A Experiência Das Psicoses - Olhar Da Gestalt Terapia
A Experiência Das Psicoses - Olhar Da Gestalt Terapia
A Experiência Das Psicoses - Olhar Da Gestalt Terapia
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
Brasília – DF
2015
MARCELLA ALBO DE OLIVEIRA
Brasília – DF
2015
A EXPERIÊNCIA DAS PSICOSES: Um olhar teórico-clínico da Gestalt-Terapia
i
AGRADECIMENTOS
Dizem que o importante não é o lugar que você quer chegar, mas o caminho percorrido e os
aprendizados. Finalizar essa dissertação foi uma baita jornada, muitas vezes tortuosa e difícil,
mas que se tornou mais leve porque tive a honra de fazê-lo acompanhada. Cada um de vocês
fizeram parte disso e tem uma parcela nesse trabalho e no meu coração.
Agradeço a Deus por todo o amor que me trouxe até aqui. “Louvado seja Deus em tudo que
se manifesta” e por isso agradeço a toda e qualquer manifestação divina terrena – toda
natureza, ao sol, lua, estrelas, o ar que respiro, ao alimento - e no astral – aos orixás, pretos-
velhos, caboclos, à linha da esquerda, anjos, arcanjos. Ao Mestre Irineu e ao Padrinho
Sebastião por me ensinarem o valor da firmeza, da disciplina e que “havendo força de vontade
nada pra nós é custoso”.
À minha família da terra e aos nossos laços. Aos meus pais que se esforçaram para me dar o
melhor que eles conseguiram. Pela afetuosidade, o carinho, o cuidado e admiração, vocês são
meus exemplos, meu norte e minha base. À minha mãe Márcia pelo cuidado que só as mães
sabem dar, por estar comigo, por partilhar, pelo incentivo, por me ajudar, me organizar (e me
alimentar!). Ao meu pai Pedro por ter me ensinado o valor das coisas mais simples, pelo
apoio (quase que) incondicional, por se orgulhar e acreditar em mim. Aos meus irmãos,
Lucas, Beto e Pedro que, cada um com seu jeitinho de se importarem comigo contribuíram
para que eu fosse quem sou hoje. Aos outros pais que a vida escolheu para mim, Fernando,
que acompanha meu crescimento, me incentiva e fortalece nas searas da vida e acadêmica; e
Adriana, pelo cuidado.
À minha família estendida, meus avós Humberto e Maria José, que foi de onde a
transgeracionalidade, se assim podemos chamar, começou, sendo minha vó uma das poucas
mulheres de sua época com oportunidade de estudar, se formando psicóloga e ancorando na
nossa família o apreço pelo cuidado, pelo o olhar para o outro; Aos meus avós Sérgio e
Denilze; E, falando em transgeracionalidade, às minhas tias Marta, Mariane e Mara que
compartilham, não só o Mar no nome, mas o amar. Há mar!
Ao meu querido GIPSI por me fazer acreditar na psicologia novamente, por me inspirar essa
dissertação - mesmo que a suor e lágrimas. Especialmente a Iva, que fez sua passagem antes
ii
de ver esse trabalho completo. Àqueles que transcenderam o espaço profissional e se tornaram
meus amigos de vida: Brisa Oliveira, Fernando Assunção, Ludmila Alkmin, Mariana Guerra,
Mariana Reis, Natália Campos, Natália Arruda, Victor de Jesus. Também à Cristina e Raquel
Mano.
Ao meu orientador Ileno Costa, que se dispôs a me acolher e me iniciar na seara da saúde
mental. Pelo cuidado, atenção e preocupação, pelo espaço dado para que minhas ideias
pudessem se desenvolver e tomar forma. Principalmente pela paciência em manejar minhas
próprias crises.
Aos professores que construíram meu pensamento e que dividiram seu largo conhecimento
formal e de vida – suas aulas reverberam até hoje na minha vivência. Da UnB: Ana Lúcia
Galinkin, Lúcia Pulino, Elizabeth Queiróz, Domingos Sávio, Balsen Pinelli, Sheila Murta,
Maurício Neubern, Marcelo Tavares; do IGTB: Jorge Ponciano, Adriana Fitipaldi, Larissa
Vitória, Alexandre Galvão.
Aos professores, Jorge Ponciano, Márcia Portela e Marco Aurélio Bilibio que gentilmente se
dispuseram a estar na banca e auxiliarem no enriquecimento deste trabalho.
Aos meus clientes, pela disposição em compartilhar suas vivências. Vocês sempre me
inspiraram a ser uma pessoa melhor e a buscar uma psicologia que ofereça espaço de abertura
e escuta. Essa dissertação não faria o menor sentido se não fosse por vocês.
Aos meus maninhos da espiritualidade por onde passei, tanto meus momentos no Céu da
Hoaska, Estrela Azul e Céu do Planalto. Aos mais colados, agradeço à Juliana Bicudo –
princesa me conquistou, por todas nossas conversas e seu apoio e desejo do meu crescimento,
Rodrigo Gervasio, Kauã Jaya, Kevillyn, Thiago Rocha, Lucimar Carbonera, Fábio Selva e
tantos outros que fica difícil de citar! “para sempre, para sempre, para sempre/amigo do meu
irmão/ que ele é a minha luz/ nesse mundo de ilusão”.
Ao querido grupo Resistance, por tantos anos de amizade e risadas. Obrigada por me fazerem
rir nos intervalos de escrita e por torcerem por mim!
