colonial. Por Joaquim Pantaleão Pereira da Costa. c. 1805

As ruas de Victoria são calçadas, porem o são mal; teem pouca


largura, não offerecendo nenhuma regularidade. Entretanto, não
se veem, aqui, casas abandonadas, semi-abandonadas, como na
maioria das cidades de Minas Geraes. Entregues á agricultura, ou
a tim commercio regularmente estabelecido, os habitantes da Villa
da Victoria não são sujeitos aos mesmos reveses dos cavadores de
ouro e não têm razão de abandonar sua terra natal. Elles tem o cui-
dado de bem preparar e embellezar suas casas. Um numero consi-
deravel d'entre ellas tem um ou dois andares. Algumas de janellas
com vidros, e de lindas varandas trabalhadas na Europa. A Villa da
Victoria não tem caes; ora as casas se estendem até a bahia, ora se
vê, nà praia, terreno sem construcção que tem sido reservado para
o embarque de mercadorias. Esta cidade é tambem privada de um1
outro genero de ornamento: não possue, por assim dizer, nenhu-
ma praça publica, posto que aquella existente defronte do palacio
é muito pequena e é com muita condecendencia que se dá o nome
de praça á encruzilhada enlameada que se prolonga da egreja de
Nossa Senhora da Conceição da Praia até a praia. Ha, na Villa da

121
Victoria, algumas fontes publicas que tambem não contribuem
para embéllezar a cidade, mas, que, pelo menos, fornecem agua, de
excellente qualidade, aos habitantes.189

No que concerne às diversas instituições religiosas Saint-


-Hilaire traz a seguinte descrição:

Contam-se, na Capital do Espírito Santo, nove egrejas, incluindo-


-se a dos mosteiros. A egreja parochial é muito grande, muito
limpa e não apresenta nada que provoque a curiosidade. Desde a
expulsão dos jesuitas, os conventos não são senão em numero de
dois, o das Carmelitas e o de São Francisco, construidos fóra ou
quasi fóra da cidade. O convento de São Francisco, que abrange o
panorama de uma parte da bahia e as campinas vizinhas, nada tem
de notavel a não ser sua posição.

Quando de minha viagem, contavam-se nelle dois religiosos; en-


tretanto, embora pequeno, o edifício poderia recebe-los em ~ume-
ro maior;· de resto, as receitas dessa casa são pouco consideraveis.
Quanto ao convento do Carmo, pareceu-me qual o dos francisca-
nos; mas, a administração tomou o pavimento terreo para fazer a
çaserna dos soldados pedestres. A egreja desse convento é muito
limpa e bem clara, a exemplo de todas do Brasil; é contristante que
se a tenha enfeia do, collocando, em cima dos altares, as mais feias
figuras que eu jamais vi. Da communidade do Carmo de pende
uma bellissima fazenda; mas, essa propriedade, disseram-me, é,
desde muito tempo, muito mal administrada; os monges, anima-
dos do mesmo espirita da maioria dos brasileiros, apenas pensam
em fazer dinheiro de tudo, destróem as mattas e não deixarão aos

189  Ibidem, p. 95-96.

122
seus successores senão terras inuteis.190

A estrutura de serviço públicos da capital era composta de


dois hospitais - um militar e um civil -, e o palácio do governo. É o
centro da jurisdição do ouvidor e dos dois juízes da comarca. Devi-
do a essa diminuta estrutura “não há na Villa da Victoria nenhum
negocio público”.191 A população é composta por mais de 4000 habi-
tantes, sendo, em sua grande maioria, formada por escravos negros.
É propícia a estrutura voltada à prática do comércio, no entanto,

os commerciantes desta villa, apenas imperfeitamente, tiram pro-


veito da sua posição favoravel. As fragatas podem entrar na bahia
do Espírito Santo, quando estão sem muita carga; mas, nunca se
vêm embarcações mais notaveis do que lanchas e sumacas.192

Planta-se por toda a extensão da comarca arroz, feijão, mi-


lho, algodão, e cana-de-açúcar, sendo estes dois últimos os princi-
pais elementos de exportação, tendo o algodão um maior destaque.
O arroz também constitui elemento de exportação, no entanto, uti-
lizam-se do mesmo para a alimentação, buscando exortar o máxi-
mo de excedente possível.
Depois da estadia em Vitória e de ter se apresentado ao Go-
vernador da Capitania, Saint-Hilaire, mesmo depois das diversas
indicações para que não seguisse viagem para o Rio Doce, resolve
retomar a caminhada.
De posse de um passaporte privilegiado e um guia, ambos
cedidos pelo governador, que insistia veementemente para que re-
considerasse tal ideia, Saint-Hilaire partiu, pois segundo ele, “todos

190  SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...


Op. cit., p. 97.
191  Ibidem, p. 102.
192  Ibidem, p. 100.

123
esses discursos não fazia arrefecer minha curiosidade; eu havia re-
solvido ir até as fronteiras da Provincia de Porto Seguro e puz-me a
caminho”.193

Intinerário aproximado de Vitória ao Rio Doce

Palhoça 5 léguas

Freguesia da Serra (aldeia) 3 1/2 léguas

Caraipe, sitio 2 1/2 léguas

Villa dos Reis Magos, villa 3 léguas

Aldeia Velha, sítio 3 léguas

Quartel do Riacho, posto militar 3 léguas

Quartel de Regência, posto militar 7 léguas

TOTAL 27 léguas

Fonte: SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao Interior do Brasil. Espírito Santo. Trad.
Carlos Madeira. São Pulo: Companhia Editora Nacional, 1936, Coleção Brasiliana, v. 72, nota 96.

Saindo da parte insular de Vitória para a continental, Au-


guste de Saint-Hilaire depara-se com a ponte que passa por cima
do rio Maruípe, que na ocasião que Maximiliano por aqui passou
estava fechada, tal ponte ainda encontrava-se, três anos depois, fe-
chada, sendo que “estava no pior estado de conservação e que prova-
velmente não tardaria a tombar se, como tem succedido, não se lhe
fizer nenhum reparo”.
Como Maximiliano, Saint-Hilaire encontrou no povo capi-
xaba a cordialidade descrita por Sérgio Buarque de Holanda e ante-
riormente citada, visto que “Em geral, a proporção que eu avançava,
era tratado com mais hospitalidade e em parte alguma encontrava
essa desdenhosa indifferença dos habitantes dos arredores do Rio de
Janeiro”.194

193  SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...


Op. cit., p. 125.
194  Ibidem, p. 127.
124
Seguindo a partir daqui o itinerário proposto por Dom José
Caetano da Silva Coutinho, bispo do Rio de Janeiro que realizou
trajetória idêntica nos anos de 1812 e 1819,195 e fugindo um pouco
daquele seguido por Maximiliano, Saint-Hilaire toma o caminho
que o leva ao limiar da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da
Serra,196 onde resolveu realizar uma parada para descanso.
Fato interessante se deu nessa pequena vila. Ao chegar
Saint-Hilaire, como de costume, se apresentou à autoridade maior
da localidade, porém, pouso foi-lhe negado nessa residência, que
enviou um escravo ao entorno buscando um local para abrigar o
estrangeiro,

Durante a auzencia do emissario nos puzêmos a conversar e eu


provoquei uma opportunidade de exhibir-lhe minha portaria.
O respeito dos brasileiros aos seus superiores era tal, então, que
á simples vista da assignatura do Ministro de Estado Thomas
Antonio de Villa Nova e Portugal produziu o effeito de uma palavra
magica. Então, a casa foi-me offerecida; estava ás minhas ordens;
elle desejava, definitivamente, hospedar-me.197

Durante sua hospedagem na Freguesia de Serra, Saint-Hilai-


re teve a oportunidade de visitar o alto do Monte Mestre Alvo.198 Um
guia experiente da região e membro da milícia local foi designado
para acompanhá-lo. Sobre o guia e as compreensões regionais de
autoridade fortemente presentes nessa população o naturalista deixa
o seguinte registro:

