Andrea de Davide Ratto Morelli
Andrea de Davide Ratto Morelli
Andrea de Davide Ratto Morelli
SÃO PAULO
2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA CLÍNICA
SÃO PAULO
2013
Banca Examinadora
_________________________________________________________________
Orientador: Prof. Dr. Luis Claudio M. Figueiredo
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou
parcial deste trabalho, por processos fotocopiadores ou eletrônicos.
________________________________________________
A minha analista Dra. Maria da Penha Amâncio de Camargo Barros Munhoz por
suas contribuições e cuidados para com minha saúde.
Aos meus supervisores os Drs. Mario Pacheco de Almeida Prado (In Memoriam),
Heitor Fernando Bandeira de Paola e Neilton Dias da Silva pelas contribuições, á minha
formação como psicanalista.
A meus pais, Regina Maria de Dávide Ratto, e José Affonso Pinheiro Ratto
(ambos In memoriam) por me darem a vida e terem contribuído de corpo e alma para
aquilo que sou.
A meu sogro, Sr. Plácido Morelli cuja presença junto a meus filhos muitas vezes
permitiu que eu me ausentasse sem tanta angústia.
Aos poetas e literatos, populares ou eruditos, por terem iluminado meu caminho e
me acompanhado através das diversas etapas de minha vida.
“Quem possua a noção sem a experiência e conheça o universal, ignorando o particular
nele contido, enganar-se-á muitas vezes no tratamento, porque o objeto da cura é, de
preferência, o singular”.
Aristóteles.
MAR PORTUGUÊS
Fernando Pessoa
MORELLI, Andrea de Davide Ratto. Barreiras, refúgios, claustros: vias cruzadas numa
travessia. São Paulo, 2013. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) Núcleo de
Método Psicanalítico e Formações da Cultura do Programa de Estudos Pós-Graduados
em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
RESUMO
Este estudo tem por objetivo recolher informações sobre alguns tipos de
organizações patológicas da personalidade, utilizando conhecimentos
psicanalíticos. Vários autores embasam-no partindo de Sigmund Freud, Melanie
Klein, Joan Riviere, Wilfred Bion, Herbert Rosenfeld, Hanna Segal e chegando a
John Steiner, Donald Meltzer, Frances Tustin, Judith Mitrani e James Grotstein,
cujos trabalhos nessas áreas são discutidos mais profundamente. Esforços são
realizados para compreender e identificar pontos de convergência, divergência
e/ou intersecção entre conceitos como claustros, refúgios psíquicos, cápsulas
autistas e pseudorrelações objetais adesivas. Discussões da importância da
continência e da elaboração das posições esquizoparanoides e depressivas
perpassam todo o trabalho e são fundamentais para a abordagem do material
clínico apresentado. A continência psíquica do analista é questionada em face de
dificuldades como a sedução dos claustros e a atratibilidade de pseudorrelações
objetais adesivas, o embaraço diante da ternura e lutas por dominar ou excluir o
analista. Diante da dificuldade de manejo com sistemas defensivos complexos,
como os das organizações patológicas, a confiança na existência da necessidade
inconsciente da verdade psíquica permanece estimulante e acalentadora tanto
para continuar a trajetória do exercício psicanalítico, quanto para alcançar as
necessidades dos pacientes.
ABSTRACT
1 APRESENTAÇÃO ................................................................................................................ 10
2 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12
1 APRESENTAÇÃO
2 INTRODUÇÃO
Embora esta pesquisa focalize material clínico, seu objetivo é utilizá-lo para
o estudo de algumas questões teóricas. Em respeito ao sigilo, vários dados são
omitidos e modificados. O material entra como apoio e como articulador para o
estudo e para a investigação de algumas ideias psicanalíticas.
1
Bion tomou de John Keats a acepção do termo. Numa carta a seus irmãos, Keats diz que “At
once it struck me, what quality went to form a Man of Achievement, especially in literature, and
which Shakespeare possessed so enormously- I mean Negative Capability, that is when man is
capable of being in uncertainties. Mysteries, doubts, without any irritable reaching after fact or
reason.” Certa vez isto me chamou atenção, qual qualidade servia para formar um homem de
alcance, especialmente na literatura, e que Shakespeare possuía tão enormemente: a
capacidade negativa que é quando o homem é capaz de existir em incertezas, mistérios e
dúvidas sem qualquer irritada busca por fato ou razão.
2
Este trabalho encontra-se revisado e algo modificado e publicado sob a denominação: Relações
perversas nas organizações patológicas. In: ______. Refúgios psíquicos. Rio de Janeiro: Imago
Ed., 1997. Cap. 9, p. 123, e nos originais de Psychic retreats, de 1991.
3
Grifos nossos.
16
por Rosenfeld, nos deteremos em seus trabalhos. Mas várias contribuições, por
exemplo, as de Meltzer, Tustin e Mitrani também respaldam a tarefa.
De forma cristalina, apreende-se que não se é sadio só por ter algum grau
de desenvolvimento e que nem toda organização defensiva é saudável, por
exemplo, uma identificação defensiva intensa com o grupo social pode significar
uma perda insalubre da individualidade. Vê-se que a vida de relação traz a
necessidade de acolher a diversidade do mundo e dos seres humanos, a
tolerância ao diferente e ao frustrante. Requer também a aceitação de mudanças
e a capacidade para adaptar-se e transformar-se, além do estabelecimento de
relações reais consigo mesmo e com os outros. Winnicott expõe o quanto de
esforço individual é exigido para uma pessoa ser e manter-se saudável, pois ela
terá que vivenciar o ônus e o bônus de ser o que é.
4
JOSEPH, B. Equilíbrio psíquico e mudança psíquica. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1992. O termo é
usado para retratar mudanças muito delicadas, tão sutis, que podem ser quase imperceptíveis, e
que podem não se estabilizar.
18
contatos, que, a partir dali, possam surgir, numa sequência que, mesmo tímida,
poderá ser essencial.
Alguns tratamentos podem criar, sem intenção, uma moldura propícia para
que refúgios ou outras organizações defensivas patológicas se mantenham. O
paciente pode ser visto de forma empobrecida, apenas como vítima, e não ser
percebido ou considerado como um agente terapêutico ou antiterapêutico da
maior importância para si mesmo, e, ainda, poderá estar no que Steiner (1994,
1997, 2011) mostra - como um conluio não inocente com a organização
patológica dentro de sua personalidade:
O item 4.4 esclarece o que seriam claustros, conceito proposto por Meltzer
para designar uma projeção para dentro de objetos parciais do mundo interno,
num momento de formação de identidade, o que faz com que esta fique
comprometida com tais objetos, trazendo várias implicações patológicas.
5
A letra integral se encontra em Anexos.
22
O paciente citado na introdução fazia com que houvesse - para mim e para
ele - um clima como o descrito anteriormente. O timbre de sua voz ondulava. Em
alguns momentos era uma alta onda, em outras, suave marola que se perdia indo
longe e atrás da qual eu tentava ir, apenas para me sentir perdida, para não
23
comunicação entre duas mentes. Ou se aquele ritmo era a forma de estar com
ele, de juntar duas mentes (at-one-ment?). Pensava em Meltzer (1997)6, ao dizer
que, no primeiro ano de análise, os progressos que ocorrem são muito menos por
insight e bem mais por sintonia na contratransferência.
