Andrea de Davide Ratto Morelli

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA CLÍNICA

ANDREA DE DAVIDE RATTO MORELLI

Barreiras, refúgios, claustros: vias cruzadas numa travessia.

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

SÃO PAULO

2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA CLÍNICA

ANDREA DE DAVIDE RATTO MORELLI

Barreiras, refúgios, claustros: vias cruzadas numa travessia.

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de MESTRE
em Psicologia Clínica, pelo Núcleo de Método
Psicanalítico e Formações da Cultura, sob a orientação
do Prof. Dr. Luis Cláudio M. Figueiredo.

SÃO PAULO

2013
Banca Examinadora

_________________________________________________________________
Orientador: Prof. Dr. Luis Claudio M. Figueiredo

_________________________________________________________________

_________________________________________________________________
Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou
parcial deste trabalho, por processos fotocopiadores ou eletrônicos.

São Paulo, 4 de fevereiro de 2013

________________________________________________

Andréa de Dávide Ratto Morelli


Para Isabella, Marcello

e Ricardo, com amor.


Agradecimentos

Ao meu orientador Professor Dr. Luis Cláudio Mendonça Figueiredo, pelas


indicações de leitura, pela oportunidade de conviver com sua capacidade intelectual e
por ter clareado minha percepção várias vezes.

E juntamente com ele, agradeço a meus demais professores e colegas as


incontáveis oportunidades de aprender, e a convivência que me trouxe não apenas
conhecimento, mas aperfeiçoamento como ser humano.

A professora Dra. Elisa Maria de Ulhoa Cintra, cujo carinho, continência e


inteligência foram para mim um estímulo e um apoio consistentes.

A Professora Dra. Marina R. Ribeiro pela atenção, refinamento e ponderações


enriquecedoras para com meu trabalho.

A minha analista Dra. Maria da Penha Amâncio de Camargo Barros Munhoz por
suas contribuições e cuidados para com minha saúde.

Aos meus supervisores os Drs. Mario Pacheco de Almeida Prado (In Memoriam),
Heitor Fernando Bandeira de Paola e Neilton Dias da Silva pelas contribuições, á minha
formação como psicanalista.

A meus pais, Regina Maria de Dávide Ratto, e José Affonso Pinheiro Ratto
(ambos In memoriam) por me darem a vida e terem contribuído de corpo e alma para
aquilo que sou.

A meu esposo Ricardo, e meus filhos Isabella e Marcello que muito me


compreenderam e apoiaram e são grande parte do sentido desta travessia.

A meu sogro, Sr. Plácido Morelli cuja presença junto a meus filhos muitas vezes
permitiu que eu me ausentasse sem tanta angústia.

A minhas auxiliares: Núbia Cristina, Sulimar e Maria que tanto me ajudaram na


administração do dia a dia em casa e no consultório.

A meus pacientes em cuja companhia permaneço aprendendo e que me auxiliam


imensamente na difícil tarefa de ser tolerante e lutar para ir além.

Aos poetas e literatos, populares ou eruditos, por terem iluminado meu caminho e
me acompanhado através das diversas etapas de minha vida.
“Quem possua a noção sem a experiência e conheça o universal, ignorando o particular
nele contido, enganar-se-á muitas vezes no tratamento, porque o objeto da cura é, de
preferência, o singular”.

Aristóteles.

MAR PORTUGUÊS

Ó mar salgado, quanto do teu sal


São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar


Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.

Quem quere passar além do Bojador


Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa
MORELLI, Andrea de Davide Ratto. Barreiras, refúgios, claustros: vias cruzadas numa
travessia. São Paulo, 2013. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) Núcleo de
Método Psicanalítico e Formações da Cultura do Programa de Estudos Pós-Graduados
em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

RESUMO

Este estudo tem por objetivo recolher informações sobre alguns tipos de
organizações patológicas da personalidade, utilizando conhecimentos
psicanalíticos. Vários autores embasam-no partindo de Sigmund Freud, Melanie
Klein, Joan Riviere, Wilfred Bion, Herbert Rosenfeld, Hanna Segal e chegando a
John Steiner, Donald Meltzer, Frances Tustin, Judith Mitrani e James Grotstein,
cujos trabalhos nessas áreas são discutidos mais profundamente. Esforços são
realizados para compreender e identificar pontos de convergência, divergência
e/ou intersecção entre conceitos como claustros, refúgios psíquicos, cápsulas
autistas e pseudorrelações objetais adesivas. Discussões da importância da
continência e da elaboração das posições esquizoparanoides e depressivas
perpassam todo o trabalho e são fundamentais para a abordagem do material
clínico apresentado. A continência psíquica do analista é questionada em face de
dificuldades como a sedução dos claustros e a atratibilidade de pseudorrelações
objetais adesivas, o embaraço diante da ternura e lutas por dominar ou excluir o
analista. Diante da dificuldade de manejo com sistemas defensivos complexos,
como os das organizações patológicas, a confiança na existência da necessidade
inconsciente da verdade psíquica permanece estimulante e acalentadora tanto
para continuar a trajetória do exercício psicanalítico, quanto para alcançar as
necessidades dos pacientes.

Palavras-chaves: Organizações patológicas da personalidade, claustros,


cápsulas autistas, pseudorrelações objetais adesivas, refúgios
psíquicos, continência, duplas vias, Infinito Geômetra.
MORELLI, Andrea de Davide Ratto. Barriers, retreats, claustrum; crossed paths on a
journey: São Paulo, 2013. Thesis (MA in Clinical Psychology) Psychoanalytic Method and
Cultural Formations on Clinical Psychology, Pontifical Catholic University of São Paulo.

ABSTRACT

This study aims to gather information on some types of pathological organizations


of the personality, using psychoanalytic knowledge. Several authors underlie it,
starting with Sigmund Freud, Melanie Klein, Joan Riviere, Wilfred Bion, Herbert
Rosenfeld, Hanna Segal and getting to John Steiner, Donald Meltzer, Frances
Tustin, Judith Mitrani and James Grotstein, whose works in these areas are
discussed more deeply. Efforts are made to understand and identify points of
convergence, divergence and/or intersection among concepts like claustrum,
psychic retreats, autistic capsules and adhesive pseudo-object relations.
Discussion of the importance of continence and the development of schizo
paranoid and depressive positions, permeate all the work and are fundamental to
the approach of the clinical material presented. Analyst's psychic continence is
questioned in face of difficulties as the claustrum seduction, attraction of adhesive
pseudo-object relations, embarrassment of tenderness and struggles for dominate
or exclusion of the analyst. Facing the difficulties of handling complex defensive
systems, such as pathological organizations, confidence in the existence of
unconscious need of psychic truth remains encouraging and cherishing, both to
continue the trajectory of psychoanalytic exercise, and to achieve the needs of
patients.

Keywords: Pathological organizations of the personality, claustrum, autistic


capsules, adhesive pseudo-object relations, psychic retreats,
continence, dual track, Infinite Geometer.
SUMÁRIO

1 APRESENTAÇÃO ................................................................................................................ 10

2 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12

3 EXPERIÊNCIAS CLÍNICAS: ONDAS NUNCA VOLTAM? APROXIMAÇÃO PARA


ACOLHER AS FORMAS SONORAS E AS FORMAS AFETIVAS ...................................... 21

4 COMPREENDENDO AS ORGANIZAÇÕES PATOLÓGICAS DA PERSONALIDADE......... 28


4.1 Pseudorrelações-objetais adesivas, cápsulas autistas e a não instauração do
ritmo de segurança ..................................................................................................... 28
4.2 Narcisismo destrutivo e organizações mafia-like; as gangues que oferecem
proteção e mantém o ego refém ................................................................................. 38
4.3 Refúgios psíquicos: objetos pseudoprotetores, falsa continência, relações
perversas.................................................................................................................... 52
4.4 Claustros: territórios interiores para onde a identidade pode ser seqüestrada ............. 62
4.4.1 Comparando claustros e refúgios ...................................................................... 68

5 RETOMANDO A CLÍNICA: ONDAS SE DESDOBRAM ....................................................... 73


5.1 A partir do balanço do ritmo de segurança: entre o acolher e o aderir ......................... 73
5.2 Agitações: dificuldades para uma continência verdadeira entre ilhas de
organização patológica e ondulações autísticas ......................................................... 77
5.3 Seduções: pseudorrelações objetais adesivas, falsa continência de refúgios e
claustros ..................................................................................................................... 88
5.4 Recolhendo do mar da clínica: embaraço diante da ternura, desejo de excluir o
analista, conflitos edípicos precoces e tentativa de visão binocular ............................ 96

6 CAMINHOS CRUZADOS EM TERRAS E MARES: CONTINÊNCIA,


ENTRELAÇAMENTO DE DEFESAS, PERVERSÕES E A NECESSIDADE DA
VERDADE ....................................................................................................................... 107

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 119

ANEXOS ................................................................................................................................ 123


10

1 APRESENTAÇÃO

Desde a infancia, duas questões humanas intrigavam-me. Uma delas, era


a existência de dores físicas, para as quais existiam recursos, ainda que fossem
limitados e às vezes parecessem não funcionar. A segunda era a existência de
outras dores, inscritas naquilo que na época eu chamaria de alma, imperceptíveis
a olho nu ou na aparência física. Essas dores pareciam-me misteriosas,
complicadas e surpreendentes em suas formas e em seus efeitos. Para elas os
remédios comuns eram inúteis. A observação de que essas dores interferiam ou
mesclavam-se umas às outras também me instigava.

Minha mãe foi quem primeiro mencionou a possibilidade de algumas


dessas dores virem de uma parte da mente chamada inconsciente. A partir
daquela época, no início dos anos setenta, a ideia do inconsciente e seu
“descobridor”, Freud, passaram a me acompanhar. Ainda hoje fazem com que eu
possa aceitar, compreender (um pouco), e ter humildade diante da tarefa humana
e inalienável de lidar com dores físicas e psíquicas.

Vindo de uma formação psiquiátrica e psicanalítica e exercendo as duas


atividades, percebo que atualmente o panorama da saúde mental, não é
luminoso. Faltam recursos em diversos níveis, desde geográficos até humanos. A
falta de compreensão e de acolhida para a complexidade das questões mentais
parece-me um dos problemas mais sérios, e é com a intenção de buscar mais
recursos para essa acolhida (e compromisso) que se efetua esta pesquisa.

Conhecer sistemas defensivos adoecidos, o conceito de refúgios, das


organizações patológicas da personalidade, parece-me ser de grande ajuda, pois
esse conhecimento permite identificar estados mentais severos e diferenciá-los.
Sem perceber isto, um paciente pode fazer inúmeros tratamentos, com altos
custos, humanos e materiais, e não obter melhora alguma, ou muito pouca.
Contar com mais essa forma de compreensão e poder perceber a complexidade
das situações mentais pode direcionar o tratamento para abordagens que levem
em conta as dinâmicas psíquicas complexas, e portanto, tenham mais chance de
serem efetivas.
11

A Psicanálise, além da investigação do inconsciente, constitui-se como


método terapêutico. Muitos pacientes procuram ajuda, mas a elaboração de
questões e sofrimentos psíquicos quase nunca é simples ou fácil e, em algumas
situações, pode ser impossível, mesmo com diferentes e simultâneos recursos
terapêuticos. Ao longo de décadas de trabalho, numerosos analistas encontraram
e seguem encontrando vários obstáculos nessa tarefa. A presente pesquisa
enfoca alguns desses obstáculos que podem ser mais bem compreendidos e
trabalhados, se as organizações patológicas da personalidade forem levadas em
conta.
12

2 INTRODUÇÃO

O trabalho se inicia com uma aproximação de material clínico, cujos


desdobramentos virão depois de contribuições teóricas, as quais apresentam
conteúdos que pretendemos entrelaçar, e que supomos apresentar razoável
complementaridade. São provenientes de autores dos quais falamos brevemente
nesse momento, e cujos trabalhos clínico e teórico falam por si.

Embora esta pesquisa focalize material clínico, seu objetivo é utilizá-lo para
o estudo de algumas questões teóricas. Em respeito ao sigilo, vários dados são
omitidos e modificados. O material entra como apoio e como articulador para o
estudo e para a investigação de algumas ideias psicanalíticas.

Não se pretende esgotar os temas, o que seria impossível em se tratando


de Psicanálise. Foi feita uma seleção de autores e, como algumas obras usadas
não dispõem de tradução, optou-se, depois de pesquisar a ABNT, por usar a
tradução livre e a citação textual original logo abaixo, permitindo, assim, um
rápido cotejar entre ambas.

Embora tendo o trabalho de Steiner como disparador e parte do âmago


desta pesquisa, houve desdobramentos a outros campos. Este trabalho
constitui-se numa proposta de diálogo entre ideias e conceitos, alguns dos
quais são mais detalhadamente estudados. Apresentamos resumidamente
alguns dados bibliográficos de autores mais utilizados.

John Steiner é analista didata da Sociedade Britânica de Psicanálise e


trabalha como psicanalista em prática privada, em Londres. Seu livro sobre
Refúgios Psíquicos data de 1993. Recentemente (2011) publicou: Seeing and
being seen: Emerging from a Psychic Retreat que se constitui numa compilação
e descrição minuciosa de casos clínicos de pacientes que apresentam refúgios
e organizações patológicas de vários tipos. Nas palavras de Roy Schafer, que
assina a apresentação da obra citada, ela pode ser considerada um belo
complemento para o grande trabalho de Freud, intitulado Análise Terminável e
Interminável.
13

Herbert Rosenfeld nasceu na Alemanha, em 1910, emigrou para a


Inglaterra fugindo da perseguição nazista em 1935 e, depois de tornar-se analista,
desenvolveu um brilhante trabalho com pacientes psicóticos e/ou borderlines,
principalmente no campo da patologia narcísica. Foi membro da Sociedade
Britânica de Psicanálise. Faleceu em 1986.

Donald Meltzer foi um singular pensador da Psicanálise. Foi membro da


International Psychoanalytical Association, mas retirou-se dela por discordar das
regras de formação de analistas. Já exercia e continuou exercendo alentadas
atividades clínicas e didáticas de forma independente e em conjunto com vários
colegas. Estudou profundamente as obras de Freud, Klein e Bion e publicou
estudos e discussões sobre elas, além de desenvolver várias linhas de trabalhos
ricos e inquietantes. Nasceu em 1922 e faleceu em 2004.

Frances Tustin nasceu na Inglaterra, mas trabalhou muito tempo nos


Estados Unidos da América, realizando um corajoso e impressionante trabalho
com crianças, adultos e jovens que se enquadram no espectro autista. Faleceu
em 2004, e tem como seguidora Judith Mitrani, que vive e trabalha nos EUA e
teve uma convivência profissional e pessoal com Frances Tustin. Mitrani (2007)
fez acréscimos e explicitações importantes a várias questões levantadas por
Tustin. Atualmente continua desenvolvendo linhas de pesquisa iniciadas pela
mentora, mas possui um trabalho com brilho, consistência e alma próprias. É
analista didata e supervisora no Centro Psicanalítico da Califórnia e na Sociedade
para Estudos Psicanalíticos de Los Angeles.

No trabalho com as dores mentais, a continência e a disponibilidade


psíquicas são sempre testadas e solicitadas. Mesmo que um paciente esteja
movido por genuíno desejo consciente de resolver seus problemas e que
encontre um analista disposto a trabalhar no caso, há várias dificuldades. Freud já
havia descrito os fenômenos das resistências e da transferência como
característicos e já havia ressaltado que tanto eram fundamentais para o
processo, quanto podiam criar obstáculos, e que o manejo destes seria talvez a
alma da tarefa analítica. Preocupou-se em compreender o mais profundamente
possível o método que criara e submetê-lo ao mais completo escrutínio de que
sua mente genial fosse capaz. Não se furtou a mostrar, além das vantagens e de
suas inovações, as imensas dificuldades do ofício que criara.
14

Melanie Klein (1982), ao estudar a identificação projetiva, abriu um campo


prolífico para a compreensão de dificuldades psíquicas que eram de natureza
diferente da repressão. A identificação projetiva permitia compreender fenômenos
mentais com tremendos efeitos sobre a vida emocional e sobre a conduta de um
indivíduo. As fantasias veiculadas dessa forma podem atribuir algo a um objeto ou
adquirir algo dele, e envolvem não apenas livrar-se de aspectos mentais
indesejados, mas também entrar (em fantasia) na mente de outros para obter
aspectos de seu psiquismo. A partir de um sólido trabalho, e do desenvolvimento
destas ideias, chegou a outros conceitos, dentre os quais o das posições
esquizoparanoide e depressiva.

Joan Riviere (SPILLIUS; MILTON; GARVEY; COUVE; STEINER, 2011, p.


198) descreveu sistemas de defesas para evitar o contato com angústias
depressivas. Rosenfeld (1988, p. 198) por sua vez, descreveu uma organização
de defesas a que chamou mafia-like, ou gangue, que podia dominar o psiquismo
e, mesmo que o paciente quisesse mudar e superar seus problemas tornava a
tarefa dificílima.

John Steiner, partindo principalmente das contribuições dos autores


anteriores, realizou com critério um minucioso trabalho apoiado em atividades
clínicas, descrevendo que as organizações patológicas permitem criar um tipo de
“clima” psíquico, semelhante a uma posição, que ele nomeou como refúgio
psíquico (1981, 1991, 1993, 1994, 2011). Steiner fundamenta-se nas descrições
de Klein das posições esquizoparanoide e depressiva, para desenvolver o
conceito. A organização faz com que mesmo partes saudáveis do Self se
submetam a ela.

Outro vértice que contribui para a discussão presente é o apontado por


Tustin. A seu ver algumas crianças analisadas por Klein como sendo
esquizofrênicas tinham um funcionamento defensivo muito diferente, mas também
fortemente impeditivo de seu desenvolvimento, e bastante enraizado. Esse lhe
pareceu ser consequente a mecanismos que não são organizados pelo ego na
acepção a que estamos acostumados a pensar sobre ele.

O objetivo deste trabalho é o estudo de alguns tipos de sistemas


defensivos, com ênfase especial às organizações patológicas da personalidade e
às barreiras autistas. Ele parte de alguns conceitos kleinianos, mas tenta
15

considerar a necessidade daquilo que Bion trouxe como capacidade negativa1,


que supõe o abster-se de qualquer saturação de conhecimento e alívio rápido
para qualquer questão (BLÉANDONU, 1993).

Em 1981, Steiner introduz o termo organizações patológicas, no trabalho


“Perverse relationships between parts of the self”2, (Relações perversas entre partes
do self). A partir daí, desenvolve uma linha de pesquisas que o conduz a postular
uma situação em que angústias das posições esquizoparanoide e depressiva são
evitadas, e em que se estabelece algo como um equilíbrio entre elas. O autor
demonstra que mesmo quando um tratamento parece caminhar razoavelmente bem,
se esta situação se fizer presente, isso indicará um sistema defensivo muito
complexo, que pode comprometer profundamente o desenvolvimento do trabalho.
Defesas são ferramentas necessárias, mas:

Defesas são paradoxais por serem um aspecto essencial da atividade


psicológica do ser humano, e poderem promover o desenvolvimento ou
impedi-lo. Defesas podem começar como uma proteção para o ego, mas
se não for possível renunciar a elas, poderão interferir num
desenvolvimento saudável. Por exemplo, na teoria Kleiniana da posição
esquizoparanoide, a aquisição da possibilidade de divisão binária do self
e do objeto, em bom e mau protege o ego frágil e imaturo e é um pré-
requisito para que ele se organize e desenvolva-se de forma saudável.
Entretanto, se tal divisão for rigidamente mantida e houver nisto
uma defesa contra o conhecimento da realidade, a divisão será
3
destrutiva para o desenvolvimento (Tradução livre).
Defences are paradoxical in that they are an essential aspect of human
psychological activity; they can foster development or they can hinder it.
Defences may start off by providing protection for the ego, but if never
given up they can interfere with healthy development. For example, in
Klein´s theory of the paranoid-schizoid position‘ paranoid-schizoid’
position, the achievement of binary splitting of the self and object into
“good” and “bad” protects the fragile immature ego and is a prerequisite
for ego organization and healthy development. However, if splitting is
rigidly retained and knowledge of reality defended against, splitting is
destructive of development. (SPILLIUS; MILTON; GARVEY; COUVE;
STEINER, 2011, p. 305).

1
Bion tomou de John Keats a acepção do termo. Numa carta a seus irmãos, Keats diz que “At
once it struck me, what quality went to form a Man of Achievement, especially in literature, and
which Shakespeare possessed so enormously- I mean Negative Capability, that is when man is
capable of being in uncertainties. Mysteries, doubts, without any irritable reaching after fact or
reason.” Certa vez isto me chamou atenção, qual qualidade servia para formar um homem de
alcance, especialmente na literatura, e que Shakespeare possuía tão enormemente: a
capacidade negativa que é quando o homem é capaz de existir em incertezas, mistérios e
dúvidas sem qualquer irritada busca por fato ou razão.
2
Este trabalho encontra-se revisado e algo modificado e publicado sob a denominação: Relações
perversas nas organizações patológicas. In: ______. Refúgios psíquicos. Rio de Janeiro: Imago
Ed., 1997. Cap. 9, p. 123, e nos originais de Psychic retreats, de 1991.
3
Grifos nossos.
16

Podemos observar que defesas são úteis, fazem parte naturalmente do


desenvolvimento humano, mas podem contribuir para a patologia se usadas de
forma rígida, repetitiva e se delas não se puder abrir mão diante da necessidade
de mudanças e de novas adaptações em favor do desenvolvimento. É nesta
acepção que Steiner descreve os refúgios psíquicos, estados em que um paciente
está imerso, em maior ou em menor grau, sustentado por sistemas defensivos
complexos, arraigados, que não permitem crescimento mental. Em alguns casos,
ele observou que o paciente procurava a análise para revitalizar o sistema
defensivo, ou para, através do tratamento, ganhar condições para organizar outro,
sem que o analista percebesse, ou mesmo assim.

Steiner destacou que os refúgios poderiam ser representados de várias


maneiras, e que uma figurabilidade era um aspecto importante deles. Ele diz:

A visão que o paciente tem do refúgio reflete-se nas descrições que


fornece, e também nas fantasias inconscientes reveladas em sonhos,
recordações e relatos da vida diária, que proporcionam uma imagem
pictórica ou dramatizada de como o refúgio é experimentado
inconscientemente. Tipicamente, ele aparece como uma casa, caverna,
fortaleza, ilha deserta ou local semelhante, vistos como área de relativa
segurança. Alternativamente, ele pode tomar uma forma interpessoal,
em geral como uma organização de objetos ou objetos parciais que se
propõe a oferecer segurança. Ele pode ser representado como um
estabelecimento comercial, um internato, uma seita religiosa, um
governo totalitário ou uma gangue de mafiosos. Frequentemente ficam
evidentes elementos tirânicos e perversos, na descrição, mas algumas
vezes a organização é idealizada e admirada. (STEINER, 1997, p. 18).

Steiner ressalta que a organização tem maneiras típicas de se mostrar,


através de representações que aparecem em sonhos, ou em relatos durante a
análise, como casas, fortalezas e também nas relações interpessoais. Se a
organização é parte importante do mundo interno do paciente, ela encontrará
formas de ser representada, mesmo que sua natureza real se mantenha oculta.

Nos refúgios não existe a capacidade negativa. Suportar mistérios e/ou


dúvidas é parte da elaboração das posições esquizoparanóide e depressiva, e só
se pode evoluir nessas posições a contento, se não se buscarem saídas de puro
(e rápido) alívio e for possível vivenciar o processo.

Como os refúgios psíquicos remetem às organizações patológicas da


personalidade, e uma das descrições seminais destas organizações foi realizada
17

por Rosenfeld, nos deteremos em seus trabalhos. Mas várias contribuições, por
exemplo, as de Meltzer, Tustin e Mitrani também respaldam a tarefa.

Em contraposição às organizações patológicas, e como mais um recurso


para evidenciá-las, recorremos às palavras de Winnicott para descrever uma
pessoa saudável:

Se partirmos do princípio de que se alcançou um grau razoável em


termos de capacidade instintiva, veremos então novas tarefas para a
pessoa relativamente saudável. Existe, por exemplo, a relação que ele
ou ela mantém com a sociedade - uma extensão da família -. Digamos
que um homem ou uma mulher saudáveis sejam capazes de alcançar
uma certa identificação com a sociedade sem perder muito de seus
impulsos individuais ou pessoais. É claro que deve existir alguma
perda, no sentido de controlar o impulso, mas uma identificação
extremada com a sociedade acompanhada de perda do self, e da
importância do self, não é normal de modo algum.
Se fica claro que não nos satisfazemos coma ideia de saúde como uma
simples ausência de doença psiconeurótica – ou seja, de distúrbios
relativos à progressão das posições do id em direção à genitalidade
plena e à organização de defesas relativas à ansiedade e relações
interpessoais, - podemos dizer que, em tal contexto a saúde não é fácil.
(WINNICOTT, 1999, p. 10).

De forma cristalina, apreende-se que não se é sadio só por ter algum grau
de desenvolvimento e que nem toda organização defensiva é saudável, por
exemplo, uma identificação defensiva intensa com o grupo social pode significar
uma perda insalubre da individualidade. Vê-se que a vida de relação traz a
necessidade de acolher a diversidade do mundo e dos seres humanos, a
tolerância ao diferente e ao frustrante. Requer também a aceitação de mudanças
e a capacidade para adaptar-se e transformar-se, além do estabelecimento de
relações reais consigo mesmo e com os outros. Winnicott expõe o quanto de
esforço individual é exigido para uma pessoa ser e manter-se saudável, pois ela
terá que vivenciar o ônus e o bônus de ser o que é.

Talvez em pequenos momentos seja possível emergir das profundezas do


oceano interior e fazer algum contato; lembremos Joseph que denominou estes
momentos de shifts4, em que mudanças de atitudes mentais muito sutis ocorrem.
Esse contato, ainda que efêmero, poderá servir de continente e base para outros

4
JOSEPH, B. Equilíbrio psíquico e mudança psíquica. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1992. O termo é
usado para retratar mudanças muito delicadas, tão sutis, que podem ser quase imperceptíveis, e
que podem não se estabilizar.
18

contatos, que, a partir dali, possam surgir, numa sequência que, mesmo tímida,
poderá ser essencial.

Alguns tratamentos podem criar, sem intenção, uma moldura propícia para
que refúgios ou outras organizações defensivas patológicas se mantenham. O
paciente pode ser visto de forma empobrecida, apenas como vítima, e não ser
percebido ou considerado como um agente terapêutico ou antiterapêutico da
maior importância para si mesmo, e, ainda, poderá estar no que Steiner (1994,
1997, 2011) mostra - como um conluio não inocente com a organização
patológica dentro de sua personalidade:

Vejamos o que Steiner diz da forma pela qual a organização se apresenta:

A organização pode apresentar-se como um objeto bom que protege o


indivíduo de ataques destrutivos, mas na verdade, sua estrutura é
composta de elementos bons e maus, que se originaram tanto do self
quanto dos objetos para dentro dos quais foram projetados. Esses
elementos são usados como material para a construção da organização
extremamente complexa resultante. Em minha opinião o self
dependente, que é dominado pela organização, pode ser complexo
também, e não uma vítima tão inocente como pareceria em
princípio. (STEINER, 1997, p. 23). Grifos nossos.

A organização mistura aspectos bons e maus tanto do self quanto de


objetos, mimetizando um objeto confiável, mas essa mistura cumpre a função de
disfarçar a destrutividade. A extrema complexidade da estrutura resultante fica
óbvia. Significativa é também a colocação de que o self dependente, que é
dominado pela organização, é igualmente complexo e não a vítima inocente que a
princípio parece ser.

Tentamos ter em mente a importância da capacidade negativa, e não


saturar com respostas precoces a presente pesquisa. O material teórico trouxe
enriquecimento e desdobramentos férteis, e ao invés de saturação, muitos
desafios para os quais ainda se requer mais estudo.

O material clínico que ilustra as questões da pesquisa remete tanto às


organizações patológicas, quanto às defesas autistas. Por causa dessa mistura,
optamos por falar sobre ideias de Tustin e Mitrani antes da colocação das
organizações patológicas propriamente ditas. Essas autoras trabalham a partir de
fenômenos muito primitivos e iniciais, quando o psiquismo parece estar em status
nascendi, se tal nascer for tornado possível.
19

Examinamos as organizações patológicas descritas por Rosenfeld, com a


idealização de aspectos destrutivos do narcisismo e, a seguir, a estrutura
organizada que ele denominou gangue.

Para apoiar o estudo do narcisismo, valemo-nos das compreensões de


Joan Riviere, pois suas postulações permanecem fundamentais até hoje, como
também seus aportes ao estudo de sistemas defensivos complexos.

Faz-se breve explicitação dos conceitos kleinianos das posições


esquizoparanoide e depressiva. Outros conceitos básicos são comentados ao
longo do texto, como o splitting e a fragmentação, bem como sobre as áreas
neuróticas e psicóticas da personalidade. Um referencial bioniano e certos
conceitos pertinentes também são utilizados, uma vez que fundamentam muitos
dos trabalhos dos autores aqui apresentados.

O texto obedece a uma organização em capítulos, que descrevemos


brevemente nesse momento para auxiliar seu acompanhamento e destacar
alguns pontos fundamentais.

O capítulo 3 “Um olhar para a clínica: Ondas nunca voltam?” descreve o


início do tratamento de um paciente, cuja voz era dificílima de ser ouvida, e
perdia-se como ondas. A música Ripples é usada como ponto de partida e
permite fazer associações com fenômenos psíquicos que levam ao estudo de
conceitos descritos nos capítulos seguintes.

O capítulo 4 possui quatro subdivisões. O item 4.1 traz conceitos de Tustin


e Mitrani e define o que seriam objetos autísticos e pseudorrelações de objeto.
Expõe também o tipo de retraimento autístico, e como este pode ficar encoberto e
ser mantido, mesmo que outras áreas da personalidade se desenvolvam.

O item 4.2 enfoca o narcisismo em sua vertente destrutiva, da forma como


foi descrita por Rosenfeld, e que lhe deu ensejo a investir no estudo de
sistemas defensivos complexos, que podiam tornar o paciente viciado e
aprisionado neles, em troca de contar com sua proteção. Daí chamar tais
sistemas de máfia ou gangue.

O item 4.3 mergulha na proposta de Steiner que levanta o fato de ser


possível fugir e evitar a elaboração das ansiedades das posições
esquizoparanoide e depressiva, e manter-se numa espécie de equilíbrio entre
20

elas. Este seria o refúgio, em que apesar da aparência de estabilidade, há vários


problemas, além do fato de não ser possível nenhum crescimento. A questão de
ocorrer um acordo perverso entre partes da personalidade para manter o status
quo, também é discutida, bem como a questão da continência verdadeira em
contraposição à falsa.

O item 4.4 esclarece o que seriam claustros, conceito proposto por Meltzer
para designar uma projeção para dentro de objetos parciais do mundo interno,
num momento de formação de identidade, o que faz com que esta fique
comprometida com tais objetos, trazendo várias implicações patológicas.

Depois deste percurso teórico, retoma-se a abordagem de situações


clínicas no capítulo 5, que possui quatro subdivisões. Nelas são cotejados
aspectos teóricos em conexão e diálogo com as diferentes situações clínicas. No
item seis, trazemos e fazemos comparações, considerações e reflexões na
tentativa de compreender, aprender e, aproximar-se de uma síntese, e para isso
aproximamo-nos de conceitos como vias paralelas, o Infinito geômetra, busca da
verdade, advindos da leitura de Grotstein. A pesquisa suscitou vários
questionamentos e o desejo de aprofundar o tema buscando mais elementos em
outras situações clínicas, e/ou desdobrando mais as já abordadas. Outros
conteúdos teóricos encontrados em Winnicott, Grotstein, Fairbairn e Balint seriam
boas escolhas para um aprofundamento e incremento dos conceitos e ideias. Mas
por hora, pensamos serem válidas as contribuições que passamos a mostrar.
21

3 EXPERIÊNCIAS CLÍNICAS: ONDAS NUNCA VOLTAM?


APROXIMAÇÃO PARA ACOLHER AS FORMAS SONORAS E
AS FORMAS AFETIVAS

Sail away, away


Ripples never come back
Gone to the other side
Sail away, away
The face that launched a thousand ships
Is sinking fast, that happens you know
The water gets below
Seems not very long ago
Navegue, navegue, veleje
Ondulações nunca retornam
vão para outro lado/navegue, navegue...
A face que lançou centenas de navios
está afundando rapidamente, isto acontece, você sabe/
As águas ficam mais fundas
parece nem ter sido há muito tempo atrás...

