Euguénio de Andrade

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OS AMANTES SEM DINHEIRO

Tinham o rosto aberto a quem passava.

Tinham lendas e mitos

e frio no coração.

Tinham jardins onde a lua passeava

de mãos dadas com a água

e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente

o milagre de cada dia

escorrendo pelos telhados;

e olhos de oiro

onde ardiam

os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,

e silêncio

à roda dos seus passos.

Mas a cada gesto que faziam

um pássaro nascia dos seus dedos

e deslumbrado penetrava nos espaços.

Eugénio de Andrade

Vamos primeiro fazer uma breve contextualização sobre o poeta. Eugénio de Andrade é um

pseudónimo de José Fontinha. Nasceu em 19 de janeiro de 1923. A obra “ as mãos e os frutos”

consagra Eugénio de Andrade como o poeta maior da poesia portuguesa contemporânea.

A poesia de Eugénio de Andrade destaca algumas características: o facto de estar erreizado

tradição lírica portuguesa; está presente a simbologia do corpo, da natureza, dos animais e da

água. Os poemas são na maioria breves, ora eufórios, ora melancólicos e sempre avessos à

morte mas todos com uma linguagem simples. O poema que vamos analisar chama-se

“amantes sem dinheiro” e foi publicado em 1950. Este poema está no nosso manual, pelo que
antes de analisarmos vamos lê-lo.

Antes de começarmos a dita análise, acho que ao ler-mos o poema se aperceberam de que

existem alguns versos começados com o verbo “tinham”. O titulo do poema tem como função

sintática de sujeito em relação a esses mesmos versos. Se lerem o título do poema em

conjunto com cada estrofe, em separado, vão reparar que parece que faz mais sentido o que é

dito em cada uma.

Apesar de parecer que há um contraste entre o sentido de escassez que o titulo anuncia, e os

versos que iniciam cada estrofe, o poema revela que o amor pode trazer outras formas de

riqueza e outras formas de “ter” que ultrapassam o lado financeiro. Este poema serve então

como critica social à ascensão do capitalismo e ao poder do dinheiro.

Começamos logo na 1ª estrofe, mais concretamente no 2º e 3º verso, por perceber que o

amor não é descrito como sendo perfeito, um ambiente em que tudo “é um mar de rosas”. No

entanto, ao longo do poema percebemos que é por causa disso mesmo, do amor, que os

amantes vivem livres, felizes e sem precisar de quaisquer bens materiais.

Os verbos “tinham, ardiam, fazia e nascia” são verbos que se destacam no poema por estarem

todos no pretérito imperfeito do indicativo remetendo para um passado inacabado,

característico das historias de amor.

Em relação à estrutura externa, o poema é composto por 2 tercetos e duas sextilhas com a

presença de rima interpolada e com dois versos soltos.

Recursos expressivos:

( Conseguimos encontrar neste poema três recursos expressivos, alguém me sabe dizer quais

são e onde estão?)

Personificação: verbos 4 e 5 – referindo-se aos espaços percorridos pelos amantes, de noite,

que deveriam ter algum jardim com um lago ou uma fonte porque é referido a água

Metáfora: verbos 16-18 – A referencia ao pássaro transmite uma ideia de liberdade no sentido

de criarem sensações ricas um com o outro, em casal, fruto do amor, mais valiosas do que o

dinheiro. Como forma de conclusão do poema, no verso 16 está presente uma conjunção

coordenativa adversativa, que tal como já dissemos, vem referir que a riqueza sentimental,

fruto do amor é mais valiosa do que a riqueza financeira.

Anáfora: a constante repetição do “tinham” serve para descrever os amantes para

perceberemos o contexto do poema


Apesar do poema já ter sido escrito à algumas décadas, o poema é muito atual. Com isto,

quero dizer que nos dias de hoje, também se pode criticar o materialismo e o consumismo.

Com a ajuda deste poema, queremos dizer-vos que vivam a vida de forma simples e leve com

base em sonhos e em coisas não materiais, que não se compram, com valor emocional e não

um valor financeiro, porque são essas pequenas coisas que nos vão fazer ser pessoas mais

felizes.

ADEUS

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,

e o que nos ficou

não chega para afastar o frio de quatro paredes.

Gastámos tudo menos o silêncio.

Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,

gastámos as mão à força de as apertarmos,

gastámos o relógio e as pedras das esquinas em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.

Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!

Era como se todas as coisas fossem minhas:

quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!

e eu acreditava.

Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,

no tempo em que o teu corpo era um aquário,

no tempo em que os meus olhos eram peixes verdes.

Hoje são apenas os meus olhos.

É pouco, mas é verdade, uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.

Quando agora digo: meu amor…,

já se não passa absolutamente nada.


E no entanto, antes das palavras gastas,

tenho a certeza de que todas as coisas

estremeciam só de murmurar o teu nome

no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.

Dentro de ti não há nada que me peça água.

O passado é inútil como um trapo.

E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade

Análise
• O título “Adeus” indica-nos uma despedida, uma conclusão ou provavelmente um fim. Em relação
ao conteúdo do poema, transmite-se a ideia de um amor gasto, corrompido pelo tempo, e agora
estéril, e se esse amor não mais existirá, chegou ao fim. • Relativamente ao aspecto do poema,
pode-se dizer que se trata de uma relação amorosa que há muito foi perfeita, cheia de magia e bons
momentos, mas agora a química acabou e acabaram por cair na realidade. Consegue-se perceber ao
longo do poema a existência de um “Eu” que já não ama o “Tu” e portanto quer se livrar de tudo o
que acontecera em tempos, quer se despedir de tudo o que lhe faça relembrar o “Tu”, visto que o
sonho acabara, o paraíso já não é mais um lugar mágico, mas a realidade humana. Já não vê nele o
“para sempre”, acordou do sonho que vivera agarrado ao “Tu”, e sente que é altura de deixar o
passado.

13. Análise (continuação) • Ao nível da pontuação apenas de destaca os dois pontos para introduzir
falas anteriores do “Eu” que são palavras intensas para o “Tu”, o que sugere um Tu choroso e traído
pelo o “Eu”. • A existência das imagens fabulosas que o sujeito poético nos transmite ao longo dos
versos, ajudam a entender os sentimentos de impaciência, tristeza, cansaço, e de coragem para
deixar aquele que já o fez muito feliz. • O poema é constituído por seis estrofes e trinta e sete
versos. A primeira estrofe é uma oitava, a segunda estrofe é uma nona, a terceira e a quarta estrofe
são sétimas, a quinta estrofe é uma quintilha e a sexta estrofe é um monóstico. Sendo assim, as
estrofes estão dispostas de forma irregular e não apresenta esquema rimático uma vez que se trata
de versos soltos. • Escansão métrica: – Já/gas/tá/mos/as/pa/la/vras/pe/la/rua,/meua/mor, –
Em/es/pe/ras/inú/teis.

14. Análise (continuação) • 1º estrofe: A repetição do verbo gastar revela a inutilidade de palavras
trocadas, do barulho e discussões, das lágrimas derramadas, da troca de toques entre ambos, do
tempo desperdiçado à espera para reparar os erros cometidos e para salvar a relação. O “Eu” trata
esta relação como algo irremediável, e devido a todo o cansaço e frustração gasta nesta relação,
deseja calar o “Tu” e afastá-lo de vez. • 2º estrofe: Agora não sente nada, não lhe deve nada ao
“Tu”, mas antes, quando estava apaixonado, sentia que o “tu” era dele, passaram bons momentos,
inesquecíveis, e quanto mais sorrisos, trocas de afectos e um amor em crescimento eles tinham,
maiores, mais importantes e felizes momentos eram. Antes o “Eu” acreditava em tudo o que o “Tu”
dizia, como os olhos verdes como peixes, pois ao lado do “Tu” tudo era possível, real, verdadeiro,
um mundo só deles.