Comentava com ele sobre a situação da criança com o carretel, que some
e volta, à espera da mãe, enquanto aprende a pensar em sua ausência e ter
esperança de seu retorno. Todas essas experiências afetivas decorrentes da
situação sensorial concreta que ali se colocava foram aos poucos sendo
trazidas e verbalizadas em nossos encontros. Sentir-me procurando por ele
como uma etapa inicial do contato construído entre nós pareceu-me, a
princípio, trazer a certeza de que eu o julgava vivo e importante e de que suas
coisas vivas, mesmo que embrionárias, seriam levadas em consideração por
nós, ou ao menos por mim.
Numa das vezes em que coloquei isso a ele, vi-o chorar e relembrar o
acidente do qual viera a “sequela”.
Outro aspecto importante das sessões era o clima grave, pesado, até
sombrio, com a tensão e o embaraço que, às vezes, precedia o pronunciar de
cada palavra e me deixava em suspenso, preocupada, com um misto de vontade
de acolher, entender, medo de ser incapaz e ofender Mariano por não ter sido
capaz. Receio de evidenciar a dificuldade dele, com a minha. Quando tentei
6
MELTZER, D. A evolução das relações objetais. In: TIRELLI, Luisa; SCAPPATICCI, Anne Lise S.
(Orgs.). Bion e a psicanálise infantil: interações entre os indivíduos e nos grupos. Trad. da ed.
brasileira Anne Lise S. Scappaticci. São Paulo: Primavera Editorial, 2011. Publicado
originalmente no British Journal of Psychoterapy v. 14, n. 1, p. 60-66, Sept. 1997.
26
escrever este caso, vi-me com enorme dificuldade de achar as palavras certas e
se as encontrava parecia que a forma como as encadeava resultava em um texto
confuso, com uma estranha cadência, e gerava caos. Outro “efeito” do contato
com as “ondulações” do caso? A dificuldade de ter que gerar algo mental, tirar as
palavras da simples forma sonora para que tivessem também uma alma?
Isso lembra o que Bion chama at one ment, “estar como (em) uma só
mente” e que implica na capacidade de fazer ressonância com a mente do outro.
Para a criança, a experiência de estar acolhido na mente materna seria algo que
poderia reparar a dor da cesura, a dor de nascer. A mãe terá de ter um bom
contato e compreensão de sua própria mente e de sua humanidade para se unir à
do bebê, mas permitir graus de separação, e não prejudicar o desenvolvimento
30
mental de seu filho. Ela não deve invadi-lo psiquicamente, nem invalidar seu
psiquismo.
Cabe lembrar que esses bebês não são capazes de projeção. Eles têm
grande necessidade de sentir a continuidade física com seu objeto, pois não têm
ainda funções mentais minimamente integradas, e dependem,
fundamentalmente, do suporte físico e do acolhimento psíquico materno. Só
mais tarde poderiam abrir caminho para o mental. Mas as reações autistas
divergem do desenvolvimento normal de ligações afetivas e o substituem pelas
defesas e formas autistas.
separação tolerável. Para essas mães, a separação não deveria ou não precisaria
existir, e não puderam preparar suavemente seus bebês para ela. Essas mães
criam um estado de ligação fusional com seus bebês, sem se darem conta de
que estão dificultando as coisas, pois a separação é inevitável e o bebê irá
senti-la em algum momento. Quando não é possível, pelas vicissitudes normais
do desenvolvimento ou outro problema qualquer, manter a indiferenciação e a
fusão com a mãe, a perda cai sobre a criança, perda essa aparentemente sem
chance de reparo. Se a situação pudesse ser suportada, a mente individual se
fortaleceria aos poucos.
Tustin afirma que há uma diferença útil e significativa entre ego e self.
Ela diz:
7
O texto usa esta palavra, e optou-se por manter a grafia original.
32
Tustin diz:
8
Para Ogden, a posição autista contígua implica em uma dialética pré-simbólica entre
continuidade e ruptura, entre fronteira e o at one ment, isto é, estar em uníssono, ou em
entrosamento com outra mente, com um objeto subjetivo. Não faz parte do escopo desta
pesquisa abordar este viés.
35
desenvolvimento onde não há simbolização, e tal estado pode persistir como uma
anomalia assimbólica na mente de um sujeito.
9
Equação simbólica é termo cunhado por Hanna Segal para designar que, ao invés de símbolo
verdadeiro, que representa ou remete à coisa simbolizada, na equação simbólica a
representação é vista e vivida como sendo o objeto que deveria apenas representar.
10
Esta ideia baseia-se num artigo de James Grotstein, chamado A Dual Track Theorem, publicado
pela American Psychological Association em que ele faz uma discussão sobre neurociência e
psicanálise e vê os seres humanos como contendo visões separadas de si mesmos e do
universo, que incluem discrepâncias, paradoxos e convivem entre si paralelamente. Aponta o
fato de que o sistema nervoso tem vias múltiplas, diferentes e simultâneas para efetuar tarefas, o
que, talvez, seja característica evolutiva da espécie, exemplificando com funções que podem ser
duplicadas e simultâneas nos hemisférios cerebrais, embora geralmente o resultado possa
evidenciar a preponderância de alguma via num dado momento, o que não significa que sempre
ocorra assim. Grotstein também menciona duplas vias em seu livro Quem é o sonhador que
sonha o sonho?
36
Pode-se ver aqui outra possível aplicação da ideia do postulado das vias
paralelas de Grotstein11, que desde Freud já tinha seus começos, pelo
paralelismo consciente/inconsciente. Antigos mecanismos não são abandonados
e seguem juntos e concomitantemente a outros, diferentes ou mais evoluídos.
11
Grotstein desenvolve a ideia de vias paralelas até uma ponto de admitir que enquanto pensa, a
mente pode se auto-observar, paralelamente a fazer algo, ou pensar outras coisas, o que será
mencionado adiante.
38
12
Leonardo da Vince e uma lembrança de sua infancia. (1910). In: OBRAS completas. Edição
Standard. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1974. v. XI.
13
Narcisismo, uma introdução. (1914). In: OBRAS completas, cit., v. XIV.
39
14
Mas a comunicação pela identificação projetiva, mesmo primitiva, é a ferramenta básica de todo
entendimento e empatia humanos, como Bion (1997) e Meltzer posteriormente (1990, 1995,
1998, 2004) demonstram.
41
15
sonhos e fantasias como uma latrina ou como um colo . (ROSENFELD,
1968, p. 194-195).
Desta forma, nem objeto e nem self são vistos na realidade, mas sob a
ótica de idealizações, projeções etc. Relações desse tipo tendem a ser estáveis:
abandoná-las seria temerário, pois, além de provocar inveja, levariam ao medo e
ao desamparo, com penosos sentimentos de dependência. A personalidade que
engendrou fortes relações narcísicas evita, portanto, sair delas.
15
Aqui o sentido de colo é o de intestino.
43
16
Melanie Klein havia pensado numa posição maníaca ao estudar os quadros maníaco-
depressivos (1981).
44
17
Lembramos o desenvolvimento disso feito por Bion (1988, 1966), mas ressaltamos que Riviere
parte, fundamentalmente, da noção de objeto bom e provedor de Melanie Klein.
18
Em Sobre a gênese do conflito psíquico nos primórdios da infância. In: KLEIN, M; HEIMANN, P;
ISAACS, S.; RIVIERE, J. (Orgs.). Os progressos da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
45
19
Este raciocínio segue o pensamento Kleiniano, e tem correspondência com a visão de Frances
Tustin e Judith Mitrani.
46
20
BION, W. Experiências com grupos. Rio de Janeiro: Imago, 1975; Estudos psicanalíticos
revisados. Rio de Janeiro: Imago, 1988; BLÉANDONU, G. Bion a vida e a obra. Rio de Janeiro:
Imago, 1993.