À turma de psicologia da UnB do 2/2007, principalmente aos meus queridos amigos Ana
Molina e Rafael Moore. Aos transeuntes do CA que, em algum momento, dividiram vivências
enquanto esperávamos por qualquer coisa. À UnB, por ter me acolhido e ter sido minha
segunda casa (às vezes primeira!) durante alguns vários anos.
Ao IGTB e minha amada turma com que tive o prazer de realizar minha formação – pela
confluência e experiência de viver Gestalt, em um ambiente seguro e acolhedor. Agradeço,
especialmente, ao Marcus Fonseca, Taís Polonio, Bia Borfírio, Camila Barros e Nana Limp.
iii
também uma amiga e forte influenciadora do meu pensamento, Vanessa Dantas. Agradeço
por todas as trocas e discussões gestálticas, por compartilhar comigo o teor meio que
anarquista, meio que de boa.
À todas as pessoas e caminhos que tive a honra de cruzar nas estradas do mundo das viagens
que já empreendi para dentro e fora de mim mesma. Principalmente às minhas hermanas
Julieta y Joana Martino – gracias chicas, por me aceptaren, porque son las mejores amigas
argentinas boludas de mi vida, feliz diz que nos conocimos. Desde el helado fin de mundo
hasta el calor de tuyos corazones!
E a todos aqueles que não citei aqui – depois de tantas páginas escritas a cabeça começa a
falhar, mas o coração é sempre grande.
iv
É dito: pelo chão você não pode ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
Pelas paredes você também não pode
Pelas camas também você não vai poder ficar
Pelo espaço vazio você também não vai poder ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
Stela do Patrocínio
v
RESUMO
Este trabalho, de cunho teórico-clínico, teve como objetivo estabelecer reflexões acerca de
como a Gestalt-Terapia (GT) pode ser uma abordagem no tratamento das psicoses. Apesar da
dos poucos estudos sobre esse tema dentro da GT, defendeu-se que a base fenomenológica-
existencial pode ser benéfica por focar-se na experiência imediata e por ter a clínica voltada
para a retomada da espontaneidade do contato, o aumento da awareness e reconexão com o
campo. Além disso, prima pelo olhar para a totalidade da experiência, enquanto uma vivência
espaço-temporal, buscando o continnum entre funcionamento saudável e não saudável. O
ponto de partida foi o da imprecisão teórica das psicoses na literatura da área e como o
cuidado oferecido se organiza, define-se e se orienta a partir do que se pensa ser esse
fenômeno. E, como tal, insere-se na compreensão de um sofrimento psíquico grave, muito
mais existencial, concreto, intersubjetivo e relacional do que somente sintomatológico Tais
desconstruções são necessárias, também, para abrir caminho à maior apreensão de como a GT
compreende as psicoses, que destoa das construções psiquiátricas e psicanalíticas. Assim,
revisitou-se criticamente as teorias e filosofias de base da GT, questionando possíveis
alicerces para a discussão sobre de uma psicopatologia própria. A pessoa é vista como um
campo organismo/ambiente e uma experiência de psicose se inscreve como uma vivência de
desequilíbrio do processo figura/fundo e quebra dessa unicidade, caracterizando-se como a
aniquilação da parte da realidade do que está sendo dado na experiência. A clínica gestáltica
orienta-se pelo valor dado à vivência imediata, que valoriza e legitima a experiência vivida,
por meio de posturas de presença, encontro, inclusão e confirmação na relação terapeuta-
cliente, nas quais o psicoterapeuta é implicado no processo. Busca-se, então, dar atenção ao
campo relacional, à criação de um contexto seguro e estável para que, progressivamente,
juntamente com a diferenciação, a fronteira de contato possa ser reconhecida e os contatos
possam ser realizados espontaneamente. Isso objetiva, também, a disponibilização de um
fundo; a diferenciação criativa, principalmente no reconhecimento da fronteira de contato e
subjetivação; a percepção de tempo e espaço como categorias que orientam e dão ritmo ao
self; a busca de uma clara e distinta percepção das próprias necessidades; o desenvolvimento
do ajustamento criativo. Conclui-se que é possível construir um saber teórico acerca desse
fenômeno usando a teoria gestáltica, numa retomada efetiva dos pressupostos da
fenomenologia-existencialismo e não apenas importar categorias e compreensões estrangeiras.
Além de enfatizar a importância da união e fortalecimento entre teoria e prática gestáltica, que
não podem estar dissociadas de um levantamento epistemológico lógico e de uma
fundamentação sólida, pois tais alicerces direcionam a forma de se pensar a pessoa e o
mundo.
