Psicologia Tentativas de Suicidio
Psicologia Tentativas de Suicidio
Psicologia Tentativas de Suicidio
SÃO PAULO
2000
ELZA MARIA DO SOCORRO DUTRA
São Paulo
2000
COMPREENSÃO DE TENTATIVAS DE SUICÍDIO DE JOVENS SOB O
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
esquecidas.
AGRADECIMENTOS
Ao muito estimado Prof. Dr. José Tolentino Rosa, meu orientador que, desde
o início deste trabalho e ao longo dele, sempre expressou uma acolhida generosa,
técnica para a consecução deste trabalho e aos meus colegas de convênio, pela
vezes trilhado de forma penosa, porém com a alegria de nos sabermos juntos na
amizade e companheirismo.
À minha filha Maria Luisa que soube, dentro da sua intensa vivência de
adolescente e com muita sabedoria, respeitar e aceitar os limites que esta tese impôs
os meus projetos.
Aos meus clientes e jovens desta pesquisa que um dia tentaram não viver e
Maiakowski
SUMÁRIO
RESUMO ....................................................................................................................ix
ABSTRACT ................................................................................................................x
RÉSUMÉ ....................................................................................................................xi
APRESENTAÇÃO ....................................................................................................xii
ix
ABSTRACT
The objective of the present study was to understand the suicidal attempts of six
adolescents, between 15 and 20 years old, residents in a capital city in the Northeast
of Brazil, using a theoretical expansion of the Person-Centered Approach, based on
the construct of "self", from Carl Rogers' Client-Centered Therapy, combined with
concepts of Martin Heidegger's ontology. The analysis of the experience of these
individuals was founded on their own accounts, which were initially given in the
form of statements. The apprehended meanings were interpreted and commented
under the phenomenological and existential perspective, inspired by the theoretical
basis of the study and by the inter-subjective experience of the investigator, as an
active participant of the respondent-researcher relationship. It was concluded that the
experience of quasi-death is seen as a consequence of being-in-the-world in an
unauthentic manner, the self considered as an expression of this way of being.
Anxiety, self alienation and being toward death are present in the experiences of the
teenagers, uncovering the physical, cultural, social and economic world in which the
being-here finds itself thrown into its own facts of life. The dialogue between
Rogers' and Heidegger's ideas was important in order to broaden the
phenomenological understanding of the quasi-death experience of the participants.
x
RÉSUMÉ
xi
APRESENTAÇÃO
eventos científicos; e até mesmo em entrevistas na mídia. Além de tudo, esse tema
característica do ato suicida, uma vez que está fundado, quase sempre, numa ação de
esse estudo. Primeiro, em relação ao suicídio, pois jamais me interessaria por esse
tema antes, da forma como o faço agora. Na clínica, tive poucos contatos com
e sim como uma possibilidade que acontecia muito distante da nossa realidade
próxima, como se não fosse comum o suficiente para que nos preocupássemos com
isso. Mais tarde, quando a violência passou a ser reconhecida como a "figura" que
xii
norteia este tema, mais uma vez quis compreender, a partir da minha experiência, se
haveria uma vinculação da violência com a minha história. Teria eu uma história de
vida em que a violência marcava a sua presença? Imaginava que não. Mas sabia, sem
que houvesse uma cognição acerca desse "saber", que algo me unia àquele estudo
sobre o qual me debruçava agora. Sabia que essa ligação era de uma natureza vivida,
forte e que me toma os sentidos, me coloca junto e igual a todos os casos dos quais
me aproximo nesse estudo, sejam eles jovens que tentam morrer ou sejam aqueles
jovens internos na FEBEM, que se rebelam de uma forma brutal, lutando por
liberdade de existir de maneira autônoma; de não poder sentir o que se sente; de não
poder falar o que se pode e precisa falar; enfim, de não poder ser o que se é. Esta é a
mais sutil forma de violência, que pode culminar na dose excessiva de medicamentos
pode ser a vivência dos adolescentes em alguns momentos da sua vida, tão marcada
pelas alternâncias e ambivalências no seu viver, próprios dessa etapa de vida. Após
juventude e que ainda hoje, numa outra etapa de vida, é tão presente que consegue
numa canoa, ou num barco, semelhante àqueles dos esportes radicais, que inicia o
seu trajeto numa parte tranqüila e bela do rio para, posteriormente, atravessar
13
cachoeiras caudalosas, correntezas e obstáculos no meio do caminho, jornada essa
que exige que me segure bem nas bordas do barco, para não correr o risco de cair na
poder chegar em algum ponto, há, também, a visão bonita e diversificada do que
se encontra fora do rio, nas suas margens, nas coisas pelas quais vamos passando.
Assim me sinto.
dentro de mim, toda a violência sentida e vivenciada, que sempre esteve lá, mas que
experiência; era uma coisa sentida, mas ainda não dita. No entanto, como diz
que ainda vive em mim. E explica a sensibilidade, a mobilização com que me vejo
abraçando a causa dos jovens. Descobri que esta também é uma causa minha. Tento
adolescente a angústia que permeia toda essa fase de transição. Penso que a
próprio corpo, as mudanças que surgem e que colocam o jovem diante de um novo
14
esquema corporal, diante da exigência e necessidade de construir uma outra
então. Conviver com a voz que se modifica, com algo sobre o qual ele não tem
diante do mundo diferente, o que é lembrado todo o tempo pelas pessoas do seu
desse momento também se faz presente nos pais e na sociedade em que o jovem
vive. Diria que é a "época da contradição": dele e dos outros, pois nessa fase, em que
esse jovem reformula os seus valores, busca identificações, separa-se dos pais para
simbólico, principalmente, que ao chegar "fora", ele não encontra outras referências
que posssam ocupar aqueles espaços "perdidos", ou que os ocupam de forma nefasta
ou destrutiva.
Assim, posso dizer que este estudo foi inspirado pelos jovens que se mataram,
por aqueles que tentaram se matar e pela angústia do adolescente que sempre se faz
maior inspiração foi mesmo aquela que só veio se revelar nesse momento: a minha
15
CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO
possível ver as mortes por suicídio como uma questão também de saúde pública, por
possível considerar as taxas bastante altas. Em algumas regiões, como se pode ver
nos estudos de Andrade (1979), Cassorla (1984; 1985), Teixeira (1997) entre outros,
16
realizados no Brasil, é a constatação de que a tentativa de suicídio é mais comum
entre os jovens com menos de 27 anos e, com raras exceções, as mulheres são
suicídio geralmente outras se seguirão, podendo uma delas ser fatal. Em razão dessas
buscado uma compreensão mais profunda dos aspectos psíquicos que possam ter
educação.
que a tentativa de suicídio pode ser considerada como um suicídio que fracassou.
ser verificada. A propósito disso, retomo mais uma vez este autor, ao colocar que ,
17
A diversidade de resultados e opiniões científicas a respeito da intenção da
levar à morte? Pensamos que a tentativa de suicídio é a principal via a nos conduzir
para essas questões, já que aquele que viveu esse momento é quem poderá atribuir o
seu significado a este ato. O que importa deixar claro, nesse momento, diz respeito
equivale ao adotado neste estudo, uma vez que a tentativa de suicídio é considerada
como todo ato em que o indivíduo causa alguma lesão a si mesmo, qualquer que
tenha sido a sua intenção e conhecimento do motivo que o levou a isto. Portanto nos
SUICÍDIO.
contribuir para que se tenha uma noção mais concreta e realista da existência desse
1
Usar a expressão "autópsia" psicológica leva a pensar o quanto a questão da intenção da morte é de
fato negligenciada em vida, talvez pelo fato de que não se possa " ver" e nem "admitir" a possibilidade
da morte própria, e ver a do outro nos colocaria em contato com nossa própria angústia da finitude.
Autópsia remete a encontrar a morte "do" e no "outro", somente depois dele próprio morto e
interditado em seu sentido e linguagem. Autópsia é falar do outro pelo outro "em si".
18
fenômeno não só no Brasil, mas em todo o mundo, além de situar o nosso objeto de
estudo, principalmente nesse momento inicial, em relação não só aos aspectos sócio-
suicídio. De acordo com alguns autores (Andrade, 1979; Barros, 1991; Cassorla,
tenta o suicídio não são as mesmas daqueles que o cometem. Esses autores
homens, sendo os jovens com menos de 30 anos os mais suscetíveis a esse ato; e, o
que é mais alarmante: estima-se que o número de tentativas de suicídio é bem maior
do que o de suicídios exitosos. Segundo Cassorla (1985; 1987; 1991), para cada
suicídio consumado existiriam de oito a dez vezes mais o número de tentativas. Entre
a freqüência maior das tentativas de suicídio ocorriam entre mulheres jovens, com
São Paulo, também constataram uma freqüência maior entre as mulheres, embora
19
adolescentes de 10 a 19 anos. Esses autores fazem referências a estudos realizados na
freqüentes entre pacientes do sexo feminino, 76,8%, e com idade abaixo dos 24 anos
(68,8%); entre estas, 60,6% tinham entre 15 e 24 anos. O método também confirma
e incêndio nas vestes. Miranda e Queiroz (1991), viram que as tentativas de suicídio
destas aconteceram quando eles tinha entre 15 e 19 anos (as mulheres) e antes dos 15
2
Elza Maria do S. Dutra. Ideação e tentativa de suicídio entre estudantes de Psicologia.. Relatório de
Pesquisa apresentado à PPPg (Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-graduação), UFRN, Natal, 1998.
20
verificou que 4,9% dos alunos haviam cometido tentativa de suicídio e, dentre estes,
que os adolescentes que tentaram suicídio mais de uma vez tinham como origem
motivos, as pessoas relataram a ocorrência de uma briga com pessoa próxima no mês
sendo as mulheres, 62,9%, as que mais cometeram este ato. A maioria das pessoas
3
KOTILA, L. e LONNQUIST, J. Adolescents who make suicide attempts repeatedly. Acta Psiq.
Scand., 76: 386-393, 1987.
4
Elza Maria do S. Dutra. Características epidemiológicas das tentativas de suicídio no RN.. Relatório
de Pesquisa apresentado à PPPg (Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação), UFRN, Natal, 1999.
21
que tentaram suicídio reside na capital (70,9%), têm entre 15 e 30 anos (64,2%) e é
mais freqüente.
mais freqüente do que pensa a maioria das pessoas, não só nos países chamados de
(1952), ao afirmar que a única questão realmente filosófica diz respeito ao suicídio,
já que esse ato coloca em evidência a vida, se vale a pena ou não ser vivida.
1.2 Justificativa
dessa natureza pode ser ignorado, negado ou encoberto pelas pessoas que
fato torna este ato ainda mais incompreensível, considerando-se a sociedade em que
vivemos, na qual ainda persiste o mito da "juventude feliz", reforçado por valores
vida deste final de século. São esses valores os mesmos que poderão constituir-se em
objetivos que poderão aprisionar aquele jovem que se perceba excluído de tal
22
conteúdos de ordem afetiva, moral e religiosa em todos aqueles que, de alguma
podem favorecer este ato? Como se constitui a subjetividade desse jovem que tentou
o suicídio, qual a sua forma de estar-no-mundo, como ele se percebe nas suas
jovem que deseja eliminar a sua vida, como é o seu estar-no-mundo dessa forma
angustiada que o leva a não querer viver? Foram questões como estas que me
fizeram desejar desenvolver esse estudo, numa tentativa para compreender com mais
Norte, cujos resultados podem ser conhecidos através de algumas pesquisas (Dutra,
agora, ficou evidente uma realidade até então desconhecida no nosso estado: em onze
anos, de 1985 a 1996, houve 567 ocorrências de suicídio, sendo 26,8% (152) delas,
entre jovens de 10 a 24 anos, passando de três ocorrências em 1985 para vinte e nove
23
regiões diversas do Brasil, uma tendência de aumento de tentativas de suicídio entre
Não temos dúvidas de que somente esses números já seriam suficientes para
por se saber que o número de mortes devidas às causas externas, entre elas o suicídio,
ressaltar é a revelação contida nos estudos sobre suicídio os quais mostram que o ato
fatal geralmente foi precedido por uma ou mais tentativas de suicídio; este dado
subjetivas de quem as viveu, o que, sem dúvida, impede uma generalização desse
conhecimento, mas, por outro lado, permitirá uma melhor compreensão da dinâmica
só o campo do saber psicológico poderá ser acrescido por tais conhecimentos, bem
24
saúde e educação; pois sabe-se que esta é uma das perspectivas que se configuram
como das mais pertinentes quando se aborda a saúde mental, ou seja , o nível de
não querer viver, será possível empreender reflexões mais embasadas cientificamente
escolas, unidades básicas da rede pública de saúde, junto aos trabalhadores da área de
questões problematizadas.
profissional nem sempre recebe uma formação adequada para lidar com a morte,
Alguns estudos comprovam esta afirmação (Almeida, 1996; Dutra, 1999). Nestes,
observou-se que a maioria dos psicólogos que atuam na rede pública de saúde não se
sentem e nem se percebem habilitados para lidar com pacientes suicidas. Portanto,
profissional da área de saúde, visando uma formação mais adequada e que atenda às
25
1.3. Objetivos
Aliada aos argumentos expostos anteriormente, situados que estão muito mais
no âmbito do ensino e pesquisa, está a nossa prática clínica, que vem se norteando,
Centrada na Pessoa, o ser humano é considerado sob uma ótica positiva da natureza
sofrimento tal que os tornam desesperançados com a vida e assim tentam eliminá-la?
conhecimento das idéias de Heidegger na sua ontologia, o qual representou uma luz
5
Para Rogers (1975, p. 159), " todo organismo é movido por uma tendência inerente para
desenvolver todas as suas potencialidades e para desenvolvê-las de maneira a favorecer sua
conservação e seu nriquecimento". Esta noção, a tendência atualizante, corresponde ao postulado
principal em que se apóia a Terapia Centrada no Cliente.
26
Portanto, interessa-nos interrogar para conhecer a experiência daquele jovem
ato autodestrutivo. Podemos definir o nosso objetivo, neste trabalho, como uma
tentaram o suicídio, almejando obter uma compreensão dos significados que eles
1.4. Os questionamentos
levou-nos a buscar, na prática, uma maior atenção, ou, melhor dizendo, ensejou uma
postura mais atenta aos problemas teóricos, filosóficos e metodológicos que surgiram
enriquecida com esse tipo de demanda, propiciando, desse modo, uma importante
6
Elza M. S. Dutra: Intervenção de Crise nas Tentativas de Suicídio. Relatório de Projeto de
Extensão, apresentado à PROEX (Pró-Reitoria de Extensão), UFRN, 1998.
27
percebemos, com clareza, que algumas questões emergiam nesse processo de
práticos/vivenciais.
suicídio nas experiências relatadas acima, observamos que alguns aspectos emergiam
com mais evidência nos casos referidos, em razão do que, lançamos algumas
Carl Rogers. Temos observado, durante os contatos com os pacientes suicidas, que a
o indivíduo não possui uma concepção positiva de si-mesmo, quando se revela com
um autoconceito que será responsável pela auto-imagem resultante dele. Por sua vez,
28
favorecer atitudes autodestrutivas. Tal forma de se perceber no mundo está sempre
relacionada com o contexto familiar e social em que o indivíduo está inserido. Isso
pela razão de não ser possível perder-se de vista o papel do outro, representado tanto
pelos primeiros vínculos parentais, assim como o outro, representado pela dimensão
pelo self na sua conduta. Embora esse autor retire do self o papel de uma entidade ou
Pessoa tem sido questionado ( Moreira, 1984; 1990), pela ênfase que confere ao
relativos ao desenvolvimento do self e a sua relação com o mundo, o que nos remete
Heidegger, por pensarmos permitir uma visão mais ampla e compreensível dessa
interação entre self e campo fenomenal de que Rogers fala e que, no nosso entender,
pode ser ampliada através do pensamento desse filósofo, a partir da sua noção de ser-
aí e ser-com. Do mesmo modo, o olhar heideggeriano também nos permite obter uma
29
Assim, tomaremos a teoria de personalidade de Rogers como "pano de
30
CAPÍTULO II
deparamos com uma outra demanda psíquica, revelada nas tentativas de suicídio. Isto
nos impulsionou para que investigássemos melhor os conceitos adotados, agora à luz
de uma nova realidade com a qual nos deparávamos na nossa prática clínica.
31
longo dos estudos articulados com as novas experiências profissionais, a tentativa de
morte, vista sob o olhar do self, carecia de uma visão de maior alcance. Foi quando
nos deparamos com a filosofia de Heidegger, que surgiu lançando uma luz que, além
de nos favorecer uma visão mais ampla daquilo que representava o foco do nosso
constructo de "self ", o qual representa o núcleo central deste corpo teórico, tendo ele
isso, criar uma base teórica que permita uma interlocução entre este filósofo e o
psicólogo Rogers.
se necessário, uma vez que assim o fazendo, poderemos tentar articular uma fala que
nos traduza e que possa nos dizer dos sentidos do ser, de uma maneira concreta, tal
Rogers. Originária da prática clínica, essa teoria é considerada, pelo seu criador, de
32
personalidade, que encontram em Kurt Goldstein o seu principal representante, e na
Rogers percebeu, nos seus contatos com os clientes, que a maioria deles
experiência, aqueles aspectos que os caracterizavam como a pessoa que sentiam ser.
desse constructo.
da maior parte das outras no campo da psicologia, por constituir-se muito mais numa
teoria de mudança da personalidade do que numa teoria que visa o estudo das suas
33
estruturas fixas ou imutáveis ( Rogers, 1974). Algumas influências podem ser
interno da experiência. Para ele, a realidade objetiva não existe, pois cada pessoa
percebe o mundo ou essa realidade de acordo com o seu mundo interno, os seus
sentimentos, emoções e experiências; enfim, de acordo com a percepção que ela tem
do seu estar- no- mundo. A esse respeito diz ele que O organismo reage ao campo
Nesse processo, a percepção que cada um tem das suas características, dos
seus afetos, humores, relações e valores, ou seja, o seu auto-conceito ou self, tem
uma importância crucial, na medida em que é essa imagem com que cada um se
percebe no mundo, que irá influenciar, para não dizer orientar ou determinar, a
conduta do indivíduo.
34
A conjugação destes dois fatores, a tendência à atualização e a
noção do eu- determina o comportamento. A primeira representa
o fator dinâmico, a segunda representa o fator regulador. Uma
fornece a energia; outra, a direção.
constructo de self, este é definido por Rogers (1975b, p.467) como o que inclui tudo
o que é experimentado pelo organismo, quer essas experiências sejam captadas pela
processo experiencial.
autores citados antes, as quais parecem refletir a fenomenologia ditada por Husserl,
exploração desse campo fenomênico (Snygg e Combs, 1949). Para eles, a conduta é
(1974) apontam para o significado que ele atribuía à fenomenologia, quando explica
que,
35
Podemos dizer que, para Rogers, adotar uma perspectiva fenomenológica
como ele o fez, significa priorizar o marco de referência interno do outro, na intenção
de penetrar nos seus significados pessoais, por considerar que a verdade de cada
pessoa é a sua percepção da realidade, tal como ele a vive na sua experiência. Morato
Concluímos que esta postura situa-se muito mais próxima e identificada com
467), assim se refere ao indivíduo inserido nesse campo perceptual: todo indivíduo
percebido a partir da sua própria referência pessoal. Tal postura nos leva a visualizá-
36
Tal opinião é acompanhada por Morato (1987), ao relacionar a atitude
O self, conceito de self e estrutura de self são assim definidos por ele:
37
à consciência, mas não necessariamente consciente. É uma
gestalt fluida e mutável, um processo, mas que em qualquer
momento é uma entidade específica a qual é parcialmente
definível em termos operacionais por uma técnica Q ou outro
instrumento de medida7.
constituindo-se não só da percepção que o indivíduo possa ter dos seus atributos
definição. Esta opinião pode ser observada na sua referência ao self, aqui traduzido
como eu:
7
Rogers, C. (1959, p. 200): Self, Concept of self, Self-structure. These terms refers to tha organized,
consistent conceptual gestalt composed of perceptions of the caracteristics of the "I"or "me" and the
perceptions of the relatioships of the "I"or "me" to others and to various aspects of life, together with
he valus attached to these perceptions. It is a gestalt wich is available to awareness though not
necessarily in awareness. It is a fluid and changing gestalt, a process, but at any given moment it is
aspecific entity which is at least partially definable in operational terms by means of a Q sort or other
instrument or measure.