47
21
Na acepção de M. Klein, a inveja seria uma dotação do ser humano, ligada ao instinto de morte,
mas variável nos indivíduos. Poderia ser aumentada ou diminuída, dependendo do ambiente em
que o indivíduo se desenvolve. Ela leva a que, ao invés de aceitar a dependência de um bom
objeto, que oferece vida, exista o predomínio da raiva dessa dependência, que levaria ao desejo
de destruir ou de negar as qualidades do objeto. Nos indivíduos em que a inveja é intensa, a
formação de vínculos com objetos bons é dificultada por isso e as relações narcísicas
predominam. (KLEIN, 1991).
48
ser tão terrível que o paciente é capaz de retomar as defesas onipotentes. Esta e
outras características do processo analítico, como o fato de o paciente poder
detestar as capacidades do analista (BION, 1988) e se sentir diminuído diante
delas (STEINER, 2011), podem dar origem às reações terapêuticas negativas
e/ou ao ataque às percepções indesejadas e retorno ao relacionamento antigo.
Tudo isso implica na entrada na posição depressiva e pode ser insuportável.
Outra possibilidade é que analista e paciente, receando tal situação, procurem
preservar seu relacionamento como ideal. Podem negar as dolorosas separações
e não enxergar a piora ou a manutenção da doença do paciente (e nesse caso
também do analista).
22
Hanna Segal se opôs a este termo, mas aqui o utilizamos para seguir o raciocínio de Rosenfeld.
Ela alega que, mesmo naquela descrição, o narcisismo desse tipo é destrutivo e não libidinal, na
acepção mais tradicional da palavra, que é a Freudiana.
49
23
Freud, (1917, 1914); Rosenfeld, (1968, 1988), referindo-se ao fato de um paciente piorar depois
de ter feito progresso significativo na análise.
50
recolhidas24. O autor prossegue dizendo que “Parece ser dominada por uma parte
onipotente ou onisciente e extremamente implacável, que cria a ideia de que,
dentro do objeto delirante, há uma total ausência de sofrimento e também a
liberdade de o indivíduo entregar-se a qualquer atividade sádica. Toda a estrutura
está comprometida com autossuficiência narcisista e é estritamente dirigida contra
qualquer relação objetal.” (ROSENFELD, 1988, p. 146). Esta descrição remete ao
estado em que ficam as Bacantes na peça homônima de Eurípedes, ao estarem
sob o transe e assim dominadas por Baco. Nesse frenesi elas destroçam os
objetos que amam, negando qualquer dependência deles, num estado de
felicidade onipotente e indiferente. Podemos fazer um paralelo com os dias atuais:
a embriaguês alcoólica, aliada ou não ao uso de variadas drogas, tem como
consequência terrível acidentes automobilísticos com morte ou debilitações
graves, que nas estatísticas brasileiras nos colocam numericamente igualados ao
contingente de mortos em períodos de guerra.
24
Aqui Rosenfeld menciona uma comunicação pessoal de Meltzer que talvez esteja ligada a seu
estudo sobre os Claustros, descritos no item a respeito deles.
51
Rosenfeld notou que a análise de aspectos invejosos não deveria ser feita
de forma insistente, como pareceu importante para muitos Kleinianos durante
algum tempo. Ele argumenta que experiências de frustração levam,
inevitavelmente, à inveja e que muitos pacientes podem ter sido tratados de forma
depreciadora por pessoas de suas relações, o que pode ter aumentado muito sua
inveja. Se a interpretação da inveja tiver elementos através dos quais o paciente
possa se sentir muito inferiorizado e frustrado, ele não conseguirá melhora
alguma.
Steiner também aponta tal fato como um dos obstáculos a sair do refúgio, o
que será discutido adiante. Rosenfeld concluiu que a inveja é um dentre vários
fatores que podem levar a um impasse na análise e talvez não o pior. Ele alega a
possibilidade de que, quando o “paciente se sente aceito e sente que tem um
espaço para pensar e crescer, essa inveja diminui gradualmente” (ROSENFELD,
1988, p. 302).
Outro ponto importante para o manejo analítico dessas situações seria que:
“Quando é interpretada para o paciente a influência hipnótica e silenciosa da
figura destrutiva interna, fazendo-se passar por uma figura benevolente, este fica
pouco a pouco mais consciente do que está se passando dentro dele, e a
influência paralisadora sobre ele e o processo analítico diminui gradativamente”
(ROSENFELD, 1988, p. 303). Interpretar a destrutividade diretamente não
ajudaria, mas sim mostrar algo dentro do paciente que poderia paralisá-lo (e o faz
frequentemente). Diz também:
Por fim, o que acontece é que a força assassina aparece nos sonhos do
paciente. Pode-se ver que, uma vez exposta, essa força assassina é
dirigida principalmente contra o próprio paciente e fica muito mais fácil
lidar com o problema analiticamente. O paciente pode sentir mais
claramente com o que ele está assustado. Também fica mais óbvio que
ele quer ser protegido dessa força. Ao mesmo tempo, associações a
respeito de pensamentos e sentimentos agressivos que anteriormente
não eram claras podem agora ser entendidas. Em outras palavras, o
52
25
Optou-se por manter a grafia da época 1988.
53
E mais adiante:
26
Vide introdução.
27
Traduzido e revisado como Relações perversas nas organizações patológicas, em Refúgios
psíquicos, cit.
28
Mencionado no item sobre “Pathological organisations” do New Dictionary of Kleinian Thought.
54
29
Como toda questão humana, a proibição é relativa e não necessariamente imutável.
55
com ele. Esses conceitos, por terem sido muito trabalhados por Meltzer (2008),
serão examinados no capítulo dedicado ao seu trabalho.
30
“A personalidade psicótica e os problemas próprios da mesma obscureciam a personalidade não
psicótica e os problemas inerentes a esta” p. 55 e “não apenas o pensamento verbal sendo ele
mesmo um elo de ligação é atacado, mas os fatores que contribuem para a coesão do próprio
pensamento são igualmente atacados.” (BION, 1988).
56
31
Klein também usa o termo para falar de estados não integrados e fragmentários no bebê recém-
nato:“ Eu diria que ao ego primitivo falta coesão, em elevado grau, e a tendência para a
integração alterna com a tendência para a desintegração, a fragmentação em múltiplas
parcelas”, em Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In: KLEIN, M.; HEIMANN, P.;
ISAACS, S.; RIVIERE, J. (Orgs.). Os progressos da psicanálise, cit., p. 317.
58
organização patológica e sob seu domínio podem servir para coagir as áreas
mais neuróticas do ego.
Se algum grau de cisão normal puder ser mantido para se preservar alguns
objetos bons que possam ser reconhecíveis e fornecer proteção, ainda será
possível que a fragmentação se limite. Mas se a inveja (KLEIN, 1991) tiver sido
demasiada e tiver colocado em dúvida a bondade dos objetos, haverá poucos (ou
frágeis) objetos bons aos quais recorrer. A confusão e o horror predominarão.
Justamente nesses momentos uma organização patológica poderá ser acionada,
como forma de escapar ao caos e ao desespero, e sua onipotência será
confundida com proteção. O paciente pode se acalmar não por retornar ao
normal, mas porque nele se estabeleceu a organização. Ela assumiu a situação
caótica e trouxe uma espécie de calma, porém embasada numa grave distorção
da realidade interna e externa.
