Eugenioandrade
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(…)no poema XXIX encontramos um cenário diferente, pois o ser amado apresenta-se novamente como
símbolo de vida e esperança, também esta composição deixa perceber que a falta de energia começa a
ferir o sujeito lírico. Apesar de o outro continuar a suscitar o deleite do “eu”, este encaminha-se para a
esterilidade própria do fim do ciclo.
O “tu”, fonte e motivo da sua criação poética, é não só associado à “madrugada”, ou se quisermos à
“esperança”, mas também às “tardes de setembro”, com a imanente doçura da luz outonal a
caracterizá-lo. Em contraste, o “eu”, outrora criador adâmico, é apenas o autor de “palavras sem
sentido”, de “brumas” e “lagos densos” e que se limita a esperar a “luz” do ser amado. A superioridade
do “tu” não nos surpreende, pois o poeta a ela nos habituara. A transfiguração das personagens ao
longo do livro revela-nos um ser amado que se metamorfoseia em elementos invariavelmente
conotados com vida e fertilidade, como referimos atrás, ao passo que o sujeito poético ora se apresenta
contemplativo e sabedor da sua inferioridade perante o outro, como, em rasgos de criatividade, é capaz
de inventar paraísos terrestres para deleite e enaltecimento do ser amado. A vida, luz e frescura
inventadas no poema VIII destoam do tom sombrio que a sua criação emana neste poema. Assim, os
ribeiros serão substituídos por “lagos densos”, a lua por “brumas” e o corpo, estendido sugestivamente
no chão, será agora representado apenas pelos seus “braços suspensos”. A incapacidade inventiva do
sujeito lírico serve para realçar a fonte de toda a esperança que é o outro, mas também nos anuncia o
declínio da relação amorosa que se irá sentir particularmente nas composições que se seguem, criando
um ambiente que evoca o derradeiro ciclo da vida.
A primeira estrofe, a mais longa, refere-se exclusivamente ao ser amado e o campo semântico aí
presente está em sintonia com a imagem de esperança e de amor a ele associada, ao passo que a
segunda se centra no “eu” e tem como finalidade realçar, por contraste e oposição, as características e
superioridade do outro. A última estrofe apresenta-se como a conclusão do que foi dito, estabelecendo,
uma vez mais, a desigualdade entre os dois amantes e atribuindo ao outro a origem da vida e da criação
poética.
O sentido da visão será o protagonista neste poema e, agora, são os olhos, não as mãos, que
possibilitam a ligação dos amantes, união que culmina na imagem final dos dois últimos versos com a
associação dos olhos ao ato de beber, confundindo deliberadamente as faculdades dos sentidos, o que
empresta ênfase à ideia de comunhão que se pretende transmitir.
Da mesma forma, o sujeito lírico partilha com as aves e as fontes o ato de beber, verbo da predileção do
poeta, que culmina a fusão plena do homem na natureza. Este verbo adquire na poesia de Eugénio de
Andrade um significado muito especial e intimamente ligado à união dos amantes, como vimos. Esta
ideia de que os seres ou coisas bebem algo é bastante usual ao logo do livro. Já no poema III, as fontes
bebem a face do ser amado e, nos poemas V e XVI, são as aves que bebem dos seus dedos, como se
fossem fontes, ou o “teu grito” que pede “a não sei que deus o seu destino”. Também no poema XIX, as
raízes, que seriam tecidas pelas suas mãos, hão de, um dia, beber o corpo do amado, para, no poema
XXVIII, ser o sujeito poético quem bebe os horizontes. Beber torna-se, assim, uma forma plena de
comunhão, uma fusão intensa entre os seres, uma vontade deliberada de integrar o outro ou apenas
aquilo que o evoca. Este ato pressupõe uma identificação total entre os dois termos, entre aquele que
bebe e o que sofre a ação, tornando-os um só elemento numa tentativa de união ascética através da
união física.
AGORA AS PALAVRAS
• Com a passagem do tempo, a relação do sujeito poético com as palavras alterou-se e, no presente, é
caracterizada pelo seguinte:
» passou a sentir mais dificuldade em dominar as palavras (“não fazem / caso do que lhes digo” – vv. 3-
4), que o ignoram;
» as palavras desrespeitam-no, desrespeitam a sua idade (“não respeitam a minha idade.” – v. 5);
• A referência à idade do «eu» lírico no verso 5, associada aos dois versos finais, significa que, com a
passagem do tempo, aquele reconhece que a sua relação com as palavras se alterou e parece não ter a
certeza acerca de quem é responsável por essa mudança. De facto, embora ao longo do texto lhas
pareça atribuir, a interrogação desses dois últimos versos parece indiciar que não tem a certeza disso.
• Ao longo do poema, predomina a personificação das palavras, a quem são associados atributos
humanos e que parecem ter vida própria. Sobretudo no presente, mostram-se independentes, sentem,
reagem e lutam com o sujeito poético.
• Por outro lado, é-lhes associado um caráter metafórico, ao serem associadas a animais: elas são
desobedientes, arreganham os dentes (como um cão, por exemplo), eram controladas pela rédea (como
um cavalo) do sujeito poético. Todos estes recursos, incluindo a personificação, contribuem para dar
vida às palavras e sugerir que o ofício de ser poeta é bastante exigente.
• Pelo contrário, no passado, as palavras gostavam do sujeito lírico (“e elas durante muitos anos /
também gostaram de mim” – vv. 11-12), eram obedientes, causavam-lhe alegria e entre ambos havia
uma relação harmoniosa (“dançavam / à minha roda quando as encontrava.” – vv. 12-13). Esta relação
passada entre o «eu» e as palavras é explicitada a partir dos dois pontos.
• A metáfora do verso 14 (“Com elas fazia o meu lume”) estabelece uma associação entre palavra,
poesia e vida. O lume, o fogo, equivale a vida.
• A interrogação final, como já foi referido, aponta para uma explicação alternativa para a mudança
operada nas palavras: talvez tenho sido, afinal, o sujeito poético quem mudou, visto que passou a
procurar as palavras mais difíceis (“Ou será que / já só procuro as mais encabritadas?” – vv. 18-19).
• Ao longo do texto, o sujeito poético enuncia as possíveis causas para esta alteração de
comportamento das palavras. Em síntese:
▪ 2.ª) o sujeito poético não sabe escolher as palavras mais apropriadas (vv. 18-19);
▪ 3.ª) as palavras cansaram-se do controlo excessivo por parte do sujeito poético (“Provavelmente
fartaram-se da rédea” – v. 6).
O sujeito poético relaciona-se de modo quase conflituoso com a sua poesia, em decorrência da tensão
que existe entre a sua vontade de trabalhar as palavras e a incapacidade de o fazer, como confessa nos
versos 16 e 17.
Por outro lado, declara todo o rigor, perfecionismo e recusa do “fogo de artifício” com que encara o
processo de criação poética.