38
opinião, uma maneira cientificamente muito útil. Com efeito,
porque faz intervir dados inconscientes, tal definição não se
presta, no momento atual, a definições operacionais. Por isto,
parece-nos mais útil conceber o eu como uma estrutura de
experiências disponíveis à consciência. Esta concepção abriu,
por outro lado, o caminho a um poderoso movimento de
pesquisa. Rogers (1975, p. 168)
Como uma configuração organizada ou gestalt, o self passa a ser regido pelas
leis do campo perceptual. Isto significa que não se trata de uma percepção ou
existência nos propicia o seu experienciar, como nos mostra Rogers (1975):
Tal como apresentado por Rogers, o self expressa, com muita evidência, a
indivíduo seria figura, enquanto o mundo seria o fundo dessa configuração. Isto
39
mostra a natureza de tal definição, que surge de uma prática psicoterápica e situada
acolhe as características que dizem mais do indivíduo ou que ele as percebe assim e
quanto pela patologia das suas condutas, o que vai depender da forma como essas
conceito do indivíduo.
experiências que não se relacionam ao self. As outras, que são percebidas como
teoria, como o responsável pela regulação desta última. É nessa direção que as
40
palavras de Rogers (1994, p. 49)8, se dirigem: Assim, chega-se ao reconhecimento de
e na determinação do comportamento.
funcionar consistiria, então, num modo incongruente de ser que, na verdade, significa
outros. Alguns autores ( Rezola, 1975; Spiegelberg, 1972) afirmam que Gendlin
conseguiu resolver um conflito com o qual Rogers se debatera a vida inteira: fazer
8
Some Observations on the Organization of Personality. The American Psychologist, vol. 2 (9): 358-
368, 1947. Discurso proferido pelo autor ao término de seu mandato como Presidente da Associação
Americana de Psicologia, na Reunião Anual de setembro de 1947.
41
Este termo foi introduzido por Gendlin, sendo definido por ele como o
ocorridas na teoria desenvolvida por Rogers foram possíveis através deste novo
conceito, bem como da nova concepção de autenticidade, surgida a partir das idéias
de Gendlin.
por Rogers diz respeito ao conceito de congruência (Rezola, 1974; Gendlin, 1970).
características?
A meta de Rogers, inalcançável, como bem reconhecia ele, seria fazer uma
tendências também é considerada por Rezola (1974) e Pagès (1976), que a entende
como derivada dos conflitos de Rogers entre as ciências e a religião, vividos desde o
início da sua formação profissional. Por isso Pagès (ibidem) diz que Rogers tenta
9
Experiencing is the process of concrete, bodily feeling, which constitutes the basic matter of
psychological and personality phenomena. Gendlin, (1970, p. 138).
42
Assim, Gendlin, com a teoria da experienciação mencionada antes,
efetivamente colabora para que esse conflito seja solucionado. Nessa teoria, a
congruência passa a ser concebida não mais como uma equação entre o organismo e
Spiegelberg (1972).
psicoterapia pode ser observada em um texto dedicado a este tema, Gendlin (1970b),
somente profissional; é mais do que verbal, é uma ação recíproca e conectada (p.
76)10.
definida. Gendlin, (1970b, p. 86). Para ele, então, o existencialismo tem êxito se nós
10
The experiential relationship, the existential encounter then, is fully and mutually personal and not
just professional; it is much more than verbal, it is a concrete interplay and connectedness. Gendlin
(1970b, p. 76).
43
equacionarmos "existência" com "experienciação"; as idéias apresentadas aqui
como já foi dito antes, e tendo como apoio e fundamento do seu pensamento, o
processo de experienciação.
consiste num fluxo de experiência que é anterior à lógica, mas não contrário a ela.
44
sentimentos que temos em todo o momento. É pré-conceitual,
contém significados implícitos; é algo basicamente prévio à
simbolização ou conceitualização. Pode ser conhecido pelo
indivíduo mediante a referência direta- isto é, atendendo
interiormente a este fluxo de experiências. Esta referência direta
é uma diferenciação fundamentada em uma atenção ou
indicação subjetiva ao processo da experiência. Este processo
fluente é suscetível de simbolização e esta pode estar baseada na
referência direta. Mas também podem realizar-se simbolizações
mais complexas, tal como a chamada conceitualização. O
significado se forma da interação entre a experienciação e os
símbolos. (1963, p. 126-127)
experiências.
Carl Rogers foi alvo de muitas críticas ao longo da sua trajetória profissional.
homem, e por isso, dicotomizando-o entre mundo interno e externo, o que lhe retira o
45
como tal, como fenômeno em mútua constituição com o mundo (p. 162). Outras
Por outro lado, Pagès (1976) considera Rogers um fenomenólogo, embora ele
não tenha se preocupado com isso em sua obra e nem tal termo seja encontrado nos
preciso situar a perspectiva fenomenológica à qual nos referimos, uma vez que,
desde Husserl, esse método seguiu direções distintas, de acordo com os seus
pensadores.
evidência, ao mesmo tempo que institui o sujeito em relação direta com a realidade,
entende-se que tais premissas podem ser identificadas nas proposições de Rogers,
importância que ele confere ao mundo da experiência do sujeito no mundo. Foge dos
46
penetrar na questão das essências, da verdade do ser e outros conceitos que, vistos de
dúvidas de que, sem o saber e sem que tenha se preocupado com a questão da
de Heidegger.
(Moreira, 1990; Pagès, 1976), refere-se ao fato de Rogers propor uma postura
momento da experiência.
indivíduo à medida em que coloca o campo fenomenal como parte dessa experiência.
existencial se esteja falando. Como poderia ser compreendido o self caso ouvíssemos
47
a fenomenologia heideggeriana? Seriam as contribuições de Gendlin um caminho
conceito denota como nos sentimos nas situações Gendlin (1978/79, p. 45).
significado proposto por Heidegger, o qual se refere a alguma coisa tanto interna
quanto externa, antes que a divisão dentro-fora seja feita. Como afirma Gendlin
(ibidem), nós vivemos sempre em situações, no mundo, num contexto, vivendo com
afirma ele:
48
As situações não existem separadas de mim. A situação não é
puramente os atributos físicos, mas fatores relacionais humanos,
o que eu posso e não posso fazer, necessitar, esperar, adquirir,
usar, evitar e assim em diante. Todos os atributos dos fatos
como situações são em termos da vida de alguém, fazendo,
usando e evitando, alterando ou falhando em alterar. Mas isso
significa que não há fatos dados como terminados para nós, ou
ao nosso redor. Ao dizer como eu me sinto, isso é um processo
de viver que ultrapassa o que foi dado quando comecei a falar. E
para dizer a você como eu me sinto é, naturalmente, um
diferente ser-no-mundo, do que dizer para mim mesmo ou para
outra pessoa. Gendlin (1970b, p. 85)
psíquico. Entretanto, ele consiste em ambos, pois existe antes que tal distinção seja
feita. Interação também não diz desse termo, já que pressupõe a existência de duas
partes a serem integradas, o que não corresponde ao seu sentido. Para Heidegger
ser-com.
dele, do nosso viver no momento. Não significa uma compreensão cognitiva e sim
Heidegger (1927) afirma que ela sempre está envolvida em qualquer sentimento ou
compreensão, o que não significa dizer que sempre haverá uma fala que diga o que
alguém vive, em palavras. Mas que há sempre falas e escutas para cada um e abertura
à fala do outro, pois isso faz parte do que somos e do que vivemos, de modo que a
fala já está envolvida no nosso viver, seja qual for o que podemos atualmente falar
49
ou não. Resumindo, nós nos sentimos vivendo em situações com outros, com uma
compreensão implícita do que estamos fazendo e com uma comunicação entre nós já
compreensibilidade.
como fora-dentro, self, afetivo e cognitivo, entre outros. O importante reside nos
constata, uma vez mais, a importância da experienciação, já que esta significa nada
mais que um sentimento concretamente sentido e que pode ser levado adiante,
quando se faz uma referência direta a ele, como nos mostra Gendlin (1970), em sua
contudo, reduzir a ontologia à psicologia, já que as implicações disso são muito mais
amplas do que se imagina, envolvendo não só esta, mas também outras ciências. Ele
50
Para Heidegger (1927), o befindlichkeit também se relaciona com o método,
befindlichkeit não está lá como parte do método, então não haverá fenomenologia,
fenomenológico, não é aquele que é imediatamente óbvio, mas aquele que se mostra
nunca como uma tese flutuante: Somente como fenomenologia a ontologia é possível
( ibidem, p.35).
favorecer uma discussão entre algumas das suas idéias e aquelas discutidas até este
momento.
da filosofia e também fora dela. Tendo sido discípulo de Husserl, opôs-se à sua
ser se constituíam na sua busca, pensamento apresentado na sua obra inacabada, Ser
e Tempo (1927).
51
A sua trajetória de vida foi marcada não só pela importância do seu
pensamento filosófico, mas também por fatos políticos que fazem desse homem,
ainda hoje, objeto de discussões, depositário de ódios e amores em função dos seus
guerra. Até a sua vida amorosa tem sido alvo de especulações11, tal o interesse
estudos que empreendia com o mestre, desenvolveu seminários com alunos mais
Embora tenha se iniciado com Husserl, como tantos outros, rompeu com a sua
Perguntava ele sobre a redução, responsável pela sua principal divergência com
11
Ver o livro Hannah e Heidegger, de Elzbieta Ettinger, Petrópolis, R.J., Zahar, 1996, no qual a autora
comenta a correspondência entre os dois filósofos, num relacionamento amoroso que durou cinquenta
anos, e em que o homem Heidegger é apresentado com uma imagem nem sempre muito positiva.
52
Husserl. Seria o voltar " à coisa mesma", a consciência e sua objetividade, ou é o ser
limitar o ser-aí.
seria uma busca da verdade do ser, como bem lembra Steiner (ibidem), quando
afirma que,
53
O pensamento de Heidegger sobre o ser indica o caminho do que é velado, e a
partir do qual, segundo Stein (1983), Heidegger propõe a sua concepção de método,
(Ser e Tempo, 1927). Ao invés de pensar como aqueles filósofos, de que a realidade
se apresenta aos nossos olhos, esperando ser por nós apreendida, ele acredita que o
encobertos. Por isso, ele se volta para o como, buscando o modo de levar o objeto de
sua investigação à revelação. Steiner, (1983, p.103). E este é o ser que deve se
54
revelar no ente, resultado de uma busca constante de desvelamento do que está
"clareira".
Entretanto, pode-se dizer que este termo é utilizado por ele no sentido da
Embora ainda hoje a obra do filósofo seja identificada como uma ontologia
Heidegger (apud Stein, op.cit. p.91), a esse respeito: Isto não aconteceu, como
caminho de meu pensamento numa região sem nome. E explica que utilizou esta
homem com o acontecer do ser. E continua a afirmar que ...a linguagem é a casa do
55
2.3.2. Sobre a cotidianidade
existencialidade e a ruína.
A facticidade significa que o homem é lançado ao mundo, sem que para isso
tenha feito qualquer escolha. Vale lembrar que para este filósofo, o mundo tem um
significado distinto daquele que o vincula somente ao mundo físico. Do modo como
pressuposto que Stein (in Heidegger, 1979), nos brinda com uma interpretação do
mundo, de tal forma que o eu e o mundo são totalmente inseparáveis (p.VIII). Trata-
se de uma frase curta, mas que, nas entrelinhas, perpassa a questão do self, de acordo
que mergulha num mundo massificado, o qual o pressiona em termos dos seus
56
valores e princípios, favorecendo, desse modo, uma forma de vida inautêntica.
Assim, o homem restringiria a sua vida ao que é público, afastando-se do seu mundo
significa não se apropriar das coisas do mundo de acordo com o seu Ser, o que o faz
Para o filósofo, foco dessa discussão, o ser jamais poderá ser analisado
Para Heidegger, a angústia representa o único estado de ânimo que conduz o ser-
aí para uma compreensão de si-mesmo. Para Boss (1981), cada angústia humana tem
57
assim, ao autoconhecimento, o que pode significar a sua saída da vida alienada, na
mesmo, ou poderá ser conduzido a uma superação desse vazio, para um caminho em
direção ao seu próprio SER, a uma existência mais reveladora do seu SER. Nesse
sentido, a angústia pode ser uma abertura para a autenticidade, constituindo-se essa
crise por que passa o indivíduo, numa chance de uma retomada dos seus projetos e
enfrentar a angústia:
possibilidades, ele nunca está só, mas junto-com, pois ele é um ser-com,
58
homem vivencia uma permanente inquietação, por deparar-se sempre com a tensão
entre o que é e poderá vir a ser. Em razão do que, para Heidegger (1979, p. X), a
Sabendo-se que o ser se revela através e sob o ente, que volta ao ser-aí,
Heidegger, em Ser e Tempo (1927), define o que para ele são os aspectos
axiais da sua filosofia. Um deles refere-se à pre-sença, que pode ser compreendida
como o modo de ser do ente, segundo as suas palavras: Como atitude do homem, as
ciências possuem o modo de ser desse ente (homem). Nós o designamos com o termo
59
Chamamos existência ao próprio ser com o qual a pre-sença
pode se comportar dessa ou daquela maneira e com o qual ela
sempre se comporta de alguma maneira. (...) A questão da
existência sempre só poderá ser esclarecida pelo próprio existir.
A compreensão de si mesma que assim se perfaz, nós a
chamamos de compreensão existenciária. Entendemos a
existencialidade como a constituição ontológica de um ente que
existe. (p. 39)
e o lugar que a compreensão ocupa, esta que constitui, juntamente com a linguagem
dos entes que se tornam acessíveis dentro do mundo (p. 40). A compreensibilidade
seria possível pelo fato de o homem poder antever e projetar as suas possibilidades,
ao mesmo tempo em que o faz refletindo sobre o passado. Isso significa compreender
qual tal experiência é portadora, nos permitindo, assim, penetrar no ser do ente.
60
faz parte da existência e esta, se encontra no tempo, como lembra Heidegger
(p. 45). E continua: Persiste o fato de que, na acepção de ser e estar no tempo, o
tempo serve como critério para distinguir as regiões e modos de ser (p. 46).
pesquisa, como também, o que é mais importante para nós, legitima a inspiração
do próprio poder-ser da pre-sença de tal maneira que, em si mesmo, esse ser abre e
sença para a sua destinação de maneira tão originária como para a significância,
61
2.3.4 Da morte
e que perpassa toda a sua existência. Para Heidegger (1927, p. 28), a morte não se
encontra ao final de uma jornada de vida, como uma etapa prevista de um percurso
vivido, já que ela pode acontecer a qualquer momento. No sentido mais amplo, a
morte é um fenômeno da vida. Deve-se entender vida como um modo de ser ao qual
com que o homem pode contar, como afirma ele: A morte é uma possibilidade
tem na vida. Entretanto, essa certeza, reconhecida por todos, pode também significar
uma fuga do si-próprio, na medida em que a certeza se confirma a cada vez que se
sabe da morte de alguém, o que, de alguma maneira, nos assegura que estamos vivos.
62
A existência do ser-aí no cotidiano favorece ou mesmo leva o homem a
Por isso Heidegger concebe o ser como um ser-para-a-morte, pois desde que
nasce o homem já está apto para morrer. A morte, para ele, não significa o final de
uma etapa de vida, quando se espera que ela aconteça. Na verdade, a morte que
sinaliza para a vida, na medida em que aponta para a autenticidade ou não do ser-aí.
sua pre-sença no mundo, fazendo da sua existência uma revelação do seu si-mesmo
verdadeiro e autêntico.
Como bem o disse Gendlin anteriormente, não se trata aqui de reduzir uma
de um horizonte teórico que possa servir como fundamento para a compreensão das
63
Muitos aspectos envolvidos em ambas as teorias nos obrigam a colocá-las a
nova configuração.
Algumas questões podem ser apontadas desde já. Comecemos por pontuar
pensamento rogeriano.
Rogers sobre esse constructo, o ser-aí inclui todas as dimensões da existência, não se
temos uma característica da ontologia de Heidegger que mostra a sua clara oposição
Heidegger, nos leva a pensar que, em razão disso, não é possivel pensar o ser
64
humano, nesse caso o ente, como prioritariamente sujeito às influências do self, que
não diz tudo dele. Também em função disso não se pensa o ente como uma
disso, com Heidegger, torna-se possível pensar o ente como revelação do ser, que,
por sua constituição existencial, está inserido num mundo que já existe, mergulhado
analítica existencial, transcende qualquer posição teórica que tente reduzir, explicar
reconhecido por vários autores, entre eles Biswanger e Boss (1979), Boss (1981) e,
despeito disso tudo, esta questão ainda será alvo de discussão neste trabalho, ao
proposto por Rogers, num primeiro momento podemos perceber, como no constructo
de Heidegger.
do campo fenomenal como uma idéia que pode aproximar o self do ser-aí. Seguindo
esse pensamento, trazemos uma citação de Rogers (1994, p. 43). que ilustra muito
bem este ponto de vista. Diz ele que à medida que ocorrem na percepção do self e na
65
nos faz pensar num estado constante de abertura no qual o campo fenomenal se
mutável, é oportuno pensar que esta idéia contempla e se sustenta num modo de
pensar o homem que inclui a sua abertura ao mundo. Esta abertura se dá justamente à
medida em que a experiência de viver ocorre; e esta ocorre todo o tempo. Por que
não pensar, então, que tal condição de abertura e por que não dizer, possibilidade de
próprio indivíduo e tudo que o cerca, tal como as situações vividas, as forças
indivíduo, que será empreendida em função da percepção que ele tem desses
momento. O self, então, se situa na abertura para o mundo que constitui o ser-aí. O
self, tal como Rogers o concebe, se constitui, ele próprio, num poder-ser do homem,
experiência imediata.
66
No que se refere à autenticidade, considero que esta, juntamente com a
perspectiva do self, não exclui o ser-aí proposto por Heidegger. Isso porque o ser-aí,
que a filosofia de Heidegger mostraria a direção para onde o ser se revela. Rogers,
com a sua psicologia, nos diz como o ser pode se revelar, psicologicamente, na
concretude da experiência.
Citamos uma frase de Rogers (1974, p. 129), que ilustra muito bem o que
assim ele se refere ao self, traduzido aqui como eu: O eu, neste momento, é (grifo do
qualquer coisa que se percepcione. Podemos pensar esse sentimento de ser como
diz Rogers (1959, p. 223), o self é a consciência de ser, de funcionar, e não uma
idéia ou noção estritamente consciente, como a sua definição nos leva a entender. É
67
Em relação ao desenvolvimento do self, um aspecto merecedor de atenção e
importante nesta discussão é a sua relação com o outro. Segundo Rogers (1959)12, o
do mundo na experiência de ser. O self não representa nem uma entidade que já faz
Ele somente se constituirá a partir da relação do indivíduo com o outro, quando este
presente e futuro, na vivência atual, que se abre para um projeto que se situa sempre
numa possibilidade de ser, e que não se fecha ou se encerra aí. Pois à medida em que
as experiências surgem e eu me volto para elas, sou capaz de seguir esse fluxo e me
envolve. Tal constatação nos permite enxergar, nesse ponto, o ser-aí, no que respeita
12
This representation in awareness of being and functioning, becomes elaborated, through
interaction with the environment, particularly the environment composed of significant others, into a
concept of self, a perceptual object in his experiential field . Rogers, C. (1959, p. 223).