Habitar um refúgio pode dar a impressão de que se está num local onde
não há angústia. Mas não se trata exatamente disso. A rede de defesas forma
obviamente um apoio. Há algum equilíbrio, mas ele não é um equilíbrio saudável
e por isso a qualidade do bem estar que proporciona é espúria e não convence o
tempo todo. Por se tratar de uma posição (ou como se fosse), não se constitui
num sistema absolutamente fechado, e muitos pacientes procuram ajuda e têm
necessidade de obtê-la quase tão intensamente quanto têm necessidade de
permanecer no refúgio. Steiner, no entanto, concorda com as pesquisas de
O`Shaughnessy33 com pacientes com sistemas defensivos doentios e afirma:
32
Posição esquizoparanoide← → Posição depressiva, na acepção bioniana de equilíbrio dinâmico
entre elas.
33
Refere-se ao trabalho dessa autora: Um estudo clínico de uma organização defensiva. In:
SPILLIUS, Elizabeth Bott (Org.). Melanie Klein hoje: desenvolvimentos da teoria e da técnica. 1.
ed. Rio de Janeiro: Imago, 1991, grifos nossos.
60
34
Tal caso será discutido em outra parte do presente trabalho.
62
Essa região goza de certa independência, ficando até certo ponto livre da
influência de processos maturacionais do resto do eu e, por isso, Meltzer chamou-
a de Claustro. Nela, uma parte do self infantil permanece numa relação primitiva e
35
Aspecto também discutido mais adiante ao mencionar ideias de Grotstein.
36
Esta área poderia conter os estados que Tustin e Mitrani descrevem em que não há
simbolização e há fenômenos protomentais, por exemplo, pseudorrelações objetais adesivas.
64
37
A grade é um sistema de notação para que o analista possa situar em que nível de evolução e
utilização do pensamento estão ele e o paciente, a coluna 2 seriam elementos beta, concretos,
que precisam ser modificados pela função alfa para que sirvam como elementos para pensar.
65
On the one hand one can range the manifestations of infantile confusions
of both a geographic and zonal nature along with Money- Kyrle´s thesis
of developmental misconceptions. In contrast to this are the pathological
constructions which arises from what Bion calls “lies” or column 2 of the
grid, failure of alpha –function perhaps induced by what I have called
“story-telling” reversal of alpha-function with a debris( beta-elements-with
traces of ego and superego) from which bizarre objects and the
delusional system are shaped by the forces of minus LHK, and finally the
operation of omnipotent mechanisms (splitting process, omnipotent
control of objects and intrusive identification). (MELTZER, 2008, p. 61).
38
Segundo Zimerman, in Bion: da teoria à prática, uma leitura didática. Porto Alegre: Artmed Ed.,
2004. p. 103.
39
Aqui é pertinente lembrar-se do que Frances Tustin e Judith Mitrani definem como a aderência a
um objeto. Embora para Meltzer exista um interior do objeto, o fato de haver um deslizamento
para dentro do objeto parece sugerir uma possível aderência a este, sem noção da
complexidade do objeto, isto é por aderir aquilo que o objeto parece ser, dando a impressão de
se tratarem de fenômenos que têm alguma relação um com o outro, embora sejam diferentes.
66
Finalmente, outro claustro seria no reto, a parte final dos intestinos, em que
as sensações dominantes - e em consequência a dinâmica do mundo- seriam o
reter coisas boas e expulsar inimigos. Implica na crença de que existir se baseia
em lutar e/ou fugir, num clima que corrobora o tipo de mentalidade proposta por
Bion para o grupo de luta e de fuga. Livrar-se do que é ruim e preparar-se para
novo ataque é a regra. A vida estaria totalmente voltada para expulsar ou reter.
já aceitos na seita. Vê-se que Meltzer fez uma boa escolha ao usar tal palavra
para descrever o que observou.
parece ser a única possível, o que implica que seus habitantes receiem não
conseguir viver de outra forma, e possam acreditar que aquele modo de vida
mental seja o único possível.
Por ser uma entrada intrusiva, a perseguição pelo objeto invadido está
sempre em pauta, e as relações com esse objeto tem boa dose de ambivalência.
Não se trata de acolhimento ou continência verdadeira. Além disto, o objeto foi
deformado pelas projeções, pela atividade de pensamento mágico e contém
elementos beta, com traços de superego e de ego (BION, 1988, MELTZER,
2008). Assim, torna-se facilmente um perseguidor, contribuindo para a
claustrofobia. A identificação intrusiva também implica na existência de
voracidade e inveja, que são projetadas no objeto. Portanto, mesmo que o
claustro contenha elementos desejados, também contém partes hostis e/ou
destrutivas.
O desejo de ter uma vida mental livre e criativa existe, como nos refúgios,
mesmo que submisso, e aumenta a sensação de confinamento e claustrofobia, a
qual também pode ocorrer nos refúgios. Além disso, ficar aprisionado em
qualquer outro tipo de reduto é uma ameaça e uma atração permanente para a
personalidade com essa dotação (claustrofilia, isto é, a tendência e/ou afinidade
para entrar em claustros).
Indo mais além, observa-se que, nas situações graves de doença mental,
as sensações de estar junto a um objeto poderoso (e perseguidor, pois
desumanizado) são frequentes, por exemplo, nos chamados estados de pânico,
em que o objeto perseguidor fica localizado em algum órgão corporal, e a
situação psicológica é a de uma fobia a algo alojado nesse local. Veem-se, dessa
forma, confluências nos conceitos de refúgios e claustros entre as quais deve-se
ressaltar a importância central da relação de objeto onipotente e narcísica, que se
estabelece no âmago do ego e se torna duradoura.
Mesmo com defesas tão poderosas, a situação nos claustros não é boa. As
vicissitudes da vida põem em xeque as defesas que, frequentemente, irão
fracassar. Diante das experiências reais da vida, os claustros desempenham um
papel de convidar à retirada e não a alcançar algo na vida. Por isso, muitos
pacientes buscam ajuda, mas, mesmo assim, podem ser atraídos de volta. Essas
vicissitudes expressam e trazem os balanços entre as possibilidades de saída e
os retornos aos claustros.
Meltzer diz:
Em resumo, a experiência analítica com crianças e adultos sugere
fortemente a existência de uma ou outra parte infantil vivendo tanto em
identificação projetiva quanto facilmente provocada a entrar no claustro
de objetos internos, com muita frequência. Toda análise começa com
copioso material sobre esgotos, encontros eróticos ou felicidade
parasitária, tão cedo quanto a transferência preformada possa ser
dissipada, de modo que algum grau de intimidade possa ser permitido.
(Tradução livre).
In summary, psycho-analytical experience with children and adults
strongly suggests that the existence of one or another infantile part either
living in projective identification or easily provoked to enter the claustrum
of internal objects is fairly ubiquitous. Every analysis begins with copious
material referable to the sewer, the erotic encounter or parasitic bliss, as
soon as the preformed transference has been dispelled so that some
degree of intimacy can be allowed. (MELTZER, 2008, p. 134).
a entrar nos claustros desses objetos (portanto, que tenham criado objetos
internos assim). Propõe que essas fantasias são regularmente encontradas nos
pacientes em geral, e que a busca de projeções que aliviem por soluções
onipotentes, paralela e concomitante à necessidade de encontrar continência
verdadeira, está sempre presente na mente humana. Atesta-se com isso a
regularidade com que as fantasias de estar no interior de objetos internos
aparecem num processo analítico, e a importância de diferenciar e compreender
as várias nuances da continência e da identificação projetiva intrusiva.