vi
ABSTRACT
This work, that have a theoretical and clinical nature, aimed to establish reflections about how
Gestalt Therapy (GT) may be an approach in the care of psychosis. Despite the few studies on
this topic within the GT, it was claimed that the phenomenological-existential basis can be
beneficial because it focus on the immediate experience and to have the clinic focused on the
resumption of spontaneous contact, increased awareness and reconnection with the field. In
addition, gives the importance to the totality of experience as a spatio-temporal, seeking the
continuum between healthy functioning and unhealthy. The starting point was the theoretical
imprecision of psychosis in the literature and as the care provided is organized, defined and
oriented by what is thought to be this phenomenon. And as such, is part of the understanding
of serious psychological distress, more existential, concrete, intersubjective and relational
than just symptomatic Also, such deconstructions are necessary to make the understanding of
how the GT comprehends psychoses, which is different of psychiatric and psychoanalytic
constructs. The theories and GT base philosophies was critically revisited, questioning the
foundation for the discussion of its own psychopathology. The person is seen as a field
organism/environment and psychosis experience is inscribed as an imbalance of the
figure/ground process and the break this unity, characterized as the annihilation of part of the
reality of what is being given in experience. The gestalt clinic is guided by the value given to
the immediate experience, which values and legitimizes the lived experience through postures
of presence, encounter, inclusion and confirmation in the therapist-client relationship, in
which the therapist is involved in the process. The aim is to give attention to the relational
field, the creation of a secure and stable environment so that progressively, along with
differentiation, contact boundary can be recognized and contacts can be carried out
spontaneously. This objective, also, the creation of a secure background; the creative
differentiation, especially in recognition of the contact boundary and subjectivity; the
perception of time and space as categories that guide and give rhythm to the self; the search
for a clear and distinct perception of one's needs; the development of creative adjustment. It
concludes that it is possible to construct a theoretical knowledge about this phenomenon using
the gestalt theory, in an effective resumption of phenomenology-existentialism assumptions
and not just import categories and foreign understandings. In addition, it emphasizes the
importance of strengthening unity by theory and practice gestalt, which can not be dissociated
from a logical epistemological understanding and a solid foundation, because it directs the
vision about person and the world.
vii
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA...............................................................................................................i
AGRADECIMENTOS .................................................................................................... ii
EPÍGRAFE ...................................................................................................................... v
RESUMO ........................................................................................................................vi
ABSTRACT ................................................................................................................... vii
INTRODUÇÃO9
CAPÍTULO I - AS PSICOSES: PARA ALÉM DO DIAGNÓSTICO .......................... 13
1. Uma retomada histórica: da psiquiatria à psicanálise..................................... 15
2. Sintomatologia e Classificações atuais ........................................................... 23
CAPÍTULO II – GESTALT-TERAPIA: REVISITANDO AS BASES ........................ 33
1. Contextualização do Nascimento da Gestalt-Terapia .................................... 36
2. Bases Filosóficas
2.1 Fenomenologia ....................................................................................... 38
2.2 Existencialismo....................................................................................... 43
2.3 Humanismo............................................................................................. 50
3. Bases Teóricas
3.1 Psicologia da Gestalt – a importância do todo ........................................ 53
3.2 Teoria de campo – “eu sou eu e minha circunstância” ........................... 55
3.3 Holismo ................................................................................................... 57
3.4 Teoria Organísmica ................................................................................. 58
4. A antropologia gestáltica: o campo organismo/ambiente .............................. 60
viii
INTRODUÇÃO
Durante todo o percurso do mestrado, por diversas vezes me perguntei qual a minha
motivação para realizar esse trabalho e o que eu gostaria de alcançar. Realizar esse exercício,
estudar o ser humano e sua saúde. Para mim, havia uma dimensão do ser que não era possível
olhar os pacientes. Ao entrar na prática de estágios, tive contato com os chamados loucos, e
perceber a forma como aquilo que se pensa ser a doença dirige as práticas de saúde.
primeiro foi com o Grupo de Intervenção Precoce nas Primeiras Crises do Tipo Psicótica
(GIPSI), na Universidade de Brasília, do qual fiz parte desde 2012. Esse grupo, criado em
2001 pelo professor (e orientador dessa dissertação) Ileno Costa tem por objetivo questionar
as práticas de saúde mental vigentes, bem como oferecer um serviço de atenção às pessoas e
suas famílias que estão vivenciando um sofrimento psíquico grave. Havia saída, então, para o
paradigma tradicional: era possível uma orientação dirigida ao cuidado, à humanização das
de Brasília, dirigido pelo professor Jorge Ponciano, que me deu bases teóricas e práticas para
conseguir lidar com essa demanda: a oferecer cuidado humanizado a qualquer pessoa,
9
Entretanto, o encontro das psicoses com a GT ocorreu timidamente. Poucas menções
foram feitas ao longo da história dessa abordagem e há poucos estudos que as relacionem,
como a dissertação realizada por Carvalho (2008), que debateu o ajustamento do tipo
(2010), que discutiu sobre as acepções do sofrimento psíquico grave e o ajustamento do tipo
psicótico e Muller-Granzotto e Muller-Granzotto (2008; 2012), que começou a dar bases para
Vieira (2005) que escreveu sobre como seria a relação na clínica com esse tipo de clientela.
Na literatura internacional, pode-se apontar Spagnuolo-Lobb (2002), que trabalha não apenas
com psicose, mas com pacientes em internação psiquiátrica, Delacroix (2005) que amplia a
como a terceira doença mais incapacitante pela população mundial. Afirma que, mesmo
depois de estar em estado de remissão, ela está associada a uma baixa qualidade de vida.
Afeta por volta de 1% da população mundial e apenas um terço dos casos alcança completa
remissão dos sintomas e recuperação social (OMS, 1992). Uma vivência desse tipo, quando
não cuidada adequadamente, pode trazer uma série de prejuízos sociais, cognitivos,
necessidade de cuidado, defendemos que essa abordagem pode ser benéfica no cuidado de
10
distúrbio – que subentenderia uma referência implícita a um estado de ‘normalidade’, posição
maior contato e reconexão com o campo e com si mesmo, algo que se desequilibra em uma
aqui-agora.