68
ao ser de possibilidades, ao poder-ser que caracteriza o ser de Heidegger e que pode
forma ou outra, mas, ao invés disso, nesse processo de ser e não ser. Seria possível
ao ser não viver na impropriedade? E como fazer para que tal forma de existir não o
impede de viver as suas alternâncias? O que faria o ser se apropriar do seu si mesmo
e sair da impropriedade? Sendo o ser um ser-aí, o que significa que ele é lançado ao
mundo com o que já está aí, encontrando-se nessa abertura, como preservar o si-
mesmo sem perder o ser-aí ? Como existir em relação, no ser-com, sem que se perca
69
suas possibilidades, ao processo de existir que nele ocorre todo o tempo, e o qual lhe
aponta aquilo que nele lhe é singular e próprio. Esta é uma noção de liberdade que
fato de que o indivíduo se sente livre para reconhecer e elaborar suas experiências e
Enquanto a noção de self, tal como proposta por Rogers, sustenta-se somente
além do que chega à consciência. Assim, o cuidado de que falamos antes consistiria,
além de tudo, na abertura à experiência, o que significa nem limitar e nem excluir a
assumir o risco de escolher a cada momento o que se quer, o que se pode e não pode
mundo de relação, bem como a sua conscientização, é fundamental para que o ser se
70
do ser-aí. Isto quer dizer que é a partir da aproximação do outro indeterminado e da
perde de si-mesmo. Assim, mais uma vez, instaura-se uma proximidade entre as
idéias desses homens, pois Rogers destaca claramente a importância que o outro
que tal perspectiva nos faz reconhecer, em ambos, a relevância do mundo cotidiano
Gendlin.
A diferença mais visível a ser destacada nas idéias desses homens nas
questões que vimos discutindo até agora, refere-se aos lugares de onde eles falam. De
homem é visto sob a luz das suas vivências individuais e subjetivas, num processo
formulação teórica, é possível entender o self como uma dimensão através da qual o
self, de acordo com o pensamento de Heidegger. Claro está que um dos aspectos que
71
concepção se mantém restrita, prioritariamente, às experiências subjetivas,
para além de um mundo que privilegia o subjetivo e experiencial, não restam dúvidas
de que noção de self é superada por esse conceito; além disso, por tratar-se de uma
ontologia que visa alcançar o sentido do ser e a sua verdade, esta concepção é
certamente muito mais ampla do que o self, que tem na teoria de personalidade de
self poderia ser pensado como uma revelação do ser-aí; seria a dimensão concreta e
mundo.
72
mergulhar nas suas posssibilidades de ser. Como destacamos na citação acima, a
dizer que o self, aqui entendido como o fluxo de sentimentos que compõe a
experienciação, poderia ser entendido como uma revelação do ser, o qual, pela sua
mesmo; é o cuidado, que nos leva a nos desvincularmos, aos poucos, do impessoal,
a sua teorização do self, herdeiro dessa tradição, difícil será não reconhecer, apesar
disso tudo, uma construção teórica que carrega, no seu âmago, uma filosofia que
Heidegger (1927, v.II, p.52) diz que o ser si-mesmo em sentido próprio
isso, vemo-lo sinalizar para um questionamento que vimos fazendo ao longo deste
Temos nos perguntado sobre o que haveria de comum entre essas expressões.
73
essencialmente abstrata? Pensamos que é isso que a Análise Existencial , através de
de promover um pensar sobre tal pressuposto numa direção que possa delimitar as
cotidiano, algo nos diz do que em nós é verdadeiro e do qual podemos nos apropriar
que Rogers pode favorecer ou pelo menos lançar uma luz visando este
entendimento. Vale lembrar que a singularidade que tratamos aqui não significa a
falamos está inserido num mundo e dele faz parte em todas as situações.
nesse momento primeiro, traduzir-se apenas num estado afetivo, de humor, numa
experiência também pode ser reconhecido conscientemente, como algo que diz de
mim mesmo, vivência que, inclusive, poderá ainda ser articulada ao mundo através
daquela-maneira.
proposto por Rogers, como uma expressão do si-mesmo, desta vez restrito à
74
dimensão consciente da experiência. No entanto, se trouxermos Gendlin (1970) para
esta discussão, com a sua formulação de experienciação a qual, sem negar a noção de
discussão que vimos empreendendo até aqui. O que nos leva a sugerir, então, que o
self poderia ser a tradução psicológica do que é tratado por Heidegger como o si-
existencial de viver. É assim que ele concebe a autenticidade, de acordo com a sua
simplesmente porque é esse processo que nos permite dizer que existimos. É um
sentido, e que se torna uma referência pela qual nos posicionamos diante do mundo,
mundo interno e o que pode ser nomeado de mundo externo, sinaliza para a vivência
75
algumas reflexões sobre a prática psicoterápica, tendo como ponto de partida as
próprio ser, exige que se efetue escolhas a partir do si-mesmo. E o que isso significa
senão ter uma nova visão do mundo e das alternativas que a vida oferece,
compatível com o que sou? Não se constituiría isso na obtenção de uma percepção
subjetiva que se impõe na sua verdade e a qual se constrói não de forma isolada,
na tentativa de formular uma teoria com status científico, o que para ele parece
fato de conceberem este homem a partir de uma visão psicológica que acaba
13
exemplo disso é a sua tentativa de quantificar o grau de maturidade obtido na terapia, através de um
instrumento de inspiração positivista: ROGERS, C. (1954), Changes in the maturity of behavior as
related to therapy, Chicago, USA, Chicago Press, 1954.
76
Heidegger faz uma crítica ao personalismo da teoria de Husserl, que serve,
neste trabalho, principalmente na questão do self. Diz ele que mesmo a interpretação
Esta formulação nos permite compreender que a pre-sença, sendo ela mesma,
sempre se dá de acordo com o se apropriar ou não dela mesma (grifo meu), refletida
77
Deve-se ressaltar o fato de que falamos de teorias de distintos campos de
saber e, desta forma, tratando de objetos de estudo diferentes. E ainda que, mesmo
experienciadas pelos jovens participantes deste estudo. Contudo, uma questão ainda
protagonista deste estudo. Sabe-se que tanto o suicídio como a tentativa de suicídio
sobre a justificativa do nosso interesse e o que nos direcionou para esses sujeitos.
Além disso, como entendemos essa fase denominada "adolescência" e como é por
78
CAPÍTULO III
COMPREENSÃO DA ADOLESCÊNCIA
idade adulta14. Diversos autores ( Muuss, 1973; Pfromm Neto, 1976; Hollingshead,
1960; Hall, 1916), entre muitos outros, possuem a sua própria definição dessa fase,
14
A palavra adolescência é derivada do verbo latino "adolescere", significando "crescer" até à
maturidade. Muuss (1973, p. 16).
- De acordo com o Dicionário de Psicologia de PIÉRON, H., p. 9, adolescência é o período do
desenvolvimento humano, correspondente à fase de maturação sexual e que assim conduz ao estado adulto.
79
Sociologicamente, adolescência é o período de transição da
dependência infantil para a auto-suficiência adulta.
Psicologicamente, adolescência é uma "situação marginal" na
qual novos ajustamentos, que distinguem o comportamento da
criança do comportamento adulto em uma determinada
sociedade, têm que ser feitos. Cronologicamente, é o tempo que
se estende de aproximadamente doze ou treze anos até a casa
dos vinte e um, vinte e dois, com grandes variações individuais e
culturais. (p. 16)
No entanto, para Pfromm Neto (1976, p. 1), (..) embora não seja possível
fixar limites universais e exatos para sua duração, os doze e os vinte anos,
etapa.
vive, o que vai provocar alterações na vida do jovem. Essas alterações nos níveis
80
forem vivenciados e absorvidos, poderão favorecer o desenvolvimento de uma
identidade adulta com mais ou menos competências existenciais para se assumir esse
novo lugar no mundo, pois é nesse momento em que se delineia, mais efetivamente,
a identidade do adulto que surge. Podemos dizer que aqui se inaugura uma
subjetividade adulta; como diz Ausubel15, apud Pfromm Netto ( 1976, p. 3), é um
adultez certamente não representa uma identidade totalmente original, uma vez que
esta nova forma de ser-no-mundo traz consigo as influências das marcas das
todas as alterações físicas e psicológicas, bem como da cultura na qual ele está
inserido, o que, vale ressaltar, ocorre desde o momento em que o homem é lançado
ao mundo.
15
D.P. Ausubel, Theory and problems of adolescent development. New York, Grune & Stratton, 1954.
81
da identidade deste novo ser que se anuncia. Porém, discutir o conceito de identidade
não se constitui em fácil tarefa, uma vez reconhecida a imensa variedade dos seus
usos nos diversos contextos das ciências humanas. E nem é este o nosso objetivo
Para isso, nos apoiamos nos estudos de Erickson (1976; 1987), que é
reconhecido como aquele que cunhou o termo identidade, nos seus estudos sobre a
signifique uma cristalização desse sentimento, pois, como enfatiza o mesmo autor, a
conceito, já que, para ele, estamos tratando de um processo ' localizado' no âmago
p.21).
sentimento de identidade, que passa a ser detalhado pelo autor e que revela a
82
Se fizermos agora uma pausa para anunciar alguns requisitos
mínimos que nos permitam sondar a complexidade da
identidade, teremos de começar por dizer algo deste gênero ( e
digamo-lo sem pressa): em termos psicológicos, a formação da
identidade emprega um processo que ocorre em todos os níveis
do funcionamento mental, pelo qual o indivíduo se julga a si
próprio à luz daquilo que percebe ser a maneira como os outros
o julgam, em comparação com eles próprios e com uma
tipologia que é significativa para eles; enquanto que ele julga a
maneira como eles o julgam, à luz do modo como se percebe a
si próprio em comparação com os demais e com os tipos que se
tornaram importantes para ele. Este processo é, felizmente ( e
necessariamente ), em sua maior parte, inconsciente- exceto
quando as condições internas e as circunstâncias externas se
combinam para agravar uma dolorosa ou eufórica "consciência
de identidade".
Além disso, o processo descrito está sempre mudando e
evoluindo; na melhor das hipóteses, é um processo de crescente
diferenciação e torna-se ainda mais abrangente à medida que o
indivíduo vai ganhando cada vez maior consciência de um
círculo, em constante ampliação, de outros que são
significativos para ele- desde a pessoa materna até a "
humanidade". O processo "inicia-se" algures no primeiro
"encontro" verdadeiro da mãe e do bebê como duas pessoas que
podem tocar-se e reconhecer-se mutuamente; e só " termina"
quando se dissipa o poder de afirmação mútua do homem.
Entretanto, como foi sublinhado, o processo tem sua crise
normativa na adolescência e é determinado, de múltiplas
maneiras, pelo que ocorreu antes, e determina grande parte do
que ocorrerá depois. ( p. 21)
indagação que fazemos ao longo de todo este trabalho: "Como é a experiência de não
querer viver do adolescente?" Não temos dúvidas de que uma relaciona-se à outra, já
que esta fase contém todas as ambivalências possíveis de serem vividas pelo
83
fizera enquanto criança. Essa realidade é que ele é um indivíduo
separado de seus pais, e que deverá encontrar-se consigo
mesmo, com todas as dificuldades, turbulências e satisfações
que essa busca determina. Encontrar-se consigo mesmo significa
que agora terá que descobrir quem ele é, e a partir dessa
constatação descobrir como usará esse seu "ser" para enriquecê-
lo com experiências e viver sua própria vida, permitindo-se ser
alguém que sente que a vida vale a pena ser vivida. (p. 14)
aquela que preencherá os vazios ideológicos que esse novo ser busca preencher,
ou nefasta influência aos seus jovens. Isso por saber-se que nesse momento de vida,
heróis, seus pares e, principalmente, através da cultura, cujos valores, assim espera o
jovem, sejam distintos daqueles absorvidos pela sua identidade infantil e, dessa
forma, possam legitimá-lo como um ser apropriado da sua nova condição de ser-no-
mundo como adulto. A esse respeito, Erickson (1987, p. 130), reconhece que,
igualmente, ressaltar aquilo a que este último autor se refere como confusão de
84
faz parte da construção desse novo lugar no mundo por ele buscado. A dificuldade
de se inaugurar uma nova identidade perfaz todo o caminho percorrido pelo jovem.
Retornamos a Erickson (ibidem, p. 132), que interpreta com muita clareza esse
momento:
Todos nós vivenciamos essa fase e por isso sabemos que é um momento de
vida permeado por vivências dolorosas e também felizes; por buscas, incertezas e
85
angústias, e que levam o adolescente a mergulhar num mar de instabilidades, que
“comoção”, como diz Aberastury (1981), é o que caracteriza aquilo a que Maurício
necessária para o jovem, considerando-se que é nesse processo que ele vai
quando se perdem partes da sua personalidade infantil, através dos lutos vividos
mas uma breve história, enquanto estudo científico, que tem início neste século. O
interesse pelo jovem sempre esteve presente nas cerimônias de iniciação das
16
G. Stanley Hall. Adolescence, (2 vol.), New York, Appleton, 1916.
86
um período de "tempestade e tensão". Este psicólogo fez uma analogia entre os
sofrimento.
adolescência.
menos extremados do que Stanley Hall, como foi visto antes. Debesse (1958; 1960) e
Anna Freud (1958), também consideram esse período como de perturbação; esta
última, inclusive, afirma que tal perturbação constitui-se, ela mesma, na normalidade
momentos vivenciados pelo jovem e que se relacionam aos seus lutos. O primeiro,
diz respeito ao luto pelo corpo infantil, em razão das alterações fisiológicas e
87
diante do mundo; e o terceiro, é o luto pela perda dos pais da infância, o que é
e independência dos pais, numa tentativa de mantê-los como antes. Esta situação
também é vivida com muita dificuldade pelos pais, que, ao verem os filhos
meio”. E continua:
88
dos aspectos relacionados a tais condutas não pode prescindir de uma visão do
indivíduo inserido no contexto social. Como diz Maris (1971) , não se pode negar a
Quântica e Holismo, para nos referirmos às redes de relações que são muito bem
expressas no princípio de que “o todo é mais do que a soma das partes”. Esse
através de uma visão do ser do homem. Nessa mesma direção, portanto, encontram-
de uma vocação originária para estar-com o outro num mundo e existir numa
jovem se torna mais susceptível aos reflexos de uma realidade frustrante. Para
as projeções da sociedade, seja ela macro ou micro (como é a família). Dessa forma,
89
impropriedades17 da nossa sociedade, uma vez que este ser possui uma sensibilidade
(1998).
sua identidade. Necessita, nessa etapa, adotar uma ideologia, valores e normas de
conduta que possibilitem uma nova forma de estar-no-mundo como adulto. Porém
nem sempre essa é uma tarefa fácil, considerando-se o mundo em que vivemos
relação às suas ideologias, valores morais e ética, como essa realidade irá influenciar
a constituição da identidade nesse jovem ao qual nos referimos? E o que dizer dos
pais, quando eles próprios, como parece ser a situação da maioria atualmente,
nossa sociedade globalizada e sem saberem como conduzir a educação dos filhos
porque nem eles mesmos estão sabendo orientar-se em relação ao seu próprio rumo
de vida ? Qual a influência que esse panorama exerce sobre os nossos jovens?
afirmam que,
90
quando apreende o valor das perguntas, adverte,
simultaneamente, a necessidade de calar. Suas
contradições não são toleradas porque não há tempo nem
recursos efetivos para lhe dar o apoio de que necessita.
Sua solidão lhe oferece duas saídas definidas: encontrar
um paliativo artificial ou renunciar à vida. Como se vê, a
opção é drástica. Pede-se-lhe que escolha uma das duas
formas de auto-sacrifício: ou o suicídio coletivo,
socialmente legitimado (alienação, vícios, submissão
ideológica), ou o suicídio pessoal que, entre outras formas,
pode assumir perfeitamente a de qualquer dos
extremismos políticos aos quais estamos tão acostumados
em nossa época.
vivencia os conflitos característicos dessa fase, tais como a perda do corpo infantil e
o luto dessa perda, assim como o luto pela perda dos pais da infância, da
Nesse período é crucial a maneira como os pais do adolescente lidam com essa crise,
outros. Nesse sentido, podemos dizer que, além da cultura propriamente dita, existe
uma cultura do adolescente, que diz respeito aos valores, formas de condutas,
atitudes e símbolos que são próprios do jovem. Tais aspectos irão determinar a
91
culturas que reconhecem esse período de passagem para a idade adulta, favorecendo
Outras vezes, como acontece na sociedade brasileira atual, percebe-se uma cultura
suas mais violentas formas de expressão, pensamento tão bem manifestado em suas
palavras:
descobertas dos seus potenciais físicos e psíquicos. Assim, o grafiteiro que sobe
vários andares de um prédio para deixar a sua marca, pode ser uma expressão dessa
92
Podemos dizer que, se reconhecermos que a cultura na qual o indivíduo está
ao jovem, por constituir-se ele, assim como os outros entes, num ser que existe no
mundo e a partir dele. O fato de se enfatizar o tema "adolescente" neste trabalho visa
assume um lugar dos mais relevantes, não devendo, por isso, ser ignorado, quando se
de adolescentes têm sido objeto de estudo principalmente nas últimas décadas, o que
não deixa de ser um período recente, considerando-se que esta questão caminha
atenção dispensada a essas questões e argumenta que isso pode ser explicado em
autor) e normal nessa fase de desenvolvimento. Tal argumento é enfatizado por Anna
tentativas de suicídio.
93
Aberastury (1980), chama a atenção para o aspecto da inserção social do
valores éticos, intelectuais e afetivos nos novos planos de vida que passa a
estabelecer, o que sem dúvida não é vivido com poucos conflitos. Ao mesmo tempo
sofre o conflito em relação à perda do corpo infantil, dos pais da infância e todos os
lutos que essas perdas representam. Pensamos que pode ser nesse momento de vida
projeto de vida , entre outros, fazem parte da condição humana, interesse principal
Existencial. Angerami (1992), afirma que apesar dessa temática ser bastante
reconhecer que noções existenciais como tédio e solidão somente num passado
suicida passe por uma inserção dele na sociedade. E segue adiante colocando que do
mesmo modo que existe uma correlação entre o suicida e a sua família, essa
Para Angerami (1992, p.50), existe uma relação significativa entre o suicídio
94
seu gesto pode estar manifestando total falta de adaptação às próprias condições
essência, o que significa dizer que o homem se constrói a cada momento. É agindo,
que ele é a soma, a organização, o conjunto das relações que constituem estes
empreendimentos (ibidem, p.14). Heidegger (1927), por sua vez, também destaca a
ou, melhor dizendo, do mundo no qual ele vive, nos seus mais diversos contextos:
social, cultural, físico, biológico, etc. A dimensão subjetiva do ser humano não é um
subjetividade através do outro, do seu olhar, da sua palavra, dos vínculos afetivos
estabelecidos com esse outro. O "ser-aí" provoca o estado de abertura desse jovem
95
para o mundo; por isso ele se torna, principalmente nessa fase de mudança, um
adolescente torna-se um campo fértil, onde muitos tipos de sementes podem ser
plantadas, uma vez que, além da vulnerabilidade natural que o caracteriza nessa
uma auto-imagem, um self, que é uma parte da experiência vivida por ele a cada
através da sua experienciação, a qual envolve o mundo circundante mais amplo que
Por outro lado, não podemos deixar de reconhecer que vivemos num mundo
onde se observa a perda de identidade das culturas, como, por exemplo, os índios
poucos passam a ser legitimadas pela nossa sociedade18, além das desigualdades
18
Quem não se recorda dos jovens que incendiaram um índio em Brasilia e que praticamente já foram
absolvidos pela justiça ?
96
realidade, nos embrutecemos um pouco mais a cada dia. Podemos dizer que vivemos
desnutrição antes do primeiro ano de vida, para não falar nos milhares que não têm
oportunidade de se alfabetizar ou que morrem à mingua nas portas dos hospitais por
falta de uma política social que respeite e garanta aquele que é um direito sagrado e
jovens em relação aos valores sociais vigentes. É natural que se espere atitudes de
costumes e formas de vida, ou seja, ao que já está constituído como normas sociais e
que atravessamos nos leva a tecer algumas considerações a partir das características
da sociedade atual.
família, mas também esta, tal qual o jovem, se conduz através dos caminhos que a
97
comunicação. O jovem de hoje, diferentemente daquele de vinte, trinta anos atrás, já
anos sessenta. Porque até essa característica de rebeldia em favor dos seus ideais
vida autodestrutivas e dos gestos suicidas. Este é o caso dos milhares de jovens
drogados, alienados, ou que levam uma vida autodestrutiva (basta ver o alto número
uso de armas e as lutas entre as gangues), sem falar no número de suicídios exitosos
e nas tentativas de morte voluntária que têm crescido nos países do primeiro mundo e
dizer que vivemos, todos, numa sociedade mórbida e suicida, a qual induz e
favorece os jovens a não aceitarem o sistema de vida e projetos que lhes são
oferecidos e à qual ele responde de uma forma radical, que é mostrando que não vale
a pena viver.