73
Por mais que tivéssemos alcançado alguma sintonia, que poderia lembrar
um ritmo de segurança (TUSTIN, 1990), este parecia frequentemente se romper.
A sensação de desconforto que me ocorria com regularidade fazia com que eu
sentisse que, embora ondulações fossem naturais, havia outro fenômeno
paralelo. Sentia-me visitada por angústias: magoá-lo, “falhar”, não o entender,
como se isso fosse algo muito reprovável, quase um insulto.
Por outro lado, era óbvio: falhas existem, e precisam ser sentidas, pois
fazem parte do processo de análise (e de separação), e até o ritmo de segurança
tem seu “vaivém”. Se houver crescimento, a descontinuidade é sentida, tanto na
parte autista quanto nas partes neuróticas, que podem reaver suas projeções
(BION, 1988). Parecia-me que minha preocupação de não decepcionar, que só
aos poucos percebi ser contratransferencial, tinha raízes noutra situação. O
vislumbre de uma parte não autista, que desejava estabelecer um contato
onipotente comigo, para que auxiliasse a refazer/fazer outras defesas, precisava
ser cogitado. Talvez as questões dos refúgios surgissem por esse motivo. Eu
procurava uma forma de compreender melhor o que acontecia, de não atropelar,
constranger ou subestimar a necessidade de continência (MITRANI, 2007; BION,
1966), mas também me questionava: estaria fazendo um acordo perverso com ele
74
Outro ponto relevante era o fato de Mariano fazer muitas críticas à família e
a pessoas que não tinham paciência para ouvi-lo, ou não parecessem
empenhadas em fazê-lo. Também ficava muito tenso e se fechava quando se
decepcionava com sua performance. Como consequência, havia um sutil
retraimento que podia se manter por semanas, nas quais ele parecia não alcançar
ou não conseguir aceitar qualquer ajuda.
ponto de achar que gastos normais eram exagero (inclusive a análise, embora
tivesse pedido e obtido um preço especial). A mãe era descrita como muito rígida
e exigente, e rápida para aplicar castigos. Era trabalhadeira, pouco carinhosa,
batia nos filhos quando pequenos, sempre irritada com os conflitos entre eles. Do
pai pouco falava.
O fato de ele ter muitos planos, mas trabalhar pouco também sugeria a
fantasia daquele claustro. A privação, o pavor e o trauma de ter sofrido um
acidente também favorecem a busca de claustros e refúgios, pois sentimentos de
terror e de aniquilamento são muito mobilizados nestas experiências (STEINER
1997). Steiner também relata que a falta de um objeto realmente capaz de
continência, tanto no meio externo quanto no mundo interno, cooperam para o
estabelecimento do refúgio.
Assim, eu receava que, embora ele quisesse crescer, também poderia não
ser capaz de renunciar ao sistema fechado em que vivia: sonhava muito, mas
fazia pouco e se ressentia com qualquer dificuldade: queria ser entendido, falar
melhor, mas se houvesse alguma rejeição ou limitação por parte do outro, ele se
magoava e tudo se interrompia. Nestes momentos, era muito plausível a ideia de
Meltzer (2008): se ele perdesse o lugar naquele claustro tipo Head-Breast,
poderia se sentir expulso para outro claustro, como o reto, com lutas, perdas e
depreciação. O fato de que tivesse passado pela dura recuperação após seu
acidente fazia coro com essas fantasias e dificultava enxergar as coisas sob outro
ponto de vista.
Steiner (1997) também lembra que o paciente procura análise tanto por
desejar sair do refúgio, quanto para reaver a estabilidade deste. Penso que havia
em Mariano uma ambivalência entre sair e se manter no refúgio e/ou no claustro.
E dava-me conta de que o meu sentimento de “balanço das ondas” podia também
ligar-se a isso, a uma permanência naquela situação, sem que nunca fosse
possível sair. Mais adiante, ao abordar uma sessão em que falamos sobre uma
música (Travessia), as questões do emergir ou retornar ficam mais patentes.
77
Ele pareceu achar graça, falou que era difícil saber, e continuou elogiando
a liberdade. Diante disso, pensei que depois do acolhimento, segue-se a
necessidade de entender, e podem surgir aspectos mais estranhos, diferenças,
situações que provocam ciúme, se todos não pensarem igual, ou se alguém ficou
numa posição supostamente inferior. Por exemplo, fazer xixi tem algumas
funções, água tem outras... Depois de haver o real entendimento, podemos ficar
de verdade com alguém.
79
Outro aspecto do sonho era o fato de a criança ser olhada por um adulto.
Quais aspectos adultos poderiam estar de olho na criança? Os meus? Os dele?
Os pseudo-cuidadores de uma organização patológica? Quando Mariano dá um
sentido de liberdade ao ato de fazer xixi e diz que não há problema, parece
sinalizar algo.
Steiner (2011, p. 60) diz, em seu estudo sobre Schreber, que a onipotência
psicótica deste permitiu-lhe contar suas memórias sem constrangimento,
mostrando francamente sua doença. Assim: “The delusional system acted as a
psychic retreat and functioned as a hiding place that contact with reality would
shatter in a humiliating way.”, Traduzindo: o sistema delirante agia como um
refúgio psíquico e funcionava como um local escondido ou apartado do contato
com a realidade, que se ocorresse, iria despedaçá-lo de maneira humilhante.
que eram essas nuances e diferenças que Mariano tentava encontrar e aceitar,
mas também entrava em conflito, por sentir outras coisas, além disso. O conflito
podia distorcer a voz. Como falar com ele sobre tais coisas sem que ele se
sentisse humilhado ou excluído (STEINER, 2011)?
Se assim fosse, não haveria porque melhorar a fala, ela já seria boa por ser
uma descarga livre. Se soluções mágicas fossem importantes, ele não precisaria
de mim. Mas se ocorrem outros fenômenos, um acolhimento real, isso poderia
conduzir a outras etapas de trabalho.
Mariano contava comigo para “entregar” suas coisas, mas será que as
aceitaria de volta? Além disso, era importante ajudá-lo a pensar nas diferenças
entre as coisas e as pessoas não como uma agressão, nem como um
expulsar. Seria mesmo ruim ver a diferença entre água e xixi? Será que para
estar junto temos que pensar que tudo é igual? Que sempre continua e
também se mistura?...
Essas agruras fizeram com que fosse impossível para Schreber tolerar e
trabalhar a depressão. Em consequência, voltou à posição esquizoparanoide e,
subsequentemente, à organização patológica psicótica, que criou um refúgio
psíquico (STEINER, 2011). Por isso, Schreber pareceu melhorar e ficar estável.
Tal estabilidade era baseada em crenças onipotentes de ser especial e escolhido
por Deus, e superior aos seres humanos. Schreber não se sentia mais deprimido
nem perseguido, e o sistema cristalizou-se para o resto de sua vida, como se
pode ver em seu livro de memórias.
Meu paciente pareceu criar também uma crença em sua habilidade para
selecionar as pessoas e as situações de acordo com o que faziam em relação à
sua voz. Isso poderia ser algo razoável, mas acabou por se transformar numa
exigência excessiva e num critério que excluía e depreciava facilmente, e parecia
ficar, com o tempo, mais a serviço da organização patológica, do que colocá-lo
em contato com o mundo e com a realidade. Tornou-se um motivo para ele ver-se
justificado em diminuir as pessoas e, portanto, ter um tipo de superioridade em
relação a elas, embora isso fosse negado e racionalizado por ele, quando eu
tentava mostrar. Tal fato fazia também ressonância com o que Steiner (2011)
descreve sobre a exclusão do analista.