195 Cf. COUTINHO, José Caetano da Silva. O Espírito Santo em princípios do século


XIX: apontamentos feitos pelo bispo do Rio de Janeiro quando de sua visita à capitania
do Espírito Santo nos anos de 1812 e 1819. Vitória: Estação Capixaba Cultural - ES, 2002.
196  Hoje Serra Sede.
197  SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...
Op. cit., p. 130.
198  Hoje conhecido como Mestre Álvaro. Em algum momento a variação da língua
fez que a compreensão do nome da montanha se alterasse.
125
verifiquei que era um agricultor honesto, pertencente á milicia e
percebi que se lhe havia dado ordens de servir-me de guia, porque,
disseram-lhe, eu estava encarregado de uma missão, pelo Governo.
Esse bravo que era branco, obedecia-me, alegremente, sem recla-
mar, não se queixando do trabalho, acreditando-o fazê-lo a sua al-
teza; assim era chamado o rei, quando ainda príncipe regente, e um
grande número de brasüeiros, de classe mediana, dava-lhe ainda,
por habito, esse titulo.199

Do alto da montanha ele descreve o seguinte cenário:

Lá do lado do oriente, descortinei o mar; no occidente avistei, na


distancia, as montanhas soberbas da cordilhéjra maritima, ás qua-
es se unem outras mais proximas; finalmente, vislumbrei as colinas
sobre as quaes estão as casas da freguezia e que, terminando todas
por um largo planalto, parecem, da altura em que me achava, for-
mar uma vasta planicie. De um lado e d' outro, columnas de fuma-
ça subiam vagarosamente para o ceu e mostravam o lugar onde os
mattos iam ser substituídos por uteis plantações.

Passei toda a jornada na montanha de Mestre Alvo e voltei a casa


quasi sem haver colhido nenhuma planta. A vegetação é, sem du-
vida, muito variada, nas mattas virgens; é admiravel, pelo vigor e
pelos contrastes que apresenta a cada passo; entretanto, acha-se
muito pouca flôr, sob esses grandes arvoredos que privam de ar e
de luz as hervas e os arbustos que crescem ao seu pé; as proprias ar-
vores parecem, como n'outra parte disse, florescer bem raramente
e são bastante arrojadas para deixar perceber suas flores, em geral
menores que as dos vegetaes menos vigorosos.200

199  SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...


Op. cit., p. 130.
200  Ibidem, p. 133-134.

126
Baía de Vitória. Forte Piratininga e ao fundo monte Mestre Álvaro. Fonte: BR_ESAPEES_
JPB.1.79.

E finaliza:

Passarão, provavelmente, muitos annos, antes que se conheça, com


algumas excepções, uma outra flóra, brasileira, que a das hervas e
a dos arbustos. Só botanicos sedentarios poderiam dar a conhecer
as arvores das mattas virgens e, não sei se depois da morte do meu
amigo padre Leandro do Sacramento, se haja formado botanico no
Brasil.201

Finalizada a visita ao Mestre Alvo e à freguesia de Serra,


Saint-Hilaire retoma o caminho do qual havia se desviado para a
realização dessa parada. Segue até a aldeia de Caraípe,202 às margens
do Rio homônimo. Fez uma parada e pouso nessa pequena locali-
dade, sem destaque para maiores acontecimentos ou observações,
exceto sobre o fato de ter sido muito bem recebido.
Seguindo a partir de Caraípe, chega a Vila Nova de Al-
meida, antiga vila dos Reis Magos, que foi rebatizada em 1760
após a expulsão dos jesuítas, que eram os responsáveis pela lo-
calidade.

201  Ibidem, p. 134.


202  Hoje Jacaraípe.
127
Vista do Monte Mestre Álvaro. Fonte: BR_ESAPEES_FCES.44.

A administração local estava, na época da passagem de


Saint-Hilaire a cabo dos próprios índios, que em maior volume po-
pulacional na paróquia, conseguiram nomear um juiz de comarca
também de origem indígena.
Como ocorreu em Benevente, parte das terras da comarca
de Vila Nova foi doada como sesmaria aos índios e considerada ina-
lienável. As terras, por lei, não podem ser vendidas nem trocadas, ao
contrário do que aconteceu em Benevente. Além disso,

a região não apresenta, por assim dizer, nenhum attractivo á cubi-


ça: é menos fertil, isolada, visinha dos botocudos; nella as formigas
exercem estragos contínuos; emfim, o Rio dos Reis Magos pouco
offerece em transportes de pequenos recursos.203

203 SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...


Op. cit., p. 144.

128
Apesar de uma relativa independência gozada pelos índios
de Vila Nova, é certo que a aldeia não se encontrava nas melhores
condições. O convento dos jesuítas estava em ruínas e muitas das
casas estavam abandonadas.
Somada a decadência da vila pode-se encontrar o largo pro-
cesso de emigração dos índios, causado, entre outros motivos, pela
exploração da mão de obra indígena por parte dos governadores que

Todos os meses tirava-se dentre elles (1818) um certo numero de


indios casados ou não, para faze-los trabalhar no caminho de Minas,
no hospital de Villa da Victoria, na nova villa de Vianna ou Santo
Agostinho, etc; alimentavam-se mal; durante muito tempo não se
lhes deu nenhum salario e na epoca de minha viagem, era somente
depois de dois meses que se começava a juntar á sua alimentação
uma retribuição de dois vintens ou cinco soldos por dia.204

Assim, se “no tempo dos jesuitas contavam-se 3.700 indios em


Villa Nova e seus arredores, emquanto que hoje o territorio desta villa
englobado tem 1.200 habitantes numa circunferencia de 9 leguas”.205
Saint-Hilaire se detêm em fazer um relato mais preciso pos-
sível do modo de vida e das mazelas que se abateram sob os índios
que residiam em Vila Nova de Almeida, além do seu modo de vida,
economia e sociabilidade, uma verdadeira contribuição para aqueles
que almejavam redescobrir como se deu a relação entre os colonos
e os nativos.206 Realizou uma pausa nessa vila antes de seguir para o
trecho que finalmente o levaria ao rio Doce.
Retomou o caminho pelo litoral, e, com exceção de Aldeia
Velha, não teve encontro com viajantes ou habitantes da região até
o Quartel do Riacho.

204  Ibidem, p. 145.


205  Ibidem, p. 146.
206 Cf. Ibidem, p. 137-152.

129
Após parada para pernoite no referido Quartel, retoma o ca-
minho à beira-mar em direção a seu destino. Segundo Saint-Hilaire

Naquelle dia fui obrigado a fazer duas vezes mais de caminho que
ordinariamente, porque, desde Riacho até a embocadura do Rio
Doce, onde cheguei, á tarde, não se acha agua doce, nem casas.
Segue-se, constantemente, uma praia arenosa, marginada de flo-
restas, onde crescem, misturados, mas em grupos, os quiriris, ana-
nases e diversos arbustos.207

Chegou finalmente ao Quartel de Regência. Uma caserna


construída com o objetivo de proteger a foz do rio Doce, além de es-
tabelecer a comunicação entre o Espírito Santo e a Bahia. Tal posto
é recente e foi criado durante a administração de Silva Pontes. Para
Saint-Hilaire “Antes dessa epoca, toda communicação por terra, en-
tre Villa Nova e a embocadura do Rio Doce, ou si se quizer, entre as
provincias de Porto Seguro e da Bahia, devia ser impossível”.208
Estabelecida a comitiva no Quartel de Regência, Auguste de
Saint-Hilaire, acompanhado de poucos companheiros, iniciou uma
nova trajetória, dessa vez, pelo rio Doce.
Rio acima fez uma parada em uma pequena casa à margem
do rio. Segundo Saint-Hilaire “pertencia a um branco, o primeiro
colono que contemporaneamente se sabe estabelecido nas margens
do Rio Doce. Este homem chamado Antonio Martins”.209 Apesar
das fecundas terras das margens do rio Doce, da larga navegabili-
dade possível em suas águas, mesmo que por barcos menores, da
proximidade, via mar, com a capital da Capitania e do Reino, e dos
esforços realizados com vistas a fomentar a ocupação dessas ter-
ras, baixo era o índice populacional, causado principalmente por