98
Nesse momento da vida o adolescente vê-se buscando, em razão da fase de
vezes ele não encontra em nossa sociedade, a qual, ao estabelecer os padrões sociais,
cria uma escala de valores e propõe estilos de vida aos quais ele deve adequar-se.
realização dessa sociedade. Adota valores, conceitos e maneiras de ser que não
corresponder às expectativas que o outro (família, sociedade) lhe impõem. Como diz
pelas distâncias que se estabelecem entre ideal do ego insuflado pela cultura
Assim, esse jovem tenderá a orientar a sua vida muito mais em função de um
si-mesmo idealizado, que pode ser traduzido como um ser absorvido pela
suas experiências mais genuínas, com o seu ser verdadeiro e passam a se conduzir
em função e em busca de uma imagem virtual, ideal, perdendo, cada vez mais, a
coragem de ser, como disse Tillich (1976) e vivendo na impropriedade, como diz
já que as mesmas não se adequam ao seu auto-conceito, como bem o coloca Rogers
(1974).
experiências mais autênticas não sejam vivenciadas. Tal modo inautêntico de viver
99
acarretará escolhas existenciais inadequadas, porque incompatíveis com o seu ser
verdadeiro, levando a pessoa a uma existência marcada pelo fracasso, pela baixa
amado. Dá-se, então, o vazio existencial e a falta de sentido para a vida, que podem
levar o jovem a, numa postura fatal, querer sair do vazio e tentar preencher esse
vácuo em que se encontra, ainda que seja em direção a um desconhecido que lhe
resgatará do sofrimento, ainda que seja ceifando a sua vida através de um ato de
Esta é uma das dimensões do poder de destruição que a sociedade atual tem
Contudo, a violência não pode ser considerada somente pelo seu aspecto
violência somente sob um ponto de vista condenatório. Para ele, não há sociedade
que seja destituída de fatos agressivos e violentos, acreditando que, ....se há,
100
O aspecto da crise ética e moral da sociedade globalizada, especialmente a
Por outro lado, ele reconhece a dificuldade dos adultos, mergulhados que
esses jovens de forma segura nos desafios que eles lhes dirigem. Reconhece que o
sociedade (p. 63). E é ainda mais sério quando a sociedade, como a nossa, tal a
diversidade de tipos de violência que temos presenciado e que nos acomete, ela
dissociadas (p.63). Não poderia este panorama relacionar-se às condutas suicidas dos
nossos jovens?
apresenta não como um fim em si mesmo, pois como muitos já colocaram, o suicida
não deseja morrer, mesmo porque a morte lhe é desconhecida, já que o que dela se
morte surge como saída do sofrimento. A morte é a alternativa para calar a dor. A
morte pode ser a alternativa para a solidão existencial que dilacera a vida. Como diz
101
A solidão ao transformar-se num processo contínuo e doloroso
pode até culminar em suicídio. Ato de desespero quando não se
enxerga nenhuma outra saída para uma situação insuportável. A
morte se apresenta, então, como única alternativa para a
sensação de não suportar o peso da própria vida, da própria
condição humana.
momento de vida desse jovem. É uma perspectiva que vai além das mudanças
biológicas, físicas, culturais e sociais. É uma perspectiva que enxerga não somente
todas essas características, mas, acima de tudo, as supera, ao encontrar o tema maior
Embora sejamos seres com características biológicas que nos fazem também
um ser do reino animal, nos destacamos de outros animais justamente pelo fato de
sermos dotados de uma experiência singular a cada um de nós, que é a nossa própria
existência. Embora sejamos iguais aos outros seres vivos que habitam o mundo,
deles nos distinguimos pela capacidade de pensar, sentir e falar, pois, como disse
Heidegger (1927), a linguagem é a morada do ser. É através das palavras que o ser
cada ser humano é naquele momento da experiência. Nos dizemos pela experiência,
com a linguagem.
Assim também se passa com o jovem adolescente. Diríamos que mais do que
no ente adulto, o processo de viver, de ser, torna-se, muitas vezes, mais penoso e
intenso do que para aqueles. A crise da adolescência, vista sob esse ângulo, assume
102
mudanças podem representar para esse ser que se instaura no seu novo mundo
existencial.
talvez, sentir-se alçado a estar num novo patamar do mundo, sem que se queira ou
esteja preparado para isso, porque nunca se sabe até onde irá essa transformação e
submeter a essa mudança, deixar-se levar pelos apelos do corpo e da alma, sem que
se tenha qualquer domínio sobre eles. É uma explosão hormonal, fisiológica, que se
acompanha de uma mudança existencial com todas as implicações que esse processo
acarreta. É viver o risco de não escolher a posssibilidade que virá, já que todas aí já
mais "caber" nos antigos tamanhos do seu mundo. Seja no mundo das coisas
materiais, seja no mundo dos afetos. Crescer significa não caber mais no lugar da
criança que era; e que às vezes precisa continuar sendo, pela impossibilidade de ser
diferente. E isso causa angústia, sofrimento. E não só isso. Crescer é também tentar
estabelecer novos vínculos a partir desta nova configuração, o que geralmente não
103
das reclamações, inquietudes, contradições e irritações. E isso tanto aborrece quanto
Tudo isso porque o adulto geralmente olha para o jovem com o olhar de um ser
distante, que não consegue sair desse lugar. Quando não, acontece o que disse antes:
adolescente que ele foi e do que não foi ou não pode ser.
que significa viver. É a existência que também se transforma junto com a voz, os
pelos que crescem, os desejos pelo outro. Ser adolescente é experienciar na pele, no
um ser que não se sabe e de um não ser intermitente, que surge na ambivalência de
todos os momentos.
momento, novo, e que inaugura a escolha de se ser o que não se sabe, a cada
momento. Desde a aparente facilidade, para nós, adultos, de se escolher uma roupa
104
para sair, até a escolha dos amigos, lugares, jeitos de ser, preferências musicais, até a
existem num processo de vir-a-ser, próprio da condição humana, mas que surge na
adolescência como uma tempestade que cai de repente e fortemente, sobre as cabeças
Adolescer é escolher, no novo que surge e que vai constituindo uma nova
instante. Significa, mais do que tudo, ter que se apropriar de um ser que ainda não
para-a-morte. Significa também viver essa possibilidade do ser, que é a morte. E que
para o adolescente é constante. A sua crise de passagem também significa que ele
vive a alternância entre viver e morrer: do que já foi, ainda é e do que será. Surge no
luto da criança que já não é, mas que ainda não deixou de ser completamente. É a
sido. É viver os lutos das perdas, a morte do ser, vivendo, ao mesmo tempo, com a
ninguém, mais do que eles, sentem na pele todos os preços que a vida nos fazem
pagar, ao escolher os nossos projetos. São eles quem mais se arriscam a viver na
105
impropriedade, a exercitar uma vida inautêntica, por se encontrarem numa situação
mundo. O jovem é um ser que nesse momento da sua existência, ainda não é
totalmente independente; pois é nesse momento que ele desenvolve uma identidade
que servirá, também, de sinalizador para a sua apropriação do ser que ele é.
deste estudo. Embora sabendo que as condutas suicidas ocorrem nas diversas faixas
etárias e pelos mais diferentes motivos, aos quais jamais poderemos responder de
forma conclusiva, penso que com o adolescente, por todas as idéias apresentadas até
querer viver, muitas vezes expressa através de uma tentativa de suicídio, como é
visto neste estudo, pode ter uma configuração diferente, já que encontra-se envolta
adolescência, uma fase tão crucial para a construção inicial e permanente, de uma
existência que possa ser exercida de forma autêntica e consciente da sua condição de
um ser de posssibilidades.
106
CAPÍTULO IV
SOBRE O MÉTODO
107
O trecho do depoimento de Valda nos diz da sua experiência, além de
basicamente, da sua experiência ao viver uma tentativa de morte. Ela nos conta a sua
sua vida, nos sensibiliza e nos coloca como participantes da sua experiência, fazendo
108
Carl Rogers expressa idéia semelhante a respeito da pesquisa, ao afirmar :
afirma que,
apoiando-se na narrativa como uma das suas formas de expressão. Este trabalho
O termo experiência19 tem sido empregado para nomear situações das mais
19
Segundo o Dicionário de Filosofia, MORA, J.F., p. 263, o termo experiência é empregado em
vários sentidos: 1) A apreensão por parte de um sujeito de uma realidade, uma forma de ser, um modo
de fazer, uma maneira de viver, etc. A experiência é, então, um modo de conhecer algo imediatamente
antes de todo juízo formulado acerca do apreendido. 2) A apreensão sensível da realidade externa.
Diz-se então que essa realidade é dada por intermédio da experiência, mais comumente também antes
de toda reflexão - e, como diria Husserl, pré-predicativamente.
- De acordo com o Dicionário de Psicologia e Psicanálise, CABRAL, A., p. 113, experiência é a
aquisição prática, pelo indivíduo, dos conhecimentos que o contato direto com os eventos físicos ou
mentais lhe proporciona. Segundo E.B. TITCHENER, é a totalidade dos fenômenos mentais
diretamente recebidos em determinado momento, assim excluindo a inferência
109
diversas. O uso dessa palavra costuma ser variado e confuso. No entanto, a
experiência sempre nos remete àquilo que foi aprendido, experimentado, ou seja,
indivíduo.
se, ainda, a tudo aquilo que afeta a experiência vivida no momento, sejam esses
experiência, tal como proposta por Rogers, como referência ao mundo vivido,
compõem tal momento, mesmo que algumas delas não sejam conscientes, mas
momento.
110
Nesse sentido, experimentar, para Rogers (ibidem, p. 162), representa a
abordagem.
111
texturas de situações com as quais nós vivemos.A linguagem é usada para distinguir
relação às experiências, é preciso estar claro que elas já estão ou são sempre
experiência pura como se ela fosse um tipo de massa, pois a experiência é sempre
experiência, ela nunca está totalmente envolvida. O papel da linguagem não diz tudo
fazendo isso pela primeira vez, pois a linguagem já está envolvida na experiência.
experiência. Assim, quando a experiência direta serve como base para afirmações ela
não está à parte da situação, já que a estrutura situacional está implícita. É possível,
separar alguns aspectos da experiência que podem ser chamados "este"ou "aquela"
algo descritivo. O que eles dizem pode ser vago, mas "apontam" para alguma coisa,
112
experiência aparece aqui como uma relação direta- a palavra diz a experiência, a
dentro da fenomenologia, pois, de acordo com essa última frase, através da palavra
narrador para em seguida retirá-la dele (idem, p. 205). Embora, na sua opinião, a
narrativa estivesse desaparecendo (ele escreveu sobre isso nos anos 40), já que a
ser humano, já que reflete a experiência humana. Por essas razões, adotamos a
narrativa, ainda assim esta forma de pesquisar a experiência tem sido bastante
adotada nos meios acadêmicos. Exemplo disso é a pesquisa realizada por Morato e
113
questionamentos de Schmidt (1990), se não seria adequado e pertinente, para os
pesquisadores atuais,
conserva, o que não ocorre quanto ao romance, que se origina do indivíduo isolado e
trata, geralmente, do sentido da vida, encerrando sempre a história com um final que
é, então, imposto ao leitor. Na narrativa, por sua vez, o conselho, como forma de
daquele assimilado pelo senso comum, uma vez que aconselhar é menos responder a
uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está
114
A informação, além de ser estranha tanto ao romance quanto à narrativa,
passa a ser mais ameaçadora à preservação da cultura da experiência, uma vez que a
informação precisa ser plausível, o que não acontece com a narrativa, que não
antes o "saber" vinha de longe, seja este entendido na sua dimensão temporal ou no
verificação imediata do que se comunica. Com a narrativa tal não ocorre, em razão
escritor russo, afirmando que o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor.
Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado
vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma
chave para tudo o que veio antes e depois (p.37). Desse modo, a narrativa, ao invés
que é narrada, uma vez que narrar alguma coisa consiste na faculdade de
aberta, posição antecipada por Benjamin (1994), na sua obra " O Narrador",
115
A narrativa contempla a experiência contada pelo narrador e ouvida pelo
ouvinte da narração. Este, por sua vez, ao contar aquilo que ouviu, transforma-se ele
Através da narrativa, buscamos apreender a experiência, tal como ela é vivida pelo
narrador, neste caso, os jovens adolescentes que tentaram suicídio. Entendemos que a
narrada. É a história de uma tentativa de morte que está sendo transmitida naquele
momento para o pesquisador. O narrador não "informa" sobre a sua experiência, mas
conta sobre ela, dando oportunidade para que o outro a escute e a transforme de
acordo com a sua interpretação, levando a experiência a uma maior amplitude, tal
conteúdos e estados emocionais, uma vez que, diferentemente da informação, ela não
narrador nos sensibiliza, nos alcança nos significados que atribuímos à experiência,
daquilo que se constitui como uma obra aberta, já defendida por Eco (1993) que, ao
propô-la, faz uma distinção entre esta e uma obra acadêmica e científica, distinção
esta em torno da criatividade. Discorda, inclusive, de Paul Valéry, que afirma "il n'y
a pas de vrai sens d' une texte" e conclui afirmando que um texto pode ter muitos
116
sentidos (p.165), que é o caso da obra aberta. Porém não aceita a opinião de que um
campos ou no mar, pode ser vista como uma forma artesanal de comunicação, como
lembra Benjamin:
passado que se articula com o presente e apoiado numa situação que reflete, revela,
confirmar esse pensamento quando ele diz que quem escuta uma história está em
que ,
117
Portanto, ao se trabalhar com as narrativas de jovens adolescentes sobre as
ainda dizer que esse não-acabamento expressa o sentido de abertura que constitui o
interpretação, além de outras duas mais comuns, e apontadas por ele; aquela que
entreouvida (p.19).
118
Embora o autor esteja se referindo ao contexto da clínica psicanalítica ao
dizer que a relação estabelecida nessa técnica de pesquisa, situa-se muito mais
pesquisa científica tradicional. Isso porque o encontro ao qual nos referimos aqui,
quando um deles revela-se para o outro, que, por sua vez, é afetado por essa e na sua
experiência.
o mundo que se abre para ele e interpretando os entes que se mostram a ele dentro
abertura do ser. Isto é o que se pode depreender das palavras de Heidegger: Toda
119
Assim como Heidegger e outros autores, Figueiredo (1995, p.67), também
abertura ao "ser-com".
excluído, do que ainda não se revelou. É através da escuta compreensiva que o ser se
vela e revela, exercitando aquela que é a vocação originária do ser: nunca atingir uma
120
Oportuno destacar a importância desse aspecto da hermenêutica
uma praxis que ao mesmo tempo em que busca alcançar a experiência vivida,
ênfase na experiência, como uma das formas através da qual o ser-no-mundo exercita
a sua compreensibilidade, pois à medida em que o narrador conta a sua história, esta
modo de existência.
ser, presente na ontologia de Heidegger. O que nos leva a dizer que a pesquisa que se
121
situa-se numa ótica fenomenológica e existencial. O que também significa
terapêutica? Daí vem a semelhança dos usos da interpretação, tal como sugerido por
entre o que se fala, e aqui o discurso surge como parte desta fala e aquele que ouve.
possibilidade existencial inerente ao próprio discurso, qual seja, a escuta. Para ele,
222).
122
Importante ressaltar a relevância existencial também daquele que escuta e a
123
Através das idéias de Husserl, o método fenomenológico propõe a apreensão
conhecimento.
pessoas no seu viver. E está claro que nesse processo encontra-se implicada a
fundamentais das quais a Psicologia se serve a cada momento. Mas, para alcançar
isso, é preciso se fazer a redução fenomenológica, que, embora almejada, nunca será
124
fenomenológica consiste numa profunda reflexão que nos revele os preconceitos em
ramificações, como bem o reconhece May (1963). Mesmo formando escola, Husserl,
e de relação.
125
apresentada por Stein (1983), referindo-se às diferenças entre Heidegger e Hegel.
tem como organon a razão ligada à subjetividade; por sua vez, o método
ligada ao ser-aí.
constitui, ademais, no aspecto que interroga o ser, além de representar o núcleo que
e de relação (ser-aí e ser-com), que o coloca no mundo, junto a outros seres e entes,
posição esta que elimina qualquer teoria, método ou qualquer coisa que classifique o
126
como se faz necessário na redução fenomenológica, pois, como já afirmara
isso, irredutível. Nós "somos" e "ex-sistimos" (grifo meu) de forma total, nesse
Adotamos o termo depoimento após contato com os textos de Queiroz (1991), que
empreende vasto estudo acerca de técnicas de pesquisa. Para ela, nas Ciências
Sociais este termo não possui a mesma conotação que tem na sua área de origem, a
fato sob julgamento, nas Ciências Sociais este termo significa o relato de algo que o
em uma e outra técnica. Diferentemente da forma como atua nas histórias de vida, no
além do depoimento poder ser finalizado em apenas um encontro, o que não acontece
quando se pretende pesquisar uma história de vida, que exige vários encontros, os
127
Das características que constituem o depoimento tal como as apresentadas
"tocado" na sua experiência por tal narrativa. Embora seja a história de algo que lhe
que se pedia para que o jovem contasse um pouco da sua experiência, criava-se um
espaço onde o ritmo era dado por ele e a pesquisadora atuava acompanhando, de
perto, lado a lado, os afetos e sentimentos que surgiam nesse momento. Muitas
favorecer o contato do narrador com a sua experiência que, não raro, era carregada
o ser-com que aí se revela. Como diz ela, é a alma perdida que busca se encontrar.
128
Essa busca do encontro que muito bem pode ser entendida como a revelação do ser,
pois é pela fala que o homem, o ente, se manifesta. É através dela que o homem se
revela, explicita-se e pode captar o significado das suas experiências, pois à medida
encontra o outro, o ser do outro. E na medida em que a sua experiência se abre para o
ser-com, coloca-nos como parte dela. Não se trata, portanto, de um pesquisador que
interpretando-a logicamente; enfim, não existe uma postura de estar "de fora", como
observador, da experiência.
Faço parte, como pesquisadora, psicóloga e pessoa, ou seja, na minha totalidade ali
externo, como dentro e fora. A sua experiência toca a minha experiência de viver
aquele momento. Os meus afetos, a minha disposição afetiva, estão ali, atuantes. Ou
Por isso não me sinto e nem me coloco como alguém indiferente ou inatingível pelo
que está ocorrendo. Vivo ali, existo na experiência do outro, que se articula com a
(1994): O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência
ouvintes (p.201).
129
A escolha de um método de inspiração fenomenológica pareceu o mais
intelectual e vivencial evoluíam ao longo do trajeto por mim percorrido em todo esse
definitivamente como método a partir das entrevistas, à medida em que elas iam
sua vida. Mas significa, além de tudo, uma forma de existir com-o-outro. Significa
próximo que havia tentado suicídio. Foram entrevistados seis jovens, sendo cinco
anos e, sem que este aspecto tenha sido requisito para a escolha dos entrevistados,
130
divulgação dos seus nomes, resolvemos mantê-los preservados; assim, optamos pela
como produto das reflexões feitas pela pesquisadora na sua vida pessoal e
131
AS MENINAS DESSE MUNDO
As meninas desse mundo são como as que eu tenho visto. Têm corpo de
menina e vivência de mulher. São meninas filhas do abandono. Seviciadas, abusadas
e feridas na sua dignidade. São solitárias, indefesas e desprotegidas. Brigam pelas
ruas, disputando os seus amores e territórios. Os seus corpos trazem as marcas da
luta. Unhas que cortam a pele, deixando um risco no corpo e no coração.