Mariano não era delirante, mas algumas de suas crenças, como a sobre a
seletividade, a liberdade, eram ao menos parcialmente sustentadas por fantasias
onipotentes, de modo que questioná-las era dificílimo. A manutenção dessas
crenças perpetua o refúgio e afasta da posição depressiva. Britton (2003) mostrou
que abandonar crenças deste tipo, é um processo que requer imenso luto. Em
alguém que já viveu uma grande perda – o acidente que o deixara acamado e
83
envolvera longa renuncia concreta –, forças poderiam ser postas em ação para
lidar com todo o sofrimento, as forças de uma área psicótica da personalidade ou
uma organização patológica. Naquele momento da análise tal organização pode
ter se sentido ameaçada, correndo risco de perder a hegemonia. Não viver mais
nada similar a um desmantelamento, ou um terror de ser destruído, um acidente,
um trauma enfim, pode se tornar uma obsessão nestes casos e, nesta luta para
fugir da dor, o desenvolvimento pode se estancar, e os refúgios se afirmarem.
Hanna Segal (1993) fala que a experiência de ser contido requer uma
tolerância ao fato de se precisar de um objeto que faça isso, quer dizer,
suportar que há um objeto do qual vem algo útil. Penso que conseguíamos, até
certo ponto, criar este objeto continente na relação e que Mariano, de uma forma
discreta, confiava nele e sabia que eu fazia o mesmo. Penso que mostrando suas
dificuldades e desconfianças ele dava oportunidade a que elas aparecessem e
fossem trabalhadas. E que havia nele uma área necessitada e carente que
confiava em mim para ajudá-lo a perceber e discriminar seus problemas. E que
acreditava que podíamos suportar aqueles percalços, isto é, confiava numa
continência real.
40
Comentada abaixo, na sequência do texto.
84
Tal clima leva a pensar no acordo perverso apontado por Steiner. Esse
implica em que uma parte da personalidade pode ter insight sobre o que está
ocorrendo, mas aceita a situação como se nada pudesse ser melhor
compreendido ou mudado.
85
Quando trouxe o sonho, ele parecia feliz e me disse que, para ele, aquilo
representava que eu iria ajudá-lo. Tendo em vista que entender as
pseudorrelações adesivas seria um passo para possibilitar a ampliação da
capacidade simbólica e a abertura para novas relações, achei que havia ali
elementos que indicavam a possibilidade de ele aceitar ajuda, mas
simultaneamente, de me colocar como um suporte para restabelecer uma
proteção do tipo do refúgio.
forma, como o bebê fica junto da mãe depois de nascer, saindo do poço da
barriga. Ele concordou, e chorou um pouco. Disse que sua mãe era muito brava,
e que os anos foram acentuando tal modo de ser. Então, eu falei que talvez fosse
possível descobrir várias outras situações com as quais se pode ficar junto e
como isso poderia ser. Se ficarmos junto de alguém bravo e também nos
enraivecemos, acabamos ficando parecidos com aquilo de que queríamos nos
diferenciar... Assim, pensar nas nossas atitudes: se são iguais às das quais não
gostamos, até que ponto são acolhedoras, era importante. E nisto, nós queríamos
a mesma coisa: um acolhimento verdadeiro, mais do que só sensação
confortável, pois ser acolhido mesmo vai além das sensações agradáveis.
Rosenfeld (1988, p. 221) diz que estados afetivos podem atingir um feto,
por um fenômeno semelhante a um transbordamento. Apoia-se nas palavras de
Tustin, de que “o transbordamento” é um precursor da projeção, e que serve para,
juntamente com a identidade, manter uma ilusão da unidade primária entre a mãe
e o bebê.
41
Lembremos Fellini com as mães e as mulheres de seus filmes, e a mitologia com Demeter.
88
Num deles, ele pilotava um avião e voava entre prédios. Tinha acabado de
sair de um presídio e podia voltar assim que quisesse. Gostava do voo que estava
fazendo com habilidade, pois não se chocava com nenhum edifício. E se sentia
bem e tranquilo, a sensação era de prazer, ele poderia voltar ao presídio assim
que quisesse.
Comentei que voar, pilotar, pareciam coisas boas, mas voar entre prédios
parecia difícil, até perigoso. Ele concordou, mas descreveu a satisfação que
sentia durante o sonho. Ele sentia bem por poder voltar ao... presídio! ? Era isso
mesmo? Ele disse que era sim, aparentemente sem notar minha surpresa. E
acrescentou que era um lugar onde tinha segurança. Falei sem perceber, como
pensando em voz alta que lá podiam estar pessoas seguramente presas! Ele
disse que talvez, mas voltou a falar da sensação de voar, de estar livre, de poder
manobrar, etc. Continuei com a sensação de que havia algo contraditório, vias
89
Falei com ele sobre uma insistência em ser acolhido fisicamente e que
admirassem sua voz. Ele parecia diminuir a importância de que podia se fazer
entender, e tinha capacidade para transmitir ideias. Mesmo que não
gostassem da sonoridade de sua voz, as ideias e o conteúdo poderiam
transmitir muito além do som. E isso era uma das coisas importantes que eu
pensava que ele esperava da análise: que ela o ajudasse a se libertar
daqueles receios. Que seus sentimentos ficassem mais livres e que ele
encontrasse outras formas de segurança.
90
Talvez ele também me sentisse como que tirando dele suas formas
peculiares de se comunicar e mostrando outras, como a raiva, a vontade de não
ter ninguém para ter ideia diferente sobre as quais precisaria conversar e poderia
ser contrariado. Continuar ligado às formas antigas de segurança, e nalguns
momentos parecer dar tanto valor ao prazer sensual por si só, sugeriam uma
segurança que aprisionava.
Era possível que a segurança de voar entre prédios tivesse relação com a
expectativa de não haver interação, ou de poder voltar atrás se a interação não
seguisse o seu desejo.
Steiner alerta para o fato de que vários motivos operam juntos em graus
diferentes, e ao mesmo tempo, para estabelecer diferentes formas de
identificações projetivas, mas que pode ser útil perceber qual deles, num
determinado momento, é proeminente. Isto ajuda a entender o paciente e se este
último puder tolerar o que foi mostrado pelo analista, também será beneficiado.
Lembramos que Mariano poderia estar aumentando seus motivos para se sentir
ressentido, e não sair do presídio: ser uma pessoa ofendida e machucada, que
poderia reivindicar ressarcimento inesgotavelmente.
Algum tempo depois, ele conta um novo sonho em que procurava alguém
numa caverna. Era possível ouvir a pessoa lá dentro e ele sabia que o outro
também podia ouvi-lo. Mas tinha a impressão de que a pessoa entrava cada vez
mais na caverna, e quando ele chamava, parecia se esconder mais. Pouco tempo
depois, sonhou que, em sua casa, havia uma estante bem grande, com muitas
prateleiras cheias de livros. Numa das partes, havia uma espécie de divisão ou
armário quadrado e uma criança estava lá e parecia bem acomodada.