Nesse sentido, essa dissertação é o resultado de nossa inquietação com o que se pensa
ser a psicopatologia e como esse pensamento organiza, define e dirige a forma como os
profissionais de saúde mental trabalham. Dentro dessa temática, o recorte dado foi entre as
estudo teórico-clínico.
fenômeno tão diverso, me deparei com um vasto universo, de diversas abordagens, olhares e
possibilidades. De fato, os enfoques ao tema são múltiplos e para não incorrer em uma
megalomania acadêmica, decidimos delimitar o objetivo a como (e se) a GT pode ser uma
interessaram por esse fenômeno e quais seriam as implicações dessas visões, principalmente
na forma de tratamento. Esforçarmo-nos em não incorrer no erro que Szas (1974/1979) alerta,
que é o de se perder tempo pensando em nomenclaturas, ao invés de dar maior atenção aos
11
processos e intervenções. Entretanto, é preciso que se compreenda qual o ponto de partida
principais bases teóricas e filosóficas. Para além de apenas mostrar seus alicerces, buscaremos
apontar algumas contradições e falhas epistemológicas nas quais essa abordagem se funda.
Um olhar crítico se faz necessário para que possamos encontrar um caminho mais seguro e
um terreno melhor preparado para tratar nosso tema. É nesse sentido que daremos ênfase no
tomando posse das gestalten abertas durante esse percurso e seus possíveis encaminhamentos.
12
CAPÍTULO I - AS PSICOSES: PARA ALÉM DO DIAGNÓSTICO
prazer
da pura percepção
os sentidos
sejam a crítica
da razão
Leminski, 1987
médico, campo de saber onde a psicose começou a ser estudada, o diagnóstico é essencial e
quanto a evolução e, além disso, definir e orientar as intervenções (Sadock & Sadock, 2007).
pode ser apontado como psicose? Foram várias as tentativas de se reformular as categorias
daquilo que não se sabe ao certo o que é? Nesse sentido, uma breve retomada histórica se faz
longo do tempo (Pessotti, 1999). A psicanálise foi responsável por inserir a parte subjetiva na
psicótica, de acordo como funcionava o id, ego e superego (Resende & Calazans, 2013).
13
Não mais uma doença do cérebro, mas uma tentativa de lidar com a realidade. O
psicodinâmica do sujeito, bem como a postura do analista frente à pessoa. Porém, com sua
riqueza de autores, a definição de uma psicose continua imprecisa (Costa, 2003). Talvez a
psicose.
Nas duas correntes de compreensão que mais se ocuparam de estudar esse fenômeno -
a psiquiatria e a psicanálise - a psicose é reconhecida por ser uma perda da realidade, apesar
psicanalíticos. Nas versões mais antigas do DSM e CID, as categorias trazidas pela
psicanálise ainda eram utilizadas, porém, atualmente, com a tentativa de serem ateóricos e
baseados em pesquisas empíricas, cada vez mais estão se afastando dessa raiz histórica.
responsáveis pela compreensão que possuímos hoje da psicose. Essas bases estão presentes
ainda hoje na forma de intervenção dada a este tipo de sofrimento, logo, faz sentido essa
compreensão com objetivo de fornecer bases para pensarmos em outras formas de cuidado.
14
1. Uma retomada histórica: da psiquiatria à psicanálise
imprecisões (Costa, 2003). A ideia de revisar a história dessa terminologia é que, para
ponto de partida deste tema (Pessoti, 1999). Além disso, resgatar a história objetiva uma
desnaturalização dos conceitos, principalmente por entender que esse fenômeno abarca
dimensões não só físicas e psíquicas, mas também, sociais, culturais, antropológicas, políticas
e históricas, as quais não podem ser negligenciadas para sua melhor compreensão (Silveira &
Braga, 2006).
Dessa forma, buscar a história da psicose é, antes de tudo, encontrar com a loucura.
Ao longo dos séculos, a loucura gerou um misto de fascínio e medo, que a levou a ser
estudada, categorizada, tratada e, por muitas vezes, enclausura, calada e abafada (Foucault,
desse fenômeno, o desafio foi de buscar suas causas que, em boa parte das vezes, eram de
olhares diferentes. Antes de Kraepelin, era comum que cada pessoa abordasse esse fenômeno
15
aumentaram, ainda mais, a imprecisão dos conceitos. Com dificuldades de uniformização da
linguagem científica, diversas intervenções foram testadas (Costa, 2003; Pessoti, 1999).
Foi durante o século XIX que o termo loucura foi sendo substituído por psicose, o que
significou uma mudança na crença de que um transtorno mental seria um estado de total
irracionalidade cognitiva, a perda da razão (Berrios & Beer, 2012). Em 1845, Von
Feuchtersleben utiliza, pela primeira vez, o termo psicose para designar a doença mental ou
Hoenig (2012) aponta que há dificuldades em precisar a história da psicose, pois antes
de Kraepelin, novos termos eram constantemente incluídos, havendo uma falta de unificação.