207  SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...


Op. cit., p. 165.
208  Ibidem, p. 168.
209  Ibidem, p. 185.
130
“dois motivos [que] contribuiam para afastar dessa região aquel-
les que desejassem nella se estabellecer: o pavor das doenças e dos
botocudos”.210

E' incontestavel que as terras da provincia de Minas; banhadas pelo


Rio Doce, são insalubres, como ja o disse; é incontestavel, tam-
bem, que chegando á embocadura do rio, os estrangeiros são quasi
sempre atacados pelas febres. [...] Quanto ao medo que havia, an-
tigamente, dos botocudos deve estar agora inteiramente afastado
porque, pelos cuidados do senhor Guido Thomas Marliere, esses
indígenas se tornaram amigos dos luso-brasileiros; e mesmo na
epoca da minha viagem elles não deviam ser tão perigosos quanto
se suppunha, pois não haviam feito nenhum mal a Antonio Mar-
tins estabelecido nesta região a tanto tempo.211

Chegou a Linhares, onde foi acolhido na casa do falecido


João Felippe Calmon.

Diante da fazenda de João Felippe ou nas suas immediações, o Rio


Doce, descrevendo uma curva, se dirige um pouco para o norte.
No meio dessa especie de bojo a margem se eleva á pique acima
do rio, e se arredonda para formar uma meia lua, perfeitamente
regular que de longe parece uma fortaleza e cujo alto semelha uma
larga plataforma. Foi onde se teve a feliz idéia de construir a aldeia
de Linhares ou Santa Cruz de Linhares.212

A cidade constitui-se da seguinte forma:

Só existem ahi choupanas; porem, são dispostas com symetria e


desenham os 4 lados de da praça perfeitamente quadrada, coberta

210  Ibidem, p. 188.


211  Ibidem, p. 188-189.
212  Ibidem, p. 190.
131
de grama; na epoca de minha viagem, estavam acabando a egreja,
que será muito bonita; ella occupa o centro, do lado norte da praça;
é, entretanto, um pouco afastada das casas e atraz della as mattas
formam uma cortina magnifica. [...] Esta villa é séde de uma paro-
chia, a ultima da diocese do Rio de Janeiro, do lado norte. [...] Ella
é tambem a da primeira divisão militar da provincia, e lá reside,
como eu disse, o alferes ou o 2º tenente encarregado do commando
da divisão.213

Perspectiva da Povoação de Linhares. c 1849.

Até o início do século XIX Linhares não passava de um “so-


nho”. A ocupação do rio Doce e sua utilização como eixo de ligação
das Capitanias do Rio de Janeiro e Espírito Santo com Minas Gerais
há muito era almejada pelos portugueses, visto que seria um exce-

213  SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...


Op. cit., p. 191.

132
lente meio de escoamento das riquezas e mercadorias produzidas
nessa última, e claro, de maneira significativamente mais rápida. Foi
somente após os incentivos providos pelo então ministro do Inte-
rior, Dom Rodrigo Coutinho (Conde de Linhares) é que tal empresa
tomou forma. A partir da instalação dos destacamentos militares
na região deu-se início a prospecção de interessados em ocupar a
região, tendo João Felippe Calmon atendido ao chamado, os demais
habitantes seriam nas palavras de Eduardo Bueno, Náufragos, trafi-
cantes e degredados.214
Em Linhares teve a oportunidade de visitar a Lagoa Jupa-
ranã, privilégio que não foi concedido a Maximiliano alguns anos
antes. Saint-Hilaire propõe que “Parece que a lagoa Juparanan deve
a sua origem a um corrego do qual não se conhece a nascente”, e
que dadas as gigantes proporções dessa lagoa, as mesma deve ter
se se formado a partir das “aguas deste ribeiro, [que] muito pouco
inclinadas para a confluencia, ter-se-iam espalhado sobre a terra e
formado o lago”.215
Essa parte da capitania ainda permanece sem a presença do
homem, o que contribui significativamente para a exuberância do
local. Mesmo compreendendo a inevitabilidade da chegada do ho-
mem às margens da lagoa Juparanã, o naturalista conclui que “dia
virá em que ellas se animarão com a presença do homem e se em-
bellezarão com habitações numerosas; esse lugar será, certamente,
então, um dos mais bellos do imperio do Brasil.216
Partindo de Linhares de volta a Regência, Saint-Hilaire des-
cobre que não era somente seu companheiro Prejent que havia caído

214  Refiro-me ao título da obra de Eduardo Bueno sobre a formação do Brasil. Para
mais Cf. BUENO, Eduardo. Náufragos, Traficantes e degredados. São Paulo: Objetiva,
1998.
215  SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...
Op. cit., p. 198.
216  Ibidem, p. 199, grifo nosso.

133
Lagoa Juparanã. Linhares - Fonte: BR_ESAPEES_FCES.07.

enfermo. Firmino, o botocudo que o acompanhava, sofreu de febres


ao longo do trajeto de volta pelo rio, e ao chegar a Regência descobre
que Manoel da Costa e Luis, o guia cedido pelo governador, também
haviam sido afligidos por tal mal.
Com as rações reduzidas, um longo caminho de volta e di-
versos companheiros em péssimo estado de saúde, Saint-Hilaire re-
solve pôr-se a caminho de volta a Vitória, na esperança que novos
ares, alimentação e água pudessem melhorar o grave estado de saú-
de daqueles que se encontravam enfermos.
No primeiro dia do retorno, não foi possível a comitiva che-
gar ao Quartel do Riacho, sendo então forçados a fazer uma para-
da no Quartel de Comboios, que fica no interior da floresta, cerca
de meia légua, e tem exatamente como função servir de apoio para
aqueles que se encontram impedidos de fazer em única jornada o
caminho de Riacho a Regência.
Manoel da Costa, que havia apresentado melhoras já na sa-
ída de Regência, se encontrava em bom estado de saúde, e Firmino,

134
que cavalgou com febre e sonolência durante todo o trajeto até Com-
boios, apresentou, nesse lugar, significativa melhora.
A recuperação desses dois companheiros possibilitou a reto-
mada do caminho. Prosseguiram até Aldeia Velha, onde realizaram
parada para conhecer a Aldeia Piriquiassú,217 aldeia essa que surgiu
após a junção das moradias que encontravam-se dispersas ao longo
do rio e que eram alvos constantes dos Botocudos, afinal, ao oeste
da vila, existe um grande ramo de floresta que se estende até as mar-
gens do rio Doce, domínio dos Botocudos. Saint-Hilaire descreve a
pequena aldeia possuindo a seguinte forma:

As casas de que se compõe Piriquiassú ou Destacamento, são em


numero de sessenta e tres. Muito chegadas umas ás outras, ellas
cercam uma praça que tem o aspecto de um rectangulo. Todas são
construidas de mageira e barro, não são caiadas e teem uma co-
berta de palha, que, como a de todas as cabanas deste paiz é mais
alta do que as paredes. Muito mal tratadas, essas casas denunciam
indigencia e seu interior é tambem assim pobre. Não existem ou-
tros moveis senão uma rede, um banquinho e uns pótes de barro.
Os habitantes de Destacamento, todos indios civilisados, não mos-
tram, em sua roupa mais magnficencia que em sua casa.218

Retornando de Piraqueaçú e Aldeia Velha, chegam à Vila


Nova de Almeida no Dia de Todos os Santos, 1º de novembro. Firmi-
no novamente foi alvo de atenções e agressões como as que havia re-
cebido em Benevente e o viajante novamente se encontrou em meio
a uma grande discussão.