15. Análise (continuação) • 3º estrofe: O “Eu” deixou de ver no “Tu” um ponto de abrigo, o seu lar, o
seu aquário, uma vez que os seus olhos eram peixes verdes. O “Tu” era o paraíso para o sujeito
poético, o lugar ou a pessoa com quem podia abandonar a realidade e aventurar-se (mergulhar) no
mundo da fantasia. Triste e magoado, olha para si próprio e vê-se novamente humano, é igual a
todos os outros. O “Tu” fazia do sujeito poético um ser único, especial, só do “Tu”. • 4º estrofe: O
excesso de comunicação, nasceu para esquecer a inquietação que o pressentimento do fim faz sentir
e os amantes gastaram até à exaustão todos os recursos que tinham para recuperar a felicidade
perdida. Mas agora, sabe que nada se passa no coração dele, a relação está destruída, estão
separados e entre ambos já não existe mais nada que os una. No entanto, antes da falta de
comunicação ou do excesso, os dois estavam muito apaixonado, eram felizes, não se cansavam um
do outro, havia uma magia naquele amor, provocava no sujeito poético um nervosinho miudinho só
de ouvir o nome do “Tu”.

16. Análise (continuação) • 5º estrofe: Ao reinventarem o mundo só deles, dia após dia, desgastaram
a capacidade limitada das palavras para exprimirem o que estava em transformação permanente. O
sujeito poético estava preso naquele paraíso, no “Tu”, na magia que é o amor, e devido a palavras
que mascaram sentimentos, o “Eu” e o “Tu” ficaram presos do que diziam e rediziam um ao outro. A
magia daquele amor e das palavras desabou, e o paraíso que ambos criaram desapareceu, deixando
apenas o frio, e momentos de solidão, tédio, desinteresse e por fim o gasto de tudo. O passado
agora já não é relevante, ficou para trás, assim como os momentos e palavras usadas. • 6º estrofe: O
amor que ambos tinham um pelo o outro chegara ao fim, já não há nada a fazer ou dizer e portanto,
o sujeito despede-se do “Tu” para sempre, afasta-se.

17. Análise (continuação) • “…meu amor”: apóstrofe. • “para afastar o frio de quatro paredes.”:
perífrase (silêncio). • “Gastámos…”: anáfora, uma vez que se repete várias vezes ao longo do poema.
• “…os teus olhos são peixes verdes.”: metáfora. • “…tempo dos segredos”: perífrase (tempo que só
os 2 sabiam da vida um do outro). • “…teu corpo era um aquário,”: imagem. • “só de murmurar o
teu nome/ no silêncio do meu coração.”: antítese. • “Já gastámos as palavras…”: e todos os versos
em que aparece “Já gastámos…” é imagem.

As palavras

São como cristal,

as palavras.

Algumas, um punhal,

um incêndio.

Outras,

orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.

Inseguras navegam:

barcos ou beijos,

as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,

leves.

Tecidas são de luz

e são a noite.

E mesmo pálidas

verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem

as recolhe, assim,

cruéis, desfeitas,

nas suas conchas puras?

“As palavras” é uma composição poética da autoria de Eugénio de Andrade, pseudónimo do


poeta José Fontainhas, nascido a 19 de janeiro de 1923 no Fundão e falecido em 13 de junho de
2005, no Porto, incluído na obra O Coração do Dia.

Formalmente, o poema é constituído por quatro estrofes, duas sextilhas e duas quadras,
num total de 20 versos, maioritariamente brancos ou soltos, à exceção do 1 e do 3, que apresentam
rima cruzada, e aborda o tema da reflexão sobre o valor polissémico das palavras.

Relativamente à sua estrutura interna, o texto divide-se em duas partes: a primeira,


constituída pelas primeiras três estrofes e a segunda pela última. Na primeira parte, o sujeito
poético descreve as palavras, enquanto na última faz duas interrogações retóricas, chamando deste
modo a atenção do leitor para o seu papel de descodificador delas.

Logo a abrir, as palavras são comparadas a um cristal, revelando-se, assim, desde logo o seu
sentido polissémico, devido ao facto de os cristais possuírem várias faces, tal como a palavra possui
vários sentidos. Além disso, como os cristais, as palavras podem adquirir vários significados
(polissemia), podem ser claras, transparentes, belas, brilhantes, isto é, são “multifacetadas”. De
seguida, são identificadas com um punhal, metáfora que remete para a agressividade, dor, morte e
sofrimento que podem carregar; com um incêndio, pois podem queimar, destruir, aludindo pois à
sua capacidade de destruição e também de regeneração; e finalmente com o orvalho “apenas”,
metáfora que nos conduz à suavidade das palavras, capazes de despertar a calma, a brandura, o
amor e a esperança.
A segunda estrofe ensina-nos que as palavras são essenciais na comunicação entre os seres
humanos e intemporais, pois têm carregado, através dos tempos, as histórias e os segredos dos
homens. Com o passar do tempo vão recebendo novos significados, evoluindo, carregando os
segredos da história dos homens e acompanhando os seres humanos como instrumento
indispensável de comunicação; trazem consigo um saber muito antigo (“Secretas vêm, cheias de
memória”). Em simultâneo, porém, também causam insegurança e agitam as pessoas, fazendo-as
estremecer como os barcos, que agitam as águas, e os beijos, que também fazem estremecer. Com
efeito, os versos 8 a 10 (“Inseguras navegam / barcos ou beijos / as águas estremecem”) revelam
insegurança quer das palavras, que agitam as pessoas, quer dos barcos, que agitam as águas. Ao
amor representado pelos beijos, ninguém lhes fica indiferente, assim como às palavras.