94
Ressaltei, também, que ficávamos ali tentando fazê-lo ter mais contato e
tolerar seus sentimentos de medo, de insegurança, coisas não só agradáveis, não
só sensuais. Com isso, as falas e quem sabe suas atitudes poderiam ficar mais
consistentes. Traduções da experiência de uma pessoa que luta pra viver, como
na música “Hoje eu tenho que chorar minha casa não é minha”, que é experiência
de dor. Os versos que dizem “já não sonho, hoje faço com meu braço meu viver”
trazem a ideia de deixar o sonho ilusão, o sonho todo poderoso e mágico (casa-
voz maravilhosas, garotas perfeitas que não dão trabalho, só lucro), e aceitar a
95
Ao mesmo tempo em que Mariano queria falar com mais facilidade, ter
sucesso profissional, viajar, coisas que implicavam capacidades afetivas e
comunicativas, começou a parecer cansado e enfadado, às vezes discretamente,
às vezes de modo evidente. Em algumas ocasiões, deixou claro - e já falava de
forma mais compreensível e organizada - que sentia que melhorar a fala era todo
o trabalho que ele deveria fazer na análise e que, como pessoa, ele estava
bem. Fazia racionalizações para justificar as críticas às pessoas e às
exigências para com elas.
É possível cogitar que aspectos invejosos faziam com que, mesmo tendo
melhorado, sentisse, por exemplo, que a análise era um atraso de vida, e que
havia a arteterapia e outras coisas melhores. Frequentemente, ao falar de seus
filhos, exibia a ideia de que devia ser duro com eles, e que eu errava ao falar da
liberdade deles, de serem merecedores de compreensão, etc. Penso que se
98
A ajuda que eu pudera lhe oferecer com os aspectos autistas parece ter
sofrido uma distorção, e poder-se-ia lembrar do efeito do que Bion (1988) e
Meltzer (2008) comentam ser a reversão de perspectiva. Tal situação implica na
atitude de reverter o que o analista falou para concordar especificamente com
premissas do paciente. Desta forma, o significado das interpretações do analista
fica perdido, mesmo que o paciente tenha concordado com as interpretações.
Bion ligou esse fenômeno ao funcionamento da parte psicótica da personalidade.
42
Improvement and the embarrassment of tenderness, in Seeing and being seen: emerging from a
psychic retreat, Steiner, 2011.
99
O sintoma da dificuldade para falar era usado por ele para “selecionar” as
pessoas. Os que lidavam com ele com evidente diligência e tolerância com sua
voz eram vistos como adequados e aceitáveis. Mas quando, a seu ver, falhavam
nisso, eram descartados, mesmo que não o tivessem magoado. Steiner, ao falar
da dificuldade de sair de um refúgio (2011), trouxe uma contribuição de Elizabeth
Bott Spillius sobre um tipo de atitude invejosa, chamada inveja impenitente.
Spillius diz:
A questão dos claustros pode ser vislumbrada pelo material que vinha se
avolumando. As críticas, e o querer deixar a análise, significavam que ele estava
na análise perdendo tempo, preso num tratamento velho, ruim... Se nosso
paciente se sentia no claustro do reto, eu e ele teríamos que lutar. Um de nós
teria que ser expulso, pois ameaçava o outro. Talvez se possa pensar nos sonhos
com fezes como uma alusão a isso. Em um desses sonhos, ele não deixava que
lhe ajudassem a recolher os dejetos, não aceitando a ajuda da mãe; no outro, a
esposa estava suja e não notava.
Noutro sonho, era preciso atravessar uma ponte, e do outro lado alguém
esperava ajuda, mas o paciente não queria fazer isso. Deve-se lembrar de que o
conteúdo manifesto de um sonho é apenas parte dele, mas podemos ver
elementos pertinentes às situações, principalmente ao estudar o caso
retrospectivamente. O paciente realmente foi assumindo uma atitude paulatina de
crítica à análise, e que o conduziu a interrompê-la. Nesse caso, o sonho seria
premonitório, mas na época preferi não pensar assim.
102
Esse autor crê que o refúgio é composto por uma tela beta, isto é,
elementos beta que não foram capazes de ser transformados em alfa, sendo
degradados e rejeitados, podendo formar também objetos bizarros. Talvez isto
explicasse as distorções sonoras na voz de Mariano, e com certeza é uma boa
alternativa para entender as dificuldades de valorar as ligações reais consigo
mesmo e com outros. Além disto, ele comenta que tais pacientes tem imensa
dificuldade de tolerar a posição depressiva. Em suas palavras é por isso que
tantos pacientes psicóticos discutidos por Rosenfeld e Bion experimentavam
reações terapêuticas negativas quando se aproximavam da posição depressiva.
Nesses pacientes, o processo secundário perdeu seu domínio sobre o primário e
esse último se torna patologicamente autônomo, constituindo o refúgio. Eles
teriam perdido a esperança em si mesmos e feito “um pacto com o demônio, seu
instinto de morte”, evitando progresso e mantendo-se no refúgio.
Mas, ainda podemos “olhar” este sonho usando ideias de Grotstein (2003)
baseadas em Bion e Matte-Blanco. Para tanto trazemos a visão binocular, que
tenta enxergar por várias perspectivas, e não toma nenhum vértice como
absoluto. Há duas margens, há uma ponte, há a possibilidade de que uma
travessia ocorra, em algum nível, e em algum lugar. Não importa que durante o
sonho isto pareça não ocorrer.
Grotstein (2003) também usa a ideia de dupla via para postular que a
mente pode tornar-se temporariamente dissociada de maneira a alcançar auto-
reflexão e intersubjetividade. No modo reflexivo, a mente pode se subdividir e
contemplar o que está sentindo, e também considerar o que a intersubjetividade
permite, isto é, levar em conta outro ponto de vista e empatizar com ele. Uma
105
mente saudável pode usar tais recursos, mas na doença, o paciente fica como
que preso na armadilha de ser obrigado a ver e viver de uma única forma, como
que usando uma visão ciclópica, que só percebe uma única trilha. Em outras
palavras: não existem alternativas. O autor nos leva a pensar que um paciente
ainda que podendo ter alguma percepção de novas vias, isto é uma
capacidade para perceber as questões da vida como tendo estereoscopia, ou
seja, de modo tridimensional, ainda pode sentir-se preso em uma via. Pode,
portanto, não usar a auto-reflexão por ser ameaçado por seus objetos
onipotentes ou seduzido por esses, e ainda por ter inveja da capacidade do
analista de usar a reflexão e a empatia.
O psiquismo funciona pela interação dessas duas lógicas, por isto Grotstein
(2003) trabalha com o conceito de bi-lógica, onde essas estruturas diferentes
estão juntas, e combinam-se numa estrutura binária oposicional. Existiria um
continuum entre consciente e inconsciente, e em cada situação psíquica, há uma
interação dessas lógicas, a da simetria e a da assimetria. O autor diz:
43
Ignacio Matte-Blanco era um Psicanalista chileno, falecido há poucos anos, com vários trabalhos
teórico/clínicos importantes.
106
O barco
Meu coração, não aguenta
Tanta tormenta, alegria
Meu coração não contenta
O dia, o marco, meu coração
O porto, não!
Navegar é preciso,
Viver não é preciso (Caetano Veloso)
A figurabilidade pode ser algo que limita e que pode saturar ou dar aspecto
excessivamente concreto a várias questões. Observamos, no entanto, que figurar
e representar coisas num espaço é parte importante do aparato mental, tão
importante que, apenas para citar um exemplo, sustenta manifestações artísticas
desde os primórdios da humanidade. A capacidade simbólica é de extrema
importância para a saúde mental e para o desenvolvimento do pensamento e,
portanto, se as representações forem usadas de forma realmente simbólica e não
concreta, a figurabilidade não será algo restritivo. Segundo Segal (1993, p. 68-
69), a verdadeira simbolização faz uso de elementos alfa, abertos a várias
realizações, que se prestam à generalização, à abstração e à diferenciação. Ela
diz, seguindo Bion, que quando há uma identificação projetiva normal, há um
intercâmbio benigno entre coisa e representação, mas que se o continente tornar-
se completamente identificado com a parte projetada ele desaparecerá e obstruirá
a capacidade simbólica.