Um mesmo nome denominava muitos fenômenos diferentes, mas o que permanecia constante
Porém, sem uma diretriz de pesquisa e uniformização dos dados, a mudança de termo
gerou mais imprecisões e desencontros nessa compreensão. Foi Kraepelin que defendeu que a
classificações deveriam ser oriundas de pesquisas clínicas (Engstrom, 2012). Assim, ele
acreditava que o objetivo era o de buscar uma unidade básica natural que estaria implícita nas
Para Berrios e Hauser (2012), essa essência imutável dos transtornos estaria na base do
realizar o prognóstico. Segundo esses autores, a definição do curso da condição era central na
definição diagnóstica para Kraepelin. Assim, ele acreditava que, independente do recorte dado
pelo estudo, havia essa unidade natural da psicose, a qual ele divide em dois grandes grupos:
prognóstico (Hoff, 2012). Por exemplo, várias das manifestações psicóticas que antes não
16
encontravam classificação foram incluídas na categoria de demência precoce, pois
Foi Morel quem primeiro cunhou o termo demência precoce, que, em Kraepelin,
1999; D’Agord, s.d.; Sadock e Sadock, 2007; Hoff, 2012). Câmara (2007) completa,
afirmando que
Gruhle (1932, em Hoenig, 2012) afirma que a história da psicose pode ser mais bem
substituir a dementia praecox (Sadock e Sadock, 2007). A ideia de mudar o termo utilizado
foi por perceber que nem todos os casos tinham desfechos deteriorantes, mas que o principal
não o prognóstico, eram a base do diagnóstico, já que, para Bleuler, independente do curso do
17
As ideias delirantes presentes na esquizofrenia eram explicadas por Bleuler como
desejos ou temores deformados, que seriam expressos como uma cadeia de associação,
pensamento este ligado à formação do inconsciente expressa pela psicanálise (D’Agord, s.d.).
sintomas estes que estão presentes nos manuais psiquiátricos utilizados atualmente.
Bleuler tem algo em comum. A mudança empreendida por esses pensadores é que era
desviante desvia de algo. A palavra normal mudou seu sentido corrente com Augusto Comte,
na década de 1820, para designar seu objetivo de conhecer como seria um corpo funcionando
normal para, assim, realizar o estudo da patologia (Miskolci, 2003). Funda-se, então, dentro
Mais tarde, foi usada dentro do modelo capitalista burguês com o objetivo tanto de
qualificar aqueles que seguem a norma hegemônica ou não, quanto o de corrigir e restabelecer
Foucault durante a década de 70 – que seria a ação do Estado perante aos sujeitos, que, a
18
partir da ideia de normalidade, legitima as práticas dirigidas ao corpo. Rabinow e Rose (2006)
sugerem que
sempre um caráter valorativo, pois não é somente aquilo que é estatisticamente médio que é
normal, mas depende de um julgamento de valor dado por uma comunidade que considere
que o desvio é negativo (Silva, 2008). Mais do que isso, aquele que é considerado fora da
norma ameaça uma potencial ordem e organização da própria sociedade, pois “o que se teme
no anormal é mais do que sua diferença, é o poder de transformação social de seu estilo de
vida (...) têm o potencial de colocar em cheque os fundamentos da ordem vigente e subverte-
(Pessoti, 1999). Por se tornar uma doença, aliás, uma doença mental, era preciso tratamento
sofrimento humano, legitimação do estigma e das práticas dirigidas a ela (Foucault, 1978;
(...) os critérios do que constitua doença mental foram modificados – de uma desordem
fisio-química do corpo para a inabilidade e sofrimento da pessoa. (...) rotulando de
doença mental todo e qualquer tipo de experiência ou comportamento humano que
pudessem detectar ou atribuir a um mau-funcionamento ou sofrimento (p. 48).
19
Para esse autor, o mito da doença mental poderia ser resumido, basicamente, nos
seguintes pontos: as doenças só podem afetar o corpo, logo não faria sentido uma doença na
mente, não sendo, portanto, algo que alguém tenha, mas algo que alguém faz ou é; os
diagnósticos psiquiátricos rotulam pessoas que incomodam ou ofendem os outros com seu
comportamento, apontando que aqueles que reclamam de seu próprio comportamento seriam
Além disso, evidencia-se que a construção daquilo que é considerado doença mental
está intimamente ligado a um contexto social. Isso pode justificar as diversas concepções ao
longo dos tempos da psicose (Turner, 2012). Silva (2008), utilizando Foucault, afirma que
com Freud que ocorreu uma busca de ir além dos conceitos classificatórios (Costa, 2003).
Mais do que apenas uma doença do cérebro, Freud traz uma ideia revolucionária para
compreender que os sintomas clássicos psicóticos não eram apenas indícios, mas “uma
sofrimento gerado pela psicose passa a ser uma forma de comunicação (Figueiredo e Tenório,
2002).
uma diferença estrutural em ambas. Para ele, a psicose estaria associada a uma defesa mais
enérgica que na neurose, na qual o ego rejeitaria a reprodução de algo insuportável, como se
20
esta jamais tivesse existido. O delírio seria, então, um remendo no lugar em que originalmente
apareceu uma fenda na relação do sujeito com o mundo externo (Nasio, 2001).
condição primordial para a psicose (Freud, 1924). Assim, em um primeiro momento o ego
seria afastado da realidade e é seguido por uma tentativa de se reaproximar mas, na psicose,
outra forma de ver o mundo seria criada: “a psicose a repudia [a realidade] e tenta substituí-
Em suma, para Freud, as psicoses são um tipo de defesa, sendo “a expressão mórbida
da tentativa desesperada que o eu faz para se preservar, para se livrar de uma representação
inassimilável, que, a maneira de um corpo estranho, ameaça a sua integridade” (Nasio, 2001,
p. 36). Para a psicanálise freudiana, uma parte desse ego seria expulsa, rejeitada ou perdida,
enquanto outra alucinaria ou deliraria esse pedaço como uma nova realidade. A origem da
complexo de Édipo (Loparic, 2006). Essa ideia foi desenvolvida posteriormente por autores
como Melanie Klein, Lacan, Winnicott entre outros. Sem a intenção de entrar em detalhes de
cada teoria, posto que isto exigiria um esforço fora do escopo do presente trabalho, resumo o
ponto que aqui nos interessa que é o de que para a teoria psicanalítica a busca pela origem da
psicose é um tema recorrente e que sempre está na infância (Loparic, 2006; Nasio, 2001).