Estes versos foram extraídos de uma canção de um grupo de rock,


chamado Genesis5. A música “Ripples” é de autoria de Tony Banks e Mike
Rutherford, do álbum A Trick of the Tail, e o principal vocalista da banda, na
época (anos 70), era Phil Collins. Os comentários sobre a música não dizem
respeito a seu valor artístico, mas ao fato de que sua melodia e letra contribuem
para pensar o material clínico. A letra expõe e permite associações do tipo:
navegar, estar perdido e perdendo coisas que, de tão sutis, podem beirar o
inapreensível. Embora de estilo simples, sem sofisticação, a letra aborda uma
questão importante: é possível “lançar muitos barcos”, fazer enormes esforços e
afundar. A canção afirma, falando diretamente ao interlocutor, que isso é algo que
já se sabe: as dificuldades, as coisas que não voltam, as águas que ficam mais
fundas. Alude ao fato de que a experiência da perda está sempre por perto. Faz-
nos pensar que navegar, embora seja coisa conhecida, é também uma
experiência sujeita a transformações e complexidades insuspeitadas. Lembrei-me
dessa música apenas mais recentemente, em 2011, mas sua presença, aliada
aos versos de Fernando Pessoa em Mar Português, serviu de continente para eu
que pudesse continuar escrevendo sobre o caso do qual quase havia desistido.

5
A letra integral se encontra em Anexos.
22

A melodia tem um que de tristeza, é envolvente e suave, com tons que


ondulam e parecem convidar a uma entrega. Se essa entrega for feita, seguindo-
se também a letra, um mergulho em algo fluído ocorrerá sem data para retorno.
Há um ir para outro lado, deixar-se, entrar numa frequência abrangente, que
preenche o espaço e, sem que percebamos como, isso tudo o transforma. Os
líquidos têm a propriedade de mudar o modo como um espaço está (de seco para
molhado), ao mesmo tempo em que podem se acomodar a ele, ou dele escapar.
Um líquido pode ligar (provocando uma reação química) ou aderir a algo, pode
tornar-se sólido, escorrer, esvair-se, gaseificar-se. Remete-nos a coisas das quais
conhecemos uma forma, mas não a que forma chegarão. As coisas que podem
ser vistas e sentidas em suas ondulações ou seus tsunamis.

A letra convida a “ir para longe”, no balanço de ondulações que nunca


voltam, criando uma imagem de algo pequeno e constante, que leva a algo maior
e incerto. Sugere simultaneamente um balanço acolhedor lembrando a
continência materna e o perigo de naufrágio. A mensagem revela a duplicidade de
um objeto que acolhe, mas pode levar à destruição. Também parece mostrar
que não podemos só ser contidos, ainda que o mar seja uma boa metáfora
para um continente “infinito”, mas que temos de ter uma capacidade própria
para conter, ou afundaremos.

Em Mar Português, Pessoa traz as lágrimas como um ingrediente de peso


para a salinidade do mar, como se um elemento tão pequeno e delicado estivesse
ao lado e fosse parte fundamental de algo grande e rude, como o oceano.
Sugere à nossa imaginação que a enormidade das perdas e das tristezas são
mares profundos. Convida-nos a pensar nas dores oceânicas que
atravessamos e na necessidade de alargar a “alma” o que remete à continência e
a ter contato com a capacidade negativa. Essa implica em enfrentar perdas,
dispersões, incertezas. Experiências que, no entanto, valem a pena, se a alma
não é pequena, noutra alusão a algo que a meu ver, trata-se da novamente da
capacidade de continência.

O paciente citado na introdução fazia com que houvesse - para mim e para
ele - um clima como o descrito anteriormente. O timbre de sua voz ondulava. Em
alguns momentos era uma alta onda, em outras, suave marola que se perdia indo
longe e atrás da qual eu tentava ir, apenas para me sentir perdida, para não
23

chegar ao lugar onde poderia encontrá-la. Os “navios naufragam”; pode-se sentir,


e era preciso preparar-se.

Da crista de uma onda de vozeirão, podíamos ser arremessados, pois a


voz se transformava, e era impossível ouvir a conclusão de uma frase que
completaria seu sentido. As ondulações-palavras iam literalmente embora, mas
poderiam ir para um encontro, uma perda ou uma retomada, num vaivém. As
palavras e qualquer sentido que elas pudessem ter podiam ir e iam a outro lado,
talvez intangíveis. Um constante conviver com o inatingível, com o que parece
que será encontrado, mas é perdido.

Havia também a sensação de que aquelas conversas me lançavam em


busca de algo - justamente o que era inaudível e poderia ser importante. Por isso,
Mariano pareceu-me um bom nome, pela lembrança de mar, marear, mareando,
maresia, efeitos físico-químicos e emocionais do contato com o mar, com a água,
com as formas ondulantes.

Mariano se esforçava para soltar sua voz. Em meio ao discurso, fazia


exercícios fonoaudiológicos para limpar a garganta. O ritmo era mais ou menos
assim: a voz tentava ser forte, parecia lutar para sair, parecia cansar-se,
enrouquecer, depois voltar a ter alguma força, então sumir, ou quase; mudar o
timbre, e outra vez recomeçar. Sempre era necessária outra tentativa de ouvir e
entender, perder e encontrar, encontrar e perder. Com todas estas dificuldades,
eu conseguia ouvir muito, e também perder muito, e a impressão que eu tinha era
de inundação, trabalho pesado, delicado, como a laboriosa restauração de algo
antigo (recolher restos de naufrágio?).

Mariano procurara fazer análise pelo estado de nervosismo, pelas suas


crises de ansiedade e, principalmente, pela sua dificuldade para falar, que ele não
lembrava exatamente quando havia começado, mas que já fazia muitos anos,
(mais de 15) e surgiu após um acidente grave, no qual houve risco de vida e,
consequentemente, uma demorada e trabalhosa recuperação. Os problemas da
voz pareciam não ter relação com os problemas gerados por ocasião do acidente,
mas a dificuldade na voz ficara como uma sequela, embora não se conseguisse
encontrar nada orgânico que a motivasse. Aí estava um sintoma; teria uma
natureza histérica? Uma somatização, ou algo psicótico? Lembrava algo
psicossomático, mas faltava a lesão física. E mesmo com os tratamentos
24

fonoaudiológicos, as alterações na voz persistiam. O paciente se envergonhava,


sofria muito, sentia-se inseguro e cansado diante daquilo tudo. Nunca fora gago,
nem tivera qualquer problema semelhante na infância.

Ouvir esse paciente era um exercício de persistência e calma diante das


alterações e dos tropeços apresentados por seus discursos. Os fragmentos de
fala que se quedavam inaudíveis ou incompreensíveis preocupavam-me.
Assustava-me a possibilidade de que os fragmentos perdidos ou fora do lugar
pudessem fazer falta inestimável ou iniciar um desabamento em alguma parte de
minha mente ou na dele se não conseguíssemos segurá-los. Como às vezes não
ouvia o fim de frases, lembrava-me das estórias das mil e uma noites, que não
podem acabar, pois seu fim traria a morte.

Devido ao clima comecei a pensar na defesa autista, na impossibilidade de


tolerar qualquer descontinuidade, qualquer finalização ou acabamento e também
algum sentido, pois, se pudéssemos juntar os sons e completar as frases, seria
um momento de terminar, definir, identificar e separar. Esse fato foi abordado em
nossos encontros depois de muita reflexão dentro de mim. Numa ocasião, o
paciente disse gostar de perceber que eu prestava muita atenção no que ele dizia
e que eu devia fazer aquilo porque ele precisava muito. No entanto eu temia que
não conseguisse ir além do que parecia um exercício auditivo, de acolhimento do
caos. Temia que a confusão me colocasse muito distante do que realmente
precisava ser ouvido, além do concreto da balburdia sonora. Mas creio que
Mariano precisava colocar essa situação entre nós, para que fosse digerida.
Temia que ficássemos envolvidos na aderência aos sons, à busca, naquela
espécie de estar ao lado, mas sem sentido ou diferenciação.

A voz ondulante, às vezes sussurro, às vezes gemidos, mantinha-me


colada, ou quase, para conseguir ouvi-lo. Colada visceralmente, pelos ouvidos,
pela tensão do corpo que eu instintivamente aproximava do divã. Era um pouco
semelhante ao atendimento de crianças, em que temos de observar as várias
brincadeiras agitadas e, por vezes, barulhentas, que nos surpreendem a todo o
momento, e participar fisicamente delas. A atenção flutuante não é fácil de ser
estabelecida. Lembravam-me de Bion com a necessidade de suportar afetos,
ideias, coisas na mente para poder gerar pensamentos, mas me perguntava se
chegaríamos a uma situação mental e a realmente aprender a usar a
25

comunicação entre duas mentes. Ou se aquele ritmo era a forma de estar com
ele, de juntar duas mentes (at-one-ment?). Pensava em Meltzer (1997)6, ao dizer
que, no primeiro ano de análise, os progressos que ocorrem são muito menos por
insight e bem mais por sintonia na contratransferência.

A experiência de tentar colar em algo que escorre parecera-me uma


proposta para entender o medo de se perder completamente, de sumir, de tolerar
o desafio e a experiência de perda que eu devia suportar para que ele, mais
tarde, pudesse fazê-lo. Aos poucos, fui pensando e falando com Mariano, que era
importante tentar encontrar suas falas e suas ideias, mesmo que demorássemos
um pouco, afinal talvez ficar um tempo juntos ajudasse a perceber que tínhamos
fôlego e que estávamos vivos. As palavras podiam sumir, mas elas voltariam,
pois, afinal, o que está vivo aparece. Manter os ouvidos e a mente vivos poderia
ser parte fundamental da trilha.

Comentava com ele sobre a situação da criança com o carretel, que some
e volta, à espera da mãe, enquanto aprende a pensar em sua ausência e ter
esperança de seu retorno. Todas essas experiências afetivas decorrentes da
situação sensorial concreta que ali se colocava foram aos poucos sendo
trazidas e verbalizadas em nossos encontros. Sentir-me procurando por ele
como uma etapa inicial do contato construído entre nós pareceu-me, a
princípio, trazer a certeza de que eu o julgava vivo e importante e de que suas
coisas vivas, mesmo que embrionárias, seriam levadas em consideração por
nós, ou ao menos por mim.

Numa das vezes em que coloquei isso a ele, vi-o chorar e relembrar o
acidente do qual viera a “sequela”.

Outro aspecto importante das sessões era o clima grave, pesado, até
sombrio, com a tensão e o embaraço que, às vezes, precedia o pronunciar de
cada palavra e me deixava em suspenso, preocupada, com um misto de vontade
de acolher, entender, medo de ser incapaz e ofender Mariano por não ter sido
capaz. Receio de evidenciar a dificuldade dele, com a minha. Quando tentei

6
MELTZER, D. A evolução das relações objetais. In: TIRELLI, Luisa; SCAPPATICCI, Anne Lise S.
(Orgs.). Bion e a psicanálise infantil: interações entre os indivíduos e nos grupos. Trad. da ed.
brasileira Anne Lise S. Scappaticci. São Paulo: Primavera Editorial, 2011. Publicado
originalmente no British Journal of Psychoterapy v. 14, n. 1, p. 60-66, Sept. 1997.
26

escrever este caso, vi-me com enorme dificuldade de achar as palavras certas e
se as encontrava parecia que a forma como as encadeava resultava em um texto
confuso, com uma estranha cadência, e gerava caos. Outro “efeito” do contato
com as “ondulações” do caso? A dificuldade de ter que gerar algo mental, tirar as
palavras da simples forma sonora para que tivessem também uma alma?

Aos poucos ia juntando as partes: tinha que ouvir em ondulações, ouvir as


ondulações, aceitar que não voltariam e que iria perdê-las. Que ali estava/havia
algo sendo mostrado por estar perdido. A presença da ausência de alcance para
o status mental, algo que parece ter a tendência para ficar dessa forma, uma
forma autista?

O compartilhar da perda através das lacunas, em vários sentidos, parecia


ser tarefa fundamental, mas a experiência afetiva poderia ser ofuscada pela
invasão dos sons e do problema prático da comunicação. No entanto, tentava
trazer a experiência de algo que se vai, mas deveria ou poderia estar presente,
sem colocar precocemente a experiência emocional da perda, embora ela
estivesse, até certo ponto, implícita. Mas havia algo que precisava ter lugar, o
ritmo de segurança (TUSTIN, 1990), que envolve encontros e perdas, numa dose
suportável, e algo que começasse a indicar essas duas possibilidades, que assim
poderiam ficar disponíveis para pensar. Tal ritmo implica na possibilidade de
colocar juntas duas experiências opostas, como encontro e perda, e mantê-las
suportáveis, sem que uma corresponda ao aniquilamento da outra.
Experiências que, embora antagônicas, podem coexistir e estar próximas, sem
destruir uma à outra.

No entanto, parecia-me que a “perda” não se concluía, era algo ondulante,


cuja presença diluída era invasiva e constante. Íamos falando disso: das idas e
vindas, e que as palavras entre nós podiam servir para várias coisas: algumas
eram palavras-pedaço, outras eram as palavras-som, outras podiam ser palavras-
sonho... Daquelas que ajudam a ir além das coisas e do próprio som.

Algum tempo depois, a imagem de um bebê no útero e, a seguir, a do


parto, pareceram-me um possível elo com a natureza da experiência com meu
paciente. O parto traz ao bebê novo local para viver, mas causa a perda (para
sempre) das ondulações leves do líquido amniótico, do balanço da pulsação
materna tanto da placenta quanto da aorta abdominal. A música do Genesis e o
27

Mar Português retratam ondulações que se perdem, pessoas que se perdem. As


ondulações dentro do útero jamais voltarão após o nascimento, o parto é a última
etapa desse navegar para longe, sem volta. O ritmo ondulante assegura a estadia
no útero enquanto engendra a futura partida. Uma mudança de um continente
para outro, que envolve a necessidade de que o bebê venha a consolidar
gradualmente, uma continência própria, pois não há desenvolvimento só com a
continência externa.

Imagens de um fundo líquido, de coisas molhadas, de algo que se esvai ao


mesmo tempo em que algo chega ou retorna. De algo que cria um ritmo, e de
algo que nos toca como a água que molha e envolve ao entrarmos nela e, de
certa forma altera nosso estado, foram constantes com esse paciente e um pouco
do que eu tentava verbalizar com ele. Estar com pessoas é algo ondulante, há
chegadas e partidas...

Outro fato importante é o da vida trazer sempre um pulsar: abrir e fechar,


um ritmo que se coaduna, nas pessoas que o conseguem, com as oscilações
entre as posições esquizoparanoide e depressiva, ser contido/ter continência, ad
infinitum. Parecia-me que, apesar de ter momentos assim, as oscilações daquele
paciente também provinham de outra fonte e podiam ser de outra natureza.
Talvez Mariano trouxesse várias histórias, refúgios, mares profundos,
naufrágios...
28

4 COMPREENDENDO AS ORGANIZAÇÕES PATOLÓGICAS DA


PERSONALIDADE

4.1 Pseudorrelações-objetais adesivas, cápsulas autistas e a não


instauração do ritmo de segurança

Frances Tustin analisou, dedicada e pacientemente, crianças, jovens e


adultos com defesas ou francamente autistas. Ela observou nesses pacientes
formas peculiares de vivenciar a experiência consigo mesmos e com o mundo.
Postulou que, ao nascer, nem sempre a criança está preparada para a ruptura e
para a mudança que tal evento traz e, por outro lado, algumas crianças parecem
ter sofrido experiências de separação num momento, -seja no interior do útero ou
logo após o nascimento-, em que estavam especialmente sensíveis e incapazes
de suportá-las (TUSTIN, 1990). Tais eventos foram para esses pacientes muito
traumáticos e mobilizaram defesas que se tornaram patológicas. Embora parte
essencial do trabalho de Tustin tenha se desenvolvido com autistas, atendeu
pacientes diversos. Sua percepção e aprofundamento daquilo que designou como
defesas e formas autistas deram-lhe grande sensibilidade e levaram-na a ampliar
a aplicação de suas descobertas. Percebeu que pacientes neuróticos (no sentido
clínico aceito para a palavra), neuróticos mais graves e borderlines podiam
mostrar defesas e funcionamentos mentais que se assemelhavam muito ao tipo
de defesas dos autistas.

Vejamos as palavras de Tustin:

Comecei a ver que um fator significativo na precipitação do autismo


psicogênico é o fato de que a criança experimentou a perda em um
estado tão imaturo de organização psíquica que não foi capaz de
suportar satisfatoriamente o pesar e o luto provocados pela perda. O luto
satisfatório impõe o abandono do objeto perdido e o estabelecimento
deste como um constructo mental. Hanna Segal demonstrou a
importância para a formação de símbolo de se lidar com os sentimentos
de perda (Segal, 1957). A criança autista não foi capaz de lamentar,
porque o mamilo que ela sentia que havia perdido mal alcançara a
condição de objeto; isto foi principalmente experimentado como um
conjunto de sensações. (TUSTIN, 1990, p. 53). Grifos nossos.
29

Tustin propõe que a consciência de separação entre o bebê e sua mãe


é flutuante no início da vida, e é tolerada pelo bebê de forma variável,
dependendo tanto de fatores inerentes à própria criança, quanto a fatores
ambientais. Num ambiente “hostil”, a criança seria muito menos capaz de
suportar a ausência da mãe ou a consciência dessa separação. Tustin menciona
que “o indivíduo emergente começa a sentir - talvez a princípio apenas
momentaneamente - que tem limites corporais distintos. Esses limites corporais
indicam um espaço interior, eles não são apenas bordas a partir das quais uma
superfície é subentendida.” (TUSTIN, 1990).

No indivíduo normal, alguma consciência de separação está presente


desde o nascimento e é suportada, e se alterna com a fusão. Aí também começa
a noção de conteúdo interno, de limite entre bebê e mãe como objetos dotados
(separadamente) de conteúdos próprios. A capacidade para suportar a
consciência flutuante de separação é importante porque permitirá que as noções
de espaço interno/externo, conteúdos internos/externos, e mais tarde a
individuação, sejam desenvolvidas.

A consciência de separação entre bebê e mãe torna-se viável ao bebê


principalmente por dois motivos. O primeiro é que as atividades autoeróticas do
bebê (como a sucção) e as interações físicas e psíquicas com a mãe são muito
intensas e mantêm uma forte associação entre ambos, estar junto e separado
ao mesmo tempo. A segunda é que tudo isso mantém a vivência da separação
num grau ameno e tolerável pelo bebê. Tais estados se alternam, e ela denomina
este vaivém de ritmo de segurança (rhythm of safety, TUSTIN, 1990). Para isso,
a mãe teria que ser bastante responsiva e ter um acolhimento sintônico e
tranquilo para com seu bebê, o que significa que é capaz de vê-lo como um ser
separado, dotado de uma mente própria, mas mesmo assim estar muito unida às
necessidades psíquicas nascentes nele.

Isso lembra o que Bion chama at one ment, “estar como (em) uma só
mente” e que implica na capacidade de fazer ressonância com a mente do outro.
Para a criança, a experiência de estar acolhido na mente materna seria algo que
poderia reparar a dor da cesura, a dor de nascer. A mãe terá de ter um bom
contato e compreensão de sua própria mente e de sua humanidade para se unir à
do bebê, mas permitir graus de separação, e não prejudicar o desenvolvimento
30

mental de seu filho. Ela não deve invadi-lo psiquicamente, nem invalidar seu
psiquismo.

Apesar de muito junto, a mãe deve, de alguma forma, aceitar a diferença,


admirar seu bebê e dar-lhe lugar no mundo e em si mesma, ainda que o
considere seu. Essa seria uma ligação primitiva, mas não regressiva, pois
depende de um refinamento, um modo de estar junto em que não há dissolução
de individualidades (MELTZER, 1995; TUSTIN, 1990). A capacidade para
suportar a separação seria variável em cada bebê, por isso é importante que ela
seja feita de forma suave e que a mãe tenha esta capacidade. Graus diferentes
dessa capacidade trarão diferentes consequências.

Na situação autista, ocorrem vários problemas. Primeiramente, os bebês


autistas seriam muito sensíveis à separação e/ou passaram por separações
inadequadas e de difícil processamento mental. Tais separações ocorreram num
momento em que ainda não podiam ser suportadas e foram, portanto, traumáticas
(TUSTIN, 1990). O bebê, ao encontrar uma mãe pouco responsiva, ou qualquer
outro evento inesperado, teve de suportar um grau de “decepção” ou separação
para ele impossível, significando que o encontro e a acolhida na medida de suas
necessidades não ocorreram. Nessas crianças, uma vivência terrível se instala:
talvez um vazio, uma ruptura, algo como uma perda de inteireza física, um
arrancamento. A criança não encontra recurso mental para lidar com isso. Para
Tustin, a essa situação definitivamente traumática seguem-se as medidas
autistas (como reação específica ao trauma). Essas crianças precisariam
demasiadamente do ritmo de segurança, e não o encontraram.

Cabe lembrar que esses bebês não são capazes de projeção. Eles têm
grande necessidade de sentir a continuidade física com seu objeto, pois não têm
ainda funções mentais minimamente integradas, e dependem,
fundamentalmente, do suporte físico e do acolhimento psíquico materno. Só
mais tarde poderiam abrir caminho para o mental. Mas as reações autistas
divergem do desenvolvimento normal de ligações afetivas e o substituem pelas
defesas e formas autistas.

Problema igualmente grave, e para Tustin não infrequente, é que algumas


mães prolongam exageradamente seu estado indiferenciado com seus bebês,
caso em que estes terão dificuldades para criar uma mente e uma noção de
31

separação tolerável. Para essas mães, a separação não deveria ou não precisaria
existir, e não puderam preparar suavemente seus bebês para ela. Essas mães
criam um estado de ligação fusional com seus bebês, sem se darem conta de
que estão dificultando as coisas, pois a separação é inevitável e o bebê irá
senti-la em algum momento. Quando não é possível, pelas vicissitudes normais
do desenvolvimento ou outro problema qualquer, manter a indiferenciação e a
fusão com a mãe, a perda cai sobre a criança, perda essa aparentemente sem
chance de reparo. Se a situação pudesse ser suportada, a mente individual se
fortaleceria aos poucos.

Nas defesas autistas, as vivências de separação são abafadas, criando


estados em que há uma hipertrofia de contato com sensações físicas
tranquilizadoras, e a tentativa de escapar a todo contato emocional. Isso porque
tal contato ocorreu justamente pela vivência de uma dor de separação, quando tal
dor não podia ser simbolizada, e ficou, por isso, num doloroso nível físico
(TUSTIN, 1990). As sensações físicas agradáveis são uma forma de se opor e de
vedar o contato com essas experiências traumáticas e formam os “objetos” e as
“formas autistas”. Elas ocupam a mente destes bebês e colocam-nos à distância
da separação, prejudicando e talvez os incapacitando para o desenvolvimento de
ligações com objetos reais.

O preenchimento da ausência de contato com uma mãe viva e continente é


feito pelas sensações físicas que as formas e os objetos autistas propiciam. Elas
dão a ilusão de uma fusão com a mãe, uma sensação física, uma superfície na
qual ficam aderidos. Isto é impeditivo do encontro com uma mãe verdadeira. O
crescimento da sensorialidade turva o crescimento de outras capacidades.

Tustin afirma que há uma diferença útil e significativa entre ego e self.
Ela diz:

...As primeiras atividades de ego pareciam surgir, em primeiro lugar, do


sistema neuromental. A princípio o bebê recém-nascido que carece das
experiências do mundo exterior pode apenas reagir em termos de
7
tendências neuromentais inatas que são expressadas através de
atividades auto-sensuais. O ego primário é um ego autosensual. Esta
visão está de acordo com a afirmação de Freud de que “o ego é primeiro
e acima de tudo um ego corporal” (Freud, 1923) No desenvolvimento
normal, a crescente experiência do mundo exterior facilita a maturação e

7
O texto usa esta palavra, e optou-se por manter a grafia original.
32

sofisticação deste ego elementar. Mas a criança autista traumatizada


fecha a porta à experiência do mundo exterior. Assim o desenvolvimento
do ego fica morbidamente fixado a um nível físico agreste, cru de
reações precoces, superconcretizadas e hipertrofiadas. Isto leva ao
senso de haver uma concha vazia intumescida construída das próprias
atividades físicas do indivíduo. Esta é uma barreira às relações com o
mundo exterior.
Os pacientes autistas nos estados encapsulados também carecem de
um senso de self e de identidade individual. Isto porque o senso de self e
de identidade individual depende das relações com as outras pessoas.
As crianças autistas evitam tais relações e deste modo não possuem
senso de self. Portanto vim a perceber que estava errada ao atribuir a
crianças um “falso self” conforme descrito por Winnicott (1960). Também
compreendi que os estados de autismo não são narcisísticos. Isto
porque um senso de self é obviamente um pré-requisito para o
desenvolvimento do narcisismo. Pacientes tipo esquizofrênicos e
crianças negligenciadas desenvolveram relações com pessoas, embora
estas sejam frágeis e perturbadas. Assim pode-se dizer que elas tem um
“falso self” e que são narcisistas. A criança autista psicogênica, e os
pacientes neuróticos em um estado autista, evitam relações humanas.
Portanto, eles são destituídos de um senso de self, e não se pode dizer
que têm um falso self ou que são narcisistas. (TUSTIN, 1990, p. 42).

Tais conclusões contribuem para uma diferenciação importante dos


fenômenos que se pretende investigar ao longo deste trabalho, pois permitem
definir que, além da questão dos pacientes narcísicos e com aspectos psicóticos,
é possível deparar-se com quadros em que há defesas arcaicas, muito estáveis,
que não permitem o desenvolvimento e o progresso da análise, mas são de outra
natureza. Se estas forem confundidas com as organizações patológicas do tipo
descrito por Rosenfeld e Steiner, podem permanecer inacessíveis e levar a um
impasse, ao esvaziamento ou estancamento do processo de análise.

As formas autistas não correspondem à ideia de forma que pertence ao


senso comum. São formas produzidas através da estimulação sensorial que
despertam em seu portador, e criadas a partir do uso que ele faz de partes de seu
corpo, de seus fenômenos fisiológicos, como secreções, gases, posições de
partes do corpo, e também pela sensação de contatos físicos com superfícies de
objetos e ou qualquer tipo de evocação sensorial que um objeto possa provocar.
Essas formas, como já dito, ocluem qualquer contato com a percepção de
descontinuidade e diferenciação entre o sujeito e o mundo. A vivência desse tipo
de sensorialidade preenche o mundo mental de seu portador, levando, no caso de
um autista grave, a severo prejuízo e/ou impedimento à instalação de elementos
mentais de vários tipos, como sentimentos e pensamentos. Tustin (1990) e Mitrani
33

(2007) fundamentam a existência de áreas, ou cápsulas de autismo (como prefere


dizer Tustin), em muitos indivíduos. Esta perspectiva é considerada ao longo de
nossa discussões clínicas.

Tustin diz:

...O funcionamento da criança autista é muito diferente. Ela está em


mundo dominado pelas sensações no qual ela procura mais as
sensações do que os objetos como tais. Ela não responde às pessoas
como pessoas, mas principalmente em termos das sensações que elas
provocam. Ela está em um estado primitivo de busca de
correspondência, em termos de sensação, do mundo exterior que
coincidam com seus padrões inatos. Se ela se torna consciente da falta
de ajustamento a suas tendências inatas de busca de padrão, ela
bloqueia isto a fim de se sentir contínua com o mundo exterior e não
separada dele. (TUSTIN, 1990, p. 49).

Clareando um pouco mais as formas autistas, menciona-se: “não são


compartilháveis com outras pessoas”, e são “tipos aberrantes de experiências
eróticas padronizantes”, sendo “ineficazes no sentido de um funcionamento
efetivo” (TUSTIN, 1990). As formas “dariam vida a uma mãe sempre presente” e
“infinitamente controlável” (Id. Ibid.). O paciente autista ou com uma cápsula de
autismo teria desistido de estabelecer contato humano por senti-lo como
insuportável e perigoso. Teria criado as formas para se satisfazer, de modo que
não tenha o contato com a dolorosa separação, que nem é entendida como tal,
mas como esvaimento, arrancamento ou queda “num buraco negro com uma
picada ruim”, como relatou um dos pacientes de Tustin quando pode falar sobre o
que sentia. As formas povoam o mundo do autista e fazem com que ele não se
preocupe nem seja atingido por dores humanas. Ou não o perceba.

As formas não são compartilháveis, pois não têm concordância simbólica, e


só interessam a seu autor. Não criam representações, apenas produzem
sensorialidade e estão presas a isso. Por esse motivo, são aberrantes e
erotizantes. Apesar da aparente rigidez e estabilidade dessas formas, haverá
falhas e momentos de contato com a não continuidade, e mesmo algum tipo de
emoção, fazendo com que esses pacientes se desesperem, vivenciando terrores
de esvaírem-se ou derramarem-se ou caírem eternamente.
34

Judith Mitrani aponta uma questão fundamental: na dificuldade de


estabelecer relações objetais, podem se desenvolver pseudorrelações-objetais de
um tipo adesivo. Ela não vê esse estado como sadio, nem normal e diferencia-o
do que foi descrito por Ogden como posição autista contígua.8 Chamamos
atenção para as ideias de Mitrani:

Eu delineei o desenvolvimento de pseudorrelações objetais adesivas que


se petrificam (Mitrani, 1994ª e 1995ª) como uma aberração assimbólica
do desenvolvimento normal, enraizadas em experiências traumáticas de
extrema privação ocorrendo no útero e/ou na tenra infância. Esta forma
de “ser” interrompe prematuramente o desenvolvimento necessário e a
confiança num ritmo de segurança (Tustin, 1986b) entre mãe e criança,
resultando num impedimento da emergência de um estado elementar de
subjetividade e do gradual desenvolvimento de uma verdadeira
objetividade.
Tal modo de pseudorrelações pode existir de uma maneira similar à
descrita por Grotstein como uma via dupla, ao lado de relações normais
e relações narcísicas. Entretanto, as pseudorrelações objetais adesivas
em formas encapsuladas, endurecidas e desafiadoras quase sempre são
patologicamente defensivas e estáticas. (Tradução livre).
I have outlined the development of an enduring mode of adhesive
pseudo-object-relations (Mitrani 1994a and 1995a), as an asymbolic
aberration of normal development, rooted in traumatic experiences of
extreme privation occurring in utero and/or in early infancy. This way of
“being” prematurely interrupts the necessary development of and trust in
a “rhythm of safety” (Tustin, 1986b) between mother and infant, resulting
in a crippling of the emerging elemental state of subjectivity and the
gradual development of true objectivity
Such a mode of pseudo-relating may exist, on something similar to what
Grotstein referred to as a “dual track” (1986), alongside normal and
narcissistic object relations. However, in its encapsulated, enduring and
rigidified form, adhesive pseudo-object-relations are nearly always
pathologically defensive and static. (MITRANI, 2007 p. 37). Grifos da
autora.

Nesse trecho, Mitrani declara que, em alguns pacientes, há um rígido e


persistente desenvolvimento de um tipo de pseudorrelação objetal adesiva. Ela
escolhe o termo pseudo para frisar o arremedo de relação e a ausência de
relação verdadeira, e com isso, a ausência de “metabolização” psíquica, portanto
de possibilidade simbólica. A aparência de relação funda-se numa aderência ao
objeto enquanto superfície, não como objeto, e este último não é buscado como
algo que tenha conteúdo. Afirma tratar-se de um estado aberrante do

8
Para Ogden, a posição autista contígua implica em uma dialética pré-simbólica entre
continuidade e ruptura, entre fronteira e o at one ment, isto é, estar em uníssono, ou em
entrosamento com outra mente, com um objeto subjetivo. Não faz parte do escopo desta
pesquisa abordar este viés.
35

desenvolvimento onde não há simbolização, e tal estado pode persistir como uma
anomalia assimbólica na mente de um sujeito.