Na terceira estrofe, o sujeito poético caracteriza as palavras como “desamparadas” (porque


estão ao alcance de todos), “inocentes” (porque não representam qualquer perigo, mas podem ser
usadas e abusadas) e “leves” (quando não têm importância no texto). Estamos na presença de
características que conferem alguma fragilidade às palavras, mas não nos devemos esquecer que as
palavras podem ser usadas de várias formas, com vários tons. Uma palavra “leve” e “inocente”
também pode ofender, caluniar... Por sua vez, a metáfora e a antítese “Tecidas são de luz / e são a
noite” realçam as contradições que as palavras contêm (positividade versus negatividade) e o seu
sentido conotativo: há as que surgem cobertas de luz, são claras, transparentes, mas estas mesmas
podem também ser a noite, podem ser negras, escuras, sombrias. Por seu turno, nos versos “E
mesmo pálidas / verdes paraísos lembram ainda”, o sujeito lírico sugere que as palavras podem não
ser intensas nem coloridas, mas ainda assim podem ser aprazíveis e alegres, lembrando o paraíso.

O poema termina com duas interrogações retóricas, através das quais o eu poético chama a
atenção do leitor, dizendo-lhe que lhe cabe o papel de intérprete das palavras, do seu significado, de
acordo com a sua experiência de vida, com o seu modo de sentir. É o leitor que vai abrir as conchas
puras, com as palavras lá dentro cheias de mistério, atribuindo-lhes um sentido. As interrogações
retóricas “Quem as escuta? Quem/as recolhe, assim, /cruéis, desfeitas, /nas suas conchas puras?”
apelam à releitura das palavras.
VER CLARO

Toda a poesia é luminosa,


até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.
         
Eugénio de Andrade, Os Sulcos da Sede, 2001
             
            
Consoante a evolução histórica dos modelos de leitura e interpretação, o leitor
intérprete privilegiou a intentio auctoris, operis ou lectoris como se cada uma delas
possibilitasse uma interpretação distinta do texto 1. Em meados do século XX, a
tónica incide sobre a responsabilidade do leitor enquanto construtor de sentidos; por
isso mesmo, há inclusivamente quem acredite que não há limites para a
interpretação, que todas elas são plausíveis. Essa tarefa ativa da competência do
leitor torna-se evidente, por exemplo, no poema “Ver Claro” de Eugénio de Andrade.
Este poema indicia, desde logo, a consciência de que ao leitor compete a difícil
tarefa de interpretar o texto. Por isso mesmo, a obra em si – neste caso a poesia – é
“luminosa,/até/a mais obscura”; o material que a compõe (linguístico e ideológico) é
suscetível a que o leitor o revisite “outra vez e outra vez/e outra vez” até descobrir a
sua clara significação. Quando o leitor dissipar o “nevoeiro dentro de si” conseguirá
“ver claro”, descobrir o(s) sentido(s) do texto e essa conquista cegá-lo-á. O leitor que
não desistir perante a adversidade da interpretação que alguns textos propiciam, será
“Abençoado” já que viu para lá da mera sucessão de palavras. No entanto, essa
capacidade de descodificação de um texto por parte do leitor não deve ser encarada
como uma atividade ilimitada e caracterizada pela contínua ebulição de leituras já
que “…toda a liberdade necessita de disciplina para não cair na libertinagem
(entendida em mau sentido, é claro). O leitor deve aprender a usar com eficácia os
seus poderes e liberdades.”

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