21
níveis. Este tipo de diagnóstico pode permitir ao analista manter no horizonte a
produção de uma verdade singular e a emergência de uma história única. Deste ponto
de vista, as categorias diagnósticas clássicas da psiquiatria perdem em muito sua
significação, devendo ser novamente situadas tanto em seu estatuto quanto em sua
função (Figueiredo & Machado, 2000, p. 67).
Assim, percebe-se que Freud seguiu, de certa forma, a tradição médica por iniciar seus
estudos sobre a saúde a partir da psicopatologia, ou seja, buscou encontrar como uma pessoa
normal funcionava partindo daquelas que sofriam (Medeiros, Bernardes e Guareschi, 2005).
No início de seus estudos, ele acreditava em uma origem orgânica da psicose, contudo, ele
inseriu a subjetividade do indivíduo como coautor de seu sofrimento e não apenas produto de
um desequilíbrio cerebral.
Apesar do desenvolvimento de uma teoria da psicose, Freud não deixou bases para a
clínica psicanalítica dessa estrutura e excluiu os psicóticos da análise por acreditar que eles
não investiam no mundo exterior e por isso não realizavam transferência (Nasio, 2001).
Foi em Melanie Klein que a análise de psicóticos começou a ser desenvolvida, usando
transferência como central no setting (Zimerman, 2004). Porém, para Zimerman (2004) há
uma diferença básica entre uma clínica psicanalítica para neuróticos e psicóticos e no que
concerne a função do analista: para os neuróticos, enquanto estrutura, eles teriam capacidade
angústia.
de assumir a função da maternagem, além de uma função continente, nas quais estão inclusas
a empatia, a paciência, o cuidado, a escuta das demandas – mais do que o atendimento delas.
22
Assim, o analista aos poucos é introjetado como um novo modelo de identificação, sendo a
partir da atividade interpretativa que o paciente começa a significar seu vazio primordial
(Zimerman, 2004).
orgânica, atualmente, o diagnóstico tende a ocorrer nos moldes dos manuais psiquiátricos,
excluíram a história da psicopatologia. Resende e Calazans (2013) tecem uma crítica a esses
manuais diagnósticos por compreenderem que eles buscam eliminar o saber psicanalítico dos
2007).
outros, com sua principal manifestação nosológica a esquizofrenia (Carvalho e Costa, 2010).
alucinações correspondem a uma percepção que apresenta a sensação de uma realidade, mas
não há estimulação externa – como escutar vozes com a convicção que são oriundas de uma
23
realidade física. Os delírios se referem a uma falsa crença acerca da realidade externa, de
para ser diagnosticado corretamente, segundo esse manual, é necessário que se observe uma
os sintomas não estejam totalmente claros, seria importante observar a duração, bem como o
diagnóstico diferencial com outras condições que teriam sintomas semelhantes como, por
exemplo, uma depressão com sintomas psicóticos de um transtorno esquizoafetivo. Por fim,
Já para o CID-10 (1993), o que se aproximaria de uma psicose está dentro da categoria
F20 até F29: esquizofrenia, distúrbios esquizotípicos e delirantes. Essas condições têm como
base a perda do juízo da realidade e o não compartilhamento das crenças pela cultura em que
tratamento desse fenômeno, é possível perceber que a condição de doença está relacionada a
esse um dos critérios para o diagnóstico – mas, a psicose, em si, não tem uma definição
24
Retomando a breve discussão sobre normalidade anteriormente colocada, percebe-se
como o normal burguês ainda se encontra como base para definir o desviante, na qual “a
A cura, então, segue a ideia médica que seria o retorno às atividades, a readaptação
(Silveira e Braga, 2005) e supressão dos sintomas, posto que não se sabe a causa orgânica. Na
maioria das vezes, é feito por meio de tratamento farmacológico (Sadock e Sadock, 2007).
manual diagnóstico, lançado em 2013, tem por objetivo fornecer classificações mais baseadas
cientificamente para uma melhor aplicação e pesquisa (DSM-V, 2013). Dentre as diversas
vozes realizavam comentários sobre a pessoa ou conversassem entre si. Nesses casos, não
25
seria mais necessário outros sintomas. O motivo dessa retirada foi por considerar que delírios
Mesmo com os avanços da medicina, não há testes que comprovem a presença ou não
dessas condições (Sadock e Sadock, 2007; Silva, 2006). Há algumas teorias etiológicas,
(DSM-V, 2013; Silva, 2006). Apesar disso, o saber médico continua buscando suas origens
biológicas, por entender que a psicose é uma desordem orgânica. Ao focar-se nessa questão, o
discurso que se veicula é que o sujeito não tem autonomia dentro de sua doença,
(...) desautorizando qualquer intencionalidade humana que o mesmo tenha sobre seus
atos. Poder sobre os atos, que, não pertencendo mais ao sujeito, são controlados por
técnicas, tanto asilares quanto químicas, de contenção, ou com vistas à restituição
desse poder – que ele perdeu para as forças advindas de um orgânico fora da
normalidade natural (Júnior e Medeiros, 2007, p. 76).