Mitrani enfatiza a qualidade aberrante que resulta da experiência


traumática, ocorrendo numa fase onde há extrema fragilidade, e acompanha
Tustin ao sugerir uma forma de evitar a separação, mas não exatamente com
uma “forma autista” (TUSTIN, 1990), e cunha o termo pseudorrelação objetal
adesiva (a qual é assimbólica).

Continuando, vemos que essa forma de “ser” interrompe prematuramente o


desenvolvimento da necessária confiança em um ritmo de segurança entre mãe e
criança. Isso resulta numa incapacidade para que possam emergir de dentro da
criança os inícios dos estados de subjetividade e também o gradual
desenvolvimento de uma verdadeira objetividade, provocando o
comprometimento da capacidade de autopercepção e de percepção do mundo e
do outro. O uso do termo aberração é útil por evidenciar a anormalidade grave em
que consiste o não desenvolvimento dos processos de subjetivação, simbolização
e diferenciação. Talvez essas aberrações não sejam maiores do que as equações
simbólicas9, mas são tão problemáticas quanto.

A autora segue dizendo que essas pseudorrelações podem coexistir com


outras formas de relações normais ou narcísicas, como em uma estrada onde há
várias pistas para o tráfego numa mesma direção (ao modo de uma Rodovia
Bandeirantes ou uma highway) e carros diferentes trafegam paralelamente10.
Comenta que Freud já havia percebido que aspectos primitivos do psiquismo são
comumente preservados e convivem ao lado de versões mais evoluídas da
mesma questão. Alega para exemplificar que - como Tustin percebera- alguma

9
Equação simbólica é termo cunhado por Hanna Segal para designar que, ao invés de símbolo
verdadeiro, que representa ou remete à coisa simbolizada, na equação simbólica a
representação é vista e vivida como sendo o objeto que deveria apenas representar.
10
Esta ideia baseia-se num artigo de James Grotstein, chamado A Dual Track Theorem, publicado
pela American Psychological Association em que ele faz uma discussão sobre neurociência e
psicanálise e vê os seres humanos como contendo visões separadas de si mesmos e do
universo, que incluem discrepâncias, paradoxos e convivem entre si paralelamente. Aponta o
fato de que o sistema nervoso tem vias múltiplas, diferentes e simultâneas para efetuar tarefas, o
que, talvez, seja característica evolutiva da espécie, exemplificando com funções que podem ser
duplicadas e simultâneas nos hemisférios cerebrais, embora geralmente o resultado possa
evidenciar a preponderância de alguma via num dado momento, o que não significa que sempre
ocorra assim. Grotstein também menciona duplas vias em seu livro Quem é o sonhador que
sonha o sonho?
36

autossensualidade pré-simbólica é normal e convive com a capacidade simbólica,


sem impedi-la de evoluir, o que ajuda a confirmar as possibilidades de paralelo
entre capacidades e aspectos mentais.

Várias características marcam as pseudorrelações objetais adesivas, e são


mencionadas a seguir.

1 Não há percepção de que o objeto é humano e tem uma existência


separada do sujeito.

2 O objeto é usado e procurado por proporcionar sensações reconfortantes


ao sujeito.

3 As ansiedades que nas relações objetais são paranoides e depressivas,


são nas pseudorrelações objetais muito elementares, do tipo: cair, entrar
no nada, desmanchar, sem esperança de recuperação. Não haveria
qualquer possibilidade de progresso para além da situação adesiva.

4 Nas situações em pauta, as experiências não são mentalizadas:


”unmentalized experience”.

5 A autossensualidade é usada para bloquear as dores e outras sensações


normais.

6 Mitrani usa a expressão “equações adesivas” para dizer da intensidade


com que as sensações são usadas para equivaler a toda e qualquer
emoção e para vedar a própria noção de ser um self e de estar vivo.
Viver se resume a estar aderido a algo que dá boas sensações.

7 O ego permanece passivamente não integrado.

8 O desenvolvimento da capacidade para pensar fica prejudicado, embora


possa existir noutras áreas do self.

9 As reações à separação não são normais, sendo de indiferença ou


colapso.

10 A pessoa que opera muito com as pseudorrelações-objetais adesivas


agarra-se a objetos, situações e rituais de forma tenaz, mesmo quando
se tornaram inúteis ou perigosos.
37

Mitrani usa o termo onipotência ao falar das pseudorrelações-objetais. Ela


dá a impressão de que as funções psíquicas mais evoluídas operam, mesmo sem
mudanças de áreas bem primitivas e que ao invés de mudá-las, ajudam a mantê-
las. Uma forma paralela, que até pode dar sustentação às defesas autistas. Ou
seja, parece que as funções psíquicas operam de forma conivente com a
autossensualidade, pois Mitrani diz:

Quando a onipotência falha nas pseudorrelações objetais adesivas, essa


falha é sentida como colapso catastrófico ou como uma apavorante
sensação de ser rasgado e arremessado para fora. (Tradução livre).
When omnipotence fails in the adhesive pseudo-object-relationship, this
failure is felt as a totally catastrophic collapse or as a dreadful sensation
of being ripped and thrown away (MITRANI, 2007).

Mitrani também usa o termo adhesive equation, que parece denotar


também um mecanismo psíquico posto em ação para dar suporte à
autossensualidade. Seria um mecanismo que, de certa forma, evita a evolução
para funções psíquicas. Lembra o termo “equação simbólica”, que foi cunhado por
Segal e retrata um mecanismo primitivo, e capaz de ser usado rigidamente.
Talvez por esse motivo Mitrani fale de desenvolvimentos de aberrações
assimbólicas, embora equação possa implicar alguma evolução nas funções
psíquicas. No entanto Mitrani quer ressaltar que algo pré- ou protopsíquico ocupa
o lugar e a função de algo psíquico.

Pode-se ver aqui outra possível aplicação da ideia do postulado das vias
paralelas de Grotstein11, que desde Freud já tinha seus começos, pelo
paralelismo consciente/inconsciente. Antigos mecanismos não são abandonados
e seguem juntos e concomitantemente a outros, diferentes ou mais evoluídos.

Completando as ideias de Mitrani, temos que a falha da onipotência das


relações adesivas é sentida como um colapso totalmente catatrófico, ou como
uma sensação apavorante de ter sido atirado para fora. Isso permite até certo
ponto lembrar os partos prematuros ou os descolamentos de placenta que podem
até matar o bebê e que sugerem sensações físicas extremas.

11
Grotstein desenvolve a ideia de vias paralelas até uma ponto de admitir que enquanto pensa, a
mente pode se auto-observar, paralelamente a fazer algo, ou pensar outras coisas, o que será
mencionado adiante.
38

Podemos, para finalizar, ressaltar um possível funcionamento psíquico


mais evoluído, cujas capacidades sejam canalizadas para sustentar a situação
autista, pois com terrores tão elementares, defender-se deles parece imperativo
ou a melhor (única?) saída.

4.2 Narcisismo destrutivo e organizações mafia-like; as gangues que


oferecem proteção e mantém o ego refém

Herbert Rosenfeld (1968, 1988) realizou uma investigação fundamental


sobre personalidades com características narcisistas. Os ângulos abordados por
ele são uma das bases para o desenvolvimento do conceito de Steiner sobre
refúgios psíquicos e também podem ser pensados como um dos alicerces mais
consistentes para a compreensão das organizações patológicas da
personalidade. Suas ideias sobre relações objetais narcísicas e sobre
organizações defensivas estáveis são centrais no desenvolvimento do trabalho de
Steiner. A introdução do conceito de narcisismo remonta a Freud (191012). Há
elementos interessantes em seu estudo sobre Leonardo da Vince. Freud
descreveu como o artista se relacionava com seus alunos, como se fossem ele
próprio, e deles cuidava como fora ou gostaria de ter sido cuidado e amado por
sua mãe. Portanto, embora se servindo de um objeto para amar, era a si
mesmo que Leonardo amava, pois o objeto era depositário do peso de sua
transferência e identificação.

Em Sobre o Narcisismo: uma introdução,13 Freud menciona que o primeiro


tipo de escolha objetal de uma criança recai sobre as pessoas que são sua fonte
de alimento, cuidados e proteção e chama esse tipo de ligação de anaclítica. Diz,
porém, que há outro tipo de amor em conformidade com outro tipo de relação: o
narcisista. Os aspectos narcísicos descritos por Freud ajudam na compreensão
dos fenômenos envolvendo questões que Rosenfeld mostrará. Pode-se dizer que
Rosenfeld é responsável por enriquecer o estudo do narcisismo, pois ele

12
Leonardo da Vince e uma lembrança de sua infancia. (1910). In: OBRAS completas. Edição
Standard. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1974. v. XI.
13
Narcisismo, uma introdução. (1914). In: OBRAS completas, cit., v. XIV.
39

descreve vertentes patológicas deste, que fornecem ferramentas valiosas para o


trabalho clínico.

Freud (1914) destaca o narcisismo como componente importante e


inevitável do ser humano, mas não o isenta de problemas. Pela força do
narcisismo, o indivíduo está sujeito a escolher para amar objetos que tenham
ressonância com seu próprio eu. Apesar de crer que as escolhas narcísicas são
comuns, principalmente nas mulheres, Freud coloca que as relações narcísicas
poderiam levar a complicações nas relações objetais, tanto que cita as perversões
sexuais como exemplo cabal de escolhas narcísicas. Ele esclarece as diferenças
entre as escolhas:

Uma pessoa pode amar:

1-Em conformidade com o tipo narcisista:


a) O que ela própria é (isto é, ela mesma);
b) O que ela própria foi;
c) O que ela própria gostaria de ser;
d) Alguém que foi uma vez parte dela mesma.

2- Em conformidade com o tipo anaclítico (de ligação):


a) A mulher que o alimenta;
b) O homem que a protege. (FREUD, 1974, v. XIV, p. 107).

Juntando a esses itens um pouco da visão kleiniana, nota-se que


escolhas do tipo narcisista são ligadas aos mecanismos da onipotência, da
autoidealização, da negação de dependência e se sustentam na projeção e no
splitting de partes indesejadas, sobre outros objetos. São, portanto, baseadas na
posição esquizoparanoide e não têm compromisso com a aceitação da
realidade, das diferenças entre objetos, nem limites. Também são encontrados
nas defesas maníacas. Um paciente que estabeleça com seu analista esse tipo
de relação desejará incorporar os aspectos desejáveis do analista e negar que
precise dele. Poderá como mostra Rosenfeld, entrar em severos estados
confusionais com o analista.

No outro tipo de vinculação, a busca é pela vivência de uma boa relação


real com um objeto que sustente e proteja. Embora se esteja levando em conta os
aportes de Melanie Klein às teorias das relações de objeto para pensar o
narcisismo, os esclarecimentos feitos por Freud, além de fundadores, oferecem
um ótimo diferencial como guia.
40

Lembramos que Cintra e Figueiredo (2004) ressaltam que Melanie Klein


cunhou o termo posição esquizoparanoide e a descreveu ricamente, como uma
primeira forma de organização do caos mental: manter separados bons e maus
objetos, para ir criando a distinção entre eles dentro do mundo mental. Com isto,
assegura-se uma diferenciação e consegue-se um rudimento de organização com
a sensação de que os bons objetos estão a salvo dos maus. Ressalta-se que
neste período, e na posição esquizoparanoide, as vivências de bem e mal são
marcadas pela onipotência. O objeto não é visto como autônomo, mas como parte
do self, o que caracteriza o tipo de relação de objeto parcial e narcísica. Neste
momento, o self não está suficientemente integrado. O objeto serve como
fornecedor de tudo que é necessário e também como depositário do que não é
desejado (ou não pode ser suportado). Nesse tipo de relação, as angústias
vivenciadas são esquizoides: de fragmentação, e paranoides, isto é, há o medo e
preocupação consigo mesmo: ser atacado ou destruído.

A projeção é frequente e se constitui num mecanismo propício para a


mente primitiva14. Ela faz com que, continuamente, o que não é desejável seja
projetado, o que gera nesse caso a percepção de um objeto contendo coisas
ruins. Na posição esquizoparanoide não há preocupação ou consideração com o
objeto, a preocupação é de se preservar e de sobreviver. Por outro lado, o objeto
importa, e muito, como provedor ou depositário. O aspecto amado do objeto é
mantido afastado o mais possível de seu aspecto odiado e, assim, em contato
com o aspecto vivido como bom, há um estado de intenso prazer e idealização.
Quando houver uma inversão, um desprazer, o contato será com o objeto odiado,
e a vivência será inapelavelmente ruim. Mas, à medida que a criança se
desenvolve e torna-se mais capaz de suportar esses estados, diminuindo as
projeções e aumentando a percepção da realidade, há um abrandamento deles.

A ocorrência de introjeções firmes dos bons objetos e a permanência e


sequência delas asseguram o predomínio dessas experiências e permitem
mudanças. O objeto passa a ser visto como mais inteiro e menos idealmente bom
ou mau. Passa a haver a percepção da ambivalência em relação ao objeto e a

14
Mas a comunicação pela identificação projetiva, mesmo primitiva, é a ferramenta básica de todo
entendimento e empatia humanos, como Bion (1997) e Meltzer posteriormente (1990, 1995,
1998, 2004) demonstram.
41

necessidade de protegê-lo. Esse é o início da posição depressiva: o medo de


perder ou de ter danificado os bons objetos, o receio de não ser capaz de reparar
os estragos perpetrados a eles, pois agora se percebe que o objeto atacado, quando
era visto como mau, era o mesmo que, no momento de gratificação, era visto como
bom. Essa experiência carrega a tristeza pelo dano acarretado ao objeto (mesmo
que em fantasia), o medo de sua perda e a consideração pelo objeto pode começar
a ser vivenciada. Se tudo isso não for suportado, pode ocorrer um retorno ao
funcionamento esquizoparanoide, e a impossibilidade de elaborar a posição
depressiva. Essa impossibilidade pode ser revertida, e se dar em graus variáveis.

As patologias narcísicas que Rosenfeld pesquisa (e que fazem parte das


organizações patológicas da personalidade) revelam os elementos descritos por
Freud como caracterizando as escolhas narcísicas, mas de forma tão rígida e
inflexível que uma verdadeira relação de objeto fica extremamente difícil. A
autoidealização e a negação de separação com o objeto são buscadas e
estabelecidas como uma verdade dentro do ego. Portanto, algum grau de ruptura
com a realidade é necessário. Também há uma séria dificuldade de construir e
perceber o próprio self, uma vez que as qualidades desejadas são obtidas pela
identificação projetiva com o objeto ideal, e não por desenvolvimento real das
mesmas no self. Vejamos as palavras do autor:

Na identificação projetiva, partes do eu entram onipotentemente no


objeto, por exemplo, na mãe, para se apossar de certas qualidades
consideradas desejáveis, e se proclamam, por conseguinte, o objeto ou
o objeto parcial. A identificação pela introjeção e pela projeção ocorre em
geral simultaneamente.
Nas relações de objeto narcísicas, as defesas contra todo
reconhecimento de separação existente entre o eu e o objeto constituem
uma parte predominante. A percepção da separação conduziria a
sentimentos de dependência do objeto e, consequentemente, à
ansiedade. A dependência do objeto implica amor por ele e
reconhecimento de seu valor, o que ocasiona agressividade, ansiedade
e sofrimento, por causa das frustrações inevitáveis e suas
consequências. Além disso, a dependência estimula a inveja, quando se
reconhece a bondade do objeto. As relações de objeto narcísicas
onipotentes evitam, por conseguinte, tanto os sentimentos agressivos
causados pela frustração como toda percepção da inveja. ...
A inveja apresenta características onipotentes; parece que ela contribui
para as relações de objeto narcísicas, enquanto a inveja propriamente é,
a um tempo, expelida e negada. Em minhas observações clínicas de
pacientes narcísicos, a projeção de características indesejáveis no objeto
desempenha um papel importante. O analista amiúde se representa nos
42

15
sonhos e fantasias como uma latrina ou como um colo . (ROSENFELD,
1968, p. 194-195).

Desta forma, nem objeto e nem self são vistos na realidade, mas sob a
ótica de idealizações, projeções etc. Relações desse tipo tendem a ser estáveis:
abandoná-las seria temerário, pois, além de provocar inveja, levariam ao medo e
ao desamparo, com penosos sentimentos de dependência. A personalidade que
engendrou fortes relações narcísicas evita, portanto, sair delas.

Isto leva à lembrança de que Joan Riviere em 1936, estudando pacientes


difíceis, relatou o uso por estes de sistemas defensivos altamente organizados,
dirigidos contra as dores da posição depressiva. Ela conclui que tal tipo de
sistema é baseado numa rede de relações de objeto parciais, narcísicas e
extremamente estáveis. Estas podem fazer com que a análise fique estagnada e,
obviamente, estanquem o crescimento do indivíduo. O The New Dictionary of
Kleinian Thought descreve suas contribuições como um preâmbulo para as
concepções contemporâneas das organizações patológicas:

A confiança de Riviere nos conceitos kleinianos de defesas maníacas e


da posição depressiva, limita as primeiras formulações, mas suas
contribuições pioneiras têm feições que prefiguram outras concepções
mais contemporâneas sobre organizações patológicas: as defesas muito
coesas e intrincadas que produzem uma organização narcísica de
personalidade resistente ao contato emocional; o controle exercido sobre
o analista e o convite ao conluio; o equilíbrio rígido e firmemente
defendido à custa de prejudicar o desenvolvimento na análise e na vida
em geral; e a necessidade de que o analista seja capaz de compreender
imaginativamente (e intuitivamente) as subjacentes ansiedades
primitivas do paciente, para evitar reações que impeçam a análise, em
face às quais o processo poderia ser estrangulado. (Tradução livre).
Riviere´s reliance on Klein`s concept of the manic defences and the
depressive position limits this first formulation, but her early contribution
has features that prefigure more contemporary conceptions of
pathological organisations: the tightly knit defences that yield a
narcissistic personality organisation resistant to emotional contact; the
control exerted over the analyst and the invitation to collude; the rigid,
closely guarded equilibrium at the cost of the development in analysis
and in life in general; and the need for the analyst´s imaginative
understanding of the patient´s underlying primitive anxieties to avoid
impatient reactions in the face of the stranglehold on analytic progress.
(SPILLIUS; MILTON; GARVEY; COUVE; STEINER, 2011, p. 198).

15
Aqui o sentido de colo é o de intestino.
43

Destacam-se os aspectos maníacos, como o controle, a resistência ao


contato emocional, a rigidez do equilíbrio mantido à custa de impedir o
desenvolvimento psíquico, organizados num sistema coeso. Mostra a
personalidade narcísica convidando o analista a se aliar a ela, partindo de
defesas forjadas para evadir-se da posição depressiva. Embora não se trate de
uma posição esquizoparanoide, cujas características são descritas por
Rosenfeld quando ele constrói seus modelos de organizações patológicas, o
sistema de defesas maníacas também é estavelmente organizado e
imensamente onipotente.

Outra questão que Riviere já anteviu foi a necessidade de que o analista


tenha tato e compreensão, isto é um grande acolhimento , sem o que o processo
analítico fica estagnado ou inviável. Sem mencionar explicitamente uma
organização patológica, Riviere oferece um perfil possível para estas e
comprova que elas podem ocorrer não exatamente como na posição
esquizoparanoide, mas com um conjunto de defesas tão organizado e
característico que emula uma posição16.

A autora (RIVIERE, 1982) partiu do estudo das relações precoces de bebê


e mãe e fez um delineamento do que há de rico e também conflitivo nelas,
encontrando elementos que dão uma compreensão fundamental ao narcisismo
infantil. O frágil ego do bebê mantém equilíbrio psíquico à custa de uma relação
objetal peculiar que seria narcísica. Essa se constitui de vivências em que um
objeto é tudo para o self, e a ele pertence. Por causa dela, o bebê sente que
tudo de bom e de que necessita está disponível e faz parte dele (ao menos
temporariamente). A concomitante necessidade de dissociar-se do desconforto
e do desprazer é tão importante que é preciso também, para manter o
narcisismo preservado, que uma relação com um continente fora do self ou
afastado do núcleo deste, que receba o indesejável, esteja sempre disponível.
Essa relação assegurará (em parte) a cisão normal entre bom e mau na mente
infantil e permitirá que, gradualmente, em contato duradouro com bons objetos
e bom ambiente, o bebê estabeleça um bom objeto interno seguramente
diferente do mau.

16
Melanie Klein havia pensado numa posição maníaca ao estudar os quadros maníaco-
depressivos (1981).
44

Riviere pensa que sofrimentos como fome, frio, desconfortos físicos no


ambiente extrauterino (e outros sofrimentos) são percebidos pelo bebê e não
podem ser simplesmente aniquilados por uma alucinação ou simples projeção.
Requerem algo para onde possam ser seguramente enviados, isto é, para um
continente específico.17·Isso será efetuado através da identificação projetiva
(KLEIN 1982, 1991, BION, 1988, 1966).

Observa-se que a manutenção do equilíbrio narcísico depende, entre


outros fatores, da existência subjacente e estável de uma relação de objeto, para
que este seja o detentor do indesejável. E que, por outro lado, o mecanismo de
divisão permita que uma parte do Self fique fortemente identificada com os
aspectos bons do objeto, tendo assim seu bem-estar assegurado. Para Riviere,
Klein e Rosenfeld, isso ocorre porque, no início da vida, as percepções de self e
objeto são confusas e flutuantes, mas já estão ocorrendo. Interessa lembrar que
Tustin (1990) e Mitrani (2007), ao falarem do ritmo de segurança, também
postulam uma diferenciação nascente entre mãe e bebê, ocorrendo
paralelamente à experiência de fusão entre ambos.

Riviere crê que a dependência do bebê em relação ao objeto é tão grande


que ele confunde sua necessidade com o próprio objeto. Some-se a isso a
dificuldade de percepção e a não integração de vários aspectos do ego e teremos
mais motivos para a confusão.

Os bons objetos precisam estar afastados dos maus, portanto, quando o


bebê estiver vivenciando sofrimentos e experiências agressivas, ele precisará de
um local razoavelmente separado dele onde os bons objetos fiquem seguros.
Depois, para serem reencontrados, requerem um objeto a ser reencontrado18 que
os forneça, isso é, um continente externo. Riviere diz:

Contudo, a experiência objetiva desenrola-se na mesma direção da


fantasia, pois a experiência constante da criança é que suas satisfações
e seu alívio de estímulos dolorosos internos ou externos lhe chegaram
da mãe externa, na medida em que ela é apreendida. Assim, desde o
princípio, qualquer necessidade interna inexorável é referida como
uma exigência imposta à mãe externa; ela e a necessidade são uma
só coisa. (Uma agressiva reação de ansiedade também constitui um

17
Lembramos o desenvolvimento disso feito por Bion (1988, 1966), mas ressaltamos que Riviere
parte, fundamentalmente, da noção de objeto bom e provedor de Melanie Klein.
18
Em Sobre a gênese do conflito psíquico nos primórdios da infância. In: KLEIN, M; HEIMANN, P;
ISAACS, S.; RIVIERE, J. (Orgs.). Os progressos da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
45

apelo à mãe externa). Se ela não a satisfaz, é tão inexorável quanto


à necessidade interna; fica identificada, pois, com a necessidade e
a dor internas. Portanto, este é o mais profundo nível de projeção: a
privação e a necessidade internas são sempre sentidas como
frustração externa. Uma situação interna de necessidade e tensão é
necessariamente tratada como externa, em parte porque a ajuda
tem vindo e vem (experiência) e, portanto, deve vir (onipotência) de
uma agência externa. (RIVIERE, 1936, 1982, p. 57-58).

Riviere mostra que a identificação narcísica e as relações de objeto que


elas engendram atestam a carência do ser humano e sua completa dependência
de outro, e o fato de que um narcisismo sadio seja vital. Este implica numa
percepção; ainda que parcial, de outro objeto e a aceitação dessa relação, que se
alterna e também pode se sobrepor à vivência de ser este objeto.19. O que pode
constituir obstáculo ao desenvolvimento é o fato de essas relações, ao invés de
principiantes, se tornarem as principais e substituírem outras relações com
objetos mais inteiros e reais ao longo da vida.

Rosenfeld afirma, em concordância com Klein e Riviere, que desde o início


existe uma necessidade de um objeto externo, onde o self busca apoio e com o
qual estabelece uma relação que, embora tenha características fusionais, teria
uma nascente diferenciação.

Freud considerava o sentimento oceânico, o desejo de união com Deus


ou com o Universo uma experiência narcísica primária... Balint (1960) foi
mais longe ao sugerir que a descrição de Freud do narcisismo primário
deveria chamar-se de amor de objeto primário. Pessoalmente acredito
que se teria evitado muita confusão, se reconhecêssemos que as
inúmeras condições clínicas observáveis que se assemelham à
descrição de Freud do narcisismo primário, constituem, de fato,
relações objetais primitivas. (ROSENFELD, 1968, p. 194).

Rosenfeld comprovou, através dos atendimentos que realizou a pacientes


psicóticos e fronteiriços, que, diferentemente do que Freud pensava, esses
desenvolviam intensa transferência. Outros analistas, kleinianos ou não, também
trataram de pacientes desse tipo. Entre estes, Bion explicitou, aprofundando
linhas de pesquisas de M. Klein, que a forma principal de comunicação e
relacionamento entre a mente primitiva e o mundo, se fazia através da
identificação projetiva. Tomou como modelo a relação do bebê com sua mãe, e

19
Este raciocínio segue o pensamento Kleiniano, e tem correspondência com a visão de Frances
Tustin e Judith Mitrani.
46

trabalhou com pacientes graves, incluindo esquizofrênicos, e com grupos de


pacientes afetados por traumas20.

Esses pacientes mostravam atitudes onipotentes para com as pessoas em


geral e principalmente para com seus terapeutas. Em fantasia, faziam exigências
insaciáveis a seus objetos, confundiam seu self com o de outras pessoas,
colocavam outros dentro de si e se colocavam dentro de outros. Rosenfeld (1988,
1968) percebeu que não apenas pacientes francamente psicóticos faziam aquele
tipo de relações narcisistas e transferência, o que corroborava a percepção de
Klein (1982) de que as posições esquizoparanoide e depressiva faziam parte do
funcionamento psíquico de todo ser humano. Rosenfeld também documenta,
como Bion (1988), a percepção da coexistência e o funcionamento de áreas
psicóticas e neuróticas, convivendo numa personalidade. Ao analisar um paciente
aparentemente neurótico, poderiam ser encontrados núcleos de funcionamento
psicótico e, da mesma forma, pacientes psicóticos também poderiam mostrar
áreas neuróticas.

Rosenfeld (1988, 1968) descreveu constelações de defesas organizadas


que servem para projetar fortemente o que não se deseja e se identificar
maciçamente com o desejável, apoderando-se e/ou entrando no objeto (em
fantasia). Isso pode levar a estados confusionais e/ou de despersonalização.
Concluiu que essas organizações eram de natureza profundamente narcisista e
classificou-as em dois tipos: narcisismo libidinal e narcisismo destrutivo.

A descrição anterior refere-se ao narcisista libidinal e, para completá-la,


adicionam-se alguns elementos. O paciente vive como se tudo que houvesse de
bom no analista pertencesse a ele e estivesse sempre à sua disposição, não
havendo percepção de separação entre ambos. Se houver alguma percepção de
separação, o paciente pode se enfurecer ou se sentir traído. Sendo detentor de
tudo o que seja bom e desejável, os sentimentos de precisar do outro ou de ter
inveja dele por suas qualidades são negados e escamoteados. Há triunfo e
controle sobre o objeto.

20
BION, W. Experiências com grupos. Rio de Janeiro: Imago, 1975; Estudos psicanalíticos
revisados. Rio de Janeiro: Imago, 1988; BLÉANDONU, G. Bion a vida e a obra. Rio de Janeiro:
Imago, 1993.
47

Rosenfeld afirma, amparado em sua experiência, que tanto a identificação


por projeção quanto por introjeção estão ocorrendo simultaneamente, o que
traduz um primitivismo oral, como diriam Klein e Meltzer, e a possibilidade da
persistência desse tipo de relações implicará na impossibilidade de elaborar a
inveja do objeto21 e de desenvolver capacidades reais para si. O que ocorreu - o
apoderar-se em fantasia dos valores do outro -, não permitirá uma construção de
valores próprios e, com o tempo, será possível o paciente recear jamais poder
fazer isso. A inabilidade de enfrentar a inveja faz com que ela continue sendo
negada e projetada, levando a uma situação viciosa.

Conforme Bion (1966, 1988), a capacidade para aprender requer aceitação


do limite e da dependência do outro, acrescida do fato de que não se tem e não
se sabe muito coisa sobre o que se deseja ou precisa, ou seja, que os meios
mágicos e a onipotência não funcionam, embora possam conviver no psiquismo,
e efetivamente não dominam o objeto na realidade (BLÉANDONU, 1993). Se o
self se utiliza exageradamente desses meios, haverá uma forte característica
psicótica, que cria pseudopoderes para o self. Quando a onipotência predomina, o
trabalho da inveja comparece frequentemente como pano de fundo, negando
qualquer bondade ao objeto e, por vezes, tentando destruí-lo. Mas Rosenfeld
alega que o narcisista libidinal ainda não revela os aspectos mais destrutivos da
inveja, pois a introjeção e/ou a identificação projetiva (intrusiva, como dirá Meltzer,
1995, 2008) “poupam” até certo ponto o objeto. A relação de objeto existe, mas de
modo deformado, pois não há separação realista entre o eu e o objeto, e o eu é
sentido como contendo todas as qualidades desejadas do objeto. A relação
precisa continuar, pois o self depende do objeto para com ele se identificar e,
quando necessitar, deixar nele aspectos indesejáveis.

Quando, no processo terapêutico, a autoidealização narcisista diminui, e o


paciente sente necessidade do analista, percebendo que este o ajudou, podem
sobrevir a inveja e penosos sentimentos de dependência e fragilidade. Isso pode

21
Na acepção de M. Klein, a inveja seria uma dotação do ser humano, ligada ao instinto de morte,
mas variável nos indivíduos. Poderia ser aumentada ou diminuída, dependendo do ambiente em
que o indivíduo se desenvolve. Ela leva a que, ao invés de aceitar a dependência de um bom
objeto, que oferece vida, exista o predomínio da raiva dessa dependência, que levaria ao desejo
de destruir ou de negar as qualidades do objeto. Nos indivíduos em que a inveja é intensa, a
formação de vínculos com objetos bons é dificultada por isso e as relações narcísicas
predominam. (KLEIN, 1991).
48

ser tão terrível que o paciente é capaz de retomar as defesas onipotentes. Esta e
outras características do processo analítico, como o fato de o paciente poder
detestar as capacidades do analista (BION, 1988) e se sentir diminuído diante
delas (STEINER, 2011), podem dar origem às reações terapêuticas negativas
e/ou ao ataque às percepções indesejadas e retorno ao relacionamento antigo.
Tudo isso implica na entrada na posição depressiva e pode ser insuportável.
Outra possibilidade é que analista e paciente, receando tal situação, procurem
preservar seu relacionamento como ideal. Podem negar as dolorosas separações
e não enxergar a piora ou a manutenção da doença do paciente (e nesse caso
também do analista).