Ferimentos que materializam a raiva de si mesmas e do mundo. Agressão que fere a
vida. Corpo machucado que anda, vive e expõe o tanto de destrutividade contido em
si.
São meninas que choram, por muitas coisas. Pelo amor perdido,
principalmente o amor a si mesmas. São meninas que exibem a autoridade de quem
muito já viveu. E no entanto deixam que as lágrimas deslizem pelo seu rosto, como
só uma criança abandonada pode fazê-lo. Um pranto de desamor. Sonham com o dia
em que alguém virá resgatá-las dessa vida. Talvez um príncipe encantado, montado
num cavalo branco, e que surge nos seus sonhos trazendo a felicidade. Como num
conto de fadas....
São meninas que gritam para serem ouvidas, nem que seja através de um
ensaio da morte, destruindo-se. Que se desesperam e ingerem soda cáustica,
venenos, medicamentos e se atiram ao mar. Que gritam por socorro. Que desejam
ser amadas. Que choram pelo pai ausente. Que lamentam a incompreensão. Que se
sentem sozinhas no mundo. E ainda precisam continuar vivendo. Para isso se
armam e confrontam os inimigos, principalmente aqueles da alma. E enfrentam os
seus "fantasmas" lutando com raiva e revolta. No entanto, elas só querem um pouco
de amor... Elas pedem carinho e um colo... Elas buscam aquilo que perderam no
meio do caminho e que nunca deveriam ter perdido: o direito de serem meninas.
Somente meninas... Simplesmente meninas....
Produção da pesquisadora após entrevista com uma das jovens deste trabalho, e que expressa, acima
de tudo, a relação intersubjetiva na vivência da experiência.
132
CAPÍTULO V
AS NARRATIVAS
suicídio que cometi. Tudo começou meio por acaso... A nossa família veio do
interior em 1989 e viemos morar aqui nesse município perto da capital... eu tinha...
então...12 anos. Foi quando eu tive uma oportunidade e me envolvi com drogas...por
um certo período. Deixei de lado em 96, 97, quando eu entrei aqui no CAIC e me
deram oportunidade para trabalhar. Me deram carta branca, sabe? Disseram: "– olha,
você vai tomar conta de uma equipe de futsal feminina". Maravilha...adoro esporte!
Aí...foi quando eu comecei a trabalhar isso. Tentei sair da droga... mas surgiram
família... eu não gosto que falte nada em casa...e um certo dia...no ano passado...deu
aquele desespero... "– Bom, tenho que acabar com minha vida". E até hoje meus pais
133
Bom... então saí das drogas....Mas ficaram aquelas ameaças entendeu? Os
caras com quem eu tinha me envolvido diziam: "–Vou entregar pra sua família". Me
faço para eles... estou presente em tudo... e de repente... pensei: "- Não....Tenho que
Fui muito ameaçada por essas pessoas que eu falei.... eram de fora daqui...da
máfia da droga...do Rio e São Paulo..... Cheguei a tentar me matar várias vezes...
foram umas cinco tentativas.... A última que eu tentei foi agora.... Acho que não faz
dois meses... Já tem uma psicóloga aqui... que vem me acompanhando... pra tentar
amenizar as coisas....
minha mãe mas ela não tinha.... Fui até à casa de um colega... consegui três reais e
saí.... Fui pra praia.... Cheguei lá e me joguei ao mar... sem saber nadar.... Fui salva
por outras pessoas que viram... depois elas queriam me deixar em casa, mas eu não
aceitei. A minha família não poderia saber do acontecido.... Para você ver... eu
bem... como a dipirona. Eu tomei uma dosagem muito grande de dipirona e tiveram
que fazer uma lavagem estomacal. Isso foi em maio... ou em julho...véspera de meu
aniversário... e cheguei meio zonza em casa e disse que estava passeando por aí....
134
A terceira vez foi aqui... no colégio...no sábado. Eu subi nessa caixa d’água...
impacto....
E a última tentativa... a quinta vez... foi em casa... nesses dois últimos meses.
Usei um punhal que eu comprei a um colega de trabalho... porque eu tinha que sair
pra rua e não queria ir sem arma.... Eu estava no banheiro... calada.... Quando eu já ia
fazer... mãe entrou... porque achou estranho eu estar calada no banheiro... aí entrou
repente.. também....
Essa é uma experiência muito... muito... muito ruim.... Eu não desejaria isso
para o meu pior inimigo. Depois que passa... depois que você pára... aí você pensa....
E depois... minha família... como é que iria ficar? Por isso eu sempre deixava....
acontecia nada... rasgava aquela carta e minha mãe perguntava por que eu rasgava e
queimava tanto papel. Mas é uma coisa assim... até hoje eu ainda estou... como se
diz... não muito alegre no trabalho... não fico muito em casa... estou super calada...
estágio de vida em que me vejo parada... eu estacionei. Eu nem ando... nem volto...
135
nem para um lado e nem para o outro.... Eu parei.... E tenho tido crises depressivas....
Às vezes eu páro em casa e fico pensando em quantas vezes eu quis me matar. Por
que será...? Aí vêm aqueles motivos... tem vários sentidos.... As drogas... que eu não
quero que descubram... nem quero que elas sonhem. Talvez... um dia... quem sabe?
Mas eu sempre estou com aquela coisa... sabe... porque eu sou a santinha: "- Oh,
Às vezes... até brincando mesmo... eu constato que realmente elas não sabem
andar de camiseta... não tem nada a ver uma coisa com a outra! Se eu tenho um
namorado e não quero sair na rua com o namorado... é problema meu.... Acho que
ninguém tem nada a ver.... E tem, também... algumas questões financeiras em casa...
que eu me vejo aperreada... como vou fazer pra pagar o que eu devo e comprar
comida pra dentro de casa.... Só depende de mim... esse mês sou eu... então... como é
que eu vou me virar... se o que eu ganho não dá pra nada? E sinto também demais em
ver meus pais precisarem de uma coisa e eu não poder dar.... E aí... chego no trabalho
e dizem "- Ah, isso é besteira!" Eu estava no centro comunitário e disse que não ia
mais... então alguém me disse: - "Você não vai resolver seus problemas saindo do
centro comunitário". Bom... o que eu sei é o seguinte: não adianta eu estar num lugar
em que as pessoas não vão comigo... entendeu? Isso é muito... sei não... difícil.
Não vou dizer que parei de pensar nisso.... Ontem mesmo eu pensei nessa
situação de novo... morrer... Será que foi um dos meus melhores momentos? Você
fica naquela.... Eu não sei.... Ultimamente eu não estou com os meus pés no chão.
Por exemplo... ando bebendo... o que não é normal pra mim. Fumando... não a
136
maconha... não... ou cocaína... mas outros cigarros... e eu acho que isso não é legal.
Não acho legal... sabe.... Será que é uma necessidade de manter as drogas lá atrás...
essa bebida...? Essa necessidade de eu ter que beber alguma coisa hoje... será que
Cheguei a fazer umas dez entregas.... Foi o tempo que eu parei e disse: "- vou ter que
sair". E eles disseram: "- olha, você sai... mas sabe que não sai". E me pegaram em
abril desse ano. Eu fui visitar meu pai no interior e... na volta... eles me pegaram ...
eles. O que eu devia... já tinha pago.... Não sei o que eles queriam de mim. Me
dizer para minha mãe que me pegaram... pois ela iria perguntar...E aí tive que mentir
tem um lugar aqui que eu até gosto.... Tem um estrada ali e à noite... às vezes... eu
fico aí até 10... 11horas... pensando: - "o que foi que eu fiz da minha vida?" Perdi
bem minha família e eu sei que se chegar com um notícia dessas... eu já era...!
família não me aceitaria mais... porque as pessoas que eu amo assim de paixão
mesmo... são meu pai e minha mãe e minhas irmãs... demais...! Aí fica aquela coisa...
se eu contar... e um dia eu vou ter que contar.... Já tentei várias vezes... mas não
137
adianta... então eu vou ficar calada aqui... embora eu ache que não é o ideal.. não...
Vamos ver no que é que vai dar.... É muito difícil...! Daí vem a vontade da pessoa se
matar... tomar comprimido.... É uma coisa super difícil.... É ruim... é ruim demais....
Quando eu penso sobre isso, penso que não cheguei a fazer uma besteira
porque sempre chega alguém. É uma coisa super interessante.... Sempre ocorre de
alguém chegar...às vezes eu fico até chateada....E penso... puxa...você tinha que
aparecer aqui agora? Aí começo a brincar. Mas sempre... sempre... sempre... tem que
chegar alguém. Aí...eu comentando com uma colega... ela disse que eu então não
queria morrer. Sobre essa história de sempre acontecer alguma coisa que impede que
eu me mate... eu penso que isso significa que ainda tenho que sofrer um pouco na
terra.... Acho que não chegou a minha hora. Mas é aquela coisa... eu não sei o que
fazer mais! E estou um pouco violenta... fora... na rua.... Mas eu não fui sempre
assim.... Eu comecei com isso nos meus doze anos... quando eu comecei a me
Não estar com os pés no chão é não estar sendo aquilo que eu acho que sou já
que eu não era assim... entende? Quando eu saí das drogas, eu fiquei super... super
estacionei... acabou.... Mas até hoje comprei material novo... tudo... pra jogar.... Mas
não senti mais motivação.... No próprio trabalho... às vezes... eu digo que estou muito
desgostosa... mas não sei qual o motivo.... Mas a verdade é que não estou me
138
E o que me incomoda mais nisso tudo é minha família não saber e eu tenho
medo de contar e elas não quererem mais conversar comigo.... Porque eu vejo nas
reportagens sobre isso.... quando sai na televisão e elas comentam que esse fulano é
isso... é aquilo.... E aí... eu saio de perto. Eu me emociono quando falo nisso porque
eu acho que um dos pontos que mais me magoam ainda é esse....Eu estar guardando
essa verdade e eles não saberem.... E se eu contar...e porque eu sei quem são eles...eu
tenho certeza que eles me botarão na rua.... Dirão que eu não pertenço mais a essa
família Eu imagino isso.... É difícil demais! Por mais que eu já tenha deixado... acho
que eles não vão me aceitar mais.... O meu relacionamento com a minha família é
bom e é ruim. Porque... às vezes... minha mãe conversa comigo numa boa... mas
Tem outra coisa, eu sou mediúnica... As pessoas diziam isso porque no ano
passado eu tinha umas sensações de que ia me jogar. As pessoas diziam que não era
eu... era outra pessoa. E eu sentia que não era eu.... Quantas vezes eu não chegava e
dizia à professora que ia me jogar dali. A professora dizia que eu parasse com aquilo
e eu fiquei super... super... deprimida. E ainda ficava mais quando as pessoas diziam:
"- Olha, você tem que rezar". Eu digo que ficava deprimida porque tinha vontade de
tentando entender o que era aquilo que eu sentia... qual o motivo que me fazia sentir
daquele jeito. Depois passou e eu me acalmei... Cheguei a tomar uns remédios... não
me ofereceu um cigarro e eu disse que não fumava.... Eu não me lembro como era o
nome dele... Só sei que ele estudava no colégio.... Então... aceitei... pensando que só
139
uma vez não faria mal. Então... comecei.... E às vezes eu tirava dinheiro escondido...
tirava... por isso me sinto muito mal... por saber que eles não sabem... por eles
se estivesse escondendo uma parte de mim... a de que não sou tão boazinha.
140
Narrativa 2- Valda, 18 anos.
sempre passei por dificuldades na minha vida... Sou filha adotiva, entendeu? Me
deram a um casal porque minha mãe verdadeira não tinha condições de me criar.
Depois disso... as pessoas que me criaram fizeram-me sofrer muito porque o meu pai
de criação faleceu... e a minha mãe adotiva passou a viver com outro homem. A
partir daí a minha vida e a do meu irmão...que é filho biológico dos meus pais
adotivos... ficou muito difícil porque o novo padrasto começou a mandar nela...
exigindo que ela fizesse só o que ele queria e então ela passou a nos deixar para
trás... a cuidar menos de nós e mais dele. Ele batia muito em mim de cabo de aço...
de cinto... de corda... enfim... com qualquer coisa que ele tivesse à mão. E isso o meu
Então... aos onze ou doze anos eu saí de casa. Passei a viver na rua... a
conviver com vagabundo... ladrão... maconheiro. Depois... meu irmão foi atrás de
mim e eu voltei pra casa de novo. Passei uns dois anos em casa... embora vivesse na
A minha avó foi quem me criou quando a minha mãe foi para o Rio. Ela traiu
o meu pai com esse outro homem com quem ela viveu aqui em Natal. Quando isso
aconteceu... eu e meu irmão ficamos com a minha avó... que já não tinha saúde para
começou o sofrimento... Como o meu irmão era mais velho... tinha cabeça suficiente
para resolver o que queria. Até porque esse meu irmão é filho de outro homem...
entendeu?
141
Voltando ao meu padrasto... quando eu vi que ele estava me batendo muito...
tive um filho. Porém eu não tinha condições de sustentá-lo... Então a minha mãe de
criação pediu para criá-lo e até hoje ela vive com ele... que está com três anos. Eu
penso em entrar na justiça para tomar o meu filho porque eles não têm
podem fazer com meu filho... e não é isso que eu quero pra ele.
Além de tudo... meu padrasto já pegou nos meus seios... deu-me balas para
que eu não contasse nada a minha mãe. Porém eu disse a ela... que então brigou com
ele mas não adiantou de nada... passou um mês brigando e depois voltou tudo. Ele
batia em mim e ela não ligava. Quando ele me espancava... ela não falava nada... Isso
trouxe uma revolta para os filhos... tanto pra mim quanto para o meu irmão... Esse
meu irmão é filho legítimo dela... mas hoje ele não quer nem ver o meu padrasto... de
tanta humilhação que a gente já passou... O meu irmão já se atracou com meu
padrasto porque ele me bateu tanto que cheguei a sangrar... Ele batia muito em
mim... Certa vez ele me jogou no chão...me pisando... Me maltratava muito.... Por
A relação com a minha mãe sempre foi mal. Sempre foi bruta, sempre foi
ruim. Porque ela sempre me humilhava e me maltratava. Do que ela me dava amor,
ela dava mais ao filho dela, claro, que era o filho legítimo, não é? Ela sempre passou
em rosto que eu era negra, que eu não era filha dela. Toda vez que eu fazia alguma
coisa errada, ela me batia. Isso desde que eu era pequena. Aí pra mim isso foi
crescendo, foi crescendo, e o ódio foi aumentando. Eu tendo ódio dela. Aí meu ódio
142
foi aumentando. Toda vez que ela batia em mim, eu olhava pra ela e dizia "– eu
Eu nunca tive uma adolescência... nunca soube o que foi ter um brinquedo...
uma boneca... nunca tive condições de me divertir. Eu caí na prostituição porque foi
minha mãe de criação que me botou nisso. Aconteceu aqui em Natal...e eu estava
então com quatorze... quinze anos. Antes disso... quando eu cheguei aqui... depois
que eu tive meu filho e dei a ela... ela me mandava pedir esmola para sustentá-los.
Todos os dias eu saía de casa de manhã... logo cedo... às sete horas... pra pedir
esmola. O povo dizia: "Você é tão nova por que não vai trabalhar?" Agüentava
humilhação.... Depois eu vi que não agüentava mais...então parei. Aí ela fez a minha
condições de comprar roupa boa pra mim... entendeu? Eu não tinha condições de
arrumava dinheiro pra levar pra casa. Uma noite... ela foi até lá... e na frente das
meninas... deu uma tapa na minha cara porque eu não arrumei dinheiro.... Uma vez
eu cheguei pra ela e disse que ia arranjar um emprego. Aí ela disse assim: "- Não,
você não vai trabalhar porque cento e trinta reais por mês não vai dar de comer a
ninguém". Aí eu fui pensando bem...e foi quando eu conheci esse rapaz que é meu
marido hoje... na casa de drinks. Ele era casado e começamos a nos gostar.... Mas ela
não queria que eu ficasse com ele porque o que ela queria mais era o
dinheiro...entendeu? Ela nunca aceitou que eu ficasse com ele porque ela sempre quis
143
que eu trabalhasse pra sustentá-los... ela e o marido. Ela tem dois aparelhos de som...
duas televisões e a maioria de tudo que ela comprou foi com o meu dinheiro... foi
com ele no governo. Ela chegou lá e me apresentou a ele.... Foi no dia de eleição
me perguntou se eu queria sair mesmo daquela vida. Eu respondi que sim... porque
eu não agüentava mais. Eu estava nessa vida não por querer... mas porque era
forçada a estar... E disse-lhe que saía de casa às sete da noite e voltava às seis da
comer aos meu pais... aí eu ia arrumar a casa... lavar a roupa... cuidar de criança.
mesmo rojão...isso acontecia todo os dias... Ele se surpreendeu com isso... quase sem
acreditar. Passou a freqüentar a minha casa e meus pais pensavam que ele era um
homem que tinha condições financeiras... entendeu? Depois que viram que ele não
Tiraram o carro dele... além do som . Ele teve que vender tudo para passar uns
tempos lá em casa porque ele tinha deixado a mulher e os filhos... tiraram tudo o que
nos restou... Acho que tudo era inveja e olho grande. Não queriam que eu ficasse
com ele...a minha mãe foi na governadoria atrás dele... atentar... dizendo a ele que eu
não tinha renda.... Ela então respondeu que eu me "viraria"...que desse os meus
144
"pulinhos". Certamente ela queria dizer que eu voltasse à casa de drinks para vender
o meu corpo... Aí eu disse: "Não! Isso não é vida para mim... não!" Saí... estou com
ele até hoje...vai fazer um ano que estamos juntos. Eu tenho dois filhos... um com
três e outro com dois anos... Só tive com ele o de dois e que mora conosco...o
com a minha mãe... sabe? A minha mãe conheceu a mulher dele... aí começaram a
era um inferno... a gente não conseguia ter sossego. Já tentei muitas vezes cair em
suicídio por causa disso... porque eu não tinha sossego... era de noite e de dia. Tentei
o suicídio mais de uma vez... A primeira vez que tive vontade de me matar foi
uma semana... eu e meu esposo porque ele estava sem trabalho e tinha pedido licença
da governadoria. Nessa fase a gente descia à pé pra casa dos irmãos dele... nos
tinham almoçado... aí a gente... com a barriga seca... voltava pra casa de novo. Como
a gente era fumante... viciado... ficávamos catando piúba no meio da rua... entendeu?
Isso tudo me deu vontade de me matar porque eu disse assim: -"Meu Deus... o que é
que está acontecendo?" Outra coisa... a gente passou um período ruim... brigado...
porque na casa do irmão do meu marido tinha uma menina que trabalhava lá... só que
quando ela saiu dessa casa o meu marido pediu-me para que ela ficasse uns dias na
nossa casa enquanto não voltava ao interior. Eu concordei.... Mas essa menina dava
em cima do meu marido... eu via e reclamava. Aí... por duas vezes... ela escondeu a
chave do carro do irmão do meu marido... que ele havia pedido emprestado. A partir
145
daí ele ficou mudando pro meu lado e me desprezando. Percebi que ele estava dando
tomei veneno... realmente tomei duas vezes veneno... Baygon. Mas não adiantou
A Segunda vez que tentei suicídio foi com um tipo de pozinho que parece
com açúcar que se usa para matar mosca.... Eu botei bastante num copo...
desmanchei e tomei... mas também não adiantou de nada... não cheguei nem a ir ao
aconteceu o seguinte. No domingo... antes desse último feriado, eu fui à casa do meu
casa. Eles foram....Aí a gente chamou meu irmão para sair.... Ele não queria ir porque
estava sem o dinheiro do ônibus e não gostaria de ir....insistimos demais... ele foi. No
domingo... meu irmão teve uma dor de cabeça. Aí arrumamos um remédio pra ele
porque queríamos sair...e meu irmão saiu bom. A gente passou a noite na praia... o
dia todinho na praia...Na segunda-feira... eu fui trabalhar com meu marido... pois ele
estava fazendo um serviço na casa do irmão dele. Aí ele chamou-me para irmos à
apartamento que a gente morava... estava muito sujo... eu disse que não ia sair e que
ia limpar a casa... lavar roupa... porque no outro dia eu já estaria livre daquele
serviço. Aí eu acho que ele ficou com raiva porque eu prometi que ia à praia e não
fui. Então fui lavar roupa na casa da vizinha... fui dar água ao meu filho... fui
trabalhar com ela... levando o menino. Ao terminar de lavar roupa... eu vejo uma
batedeira daquelas de botar de pé... na casa da mulher onde eu estava lavando roupa.