217  Hoje reserva ambiental no município de Aracruz e está composta por nove aldeias
indígenas, sendo elas Tupiniquins e Guaranis. Fica às margens do rio Piraqueaçu e está
localizada entre Santa Cruz e Coqueiral de Aracruz.
218  SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...
Op. cit., p. 220.

135
Nesse mesmo dia, Saint-Hilaire foi espectador das ações
exaustivamente reclamadas pelos índios à imposição do trabalho
por parte do governo. Nesse dia “os soldados da companhia de linha
tinham vindo buscar 20 homens que deviam no dia seguinte partir
para a Villa de Vianna ou S. Agostinho”.219
Retorna finalmente sem maiores transtornos a Vitória. Hos-
peda-se novamente sob a guarda do Capitão Francisco Pinto e tem,
novamente, Luis da Silva designado como guia, dessa vez porém
para acompanhá-lo a Viana.
No caminho para Viana recebe maiores informações sobre
a estrada que está sendo construída entre as Capitanias do Espírito
Santo e Minas Gerais com o objetivo de interligá-las, possibilitan-
do acesso mais rápido a essa e dando acesso a mais produtos e
serviços àquela. Em Viana tomou conhecimento da, ainda paupér-
rima, condição dos colonos. As reclamações feitas a Maximiliano
repetiram-se a Saint-Hilaire, que fez a seguinte descrição da peque-
na vila:

Vianna se compunha de cerca de 60 casas, porem não eram reuni-


das em um só grupo. Algumas dellas construidas de terra e cober-
tas de palha foram feitas. dentro das proprias posses e outras sobre
uma colina separada. Ao redor das casas a matta foi derrubada e
substituida por plantações de milho, de arroz, de feijão e de mandi-
óca. No extremo de toda a zona cultivada ha uma ligeira elevação
cujo alto apresenta uma larga plataforma onde se construiu a igreja,
o presbiterio e tambem uma grande casa destinada ao governador.

Deste ponto se avista a leste uma parte das casas de Vianna e do


lado de oeste uma grande caserna destinada aos· soldados que pro-
tegem os colonos contra os ataques dos indigenas.

219  SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...


Op. cit., p. 224.

136
A igreja de Vianna não é muito grande, mas é bem illuminada e or-
nada com muito gosto. E' certamente uma das mais bonitas que eu
vi desde que estou no Brasil. Não poderei fazer o mesmo elogio da
casa do Governador, grande construcção de janellas perfeitamente
quadradas, pesadas, mal distribuida, com entrada ao lado e á qual
não se pensou nem em juntar um jardim. O governador Rubim,
que foi o creador de Vianna., passava tempos nesta casa á qual se
dava o pomposo nome de palacio, mas é de crer que ella tenha sido
abandonada pelo seu successor.220

Após sua visita a Viana, acompanhado de Luis da Silva e


pelo Tenente Bom-Jardim, comandante militar da região, Saint-Hi-
laire retorna a Vitória e antes de se por a caminho do Rio de Janeiro
decide realizar uma última visita ao Convento da Penha.
Assim como a Maximiliano, a Vila do Espírito Santo ou Vila
Velha não agrada muito aos olhos desse novo viajante. Segundo ele

Os ataques dos selvagens, originariamente muitos repetidos, for-


çaram logo os europeos a se retirarem para a ilha de Duarte de
Lemos. Porem, outras razões ainda contribuiram para impedir que
a Villa do Espirito Santo ou Villa Velha adquirisse alguma impor-
tancia: as aguas são alli de má qualidade, o ancoradouro, á beira
do qual a villa foi construida, é raso e1 as embarcações não podem
navegar nelle; e por ultimo as terras da visinhança são por demais
arenosas para serem cultivadas. Villa Velha se conservou séde de
uma parochia e de um termo administrado por 2 juizes ordinarios
e um senado municipal (camara). Comtudo, esta supposta villa é
apenas um aldeiamento formado quasi exclusivamente de cabanas
meio arruinadas. Si bem que visinhas das montanhas, essas caba-
nas são construidas sobre um terreno plano e são apenas cerca de

220  SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...


Op. cit., p. 232-233.

137
quarenta. As menos estragadas se alongavam mais ou menos juntas
até o mar e o lado opposto a este é tomado pela igreja.221

Convento de Nossa Senhora da Penha. Vila Velha - Fonte: BR_ESAPEES_JPB.1.31.

Após íngreme subida até o campo do Convento, Saint-Hilai-


re, assim como Maximiliano antes dele, se extasia com a vista que se
descortina a sua frente.
Ao fim, visitados os pontos de maior interesse e satisfeitas
as curiosidades que pairavam sobre a capitania do Espírito Santo,
Auguste de Saint-Hilaire decide retornar ao Rio de Janeiro, porém,

como existe apenas um caminho para ir de Victoria ao Rio de Ja-


neiro aquelle pelo qual eu já tinha vindo e que não chega a ser re-
almente caminho, resolvi voltar por mar á capital do Brasil e enviar
por terra minha caravana, com Prejent e Manoel da Costa.222

221  SAINT-HILAIRE, Auguste. Segunda Viagem ao interior do Brasil. Espírito Santo...


Op. cit., p. 240.
222  Ibidem, p. 244.

138
Ao fim, depois de uma longa jornada e após deixar nosso
viajante embarcado e despachado sua comitiva por terra, finaliza-
mos a nossa companhia a tão ilustres personagens.

Canal de saída da baia de Vitória. Fonte: BR_ESAPEES_JPB.1.7.

É claro que, assim como Maximiliano, as viagens e explo-


rações de Auguste Saint-Hilaire não terminaram no cais de Vitória
naquele 1818, ele ainda permanecerá cortando o Brasil até 1822, ano
de seu regresso à França e as glórias que ele coletou no Brasil duran-
te esses sete anos que esteve por aqui.
Nossas aventuras também se finalizam por aqui, afinal com
tantas distâncias percorridas e obstáculos enfrentados, merecemos
um breve descanso.
Isso até um novo aventureiro se arriscar por aqui. Para
aqueles que decidirem seguir a viagem com Saint-Hilaire a fim de
descobrir as aventuras que o Brasil proporciona, BOA VIAGEM!!!!

139
Epílogo

Aos novos viajantes: o Espírito Santo


200 anos depois das viagens de
Maximiliano e Saint-Hilaire

“Se alguns exemplares dos meus relatos resistirem


ao tempo e ao esquecimento, as gerações futuras tal-
vez encontrem neles informações de grande interesse
sobre essas vastas províncias, provavelmente trans-
formadas, então, em verdadeiros impérios... ficarão
surpreendidas ao verificarem que, nos locais onde se
erguerão então cidades prósperas e populosas, ha-
via outrora apenas um ou dois casebres que pouco
diferiam das choças dos selvagens; que onde estarão
retinindo nos ares os ruídos dos martelos e das má-
quinas mais complexas ouviam-se apenas, em outros
tempos, o coaxar de alguns sapos e o canto dos pás-
saros; que, em lugar das extensas plantações de mi-
lho, de mandioca, de cana-de-açúcar e das árvores
frutíferas, o que havia eram terras cobertas por uma
vegetação exuberante, mas inútil.”
Auguste Saint-Hilaire (prefácio de Viagem à Provín-
cia de Goiás, 1847).