Rosenfeld propõe o termo narcisismo destrutivo para caracterizar


relações mais destrutivas do que as descritas anteriormente (as narcísicas
libidinais22). Nessa segunda forma de narcisismo, a relação com o analista é mais
agressiva, não há a tentativa de englobar o analista igualando-se a ele, mas
ataques através de depreciação, desprezo e distorção de tudo o que o analista
oferece ou qualquer coisa útil que ele faça. Embora uma identificação projetiva
com capacidades do analista tenha ocorrido, o que predomina é o sacrifício disso
em prol do ataque ao analista. Se, na situação do narcisismo libidinal, reações
terapêuticas negativas podiam ocorrer, aqui elas são mais frequentes. Os
aspectos destrutivos do self altamente organizados são idealizados como um bom
amigo ou mentor espiritual, e como fonte de superioridade. Se o paciente percebe
dependência em relação ao analista, ou que esteja se beneficiando de suas
contribuições, há crítica imediata, e a relação com o analista é, no íntimo do
paciente, distorcida e diminuída. Qualquer parte do self que deseje um vínculo
saudável com um objeto é atacada, projetada e tratada com desconfiança e
distorção. Assim, um progresso na análise é muitíssimo difícil. Rosenfeld alerta
para o fato de que a estrutura narcisista varia muito e aspectos de ambas, tanto a
que chamou libidinal quanto a que chamou destrutiva podem coexistir em graus
variados. As fantasias de onipotência podem ser estimuladas em qualquer fase da
vida. Mas ele ressalta, lembrando Riviere:

22
Hanna Segal se opôs a este termo, mas aqui o utilizamos para seguir o raciocínio de Rosenfeld.
Ela alega que, mesmo naquela descrição, o narcisismo desse tipo é destrutivo e não libidinal, na
acepção mais tradicional da palavra, que é a Freudiana.
49

...temos de lembrar que as fantasias onipotentes tiveram origem na


primeira infância, numa época em que o indivíduo se sentia indefeso,
pequeno, incapaz de enfrentar a realidade de nascer e todos os
problemas relacionados com ela. A partir do nascimento, ele não só
construiu uma fantasia de um self onipotente, mas também objetos
criados de forma onipotente (a princípio, os objetos parciais) que sempre
estivessem presentes para realizar seus desejos. Nesta situação, a
separação, a indulgência excessiva ou, em especial, a falta de um
ambiente de proteção e contenção aumenta o desenvolvimento e a
persistência de estruturas narcisistas. (ROSENFELD, 1988, p. 121).

Neste caso, Rosenfeld aponta para um narcisismo saudável e protetor do


indivíduo, mas ele usa o termo narcisismo mais para falar de situações
patológicas ou da problemática a que pode levar. Talvez esteja mais perto da
acepção de Freud em Uma Introdução ao Narcisismo, pela conotação de
autoidealização.

Se a análise começa a ajudar o paciente a perceber como é dominado pela


estrutura narcisista, e o paciente fizer esforços para diminuí-la, a estrutura pode
tornar-se ameaçadora, como uma gangue que irá punir o desertor. Nessa
estrutura, há objetos providos de um caráter superegoico primitivo que
menospreza e ataca as capacidades de ligação do paciente (isto é, de
dependência) e de viver com objetos reais. O paciente pode sentir que está
abandonando algo essencial e sendo ingrato, ficar confuso, e enveredar por
reações terapêuticas negativas23.

O paciente não percebe que é o produtor de sua organização patológica e


que pode mudá-la. Ela tem um status diferenciado pelas várias manobras
projetivas e por sua estrutura tão onipotente que as partes sadias do eu não
conseguem percebê-la como algo manejável por elas. O que foi introjetado depois
de projeções maciças e vivências de fragmentação parece ser principalmente a
relação com essa estrutura onipotente (ROSENFELD, 1988) que se estabeleceu
como um imperador no ego.

As partes narcísicas destrutivas podem estar ligadas a uma estrutura ou


organização psicótica cindida do resto da personalidade. Essa estrutura é
semelhante a um mundo ou objeto delirante no qual partes do self ficam

23
Freud, (1917, 1914); Rosenfeld, (1968, 1988), referindo-se ao fato de um paciente piorar depois
de ter feito progresso significativo na análise.
50

recolhidas24. O autor prossegue dizendo que “Parece ser dominada por uma parte
onipotente ou onisciente e extremamente implacável, que cria a ideia de que,
dentro do objeto delirante, há uma total ausência de sofrimento e também a
liberdade de o indivíduo entregar-se a qualquer atividade sádica. Toda a estrutura
está comprometida com autossuficiência narcisista e é estritamente dirigida contra
qualquer relação objetal.” (ROSENFELD, 1988, p. 146). Esta descrição remete ao
estado em que ficam as Bacantes na peça homônima de Eurípedes, ao estarem
sob o transe e assim dominadas por Baco. Nesse frenesi elas destroçam os
objetos que amam, negando qualquer dependência deles, num estado de
felicidade onipotente e indiferente. Podemos fazer um paralelo com os dias atuais:
a embriaguês alcoólica, aliada ou não ao uso de variadas drogas, tem como
consequência terrível acidentes automobilísticos com morte ou debilitações
graves, que nas estatísticas brasileiras nos colocam numericamente igualados ao
contingente de mortos em períodos de guerra.

Rosenfeld adotou o termo Mafia-like, um tipo de máfia ou gangue, para


descrever essa organização que também seduz e persuade o ego a manter-se
fiel. Ele diz que o alcance dos efeitos da organização é intenso e que “falsas
promessas têm o efeito de tornar o self normal do paciente dependente de
seu self onipotente, ou viciado nele, bem como atrair as partes sadias e normais
para essa estrutura ilusória, a fim de aprisioná-las.” (ROSENFELD, 1988, p. 146).
Grifos nossos.

A gangue geralmente se disfarça e sua tirania e/ou perversão são


ocultadas ou racionalizadas, mas, em muitos momentos, se tornam claras, ainda
que o próprio paciente não o perceba. É possível, gradativamente, auxiliar o
paciente a conquistar essa percepção, e ver os efeitos nocivos da organização,
sem contestá-la diretamente e sem afronta. Em consequência de múltiplas cisões
e da estrutura defensiva, o paciente não consegue se perceber, e receia o que irá
encontrar. Steiner trabalha muitas dessas implicações clínicas em seu livro
Seeing and being seen: emerging from a psychic retreat (2011).

24
Aqui Rosenfeld menciona uma comunicação pessoal de Meltzer que talvez esteja ligada a seu
estudo sobre os Claustros, descritos no item a respeito deles.
51

Embora a gangue possa lembrar o superego arcaico, Rosenfeld chama a


atenção para diferenças fundamentais entre suas estruturas. A organização é
sofisticada, em contraste com o superego primitivo, e há uma falta de
compromisso com o crescimento do self, questão importante para o superego
saudável. Este último também ajuda o indivíduo a buscar a realidade, justamente
pela demanda de crescimento real, o que não ocorre com a organização.

Rosenfeld notou que a análise de aspectos invejosos não deveria ser feita
de forma insistente, como pareceu importante para muitos Kleinianos durante
algum tempo. Ele argumenta que experiências de frustração levam,
inevitavelmente, à inveja e que muitos pacientes podem ter sido tratados de forma
depreciadora por pessoas de suas relações, o que pode ter aumentado muito sua
inveja. Se a interpretação da inveja tiver elementos através dos quais o paciente
possa se sentir muito inferiorizado e frustrado, ele não conseguirá melhora
alguma.

Steiner também aponta tal fato como um dos obstáculos a sair do refúgio, o
que será discutido adiante. Rosenfeld concluiu que a inveja é um dentre vários
fatores que podem levar a um impasse na análise e talvez não o pior. Ele alega a
possibilidade de que, quando o “paciente se sente aceito e sente que tem um
espaço para pensar e crescer, essa inveja diminui gradualmente” (ROSENFELD,
1988, p. 302).

Outro ponto importante para o manejo analítico dessas situações seria que:
“Quando é interpretada para o paciente a influência hipnótica e silenciosa da
figura destrutiva interna, fazendo-se passar por uma figura benevolente, este fica
pouco a pouco mais consciente do que está se passando dentro dele, e a
influência paralisadora sobre ele e o processo analítico diminui gradativamente”
(ROSENFELD, 1988, p. 303). Interpretar a destrutividade diretamente não
ajudaria, mas sim mostrar algo dentro do paciente que poderia paralisá-lo (e o faz
frequentemente). Diz também:

Por fim, o que acontece é que a força assassina aparece nos sonhos do
paciente. Pode-se ver que, uma vez exposta, essa força assassina é
dirigida principalmente contra o próprio paciente e fica muito mais fácil
lidar com o problema analiticamente. O paciente pode sentir mais
claramente com o que ele está assustado. Também fica mais óbvio que
ele quer ser protegido dessa força. Ao mesmo tempo, associações a
respeito de pensamentos e sentimentos agressivos que anteriormente
não eram claras podem agora ser entendidas. Em outras palavras, o
52

paciente torna-se mais capaz de admitir que tem sentimentos agressivos


e que estes muitas vezes foram dirigidos contra si mesmo. Estou
convencido de que a análise e o reconhecimento, na análise dessa força
25
mortífera são, com freqüência, absolutamente essenciais, caso se
deseje evitar um impasse. (ROSENFELD, 1988, p. 304).

4.3 Refúgios psíquicos: objetos pseudoprotetores, falsa continência,


relações perversas

Ao longo do presente texto o termo organizações patológicas da


personalidade vem sendo usado, e é mister esclarecer que ele foi cunhado por
Steiner, que o considerou expressivo para designar os fenômenos que
abarcassem conjuntos estáveis e sólidos de defesas. Trata-se de sistemas bem
organizados, descritos por vários analistas sob outras designações (algumas até
semelhantes), e que conduziam à estagnação da análise e ao escasso
crescimento psíquico. A utilidade do termo franqueou seu uso ao longo do texto
antes de sua apresentação.

Steiner traça um “des-fecho” para as posições esquizoparanoide e


depressiva diferente dos esperados. Um des-fechamento, no sentido de que não
há resolução, mas fuga, e o vivenciar das posições é evitado com a “des-
construção” da possibilidade de elaborá-las. Uma terceira “via” é postulada para
as dores e desafios dessas posições. O termo via procura indicar que um
movimento de saída das posições é viabilizado, embora não implique em ser um
caminho útil. Talvez um labirinto, local em que há diversos falsos caminhos, seja
mais adequado. Como analistas, sabemos que muitos caminhos são
descaminhos ou saídas ilusórias. No caso do refúgio, a “via” lembra a ilha aonde
Ulisses chega durante sua viajem de retorno a Ítaca, e fica tentado a lá
permanecer e desistir do objetivo de chegar à sua casa e às pessoas que ama.

É possível traçar alguns paralelos: Ulisses afasta-se da guerra - posição


esquizoparanoide, mas não sabe se irá suportar a posição depressiva e conseguir
elaborá-la; reparar os danos que a longa ausência causara. A ilha e sua bruxa
servem de metáfora para o refúgio (STEINER, 1997) e para o líder da

25
Optou-se por manter a grafia da época 1988.
53

organização patológica descrito como o chefe da gangue ou da máfia por


Rosenfeld. O conforto do refúgio corresponde à perda da possibilidade de se ligar
aos objetos amados, mas humanos.

O refúgio lembra ambientes protetores. Ao incluir essa “construção” na


dinâmica psíquica, viabiliza-se um estado mental em que as agruras das duas
posições são evitadas. O self fica albergado num domínio cuja constelação de
defesas26 propicia uma estrutura estável, arraigada, que não permite crescimento
mental. Seria como outra posição.

O analista observa que refúgios psíquicos são estados mentais em que o


paciente fica estagnado, isolado e fora de alcance, sendo possível inferir
que estes estados surgem a partir da operação de um poderoso sistema
defensivo. (STEINER, 1997, p. 18).

E mais adiante:

Como vimos, os refúgios variam tanto em sua estrutura quanto no tipo de


ansiedade da qual se defendem. Alguns funcionam predominantemente
como um refúgio contra as ansiedades esquizoparanoides de
fragmentação e perseguição, enquanto outros são acionados para lidar
com os afetos depressivos, tais como a culpa e o desespero. (STEINER,
1997, p. 118).

O The New Dictionary of Kleinian Thought (2011) menciona que Steiner em


seu artigo intitulado Perverse relationships between parts of the self: A cilinical
illustration, de 198127, trouxe pela primeira vez o termo organização patológica
para o vocabulário psicanalítico. Cita ainda, que o trabalho de Steiner foi um
marco para o início de uma teoria compreensível que incorpora tanto o narcisismo
patológico quanto o equilíbrio entre a organização patológica e as posições
esquizoparanoide e depressiva28. Ele percebeu a variabilidade da organização por
se tratar de conjuntos de defesas e trouxe uma denominação que facilita que
sejam identificadas e, ao mesmo tempo, ressalta sinteticamente suas
características. As organizações patológicas seriam um termo amplo que
serve para englobar tanto organizações narcisistas, como outras em que

26
Vide introdução.
27
Traduzido e revisado como Relações perversas nas organizações patológicas, em Refúgios
psíquicos, cit.
28
Mencionado no item sobre “Pathological organisations” do New Dictionary of Kleinian Thought.
54

configurações obsessivas, histéricas, maníacas ou psicóticas predominam


(SPILLIUS; MILTON; GARVEY; COUVE; STEINER, 2011).

Refúgios são construídos para lidar com a destrutividade, problema


inerente ao ser humano. As origens da destrutividade podem ser internas,
externas ou mistas, mas, inapelavelmente, o indivíduo será por elas afetado,
principalmente quando for ou estiver mais frágil, como na infância. Traumas,
violência, descuido ou rejeição por parte do ambiente promovem a internalização
de objetos violentos, os quais funcionarão como receptores pertinentes para a
destrutividade individual. Steiner afirma que organizações defensivas são
universais na constituição dos seres humanos e muitas daquelas às quais dedica
sua pesquisa, eram capazes de dominar completamente o psiquismo. As
organizações patológicas, conceito que Steiner usa numa acepção enraizada em
Rosenfeld, são tanto uma demonstração da destrutividade quanto uma tentativa
de lidar com ela. Essas organizações foram criadas em momentos de tremenda
angústia e se apresentaram ao frágil indivíduo como uma salvação, e uma forma
segura para lidar com a destrutividade.

Para seguir a explanação sobre os refúgios, Steiner (1997) utiliza alguns


conceitos de Bion. Uma das principais diferenças entre a área psicótica e a área
neurótica da personalidade pode ser reputada à intensidade e ao modo como a
identificação projetiva é usada, pois para a área psicótica, ela tem a finalidade de
descarregar qualquer aspecto indesejado do psiquismo em outro objeto. Ao invés
de ser usada de forma comunicativa, mais fluída e reversível, como na área
neurótica, nas áreas psicóticas a identificação projetiva é “pesada”, rígida, como
via de mão única, em que o sentido de retorno está “proibido”29. Isso decorre da
pouca tolerância em relação à realidade interna e externa, e torna esta tolerância
ainda mais remota.

Outra questão é que aspectos desejáveis do objeto são também


confundidos com o self. Nesse estado, com o funcionamento típico da posição
esquizoparanoide, os objetos são apenas parciais e, através da projeção,
pedaços do eu são alojados neles. A incorporação de partes desejáveis do objeto
pelo ego também pode ocorrer, por intrusão no objeto ou por identificação maciça

29
Como toda questão humana, a proibição é relativa e não necessariamente imutável.
55

com ele. Esses conceitos, por terem sido muito trabalhados por Meltzer (2008),
serão examinados no capítulo dedicado ao seu trabalho.

Cabe lembrar que, a qualquer divisão do objeto, corresponde uma divisão


no ego, o que aumenta a confusão e dificulta os esforços de reintegração, que
envolveriam o lidar com tudo o que foi projetado, como pertencente e de
responsabilidade do eu. Também implica na devolução dos aspectos do objeto,
isto é, na separação e na perda do controle sobre tal objeto. O funcionamento
psíquico menos integrado e a tendência a manter as projeções tornam mais fácil
para uma organização patológica assumir a liderança e obscurecer áreas mais
neuróticas ou sadias. A identificação projetiva exagerada também serve para
atacar as capacidades de pensar30 e contribui para a proliferação do
funcionamento psicótico: desagregado, com pouca capacidade para unir as
percepções e vivências. Isso debilita a percepção dos objetos e do próprio self
como inteiros e complexos, e enfraquece mais as áreas neuróticas.

Steiner aproveitou e estendeu o esquema de intercâmbio entre as posições


esquizoparanoide e depressiva proposto por Bion, para mostrar que o refúgio
seria uma posição entre elas, criando um modelo de equilíbrio triangular
(STEINER, 1997, p. 46, 57). As organizações patológicas nas quais se inserem os
refúgios estão nas fronteiras ou bordas das duas posições e, a partir dessa
colocação separada, mantêm um rígido e estático equilíbrio. O autor indica,
usando a notação utilizada por Bion e que remete a intercâmbios nas reações
químicas, que do refúgio se pode ir e vir para as duas posições, mas há uma
tendência a permanecer nele, evitando ambas.

O refúgio funciona em relação às duas posições básicas, mas como se


fosse ele próprio uma posição, pois sua estrutura é marcada por uma
organização patológica da personalidade.
As organizações patológicas embrutecem a personalidade, impedem o
contato com a realidade e interferem no crescimento e no
desenvolvimento. Em indivíduos normais, elas são postas em ação
quando a ansiedade excede os limites toleráveis e são abandonadas
novamente, quando a crise termina. Entretanto, permanecem
potencialmente disponíveis e podem servir para por o paciente fora de
contato, desencadeando um período de estagnação na análise se o

30
“A personalidade psicótica e os problemas próprios da mesma obscureciam a personalidade não
psicótica e os problemas inerentes a esta” p. 55 e “não apenas o pensamento verbal sendo ele
mesmo um elo de ligação é atacado, mas os fatores que contribuem para a coesão do próprio
pensamento são igualmente atacados.” (BION, 1988).
56

trabalho analítico tocar em questões que estão na margem do tolerável.


(STEINER, 1997, p. 21).

Criar condições para lidar com a destrutividade é tarefa do


desenvolvimento humano. Mas em situações em que a destrutividade seja
intensa, podem ocorrer problemas para estabelecer uma distinção firme entre
objetos bons e maus. A inveja que é parte essencial da destrutividade dificulta o
reconhecimento dos bons. A confusão a respeito da natureza dos objetos impede
o estabelecimento de uma genuína confiança nos bons. Além disto, os objetos
“bons” criados pela divisão anômala entre bom e mal têm uma mistura de
características onipotentes, negando sua maldade, e uma incapacidade para
enfrentá-la. Por isso, são pouco humanizados, rígidos e incapazes de ajudar a
lidar verdadeiramente com angústias. Ataques são efetuados para não perceber
a bondade e a dependência dos objetos reais.

A necessidade de evacuar o excesso de destrutividade cria objetos


impregnados de maldade ao redor do ego, o que, por sua vez, aumenta as
projeções e os ataques à própria percepção (BION, 1988). Tais dificuldades
podem ser pioradas pela deficiência de continência do ambiente: a escassez de
objetos bons a serem introjetados obviamente aumenta a introjeção dos maus
(STEINER, 1997, 2011). Vê-se que as organizações patológicas têm duas
funções principais: recriar uma divisão entre objetos protetores e objetos
maus em face do colapso da divisão normal entre esses objetos. A outra
função é criar uma rede de proteção contra a destrutividade que engendrou
o colapso. Contudo, a organização expressa a destrutividade contra a qual
pretende se proteger (SPILLIUS; MILTON; GARVEY; COUVE; STEINER, 2011).

As organizações patológicas são complexas, vindo a formar uma rede de


relações composta por vários elementos que se originam tanto do self quanto de
objetos para dentro dos quais foram projetados aspectos do self e, depois,
reintrojetados dessa forma alterada. Essa estrutura coesa é atraente, e as outras
áreas da personalidade que a elas se submetem podem não ser apenas vítimas.
Podem relacionar-se com ela de várias formas, inclusive extrair ganhos e
prazeres dessa espécie de escravidão.
57

Uma vivência de sofrimento severo, como a experiência de fragmentação


psíquica, contribui para o estabelecimento de uma organização patológica.
Cumpre recordar que Klein31 usou o termo fragmentação ou despedaçamento
para falar de um splitting extremamente intenso (SPILLIUS, 2011), ou seja, uma
projeção maciça, talvez sem possibilidade de reintrojeção. Uma espécie de
explosão do self, quando a intensidade das vivências de sofrimento, ódio e
desamparo fossem insuportáveis, e fosse preferível o desmantelamento como
último e desesperado recurso para aplacar a dor. Com a violenta expulsão do que
fosse percebido como ruim, o próprio self se despedaça, pois a toda projeção
corresponde uma divisão no self. Klein (1982, 1991) exemplificou isso com o
despedaçamento descrito no caso de Schreber. Apesar de os processos de cisão
serem úteis e eficazes para lidar com muitas angústias, às vezes podem ser
insuficientes, e a fragmentação patológica consiste numa defesa extrema, frente a
uma intensa angústia persecutória, que ameaça a própria sobrevivência.

Bion (1988) descreve e caracteriza essa situação como uma exacerbação


do funcionamento esquizoparanoide, causando um desmantelamento do self em
minúsculas partículas (mesmo que algumas partes ainda permaneçam
integradas). O self não pode mais ser destruído como um todo, mas fica aos
pedaços, como se vê no que restou de Schreber depois de alguns surtos
psicóticos (STEINER, 2011). As partes do self reduzidas a fragmentos são
projetadas violentamente e podem se relacionar de modo caótico e mesmo
aspectos das capacidades funcionais de órgãos sensoriais, como visão, audição,
olfato, podem ser retalhados e contribuírem para o caos. Até as ligações que
unem os pensamentos podem sofrer tal agressão. Bion (1988) relata que a
consequência será a formação de objetos bizarros, pela união de fragmentos
de self projetados em objetos, que assim adquirem características estranhas.
Seu uso funcional normal fica prejudicado, e podem ser assustadores para o
ego que não os reconhece mais. Tais objetos podem ser recolhidos por uma

31
Klein também usa o termo para falar de estados não integrados e fragmentários no bebê recém-
nato:“ Eu diria que ao ego primitivo falta coesão, em elevado grau, e a tendência para a
integração alterna com a tendência para a desintegração, a fragmentação em múltiplas
parcelas”, em Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In: KLEIN, M.; HEIMANN, P.;
ISAACS, S.; RIVIERE, J. (Orgs.). Os progressos da psicanálise, cit., p. 317.
58

organização patológica e sob seu domínio podem servir para coagir as áreas
mais neuróticas do ego.

Se algum grau de cisão normal puder ser mantido para se preservar alguns
objetos bons que possam ser reconhecíveis e fornecer proteção, ainda será
possível que a fragmentação se limite. Mas se a inveja (KLEIN, 1991) tiver sido
demasiada e tiver colocado em dúvida a bondade dos objetos, haverá poucos (ou
frágeis) objetos bons aos quais recorrer. A confusão e o horror predominarão.
Justamente nesses momentos uma organização patológica poderá ser acionada,
como forma de escapar ao caos e ao desespero, e sua onipotência será
confundida com proteção. O paciente pode se acalmar não por retornar ao
normal, mas porque nele se estabeleceu a organização. Ela assumiu a situação
caótica e trouxe uma espécie de calma, porém embasada numa grave distorção
da realidade interna e externa.

Bion (1966, 1988) introduziu o conceito de continência para designar a


capacidade de manter estados psíquicos no próprio psiquismo, com toda a
magnitude emocional que eles possam oferecer. Trouxe a capacidade materna de
conter as ansiedades do bebê como o protótipo da continência e o fato de a mãe
ser capaz de exercê-la como a base para a criança desenvolvê-la. A continência
implica, além do acolhimento do que foi projetado, na realização de um trabalho
mental com o que foi projetado, sendo um processo psíquico ativo (BION, 1966,
1988). Assim, um bebê pode aprender a capacidade de continência, e a vivência
do processamento mental das angústias, desde que tenha na mãe alguém capaz
disso e que ela também possa lhe transmitir condições facilitadoras dessa função
mental. Portanto, o paciente depende de seu analista para fazer isso por ele e
com ele, e a emergência do refúgio tanto é desejada, quanto temida. No entanto,
o refúgio mimetiza uma continência que foi importante ou foi a única encontrada
nos momentos de caos e de fragmentação, e que é capaz de competir com a
continência verdadeira.

A permanência no refúgio faz com que não se sofra a experiência de estar


sozinho, e ter que fazer algo por si, não se percebe bem a perseguição ou a
fragmentação, mas a falta de algo – uma continência verdadeira, objetos reais e
confiáveis - está no horizonte e pode motivar tentativas de sair do refúgio
(STEINER, 2011). Neste refúgio há uma vivência de uma relação narcísica
59

extrema, o que remete ao fato de que a onipotência decorre da fragilidade que se


destina a encobrir. Assim, tendo o refúgio como horizonte, seu portador seguirá
submisso. Como o rei do conto A roupa nova do rei , ele está despido das
capacidades de sofrer perseguição ou perda (oscilação normal entre as posições
esquizoparanoide e depressiva)32 e não vê como isso o empobrece, está nu ao
vestir-se com um poder imaginário. Nesse estado, é difícil aprender com a
experiência, o que ocorre com o rei na história. Só a criança que o vê sem a
roupa e aceita esse fato consegue aprender algo (por ser a parte mais
dependente e menos onipotente).

Habitar um refúgio pode dar a impressão de que se está num local onde
não há angústia. Mas não se trata exatamente disso. A rede de defesas forma
obviamente um apoio. Há algum equilíbrio, mas ele não é um equilíbrio saudável
e por isso a qualidade do bem estar que proporciona é espúria e não convence o
tempo todo. Por se tratar de uma posição (ou como se fosse), não se constitui
num sistema absolutamente fechado, e muitos pacientes procuram ajuda e têm
necessidade de obtê-la quase tão intensamente quanto têm necessidade de
permanecer no refúgio. Steiner, no entanto, concorda com as pesquisas de
O`Shaughnessy33 com pacientes com sistemas defensivos doentios e afirma:

Uma questão muito significativa surge de sua descrição sobre o destino


da organização, quando o desenvolvimento ocorre realmente. Isso não
significa que a organização foi desmantelada, mas que se desenvolveu
uma cisão na personalidade e, apesar da existência ininterrupta das
organizações patológicas da personalidade, uma parte do paciente, a
que foi capaz de ficar em contato com seu objeto e com a realidade, foi
reforçada. Uma parte onipotente do paciente continuou preferindo
manter a identificação projetiva com os poderosos objetos destrutivos,
sendo obstrutiva e desdenhosa para com os esforços realistas de
desenvolvimento. (STEINER, 1997, p. 69).

Da citação anterior, percebe-se algo que Steiner considera outro elemento


fundamental na sustentação e no poder das organizações patológicas. Elas
permitem e dão guarida às relações perversas dentro da personalidade. Ele
ressalta (como fez O`Shaughnessy) que uma parte do paciente pode ser capaz,

32
Posição esquizoparanoide← → Posição depressiva, na acepção bioniana de equilíbrio dinâmico
entre elas.
33
Refere-se ao trabalho dessa autora: Um estudo clínico de uma organização defensiva. In:
SPILLIUS, Elizabeth Bott (Org.). Melanie Klein hoje: desenvolvimentos da teoria e da técnica. 1.
ed. Rio de Janeiro: Imago, 1991, grifos nossos.
60

através da análise e de outras experiências, de ter maior contato com o objeto e


com a realidade, mas, mesmo com esse progresso, persiste noutra parte a
identificação projetiva com os objetos destrutivos. Steiner baseia-se no que Freud
(1919) observou sobre o fetichismo, para compreender o teor perverso das
relações da organização. Freud esclareceu que a perversão, assim como a
neurose, seriam um compromisso formado a partir do conflito entre a pulsão, a
defesa e a ansiedade. O ego faria uma espécie de barganha com o id, aceitando
que certos atos perversos permaneçam egos sintônicos, e o id aceitaria a
repressão de outras satisfações pulsionais.

Steiner utiliza o conceito de perversão de forma mais ampla do que a


ligada à esfera da sexualidade. Ele diz que a perversão implica em falsear a
realidade que é simultaneamente percebida e em não abrir mão das duas
possibilidades, ou seja, da falsa e da verdadeira. Há condições para haver um
insight mais profundo, mas este é deixado de lado e o acordo perverso, mantido.
Steiner coloca:

Deveria enfatizar-se que não é simplesmente a coexistência da


contradição que é perversa, porque tal contradição pode resultar, em
última instância, em um nível mais primitivo, da cisão do ego. A
perversão surge quando a integração começa, e tenta encontrar uma
falsa reconciliação entre visões contraditórias que se tornam difíceis de
manter separadas à medida que a integração prossegue. Tal
reconciliação não é necessária quando a cisão mantém as visões
contraditórias totalmente separadas e incapazes de se influenciar
mutuamente. O problema surge somente quando a cisão começa a
diminuir e há tentativa de integrar as duas visões. (STEINER, 1997, p.
112).

Steiner afirma que são encontrados elementos perversos no self carente, o


qual, muitas vezes, pede e aceita a proteção e a exploração perversas, apesar de
ter insight dos acontecimentos. A parte narcisista da personalidade pode ter
um poder desproporcional por controlar as partes sadias e por ir
convencendo-as a fazerem vínculos perversos. Mesmo tendo insights sobre os
métodos cruéis da parte onipotente, através da vinculação perversa é possível
que o paciente continue dando a liderança de sua personalidade à área
narcísica. Não se trata de uma simples cisão, mas do reagrupamento de partes
cindidas sob o comando da organização patológica, e o paciente não é apenas
uma vítima inocente.
61

A saída do refúgio constitui um longo e difícil processo de elaboração. Ao


emergir dele (ou tentar) o paciente se sentirá como alguém que vê a própria
autoidealização exposta e ficará envergonhado e humilhado (STEINER, 2011). É
difícil admitir o narcisismo e, nesses pacientes que o têm de forma tão
exacerbada é mais duro ainda encarar essa situação. Eles não desejam admitir
que pudessem ser ou ter em si tanto narcisismo. Se a admiração pela
organização e por si mesmo entrar em colapso, esses pacientes podem sentir que
serão eternamente humilhados. São intensos os sentimentos de terem sido
injustiçados e mal entendidos, e de que o analista será uma espécie de torturador
que os exporá a contínuas perdas e humilhações.

Ao analista resta ter paciência e habilidade para não reforçar esses


sentimentos de humilhação e para apontar o exagero sedutor e perverso de
alguns deles. Essas sensações são provocadas pela parte onipotente, que tenta
encontrar estratégias para restabelecer seu domínio. Há que ter cuidado para não
ser superegoico nem ter pressa, pois pode ser necessário aceitar voltas ao
refúgio e ataques. Em princípio, muitos pacientes não conseguem ver nenhum
ganho em sair do refúgio. Isso pode levar o paciente a entrar numa situação
persecutória, indo do refúgio para uma posição francamente esquizoparanoide e,
por esse motivo, retornando ao refúgio. Essa dificuldade é demonstrada no
estudo que Steiner faz do caso Schreber, em que clareia o modus operandi da
organização patológica liderada por uma parte psicótica e onipotente.

Outra questão seria o doloroso e não menos difícil enfrentamento das


vivências depressivas, situação também evidenciada no estudo de Schreber34. O
paciente que se recolheu ao domínio de um refúgio receia seus sentimentos
amorosos, e teme profundamente depender de objetos reais, que podem frustrar
e falhar, pois não são onipotentes. O acordo perverso faz com que seja mais
aceitável permanecer dominado pelo refúgio do que tentar viver e vincular-se a
objetos reais. A perversão, no entanto, engendra para o indivíduo sob seu
domínio, uma vida dependente de falsos objetos bons, dotada de uma
estabilidade enganosa e no fundo amarga. Justamente por isso, sair do refúgio
segue sendo uma possibilidade desejável.

34
Tal caso será discutido em outra parte do presente trabalho.
62

4.4 Claustros: territórios interiores para onde a identidade pode ser


seqüestrada

As ideias aqui coligidas vêm de um livro de Donald Meltzer intitulado The


Claustrum e trazem aportes significativos aos campos da identificação projetiva e
do mundo interno, mas também se encontram em vários outros trabalhos do
autor. Suas contribuições baseiam-se em longos anos de experiências clínicas
com crianças e adolescentes. Ele descreveu um tipo de identificação chamada
intrusiva, ou identificação projetiva intrusiva, que provinha e contribuía para
sedimentar características psíquicas especiais.