108
não puderam impedir outros processos e outras concepções sobre arte, muitos
radicalmente diferentes do modelo e das regras. Isso nos lembra de que símbolos
mantêm a abertura à mudança e à transformação, e que relembrando o caso de
Mariano, a possibilidade latente de crescimento poderá ser mantida, e talvez ser
retomada noutro momento de sua vida.
Penso que Meltzer, Rosenfeld e Steiner não têm seu valor diminuído por
arriscarem-se a dar nome a situações mentais e mesmo representá-las com
alguma figurabilidade, coisa que quem os estuda poderá perceber não ter a
pretensão de serem verdades absolutas ou obstruírem o que possa vir a ser
desenvolvido com, além, ou à revelia de seus conceitos. A utilidade de nomes e
símbolos decorre, a meu ver, do enriquecimento e de oferecerem alguma
seletividade à apreensão de coisas do mundo. Ainda que localize e circunscreva,
permite a individualização e a possibilidade de reconhecer cada experiência,
processo pelo qual a lógica aristotélica pode ter lugar, mesmo que ao lado da
lógica simétrica. Como disse Aristóteles, o indivíduo, ainda que contido no todo, é
que é o objeto que faz o cuidado e a cura (quando possível) terem sentido.
Meltzer fala de uma região no espaço geográfico interno que ele chama de
nowhere, onde ele pensa predominar o funcionamento psicótico. Talvez esta área
possa ser pensada em conjunto com as aberrações assimbólicas do
desenvolvimento, propostas por Mitrani. Pois para aquele autor, o nascimento de
um bebê pode implicar em perder capacidades e aspectos (talvez funções)
mentais, ou pré-mentais, que ele tinha no útero. Mitrani também aceita esta
possibilidade, de modo que as deficiências da continência materna poderiam,
junto à perda do ambiente uterino, envolver experiências insuportáveis, ou quase.
No útero, alimentação, oxigenação e temperatura são automaticamente mantidas
110
Por isso, além das fragilidades descritas por Tustin e Mitrani, que implicam
na impossibilidade de tolerar separação física da mãe, ainda teríamos, segundo
Meltzer, outras descontinuidades e perdas. Diante destas perdas e da dificuldade
de estabelecer novas maneiras de viver, o desenvolvimento de formas autistas
poderia ser propiciado e, também, o de organizações patológicas. Na ausência de
um bom continente para nutrir psiquicamente o bebê e assim fazer a vida seguir
seu caminho e seu sentido, as capacidades simbólicas e de pensamento podem
ser prejudicadas.
A reiteração de privações pode também levar a isso, uma vez que repetir
obsessivamente atitudes ou formas autistas, idiossincrásicas (TUSTIN, 1990), que
dão suporte ignorando a realidade, pode provocar um afastamento da relação real
com objetos, que, num âmbito mais amplo, pode ter efeitos perversos e, no
âmbito do desenvolvimento do sujeito, possivelmente o tem. As pseudorrelações
podem, justamente por sua precariedade, dar lugar a distorções e efeitos
perversos nas relações afetivas, mesmo que não tenham essa intenção, nem
sejam originadas disso. Tal me parece o caso de Mariano, mas creio que ele
também se alinhe ao relatado nas considerações sobre organizações patológicas.
Outra questão seria o fato de que, após algum progresso do self como um
todo, defesas autistas possam vir a ser usadas de forma perversa por uma parte
do ego mais evoluída, capaz de perceber e de ter insight, mas ligada e
dependente de refúgios psíquicos (MITRANI, 2007, p. 141-146). E Bion (1988)
também expôs o quanto áreas neuróticas da personalidade podem fazer mal uso
de áreas psicóticas, e vice-versa.
Isso lembra também a equação simbólica pois esta iguala coisas e suprime
diferenciações. Portanto até alguns processos simbólicos primitivos ou psicóticos
podem servir de apoio à pseudorrelações objetais, pois se houver uma
equação simbólica que faça uma relação afetiva ser igual ao estar aderido, ela
fomentará o mecanismo autista, mesmo que seja diferente dele. Essas
cogitações requerem mais estudos, mas foram desencadeadas no processo de
pesquisa e são consequentes a ele. Por isso, são mencionadas, além de se
113
44
Mitrani cita a descrição de Kristeva da experiência de ser rejeitado, que faria com que uma única
qualidade de um objeto fosse retida pelo sujeito; a deste sujeito estar atado ou separado do
objeto, isto é ou se está colado ou expulso, nada além.
114
com a experiência de ser nulo, e de que aquilo que tinha a transmitir não tinha
importância. Tudo isso pode ter efeitos perversos.
Tal experiência de ser deixado e não encontrar eco para o qual ou para
quem tentávamos nos endereçar, e sentir-se anulado, não é difícil de ser
reconhecida e, a meu ver, depois de todo este percurso, não está exatamente
ligada à perseguição. Pode estar ligada a algo primitivo, uma dúvida e, às vezes,
uma estranha sensação de não ter existência ou importância para o objeto e,
portanto, para nós e para o mundo. As consequências disso podem ser coisas
estranhas e bizarras, num nowhere, mas provindos de outra vivência fora das
situações esquizoparanoides e depressivas.
Anne Alvarez fala da função da mãe de chamar a criança para si, dar
importância a ela, requisitá-la. Ela atribui à mãe a reclamação, a convocação de
seu bebê para a vida e para o encontro com alguém vivo. Esta possibilidade e os
sentimentos de que isto era fundamental com Mariano, e que permanecia
importante apesar da presença do refúgio, existindo em paralelo com este,
permaneceram comigo durante todo o trabalho.
Uma metáfora para tal objeto obstrutivo pode ser percebida nos versos de
Os Argonautas, no coração que não aguenta tanta tormenta, e não se contenta
com a alegria. E na menção a algo que foi um marco e que parece fazer com que
o coração ao se aproximar do porto diga Não! Há uma ideia de que os
sentimentos são insuportáveis, e o estribilho convida a não viver, apenas
navegar, sugerindo as ondulações, as formas autistas e as pseudorrelações
adesivas em que algo é feito de forma automática para evitar o contato com
coisas vivas e humanizadas.
117
E para pensar no inconsciente, com sua lógica simétrica em que tudo pode
ser igualado e valer à pena,e ainda nas vicissitudes e riquezas de nosso mundo
interno e na mão que o “Infinito Geômetra” nos oferece e dá a tudo o que existe,
trago um trecho de Fernando Pessoa:
REFERÊNCIAS
______; TAMBURRINO, G.; RIBEIRO, M. Bion em nove lições. São Paulo: Ed.
Escuta, 2011.
______. Inveja e gratidão e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991.
______. Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In: KLEIN, M.; HEIMANN,
P.; ISAACS, S.; RIVIERE, J. (Orgs.). Os progressos da psicanálise. Rio de
Janeiro: Zahar, 1982.
______; RIVIERE, J. Amor ódio e reparação. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1975.
______; MILTON, J.; GARVEY, P.; COUVE, C.; STEINER, D. The new dictionary
of kleinian thought. London; New York: Routledge, 2011.
STEINER, J. Seeing and being seen: emerging from a psychic retreat. London;
New York: Routledge, Taylor and Frances Group, 2011.
ANEXOS