A escrita da História, como dito pelo historiador francês Michel


de Certeau, é sempre didática e magisterial, e pertence, inegavel-
mente, a um determinado lugar de fala.223 No caso da História do
estado do Espírito Santo, não foi diferente.
Criada a partir de um determinado lugar social, um lugar de
fala, a narrativa de atraso histórico do estado se alastrou por toda a
população, criando raízes profundas no imaginário popular, fazen-

223 Cf. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Uni-
versitária, 2006.

141
do com que esse discurso se tornasse uma determinada memória
coletiva de uma comunidade imaginada.
O que se propõe, a partir da análise das narrativas dos via-
jantes do século XIX, é que o capixaba “viaje no tempo” a fim de
compreender os constructos narrativos de caráter historiográfico e
mitográfico que se estabeleceram sobre sua realidade. Compreen-
são “necessária pelo fato de estarmos aqui diante do problema da
natureza mesma de nossa vida política. Trata-se da concepção e da
prática da cidadania entre nós, em especial entre o povo”.224
Tal constructo narrativo, arraigado no imaginário coletivo
se espalhou entre os anos iniciais da república, principalmente entre
1890 e 1920, e desenvolveu na elite política e intelectual do país um
amplo desejo pelo desenvolvimento estrutural da nação, atrelando,
invariavelmente tal avanço às demandas do processo civilizador. A
aclamação pela renovação dos ambientes urbanos passou a ser uma
pauta predominante nos debates, e termos como progresso, arcai-
co, futuro, regeneração, saneamento, desenvolvimento e civilizado,
passaram a compor o vocabulário daqueles frentes à nação, isso por-
que “a república era aí vista dentro de uma perspectiva mais ampla
que postulava uma futura idade do ouro em que os seres humanos se
realizariam plenamente no seio da humanidade mitificada”.225
Ao fim, a chegada do século XX, com todo seu aparato téc-
nico-científico urbano fez-se presente, e a cidade do Rio de Janeiro
foi a primeira a sentir a força do golpe do martelo do progresso.
Ruas, praças, avenidas, parques, quarteirões e vilas inteiras foram
remexidas e postas abaixo. A cidade virou um imenso canteiro de
obras a céu aberto. Por meio das mãos de milhares de trabalhadores
a cidade se transformou, e entre os anos de 1903 e 1906 a dinâmica

224  CARVALHO, José Murilo. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não
foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 10.
225  Idem. A formação das almas: o imaginário da república do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990, p. 9.

142
da cidade mudou, fazendo com que aquele Rio de Janeiro colonial
passasse a ser chamado de a "Paris brasileira".
O tilintar das picaretas e martelos que "esmagavam", "tritu-
ravam" e "transformavam" o passado colonial brasileiro em aterro
e pó reverberou pelo Brasil, preenchendo o ar com “progresso” e
dominando as mentes republicanas com o sentimento de nova “or-
dem”, tudo isso porque “a história é feita então em nome do futuro
e deve ser escrita do mesmo modo. O movimento futurista [no qual
incluo os republicanos positivistas brasileiros] estimulou essa pos-
tura ao extremo”.226
Sendo vizinho e espectador das mudanças que ocorriam na
capital da nação, o capixaba foi deveras acometido pelo seu sentimen-
to de pequinês frente ao novo mundo e a nova era que chegava ao
Brasil pelos portos cariocas e que passavam ao largo da realidade im-
posta a esse estado. Há muito herdeiro de uma chusma de afirmações
que lhe incutiram a “verdade histórica” de atrasado, o Espírito Santo
pegou carona no carro da história e produziu, como foi comum nesse
início de século XX, uma narrativa que buscava legitimar um conjun-
to de práticas e ações da elite política a fim de produzir um “novo”
presente, que ao contrário da herança colonial, levaria o estado a um
“futuro esperançoso”, como afirma o próprio hino capixaba.
Segundo José Carlos Reis a construção de narrativas regio-
nais, legitimadoras de um conjunto de práticas políticas e identitá-
rias foi algo relativamente normal na história do Brasil, produzindo
passados gloriosos ou trágicos a fim de produzir um sentimento de
união e de ideal em uma dada localidade. Na obra Identidade do
Brasil 3,227 Reis elenca algumas das narrativas elaboradas com esse
objetivo, dando destaque: à narrativa carioca do “tempo saquare-

226  HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tem-


po. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p. 141.
227 Cf. REIS, José Carlos. Identidades do Brasil 3: de Carvalho a Ribeiro: história plu-
ral do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2017.

143
ma”; à paulista do “tempo bandeirante”; gaúcha, por ele chamada
de “tempo farroupilha” e que Jeferson Teles Martins chamou de
“narrativa lusitana”228; pernambucana do “tempo confederador”;
além dos “tempos amazônida-igaraúna”, e “tempo inconfidente”. Se
fossemos incluir a capixaba nesse contexto de compreensões de tem-
po histórico na matriz brasileira, certamente a “narrativa histórica
de superação do atraso” seria evidenciada dentro desse conjunto de
compreensões dos tempos brasileiros.
Inegavelmente a compreensão da construção da narrativa
histórica do atraso perpassa pela análise das narrativas regionais. A
descentralização de uma história geral do Brasil para uma história
plural do Brasil, como proposta por Reis, desmitifica e desmonta o
elemento padronizador do país e proporciona uma leitura que leva
em conta a pertinência das especificidades, tornando possível a vi-
sualização de múltiplos Brasis contidos em um Brasil. É dentro des-
sas leituras que se insere o caso capixaba.
Cada narrativa constituída na regionalidade brasileira fun-
damentou-se em um tipo de horizonte de expectativa para o século
que nascia - no caso o XX. No caso capixaba a superação de um atraso
histórico do desenvolvimento é o mote central da narrativa. A heran-
ça de uma visão de atraso é fruto de expedientes como o emitido pelo
governador Inácio de Acioli em 1824, onde afirma que “é preciso en-
fim que S. M. Imperial esteja cabalmente ciente de que esta Província
é a mais miserável do Império: não tem agricultura nem comércio:
seus habitantes são pobríssimos”,229 ou pelo presidente de província
Pedro Leão Veloso, que em seu relatório redigido às vésperas da visita
imperial à província - 1860 - discorre que:

228 Cf. MARTINS, Jeferson Teles. A questão da identidade regional: historiografia e a


definição do “campo” historiográfico rio-grandense. In.: Anais X Encontro Estadual de
História ANPUHRS, Santa Maria, RS, 2010.
229  OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. 3 ed. Vitória:
APEES/ SECULT, 2008, col. Canaã v. 8, p. 329.

144
tenho gostado da terra em relação ao clima e à gente que não é má,
mas acho-a sumamente atrasada em todos os sentidos; vivesse mal
porque sobre ser a vida muito cara falham todas as vantagens de
um país civilizado.230

A visualização do reflexo desses constructos sociais em uma


dada sociedade dá-se por meio de seus mitos, emblemas e sinais, que
se encontra alicerçada em um aparato retórico que insiste em cons-
truir um modelo historiográfico ancorado na história-memória, re-
tórica essa constituída a partir de uma geração em que “a nação é
para eles ao mesmo tempo uma evidência, uma arma política, um
esquema cognitivo e um programa histórico”.231
Essa condição introspectiva de atraso enraizada no imagi-
nário capixaba, e presentificado de maneira permanente, se perpe-
tua discursivamente pelo fato de que os elementos representativos
dos mesmos são protegidos ou guardados por um conjunto da so-
ciedade que funciona como uma polícia do discurso, como proposto
por Michel Foucault,232 retroalimentando tal perspectiva. É possível
encontrar tais mediadores tanto no campo intelectual, por meio de
obras, efemérides, biografias e histórias;233 quanto no campo políti-
co, por meio de seus slogans e jargões do tipo: “construindo hoje o
amanhã”, “Construindo o futuro”, “novamente no caminho certo”,

230  ROCHA, Levy. Viagem de Pedro II ao Espírito Santo. 3 ed. Vitória: APEES/ SECULT,
2008, col. Canaã v. 7, p. 46, grifo nosso.
231  HARTOG, François. Regimes de historicidade... Op. cit., p. 170, grifo nosso.
232 Cf. FOCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Còllege de France,
pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 24 ed. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio.
São Paulo: Edições Loyola, 2014, Coleção leituras filosóficas.
233  Para ver como o campo intelectual retroalimenta as narrativas históricas e fo-
menta a presentificação de um passado há muito descolado da atual realidade capixaba
ver: NASCIMENTO, Rafael Cerqueira do. A narrativa histórica da superação do atraso...
Op. cit. Nesse trabalho Rafael Cerqueira demonstra como as obras de José Teixeira de
Oliveira, Neida Lúcia, Maria Stella de Novais e Gabriel Bittencourt colaboram para
corroboração de tal construção.