Tais crianças ou jovens formavam núcleos importantes de identidade a


partir da projeção que faziam para dentro de objetos parciais de seu mundo
interno. Elas tinham a fantasia de invadir maciçamente o corpo materno e ficavam
emocionalmente presas ao tipo de funcionamento ligado às características que a
parte do corpo invadida adquiria em suas mentes. Essas identificações tornavam-
se base para funcionamentos psíquicos estáveis, que incluem sistemas
defensivos complexos e, por isso, sua pertinência a essa pesquisa. As vivências
especiais dessas situações servem para formar o que ele denomina Claustros.

Para Meltzer, as funções mentais se iniciam nos últimos meses da vida


intrauterina, e isso o fez supor que perturbações e/ou traumas na gestação e ao
nascimento podem fazer com que o bebê abandone aspectos mentais, que teriam
começado a se desenvolver no útero. A falta desses aspectos e/ou a interrupção
do curso de seu desenvolvimento criaria dificuldades para a integração de outros,
além de favorecer a instalação de lacunas no crescimento e na resposta aos
estímulos do ambiente (mesmo que adequados). É oportuno relembrar que a
possibilidade da instalação de uma organização patológica e de refúgios
psíquicos é aumentada após graves experiências de perda e abandono. Esse fato
permite intuir que crianças ou pessoas fragilizadas, por suas imensas
necessidades, podem ser mais suscetíveis a se organizarem dessa forma diante
de experiências dolorosas. No entanto, cumpre mencionar que, no caso da
identificação projetiva intrusiva, a inveja é uma característica que parece estar
presente num grau exacerbado.
63

Meltzer define os espaços do mundo interno da seguinte forma:

1- o mundo externo; 2- o útero; 3- o interior dos objetos externos; 4- o


interior dos objetos internos; 5- o mundo interno; 6- o sistema delirante:
nowhere, não lugar, lugar nenhum.

Diferenciando áreas do mundo interno, é possível raciocinar sobre como


elas interagem entre si e quão complexas podem ser as interações35. Muitos
aspectos de como um sujeito sente e vivencia seus objetos reais e a si próprio
dependem disto. Por exemplo, o espaço interno de um objeto interno pode ser
muito diferente da representação do espaço interno desse objeto quando em seu
estado de objeto externo, o que, por sua vez, é diferente de seu aspecto externo,
embora todos esses aspectos façam parte do mundo interno do sujeito. Essas
considerações levam a pensar nas muitas implicações técnicas decorrentes disso,
e diferenciar várias nuances dos processos de identificação. Demonstram a
existência de um cosmos sofisticado em cada mente individual. Por outro lado,
expõe a intrincada e difícil tarefa do analista, principalmente quando a área do
mundo interno for o nowhere36.

Ao descrever a geografia do espaço mental interno, Meltzer está


interessado principalmente nas personalidades que fixaram seu senso de
identidade numa parte infantil que habitava algum desses mundos. Por isso, ele
cunhou o termo identificação projetiva intrusiva. Tal termo serve para salientar um
tipo de identificação projetiva em que a mente que a produz deseja habitar, residir
numa região do objeto. Na verdade, essa região está estabelecida no espaço
mental de seu portador, mas foi criada pela fantasia de penetrar no interior do
objeto e lá permanecer secretamente. Portanto, funciona para o ego, como se
fosse o interior do objeto.

Essa região goza de certa independência, ficando até certo ponto livre da
influência de processos maturacionais do resto do eu e, por isso, Meltzer chamou-
a de Claustro. Nela, uma parte do self infantil permanece numa relação primitiva e

35
Aspecto também discutido mais adiante ao mencionar ideias de Grotstein.
36
Esta área poderia conter os estados que Tustin e Mitrani descrevem em que não há
simbolização e há fenômenos protomentais, por exemplo, pseudorrelações objetais adesivas.
64

rígida com seu objeto, como um “congelamento” organizado fortemente pelas


identificações projetivas e defesas onipotentes da posição esquizoparanoide. A
fantasia de penetrar ativa e forçadamente (em segredo) no objeto é dominante, e
não seria uma projeção simples de partes para dentro dele. A intenção é habitar o
objeto. Essas crianças parecem bastante incapazes da capacidade negativa, isto
é, preenchem logo as expectativas, não conseguem tolerar construir um objeto
aos poucos e, portanto, procuram uma forma mais rápida de “construir” seu
mundo interior.

A fixação da identidade num claustro implica outras diferenças para com o


desenvolvimento normal. Isso não ocorre por imaturidade, nem pelas cofusões de
zonas, que podem ocorrer na mente infantil (mencionadas por Money Kyrle), mas
por causa de fenômenos que Bion classificou na coluna dois de sua grade37, que
neste caso seriam mais difíceis de mudar, por estarem sob o domínio de uma
função alfa inversa ou reversa. Esse tipo de distorção da função alfa ocorre por
intolerância à dor da formação de símbolos, e não há uma evolução para a
capacidade de pensar, mas uma produção de elementos beta com traços de
ego e superego. São simulações, mas podem convencer, e vem da
incapacidade de transformar os elementos beta em alfa, criando elementos
que simulam a função alfa.

Também é mencionada a implicação dos vínculos tipo minus para a


formação desse sistema, bem como mecanismos onipotentes como splitting,
controle onipotente dos objetos, e identificação intrusiva.

De um lado, poder-se-ia alinhar as manifestações das confusões infantis


tanto geográficas quanto da natureza da zona ao longo do
acompanhamento da a tese de Money-Kyrle sobre as concepções
confusas ou equivocadas do período do desenvolvimento infantil. Em
contraste com isso, estão as construções patológicas que nascem
daquilo que Bion chamou “mentiras” ou coluna dois da Grade, que são
falhas da função alfa, talvez induzidas por aquilo que chamei fabulação
por reversão da função alfa com detritos (de elementos beta com traços
de ego e superego), dos quais objetos bizarros e o sistema delirante
alucinatório são moldados, pelas forças de menos LHK e, finalmente,
pela operação de mecanismos onipotentes (splitting, controle
onipotente de objetos e identificação intrusiva). (Tradução livre).

37
A grade é um sistema de notação para que o analista possa situar em que nível de evolução e
utilização do pensamento estão ele e o paciente, a coluna 2 seriam elementos beta, concretos,
que precisam ser modificados pela função alfa para que sirvam como elementos para pensar.
65

On the one hand one can range the manifestations of infantile confusions
of both a geographic and zonal nature along with Money- Kyrle´s thesis
of developmental misconceptions. In contrast to this are the pathological
constructions which arises from what Bion calls “lies” or column 2 of the
grid, failure of alpha –function perhaps induced by what I have called
“story-telling” reversal of alpha-function with a debris( beta-elements-with
traces of ego and superego) from which bizarre objects and the
delusional system are shaped by the forces of minus LHK, and finally the
operation of omnipotent mechanisms (splitting process, omnipotent
control of objects and intrusive identification). (MELTZER, 2008, p. 61).

Bion pensa que emoções são fatores presentes em qualquer vínculo


humano, e que a criação de conexões e, portanto, a possibilidade de
compreensão depende disso (BLÉANDONU, 1993). Propôs o termo vínculo e
também “elos de ligação” para falar do mesmo fenômeno38. Os vínculos são
experiências emocionais entre duas pessoas relacionadas entre si, ou entre
partes da mesma pessoa, por exemplo, entre objetos internos. Eles criam
consistência e entrosamento entre conteúdos ou “matéria mental”. Ele os
denominou de vínculos Hate: H (ódio), Love: L(amor,) e Knowledge: K,
(conhecimento), dependendo da emoção predominante (BION, 1966; MELTZER,
1998, 2008, ZIMERMAN, 2004). Em sua vertente minus, são: menos
conhecimento, menos amor, menos ódio, isto é, distorções dessas emoções,
inverdades que tentam parecer verdades, invalidando as capacidades que elas
teriam e trariam.

Há outros modos de uma pessoa se tornar habitante do claustro. Um deles


seria decorrente do que ele chama de indução passiva para dentro de objetos
externos39, que é associado a certas circunstâncias. Uma dessas seria a perda de
um objeto externo com o qual a criança tinha intensa ligação e transferência. Tal
criança em sofrimento pode “escorregar” para dentro desse objeto (ou talvez criar
algum tipo de equação simbólica com ele). Passaria a agir como se tivesse se
tornado o objeto perdido (MELTZER, 2008), como se o tivesse engolido, como
uma incorporação oral canibalística.

38
Segundo Zimerman, in Bion: da teoria à prática, uma leitura didática. Porto Alegre: Artmed Ed.,
2004. p. 103.
39
Aqui é pertinente lembrar-se do que Frances Tustin e Judith Mitrani definem como a aderência a
um objeto. Embora para Meltzer exista um interior do objeto, o fato de haver um deslizamento
para dentro do objeto parece sugerir uma possível aderência a este, sem noção da
complexidade do objeto, isto é por aderir aquilo que o objeto parece ser, dando a impressão de
se tratarem de fenômenos que têm alguma relação um com o outro, embora sejam diferentes.
66

Outro processo que pode ter resultado similar seria consequência da


pressão que alguns objetos externos, como os pais, exercem sobre seus filhos,
através de suas projeções intensas e hipnóticas que atraem a criança para dentro
de si. Melhor dizendo, a criança é seduzida e estimulada ou mesmo coagida a dar
um lugar muito grande em seu mundo interno para seus pais, e passa a viver no
interior dos objetos pais (ainda que isto ocorra no mundo interno da criança),
como se tivesse sido sugada. Nestes casos, as identificações narcisistas mútuas
são propiciadoras da atração.

Os habitantes do claustro acreditam que as outras pessoas vivem em seus


próprios claustros. As áreas dessa geografia intrapsíquica se comunicam e a
criança ativamente transita por elas.

A primeira dessas áreas seria chamada Head-breast ou “peito–cabeça”, e


seu habitante tem tranquilidade, plenitude e segurança, acreditando que irá
receber tudo de que precisa e ser cuidado num modo oral receptivo. Ele sente
que haverá sempre um objeto disponível fornecendo o que ele precisa, sem que
tenha que fazer esforço, o que faz com que procure esse tipo de relação com
outras pessoas, sendo este o maior objetivo do habitante desse claustro.

Lembra o funcionamento da mentalidade de suposto básico de esperança


messiânica, seu residente mora com o messias (neste caso a mãe), e espera que
ele (ela) resolva tudo por ele. As mentalidades de suposto básico foram descritas
por Bion em seu livro Experiências com grupos como sendo funcionamentos
psíquicos primitivos, sem a capacidade de pensamento verdadeiro.

Outro compartimento seria o dos genitais dos pais ou da mãe, contendo o


falo paterno. Nesse Claustro, a pessoa deseja ser objeto sexual irresistível de
outra pessoa, e de várias pessoas, para afirmar cabalmente tal “potência”. O
clima de sedução e erotismo parece ser o sentido da existência, e há um
endeusamento do falo. Os habitantes desse claustro estão sempre buscando
experiências sexuais, sustentam-se como objeto erótico e disso retiram uma
sensação de prazer e poder. Dominar e seduzir seriam a tônica do mundo.
Existiria um estado de obsessão pelo encanto e pelo exercício sexual, como
forma de domínio do outro. Meltzer usa ao termo “religião priápica”, para falar do
modo como estas pessoas parecem precisar viver. Lembra o grupo de
67

acasalamento, embora nesse caso o grupo de acasalamento pareça mais leve e


menos destrutivo.

Finalmente, outro claustro seria no reto, a parte final dos intestinos, em que
as sensações dominantes - e em consequência a dinâmica do mundo- seriam o
reter coisas boas e expulsar inimigos. Implica na crença de que existir se baseia
em lutar e/ou fugir, num clima que corrobora o tipo de mentalidade proposta por
Bion para o grupo de luta e de fuga. Livrar-se do que é ruim e preparar-se para
novo ataque é a regra. A vida estaria totalmente voltada para expulsar ou reter.

Por se terem deixado dominar pela fantasia de invadir o corpo materno, os


habitantes do claustro têm medo de serem expulsos do local onde vivem. São
como parasitas e têm medo de serem perseguidos. Em que pese o fato da
fantasia onipotente, é preciso lembrar que o psiquismo só consegue equilíbrio real
lidando com suas questões internas de modo realístico e não mágico.

Meltzer propõe que os motores da intrusão seriam a voracidade, a inveja e


o desespero. O objeto atraente, visto como detentor de tudo o que importa,
precisa ser invadido e dominado. A inveja da beleza e do saber que esses objetos
detêm (que são vistos de forma ideal e irreal) parece minar e até, em alguns
casos, solapar o amor e a admiração por eles. Mesmo as necessidades de se
comunicar e de ser acolhido podem ser prejudicadas e enfraquecidas pela
premência de invadir e conquistar.

A inveja, nesses casos, se associa ao instinto epistemofílico, fazendo com


que o desejo de conhecer seja deteriorado e se transforme, sempre lembrando os
vínculos -K, num apoderar-se onipotente do saber do objeto. Consequentemente,
o invasor fica aprisionado no objeto, uma vez que dele extrai o que precisa, e
neste interior pode se sentir perseguido. Mas, ao mesmo tempo, sente não ter
saída, por precisar desse objeto. Por isso, tenta controlá-lo e também não existe
aprendizagem, - fato que os vínculos em vertente mais (+L, +H, +K) permitiriam -,
pois a identificação não ocorreu para comunicar e ser reintrojetada, mas por seu
aspecto invasivo e parasitário.

A palavra claustro deriva-se do latim claustrum e significa uma área dentro


de mosteiros onde os iniciados circulam, e que comunica seus aposentos íntimos,
através de corredores ou de jardins internos. Por lá só circulam os selecionados e
68

já aceitos na seita. Vê-se que Meltzer fez uma boa escolha ao usar tal palavra
para descrever o que observou.

4.4.1 Comparando claustros e refúgios

Por todas as características arroladas, os claustros assemelham-se a


refúgios: constituem-se por conjuntos de defesas extremamente organizadas e,
portanto, estáveis, as quais, como nos refúgios, promovem uma maneira alterada
de lidar com agruras das posições esquizoparanoide e depressiva. Em todos eles,
há uma parada no desenvolvimento, vivências e relações de objeto peculiares.
Deixar os claustros é difícil, pois além da sensação de estarem presos pela
identificação projetiva intrusiva (que também cria o clima de claustrofobia), existe
ali a sensação de pertencimento e de identidade.

Por exemplo, no compartimento chamado peito-cabeça (Head-brest), as


defesas criam a sensação de segurança e de sustentação por um objeto
idealmente poderoso e provedor: o seio e a cabeça da mãe. Há uma sensação de
interesse, mas pouco intenso, pelos desafios da vida, uma espécie de
acolhimento educado, mas superficial das coisas vivas. Não há lutas, nem muitas
expectativas ou sonhos, trazendo a sensação de se estar livre e longe de
carências e angústias. Esses moradores podem demonstrar enfado e agir como
se as demandas por buscar ligações e desenvolvimento fossem para outros, não
para eles. São capazes de manter relacionamentos afáveis, mas pouco
profundos, pois o egocentrismo predomina. Podem aceitar situações de perversão
ou conluios doentios em seus relacionamentos, desde que o objeto os sustente e
exija pouco mais que conivência. Note-se que Meltzer, embora descreva
exemplos marcantes de habitantes de seus claustros, também relata graus mais
amenos de pertencer a eles e a outros espaços dos objetos internos.

A questão da claustrofobia e a presença simultânea de receios de expulsão


merecem pequena digressão. Como a entrada no claustro foi realizada de forma
forçada, ou sub-reptícia, e não pela via de identificação projetiva comunicacional,
o receio de ser expulso é constante. Há também um desejo de se libertar do
claustro, mas sem esforço. Há que lembrar que, aquele tipo de vida psíquica
69

parece ser a única possível, o que implica que seus habitantes receiem não
conseguir viver de outra forma, e possam acreditar que aquele modo de vida
mental seja o único possível.

Por ser uma entrada intrusiva, a perseguição pelo objeto invadido está
sempre em pauta, e as relações com esse objeto tem boa dose de ambivalência.
Não se trata de acolhimento ou continência verdadeira. Além disto, o objeto foi
deformado pelas projeções, pela atividade de pensamento mágico e contém
elementos beta, com traços de superego e de ego (BION, 1988, MELTZER,
2008). Assim, torna-se facilmente um perseguidor, contribuindo para a
claustrofobia. A identificação intrusiva também implica na existência de
voracidade e inveja, que são projetadas no objeto. Portanto, mesmo que o
claustro contenha elementos desejados, também contém partes hostis e/ou
destrutivas.

O desejo de ter uma vida mental livre e criativa existe, como nos refúgios,
mesmo que submisso, e aumenta a sensação de confinamento e claustrofobia, a
qual também pode ocorrer nos refúgios. Além disso, ficar aprisionado em
qualquer outro tipo de reduto é uma ameaça e uma atração permanente para a
personalidade com essa dotação (claustrofilia, isto é, a tendência e/ou afinidade
para entrar em claustros).

Percebe-se também na qualidade das relações do habitante do claustro e


seus objetos, bem como nos refúgios, que há sempre algo sádico ou masoquista,
e que são objetos parciais. Em ambos há uma estrutura de objetos organizados
de tal forma que controlam, submetem, e dominam outras áreas do ego, que não
pode por isto crescer. Neles também os objetos são parciais e onipotentes. A
elaboração das angústias paranoides e depressivas não é possível nos claustros
nem nos refúgios.

Na proposta de Steiner, a questão de fugir das dificuldades das posições é


central. Na de Meltzer, embora haja sensações de desconforto fóbico e receio de
expulsão, esses sentimentos se alternam ou são sobrepujados por outros, de
proteção e de ser vantajoso estar no claustro. Mas as defesas que sustentam tal
estado, embora poderosas, não emergiram após uma situação de fragmentação e
caos mental.
70

Mesmo o habitante do reto, onde as angústias paranoides são mais claras,


pode migrar para o Head-breast e, temporariamente, eclipsar a situação
esquizoparanoide. No entanto, a identificação com defesas muito onipotentes faz
com que a situação paranoide possa ficar sob controle, gerenciada pela
organização patológica. Portanto, objetos onipotentes e identificações narcísicas
(com componente destrutivo) estão presentes tanto na proposta de Meltzer
quanto na de Steiner. A divergência quanto ao conforto em cada um dos redutos
pode ser minimizada, se considerarmos que, no refúgio, também existe o medo
de ser odiado pelo objeto onipotente e protetor, bem como a necessidade de
obedecer a ele para não sê-lo. Observa-se assim um aprisionamento aos desejos
do referido objeto, o que pode levar o paciente a um relacionamento
claustrofóbico.

A falsa continência existe em ambos os casos, pois, no claustro, o objeto


foi invadido e, no refúgio, mesmo sem a invasão o objeto também é parcial e
onipotente e desumano, como parte da organização patológica. Portanto, há, em
ambos, um mimetismo de continência, nunca uma continência real.

Indo mais além, observa-se que, nas situações graves de doença mental,
as sensações de estar junto a um objeto poderoso (e perseguidor, pois
desumanizado) são frequentes, por exemplo, nos chamados estados de pânico,
em que o objeto perseguidor fica localizado em algum órgão corporal, e a
situação psicológica é a de uma fobia a algo alojado nesse local. Veem-se, dessa
forma, confluências nos conceitos de refúgios e claustros entre as quais deve-se
ressaltar a importância central da relação de objeto onipotente e narcísica, que se
estabelece no âmago do ego e se torna duradoura.

Importa referir que a entrada no claustro é buscada sorrateiramente pelo


sujeito, com uma fantasia poderosa de intrusão e para estabelecer uma
identidade. Já no refúgio houve uma espécie de colapso psíquico, com uma perda
insuportável e uma experiência de não encontrar continência (ou não poder
aceitá-la) e, portanto, acabar buscando-a de forma espúria. Nessa última, o objeto
parcial onipotente surge como a única opção para organizar e amenizar o
sofrimento. Variam, assim, as formas sob as quais se entra em contato com o
objeto parcial onipotente, e as causas que podem levar a isso.
71

Meltzer concebe que, diferentemente da entrada num refúgio, alguns


habitantes de claustros foram para lá atraídos ou mesmo forçados pela sedução
de um adulto importante para aquela criança. Isso significa que Meltzer aventava
a possibilidade de um adulto portador de um objeto parcial onipotente atrair um
sujeito vulnerável, e coloca a relação humana no centro do problema.

Na proposta de Steiner, em que pese a ênfase à luta interna do ego,


acossado pelas dores das posições esquizoparanoide e depressiva, também é
mencionada, como muito significativa para a construção de refúgios, a influência
do meio externo. Tal influência é exercida por objetos hostis, que podem diminuir
as oportunidades da criança de introjetar objetos verdadeiramente continentes e
bons, e contribuir para a internalização dos maus. Observamos também que o self
fragmentado e carente poderá ser seduzido pela parte onipotente e permitir que a
organização patológica estabeleça seu domínio.

Mesmo com defesas tão poderosas, a situação nos claustros não é boa. As
vicissitudes da vida põem em xeque as defesas que, frequentemente, irão
fracassar. Diante das experiências reais da vida, os claustros desempenham um
papel de convidar à retirada e não a alcançar algo na vida. Por isso, muitos
pacientes buscam ajuda, mas, mesmo assim, podem ser atraídos de volta. Essas
vicissitudes expressam e trazem os balanços entre as possibilidades de saída e
os retornos aos claustros.
Meltzer diz:
Em resumo, a experiência analítica com crianças e adultos sugere
fortemente a existência de uma ou outra parte infantil vivendo tanto em
identificação projetiva quanto facilmente provocada a entrar no claustro
de objetos internos, com muita frequência. Toda análise começa com
copioso material sobre esgotos, encontros eróticos ou felicidade
parasitária, tão cedo quanto a transferência preformada possa ser
dissipada, de modo que algum grau de intimidade possa ser permitido.
(Tradução livre).
In summary, psycho-analytical experience with children and adults
strongly suggests that the existence of one or another infantile part either
living in projective identification or easily provoked to enter the claustrum
of internal objects is fairly ubiquitous. Every analysis begins with copious
material referable to the sewer, the erotic encounter or parasitic bliss, as
soon as the preformed transference has been dispelled so that some
degree of intimacy can be allowed. (MELTZER, 2008, p. 134).

As palavras anteriores afirmam ser frequente que partes infantis do self


vivam em identificação projetiva com objetos internos e sejam facilmente incitadas
72

a entrar nos claustros desses objetos (portanto, que tenham criado objetos
internos assim). Propõe que essas fantasias são regularmente encontradas nos
pacientes em geral, e que a busca de projeções que aliviem por soluções
onipotentes, paralela e concomitante à necessidade de encontrar continência
verdadeira, está sempre presente na mente humana. Atesta-se com isso a
regularidade com que as fantasias de estar no interior de objetos internos
aparecem num processo analítico, e a importância de diferenciar e compreender
as várias nuances da continência e da identificação projetiva intrusiva.
73

5 RETOMANDO A CLÍNICA: ONDAS SE DESDOBRAM

5.1 A partir do balanço do ritmo de segurança: entre o acolher e o aderir

Navegar é preciso, viver não é preciso. (Fernando Pessoa)


Navigare necesse, vivere non est necesse (Pompeu, general romano
106-48 AC, citado por Putarco)

A sensorialidade, o ritmo e as variações sonoras estavam constantemente


presentes nas sessões e, durante algum tempo, seguir estas vivências foi
importante. Mas à medida que o processo transcorria, falar e pensar no ritmo
musical e ao mesmo tempo dissonante remetia a defesas autistas que buscam
eco e a discordâncias, que pareciam denunciar tema bem diferente.

Por mais que tivéssemos alcançado alguma sintonia, que poderia lembrar
um ritmo de segurança (TUSTIN, 1990), este parecia frequentemente se romper.
A sensação de desconforto que me ocorria com regularidade fazia com que eu
sentisse que, embora ondulações fossem naturais, havia outro fenômeno
paralelo. Sentia-me visitada por angústias: magoá-lo, “falhar”, não o entender,
como se isso fosse algo muito reprovável, quase um insulto.

Por outro lado, era óbvio: falhas existem, e precisam ser sentidas, pois
fazem parte do processo de análise (e de separação), e até o ritmo de segurança
tem seu “vaivém”. Se houver crescimento, a descontinuidade é sentida, tanto na
parte autista quanto nas partes neuróticas, que podem reaver suas projeções
(BION, 1988). Parecia-me que minha preocupação de não decepcionar, que só
aos poucos percebi ser contratransferencial, tinha raízes noutra situação. O
vislumbre de uma parte não autista, que desejava estabelecer um contato
onipotente comigo, para que auxiliasse a refazer/fazer outras defesas, precisava
ser cogitado. Talvez as questões dos refúgios surgissem por esse motivo. Eu
procurava uma forma de compreender melhor o que acontecia, de não atropelar,
constranger ou subestimar a necessidade de continência (MITRANI, 2007; BION,
1966), mas também me questionava: estaria fazendo um acordo perverso com ele
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(STEINER, 1997)? Eu estaria tendo insights, mas pensando poupar e acolher


aspectos autísticos, deixava-os passar?

Outro ponto relevante era o fato de Mariano fazer muitas críticas à família e
a pessoas que não tinham paciência para ouvi-lo, ou não parecessem
empenhadas em fazê-lo. Também ficava muito tenso e se fechava quando se
decepcionava com sua performance. Como consequência, havia um sutil
retraimento que podia se manter por semanas, nas quais ele parecia não alcançar
ou não conseguir aceitar qualquer ajuda.

Por mais que fosse preocupado e compreensivo com muitas pessoas,


gostasse de tocar música com colegas, de festas e de socializar-se, parecia
capaz de criar uma distância, como se um aspecto essencial dele, que era a
necessidade de envolvimento, nunca tivesse lugar para realmente se estabelecer.
Era também frequentemente muito duro ao evidenciar erros nos outros. Isso não
parecia ligado à cápsula autista, embora pudesse ajudar a mantê-la. Parecia usar
o mecanismo autista para me atrair, mas usava de projeções constantes e
paralelas para me afastar, e também afastar-se de si mesmo.

Por que alguém que está querendo se comunicar melhor e se aproximar


mais das pessoas, alimentava tantas restrições? Como dar força à voz, à melodia,
ao balanço, se a afetividade que daria base para isso era empurrada para longe?
O som da fala poderia melhorar e, às vezes, melhorava, quando havia menos
queixas e mais receptividade. Quando uma mãe fala a seu bebê é o teor afetivo, o
que envolve o timbre, a alma das palavras que é ouvido, indo além do timbre e da
forma. Portanto, a beleza da forma das palavras não é tão fundamental, e um
bebê pouco conhece de seu significado...

Às vezes, a mãe murmura ou cantarola, e é o que está de certo modo além


do som de sua voz que é ouvido pela criança. A mãe, através da sonoridade e do
envolvimento, convida e reclama a presença da criança e propicia um
entrosamento mútuo (ALVAREZ, 1992) E é por isso que as separações e os
encontros começam a ser vividos no balanço da voz e do contato e formam uma
base para a construção de relações humanizadas (TUSTIN, 1990).

Mariano tinha um relacionamento algo reservado com seus familiares.


Tratava-os bem, mas reclamava muito de despesas, e parecia ser econômico a
75

ponto de achar que gastos normais eram exagero (inclusive a análise, embora
tivesse pedido e obtido um preço especial). A mãe era descrita como muito rígida
e exigente, e rápida para aplicar castigos. Era trabalhadeira, pouco carinhosa,
batia nos filhos quando pequenos, sempre irritada com os conflitos entre eles. Do
pai pouco falava.

Tinha uma ex-companheira, com quem mantinha contatos frequentes,


incluindo relações sexuais, mas afirmava querer separa-se em definitivo. Tinha
filhos com os quais se dava muito bem, desde que concordassem com os
parâmetros financeiros que impunha. Ao ouvi-lo criticar os filhos nas sessões,
sentia-me entediada, e até irritada, pois ele parecia forçar as características
negativas deles.

Depois de seu acidente, havia precisado restringir sua vida profissional,


mas era estudioso, muito inteligente e perspicaz. Buscava atividades nas quais
pudesse se desenvolver, tinha sonhos e ambições, entre as quais falar bem. Mas
trabalhava muito pouco para quem tinha tantos projetos e não aceitava ser
questionado neste aspecto.

A fala dissonante também sugeria a dissociação entre o que ele pensava


buscar e o que ele queria encontrar. O que ele sentia e o que realizava... Perder a
capacidade da voz seria um sintoma paralelo a outras dificuldades que, por ser
impactante, disfarçava e dificultava a percepção das outras. Parecia às vezes tão
sofrido que só poderia ser tratado com suavidade, mas nele havia posturas
endurecidas, vontade de ser impositivo, enérgico, educador eficiente e líder para
os filhos e, inconscientemente, para as demais pessoas. Eu devia aceitá-lo, mas
isso teria que ser muito diferente de submissão e conluio se quisesse ajudá-lo.
Estávamos então nos deparando com um refúgio?

Outra possibilidade seria que Mariano se recolhia ao claustro de um objeto


acolhedor e poderoso o suficiente para oferecer estabilidade e afastá-lo de
interações mais humanizadas. Meltzer (2008) alega que a infância é muito
propícia para a criação de claustros. A criança fantasia que pode penetrar no
interior de um objeto para dele usufruir e tais fantasias podem perdurar e ser
reativadas ao longo da vida. Como Mariano após o acidente passara por um
processo de longa recuperação, habitar um claustro poderia ser reconfortante
para escapar do sofrimento. O claustro Head-breast com a fantasia de que lá
76

existe provisão e proteções infinitas conseguidas sem esforço poderia ser


propício. Que a análise pudesse se parecer ou se tornar algo similar, era uma
questão que não se podia perder de vista (MELTZER, 2008).

O fato de ele ter muitos planos, mas trabalhar pouco também sugeria a
fantasia daquele claustro. A privação, o pavor e o trauma de ter sofrido um
acidente também favorecem a busca de claustros e refúgios, pois sentimentos de
terror e de aniquilamento são muito mobilizados nestas experiências (STEINER
1997). Steiner também relata que a falta de um objeto realmente capaz de
continência, tanto no meio externo quanto no mundo interno, cooperam para o
estabelecimento do refúgio.

Assim, eu receava que, embora ele quisesse crescer, também poderia não
ser capaz de renunciar ao sistema fechado em que vivia: sonhava muito, mas
fazia pouco e se ressentia com qualquer dificuldade: queria ser entendido, falar
melhor, mas se houvesse alguma rejeição ou limitação por parte do outro, ele se
magoava e tudo se interrompia. Nestes momentos, era muito plausível a ideia de
Meltzer (2008): se ele perdesse o lugar naquele claustro tipo Head-Breast,
poderia se sentir expulso para outro claustro, como o reto, com lutas, perdas e
depreciação. O fato de que tivesse passado pela dura recuperação após seu
acidente fazia coro com essas fantasias e dificultava enxergar as coisas sob outro
ponto de vista.

Steiner (1997) também lembra que o paciente procura análise tanto por
desejar sair do refúgio, quanto para reaver a estabilidade deste. Penso que havia
em Mariano uma ambivalência entre sair e se manter no refúgio e/ou no claustro.
E dava-me conta de que o meu sentimento de “balanço das ondas” podia também
ligar-se a isso, a uma permanência naquela situação, sem que nunca fosse
possível sair. Mais adiante, ao abordar uma sessão em que falamos sobre uma
música (Travessia), as questões do emergir ou retornar ficam mais patentes.
77

5.2 Agitações: dificuldades para uma continência verdadeira entre ilhas de


organização patológica e ondulações autísticas

Damo-nos tão bem um com o outro


Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois,
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda. (Fernando Pessoa)

Notei, a partir de seus relatos, que quando Mariano se aproximava de


alguém, em diferentes situações, procurava criar um clima de respeito para com
ele. Em parte, isso parecia devido ao esforço que ele fazia para falar, criar um
clima grave. O interlocutor parecia sentir-se obrigado a uma postura de seriedade
e solicitude. Isso parecia conter certa forma de pressão e, até certo ponto,
contribuía para estabelecer um molde dentro do qual a relação deveria ocorrer
inclusive na análise.