Dessa forma, apesar de ser incluída como um saber médico, o diagnóstico é baseado
O diagnóstico, simplesmente, não responde à questão do que é uma patologia, ele apenas
estabelece, a partir de critérios legitimados por um discurso específico, a inserção de
determinadas manifestações em tipologias de forma a orientar uma atuação. O que
interessa em um diagnóstico é a validade dos critérios que conduzem a ele (p. 142).
Ainda sobre essa discussão, Figueiredo e Tenório (2002) apontam para os perigos do
que eles chamam de triunfalismo da psiquiatria biológica. Segundo os autores, isso ameaçaria
a clínica psiquiátrica de uma simples aplicação de equivalência entre os sintomas que são
observados e aqueles descritos nos manuais, que clamam serem ateóricos, o que, como vimos,
função da própria clínica e, ao mesmo tempo, indica os limites do tratamento. Se, para
26
algumas formas de praticar a psiquiatria, a intervenção é somente farmacológica, a supressão
esquizofrenia quando relacionada aos estudos de gênero, que ocorre com mais frequência
agressivo, a mulher é vista como mais afetiva (Narrow, 2008; Phillips e First, 2008).
Outro exemplo é que, antes do DSM-III, os Estados Unidos, que seguiam as ideias de
Bleuler, tinham duas vezes mais diagnósticos de esquizofrenia do que a Europa, que adotava
mentais, e dentro delas a psicose, sem levar em consideração o aspecto social também da
ciência, como uma construção de saber que não é neutra. Danzinger (1994) aponta que o que
nas relações, mas também laços de poder e conflito. A construção de conhecimento dentro da
psicologia, nesse sentido, só encontra lugar se for reconhecido pelos pares, ou seja, essa
comunidade.
Nesse sentido, Berrios e Porter (2012) afirmam que o grande desafio da psiquiatria
tem sido buscar um substrato orgânico definitivo para cada condição de desequilíbrio, mas
27
apontam que um fato natural não existe independente de sua significação cultural. Partindo
Isso reitera a questão social da ciência, em que, mesmo que se localize organicamente
a definição da psicose, isto estaria sujeito a transformações e novos olhares. Como o trecho
acima sugere, a busca por uma realidade única nessas vivências humanas reforça a ideia de
uma invariância ontológica tanto do ser humano quanto do contexto social, um pensamento
impossível de adoção. Essa postura crítica de des e re-construção àquilo que é dado é a que
compreensão que abarque todas facetas quanto possíveis, posto que a própria GT objetiva
uma visão holística dos fenômenos. Vimos que há diferentes conceituações e que nenhuma
parece ser totalmente satisfatória (Costa, 2003). Talvez nunca cheguemos a uma verdade
única frente a um tema tão diverso. É inegável que há uma base biológica, como, por
exemplo, diversas pesquisas médicas apontam a baixa de dopamina como algo comum à
maioria das pessoas que experienciam o que se conhece como psicose (Sadock e Sadock,
2007). Afinal, é algo que acontece no corpo e esse corpo também é biológico.
Por outro lado, temos a teoria psicanalítica, que entende a psicose como produto de
traumas na mais tenra infância, seja pela foraclusão do Nome-o-Pai em Lacan (1985), pela
28
cisão entre o seio bom e o seio mau na teoria kleiniana (Klein, 1946/1991) ou como uma falha
dificuldade em se dizer, com exatidão, a que se refere esse termo. Não há uma psicose, mas
psicoses. Como ponto de partida, Costa (2013) aponta que “podemos dizer que a
(p. 85).
Campbell (1986, em Costa, 2003) resume alguns critérios que caracterizariam, também, a
afastaria de suas relações), afetividade (as emoções se tornam diferentes), intelecto (há
Enriquecendo essas reflexões, Lopes (2001) aponta que as psicoses trariam dois
compreendemos como não podemos entendê-la sem ter um olhar crítico às práticas vigentes.
Se o que se pensa sobre as psicoses define e determina a forma de intervenção e, por vezes, o
destino da pessoa que experiencia uma vivência psicótica, ela se inscreve em um campo
político e social. Entretanto, acreditamos que o problema não está no ato em si, mas no
29
em suas consequências, recorreremos no erro da universalização e naturalização, impossível
no fenômeno humano.
fenômeno para uma linguagem comum entre os profissionais, mas que precisa estar sempre a
favor da pessoa. É necessário que seja pensado e questionado de forma processual e não
somente estrutural. Talvez o que precisamos atentar é a sua finalidade: a quem serve? É para o
(ver Albo e Costa, 2013). No estudo em questão, a cliente havia tido uma crise em sua
adolescência, na qual ela relata que estava sofrendo com o que as pessoas diziam e faziam
com ela e resolveu falar, de modo agressivo, tudo o que achava de todos. Foi internada
prontamente e diagnosticada com Transtorno Bipolar, medicada e atendida com base nesse
diagnóstico.
Se ela perdeu a razão, ficou louca, se de fato a vivência foi de uma ordem da patologia
nós não sabemos. O que sabemos é que esse episódio afetou toda a sua vida e por anos ela foi
conhecida como a estranha da família, aquela frágil e com problemas. Certo dia, ela me
perguntou se era possível o diagnóstico estar equivocado, como se a primeira pessoa que a
diagnosticou estava errada e ela pegou isso para sua vida; outras vezes, não acreditava que
havia essa coisa de bipolar, que ela tinha que parar de colocar a culpa do fracasso da sua vida
nisso. De fato, esse diagnóstico a excluiu, operacionalizou suas relações com as pessoas e
com o mundo. Calou-a diversas vezes pelo medo do estigma, do discurso deslegitimado,
afinal ela era louca, não tinha mais voz que pudesse fazer sentido para os demais.