146
Aí eu perguntei onde ela tinha comprado...Ela respondeu que havia comprado ali
que eu pedi a ela para ficar com o menino...que eu ia comprar pão. Eu disse isso só
para que ela ficasse tomando conta do menino e eu não ter que levá-lo.... Quando
onde vinha. Disse-lhe a verdade... que tinha ido comprar a batedeira. Ele não gostou
porque a mulher lhe informara que eu tinha ido comprar pão. Aí começou a
confusão.... Ele começou a dizer que eu estava mentindo... que eu o estava traindo...
que eu estava fazendo isso e aquilo... e aquilo outro. E disse que isso não era
verdade... mas a discussão durou o dia inteiro.... Então pedi-lhe o dinheiro que eu ia
embora. Ele estava com duzentos e poucos reais para pagar o aluguel do
viagem. Tomei banho... arrumei meu filho e peguei um ônibus. Ao passar pelo
shopping... deu vontade de descer e comprar alguma coisa para agradá-lo. Então
brinquedo para o meu filho. Voltando pra casa... ainda comprei uma camisa pra ele...
meu esposo. Chegando em casa... eu dei a ele a camiseta e o CD. Só que ele jogou
perdendo a paciência porque ele me chamou de rapariga.... Isso porque uma vez ele
me olhou e disse que se me tirasse daquela casa de drinks jamais iria chamar-me de
rapariga.... Por isso eu fiquei furiosa... porque ele não devia ter dito aquilo por causa
de uma besteira.... Aí ele começou a discutir.... disse que tinha ido beber... gastou o
dinheiro quase todo e queria ir para a casa de drinks. Eu disse que não ia deixá-lo
gastar o dinheiro e então meti a mão dentro do seu bolso várias vezes e ele a tirava....
147
Aí eu dei duas tapas na cara dele e o empurrei no chão. Ele bateu a cabeça no chão...
parecendo que havia machucado... Nesse momento consegui tirar do seu bolso o
Peguei o álcool... coisa que nunca temos em casa... mas nesse dia havia esse álcool
porque foi meu irmão que pediu no domingo... para curar a sua dor de cabeça.
pensei: "- se ele vai acabar com as minhas coisas.... eu acabo comigo também.".
Então eu joguei álcool... derramei a garrafa de ácool todinha na minha blusa... que
era uma blusa bem grossa de lã... de algodão.... Aí corrí pro banheiro e ele correu
atrás de mim pra tomar a garrafa... só que eu já tinha despejado todinha.... Ele não
viu que eu estava com o isqueiro na mão. Eu sempre tirava uma brincadeira com
ele... mas eu nunca fazia... sabe? Essa brincadeira era dizer que ia tomar veneno...
botar dentro do copo e não bebia fora aquelas vezes que eu disse que havia tentado
duas vezes. Aí eu acho que ele pensou que era brincadeira e não viu o isqueiro na
minha mão... de jeito nenhum. Ele não percebeu porque eram dois esqueiros... talvez
ele tenha achado que o isqueiro estava com ele.... Então quando ele foi pra
geladeira... eu risquei sem querer... sem querer mesmo... eu não ia me riscar... não.
Na hora que eu risco... o fogo sobe. Aí eu comecei a pular... gritar... meu filho estava
pedindo socorro! A gritar... e ele gritava também pedindo socorro.... Ele... querendo
colocar um pano pra apagar e não conseguia... porque ficou bastante álcool no meu
escadas pedindo socorro quase seminua... ele então vestiu uma blusa em mim e eu
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pedi para fechar a porta e pegar meu filho.... Desci as escadas pedindo socorro e ele
atrás com meu filho nos braços.... Ele caiu na escada... machucou o cotovelo...se
cortou.... Saímos loucos no meio da rua... pedindo socorro. Tinha gente no prédio
que estava com carro... mas não quis socorrer a gente. Então chamaram um táxi da
prefeitura pra me levar ao hospital.... Uma vizinha chegou a dizer que tinha sido ele
quem me queimou.... Eu disse que não havia sido ele... fui eu mesma.... E ela
retrucou que tinha escutado ele bater em mim a tarde toda... o que eu desmenti...
chamando-a de mentirosa. Quem me ajudou a sair foi a menina que cuidava do meu
filho. Chamou um táxi... pegou um lençol e me enrolou e eu então fui com meu
esposo. Agora já faz uns quinze dias que estou aqui no hospital com ele... que deixou
Depois de tudo que houve... hoje eu me sinto... triste. É doloroso porque meu
corpo era muito bonito... sabe? Meu corpo era um corpo bem feito... era muito bem
feito.... Não tinha uma marca de ser morena... negra... não tinha um pingo de
marca.... Eu corria.... Eu brincava na praia com meu filho.... Eu corria pro meu
marido.... Hoje... quando eu olho pro meu corpo... quando vejo essas marcas... eu
fico triste por que dá tristeza... porque você relembrar que brincava...e hoje não estar
podendo fazer mais nada disso.... Hoje são os outros que... quer dizer... hoje é ele que
está cuidando de mim... Não tenho condições de fazer o que sempre gostei de fazer...
entendeu? Minhas coisas estão abandonadas lá na casa do irmão dele porque eu não
Quanto aos meus projetos... estou pensando... depois que estiver tudo
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pensamento que vem é o registro e a memória do que aconteceu... sabe? É como se
fosse um filme que está passando na minha cabeça a toda hora.... Mesmo que eu não
queira... ele vem... perturbando.... E o que aparece mais é o fogo queimando o meu
corpo e a gente gritando.... Rever e relembrar tudo isso dói tanto no corpo como na
alma e no coração.... Porque as vezes ... eu penso mais no meu filho... eu não penso
em mim somente... eu não penso em mim.... Eu penso no meu filho.... Eu quero sair
daqui pra cuidar do meu filho por que ele está na mão dos outros... na mão da minha
cunhada... mas eu não sei o que os outros podem fazer com meu filho.... Estou
falando do meu filho menor... de dois anos. Em relação ao outro... o mais velho... eu
me sinto triste porque ele é uma criança muito amorosa. Mas se Deus quiser... se
Deus me der força.... quando eu sair daqui eu vou entrar na justiça... eu vou fazer
qualquer coisa... vou tomar meu filho de volta. Porque quando eu dei meu filho eu
era de menor. Eu tinha quatorze anos.... quinze anos... aliás. Entendeu? Ele foi
registrado pelos meus pais... mas não pode. Porque tem um direito que você tem que
ir na justiça pedir autorização para registrar como filho.. mas nem pode registrar
como filho legítimo. Ela registrou como filho legítimo.... Não foi em justiça... não foi
em nada....
Quanto aos estudos.. só cursei até à 2ª série.. só. Mas sei ler...Embora esteja
falando sobre essas coisas... mas eu me sinto bem agora.... Acho bom estar falando....
É bom porque eu conversando assim... eu desabafo mais.... Você procura tirar tudo...
quando a gente conversa com alguém sobre alguma coisa que aconteceu... algum
Você vai procurando... é como se fosse uma alma perdida. Quando a gente morre o
nosso espírito não sai do corpo? Então... pra mim é a mesma coisa quando eu vou
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contando as histórias pra pessoa... vai saindo aos poucos... A alma perdida....que é a
dor dos sofrimentos que eu já passei.... Aí já vão saindo essas histórias da minha vida
toda.... Mas não é pra todo mundo que eu conto... mas só para as pessoas que eu
confio é que eu conto.... É alívio.... Parece que a cada dia que eu conto a minha
151
Narrativa 3: Leila, 17 anos
Vou falar sobre a minha experiência de tentar o suicídio. A primeira vez que
isso aconteceu foi lá na casa da minha mãe... só que ela não sabia. Eu tinha mais ou
menos de nove a dez anos. Eu levei uma surra imensa do meu padrasto... então eu
Passei bastante mal e fui parar no hospital.... já quase morrendo. O médico fez
sei.... Ser filha assim...do meu pai de criação... e saber que só ele me dá apoio...
não ligava pra mim.... Aí foi juntando tudo.... Após certo tempo aconteceram muitos
família... fez um escândalo. Eu tive que sair de casa... fugi.... E depois disseram que
Eu vivia pensando em me suicidar porque eu acho que pra pessoa que pensa
em se suicidar ela é muito pensativa... sabe? Não sei porque... eu... pelo menos... sou
muito pensativa....Tudo o que eu vou fazer eu penso muito... muito... muito mesmo...
antes de fazer.... Eu sou muito pensativa. Aí...junta tudo. Eu acho que pra pessoa
tentar se suicidar sempre tem que ter um motivo. A pessoa não vai tentar querer tirar
minha mãe... e ela sempre batia em mim...batia na minha cabeça.... Eu era sempre a
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que mais apanhava.... Eu tenho uma irmã mais nova que eu. Mas ela nunca bateu na
minha irmã....Bater pra deixar marca... era só em mim... Eu não sei porque... mas ela
só batia em mim pra deixar marca.... A última surra que eu levei do meu padrasto
quando eu morava lá... eu quase que morria mesmo.... Se não fossem os filhos da
minha madrinha eu tinha morrido... eu acho. Eu tinha uns dez anos... foi uma surra
que eu levei dele... Ele me esmurrou qui... na minha nuca... e eu saí de lá desmaiada.
Nunca me dei bem com a minha mãe.... Eu nunca disse nada com ela. Mas
agora... ela sempre achava alguma coisa pra discutir comigo... sempre... sempre. E
depois vieram os padrastos...Aí ela tinha ciúme de mim com os meus padrastos....
Com o primeiro... ela nunca teve nada. Tudo que eu via dele... eu dizia a ela. Aí eles
namorado... eu fui pra lá. Antes disso eu saí de casa.... Cheguei quase a tomar um
litro de cachaça.... Não tomei porque não deixaram... Isso foi há quatro anos atrás ou
mais ou menos cinco anos atrás.... Eu tinha em torno de doze anos.... Depois disso...
pensava em outra coisa... não.... Em cortava meus pulsos e botava uma corda no
pescoço... eu queria morrer.... Morrer era uma coisa em que eu pensava sempre...
sempre...sempre me senti rejeitada pela família.... porque eu sei que minhas tias
nunca gostaram de mim... as irmãs do meu pai. Porque as irmãs da minha mãe eu
153
entendo... porque o pessoal de fora gosta muito de mim... eu me dou super bem...
mas com a minha família... não. O pessoal não gosta de mim.... Eu não sei por que....
Eles têm raiva.... A minha mãe sempre falou que quando eu era pequenininha eles
sabe.... revolta.... Eles não queriam que me registrassem porque minha mãe era prima
dele.... Ela casou com ele... esse com quem eu moro.... Só que eu já era nascida e a
família não queria.... Ele é meu pai de criação.... Eu não conheço o meu verdadeiro
pai. Então ele... meu pai... me criou e até hoje me dá apoio...de mãe... não só de
mãe... como de pai também. Ele faz os dois papéis e eu gosto dele... muito... mas
Muitas vezes eu chego lá na casa da minha tia... e eu sinto que não sou bem
vinda. E eu sei que é isso porque quando a gente não é bem vinda... a gente
gosta de mim.... E eu...sou uma pessoa muito sentida.... Qualquer palavrinha que
“expludo”.... Tem hora que eu digo uma porção de coisas..... Eu não agüento nem o
meu pai..... Sem motivos... eu começo a dizer coisas até com meu pai. Sem razão
alguma... é uma revolta dentro de mim.... Eu não sei.... mas eu acho que é uma
meses... O médico sempre disse que eu não tinha nada de loucura... eles diziam que
eu era louca.... Não tinha nada de loucura... só precisava de um amor... de uma coisa
assim.... E lá na casa de saúde... eu não queria mais sair de lá... porque as enfermeiras
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de lá.... nossa... todas gostavam de mim.... Meu apelido lá era anjinho.... Eu era o
anjo da casa... a mais nova da casa.... Eu tinha doze anos... nesse meu primeiro
único remédio que eu tomava era complexo B... uma vitamina porque eu não queria
comer de jeito nenhum. O médico não passou nenhuma outra medicação.... E tomei
soro porque eu não queria comer de jeito nenhum. E eu me sentia muito rejeitada....
Mas o amor das meninas... que elas tinham por mim... o carinho da assistente
fiquei melhor... voltei pra casa. Quando eu voltei pra casa... começaram as mesmas
coisas.... Voltei pra casa do meu pai e aí houve uns desentendimentos.... Eu joguei
uma cadeira nele e só sei que fui internada de novo... e dessa vez... passei quatro
meses. Eu sei que nisso tudo eu fiquei um ano lá internada.... Depois eu voltei de
novo e dessa vez voltei pra casa da minha mãe. Lá em minha mãe eu fiquei tomando
remédio controlado.... Eu dormia demais..... Um dia... ela foi pra festa... quando
chegou....eu estava dormindo na cama dela... Eu só sei que ela disse que eu tinha tido
foi tão grande que eu comecei a quebrar as coisas dentro de casa.... Comecei a querer
bater nela porque eu sabia que eu não tinha feito aquilo... mas ela insistia... queria
que eu dissesse que tinha feito.... Só sei que me amarraram e me levaram pro hospital
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como me defender. A única maneira que eu achei de me defender foi ou me matar...
dizia que não me lembrava das pessoas.... Isso foi antes de eu me internar... depois
doida. Eu sei que esse namorado também chegou a dizer que eu era louca e que não
eu conheci um rapaz. Começamos a namorar e ele dizia que queria casar comigo...
me levou pra conhecer a família dele. Quando eu cheguei lá... me trataram super
bem... Só que depois eu descobri que ele tinha sido junto com uma mulher... mas eu
me sentia muito bem com ele e até hoje eu sinto falta dele... sabe.... Ele se suicidou....
Depois que esse rapaz se suicidou... aí meu pai bebia e dizia que eu era
culpada.... o irmão dele tentou bater em mim... tentou me matar.... Aí... depois disso
tudo eu fiz uma carta. E não sei nem onde anda essa carta... por onde anda. Eu fiz
uma carta e deixei lá na minha madrinha... a assistente social. Na hora que eu deixei
lá... ela pegou e não me deixou mais sair de lá... na unidade mista de saúde de Felipe
minha madrinha já tinha dito a ela que eu estava muito deprimida... mas ela nunca
podia me atender....
escola....coisa que eu nunca fiz....sempre fui uma excelente aluna... meu pai nunca foi
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chamado por mim pra ir à escola... mas dessa vez foi...precisava conversar com
alguém. E na hora que eu ia na minha psicóloga... ela sempre dizia que estava
ocupada demais... que não podia me atender... que meu dia era tal dia... e realmente
meu dia era na quinta-feira. E ela não podia me atender e aí é que eu me sentia só
mesmo.... Depois minha madrinha ligou pro SOS Criança... que veio me buscar.
Perguntaram porque eu queria me suicidar....Eu disse que já não agüentava mais meu
pai...minha família... contei tudo e então eles me levaram pra Casa de Passagem.
rejeitada pela minha família... porque meu pai dizia as coisas comigo.... Lá...
adolescentes eu não me dava muito bem. Eu acho que... pelo carinho que os
cordão no meu pescoço... ainda hoje sofro com isso... pois alguma coisa deslocou no
meu pescoço. Quem me socorreu foi a educadora. Meu pescoço estava preso e eu já
quase sem fôlego.... De tanto arrochar... eu sei que eu fiquei sem fôlego... sem fala...
tive que tomar nebulização... um monte de coisa. Depois disso... outra vez que eu
programas... e me conheciam porque elas tinham me tirado da água. Foram elas que
chamaram o salva-vidas porque elas tinham visto que eu queria morrer.... Dessa
vez... elas não deixaram... foram conversar comigo... dizendo que havia um meio
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melhor de superar isso... aquela dívida que eu tinha com o rapaz da raspadinha. E eu
não sabia a quem pedir ajuda... Ele disse que eu tinha que arrumar um dinheirinho de
Quando eu cheguei na praia eu fiquei amiga delas... aí elas disseram que tinha
um meio de vida melhor... você pode até ficar na praia. Mas pra eu ficar na praia eu
tinha que dizer a meu pai que tinha arrumado um emprego de manicure.... Eu sei que
fiquei indo pra praia... trabalhando... fazendo aquelas coisas... só fiz programa uma
vez. Fiquei lá três semanas.... Ia todo dia e voltava... e foi aí que o juizado me pegou.
Foi aí que eu conheci a psicóloga de lá... Quando fui pro juizado eu dizia a eles que
Eu achei que esse trabalho foi uma nova experiência.... Eu me sentia bem
sempre fica gostando muito de mim.... Eu não sei você... mas o pessoal sempre fica
gostando muito de mim. Assim... a gente ficou amigas...colegas... desde o dia que
elas me tiraram de dentro d’água... aí é que me dava mais força... mais vontade de
ir....
Maria Tereza... mas as meninas têm ciúme... eu não sabia disso. Eu sabia que as
meninas tinham um pouquinho de raiva de mim... mas eu não sabia que era ciúme
meus professores... aliás... a minha primeira professora que foi Elza... mora ali em
cima.
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Hoje eu me sinto a mesma pessoa... Às vezes... eu ainda me sinto rejeitada
pela minha família. E meu pai proibiu de ir lá pra minha mãe.... Eu acho que é ciúme
que ele tem.... A minha relação com o meu pai é normal.... Ele passa o dia fora... e eu
A minha iniciação sexual foi ruim demais...Eu tinha onze ou doze anos. Foi aí
que eu comecei a ser internada. A minha família disse que eu tinha tido relações com
aquele rapaz.... Mas eu disse que não tinha... e eu não tinha mesmo tido relações
sexuais com ele. Aí eu saí de casa e quando eu saí de casa... eu liguei pra ele...
dizendo que queria sair com ele.... Aí ele disse que não queria fazer isso comigo
porque ele gostava muito da minha família.... Ele era trabalhador demais. Mas eu
disse que eu queria porque eles estavam dizendo que eu fiz amor... sem eu ter feito e
agora eu ia fazer mesmo.... E foi aí que começou toda a minha complicação porque
eles queriam porque queriam que eu tivesse tido relações com esse rapaz.... E daí eu
o obriguei... eu o forcei... e disse que ele tinha que ir... porque se não fosse ele...
seria outro. Então ele aceitou... mas era com uma raiva tão grande que ele me deixou
toda machucada....E foi assim... muito ruim... eu não gostei.... E é por isso que eu
nunca dei muito valor.... Eu nunca tinha dado muito valor a minha vida sexual....
Vim começar a dar valor agora... depois que eu conheci esse rapaz com quem estou
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Narrativa 4: Márcia, 15 anos.
Vou contar sobre o que me aconteceu quando tentei tirar a minha própria
vida. Tudo aconteceu porque eu gostava muito de um rapaz. Mas ele ficava sempre
com minhas amigas.... Então...um dia... eu cheguei da praia e tinha bebido muito...
Aí cheguei... vi o veneno... que era soda cáustica... e tomei ..."– Eu quero morrer"!