Tustin (1990) afirma que a ruptura da sensação de continuidade com a


mãe, que autistas e pessoas com barreiras autistas vivenciaram, foi insuportável,
ou num momento em que não havia ocorrido suficiente formação de aparato
mental capaz de tolerá-la. Nessa época, também não havia suficientes condições
para estabelecer funções simbólicas e trocas. Ela e posteriormente Mitrani (2007)
enfatizam a busca pelo ritmo de segurança, mas ponderam que o paciente não
reclama por ele, o terapeuta é quem precisa ser capaz de detectar essa
necessidade e dar uma resposta através da continência.

Quando um paciente é capaz de se queixar e exigir acolhida, é um sinal de


que algo já se desenvolveu. Portanto, as reclamações de Mariano eram, até certo
ponto, um avanço. Mas, aos poucos, comecei a observar que elas tinham outras
funções. A primeira parecia seguir o desejo de ser compreendido e realmente ter
um contato comigo, um progresso na capacidade de solicitar companhia viva
(ALVAREZ, 1992).

Mas, mesmo usando essa capacidade, outra parte dele revelava a


tendência a manter o padrão de pseudorrelações objetais adesivas, de forma que
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se sentir mal-entendido era vantajoso para a área de personalidade que


desejasse manter a aderência como superior a uma verdadeira relação.

Água e locais molhados apareciam muito em seus sonhos. Certa vez,


contou ter tido um sonho do qual gostara muito. Ele se encontrava à beira de uma
lagoa, e com vontade de entrar. Decide-se a fazê-lo e fica muito alegre, pois uma
criança se aproxima dele. A criança, um menino, brincava na água e, então
começa a fazer xixi, mostrando grande prazer com isso. Mariano descreveu o
sonho com entusiasmo, e frisou o ato da criança urinar como coisa prazerosa e
sinal de muita liberdade. Disse que era bom poder fazer xixi onde quisesse, e não
ter problema, não se incomodar com nada. Ninguém iria reclamar ou perceber, a
criança era livre.

Meu primeiro sentimento foi o de continuidade: água, xixi, tudo junto,


molhado, causando a sensação de uniformidade e de continuação, tão
importante para os pacientes com uma cápsula de autismo (TUSTIN, 1990).
Houve, então, uma vivência de acolhida, com vários aspectos juntos, dos
quais seleciono alguns.

Falei com ele sobre a sensação de acolhimento e todo aquele “jogo” de


brincar num lago: ele e a criança estão na água, traziam ideias de aceitação e
liberdade para fazer suas coisas aparecerem na análise. Mas será que era
acolher mesmo ou só ficar molhado junto? A questão das pseudorrelações
adesivas descritas por Mitrani mostrara-se relevante: parece haver relação, mas
se adesiva, seria sem profundidade, sem encontro real, embora a valorização de
um encontro também estivesse presente. Interpretei, ainda, que aquele nosso
encontro, em que havia sonho e conversa, poderia ajudar a pensar se ele estava
disposto a encontros, ou só a ficar molhado, ou misturado...

Ele pareceu achar graça, falou que era difícil saber, e continuou elogiando
a liberdade. Diante disso, pensei que depois do acolhimento, segue-se a
necessidade de entender, e podem surgir aspectos mais estranhos, diferenças,
situações que provocam ciúme, se todos não pensarem igual, ou se alguém ficou
numa posição supostamente inferior. Por exemplo, fazer xixi tem algumas
funções, água tem outras... Depois de haver o real entendimento, podemos ficar
de verdade com alguém.
79

Quando pensamos que tudo fica igual, e é uma continuação, podemos


lembrar também o claustro Head breast: a criança está identificada com um local
para viver onde tudo o que faz é bem-vindo e onde encontra tudo o que precisa, é
uma lagoa que provê tudo de que se precisa, como o bebê que ficou imerso no
líquido amniótico e conseguiu reproduzir esse estado se abrigando no colo e no
olhar atento de sua mãe. Mas encontros para crescer podem mostrar coisas para
além e até divergências.

Outro aspecto do sonho era o fato de a criança ser olhada por um adulto.
Quais aspectos adultos poderiam estar de olho na criança? Os meus? Os dele?
Os pseudo-cuidadores de uma organização patológica? Quando Mariano dá um
sentido de liberdade ao ato de fazer xixi e diz que não há problema, parece
sinalizar algo.

Steiner (2011, p. 60) diz, em seu estudo sobre Schreber, que a onipotência
psicótica deste permitiu-lhe contar suas memórias sem constrangimento,
mostrando francamente sua doença. Assim: “The delusional system acted as a
psychic retreat and functioned as a hiding place that contact with reality would
shatter in a humiliating way.”, Traduzindo: o sistema delirante agia como um
refúgio psíquico e funcionava como um local escondido ou apartado do contato
com a realidade, que se ocorresse, iria despedaçá-lo de maneira humilhante.

Graças ao desprezo ou ao afrouxamento do senso de realidade, o psicótico


revela muito sobre si. Podemos, parafraseando Freud, lembrar que o sonho, ao
afrouxar o senso de realidade, revela aspectos que de outra forma ficariam
escondidos. Isso nos leva a pensar, que, além das questões de uma
pseudorrelação adesiva, que estariam quase manifestas, e com as quais
vínhamos tentando lidar, Mariano trazia algo mais sofisticado. Ele não era
psicótico, e penso que as áreas autistas encobriam, ao menos em parte, uma
organização patológica, que parecia oferecer soluções mágicas: água e xixi
seriam iguais, e liberdade seria poder fazer qualquer coisa, como xixi em qualquer
lugar... Projetar em qualquer lugar, e ter um objeto capaz de proteger e garantir
que as projeções podiam ser feitas com liberdade e sem consequência dolorosa
ou sem responsabilidade de reavê-las. Então falar também poderia ser perigoso,
pois poderia expressar uma liberdade destruidora, agressiva... Quando falamos
precisamos saber quais de nossas palavras são água e quais são xixi. Parecia
80

que eram essas nuances e diferenças que Mariano tentava encontrar e aceitar,
mas também entrava em conflito, por sentir outras coisas, além disso. O conflito
podia distorcer a voz. Como falar com ele sobre tais coisas sem que ele se
sentisse humilhado ou excluído (STEINER, 2011)?

Se Mariano se sentia convidado a elaborar algumas angústias da posição


depressiva, depois de ter sido ajudado e acolhido em seus aspectos autistas, se
ficara encorajado a tentar ir adiante, tínhamos agora novas tarefas: lidar com a
onipotência de uma a organização patológica. Tínhamos que ficar juntos e dois,
com separação e entrosamento suficientes, mas isto não era fácil ou automático,
como na poesia de Pessoa, em que o poeta retrata sua vida junto ao menino
Jesus.

Trazer um sonho onde se colocava a questão da liberdade e seu


significado era promissor. Mas pensar realmente significa tolerar frustrações
(BION, 1988) e se afastar do pensamento mágico (OGDEN, 2012, p. 193-214).
Este pensamento parece se revelar na ideia de que fazer xixi já significa grande
liberdade, e ao fazer na água tudo fica maravilhosamente equivalente e feliz, o
que também remete ao Head breast (MELTZER, 2008). É promissor que um
sonho traga a questão da liberdade, mas Mariano parece sobrepor algo
onipotente à tentativa e à inspiração que a ideia liberdade traz, acabando por
transformá-la em algo um pouco acabado demais, resolvido demais.

Encontrar símbolos e compreensões verdadeiras implica em renunciar a


soluções maníacas e mágicas. Elas parecem deixar-se entrever pelo entusiasmo
do paciente: a criança está feliz porque faz xixi, tudo se mistura, e aquilo é a
liberdade. Uma diferenciação e um caminho para uma simbolização mais
madura estariam perdendo terreno para uma onipotência maníaca que diz que
já se encontrou toda a liberdade, descartando o fato importante de estar
buscando caminhos para ela, sem precipitações. E que sua forma de se
relacionar consigo mesmo e com os outros também teria que revelar esta
liberdade, se ela estivesse ocorrendo.

Ao mesmo tempo, pode-se também pensar na atuação da organização


patológica que diz que a liberdade é fácil, tudo está resolvido. Uma solução
maníaca é oferecida: já se conquistou a liberdade, mesmo sendo através de
81

simples xixi (ou simplesmente atos de evacuação, como se descarregar a mente


fosse o mesmo que estar bem).

Se assim fosse, não haveria porque melhorar a fala, ela já seria boa por ser
uma descarga livre. Se soluções mágicas fossem importantes, ele não precisaria
de mim. Mas se ocorrem outros fenômenos, um acolhimento real, isso poderia
conduzir a outras etapas de trabalho.

Mariano contava comigo para “entregar” suas coisas, mas será que as
aceitaria de volta? Além disso, era importante ajudá-lo a pensar nas diferenças
entre as coisas e as pessoas não como uma agressão, nem como um
expulsar. Seria mesmo ruim ver a diferença entre água e xixi? Será que para
estar junto temos que pensar que tudo é igual? Que sempre continua e
também se mistura?...

Steiner (2011) comentou que Schreber não conseguiu encontrar um objeto


capaz de continência para responder e às suas projeções e nem trabalhar com
elas. Na ausência desse objeto, também não teve ajuda para lidar com a
humilhação que nasceu em concomitância com sua depressão, por não ser capaz
de ter filhos. Schreber não encontrou esse objeto nele próprio, nem naqueles que
tentaram cuidar dele, principalmente no médico que lhe garantiu imensas
melhoras, que não se concretizaram.

Essas agruras fizeram com que fosse impossível para Schreber tolerar e
trabalhar a depressão. Em consequência, voltou à posição esquizoparanoide e,
subsequentemente, à organização patológica psicótica, que criou um refúgio
psíquico (STEINER, 2011). Por isso, Schreber pareceu melhorar e ficar estável.
Tal estabilidade era baseada em crenças onipotentes de ser especial e escolhido
por Deus, e superior aos seres humanos. Schreber não se sentia mais deprimido
nem perseguido, e o sistema cristalizou-se para o resto de sua vida, como se
pode ver em seu livro de memórias.

Steiner (2011, p. 83) pensa como Klein, que o ego é constantemente


sujeito a splitting e, dependendo da pressão psíquica, poderá sofrer
fragmentações patológicas. Acredito, de acordo com Steiner, que naquela sessão,
o analista estava recebendo partes específicas de Mariano que ele não podia
tolerar: a fragilidade, a sensação de receio das soluções onipotentes, a
82

experiência de ser um observador excluído da relação do paciente (STEINER,


2011) com seus objetos onipotentes.

Meu paciente pareceu criar também uma crença em sua habilidade para
selecionar as pessoas e as situações de acordo com o que faziam em relação à
sua voz. Isso poderia ser algo razoável, mas acabou por se transformar numa
exigência excessiva e num critério que excluía e depreciava facilmente, e parecia
ficar, com o tempo, mais a serviço da organização patológica, do que colocá-lo
em contato com o mundo e com a realidade. Tornou-se um motivo para ele ver-se
justificado em diminuir as pessoas e, portanto, ter um tipo de superioridade em
relação a elas, embora isso fosse negado e racionalizado por ele, quando eu
tentava mostrar. Tal fato fazia também ressonância com o que Steiner (2011)
descreve sobre a exclusão do analista.

Recapitulando: eu ficava na posição de observá-lo em suas relações com


objetos poderosos, e eu é que sentia a fragmentação (minhas ideias eram frágeis
e limitadas, nada que se comparasse à beatitude da lagoa). E também ficava sob
o impacto das concepções rígidas sobre a liberdade, não podendo lhe oferecer
nada igual. O objeto interno poderoso lhe oferecia soluções e prazeres e o
autorizava a descartar o que era oferecido por mim, a “pouca capacidade” de
ouvi-lo. Eu também era selecionada e deixada de lado.

Esse fato lembra, também, alguma inversão de perspectiva (BION, 1988),


as pessoas não estão à sua altura, eu não sou capaz de ajudá-lo, aliás, ele nem
necessita, e ele não está realmente interessado, já tem lagoa, espaço, liberdade.

Se eu tentasse ajudá-lo a ser mais tolerante e receptivo, em princípio


parecia aceitar, mas, pouco depois, demonstrava, com os elementos trazidos às
sessões, que eu o estava enfraquecendo. Se no começo da análise pude ajudá-
lo, agora eu iria atrapalhá-lo e o “faria” fraco, atrasado.

Mariano não era delirante, mas algumas de suas crenças, como a sobre a
seletividade, a liberdade, eram ao menos parcialmente sustentadas por fantasias
onipotentes, de modo que questioná-las era dificílimo. A manutenção dessas
crenças perpetua o refúgio e afasta da posição depressiva. Britton (2003) mostrou
que abandonar crenças deste tipo, é um processo que requer imenso luto. Em
alguém que já viveu uma grande perda – o acidente que o deixara acamado e
83

envolvera longa renuncia concreta –, forças poderiam ser postas em ação para
lidar com todo o sofrimento, as forças de uma área psicótica da personalidade ou
uma organização patológica. Naquele momento da análise tal organização pode
ter se sentido ameaçada, correndo risco de perder a hegemonia. Não viver mais
nada similar a um desmantelamento, ou um terror de ser destruído, um acidente,
um trauma enfim, pode se tornar uma obsessão nestes casos e, nesta luta para
fugir da dor, o desenvolvimento pode se estancar, e os refúgios se afirmarem.

Embora sua voz mostrasse fragilidade e conflito e isso o estimulasse a


buscar ajuda, era usada pela organização para outras finalidades que vêm
sendo descritas, distorcendo e dificultando que ele realmente se ligasse a objetos
reais. A organização também fazia com que fosse indulgente consigo mesmo,
embora não lhe privasse de contar mais extensamente com minha ajuda para
melhorar a voz, que era algo tão desejado. Não obtendo essa ajuda, podia
justificar que eu e outras pessoas fôssemos depreciadas e excluídas. Tudo isso
nos leva a um questionamento sobre a inveja impenitente40. Creio que havia
algum insight a respeito, mas um acordo perverso se havia estabelecido e
mantinha tudo na mesma.

Hanna Segal (1993) fala que a experiência de ser contido requer uma
tolerância ao fato de se precisar de um objeto que faça isso, quer dizer,
suportar que há um objeto do qual vem algo útil. Penso que conseguíamos, até
certo ponto, criar este objeto continente na relação e que Mariano, de uma forma
discreta, confiava nele e sabia que eu fazia o mesmo. Penso que mostrando suas
dificuldades e desconfianças ele dava oportunidade a que elas aparecessem e
fossem trabalhadas. E que havia nele uma área necessitada e carente que
confiava em mim para ajudá-lo a perceber e discriminar seus problemas. E que
acreditava que podíamos suportar aqueles percalços, isto é, confiava numa
continência real.

Mas paralelamente a isso, não conseguia deixar de atuar na análise a


experiência de exclusão. Steiner enfatiza a intolerância à dependência de bons
objetos, não pela necessidade legítima de criar um self independente e individual
(o que remeteria ao protesto masculino), mas pela inveja para com a bondade

40
Comentada abaixo, na sequência do texto.
84

destes objetos. Objetos dotados de uma bondade humana e normal, não


onipotente, e principalmente capaz de criar e sustentar vínculos reais e criativos.

Pouco tempo depois, trouxe outro sonho em que se encontrava descendo


para dentro de um poço. Creio que neste sonho as questões de acolher e conter
podem ser revisitadas. Ele descia por uma passarela que circundava a parede do
fosso, escavada nela e que ia até o fundo. À medida que descia, notava água
minando das paredes, como que de várias fontes. Chegava a um local onde
estava uma mulher sentada numa cadeira e se sentia muito bem acolhido.

O apelo sensorial tem relevância, mas também há um encontro num local


especial. Head breast (MELTZER, 2008)? Refúgio? No discreto horizonte de um
encontro num poço, numa sala de análise, há sempre a possibilidade para ampliar
a continência. Aspectos como a continuidade e a união fusional (TUSTIN, 1990,
MITRANI, 2007) eram mais uma vez evocados, talvez para encobrir e dar a
impressão de prescindir de outras formas de encontro. Steiner (2011) descreve os
receios do paciente de se ver ligado ao analista de formas afetivas, onde exista
uma assimetria, isto é, a percepção de diferenças que levem a sentimentos de
dependência e de estar sujeito a não conseguir tudo o que deseje ou precise, e
envolvem as questões edípicas. Embora estivéssemos juntos, suas fantasias
pareciam nos colocar mais como aderidos ou fundidos e menos como
contribuintes e parceiros. As relações simbólicas e interindividuais implicando
separação poderiam ser engolfadas pela forte sensorialidade e até pela beleza da
imagem. Qualquer coisa que não fosse fusão seria deixada de lado e poderia ser
substituída por outra que promovia o ouvir-calar-estar aderido-dissolvido, como a
melhor forma de união.

Ao mesmo tempo que os encontros ocorriam, outra área parecia aproveitá-


los de outras maneiras, e para reforçar a organização patológica, como se eu
também fosse uma parte dela, ou me ligasse a ele adesivamente.

Tal clima leva a pensar no acordo perverso apontado por Steiner. Esse
implica em que uma parte da personalidade pode ter insight sobre o que está
ocorrendo, mas aceita a situação como se nada pudesse ser melhor
compreendido ou mudado.
85

Mariano, ao longo do tratamento, havia mencionado que se encontrava


com prostitutas, pois se sentia “carente de sexo, pois era homem”. Mantinha
relações com a ex-companheira, sempre que se viam, mesmo com sua expressa
recusa de reatar com ela. As sensações corporais pareciam reafirmar uma
primazia nestes encontros com prostitutas, e evocavam a continuidade e o caráter
assimbólico das pseudorrelações objetais adesivas, descritas por Mitrani (2007).
E deixariam as emoções e outros sofrimentos bem longe. Mas Mariano não reagia
bem quando eu tentava falar sobre o realce que ele dava às sensações, e à
menor importância que destinava ao envolvimento afetivo, que era diminuído,
distorcido e/ou negado em relação à mim e à esposa.

A necessidade de manter uma dissociação persistente entre sexo e


afetividade pareciam-me ligadas a seus aspectos autistas até certo ponto. Além
destes, estavam a serviço de outros mecanismos, destinados a sustentar a
relação com um objeto onipotente, que “sobrepujasse” as demais. Se as pessoas
se prestavam a relações sem aprofundamento, ou se eram pouco capazes de
oferecer mais que isto, se eu também era pouco capaz de oferecer mais que
aderência, ele não precisaria deixar seu refúgio. Talvez acreditasse que eu devia
ajudá-lo no âmbito da sensorialidade da voz: uma voz mais bela, suave e calma,
como ele dissera ser a minha no momento em que me conhecera.

Conforme Steiner (2011) penso que o sonho traz a ambivalência da


situação: acolher é importante, mas se a acolhida for só aderência e não puder
ajudá-lo um pouco mais eu seria apenas uma assistente, uma expectadora
periférica. A exclusão e\ou a diminuição da importância do analista enfatizadas
por Steiner, pareciam-me muito perceptíveis naqueles momentos com Mariano.

Quando trouxe o sonho, ele parecia feliz e me disse que, para ele, aquilo
representava que eu iria ajudá-lo. Tendo em vista que entender as
pseudorrelações adesivas seria um passo para possibilitar a ampliação da
capacidade simbólica e a abertura para novas relações, achei que havia ali
elementos que indicavam a possibilidade de ele aceitar ajuda, mas
simultaneamente, de me colocar como um suporte para restabelecer uma
proteção do tipo do refúgio.

Concordei sobre a ajuda e falei da possibilidade de pensarmos se


podíamos ficar juntos no poço, talvez também pudéssemos ficar juntos de outra
86

forma, como o bebê fica junto da mãe depois de nascer, saindo do poço da
barriga. Ele concordou, e chorou um pouco. Disse que sua mãe era muito brava,
e que os anos foram acentuando tal modo de ser. Então, eu falei que talvez fosse
possível descobrir várias outras situações com as quais se pode ficar junto e
como isso poderia ser. Se ficarmos junto de alguém bravo e também nos
enraivecemos, acabamos ficando parecidos com aquilo de que queríamos nos
diferenciar... Assim, pensar nas nossas atitudes: se são iguais às das quais não
gostamos, até que ponto são acolhedoras, era importante. E nisto, nós queríamos
a mesma coisa: um acolhimento verdadeiro, mais do que só sensação
confortável, pois ser acolhido mesmo vai além das sensações agradáveis.

Embora ele trouxesse aquela vivência de bem-estar, havia trazido outra, a


mãe rude, e desta conversa surgira a possibilidade de verbalizar mais sobre
sentimentos e carências. Os sonhos compareciam em muitas sessões, não
estavam num poço onde não se podia encontrá-los. E, para sair do poço,
precisávamos primeiro entender o que ocorria. E isso poderia nos levar a outros
lugares e desencadear novos pensamentos. Como, por exemplo, sobre a
liberdade que ele havia mencionado no sonho anteriormente analisado, e que
talvez tivesse outro viés: ter liberdade para pensar e poder ver coisas diferentes,
por exemplo, se alguém quer cuidar, não pode só restringir e ficar no poço... nem
só permitir, nem se pode fazer qualquer coisa em qualquer lugar...

Seria pertinente, além dessas questões, lembrar que o poço remete a


refúgios e aos claustros e, levando em conta a água brotando e a descida,
poderíamos associar outros pensamentos. Começamos com Meltzer, que
postulava que o feto tinha capacidades mentais na vida intrauterina e acreditava
que algumas funções podiam ser perdidas ao nascer. Ao falar de claustros,
concebeu-os como recessos dentro de um objeto interno, uma fantasia de
identificação projetiva com o interior de um objeto, na mente da criança. Em seu
livro A apreensão do belo, descreve lindamente um feto muito feliz ao lado de sua
placenta, cujo sopro caloroso e calmante preenchia o ambiente (MELTZER,
1995). Esta imagem, que evoca fortemente um claustro, faz pensar que nele
exista um tipo de relação de objeto especial que inclui contato do corpo do bebê
com as ondulações do líquido amniótico, decorrentes das pulsações materna e
87

placentária, e o sopro, ou som da placenta. Um mundo rico de sensações, que


talvez possa deixar marca indelével.

Os claustros onde alguém se refugia (MELTZER, 2008), ou os refúgios


descritos por Steiner, podem ter como matriz a existência humana intrauterina e
estar ligados por um fio condutor, à experiências muito primitivas no “claustro
uterino”. Além disto, Meltzer parece sugerir a existência de uma relação entre o
bebê e a placenta, ou entre o bebê e o interior materno onde ele está. A relação
com um objeto continente e abarcador, o corpo e o útero materno, está na origem
do ser humano41.

Rosenfeld (1988, p. 221) diz que estados afetivos podem atingir um feto,
por um fenômeno semelhante a um transbordamento. Apoia-se nas palavras de
Tustin, de que “o transbordamento” é um precursor da projeção, e que serve para,
juntamente com a identidade, manter uma ilusão da unidade primária entre a mãe
e o bebê.

Rosenfeld também diz que quando um paciente se sente aceito na análise,


a inveja diminui, mas uma das características do narcisismo destrutivo é a
dificuldade de aceitar ajuda, porque isso suscita sentimentos de dependência.
Pensando em Mariano, poderíamos olhar esta questão pensando que, se
houvessem fusões e/ou aderências, não haveria diferenças ou dependências. E
nem mesmo a dependência de ser acolhido, pois esta seria quase automática, por
ser mais uma aderência, uma pseudorrelação objetal adesiva do que um
acolhimento.

A experiência de continência precisa ser vivida a partir de algum grau de


separação e, justamente por isso, pode aliviar, mas também suscitar desamparo e
frustração, e, portanto, inveja e necessidade. Rosenfeld também alerta para o fato
de ser útil mostrar ao paciente uma força paralisadora dentro dele que se passa
por uma figura benevolente, mas que, na realidade, opõe-se a que ele melhore. E
que não é qualquer tipo de continência que será propiciador de evolução. O autor
crê que o paciente pode se sentir humilhado e com inveja da capacidade que o
analista tem para entendê-lo melhor do que ele próprio é capaz. Portanto é
preciso muito tato para transmitir essas questões.

41
Lembremos Fellini com as mães e as mulheres de seus filmes, e a mitologia com Demeter.
88

Lembramos ainda que as experiências protomentais (MITRANI, 2007;


MELTZER, 1995) são de difícil apreensão e um mistério para nós. Mas ao mesmo
tempo, parecem tão familiares. Estados de indiferenciação, mesmo que levados a
efeito por uma parte autista da personalidade, não devem embotar a capacidade
e a sensibilidade para outros fatos que ocorrem no curso de uma análise.
Podemos lembrar que um feto não precisa e nem pode decidir a diferença entre
bons e maus objetos, e talvez nem faça diferença perceber um objeto, ou o que o
faz crescer ou não. Mas para que o desenvolvimento ocorra tudo isso precisa
entrar em cena. E suscita medo, desamparo, e sensações de carência e inveja.

5.3 Seduções: pseudorrelações objetais adesivas, falsa continência de


refúgios e claustros

Solto a voz nas estradas,


já não quero parar,
meu caminho é de pedra,
como posso sonhar?(Milton Nascimento)

Mencionamos alguns outros sonhos que marcaram momentos de trabalho


e mais tarde, sua interrupção.

Num deles, ele pilotava um avião e voava entre prédios. Tinha acabado de
sair de um presídio e podia voltar assim que quisesse. Gostava do voo que estava
fazendo com habilidade, pois não se chocava com nenhum edifício. E se sentia
bem e tranquilo, a sensação era de prazer, ele poderia voltar ao presídio assim
que quisesse.

Comentei que voar, pilotar, pareciam coisas boas, mas voar entre prédios
parecia difícil, até perigoso. Ele concordou, mas descreveu a satisfação que
sentia durante o sonho. Ele sentia bem por poder voltar ao... presídio! ? Era isso
mesmo? Ele disse que era sim, aparentemente sem notar minha surpresa. E
acrescentou que era um lugar onde tinha segurança. Falei sem perceber, como
pensando em voz alta que lá podiam estar pessoas seguramente presas! Ele
disse que talvez, mas voltou a falar da sensação de voar, de estar livre, de poder
manobrar, etc. Continuei com a sensação de que havia algo contraditório, vias
89

paralelas envolvendo mecanismos diferentes e paralelos. Como em dupla via,


conforme Mitrani (2007) e Grotstein (2003), uma liberdade, uma saída talvez da
cápsula autista, mas talvez outro tipo de abrigo, o presídio seguro: um refúgio.

E o fato de no sonho estarem elementos conflitantes: como o voo, o


presídio, o pilotar com habilidade, mas entre prédios. Todos pareciam bastante
significativos, capazes de carregar um conteúdo simbólico que podia permitir
associações com habilidade, que ele mesmo fez, mas também com alguma
astúcia, para escapar e não colidir. Na vida pessoal, Mariano estava mais livre
para conversar, tendo mais amizades estáveis e se sentindo melhor. A voz
continuava oscilando, paralela às outras conquistas. Que presídio seria este em
que ele sentia segurança? Algo que faz com que a cápsula autista fique segura,
sem ser mobilizada?

Uma organização patológica estava se apresentando e parecia tentar


cuidar da parte frágil, infantil, inclusive com aspectos autistas. A segurança assim
obtida poderia eclipsar as defesas autistas e fornecer uma falsa continência.
Substituiria o desejo de ligar-se verdadeiramente a objetos reais, e ofereceria
ligações com objetos parciais onipotentes. Creio que a questão da voz também
tinha a ver com isso. Enquanto nós dois podíamos trabalhar com as limitações
reais, inclusive com as emoções dolorosas para daí podermos conseguir alguma
coisa, a parte onipotente oferecia outras benesses.

Na mesma sessão, Mariano comentou longamente sobre problemas com


colegas na hora de falar, ouvir e interagir. Achava que seus colegas podiam se
aproveitar de sua dificuldade de fala. Queixou-se também de que uma garota de
programa com quem saíra tinha roubado seu telefone celular, e que ela parecia
amorosa, e que o encontro fora bom, mas que tinha ocorrido um roubo.

Falei com ele sobre uma insistência em ser acolhido fisicamente e que
admirassem sua voz. Ele parecia diminuir a importância de que podia se fazer
entender, e tinha capacidade para transmitir ideias. Mesmo que não
gostassem da sonoridade de sua voz, as ideias e o conteúdo poderiam
transmitir muito além do som. E isso era uma das coisas importantes que eu
pensava que ele esperava da análise: que ela o ajudasse a se libertar
daqueles receios. Que seus sentimentos ficassem mais livres e que ele
encontrasse outras formas de segurança.
90

Nossa reunião analítica poderia causar-lhe angústia, por eu apontar para a


prisão para a qual ele voltava por identificar aquilo com segurança. A liberdade
era possível, mas parecia-me que ele se apegar tanto ao som e ao suposto
desagrado das pessoas podia ser uma forma de ficar preso e de não ver nada
além disso. Ouvir essa interpretação de mim não era agradável, mesmo que a
minha voz o fosse. Mas talvez se eu fosse suave e só criasse um contato
confortável entre nós, fosse como a prostituta, que dá prazer, mas rouba algo
importante: a capacidade de comunicar coisas úteis além da beleza dos sons e
não ter medo de revelar as diferenças entre o que liberta e o que aprisiona.

Nesse ínterim, podemos ver uma organização patológica relacionada com


a gangue descrita por Rosenfeld. Ela dá suporte: prazer sensual e aparente
independência afetiva, mas torna-o dependente destas manobras e com isso
rouba e prejudica o desenvolvimento de outras capacidades. Os pensamentos
gangue fazem com que se sinta mal em reuniões onde tem que se esforçar
para ser entendido, e bem com prostitutas, mas o roubo real é atuado pela
parte que suprime seu senso e seu discernimento sobre o que pode lhe dar
liberdade e o que o prende.

Na longa recuperação depois do acidente, a companheira foi muito


cooperante, mas Mariano, na época, já desejava se separar, e esse evento
complicou tudo. Creio que a experiência de ser cuidado, mas, ao mesmo tempo
ficar ligado a alguém de quem queria se afastar, pode ter suscitado as dúvidas
sobre a continência, a bondade do objeto e pode ter despertado tanto a mágoa de
ser dependente quanto a culpa por isso. E talvez tenha ensejado a atração para o
claustro de um objeto ou para o sossego de um refúgio.

Talvez ele também me sentisse como que tirando dele suas formas
peculiares de se comunicar e mostrando outras, como a raiva, a vontade de não
ter ninguém para ter ideia diferente sobre as quais precisaria conversar e poderia
ser contrariado. Continuar ligado às formas antigas de segurança, e nalguns
momentos parecer dar tanto valor ao prazer sensual por si só, sugeriam uma
segurança que aprisionava.

Apesar dessas reflexões há que se levar em conta a intensidade da


experiência traumática de Mariano, embora ele a negasse, dizendo que todo o
sofrimento da longa convalescença, tinha sido muito bem resolvido. Tustin atribui
91

a construção das defesas autistas justamente ao trauma precoce pela


incapacidade da criança suportar a vivencia de separação da mãe. Talvez o
acidente, e outras decepções e problemas tenham feito Mariano reviver esse tipo
de perda muito precoce às quais podem ter se juntado outras mais tardias, como
a da imagem que tinha de si, e seus projetos de vida. Por não suportar isto,
poderia ter resgatado as defesas autistas, e ainda, para dar suporte a si próprio,
tenha também encontrado a onipotência da organização patológica.

Steiner comenta que, para sair do refúgio, é preciso sustentar a percepção


das diferenças entre o self e o objeto, e não se sentir humilhado por isso
(STEINER, 2011, p. 40). Na relação com o objeto primário, as diferenças são aos
poucos sentidas e vividas, mas uma boa elaboração dessas depende de vários
fatores, entre os quais a continência materna e a capacidade da criança de tolerar
as diferenças sem ficar muito humilhada ou com raiva. Em seu desamparo, a
criança pode achar muito difícil não ser e não ter a mãe e todas as suas
capacidades e pode, por contrariada e frustrada, desejar não depender de
nada ou ninguém.