145
“no caminho do progresso”, entre tantos outros mais; ou até mesmo
na população mais desfavorecida, que em sua compreensão, a au-
sência de serviços fundamentais representa que a república não se
promoveu de maneira completa.
Dentro desses quadros podemos estabelecer como elemen-
tos analíticos da perpetuação da narrativa de superação do atraso,
entre diversos, os mesmos que François Hartog utilizou para anali-
sar a sobrevivência da memória revolucionária na França e que José
Murilo de Carvalho lançou mão ao analisar o estabelecimento da
república no Brasil, quais sejam: bandeira, hino, brasões e heróis; ou
seja, um conjunto de simbologias que busca a apropriação e utiliza-
ção de representações coletivas, haja vista que

os extravasamentos das várias visões de república para o mundo


extra-elite, ou as tentativas de operar tal extravasamento [...] não
poderiam ser feito por meio do discurso, inacessível a um público
com baixo nível de educação formal. Ele teria de ser feito mediante
sinais mais universais, de leitura mais fácil, como as imagens, as
alegorias, os símbolos, os mitos. [...] Tratava-se de uma batalha em
torno da imagem do novo regime, cuja finalidade era atingir o ima-
ginário popular para recriá-lo dentro dos valores republicanos.234

Certamente a principal representação narrativa mitográfi-


ca que podemos elencar como exemplo detentor de um papel fun-
damental para a legitimação da historiografia do atraso é o herói,
que no caso capixaba está alicerçado sob o busto de Domingos José
Martins. Segundo José Murilo a exaltação a uma figura mítica, he-
roica, é pertinente e necessária, pois essas são capazes de “atingir a
cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de regimes
políticos”.235

234  CARVALHO, José Murilo. A formação das almas... Op. cit., p. 10.
235  Ibidem, p. 55.

146
No caso da representação mítica a nível nacional, houve
todo um esforço em torno da figura de Tiradentes, haja vista que
os “criadores” da república não eram identificados como sujeitos do
povo, vide Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto, Benjamin Cons-
tant, Quintino Bocaiúva, entre tantos outros. Todos os elementos
ligados a um determinado grupo da elite Imperial, seja militar, seja
oligárquica, e para José Murilo, “herói que se preze tem de ter, de
algum modo, a cara da nação [..] [pois] na ausência de tal sintonia, o
esforço de mitificação de figuras políticas resultará vão”.236
O fato é que no Espírito Santo foi escolhido um personagem
local que possuiu, em algum momento da história, alguma relevân-
cia política que atendesse os anseios daqueles que estavam poder e
Domingos José Martins caiu-lhes como uma luva. A partir da insti-
tucionalização desse personagem como “o” grande cidadão capixa-
ba, toda a simbologia passou a girar em sua órbita.
Domingos Martins representava o anseio de libertação dos
grilhões do passado que sufocavam o povo. Sua participação na Re-
volução Pernambucana de 1817, que possuiu caráter republicano, de-
monstra a insatisfação do projeto arcaico que se mantinha sobre o país.
E acima de tudo, sua bravura demonstrava a fibra do povo capixaba,
que declara ao Brasil que “verás que um filho teu não foge a luta”.
Com a elevação de Domingos Martins ao panteão de heróis
da nação, a simbologia capixaba passa a ser instrumentalizada. Um
busto de bronze é constituído em sua homenagem e instalado na pra-
ça lateral à sede do governo estadual. O brasão de armas capixaba
conta com a data de sua execução, após a debandada da revolução -12
de junho de 1817. E o ápice desse elemento afirmativo é a renomeação
do município de Santa Isabel como Domingos Martins em 1921.
No entanto, qual é o papel de Domingos Martins nesse
conjunto narrativo acerca do atraso? Aparentemente nenhum. No
entanto, com um olhar um pouco mais cirúrgico, pode-se enxer-

236  Ibidem.

147
gar entre as frestas do panteão cívico nacional que esse personagem
representa, aos olhos daqueles que o escolheram para tal posição, a
tentativa de abandono das “velhas” práticas políticas, pois a monar-
quia representa o atraso e a república é o bastião da liberdade, e a
escolha desse, e não de outro, se dá pelo fato do mesmo se constituir
como sujeito do povo.
Entretanto, existem algumas páginas da história que devem
ser analisadas mais de perto... Em pesquisa recente, Bruna Breda
Bigossi questiona esse passado heróico do suposto capixaba Domin-
gos José Martins. Isso mesmo... Suposto. Segundo análise de Bigos-
si, Domingos Martins é um constructo imaginário idealizado nos
salões do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo,237 um
elemento alegórico que contribuiu para a constituição de um de-
terminado lugar de fala com objetivos claros de afirmar a narrativa
republicana e que a posteriori foi tomado com fins outros, o de com-
bate e de superação do atraso.
Afirmada a partir de um conjunto simbólico e mítico, a
narrativa histórica de superação do atraso se alastrou pelo sen-
timento capixaba da mesma forma que a ideia de regeneração
atingiu o Rio de Janeiro e a paulistanidade traspassou o estado
de São Paulo. As tradições mitográficas pululavam a mente dos
republicanistas assim como o medo do regresso monarquista. A
fundação da república demandou, aos olhos dos mais apaixonados
do movimento, a refundação do Brasil. Paixões e mitos herdeiros
de uma tradição monárquica foram execrados de seus bastiões e
novos heróis foram entronados.
Ao fim e ao cabo, a história do Espírito Santo acabou por
alicerçar-se muito mais sobre elementos mitográficos do que histo-

237 Cf. BIGOSSI, Bruna Breda. Domingos José Martins: a Invenção de um herói para os
capixabas no Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Dissertação (Mestrado
em História). Programa de Pós-graduação em História Social das Relações Políticas,
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2018.

148
riográficos propriamente ditos. A construção de uma identidade e
de um sentimento de pertencimento universal a uma nova nação le-
vou os republicanos capixabas, que se entrincheiraram sob as asas do
Instituto Histórico, a reformularem o presente das terras capixabas a
fim de apagar um passado monárquico recente.
Com todo o exposto compreende-se que a sobrevivência da
narrativa do atraso se dá pelo fato de que a concepção da tempo-
ralidade moderna, ou da modernidade, ainda não foi superada por
aqueles que policiam os discursos mitográficos no Espírito Santo, e
a não superação da própria narrativa é o elemento comprobatório
dessa nossa hipótese.
Essa compreensão moderna do tempo “prende” o Espírito
Santo em um passado que se torna permanente, ou seja, quando
aqueles que estabeleceram os alicerces da república optaram por um
“novo tempo” acabaram por inserir o estado em um presente per-
manente que se sustenta na necessidade perene de superar o atraso
que se abate sobre essa terra. É a apropriação prática do passado
a fim de estabelecer elementos que caracterizam o atraso com fins
de construir um presente que seja artífice de uma nova realidade
que pavimente o caminho para o futuro deleitoso. No entanto, essa
própria concepção dos usos da história e do passado rendeu ao Es-
pírito Santo um “loop temporal” no qual o lema “trabalha e confia”
se tornou o fardo de Sísifo, que é pesado, árduo e com um objetivo
inalcançável.
Hoje, se fizéssemos uma comparação com uma antiga propa-
ganda que afirmava que “o tempo passa, o tempo voa”, acertadamen-
te poderíamos afirmar, a partir da compreensão de temporalidade
daqueles que perpetuam as narrativas históricas, que nem sempre,
afinal a constituição de algumas narrativas históricas contribuem,
mesmo que de maneira indireta, para a sobrevivência do passado em
nosso presente, passado esse que não passa e que acaba por se estabe-
lecer como “verdade histórica”, e esse é, definitivamente, o caso capi-
xaba. Assim sendo, está o Espírito Santo legado a um eterno atraso?