Era o que eu pensava.... A soda cáustica que eu tomei era em pedrinha... acho que
Foi então que me levaram para o Hospital Walfredo Gurgel. Primeiro eu fui
Depois de mais ou menos 1 hora... me deram leite.... eu ainda cheguei a tomar dois
litros de soro.... Depois vim embora pra casa. Fiquei um pouco fraca durante a
Senti vontade de morrer por causa de um homem sem futuro.... Um rapaz sem
futuro... que não presta.... Eu pensei em morrer por causa dele.... Depois eu vi que
não adiantava... que ele tinha a mulher dele... tinha um filho.... Acho que ele queria
acabar com minha vida... sabe? Me fazendo sofrer.... Aí a gente se deixou depois
disso. Faz um bom tempo que a gente não se vê mais.... Depois eu vim trabalhar
aqui... e no final de semana eu vou pra lá....pro meu bairro...na semana eu também
costumo ir....
doía... acordava muito agitada. Era... sei lá... não tenho nem como falar.... Não tinha
160
apoio de ninguém... só da minha mãe.... Porque meu pai só fazia reclamar... dizer as
coisas comigo.... Dizer que eu não prestava...! Que ele já tinha raiva de mim porque
eu só vivia brigando lá... quando eu vou lá no meu bairro. A turma de lá tem raiva de
mim... e quer bater em mim. São umas vagabundas de lá...nojentas.... Elas vêm
brigar comigo... aí eu brigo também.... Meu pai só vive chorando por causa disso. Ele
fala que quem não presta sou eu. Aí...eu escuto o que ele tem pra falar.... Às vezes....
eu perco a paciência e começo a falar as coisas com ele... responder... dizer coisas
E isso que acontece comigo e com o meu pai... não é de agora...já acontece há
muito tempo... desde que eu fui junta... que ele é assim. Fui junta com treze anos....
Vivi com um rapaz lá... depois eu me separei dele... mas voltei. Só que depois que eu
retornei pra casa dele... ele começou a falar as coisas comigo de novo.... Uma porção
vou pra lá... Mas ainda vou em casa ver minha mãe....
praia.... Aí ele pediu pra namorar comigo... mas meu pai não deixou.... Queria
namorar em casa... mas meu pai não deixou... Ele era solteiro... Depois de três dias...
eu o encontrei numa festa.... Aí fui lá onde ele estava. Ele me chamou.... Chegando
bebi... sem saber que estava tomando isso. Não sabia que tinha essa droga dentro...
não. Aí tomei.... Comecei a ficar tonta.... Não via nada... minha vista escureceu. Ele
me chamou pra subir numa moto e me levou pra um motel. Fez o que quis comigo.
Aí... no outro dia... umas três horas da manhã... eu acordei... chamando ele pra ir pra
casa... perguntando o que tinha acontecido.... Então ele disse que eu já era mulher.
161
Eu respondi que não... eu não era mulher.... Me lembro que era dia 22 de dezembro.
Quando cheguei em casa... contei pro meu irmão mais velho....Ele então contou pra
minha mãe. Aí começou aquela discussão... minha mãe chorando... porque eu era
ainda uma criança.... Meu pai chegou de viagem e queria ir atrás dele... queria matar
ele.... Denunciou ele na justiça.... A delegada queria que eu casasse com ele. Eu não
queria casar... que não gostava dele... nem ele de mim.... Ele não queria casar
juntar com ele.... Depois de muito tempo... eu comecei a gostar dele. A gente então
se juntou... por causa da delegada... que forçou muito... Mas todo dia ele batia em
mim.... Só vivia batendo em mim.... Até mulher ele levava lá pra dentro de onde a
gente morava... um quarto...Eu só vivia chorando atrás dele...e ele dando surra em
mim todo dia.... Aí a gente se deixou. Depois que eu deixei ele... eu conheci umas
meninas lá... todo dia bebia... chegava de manhã em casa... isso acontecia todo dia....
Aí eu saía com homem... bêbada. Depois eu deixei disso. Então conheci um rapaz
que é casado.... Esse por quem eu tentei me matar.... Eu já sofri tanto... assim... por
Agora... quando eu olho pra minha vida... quando eu vou dormir e penso
como era antes... eu começo a chorar.... mas agora... não. Antes eu vivia bebendo...
bagunçando no meio da rua... brigando... Aí fico pensando como era antes e como é
agora. Antes... era desse mesmo jeito que estou falando... bebendo todo dia....
Sempre foi assim... sempre... Antes foi... agora não... eu estou mais quieta. Mas antes
Isso tudo aconteceu dos treze anos aos quatorze anos... eu vivia assim..
bebendo. Antes eu vivia dentro de casa.... Não saía.... Era do colégio pra dentro de
162
casa... não arredava o pé de dentro de casa. A minha vida era melhor... Ninguém
nunca dizia que eu era perdida... ou vadia.... Minha vida sempre foi boa. Meu pai...
pra onde ia... pra qualquer canto... me levava. Quem conhece aquele ditado que diz
que o amor de pai não acaba nunca? Mas o amor dele era muito bonito comigo...
sempre me senti amada por ele.... Agora não.... Sentia... agora só me sinto amada por
minha mãe.... Porque a única pessoa que eu gosto ali é dela... ela me apoiou em
tudo.... Mesmo eu fazendo coisas erradas... ela me apoiava. Me tratava com carinho...
amor... Agora é um pouco diferente... Sinto falta do amor do meu pai.... Se ele me
tratasse como era antes... eu acho que eu não vivia trabalhando dentro da casa dos
pessoa do mundo pra ele.... Eu gostaria que ele me tratasse melhor.... Mas nunca
conversei com ele sobre isso... Não assim... A nossa conversa era assim: primeiro ele
pedia pra eu esquecer o rapaz com quem eu vivia...que era casado. Ele não entendia
Eu ainda gosto daquele rapaz... mas não como era antes. Tentei me matar por
causa dele... Ainda gosto... mas procuro evitar... me afastar dele... pra minha vida se
tornar melhor.... Ainda estou ligada nele... mas faz um bom tempo que não o vejo....
Ele está com uma menina que era amiga minha. Tá namorando com ela... Continua
casado...mas namorando com ela.... Eu me sinto triste com isso... mas não posso
fazer nada.... A vida é deles... é dela... Eles que façam a vida deles pra lá. Eu gosto
dele.... Mas não posso fazer nada.... Eu já tentei fazer tantas das coisas... tentar me
matar... e toda vez ele chegava e falava: "eu gosto muito de você... você é isso... você
é aquilo pra mim... eu nunca vou deixar você". Mas ele dizia que eu era criança
demais... aí quem se deu mal nessa história fui eu... não foi ele. Ele só vive falando
163
que está com um bocado de menina de família... mocinha... e pra que ele ia querer
São os amigos dele que me contam isso... mas eu não acredito não.... Apesar
de me sentir muito triste com tudo isso... por tudo que tenho passado... não tenho
feito nada pra mudar essa situação.... Trabalho aqui e aluguei um quartinho pra
conversando com minha mãe.... Quando meu pai chega... peço a benção a ele.... Mas
ele não quer conversar comigo... ele não conversa... Se eu pedir dinheiro pra ir numa
festa... no SESI.. por exemplo... ou em qualquer lugar... ele não me dá. Ele me manda
pedir aos meus machos! É por isso que eu criei raiva dele.... Um tipo de ódio assim...
que eu não sei o que é ódio.... Dá uma raiva... assim... Que eu acho que se ele
chegasse pra mim e conversasse bem direitinho... eu seria a filha melhor do mundo
pra ele....
Gostaria de ouví-lo dizer que gostava de mim.... Que me pedisse pra voltar
pra casa... como era antes.... Acho que é por isso que não fico em casa quando vou
pra lá.... Eu moro nesse quartinho...que eu aluguei.... Só tem minha cama... minha
cômoda... minhas roupas... alguns objetos meus... íntimos. Não tem fogão...
geladeira... nem nada.... Às vezes... quando eu vou pra lá... no final de semana... eu
não como nada.. só pra não ir lá comer... pra ele não falar. Tudo o que ele fala é que
eu só vou pra casa comer e tomar banho e depois vou pro meio da rua...
vagabundear.... Por isso que eu não vou nem lá... Prefiro ficar onde eu estou morando
no final de semana...
passo a semana aqui e final de semana lá... às vezes eu fico aqui e outras vezes eu
164
vou em dia de semana pra lá. Vou conversar com uma amiga minha que está
Acho que meu pai não me compreende e nem a ninguém... lá em casa. Não
me sinto tratada do jeito que gostaria.... Por isso eu sinto ódio dentro de mim...
Quando eu pego em dinheiro vou logo beber. Atualmente... só bebo às vezes... Antes
eu bebia muito... agora não... parei mais... Tinha dia que eu não passava um dia
mas não... aí volto no outro dia à realidade. Por isso que eu deixei mais de beber....
Cada vez que eu me lembrava de tudo... ia beber de novo. E assim... ia... Quando
bebo... começo a chorar... a desabafar... não tem quase ninguém com quem eu possa
conversar... só tem uma amiga mesmo que eu converso meus assuntos com ela. É
essa amiga que está grávida.... Só com ela que eu converso mesmo.... Às vezes... ela
Com exceção da bebida... eu não uso outro tipo de droga. A única coisa que
eu fiz na minha vida foi tomar esse comprimido que eu nem sabia que tinha na minha
bebida. Quem me contou sobre isso foram os amigos dele... que o viram colocando
na bebida.... No outro dia me contaram...e aí falei pro meu pai. A vontade do meu pai
era que eu dissesse à delegada que eu tinha sido estuprada... que havia sido forçada....
Mas eu não queria isso.... Um dia ele vai pagar o que fez comigo e com outras.
Embora eu não estivesse sabendo o que se passava... por conta da droga... eu também
não queria que ele passasse o resto da vida dentro das grades... preso.... Um dia ele
165
Hoje... pensando na minha vontade de morrer... eu achava... naquele tempo...
que eu fiz isso.... que se eu morresse as coisas iam melhorar.... e eu não ia sofrer
mais.... depois... ao mesmo tempo eu pensei: "– eu vou morrer... todo mundo vai
ficar aí... rindo da minha cara... que eu morri por causa de um homem." Eu falei pra
mim mesma: "eu não! Eu vou curtir minha vida". Eu sou muito nova... eu tenho
quinze anos agora... eu ainda vou aproveitar muito.... Que um dia vai chegar uma
pessoa que me faça feliz... Eu estou esperando isso.... E também não estou fazendo
Eu tenho planos de estudar. Eu fiz até a quarta série... mas saí do colégio... no
tempo em que me juntei àquele rapaz.... Eu não penso nem em me casar... mas em ter
um filho.... Teve um tempo que eu acho que estive grávida... não sei.... Foi desse
rapaz casado... então minha mãe me mandou tomar remédio pra abortar. Pois...
realmente... ter um filho de um homem casado... Ele já não tem o que dar ao filho
dele... que dirá ao meu! Aí eu tomei alguns remédios e então a minha menstruação
voltou... depois de muito tempo... Atualmente não tenho vida sexual. Não tenho
namorado... nem quero... agora não. Mas antes eu me prevenia pra não engravidar...
esqueci... essa que eu falei e que eu pensei que estava grávida... eu acho que estava.
Depois daquela vez que tentei me matar... nunca mais pensei nisso. Agora...
pelo contrário... eu faço amizades com as meninas que estão com ele. Ainda assim...
ando brigando com algumas delas.... Estou assim toda marcada por conta de umas
brigas com uma menina que sai com ele... pois ela falou que eu estou com ele... sem
estar. Aí ela veio bater no meu rosto... deu um tapa no meu rosto... aí eu briguei com
166
ela. Isso aconteceu somente duas vezes... durante uma semana. Eu briguei com essa
167
Narrativa 5: Marta, 15 anos
que veio algo na minha cabeça... Aí eu pensei: "Eu vou fazer isso que é melhor pra
pensando... Aí veio aquela agonia... aquela coisa na minha cabeça: "Faz... Faz... Faz
isso..." Foi quando eu peguei o lençol e ... enrolei assim no pescoço... aí eu fiquei
meio agoniada. Aí minha mãe bateu na porta do quarto. Como eu não tinha
vontade. Pensei: "Vou fazer isso que é melhor pra mim...pra todo mundo". Aí eu
perguntou porque eu queria fazer isso. Na hora...eu fiquei tão agoniada... sei lá...! Eu
É que eu gosto muito da minha mãe... Não vale a pena fazer isso.
Primeiro...que eu vou fazer ela sofrer.... Aí eu...Não vou fazer isso não...não.... Não
vale a pena... mas toda vez que eu fico desse jeito...me dá vontade....
Às vezes eu me sinto assim....Mas não sei dizer o que me faz sentir desse
ah... eu vou resolver assim...! Mas...às vezes... eu acho que não vale a pena... não....
Tudo isso é por conta dos problemas que eu quero resolver e não consigo.
Aí... eu fico..."Não vou fazer isso...não..." Porque eu tenho pena da minha mãe
168
A primeira vez que eu tentei isso... eu sei lá... eu também me arrependi... Eu
tentei uma outra vez...que eu peguei o negócio do fogão e queria tomar...Foi com um
Essa tentativa com o lençol faz uns dois meses...ou uns três... E essa tentativa
com o líquido foi depois...Acho que foi mais ou menos há um mês atrás...Eu estava
negócio debaixo da pia.... Aí eu fui lá pra ver o que era... Vi que era o líquido de
tomei só um pouquinho assim... não muito. Mas na hora que eu fui tomar a minha
mãe viu. Aí eu fiquei numa agonia... Ela falou: "você ia tomar... não é"? Eu respondi
que não...Eu queria morrer pra desistir de tudo... Eu sabia que aquele limpador de
fogão era veneno...Desde uma vez que minha mãe foi limpar o fogão e ela me
Mas só foi isso que aconteceu... Quando eu penso na minha mãe... eu não
quero fazer isso... não....Acho que o que me segura... o que segura a minha vontade
de fazer isso é a minha mãe. Não vale a pena fazer isso... não....
todos os problemas...Aí eu digo: "Eu vou fazer isso... vou resolver tudo..." mas eu
acho que não....Queria resolver os problemas... Não quero brigar com meu irmão...Eu
Só vejo problemas...na vida..! São uns problemas bestas... tem coisa demais
169
isso...Essas coisas...de vez em quando me perturbam...Mas agora até que está
melhorando... Tem horas que eu ainda penso em morrer... Até um dia desses eu ainda
pensava... Agora até que melhorou...Antes de tentar a primeira vez eu nunca havia
pensado nisso...
ninguém acreditava em mim... meu pai... meu irmão... não acreditavam em mim...Por
isso...eu achava que eles não gostavam de mim...Foi quando eu resolvi fazer isso...
raiva...Essa raiva eu sinto de tudo... Meu pai não se entendia com meu
irmão...brigava com ele.... e ele sai gritando... E isso... eu não agüento mais...Mas no
dia que eu fiz isso eu não tinha brigado com eles...Só veio na minha cabeça: "Eu vou
Hoje ...eu penso mais ou menos assim: "Ah... eu fiz errado... não devia ter
feito isso. Porque...eu... destruindo a minha vida... quem ia morrer sou eu...não eles.
Pra eles ia ficar tudo bem...e eu... não". Aí eu pensei e disse... não. Não vou fazer
isso...Não vale a pena.... Não vou tirar a minha vida... não. Só quem tira é Deus...e eu
não é assim que se resolve... não...Eu me achava culpada por todos os problemas...
Mas eu não sou culpada por nada... não. Sei lá...! Eu me preocupo... mas... fazer
isso...não....
170
Narrativa 6- Alex, 17 anos.
Meu nome é Alex... tenho dezessete anos... farei dezoito em outubro. Vou
falar pra você sobre o que passei quando quis me matar. Isso aconteceu de
Minha mãe morreu queimada com álcool...por causa do meu padrasto. Mas
muita gente dizia que foi culpa minha... Dizia que era culpa minha porque eu fazia
muita raiva a minha mãe. Aí...Aquilo foi ficando na minha cabeça....foi ficando.....
Eu vivia dizendo aos meus amigos que ia fazer isso. Ninguém acreditava...... E um
dia....eu bebi... bebi...bebi...aí fui pra casa...e pensava em fazer isso nesse dia. E de
toquei fogo....
metade da roupa rasgada.... E foi por isso que eu ainda estou vivo... Consegui sair
dessa.... Só vivia brigando em festa... fazendo arruaça..... Mas não foi sempre
assim... não....No tempo em que minha mãe era viva... não era assim não.... Faz dois
anos que a minha mãe morreu....Eu tinha então 16 anos mais ou menos...Ela morreu
mim....
com raiva de mim... dizia que quem matou minha mãe fui eu. Aí eu ficava com
que fui eu mesmo? Ficava em dúvida se eu tinha mesmo culpa....Será que fui eu
171
mesmo? Será que ela morreu mesmo por causa de mim? Eu não sei....Eu não sei o
que pensar sobre isso....não sei...eu não sei.... Eu me arrependi do que eu fiz. Agora
tenho que levantar a cabeça e seguir a vida pra frente.... Não pensar em fazer de
novo....
A minha vida no tempo em que eu morava com a minha mãe era uma vida
normal. Ela tinha um bar....Eu não bebia.... bebia pouco.... Ela não gostava porque eu
bebia.... Vivia bem normal como a vida que qualquer um vive. Morávamos só nós
dois....mas tenho uma irmã....Mas por parte de pai tenho outros irmãos....Meu pai
morreu num acidente de carro... há mais ou menos cinco anos.....nessa época ele e
nasci...a minha mãe não podia ficar comigo....porque ela tinha uma casa de drinks....
quando a minha avó morreu... ela disse "– Não...! Vou acabar com isso". Aí
Quanto ao meu pai...não me lembro dele não....Só encontrei com ele quando
ele trabalhava na Coca. Mas eu não me lembro muito do jeito dele... não. Me lembro
Dessa época... eu me lembro do dia que vieram me dar a notícia: "– seu pai
morreu". Eu não vi... não cheguei a ver.... Eu vi quando ele estava vivo.... Mas
quando vieram dar a notícia... ele já tinha se enterrado há uns cinco dias. Foi quando
eu soube da sua morte.....Mas minha mãe já sabia.... Só que nesse tempo eu morava
com a minha avó. Aí com um tempinho... minha avó morreu... aí eu tive que ir morar
172
com a minha mãe....e a partir de então fiquei morando com ela..... A minha avó
morreu logo depois do meu pai....mais ou menos uns três ou quatro meses
depois....Ela morreu de câncer.... Ela já vinha sentindo dores... só que ela não dizia
O meu relacionamento com a minha mãe era bom. Ela só não gostava porque
queria que eu fosse pro colégio... eu dizia que ia...mas não ia. Saía para as festas...Por
conta disso tudo..... Aí muita gente....quando ela morreu veio dizer que foi culpa
não tinha coragem.... Duas vezes... por duas vezes eu não tive coragem....Nessas
me encontrar com ela...Queria saber por quê ela fez aquilo.....Se foi por minha
causa...se não foi.....Queria tirar essa dúvida...E..descansar onde ela está....Só que eu
Depois que minha mãe morreu eu fiquei morando com minha tia. Aí depois
vim pra casa de uma outra tia aqui ... foi onde aconteceu....
tempo que morei na casa da minha tia....a minha vida foi normal. Mas aí eu comecei
173
a beber... beber...de novo.... Então disse que não me queria mais lá....Foi quando eu
fui pra casa de outra tia...em outro bairro....Foi onde eu toquei fogo em mim.... E aí
vim pra cá...para o hospital..... Mas agora eu vou morar com a minha irmã. A minha
irmã mora só... separou-se do marido....depois que a minha avó morreu... ela
casou....eu fui morar com ela e o marido.... E depois que a minha mãe mudou de
No dia em que tentei me matar eu não estava sozinho em casa.....A minha tia
minha bermuda jeans... senão tinha queimado tudo. Eu não tinha ficado vivo...
não....Porque eu ensopei a roupa... vesti.....Eu estava com uma bermuda jeans e uma
morrer....
eu fiquei pensando... na minha irmã – "o que é que ela ia pensar, não é?" Porque eu
sempre pensava na minha irmã e na minha sobrinha.... Eu gosto muito delas duas....
Aí eu pensava... Só...só nisso...mas não chegava a fazer.....Só que dessa vez não
consegui evitar....A minha sorte foi o vizinho. Se não fosse ele eu estaria morto.....
Eu sempre dei muito trabalho pra minha mãe....Eu dizia que ia pro
174
chegava de manhã. Aí isso também... ela ia ficando com raiva...não é.?...Acho que
Caixa.... Acho que preocupava muito ela. Se preocupava muito comigo... Ela não
queria que faltasse nada pra mim. Aí ela foi se preocupando... se preocupando... aí
estudar......