Joan Riviere descreve de forma comovente a situação de um bebê


passando por privações. As dolorosas experiências de dores, fome e desamparo
deixam nele uma marca indelével e o fazem tentar, a todo custo, se afastar destas
experiências e garantir que tudo esteja sob controle. Ela lembra que o bebê ao
mesmo tempo em que se sente desesperado pode vivenciar a lembrança do bem-
estar, o qual depende de alguém, pois o próprio bebê não consegue suprir-se ou
proteger-se sozinho. Isso cria um conflito, pois a ausência do objeto provedor e
sua importância despertam ódio, mas justamente porque a presença despertara e
propiciara amor e segurança. Palavras de Riviere:

A reação imediata a este penoso estado de coisas é que ele tenta


reconquistar, e portanto também preservar, algo da bem-aventurada
segurança de que desfrutava antes que sentisse a falta e que impulsos
de destruição surgissem. Assim se desenvolve em nós a profunda
necessidade de segurança e proteção contra esses tremendos riscos e
intoleráveis experiências de privação, insegurança e agressão, internos e
externos. Dessas primícias partimos todos para a tarefa, que se
estenderá por toda a nossa vida, de tentar garantir a nossa
autopreservação e os nossos prazeres com o mínimo risco possível de
despertar em nós aquelas forças destrutivas capazes de acarretar
igualmente a destruição de outros. (KLEIN, M.; RIVIERE, J, 1975, p. 22).
Grifos nossos.
92

Diante destas agruras, é possível lançar mão de várias estratégias para se


proteger, na medida das condições de cada um. Tentar ficar a salvo da
necessidade de contar com um objeto real é a estratégia eleita nos refúgios, nas
organizações patológicas, claustros ou gangues e nos estados autistas. Objetos
reais se atrasam, não conseguem ouvir e entender sempre, divergem, precisam
de descanso, são finitos. Bion (1966) afirmou que as experiências de frustração
são inevitáveis, pois, para ter prazer de ser alimentado, o bebê terá que sentir
fome antes (o que implica em sentir frustração). Portanto, a necessidade de
projetar, isto é, de livrar-se da frustração é inexorável, mas a capacidade de
recolher uma projeção ou diminuí-la é essencial para poder receber, depois da
frustração, algo bom.

Voltar ao presídio na fala de Mariano era bom, e dava segurança, e para


ele não havia contradição entre a liberdade e esse tipo de abrigo. Velhos hábitos,
velhas situações tranquilizam, mas restringem, pois para crescer muitas vezes é
preciso deixá-las. A organização traz segurança, deixá-la traz a vivência de ser
diminuído, de perda da alternativa onipotente. O “caminho de pedra”, e a
dificuldade de sonhar aí estão.

Era possível que a segurança de voar entre prédios tivesse relação com a
expectativa de não haver interação, ou de poder voltar atrás se a interação não
seguisse o seu desejo.

Talvez pudéssemos pensar que as palavras seriam edifícios com os quais


ele poderia não colidir, mas precisava se arriscar a tocá-las com seus
sentimentos. No entanto, ter esta liberdade, poderia fazer com que ele não
voltasse para o presídio seguro.

Esse poderia representar a dureza, o embaraço diante do envolvimento


que estávamos tendo (STEINER 2011), que permitia a evolução da análise e que
ele não dependesse tanto de barreiras autistas e nem de uma organização
patológica. Talvez o medo de depender e de precisar de algo humano, falível, não
de um objeto ideal, e a inveja do que eu e ele estávamos fazendo também
estivessem sendo intensificadas.
93

Steiner alerta para o fato de que vários motivos operam juntos em graus
diferentes, e ao mesmo tempo, para estabelecer diferentes formas de
identificações projetivas, mas que pode ser útil perceber qual deles, num
determinado momento, é proeminente. Isto ajuda a entender o paciente e se este
último puder tolerar o que foi mostrado pelo analista, também será beneficiado.
Lembramos que Mariano poderia estar aumentando seus motivos para se sentir
ressentido, e não sair do presídio: ser uma pessoa ofendida e machucada, que
poderia reivindicar ressarcimento inesgotavelmente.

Steiner (2011, p. 99-106) evidencia tais atitudes falando de pacientes que


se sentem anormalmente ofendidos pela situação edípica. Ele esclarece que
esses pacientes sentem que a diferença normal e universal entre as gerações,
por exemplo, os fatos de que a mãe não pertença sexual e exclusivamente à
criança, sejam uma ofensa terrível e injusta. Estas pessoas se recusam a seguir
em frente, não conseguem fazer um luto saudável diante das diferenças, e,
portanto podem se envolver em ressentimentos inegociáveis, e não poderem ser
ajudadas. Elas esperam algo impossível: não ter perdas e nem os limites normais
da vida e da passagem do tempo.

Mariano parecia inconscientemente desejar uma recompensa enorme


pelas privações pelas quais passara depois de seu acidente, e também pelas
dificuldades com sua voz. Talvez estas limitações: ter que viver sua própria
história, ter de manobrar a voz entre as emoções, e as perdas, não poder ter toda
a liberdade para fazer com que tudo fosse proveitoso: presídio só dar segurança,
voar sem colisões ser sempre fácil... Enfim, ser habilidoso e capaz sem restrições,
e ter sido poupado de passar pelo acidente de carro e por todos estes outros,
criassem nele tantas reivindicações e necessidades, que a análise jamais poderia
mudar e ainda menos suprir.

Algum tempo depois, ele conta um novo sonho em que procurava alguém
numa caverna. Era possível ouvir a pessoa lá dentro e ele sabia que o outro
também podia ouvi-lo. Mas tinha a impressão de que a pessoa entrava cada vez
mais na caverna, e quando ele chamava, parecia se esconder mais. Pouco tempo
depois, sonhou que, em sua casa, havia uma estante bem grande, com muitas
prateleiras cheias de livros. Numa das partes, havia uma espécie de divisão ou
armário quadrado e uma criança estava lá e parecia bem acomodada.
94

A possibilidade de que estivéssemos tomando contato com a estrutura de


um refúgio crescia e os ressentimentos e a retração que a exposição disto trazia
estavam mais evidentes. Num outro dia, ele parecia muito triste e queixoso.
Falava sobre suas dificuldades e seu medo de se aproximar de alguém, de como
poderia ter condição ou esperança para superar suas dificuldades e que sabia da
necessidade de se expor mais através da fala, mas continuava por vezes muito
ansioso. Também contou de numa reunião com amigos em que cantaram e
tocaram e ele se sentiu bem nessa ocasião, até que um deles fez alguma
crítica sobre pessoas que só saíam pra se divertir com garotas, não
conseguiam ter relacionamentos sérios, se envolver. Ele pensou em sua
situação e se sentiu muito chateado... Sentiu até vontade de ir embora, mas a
música o tinha segurado lá.

A música Travessia, de Milton Nascimento, surgiu em minha mente


naquele momento e eu comentei a respeito dela. Ele disse, entusiasmado, que
adorava aquela música, pois ela começava triste, mas... Cantarolou: “quando
você foi embora fez-se noite em meu viver, forte eu sou”... E cantou até quase o
final da música. Então, eu ressaltei que a música falava de mudar depois de
passar por uma perda, e que os versos finais diziam “já não sonho, hoje faço, com
meu braço o meu viver”, e que eles me pareciam ter um pouco a ver com o que
ele estava vivendo. Estávamos tentando ajudá-lo a não apenas sonhar com a fala
perfeita, namorada maravilhosa que nunca aparecia, ou sucesso profissional,
sensações agradáveis. Estávamos tentando fazer com que seus sentimentos
pudessem abraçar suas palavras e carregá-las até que elas encontrassem seus
objetivos. E que os sentimentos não ficassem perdidos no sonho de ser forte,
durão, que fazia com que criticasse tanto...

Ressaltei, também, que ficávamos ali tentando fazê-lo ter mais contato e
tolerar seus sentimentos de medo, de insegurança, coisas não só agradáveis, não
só sensuais. Com isso, as falas e quem sabe suas atitudes poderiam ficar mais
consistentes. Traduções da experiência de uma pessoa que luta pra viver, como
na música “Hoje eu tenho que chorar minha casa não é minha”, que é experiência
de dor. Os versos que dizem “já não sonho, hoje faço com meu braço meu viver”
trazem a ideia de deixar o sonho ilusão, o sonho todo poderoso e mágico (casa-
voz maravilhosas, garotas perfeitas que não dão trabalho, só lucro), e aceitar a
95

passagem e a travessia de momentos de dor. Aprender a deixar o sonho falso e


fazer coisas na vida, sem pretender que sejam iguais ao sonho perfeito.

Mariano chorou. Na sessão seguinte, disse que saíra se sentindo muito


feliz, apesar de ter chorado, e que era uma emoção muito grande. Que muita
coisa fizera mais sentido na vida dele.

Depois disso, paulatinamente, outras coisas foram se desencadeando.


Mariano começou a se mostrar mais crítico em relação à análise. Como o
tratamento tinha a ver com o falar, ele dizia que a fala era uma ferramenta
importante, mas precária. Mesmo estando mais calmo e seguro para falar, e bem
menos preocupado com a possibilidade de se sentir humilhado pelos colegas de
trabalho (ou outros), começou a criticar claramente a análise. Trazia notícias de
técnicas novas, principalmente algumas que pareciam ter um viés artístico ou
intelectual que ele enaltecia. Afirmou que preferia outras técnicas e que estava se
informando sobre coisas mais modernas. Dizia preferir o método artístico, com
música ou pintura, e que ele mesmo iria fazer um curso de arte terapia ou coisa
semelhante e buscar alguém que trabalhasse com isso. Argumentava que sua
voz não melhoraria mesmo e que teria que se valer de outros recursos para ter
sucesso em seus objetivos.

Na sequência desse clima, começou a trazer sonhos onde havia fezes em


várias situações. Num deles, ele estava numa sala bem grande, cheia de
montinhos de fezes, espalhados pelo chão. A mãe estava lá com ele. Ela ia ajudá-
lo a limpar, mas ele não o permitia e tentava limpar sozinho. Noutro sonho, ele e a
ex-esposa precisavam atravessar um pequeno riacho por uma ponte estreita,
para ajudar alguém do outro lado. Na margem em que estava, havia fezes, mas
ele ficava sem vontade de caminhar pela ponte, achando que ela era precária.
Apesar disso, do outro lado estava uma pessoa jovem, que ele conhecia, e que
precisava de ajuda.

Aos poucos, foi dizendo-se cansado, e deixou o tratamento, afirmando que


iria procurar algo novo.
96

5.4 Recolhendo do mar da clínica: embaraço diante da ternura, desejo de


excluir o analista, conflitos edípicos precoces e tentativa de visão
binocular

...quando o mar tem mais segredo


não é quando ele se agita
nem é quando é tempestade
nem é quando é ventania
quando o mar tem mais segredo
é quando é calmaria (Cacaso)

Os versos mencionados nesta epígrafe lembram a necessidade de manter


a mente aberta, as “coisas” podem conter desafios, mesmo quando parece que
tudo está calmo. Depois de passar pela posição esquizoparanoide, elaborar a
posição depressiva, e depois dela não se acomodar, é preciso aceitar novas
incursões nas posições esquizoparanoide e depressiva, e assim
sucessivamente, como nos mostrou Britton (2003) num belo trabalho intitulado
Antes e Depois da Posição Depressiva. Britton nos convida a perceber que
nunca estamos na posição de sabermos ou termos feito o melhor, e sempre
precisamos estar em busca.

A precariedade da voz de Mariano tornava a experiência terapêutica


peculiar, de forma que a existência de barreiras autistas parecia plausível e o
enfoque desses aspectos trouxeram possibilidades de alcançar o paciente. Creio
que a cápsula autista fazia parte da configuração mental de Mariano, e esteve
presente ao longo de todo o percurso. Mesmo que tenha sido razoavelmente
elaborada, provavelmente permaneceu, até certo ponto, como possibilidade de
proteção extraordinária conforme Mitrani (2007). Pode ser mantida em estado
latente ao longo de toda a vida. Creio que Mariano colaborou para me chamar a
atenção para sua cápsula autista, e o clima da etapa inicial de tratamento pareceu
muito ligado a uma necessidade legítima de crescimento e a uma verdadeira
cooperação, apesar da confusão de sons.

Penso que não só a limitação imposta pelos processos autísticos, mas


também os efeitos de uma organização patológica se faziam presentes. Num
processo psicanalítico, à medida que se trabalham alguns conflitos, abre-se
espaço para a emersão de outros.
97

Ao mesmo tempo em que Mariano queria falar com mais facilidade, ter
sucesso profissional, viajar, coisas que implicavam capacidades afetivas e
comunicativas, começou a parecer cansado e enfadado, às vezes discretamente,
às vezes de modo evidente. Em algumas ocasiões, deixou claro - e já falava de
forma mais compreensível e organizada - que sentia que melhorar a fala era todo
o trabalho que ele deveria fazer na análise e que, como pessoa, ele estava
bem. Fazia racionalizações para justificar as críticas às pessoas e às
exigências para com elas.

Comecei a perceber que os aspectos carentes e colaboradores estavam se


alternado com outros. Minha contratransferência para com ele, que envolvia a
ideia de poder ofendê-lo, também começou a indicar a existência de um objeto
interno supostamente bom, mas muito exigente ao qual eu devia satisfazer. Agora
ficava mais claro que esperava de mim alguma coisa onipotente e mágica, como
o líder de uma organização patológica oferece (ROSENFELD, 1988). Se eu não
estivesse “à altura”, eu o ofenderia, ou decepcionaria.

As críticas à ex-esposa, às possíveis namoradas, a impaciência e o menor


carinho com os filhos, tudo levava a pensar na possibilidade de que ele receasse
e criticasse igualmente seus aspectos dependentes e capazes de se vincular
(STEINER, 2011), e que precisavam de auxílio para crescer verdadeiramente.
Naquele momento, as barreiras autistas começaram a me parecer muito menos
difíceis do que as novas.

Essas outras dificuldades pareciam bastante ligadas ao domínio de uma


organização patológica. A organização, como mostram Rosenfeld (1988) e
Steiner (1994, 1997, 2011), tenta aliciar as partes dependentes do self e mostrar-
se como protetora confiável. Seduz com promessas de alívio e superioridade, e a
aceitação de ajuda fora dela é vista como fraqueza e humilhação. Talvez por isso,
entre outros motivos, ele tivesse começado o movimento de se afastar. E que
realmente veio a culminar com a interrupção da análise.

É possível cogitar que aspectos invejosos faziam com que, mesmo tendo
melhorado, sentisse, por exemplo, que a análise era um atraso de vida, e que
havia a arteterapia e outras coisas melhores. Frequentemente, ao falar de seus
filhos, exibia a ideia de que devia ser duro com eles, e que eu errava ao falar da
liberdade deles, de serem merecedores de compreensão, etc. Penso que se
98

sentiu muito assustado com o envolvimento e com seus sentimentos de


aproximação ocorridos na sessão com a música Travessia. Steiner (2011) propõe
e demonstra um “embaraço diante da ternura”42 que ele define como o receio de o
paciente assumir seus sentimentos de dependência e carinho, e sua verdadeira
capacidade de se ligar dessa forma.

Agindo daquela maneira, Mariano negava que ele próprio queria


compreensão e confiança de minha parte e que quisesse libertar-se de algo
dentro dele que o impedia de usufruir plenamente dessas conquistas. Também
conseguia me depreciar, como se eu fosse alguém facilmente iludível pelas
pessoas e sem muito pulso e, por esse motivo, não devesse confiar em mim.
Interessante como a fragilidade da fala encobria uma paradoxal rigidez crítica em
relação às seus aspectos dependentes, bem como aos de outras pessoas e, ao
mesmo tempo, tentava revelá-la.

A ajuda que eu pudera lhe oferecer com os aspectos autistas parece ter
sofrido uma distorção, e poder-se-ia lembrar do efeito do que Bion (1988) e
Meltzer (2008) comentam ser a reversão de perspectiva. Tal situação implica na
atitude de reverter o que o analista falou para concordar especificamente com
premissas do paciente. Desta forma, o significado das interpretações do analista
fica perdido, mesmo que o paciente tenha concordado com as interpretações.
Bion ligou esse fenômeno ao funcionamento da parte psicótica da personalidade.

Portanto, outro aspecto a levar em conta seria o de que a dificuldade


vocal pudesse conter elementos psicóticos, talvez algo como um objeto
bizarro. As emoções poderiam passar por um processo de projeção e, ao
voltar, viriam estranguladas, chegando às palavras naquele estado de
mutilação, que criava a cacofonia.

Podemos também pensar que a capacidade de perceber dependência e


ligação ao analista como um bom objeto foi atacada, conforme mostram Steiner
(1997, 2011), Rosenfeld (1988) e Meltzer (2008). Meltzer ainda comenta que a
inversão da função alfa serve para destruir ou prejudicar elementos beta que
estavam em transformação para se tornar elementos alfa. Esses então acabam

42
Improvement and the embarrassment of tenderness, in Seeing and being seen: emerging from a
psychic retreat, Steiner, 2011.
99

formando objetos bizarros, carregados de aspectos de ego e superego, mas


rígidos, dotados de uma concretude que os torna incapazes de serem usados
para pensar realmente. Talvez possam ser equiparados às quimeras, que são
objetos mistos que mimetizam outros, mas só servem para enganar. Muitas vezes
parecia que as ideias de Mariano ficavam endurecidas, repetitivas e ditatoriais. Se
eu ameaçasse tais ideias, era vista como capaz de enfraquecê-lo.

A organização guiada por um narcisismo destrutivo (ROSENFELD, 1988)


se opõe à ligação a objetos reais, a depender deles e a fazer vínculos
verdadeiros, pois ligar-se a objetos que admiramos pode despertar inveja e
sentimentos de inferioridade. Suportar o sentimento de inveja não é fácil. Ela só
pode ser mitigada se os bons vínculos com o objeto a sobrepujarem. Creio que
Mariano não suportou a inveja e que os vínculos comigo não puderam resistir. A
inveja seguiu negada, sendo exercida pela postura crítica, depreciadora e por seu
cansaço para com o que ele dizia ser meu método velho. Também poderia ser
cogitada, pensando na forma como descrevia as namoradas, os filhos e eu:
dependentes, querendo compromissos aprisionadores, atenções excessivas, etc.

O sintoma da dificuldade para falar era usado por ele para “selecionar” as
pessoas. Os que lidavam com ele com evidente diligência e tolerância com sua
voz eram vistos como adequados e aceitáveis. Mas quando, a seu ver, falhavam
nisso, eram descartados, mesmo que não o tivessem magoado. Steiner, ao falar
da dificuldade de sair de um refúgio (2011), trouxe uma contribuição de Elizabeth
Bott Spillius sobre um tipo de atitude invejosa, chamada inveja impenitente.
Spillius diz:

O sujeito com ressentimento, no entanto, não sofre de culpa consciente


ou senso de responsabilidade por sua inveja; ele pensa que é por culpa
da pessoa invejada que ele, o invejoso, sente-se tão desgraçado. Ele
não se sente culpado ou mesmo responsável por sua inveja impenitente.
O culpado deve ser outro. A definição de inveja desse paciente, na
situação analítica, é diferente da do analista. Se o analista estiver
usando a definição kleiniana que descrevi antes, ele pensa que o
paciente está fazendo um ataque destrutivo a um objeto bom; o paciente
acha que está fazendo um ataque legítimo a um objeto que merece ser
odiado. O paciente pode não se espantar se lhe for dito que ele é
invejoso - no caso de o analista ser tão imprudente de lhe dizer
diretamente -, porque o paciente que sofre de inveja impenitente não
define a inveja da mesma maneira que o analista kleiniano. Ele acha que
seu ressentimento é legítimo. (SPILLIUS, 2007, p. 261).
100

Parecia que esse tipo de inveja impenitente apresentava-se: o paciente se


sentia no direito de achar-se cansado e ressentido com familiares, colegas,
analista. As queixas de não encontrar paciência ou respeito nos outros, - e para
comigo de que algumas interpretações podiam enfraquecê-lo -ou que nosso
trabalho não era o que precisava- se reiteravam. Afirmava que com a análise não
ficaria forte nem preparado para enfrentar os demais. Também trazia
preocupações com a ex-esposa e com os filhos, que a seu ver eram sem limites e
gastavam demais. Inclusive ele deveria guardar seu dinheiro para um tratamento
mais moderno. Pareceu surgir uma crença de merecer alívio rápido, mas não por
intermédio da análise.

O trabalho que vínhamos realizando foi turvado e encoberto por uma


premência em investir em algo concreto, como uma viagem, novos trabalhos, cuja
execução faria com que se tornasse incompatível a permanência na análise.
Permanecer em análise poderia tornar incompatível manter o insight de lado, e ter
que desfazer alguns acordos que poderiam se dever a uma parte perversa da
personalidade (STEINER, 1997).

Sob a ótica de Rosenfeld, vemos essa situação como decorrente do


narcisismo destrutivo em que a inveja e a separação do objeto, bem como a
percepção de diferenças entre self e objeto, são negadas maciçamente, e a
pessoa sente que as qualidades e bondade do objeto lhe pertencem.

A questão dos claustros pode ser vislumbrada pelo material que vinha se
avolumando. As críticas, e o querer deixar a análise, significavam que ele estava
na análise perdendo tempo, preso num tratamento velho, ruim... Se nosso
paciente se sentia no claustro do reto, eu e ele teríamos que lutar. Um de nós
teria que ser expulso, pois ameaçava o outro. Talvez se possa pensar nos sonhos
com fezes como uma alusão a isso. Em um desses sonhos, ele não deixava que
lhe ajudassem a recolher os dejetos, não aceitando a ajuda da mãe; no outro, a
esposa estava suja e não notava.

A sessão em que falamos sobre a música Travessia, fora, talvez, um bom


momento. Ele ficara muito próximo, e pudéramos falar sobre suportar perdas,
como uma parte essencial da vida. Era doloroso, mas fortalecedor, ele o
reconhecera e o verbalizara. E também se lembrara da paciência com que os
101

familiares o ajudaram para que se recuperasse de sua longa doença, durante a


qual o problema de voz havia se instalado.

Ao falar dos sentimentos que dariam força e vida às palavras, eu colocara


para ele que me parecia querer muito isso, mas ficava um bocado impedido por
coisas dentro dele que o prendiam. Queria ser afetivo, mas achava que ficaria
fraco, ou talvez que se a voz saísse livremente poderiam vir junto tristeza, raiva
ou fragilidades, coisas que ele, em parte, achava inadequadas, ou talvez não
soubesse ainda o que fazer com elas.

Naquele momento, como em outros, algo mais frágil, magoado e conflitivo


de Mariano surgia. De dentro de sua cofusão vocal, conseguíamos discernir
fraquezas, dores, elementos que podiam ajudá-lo a ficar mais integrado, se
fossem entendidos. Alguma emersão de defesas e do refúgio pareciam possíveis,
bem como vivências da posição depressiva. Steiner (2011) diz que alguns
pacientes sentem-se tão desprotegidos se não podem contar com a proteção do
refúgio, que têm a sensação de estarem extremamente expostos, humilhados e
transformados em criaturas indefesas. Sentem que o apego que têm a uma
autoimagem onipotente e narcisista foi descoberto, e ficam dolorosamente
envergonhados com isso.

Creio que notícias de uma organização patológica e de um refúgio já


vinham sendo trazidas através de sonhos como o da pessoa que ia para o
fundo da caverna, a criança que estava numa parte fechada de uma estante, o
voo entre prédios e de volta ao presídio, além das atitudes para comigo e para
com as pessoas.

Noutro sonho, era preciso atravessar uma ponte, e do outro lado alguém
esperava ajuda, mas o paciente não queria fazer isso. Deve-se lembrar de que o
conteúdo manifesto de um sonho é apenas parte dele, mas podemos ver
elementos pertinentes às situações, principalmente ao estudar o caso
retrospectivamente. O paciente realmente foi assumindo uma atitude paulatina de
crítica à análise, e que o conduziu a interrompê-la. Nesse caso, o sonho seria
premonitório, mas na época preferi não pensar assim.
102

Steiner (1997) utilizou o termo perversão indo além da acepção da


sexualidade, para falar de um acordo entre partes da personalidade, que ataca a
possibilidade de insight, sem destruí-lo de todo, mas se negando a assumi-lo e a
utilizá-lo. Uma parte teve um insight e poderia tê-lo sustentado e evoluir a partir
dele, mas um acordo mantém a visão falsa a respeito da situação ao lado da
verdadeira, com prejuízo para esta última. Penso que Mariano desejava evoluir e
tinha podido perceber seu isolamento e sua recusa em ter relações mais amplas
com seus objetos, não só pela cápsula autista. Isso parece demonstrado no
sonho pela ideia de que era possível atravessar a ponte, o que representaria a
possibilidade de alcançar o insight, aceitar a dependência e cuidar da parte
carente. Mas esta travessia possível ficava em suspenso.

Mariano não pode sustentar-se nessa posição depressiva e ampliar o


insight. Ao contrário, aos poucos foi negando a utilidade do que estava
percebendo, trazendo críticas à análise, até interrompê-la. Nessa situação, parece
possível acompanhar Steiner quando diz que algumas organizações patológicas
são sustentadas por acordos perversos, dos quais o paciente não é apenas
vítima, mas participante e conivente (STEINER, 1997). E, além disto, é preciso
pensar que o analista pode não ter sido capaz de oferecer todo o suporte que o
paciente requer. Esse pode ser envolvido num conluio inconsciente com os
objetos onipotentes do paciente (STEINER, 1997, 2011), e assumir atitudes
críticas, ou ser levado a parecer crítico, quando tenta pensar e não ser conivente
com aspectos onipotentes ou críticos do paciente.

Esta dificuldade era frequente quando Mariano exibia rigidez e seletividade


para com as pessoas, e criticava os gastos de seus filhos, ou os custos da
análise. Steiner (2011) aponta toda a gama de dificuldades que o analista
enfrenta na relação com o paciente e dentro de sua mente. Desde o risco de ser
conivente para não parecer crítico, e ter neste caso uma falsa continência, até o
de querer apontar demais as dificuldades do paciente, que por sua vez, pode
levar o analista a portar-se como o objeto interno do paciente, vaidoso e superior.

Ainda há uma questão suscitada pelo material: a dificuldade de elaborar a


situação edípica. Steiner (2011) frisa que é muito importante observar que estas
podem estar subjacentes por toda a análise, e revelar o desejo do paciente de ser
dominante e poderoso na questão edipiana. O paciente pode ter um enorme
103

receio de depender de bons objetos, por exemplo, o analista e a mãe, a


dependência desperta carências, bem como inveja, e o medo de não ser o
preferido. Ainda que seja natural que o bebê tente se defender da dependência
absoluta, e caminhe para a independência ao longo da vida, precisando até certo
ponto depreciar a mãe para fazê-lo, há graus de depreciação excessivos que
correspondem a um excesso de raiva e intolerância à própria condição humana,
que implica na necessidade do outro, não só quando se é um bebê, mas em larga
medida enquanto se é um ser vivo. Mesmo uma pessoa que se creia poderosa só
pode sustentar tal crença, se puder se comparar a outros o que a faz, portanto,
precisar deles para provar sua suposta superioridade.

Alguns pacientes no refúgio entendem que depender de um objeto pode


ser muito perigoso, e quando percebem e se sentem dependendo e contando
com o analista, fazem manobras para romper com isto, dominarem e serem
superiores ao anlista (STEINER, 2011). Este tipo de dificuldade edípica também
parecia mostrar-se no sonho. O paciente parecia mostrar o desejo de manter
separada uma parte que desejava e podia depender de mim para ajudá-lo: a
pessoa que estava do outro lado da ponte. Outras partes, (o casal) ficavam do
outro lado, percebendo a necessidade de ajuda, mas não atravessando a ponte.
Seria um impasse: o casal não parecia disposto a ajudar e a outra parte também
poderia não conseguir obter a ajuda ou não acreditar que ela realmente servisse.
As duas margens pareciam não poder se comunicar e integrar: um casal não
pode ajudar uma terceira pessoa (criança?), pois terá de deixá-la excluída pois a
única forma de incluir seria a de igualá-la a eles. Por seu turno, a criança não
poderia suportar sua diferença em relação ao casal, e nem a forma como poderia
ser incluída, aceitando esta diferença. Tampouco suportar a dependência sem se
sentir humilhada e roubada. A recusa dessas verdades pode implicar em vários
tipos de perversões.

Creio que habitar um claustro poderia ser uma fantasia de Mariano.


Enquanto ele pudesse estar envolvido comigo num local seguro, sem riscos e
com o tudo que precisasse sempre à mão, tudo estaria bem. Se estivéssemos
num Head- Breast as dores das diferenças edípicas, e a consequente
perseguição e também possibilidade de elaboração da posição depressiva não
existiriam. A inveja e os ressentimentos edípicos também ficariam de lado.
104

Se nos lembrarmos da ligação a um objeto onipotente mostrada por


Rosenfeld, (1988), Steiner, (1997, 2011), Meltzer, (2008) e Grotstein, (2009) que
sustenta as organizações patológicas da personalidade, podemos cogitar que a
pessoa presa a uma organização deste tipo, vá recear que as demais
possibilidades de ligações objetais serão incapazes de boa continência, e
indignas de confiança. Na opinião de Grotstein (2009) os pacientes que vivem sob
esse domínio passaram efetivamente por situações traumáticas na infancia, tendo
encontrado um objeto incapaz de boa continência e frequentemente seriam
psicóticos, borderline, ou passaram por transtornos de estresse pós-traumático.

Esse autor crê que o refúgio é composto por uma tela beta, isto é,
elementos beta que não foram capazes de ser transformados em alfa, sendo
degradados e rejeitados, podendo formar também objetos bizarros. Talvez isto
explicasse as distorções sonoras na voz de Mariano, e com certeza é uma boa
alternativa para entender as dificuldades de valorar as ligações reais consigo
mesmo e com outros. Além disto, ele comenta que tais pacientes tem imensa
dificuldade de tolerar a posição depressiva. Em suas palavras é por isso que
tantos pacientes psicóticos discutidos por Rosenfeld e Bion experimentavam
reações terapêuticas negativas quando se aproximavam da posição depressiva.
Nesses pacientes, o processo secundário perdeu seu domínio sobre o primário e
esse último se torna patologicamente autônomo, constituindo o refúgio. Eles
teriam perdido a esperança em si mesmos e feito “um pacto com o demônio, seu
instinto de morte”, evitando progresso e mantendo-se no refúgio.

Mas, ainda podemos “olhar” este sonho usando ideias de Grotstein (2003)
baseadas em Bion e Matte-Blanco. Para tanto trazemos a visão binocular, que
tenta enxergar por várias perspectivas, e não toma nenhum vértice como
absoluto. Há duas margens, há uma ponte, há a possibilidade de que uma
travessia ocorra, em algum nível, e em algum lugar. Não importa que durante o
sonho isto pareça não ocorrer.

Grotstein (2003) também usa a ideia de dupla via para postular que a
mente pode tornar-se temporariamente dissociada de maneira a alcançar auto-
reflexão e intersubjetividade. No modo reflexivo, a mente pode se subdividir e
contemplar o que está sentindo, e também considerar o que a intersubjetividade
permite, isto é, levar em conta outro ponto de vista e empatizar com ele. Uma
105

mente saudável pode usar tais recursos, mas na doença, o paciente fica como
que preso na armadilha de ser obrigado a ver e viver de uma única forma, como
que usando uma visão ciclópica, que só percebe uma única trilha. Em outras
palavras: não existem alternativas. O autor nos leva a pensar que um paciente
ainda que podendo ter alguma percepção de novas vias, isto é uma
capacidade para perceber as questões da vida como tendo estereoscopia, ou
seja, de modo tridimensional, ainda pode sentir-se preso em uma via. Pode,
portanto, não usar a auto-reflexão por ser ameaçado por seus objetos
onipotentes ou seduzido por esses, e ainda por ter inveja da capacidade do
analista de usar a reflexão e a empatia.