149
O que de fato constitui parâmetro de identificação do atraso? Atra-
sado em comparação a quem ou a o que? De fato o tempo até ‘voa’,
como metaforicamente anuncia o comercial, porém passar, pelo que
até aqui podemos ver, é uma questão para outra hora...
A nosso ver, para que tal concepção de atraso se dilua no
imaginário do capixaba é necessária a construção de uma nova rea-
lidade histórica dos sujeitos, que perpassa, indispensavelmente, pela
admissão de que o Espírito Santo é, assim como os demais entes da
federação, um estado com obstáculos e desafios históricos, e que isso
não se constitui como atraso, mas sim como demandas de aperfei-
çoamento social.
Para tanto, se compreende que a análise crítica de nosso pas-
sado histórico pode vir a contribuir de maneira significativa, e as
narrativas dos viajantes constituem parte desse corpus informacio-
nal, que a despeito das demandas locais, sempre teve a visão de que
o Brasil era atrasado, uma herança nefasta do processo civilizador
do século XIX e que o capixaba agarrou com unhas e dentes, e que
hoje possui uma dificuldade homérica de abandonar, ou seja, um
passado que não se deixa passar e que se sustenta em uma narrativa
de superação que hoje já se encontra atrasada.
O fato é que os discursos apoiados nessa primazia de atraso
“esquecem” de informar que o Brasil, em sua grande maioria, estava
na mesma situação econômica e administrativa. Esse tipo de dis-
curso ocupou lugar não somente no Espírito Santo, mas no Brasil,
principalmente após a Proclamação da República, onde aqueles que
passaram a ocupar o poder desejavam produzir um esquecimento, o
do Brasil Monárquico. Um tipo de produção discursiva que buscava
ao fim, segundo Valdei Lopes de Araújo,

que a relação com o passado moderno não podia mais estar susten-
tado por uma familiaridade - falsa - que entendia a história inde-
pendente do Brasil como formando uma grande narrativa de sua
incapacidade para o moderno, o reconhecimento de um abismo

150
crescente entre sua situação atual e a consciência histórica norma-
lizada nas retóricas do atraso.238

Então, pensar o “atraso histórico” do Espírito Santo a par-


tir das narrativas dos viajantes estrangeiros nos permite questionar
o lugar de fala daqueles que, de maneira indireta, impuseram essa
perspectiva. Partindo da premissa de que até o ano de 1808 o Brasil
se constituía como uma colônia, e que somente a partir da chegada
da família real portuguesa à terras coloniais é que alguns parâme-
tros sociais e econômicos começaram a se reconstituir, ou até mes-
mo surgir, é fato que não somente o Espírito Santo, mas a maior par-
te do território colonial, era sim marcada por um atraso significativo
imposto principalmente pelas rédeas do pacto colonial.
Algumas cidades maiores, ou de maior influência, possuíam
alguns melhoramentos urbanos frente as demais, a exemplo de Rio
de Janeiro, Salvador, Recife e Vila Rica, as demais estavam envolvi-
das no processo colonial de produção e extração de produtos primá-
rios destinados a abastecer a Metrópole.
Assim como no Espírito Santo, a maior parte do território
colonial estava voltada à produção de açúcar, madeira, especiarias,
entre outras demandas de Lisboa, e viviam de uma agricultura de
subsistência, apoiada na mão de obra escrava predominantemente
de origem africana.

Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade


nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêne-
ros; mais tarde ouro, diamantes; depois, algodão, e em seguida café,
para o comércio europeu.239

238  ARAÚJO, Valdei Lopes. História dos conceitos e história da historiografia: um per-
curso brasileiro. In.: BENTIVOGLIO, Julio; NASCIMENTO, Bruno César (org.). Escrever
História: Historiadores e Historiografia Brasileira nos Séculos XIX e XX. Serra: Editora
Milfontes, 2017, p. 46.
239  PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 9. ed. São Pulo:

151
Uma vasta empresa colonial, como afirma Caio Prado Júnior
em sua obra Formação do Brasil Contemporâneo (1969). Segundo o autor,

no seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a co-


lonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa co-
mercial, mais completa que a antiga feitoria, mas sempre com o
mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais
de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este
o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma
das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no
econômico como no social, da formação e evolução históricas dos
trópicos americanos.240

O vazio demográfico também não era uma característica ex-


clusiva do território capixaba. A baixa densidade populacional frus-
trava as tentativas de ocupar o sertão brasileiro, dado que inúmeros
eram os perigos que cercavam esses territórios, privando, corriquei-
ramente, a vida de vários exploradores, como foi o caso de Manuel
Ramalho, o primeiro capixaba a receber autorização do governador-
geral para empreender uma entrada aos sertões da capitania (1553).
Tal situação tornou-se ainda pior a partir da união dos territórios
ibéricos e com o Tratado de Madri de 1750, que ratificou a base do
atual formato territorial brasileiro.
Para Fernando Cézar de Macedo:

O período até a primeira metade do século XIX se apresenta em


larga medida como uma afirmação da força das estruturas que
dominavam a relação entre os territórios coloniais e Portugal, e
que, no caso do Espírito Santo, aparece sob o signo de um cresci-

Editora Brasiliense, 1969, p. 31-32.


240  Ibidem, p. 31, grifo do autor.

152
mento esparso, sem adensamento populacional ou comercial de
maior vulto.241

Discorrido dessa forma o contexto em que estava inserido, po-


demos olhar mais atentamente para o caso o Espírito Santo colonial.
Em uma análise da distribuição geográfica dos engenhos
de açúcar em território espírito-santense, Antônio Carlos S. Gomes
afirma que:

O manuscrito que retrata o engenho N. S. da Paz (fl. 45), aponta


para a presença de técnicos no ofício de mestre d'açúcar, mestre de
obras de pedreiro e carpinteiros e até juiz, reforçando a ideia de um
Espírito Santo dinâmico e organizado, muito diferente do retratado
pela historiografia que insiste em apresentá-lo enquanto decadente,
infeliz ou azarado por força de donatários ausentes.242

Essa vocação para uma longa e larga fronteira agrícola acaba


por favorecer, posteriormente, o Espírito Santo com o advento das
plantações cafeeiras.
O fato é que se comparada diretamente às demais capitanias
e províncias que o cercaram, o Espírito Santo acaba, definitivamen-
te, caindo em uma malha de atrasos. No entanto, analisemos por
um breve momento as condições fornecidas às mesmas.
Em primeiro lugar a Bahia. Durante o início do processo co-
lonizador firmou-se como capital, sede do governo geral do Brasil.
Durante os séculos XVI a XVIII era o principal centro de representa-
ção do poder real. Acentuou ainda mais a sua influência a partir do
momento que as lavouras de açúcar rapidamente se alastraram pelo

241  MACEDO, Fernando Cézar de. História econômica e organização espacial: o caso
capixaba. Vitória: Gráfica e Editora América/ IHGES, 2013, p. 17.
242  GOMES, Antônio Carlos Sant Ana; REIS, Fábio Paiva. Cartografia histórica, estu-
dos capixabas. Vitória: IHGES, 2013, p. 42-43, grifo nosso.