Também pretendo fazer um curso para ter uma profissão. Quero estudar o dia
Esquecer as amizades... Pois todo o tempo que eu estou aqui ninguém veio me ver...
passei muito mal... Mal... mesmo.... Até o médico chegou a dizer que... ... porque eu
cheguei muito queimado... veio dizer que ... eu ia precisar de cirurgia...pra enxerto.
costas ...
Já com a minha avó era bom.... Eu gostava muito dela.... Sofri muito com a
dela...... senti muito a morte dela...foram duas perdas, não é..? Soube da morte do
175
CAPÍTULO VI
COMENTÁRIOS E INTERPRETAÇÃO
tentativa de suicídio, aos motivos alegados, às dores, às histórias de vida e a tudo que
inferior à média, com exceção de Marta, uma adolescente cujos pais são funcionários
públicos, de classe média baixa, o que, de certa forma, não chega a representar uma
e vinte anos, com entrevistas realizadas entre agosto de 1999 e julho de 2000.
sempre buscar uma explicação para o seu viver e para o morrer também. Talvez por
essa razão este aspecto tenha sido observado nas narrativas dos adolescentes sobre as
suas experiências de querer morrer. Percebe-se, em todas elas, uma fala que aponta
176
experiência narrada é sempre relacionada a momentos de vida e fatos que
são apontados como geradores da crise que sinaliza para a morte como uma saída.
(1991), Botega et al (1995), Cassorla (1984) e Mioto (1994) entre outros, que
177
seja, um contexto de dificuldades de ordem pessoal, social e familiar, semelhante à
Leila, têm história de adoção, o que lhes favorece momentos de confusão e conflitos
em relação à sua identidade e à sua aceitação pelos pais e pela família. A conturbada
história de Valda, que acaba entrando na prostituição, e com um filho que ela coloca
a tais adversidades, são fatos relatados por ela como fatores causadores de grandes
foi deturpada logo no início da vida, com a rejeição dos pais, com a ausência do
olhar de acolhida dos pais, um olhar que diz “tenho orgulho do filho que gerei, veja
como ele(a) é lindo(a)”. Essa rejeição do olhar acolhedor dos pais impede a formação
jovens. Há uma razão aparente e consciente que explica o ato que cada um cometeu
contra si mesmo, o que mostra uma certa compreensibilidade dos motivos de cada
178
Senti vontade de morrer por causa de um homem sem futuro....
Um rapaz sem futuro... que não presta.... Eu pensei em morrer
por causa dele....
Marta:
Alex:
enfim, pelos outros do mundo. Aqui vê-se a presença da cotidianidade na qual esses
jovens estão absorvidos, na ruína e decadência que a absorção de um outro que não é
Na verdade, uma crise, como diz Procópio (1999), que surge na convivência
com um desses outros concretos serve para deixar à mostra e revelar uma angústia
que já está aí, porque é originária do SER, como nos faz ver Heidegger (1927). E
que, ao ser descoberta, diante da dor que provoca, surge a necessidade de nomeá-la,
179
de fazê-la compreensível, a fim de aliviar o desespero de não se saber. E o que pode
acontecer a seguir, é o que geralmente ocorre num momento desses. Não raro se
qual o jovem não se apropria, como sendo parte da sua existência. É a revelação do
ser e também do não ser. Porque é nessa dimensão de velamento e desvelamento que
mudança nos rumos da existência. Como disse Heidegger (1927), nesse momento
duas alternativas se colocam diante do ser: continuar na ruína, ou seja, absorvido pela
Como se pode ver, nos depoimentos mostrados aqui, a alternativa tem sido uma
homem olhar de frente a sua finitude, porque ao fazê-lo, além de enfrentar a certeza
da morte, ele ainda tem que assumir a vida. A possibilidade da morte revela a vida
que se vive. E enfrentar a realidade da vida que se tem é tão frustrante, que em
decorrem.A morte, sendo uma possibilidade, está presente no ser-aí e é também uma
possibilidade do homem.
180
A natureza dessa dor é muito bem reconhecida pelas palavras de Rosa
Entretanto, a capacidade para ser autêntico é inerente ao "self ", por ser
(1978). Este autor refere-se, com muita pertinência, ao processo de vida que ocorre
com alguém que tenta o suicídio. Diz ele que a maior forma de ansiedade, por
modos de ser nada mais representam do que um não-ser. E quando a ansiedade chega
ao seu mais alto grau, aos seus limites mais extremos, desenvolve-se o terror e o
neste trabalho.
20
Rosa, J.T. (1998, p. 82). Ese tipo de dolor está asociado com la pérdida de un estado mental y de
un equilibrio psicológico en particular. En general el dolor está unido a una mayor percepción del
self y de la realidad de otras personas (...) Por lo tanto, está ligada a una sensación de tener uma
existencia separada del outro.
181
É preciso compreender que, para esses jovens, a tarefa de ser autêntico, de se
ocorrer pelas diversas circunstâncias que envolvem a sua existência. Além de serem
jovens em plena adolescência, momento este marcado pelos conflitos próprios desta
fase e por aqueles anteriores que agora são revividos, ainda têm que lidar, e como se
vê, de forma dolorosa, com as vicissitudes da sua vida real, seja no âmbito familiar,
seja no contexto social mais amplo. São geralmente famílias desestruturadas, que não
favorecem vínculos afetivos positivos com os seus filhos, isso quando os assume;
quando não, os jogam no mundo para que eles enfrentem as suas mudanças e
depoimentos, não possuem recursos para lidar com a problemática dos seus
adolescentes.
jovens. Pois isso seria negar todas as evidências de que este ato acontece em todas as
sociedades, principalmente nas mais desenvolvidas e que não têm esse tipo de
21
Buarque, C. A cortina de ouro, R.J., Paz e Terra, 1995.
182
...tanto a psicopatologia dos pais como a das crianças ambas
podem ser dependentes de um terceiro fator, a qualidade de vida
a que estão submetidas estas famílias: desvantagens sociais,
exclusão social e econômica; conflitos conjugais, oriundos de
dificuldades emocionais associadas à vivência da paternidade e
maternidade responsáveis; e outras adversidades associadas à
vida familiar. (p. 558).
humano.
A relação com a minha mãe sempre foi mal. Sempre foi bruta,
sempre foi ruim. Porque ela sempre me humilhava e me
maltratava. Ela sempre passou em rosto que eu era negra, que eu
não era filha dela. Toda vez que eu fazia alguma coisa errada,
ela me batia. Isso desde que eu era pequena.
E Márcia:
183
abandonou....Antes de me abandonar ela já não ligava pra
mim.... Aí foi juntando tudo...
Como propõe Rogers (1975), as pessoas- critério representam o outro que irá
servir de referências para esse novo ser adulto que no mundo se constitui,
que se evidencia, claramente, na história de Alex, que nunca contou com a figura de
um pai e cuja mãe o deixa entregue à avó, para seguir a sua vida de "proprietária de
casa de drinks". E também na de Valda, que é adotada, e que não é aceita pelo pai em
função da sua cor da pele e que reclama o fato de não ter podido viver uma infância e
adolescência normais: Eu nunca tive uma adolescência... nunca soube o que foi ter
prostituição porque foi minha mãe de criação que me botou nisso. E na história de
Leila, cuja mãe a rejeita, não permite que o padrasto a adote e cuja família, as tias,
segundo ela, não a aceitam e que, além de tudo, ainda passou pela prostituição:
184
Muitas vezes eu chego lá na casa da minha tia... e eu sinto que
não sou bem vinda. E eu sei que é isso porque quando a gente
não é bem vinda... a gente sente....Aí chego na casa da outra...
do mesmo jeito.... Aí começa a revolta e o desespero
como deveria ser vivida. Ao invés disso, elas são obrigadas, pelas circunstâncias
sexual foi ruim demais...Eu tinha onze ou doze anos. Foi aí que eu comecei a ser
dos parceiros dessas meninas, mas também das suas famílias, revelando assim, os
filha para outras alternativas de trabalho mais dignas. Dessa forma, essas jovens são
185
As palavras de Leila são um exemplo da condição de abandono e desproteção
em que essas meninas muitas vezes se encontram. A morte, então, surge como uma
Não são raras a utilização de drogas, tanto as lícitas, nos casos de Elizabete,
Márcia e Alex, que faziam uso de bebidas alcoólicas, quanto as ilícitas, no caso
Elizabete e Leila.
186
São histórias de vida que contribuem para a formação de um self inautêntico,
no-mundo distanciado do seu ser verdadeiro e onde não há lugar para o respeito e
outro que não é o seu ser verdadeiro, gera esses comportamentos de distanciamento
desses jovens. Fica muito clara essa questão nas palavras de Elizabete, que diz,
textualmente:
... por isso me sinto muito mal... por saber que eles não sabem...
por eles pensarem que eu sou a boazinha. Na verdade... estou
escondendo a verdade... como se estivesse escondendo uma
parte de mim... a de que não sou tão boazinha. Aí me pergunto:
"-por que será?" Eu não estou... realmente... com meus pés no
chão....Não estar com os pés no chão é não estar sendo aquilo
que eu acho que sou.... já que eu não era assim... entende?
entender o que era aquilo que eu sentia... qual o motivo que me fazia sentir daquele
jeito....
mesma para saber que ela não era aquilo; ainda que não soubesse o que seria. É a
e a experiência, como acredita Morato (1987, p.34), pois Elizabete, apesar de tudo,
187
revela uma consciência de não estar sendo ela mesma. É como se estivesse numa
inautenticidade.
inautêntica, não verdadeira, tem em suas bases a busca de aceitação pelo outro.
argumentos que nos ajudam a entender essa dinâmica que envolve, sempre, uma
culpa por nunca estar sendo como deveria ser, ou seja, pela impossibilidade de
Leila:
188
Porque as irmãs da minha mãe eu não conheço....Minha mãe
muito pior....Nunca gostaram de mim.
Elizabete :
Márcia:
Quando meu pai chega... peço a benção a ele.... Mas ele não
quer conversar comigo... ele não conversa...Gostaria de ouví-lo
dizer que gostava de mim.... Que me pedisse pra voltar pra
casa... como era antes.... Acho que meu pai não me compreende
e nem a ninguém... lá em casa. Não me sinto tratada do jeito que
gostaria.... Por isso eu sinto ódio dentro de mim... Nessa hora eu
só penso em me suicidar... em me matar.
Marta:
189
Alex:
falas, revelam as pessoas que eles são nesse momento, vivenciando sentimentos de
não serem aceitos e reconhecidos como pessoa. Nas palavras de Elizabete, Leila e
amadas tal como se percebem; e o sofrimento por não estarem inteiras na sua relação
com os pais, com o outro. Podemos dizer que esta seria uma crise instaurada pela
Morato (1987), se o self não existe isoladamente, mas está no mundo com os outros,
não existir nem para si e nem para o outro, de não ser-com os outros do seu mundo,
190
Ao mesmo tempo, as falas desses jovens dizem de uma impulsividade que se
impulsos de se matar são evidentes, assim como constata-se uma repetição dos
num determinado momento vem à tona, com uma carga de revolta por não existir
para o outro. Aqui revela-se a necessidade que todos temos de estar-com. E a revolta
de não poder ser reconhecido existencialmente e amado pelo outro pode provocar
morte, que é também uma maneira de dizer: eu existo! Olhem pra mim! Ou seja, o
sentimento de não existir para o outro, leva à angústia; e então, sumir, morrer, torna-
adolescentes dizem da sua falta de amigas, de não ter com quem trocar as suas
carência de vínculos afetivos que possam servir de continente às angústias por que
passam esses jovens, sejam no contexto familiar ou no social. Pode ser em razão
dessa falta que alguns deles recorrem às drogas, à vida sexual promíscua e mesmo
aos conflitos com os seus pares na rua e escolas. Os comportamentos hostis, assim
podem estar representando uma defesa ou negação da angústia de não ser amado.
191
As experiências narradas nos fazem ver que viver na impropriedade nos
forma verdadeira. Elizabete nos diz, na verdade, que não consegue contactar com a
experiência do seu ser. Confunde a experiência autêntica de ser com uma imagem
que idealiza de si mesma, uma vez que é esta a esperada pelos outros e a quem ela
satisfaz, para, assim, sentir-se amada. Em outras palavras, podemos dizer que
inautenticidade e isso significou perder uma experiência em que o seu verdadeiro ser
se revelou, porém não pode ser apreendido ou apropriado nos momentos da sua
existência, levando-a a uma condição de alienação que cada vez mais, a faz perder-se
e a experiência (p.34).
vê agravado pela confusão gerada pelas circunstâncias desfavoráveis com que cada
(1978), quando afirma que o "eu" se reporta ao si-mesmo para fins de orientação
192
constituir-se no núcleo da neurose, como afirma Burton (ibidem): ser capaz de viver
futuro.
Elizabete diz:
Não estar com os pés no chão é não estar sendo aquilo que eu
acho que sou.... já que eu não era assim... entende? Só que
depois parei... estacionei... acabou.... No próprio trabalho... às
vezes... eu digo que estou muito desgostosa... mas não sei qual o
motivo.
E Alex:
E ainda Valda:
193
O self se perde num tempo que não foi e que já não é. O self ou a experiência
não encontra lugar no tempo que é vivido. Então o desespero e o tempo de um não-
ser se instala.
novo, distinto daquele que o absorveu. Ou seja, a descrença de que a vida possa ser
vivida de uma outra maneira. É também uma recusa em continuar sendo como antes.
apropriar da vida, do seu ser, ainda que seja eliminando-o, o que não deixa de ser
uma forma de assumir o seu destino, como um ser-para-a-morte. Isso pode ser
percebido nas experiências das jovens deste estudo, que colocam a tentativa de morte
que significa um não apropriar-se da sua existência, como se percebe nas palavras de
Márcia:
conseguiu perceber uma outra alternativa para a sua existência. Continua sem
apropriar-se do seu ser, e à espera de que alguém faça isso por ela. Na verdade,
194
consigo compreender que esta é uma tarefa muito árdua para essa menina de quinze
anos, que desde os treze foi expulsa de casa pelo pai, que a rejeita até hoje. Ela teve
sentidos, mas sem condições reais para sê-lo, em razão da natural imaturidade da
ela precisava de referências, de acolhida para a sua dor, tendo vivenciado uma
afetivos para desenvolver a sua identidade adulta, eis que esse processo é abortado e,
verdade, essa responsabilidade que ela coloca no outro pela mudança da sua vida,
cumprir a tarefa não alcançada pelo seu pai real. Pode representar uma tentativa de
reparação daquilo que a vida lhe negou. O seu coração se ressente e sofre por esse
195
Pode ser compreendida, também, em se tratando, principalmente, do
inclui a finitude, a morte, que não se sabe quando virá e, assim, tenta-se antecipá-la.
morte, deve acolher, em seu projeto, essa possibilidade. Viver um projeto que inclua
Tentar sair da vida pode ser entendido como uma recusa a enfrentar a
responsabilidade por ela. Seria antecipar o final do ser, que é a morte. Como diz Boss
(1981, p. 40), ...o futuro do ser humano, ele só o alcança completamente no momento
da morte. A culpa, tal como a angústia, por ser inerente ao homem, jamais dela este
psicológico ou psicodinâmico, sobra a culpa, já que esta se constitui pela falta, que
capacidade inata do ser humano para crescer; e a presença de uma tendência que
poder- ser que se encontra subjacente a essa formulação teórica. Aqui se identificam,
poder-ser-do indivíduo.
196
Vista sob o ângulo também da culpa, do ficar-a-dever, no dizer de Boss, a
vácuo do não-ser. Seria uma entrega a esse sentimento indissociável do ser humano,
que é a culpa.
197
CAPÍTULO VII
haverão de permanecer assim, uma vez que este estudo jamais pretendeu alcançar
inspiradores do estudo.
marcados alguns aspectos e idéias que se revelam nesta etapa do trabalho, e outras
multideterminadas, o que torna este tema de acesso difícil e complexo, não sendo
198
possível, dessa maneira, apontar-se as verdadeiras causas ou motivos que levam
fácil abordagem, uma vez que o acesso a quem a cometeu poderia facilitar o
conhecimento ou descobrimento do que levou tal pessoa a querer não viver. Ledo
engano, pois, dependendo do ângulo pelo qual se considere esta questão, a "verdade"
deste ato continua velada e desconhecida, inclusive para a própria pessoa que a
oferecem respostas para os motivos que levam alguém a tentar se matar. Porém
muitas ficam ao nível das hipóteses, o que considero a conduta mais lúcida, por
homem pelo fato de diferenciar-se dos outros seres do mundo por constituir-se numa
na sua experiência, sem que se perca a principal característica que nos distingue no
todos os outros seres. Nesse momento recorro às palavras de Morato (1987), que
199
Pensar dessa forma nos levou a tratar o self, constructo desenvolvido por
Carl Rogers, como suporte teórico sobre o qual este trabalho se orientou.
Duvidávamos se o self, essa noção que diz sobre o que cada pessoa é ou se imagina
ser em cada momento da sua existência, daria conta de uma compreensão mais
mais, que o ser humano é muito mais do que uma imagem pela qual ele se concebe e
teoria desenvolvida por Rogers. Podemos dizer que o self não diz tudo, mas também
não podemos negar que nos ajuda a esclarecer esse entendimento. O self é parte de
um todo deste ser que se chama humano, o qual habita e apreende um mundo que já
está aí quando ele é lançado na vida. O self é a parte do ser-aí que reflete a
existência, através das experiências dos jovens deste estudo. Foi um retorno não só
um saber ainda não esquecido e a atualização de um modo de ser que chama pela
200
Foi com Heidegger, também, que pude reconhecer e responder às inquietudes
do meu viver e do meu fazer psicológico: que, antes de tudo, o ser humano é no
mundo, com todas as características que esse mundo apresenta, tal como Heidegger o
define; que não é possível conceber um homem fragmentado na sua experiência, que
nossas escolhas e pelas nossas possibilidades, mas também reconhecer que estamos
todos ligados e envolvidos uns com os outros e o mundo, também constituintes das
psicológicas nos mostram, em sua maioria, que tais questões continuam atuais. De
subjetividade do homem, uma vez que parece claro sermos parte de um todo, que é o
mundo e todos os seres que o habitam. Somos lançados no mundo, com tudo o que já
está aí e então passamos a construir o nosso mundo que pensamos particular e único.
dessa forma que o homem deve ser abordado: através da sua experiência singular e
201
Assim acontece com as tentativas de suicídio dos jovens. Não é posssível
constituir em aspectos agravantes desse processo de não querer viver. Todos esses
aspectos formam uma configuração que, num determinado momento, poderão fazer
um horizonte que nos habilita ao alcance de uma compreensão mais ampla das
Portanto, o que fica mais evidente e que ressalta aos nossos olhos neste
plano e que se impõem aos nossos olhos diante de todas essas categorizações do ser
202
humano, é a existência. É a capacidade de experienciar a vida de uma forma
particular, repleta dos seus próprios significados, fazendo com que pessoas com
semelhante que tente aprisionar o homem, está o ser, que surge na clareira do ser-aí,
nos legitima como responsáveis pelo nosso destino e, ao mesmo tempo, nos lança na
incerteza desse mesmo destino, quando nos coloca como seres de possibilidades e
nunca virá.
as quais o self não se acha capaz de lidar e às quais sucumbe, concluindo que a não-
indesejáveis e do próprio sofrimento humano. Os outros vão sofrer pelo jovem que
tenta o suicídio; o jovem, aparentemente então, passa a considerar que pode se livrar
envolvimento.
203
No sentimento de indignação, há sofrimento por sentir violentado o direito de
liberdade de existir de maneira autônoma; de não poder sentir o que se sente; de não
poder falar o que se pode ser falado; enfim, de não poder ser o que se é e ser olhado
como sujeito.
(cesura) para poder se afirmar enquanto ser adulto, autônomo e, assim, conquistar um
sentido simbólico, promove uma ruptura no mundo psíquico, semelhante à cesura por
ocasião do nascimento; essa ruptura pode conduzir à morte (ruptura com a vida), ou
pessoas que ocupavam espaços mentais que agora estão vazios; é preciso um self
em lugar dos espaços "perdidos" pela separação dos objetos amados e introjetados no
self.
204
CAPÍTULO VIII
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