Grotstein (2003) concorda como Matte-Blanco43, que não existe uma


oposição dialética entre consciente e inconsciente, como colocou Freud. Para
Matte-Blanco, entre inconsciente e consciente há correspondência e uma
complementaridade ativa. O inconsciente é regido pelos princípios de simetria, e
de generalização, isto é: tudo pode ser agrupado como igual, sem contradição,
numa totalidade indivisível. Isto significa a possibilidade de homogeneidade e
simetria absoluta. Mas na estrutura do ser humano há também outro componente,
cujo extremo perceptível e mais distante do anterior, seria o que chamamos de
consciente. Há infinitas gradações entre estes extremos. No consciente
evidenciam-se as capacidades para a percepção e uso da assimetria, e, portanto
da individualização, diferenciação e separação, e consequentemente de uma
lógica bivalente, aristotélica clássica. O extremo inconsciente seria a psicose onde
tudo equivale a tudo, o que faz com que no outro extremo possamos colocar a
capacidade para vivenciar as posições esquizoparanoide e depressiva.

O psiquismo funciona pela interação dessas duas lógicas, por isto Grotstein
(2003) trabalha com o conceito de bi-lógica, onde essas estruturas diferentes
estão juntas, e combinam-se numa estrutura binária oposicional. Existiria um
continuum entre consciente e inconsciente, e em cada situação psíquica, há uma
interação dessas lógicas, a da simetria e a da assimetria. O autor diz:

43
Ignacio Matte-Blanco era um Psicanalista chileno, falecido há poucos anos, com vários trabalhos
teórico/clínicos importantes.
106

Gostaria de apresentar uma conjectura imaginativa sobre como essas


várias entidades podem ser estruturadas. Primeiro imagine uma
estratificação infinita de estruturas bi-lógicas, umas sobrepondo-se às
outras ad infinitum, da indivisibilidade absoluta em direção à
heterogeneidade absoluta. Também imagine que cada estrutura bi-lógica
dessa estratificação infinita é, paradoxalmente, separada de sua
estrutura adjacente e no entanto está ao mesmo tempo misteriosamente
unida à ela, talvez numa faixa de Möbius de continuidade descontínua.
Finalmente, imagine uma presença sobrenatural, segurando os braços
de um compasso e ao mesmo tempo jogando os montes estratificados
das estruturas bi-lógicas e da estrutura lógica bivalente como uma mão
do corpo que pode ser esticada, torcida e comprimida. Por assim ser,
esta presença sobrenatural, este “Geômetra Infinito”, pode orquestrar
imaginativamente todas as possibilidades criativas estética, ontológica, e
científica, podendo ainda coreografar todos os comportamentos
concebíveis. (GROTSTEIN, 2003, p. 130).

Sob este olhar binocular ou talvez mais propriamente multiangular,


podemos pensar na sobreposição dos funcionamentos psíquicos, portanto, das
atitudes e comportamentos emocionais de Mariano, ora autista, ora adesivo numa
pseudorrelação comigo, ora ligado e tentando emergir de seu refúgio. E em
nossas mentes tentando utilizar visões binoculares, conseguindo nalguns
momentos e falhando noutros.

Recordamos que, quando uma organização patológica é erguida, houve


intenso sofrimento e fragmentação patológica (BION, 1988; STEINER, 1997).
Uma parte onipotente passou a coordenar e trouxe alguma ordem à
fragmentação, mimetizando uma função continente, com traços de ego e
superego. Num momento em que o ego havia passado por intensíssima angústia,
a estrutura onipotente, capaz de conter elementos psicóticos, assumiu o controle,
dando certa tranquilidade ao caos. A tranquilidade da simetria, onde tudo pode
ser equivalente, tem a ver com a morte do sujeito, mas paradoxalmente, enquanto
tal estado mental puder ser levado para a proximidade de uma continência por
parte de um analista, a possibilidade de novo encontro irá se manter. Um “Infinito
Geômetra” poderá articular novo movimento.
107

6 CAMINHOS CRUZADOS EM TERRAS E MARES: CONTINÊNCIA,


ENTRELAÇAMENTO DE DEFESAS, PERVERSÕES E A
NECESSIDADE DA VERDADE

O barco
Meu coração, não aguenta
Tanta tormenta, alegria
Meu coração não contenta
O dia, o marco, meu coração
O porto, não!
Navegar é preciso,
Viver não é preciso (Caetano Veloso)

Várias questões foram suscitadas pelo desenvolvimento da pesquisa. As


ideias de Meltzer trazem uma visão do mundo interno, e por isto, começamos por
elas.

Meltzer enfoca o mundo mental construindo a imagem de uma geografia, e


segue com figurações deste que vão desde o interior de objetos que remetem a
partes do corpo materno até espaços sem forma ou sem nome.

A figurabilidade pode ser algo que limita e que pode saturar ou dar aspecto
excessivamente concreto a várias questões. Observamos, no entanto, que figurar
e representar coisas num espaço é parte importante do aparato mental, tão
importante que, apenas para citar um exemplo, sustenta manifestações artísticas
desde os primórdios da humanidade. A capacidade simbólica é de extrema
importância para a saúde mental e para o desenvolvimento do pensamento e,
portanto, se as representações forem usadas de forma realmente simbólica e não
concreta, a figurabilidade não será algo restritivo. Segundo Segal (1993, p. 68-
69), a verdadeira simbolização faz uso de elementos alfa, abertos a várias
realizações, que se prestam à generalização, à abstração e à diferenciação. Ela
diz, seguindo Bion, que quando há uma identificação projetiva normal, há um
intercâmbio benigno entre coisa e representação, mas que se o continente tornar-
se completamente identificado com a parte projetada ele desaparecerá e obstruirá
a capacidade simbólica.
108

Ela acredita que “uma identificação completa entre continente e contido


seja devida à inveja e à incapacidade de tolerar e depender do continente, de
modo que a identificação completa torna impossível a experiência de sentir-se
contido” (1993). Dessa forma, as ideias de Segal mostram porque a experiência
de ser contido (e de verdadeira continência) não é possível num claustro, nem
num refúgio e nem em qualquer organização patológica. Como neles existe uma
tentativa de identificação absoluta com objetos onipotentes, a experiência de
continência não ocorre, pois ela só é possível quando há, apesar da identificação,
alguma diferenciação e tolerância a ela, o que envolve algum contato com a
experiência depressiva.

Segal (1993, p. 62-69) também postula que as equações simbólicas


tenham um rudimento de significado simbólico, muito primitivo. Ela acredita que a
equação concreta seria um estágio transicional entre os elementos beta e alfa (Id.
Ibid.). Estes se tornam impeditivos de crescimento se houver uma retenção nesse
estágio. A essa altura talvez seja útil aventar a possibilidade de que formas
autistas possam se aproximar lentamente de equações simbólicas. E a posteriori
poderão se aproximar mais da simbolização mais evoluída, se a experiência de
continência verdadeira estiver disponível. Seria uma passagem de uma
pseudorrelação adesiva para uma relação através de uma equação simbólica, e
daí, ainda dependendo de encontrar boa continência no objeto, caminhar para
relações verdadeiras, as quais também se desenvolvem muitíssimo com a
simbolização. Isso não implica que as pseudorrelações deixem de existir no
universo mental, nem que a equação simbólica seja destino obrigatório para as
pseudorrelações.

Mas isso também irá requisitar a possibilidade de se transitar entre as


posições esquizoparanoide e depressiva. Vimos, porém, que se as angústias
forem muito intensas, aliadas ou não à falta de continência por parte do objeto,
isso ficará muito difícil. É nesse momento que Steiner aponta para a possível
ocorrência de algum grau de fragmentação patológica, abrindo a possibilidade
para a criação de um refúgio que será sustentado pela organização.

Se voltarmos ao exemplo da arte, veremos que mesmo que por séculos


alguns padrões tenham sido impostos como forma de beleza, estes mesmos
padrões (e outros talvez obscuros), ainda que fossem modelos a serem seguidos,
109

não puderam impedir outros processos e outras concepções sobre arte, muitos
radicalmente diferentes do modelo e das regras. Isso nos lembra de que símbolos
mantêm a abertura à mudança e à transformação, e que relembrando o caso de
Mariano, a possibilidade latente de crescimento poderá ser mantida, e talvez ser
retomada noutro momento de sua vida.

Penso que Meltzer, Rosenfeld e Steiner não têm seu valor diminuído por
arriscarem-se a dar nome a situações mentais e mesmo representá-las com
alguma figurabilidade, coisa que quem os estuda poderá perceber não ter a
pretensão de serem verdades absolutas ou obstruírem o que possa vir a ser
desenvolvido com, além, ou à revelia de seus conceitos. A utilidade de nomes e
símbolos decorre, a meu ver, do enriquecimento e de oferecerem alguma
seletividade à apreensão de coisas do mundo. Ainda que localize e circunscreva,
permite a individualização e a possibilidade de reconhecer cada experiência,
processo pelo qual a lógica aristotélica pode ter lugar, mesmo que ao lado da
lógica simétrica. Como disse Aristóteles, o indivíduo, ainda que contido no todo, é
que é o objeto que faz o cuidado e a cura (quando possível) terem sentido.

O esforço de Bion para demonstrar a importância de não saturar


precocemente conceitos ou campos de conhecimento levou-o a propor conceitos
abertos, como função alfa, reverie, transformações, etc., que mantinham espaço
para mudanças, algo que faz lembrar a origem da palavra símbolo. Ela remonta
ao nome das duas metades de um objeto de cerâmica que era partilhado entre
duas pessoas e que, uma vez reunidas, lembravam um acordo de respeito mútuo
que haviam feito e era uma forma de se reconhecerem e se aceitarem, mesmo
que diferentes entre si.

Meltzer fala de uma região no espaço geográfico interno que ele chama de
nowhere, onde ele pensa predominar o funcionamento psicótico. Talvez esta área
possa ser pensada em conjunto com as aberrações assimbólicas do
desenvolvimento, propostas por Mitrani. Pois para aquele autor, o nascimento de
um bebê pode implicar em perder capacidades e aspectos (talvez funções)
mentais, ou pré-mentais, que ele tinha no útero. Mitrani também aceita esta
possibilidade, de modo que as deficiências da continência materna poderiam,
junto à perda do ambiente uterino, envolver experiências insuportáveis, ou quase.
No útero, alimentação, oxigenação e temperatura são automaticamente mantidas
110

pela placenta, e não dependem da ação complexa de um objeto externo. Ao


nascer, essa dependência do objeto externo passa a ocorrer e o bebê é capaz de
sentir fome, de respirar, de sentir peso e perde a capacidade para o bem-estar
que havia no útero. O nowhere lembra o objeto obstrutivo (GROTSTEIN, 2010),
com sua dificuldade de dar lugar a seus próprios conteúdos.

Por isso, além das fragilidades descritas por Tustin e Mitrani, que implicam
na impossibilidade de tolerar separação física da mãe, ainda teríamos, segundo
Meltzer, outras descontinuidades e perdas. Diante destas perdas e da dificuldade
de estabelecer novas maneiras de viver, o desenvolvimento de formas autistas
poderia ser propiciado e, também, o de organizações patológicas. Na ausência de
um bom continente para nutrir psiquicamente o bebê e assim fazer a vida seguir
seu caminho e seu sentido, as capacidades simbólicas e de pensamento podem
ser prejudicadas.

Mitrani (2007) frisa em concordância com Grotstein, que o desenvolvimento


psíquico e mental pode ser visto e concebido como ocorrendo em múltiplas vias
simultâneas, paralelas e diferentes, como pistas ou raias numa quadra ou numa
estrada. Bion também pensava que áreas neuróticas e psicóticas coexistem numa
personalidade. Assim sendo, o fato de existirem fenômenos primitivos tipo
autísticos não invalidaria a possibilidade de, em outras áreas da mente e da
personalidade, existirem outros funcionamentos paralelos, como fenômenos
psicóticos e/ou neuróticos. O próprio conceito de barreiras autistas e
pseudorrelações objetais adesivas em pacientes neuróticos baseia-se nisso.

Na área psicótica nowhere, o funcionamento é dominado por elementos


beta com traços de ego e superego (MELTZER, 2008, p. 61-62). Para Grotstein
(2010) a própria estrutura do refúgio seria composta por uma tela beta. Essa área
poderia atrair para si e aliciar outros fenômenos mentais primitivos, como, por
exemplo, as aberrações assimbólicas e os núcleos autistas. Fenômenos ligados
ao fracasso em tolerar a realidade e usar pensamento poderiam se aproveitar do
uso alterado das relações objetais que ocorrem nas pseudorrelações objetais
adesivas, as quais também provocam uma alteração do modo de se relacionar
com os objetos e consigo mesmo.
111

Seguindo o raciocínio, uma criança que tenha ao nascer, deixado


capacidades ou funções mentais no útero, e vier a sofrer por dificuldades no
ambiente e falhas na capacidade de reverie da mãe, se for ainda
sobrecarregada por mais privações poderia desenvolver formas autistas.
Poderia, também, ao atravessar os conflitos entre ceder ao pensamento
mágico da área psicótica e enfrentar as posições esquizoparanoide e
depressiva, não suportar e desistir, cedendo ao pensamento psicótico. Nessa
situação, uma organização patológica poderia crescer e, dependendo do
momento, assumir o controle da personalidade.

Defesas mais primitivas podem seguir com pouca mudança e


permanecerem camufladas, coexistindo com áreas evoluídas e, juntamente com
estas, serem aliciadas como propõe Steiner, pela parte perversa de uma
organização patológica. As áreas mais primitivas não teriam recursos para se
opor a isso.

Rosenfeld (1988), como Tustin (1990), acreditava que algo semelhante a


um processo osmótico poderia ocorrer e emoções maternas poderiam transbordar
para o feto, que não teria como escapar disso. Tal situação poderia se ligar ao
desenvolvimento de organizações patológicas, pois a falta de continência e
reverie maternas podem ter consequências desastrosas para um bebê. O
transbordamento sugere que experiências ruins também poderiam ser
transmitidas ao bebê, causando para ele maior dificuldade de manejo com a
posição esquizoparanoide, e levando a uma catástrofe precoce (BION, 1988;
GROTSTEIN, 2009, 2010). Nessa catástrofe também entram as dificuldades
maternas de acolher as projeções de seu bebê.

Algumas situações que podemos perceber como uma distorção da


realidade, e que parecem perversas, talvez possam ter sustentação não somente
no mecanismo perverso (STEINER, 1997) em si, mas também em mecanismos
autistas (MITRANI, 2007) os quais, por sua discrepância para com relações de
objeto normais e/ou mais complexas, podem dar a impressão de serem
perversos, mas residem na tentativa de estabelecer pseudorrelações adesivas
com algo inanimado que provê uma segurança sem meandros humanos e,
portanto, sem risco de perda.
112

A reiteração de privações pode também levar a isso, uma vez que repetir
obsessivamente atitudes ou formas autistas, idiossincrásicas (TUSTIN, 1990), que
dão suporte ignorando a realidade, pode provocar um afastamento da relação real
com objetos, que, num âmbito mais amplo, pode ter efeitos perversos e, no
âmbito do desenvolvimento do sujeito, possivelmente o tem. As pseudorrelações
podem, justamente por sua precariedade, dar lugar a distorções e efeitos
perversos nas relações afetivas, mesmo que não tenham essa intenção, nem
sejam originadas disso. Tal me parece o caso de Mariano, mas creio que ele
também se alinhe ao relatado nas considerações sobre organizações patológicas.

Outra questão seria o fato de que, após algum progresso do self como um
todo, defesas autistas possam vir a ser usadas de forma perversa por uma parte
do ego mais evoluída, capaz de perceber e de ter insight, mas ligada e
dependente de refúgios psíquicos (MITRANI, 2007, p. 141-146). E Bion (1988)
também expôs o quanto áreas neuróticas da personalidade podem fazer mal uso
de áreas psicóticas, e vice-versa.

Meltzer refere que algumas crianças desenvolvem núcleos de identidade


no interior de objetos com os quais fizeram intensa identificação projetiva. Assim
sendo, ele veio a descrever vários núcleos de identidade no eu, diferentes entre
si, em interação complexa na geografia mental interna. Embora nas situações
autistas não haja uma noção de objeto ou de identidade, até porque uma depende
da outra, talvez um senso de pseudoidentidade possa se fazer presente. Freud
dizia que o ego é, antes de tudo, ego corporal, e as pseudorrelações adesivas
(MITRANI, 2007) parecem criar em seus portadores uma espécie de identidade.
Também podem fazer isto por proporcionarem uma experiência de concretude,
tangível e persistente, e que parece ter nível primitivo, atávico e biológico, sendo
por isso difícil de mudar.

Isso lembra também a equação simbólica pois esta iguala coisas e suprime
diferenciações. Portanto até alguns processos simbólicos primitivos ou psicóticos
podem servir de apoio à pseudorrelações objetais, pois se houver uma
equação simbólica que faça uma relação afetiva ser igual ao estar aderido, ela
fomentará o mecanismo autista, mesmo que seja diferente dele. Essas
cogitações requerem mais estudos, mas foram desencadeadas no processo de
pesquisa e são consequentes a ele. Por isso, são mencionadas, além de se
113

referirem ao princípio de simetria do inconsciente, e a proposta do Geômetra


Infinito (GROTSTEIN, 2003).

Outro aspecto importante relaciona-se com a experiência de ser jogado


fora, descrita por Tustin (1990), Mitrani (2007) e também Kristeva44 (1982). Sentir-
se jogado fora, inexistente ou impróprio para existir é muito diferente de sentir-se
perseguido. Parece envolver uma experiência de não ter lugar, não ter
importância e não poder existir para alguém. Penso que essa experiência pode
ocorrer quando a continência materna falha por diversos motivos. Para sentir-se
perseguido, é necessário que tenha havido uma relação de objeto boa e que ela
tenha sido perdida (ainda que temporariamente) e que, em seu lugar, tenha sido
instalada uma relação com um objeto ruim.

Essa outra experiência é a de não poder estabelecer o que deveria ser a


relação com um objeto, pois o objeto que deveria propiciar isso não está
disponível. Creio que, ao ter dificuldade para falar, o receio de meu paciente
talvez não fosse apenas ligado ao de ser perseguido e humilhado. Mas também e
talvez principalmente o de não encontrar alguém que o quisesse ouvir, de modo
que o que tinha para transmitir ficava e era perdido num nada, numa ausência de
importância, ou ausência de existência. Uma situação para onde ele podia ser
sempre expulso. Faz pensar na experiência de uma criança não se sentir
existindo de forma consistente para a mãe. E de uma mãe que não reclamasse a
existência da criança (ALVAREZ, 1992).

A vicissitude de ser tratado por alguém como um ser nulo, ou de ter as


próprias necessidades vistas por alguém como descartáveis, pressupõe a
frustração na busca de um objeto. Mas, além disto pode trazer uma experiência
de que não há algo a ser encontrado, ou de que nessa busca, que deveria
terminar num encontro, algo se perdeu, incluindo aquilo que o sujeito queria
transmitir, até ele próprio. Assim, o sujeito pode estabelecer um modo de
comunicação que também descarte o objeto, uma vez que este nem sempre
esteve disponível. O ritmo de segurança não se fez. No entanto, o sujeito também
“descarta” a si mesmo, pois desiste de criar condições para ser encontrado, fica

44
Mitrani cita a descrição de Kristeva da experiência de ser rejeitado, que faria com que uma única
qualidade de um objeto fosse retida pelo sujeito; a deste sujeito estar atado ou separado do
objeto, isto é ou se está colado ou expulso, nada além.
114

com a experiência de ser nulo, e de que aquilo que tinha a transmitir não tinha
importância. Tudo isso pode ter efeitos perversos.

Tal experiência de ser deixado e não encontrar eco para o qual ou para
quem tentávamos nos endereçar, e sentir-se anulado, não é difícil de ser
reconhecida e, a meu ver, depois de todo este percurso, não está exatamente
ligada à perseguição. Pode estar ligada a algo primitivo, uma dúvida e, às vezes,
uma estranha sensação de não ter existência ou importância para o objeto e,
portanto, para nós e para o mundo. As consequências disso podem ser coisas
estranhas e bizarras, num nowhere, mas provindos de outra vivência fora das
situações esquizoparanoides e depressivas.

Uma organização patológica é sustentada amplamente por crenças falsas,


às quais a pessoa pode ter imensa dificuldade de renunciar. Britton diz que
crenças são sustentadas por fantasias que, mesmo quando expostas ao teste de
realidade, podem permanecer intactas. Ele coloca:

A partir do momento em que ideias se tornam crenças, elas têm


consequências. As crenças podem ser conscientes ou inconscientes,
mas não podem ser testadas ou abandonadas sem antes se tornarem
conscientes. As crenças requerem o teste da realidade para se tornarem
conhecimento. O teste de realidade ocorre através da percepção do
mundo externo ou da correlação interna com fatos já conhecidos e outras
crenças. Se a experiência e o conhecimento subsequentes desacreditam
uma crença, é preciso renunciar a ela; isto requer um processo de luto se for
uma crença importante ou preciosa. (BRITTON, 2003).

Se uma experiência dolorosa oriunda de não ter importância ou existência


para um objeto for muito reiterada e tornar-se duradoura, ela poderá contribuir
para formar uma crença difícil de ser abandonada. Ainda tem-se que considerar
que a organização patológica por buscar suportes onipotentes, só crê neles e cria
dificuldades para a aceitação e valorização de cuidados menos onipotentes.
Outras crenças inconscientes, como um intenso ressentimento pelas privações
edípicas, também poderiam manter Mariano ligado e dependente de um sistema
defensivo poderoso, para paradoxalmente não se sentir expulso.

A posição do analista diante desse processo requer uma tolerância para as


oscilações entre as posições esquizoparanoide e depressiva constantes. As
questões a serem trabalhadas eram e continuam difíceis e melindrosas, mesmo
noutros processos analíticos. Além delas, as peculiaridades daquela análise como
115

as dificuldades concretas para ouvir, entender, os sobressaltos com as alterações


de voz, implicavam numa enorme tolerância à situação esquizoparanoide, e
exigindo o constante exercício da capacidade negativa. E a tentativa de
compreender, a possibilidade de alcançar uma posição depressiva, por inúmeras
vezes parecia inatingível e quando encontrada, aquém da necessária.

O analista também tem que lidar com o sentimento de ser carente de


habilidades mínimas: literalmente precário para ouvir e, ainda assim, precisa
tentar. Não saber com que tipo de vivências primitivas irá se deparar e precisar
tentar ter continência e trabalhar com elas, mesmo sem saber onde irão levá-lo e
se será capaz disso. Ele precisa como o paciente, não sucumbir diante da
sensação de que sua existência não importa ou de que foi lançado ao nada,
quando tenta trabalhar.

Anne Alvarez fala da função da mãe de chamar a criança para si, dar
importância a ela, requisitá-la. Ela atribui à mãe a reclamação, a convocação de
seu bebê para a vida e para o encontro com alguém vivo. Esta possibilidade e os
sentimentos de que isto era fundamental com Mariano, e que permanecia
importante apesar da presença do refúgio, existindo em paralelo com este,
permaneceram comigo durante todo o trabalho.

Revendo o caso de Schreber, Steiner (2011) observa que o quadro


psicótico daquele magistrado desencadeou-se após um período depressivo,
decorrente da frustração de seu desejo de ter filhos. Essa perda narcísica foi-lhe
insuportável. Podemos pensar em algo semelhante em Mariano porque, depois
do acidente, sua vida mudou. A voz poderia ser uma metáfora de outras perdas.
Podemos compará-la a uma atuação das perdas no corpo, por dificuldade de
elaboração interna. Talvez haja também um transbordamento em associação a
algo psicótico: a dor psíquica e a sensação de fracasso da autoestima eram
projetadas na voz, mas de forma tão intensa e persistente, que não eram uma
projeção comum. Havia algo que produzia o efeito sonoro de uma lesão severa
nas cordas vocais, e que, mesmo com todos os tratamentos e garantias de
ausência de lesão orgânica, não melhorava.
116

Embora também se possa pensar na dissociação histérica, a gravidade da


situação apontava para algo mais complexo. Além disso, Mariano não tinha nada
da belle indifférence tão comum no histérico. Ao contrário, era sobressaltado e
afrontado por aquela situação em si próprio, e não parecia capaz de usar insights
para aquela parte si mesmo. Neste ponto, parecia reviver uma cesura (TUSTIN,
1990), uma traumática separação, num momento em que sua mente estava
totalmente incapaz para isso.

Trazemos para terminar, algumas considerações a partir da leitura de


Grotstein (2009). Esse autor publicou um livro com o sugestivo nome de:...But at
the same time and on another level... (...Mas ao mesmo tempo e num outro
nível...) Nele estuda e discute ricamente várias teorias psicanalíticas baseadas
em Klein e Bion. Um dos temas consiste nos refúgios psíquicos. Embora siga
Steiner, Grotstein acrescenta ênfase à catástrofe emocional nos primórdios da
vida psíquica que precede a instalação do refúgio. Por isto, realça a falha na
função de continência materna, portanto da função alfa, e toma emprestada de
Bion a noção de objeto obstrutivo, o qual se instala no interior do ego. Tal objeto
não seria capaz de metabolizar as projeções que recebia, e sua instalação
completaria o panorama da catástrofe emocional precoce. Ao invés de um objeto
continente, estes pacientes seriam portadores de um objeto que obstrui a
introjeção e a reapropriação de aspectos projetados. Por isso tem enorme
necessidade de projetar, como se livrar-se de coisas indesejadas fosse o mesmo
que estar bem. Na visão de Grotstein as organizações patológicas estariam
ligadas a casos muito graves, ao passo que para Steiner há vários graus de
pertencimento a refúgios e, portanto, diferenças nas organizações e no
comprometimento global da personalidade.

Uma metáfora para tal objeto obstrutivo pode ser percebida nos versos de
Os Argonautas, no coração que não aguenta tanta tormenta, e não se contenta
com a alegria. E na menção a algo que foi um marco e que parece fazer com que
o coração ao se aproximar do porto diga Não! Há uma ideia de que os
sentimentos são insuportáveis, e o estribilho convida a não viver, apenas
navegar, sugerindo as ondulações, as formas autistas e as pseudorrelações
adesivas em que algo é feito de forma automática para evitar o contato com
coisas vivas e humanizadas.
117

Outro elemento mencionado por Grotstein, baseando-se em suas


compreensões de Bion e Matte-Blanco é que o inconsciente e o consciente
funcionam em forma de oposição complementar, não necessariamente conflitante
ou antagônica. Isto contribui para sustentar a possibilidade de vários tipos de
funções mentais ocorrendo concomitantemente, como o autor havia postulado ao
falar de duplas vias, e da sincronicidade dos hemisférios cerebrais como metáfora
para o funcionamento psíquico: complexo, com várias possibilidades simultâneas,
dotado de lógicas que se superpõem. E que também está contemplado em sua
descrição do “Infinito Geômetra”.

A proposta de que o ego mantém visões antagônicas sobre algo


importante, fazendo prevalecer a acepção perversa, coloca Steiner ao lado da
proposta de Grotstein das vias paralelas. O elemento perverso prevalece e
impede que outras interações e integrações possam ocorrer. No refúgio psíquico,
não é possível a complementaridade: esta existe, mas não é levada em conta,
pois a natureza da perversão é desprezar a verdade. Pode haver insight sobre
como a organização atrapalha, mas continua a ocorrer a primazia do vínculo –K, e
a organização mantém a soberania. A tarefa analítica busca e tenta criar
condições para a integração, e a minimização daquele tipo de prevalência.

Parece-nos significativo aceitar a ideia de que nossos pacientes possam ter


estruturas múltiplas, e sistemas defensivos múltiplos, mas justamente por isto,
também tenham diversos recursos internos que podem ser mobilizados para
promover crescimento. E que podem ficar ao alcance, em algum momento se
tivermos capacidade de manter a mente aberta.

Comprovamos que a compreensão dos refúgios psíquicos e de outras


organizações patológicas tem imensa utilidade na área clínica, além de servir
para desvendar um pouco das dificuldades da abordagem terapêutica de
pacientes com sistemas defensivos adoecidos. Parece-nos possível propor que
Steiner e Mitrani trabalham com aspectos complementares de uma questão
fundamental: a continência. Em Steiner podemos pensar que mesmo quando a
continência estiver disponível, a inveja e/ou a intolerância a depender de bons
objetos poderá prejudicar o aproveitamento e a experiência de ser contido. Em
Mitrani podemos observar a não formação do contato com o objeto continente e a
criação substitutiva, sedutora e persistente de um arremedo disto, as
118

pseudorrelações objetais adesivas. Vemos assim que formar vínculos capazes de


trazer e prover saúde psíquica segue sendo uma necessidade básica do ser
humano, mas é sem dúvida, uma construção desafiadora.

A busca da verdade pelo inconsciente, como parte de nossa vida instintiva,


e a necessidade dela como uma “respiração mental” são funções ressaltadas por
Grotstein (2009, 2010), em sua compreensão do trabalho de Bion. Penso que a
busca da verdadeira continência era uma parte da verdade de Mariano, que
permanecia viva e revelada na dificuldade com a fala, e durante muitos momentos
em nosso trabalho. Uma fala que se queria poderosa, mas se revelava frágil e
carente, buscando ajuda, ainda que depois a recusasse ou a usasse de forma
incerta. Creio que este desejo de verdade permaneceu e permanece oculto em
muitos pacientes, como em Mariano, caminhando em paralelo e parcialmente
obscurecido pela organização patológica. Nas palavras de Grotstein, percebe-se
o impulso e a necessidade da verdade como legado inesgotável do ser humano.
Tal legado está sempre presente, ao mesmo tempo e num outro nível.

E para pensar no inconsciente, com sua lógica simétrica em que tudo pode
ser igualado e valer à pena,e ainda nas vicissitudes e riquezas de nosso mundo
interno e na mão que o “Infinito Geômetra” nos oferece e dá a tudo o que existe,
trago um trecho de Fernando Pessoa:

E a criança tão humana que é divina


É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A criança nova que habita onde vivo


Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
119

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123

ANEXOS

Travessia (Milton Nascimento)

Quando você foi embora, fez-se noite em meu viver


Forte eu sou mas não tem jeito, hoje eu tenho que chorar
Minha casa não é minha, e nem é meu este lugar
Estou só e não resisto, muito tenho prá falar
Solto a voz nas estradas, já não quero parar
Meu caminho é de pedras, como posso sonhar
Sonho feito de brisa, vento vem terminar
Vou fechar o meu canto, vou querer me matar.
Vou seguindo pela vida, me esquecendo de você
Eu não quero mais a morte, tenho muito que viver
Vou querer amar de novo e se não der não vou sofrer
Já não sonho, hoje faço com meu braço o meu viver
Solto a voz nas estradas, já não quero parar
Meu caminho é de pedras, como posso sonhar
Sonho feito de brisa, vento vem terminar
Vou fechar o meu canto, vou querer me matar.

Ripples (by Genesis)


Bluegirls come in every size
some are wise and some otherwise
They've got pretty blue eyes
For an hour a man may change
For an hour her face looks strange
Looks strange, looks strange
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Marching through the promised land


Where the honey flows and takes you by the hand
Pulls you down on your knees
While you're down a pool appears
The face in the water looks up
And she shakes her head as if to say
That it's the last time you'll look like today

Sail away, away


Ripples never come back
Gone to the other side
Sail away, away

The face that launched a thousand ships


Is sinking fast, that happens you know
The water gets below
Seems not very long ago
Lovelier she was than any that I know

Angels never know it's time


To close the book and gracefully decline
The song has found a tale
My, what a jealous pool is she
The face in the water looks up
And she shakes her head as if to say
That the bluegirls have all gone away

Sail away, away


Ripples never come back
Gone to the other side
125

Look into the pool


Ripples never come back
Dive to the bottom and go to the top to see where they havegone
Oh, they've gone to the other side

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