153
Nordeste, tornando Salvador o principal porto de escoamento desse
produto em direção a Europa.
Já em segundo lugar tem-se o Rio de Janeiro. Com a expan-
são das fronteiras territoriais o porto do Rio de Janeiro passou a
ser um dos principais pontos de parada para abastecimento para
aqueles que buscavam atingir a parte mais ao sul da colônia. Com
a descoberta do ouro no interior do Brasil a capital é transferida de
Salvador para o Rio de Janeiro a fim de estabelecer uma alfânde-
ga com o objetivo de melhor administrar o escoamento da riqueza,
além de diminuir o contrabando. A presença do ouro de Minas Ge-
rais, além de uma massa burocrática, transformou o Rio de Janeiro
em uma grande cidade.
Por fim, Minas Gerais. Devido ao elevado índice de riquezas
minerais presentes em seu solo, Minas ganha destaque durante o
século XVIII. Os investimentos reais na região são vultosos com o
objetivo de defender o rico território. A massa populacional que se
desloca das demais capitanias para o interior da colônia, atingindo
até mesmo Goiás, é gigantesca, todos atiçados pela febre do ouro.243
Exposto esse contexto, deve-se resgatar as proposições do
historiador capixaba Fernando Achiamé. Sobre essa delicada posi-
ção em que se encontrava a capitania do Espírito Santo o autor rea-
liza a seguinte proposição:

É lugar-comum na historiografia espírito-santense a afirmação de


que, durante o século XVIII, a capitania do Espírito Santo serviu
como barreira para evitar os caminhos em direção às minas e, as-
sim, os descaminhos do ouro; e de que essa ação deliberada por
parte da Coroa Portuguesa - fortificando Vitória , por exemplo - foi

243  Talvez o único movimento migratório idêntico, e que seja comparável com aquele
ocorrido no Brasil no século XVIII, seja a marcha para o oeste nos EUA durante o sé-
culo XIX, onde a corrida pelo ouro tornou-se uma febre em grandes cidades do leste
estadunidenses.

154
causadora do atraso econômico e isolamento territorial da capita-
nia, com reflexos na vida socioeconômica da província e do estado.
Se, em linhas gerais, o posicionamento está correto, os pesquisadores
nunca registraram o outro lado da questão. A partir dessas medi-
das político-administrativas da metrópole, a capitania do Espírito
Santo - governada militarmente por capitães-mores em quase todo
o referido século - teve garantida sua sobrevivência como unidade
política. Não se levam em conta os desaparecimentos das outrora
importantes capitanias de Porto Seguro e Ilhéus - incorporadas à
Bahia - e de São Tomé, assimilada ao Rio de Janeiro. Assim, na ex-
tensa costa entre as cidades de Salvador e do Rio - as duas capitais
da colônia brasileira -, somente o Espírito Santo permaneceu como
ente político.244

Preso entre duas capitais e uma “imensa mina de ouro”, o


Espírito Santo acaba sendo “recolhido a sua pequinês”, no entanto,
esse relativo desfavorecimento político-econômico frente aos nossos
gigantes vizinhos, não corresponde à realidade se comparada às de-
mais regiões da colônia.
O fato é que as expedições científicas estrangeiras do sécu-
lo XIX, e que posteriormente tiveram uma renovação no início do
século XX com cientistas brasileiros, evidenciaram o fato de que os
brasileiros não conheciam o Brasil.
A percepção em pleno século XIX de toda uma imensa massa
territorial a ser explorada se evidenciava a cada passo, a cada espé-
cie da flora e fauna recolhida, a cada contato com índios ainda em
“estado selvagem”.
Os retratos do Brasil, fixados em belíssimas telas de Rugen-
das, Debret, Thomas Ender, Taunay, entre outros, revelam a dimen-

244  ACHIAMÉ, Fernando A. M. O Espírito Santo na era Vargas (1930-1937). Rio de


Janeiro: Editora FGV, 2010, p. 50-51, grifo nosso.

155
são do Brasil e o pouco que ele era ocupado. Pinturas que revelam,
apesar de todo o preconceito civilizatório daquele que formulou a
imagem, o quanto tínhamos de rural e tropical, e o pouco de in-
dustrial e europeu que éramos. As próprias expedições de Roquette
Pinto, já na década de 1910, demonstravam que o Brasil ainda não
havia chegado a todo Brasil.
Nesse contexto os relatos de Maximiliano de Wied-Neuwied
(1816) e Auguste de Saint-Hilaire (1818) são de significativa relevância
para a compreensão das mudanças ocorridas no Espírito Santo e em
outras áreas do Brasil ao dos os séculos XIX e XX.
Se a ocupação territorial era um problema no período das
primeiras expedições científicas estrangeiras, dificultando des-
sa maneira a mobilidade e o acesso a áreas de grande relevância
para a pesquisa, hoje, duzentos anos depois, essa realidade já não
é presente. Na capital da capitania, onde havia em 1818, segundo
Saint-Hilaire, cerca de 4000 habitantes, há, segundo estimativas
do IBGE, mais de 363.000 pessoas, o que contribui para uma densi-
dade demográfica estadual de aproximadamente 76 habitantes por
km². Áreas anteriormente totalmente desabitadas e dominadas pe-
los índios, como era o caso do trecho compreendido entre a Fazen-
da Muribeca e a vila de Itapemirim, hoje abriga os municípios de
Presidente Kennedy e Marataízes.
As regiões de Linhares e São Mateus, que antes ficavam há
10 dias da capital, em uma viagem realizada exclusivamente pelo
litoral, hoje é feita em aproximadamente duas horas245 pelas estru-
turas viárias que cortam o estado de norte a sul.
Em localidades que anteriormente não passavam de meros
quartéis hoje florescem verdadeiras cidades, como é o caso de Bar-
ra do Riacho e Regência. Regiões ao norte do estado que floresce-

245  No caso de Linhares. São Mateus um pouco mais ao norte demanda cerca de três
horas.

156
ram, principalmente a partir da década de 1920, com a expansão
da fronteira do café e da extração das chamadas madeiras de lei,
deixando claro que “no início do século XX essa vasta região estava
saindo de um longuíssimo período colonial”.246
Os processos de urbanização e industrialização que se
alastraram pelo Brasil a partir dos anos 1870 e que culminaram
com os grandes projetos sanitaristas da década de 1910 também
atingiram o Espírito Santo. Reformas das áreas urbanas da capi-
tal levaram a inserção de bondes, linhas férreas, parques, grandes
jardins, alargamento de vias e sistemas de esgotamento sanitário.
Também fomos cenário fulgurante dos chamados “Mila-
gres econômicos” das décadas de 1930, com a inserção da Com-
panhia Vale do Rio Doce; da década de 1960 com os projetos de
expansão da malha viária e modernização do porto; e por fim da
década de 1970, com a implantação de grandes empreendimentos
industriais, tais como CST, Aracruz Celulose e Samarco.247
Enfim, aquela capitania que figurava como “abandonada”,
quase como que desabitada no período das expedições científicas,
despontou com o crescimento social, econômico e político, e ape-
sar de todas as dificuldades, hoje, não somente aos novos viajantes,
mas também àqueles que essas terras habitam, o discurso de atraso
deve ser deixado de lado, buscando compreender as diversas eta-
pas de desenvolvimento de uma sociedade, seu tempo e o contexto
que ela está inserida.

246  ACHIAMÉ, Fernando A. M. O Espírito Santo na era Vargas (1930-1937)... Op. cit.
p. 53.
247  para maiores informações a respeito dos projetos econômicos desenvolvidos no
Espírito Santo ver: RIBEIRO, Luiz Cláudio M.; QUINTÃO, Leandro do Carmo; FOLLADOR,
Kellen Jacobsen; FERREIRA, Gilton Luis. Modernidade e modernização no Espírito San-
to. Vitória; Edufes, 2015; BITTENCOURT, Gabriel. Indústria: a modernização do Espírito
Santo. Vitória: Secretaria Municipal de Cultura, 2011; MACEDO, Fernando Cézar de.
História econômica e organização espacial: o caso capixaba. Vitória: Gráfica e Editora
América/ IHGES, 2013.

157
Apesar dos pré-conceitos que cada um possui, e dos discur-
sos incutidos no imaginário social, uma coisa é certa! O passado nos
permite até certo ponto questionar as construções no presente.
Assim, àqueles que desejam empreender novas expedições
ao Espírito Santo e escrever novas visões dessas terras frente a esse
panorama. Boa viagem!

158
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26º Sobre Política Capixaba na Primeira República. Nara Saletto, 2018.
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de Maximiliano Wied-Neuwied e Auguste Saint-Hilaire. 2ª edição revista e
ampliada. Bruno Nascimento, 2018.

Os volumes acima, entre outros documentos e obras raras em suporte digital,


podem ser consultados no site do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo,
em formato PDF, no seguinte endereço:
www.ape.es.gov.br

165

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