Ao decidirmos que ela tinha uma demanda que a caracterizava como cliente do GIPSI,
havia um diagnóstico implícito, porque atendemos a ela e recusamos outras pessoas em outros
30
tipos de sofrimento. Entretanto, nunca a cuidamos com base nessa crença, de que ela era
não no humano, uma classificação que não serve aos propósitos da pessoa que sofre, mas da
sociedade que se incomoda com o diferente, de uma ciência pautada na predição e controle do
fora do normal. Parece que o próprio rótulo viria antes da pessoa, adjetivando-as como
GIPSI desacreditadas porque seus filhos, irmãos, maridos, mães foram diagnosticados com
uma doença mental incurável - e não como seres humanos que, em certo momento de sua
que algum auxílio, uma saída para esse impasse seria a adoção da proposição realizada por
Costa em diversos estudos (2003; 2010; 2013; 2014), que é a da abordagem de um sofrimento
31
compreensão do sofrimento humano, de um extremo do suportável ao desorganizado (Costa,
2013).
Além disso, de acordo com outro ponto que tratamos nesse capítulo, que foi o da
déficit, de falta. Parece não haver foco nas capacidades saudáveis do indivíduo. Silveira e
Braga (2006) afirmam que “é preciso, antes de tudo, que se execute uma reelaboração de
concepções, de dispositivos e das formas encontradas para que se possa relacionar com a
Várias foram – e são – as críticas em relação à teoria psicanalítica que, pela riqueza de
nasce das críticas realizadas à psicanálise, principalmente a freudiana. Fato é que a psicanálise
já se transformou muito desde Freud, porém até hoje se vê em autores gestaltistas que
críticas, pois ambas são irmãs próximas, mas com maneiras de pensar e cuidar diferentes.
Tais desconstruções foram necessárias, também, para abrir caminho para uma maior
passado, para a GT o trabalho se foca no processo da vivência tal qual ocorre no aqui-agora,
não trabalhando com a noção de estrutura, mas de processo; já a psiquiatria tem um olhar
32
biológico, compreendendo as psicoses como produto de desequilíbrios no corpo, enquanto a
origem, uma causa, uma estrutura o que nunca fora o objetivo da própria GT, que olha o
fundamentaram a crença do que seriam as psicoses. Foi necessário compreender esses dois
paradigmas mais utilizados na compreensão desse tema para entendermos que não fazem
33
Capítulo II – GESTALT-TERAPIA: REVISITANDO AS BASES
visão de pessoa (Ginger & Ginger, 1985). Falaremos um pouco da história da GT tão
somente, por questões de concisão, a partir de três nomes que julgamos importantes para o
desenvolvimento dessa abordagem: Fritz Perls, Laura Perls e Paul Goodman. Por mais que as
ideias primeiras dessa abordagem estejam presentes na prática atualmente, como nos afirmam
estudos epistemológicos dentro da Gestalt-Terapia, como nos alerta Holanda (2005). Este
autor levanta considerações sobre como a teoria e a prática gestáltica não podem estar
Pensar nas filosofias e teorias de base como simplesmente dadas faz com que
incorramos no erro de uma pseudofusão, nas palavras de Holanda (2005), à “associação pura
e simples de uma variedade imensa de técnicas sem a devida reflexão acerca das suas
gestáltica” (p. 23). Além disso, Robine (2006) afirma que, para compreender e estabelecer a
34
Gestalt-terapia enquanto abordagem com uma epistemologia firme e que sustente os
rompimentos realizados por Perls e Goodman, seria necessário se apoiar nos trabalhos
quântica.
Apontamos alguns livros brasileiros que visaram clarear essa questão, como o
associados à abordagem, buscou definir alguns conceitos básicos e clarificar as bases teóricas
& Fukumitsu, 2013), que realizou uma releitura epistemológica a partir das dificuldades e
Faria, 2005), que lançou luz a diversos temas controversos dentro de GT e buscou realizar
1985), livro pioneiro do estudo das bases teóricas e filosóficas de GT no Brasil, clarificando e
pois refletem uma visão de homem e mundo da abordagem. Assim, se faz mister uma reflexão
crítica e aprofundada das filosofias e bases da GT, empreendimento este que não poderá ser
trabalho. É um desafio prosseguir sem resolver essa encruzilhada epistemológica, mas espero
Teoria do Campo, Teoria Organísmica e Holística). Sabemos, contudo, que a GT não é apenas
construída sobre esses alicerces, mas essas são as que melhor foram tratadas ao longo dos
35
estudos da abordagem. Não buscaremos entrar em detalhes aprofundados de cada uma, posto
que este trabalho já fora realizado por diversos autores (Ribeiro, 1985; Holanda, 2005;
Yontef, 1998; Ginger & Ginger, 1987), mas apontaremos as principais influências dessas
teorias na GT.
que compreendamos a visão de pessoa que a Gestalt-Terapia traz, bem como ela entende o
funcionamento do ser humano, pois essa será a base para o avanço no estudo da
psicopatologia em GT.
o livro Gestalt therapy: excitement and growth in the human personality (1951) considerado o
marco do surgimento, tendo como autores Perls, Hefferline e Goodman (a partir de agora
referidos como PHG). As raízes dessa abordagem estão na própria história de Fritz e Laura
Perls e de suas divergências da psicanálise freudiana no livro “Ego, Fome e Agressão”, que,
Freud”, mudado para “The beggining of Gestalt-therapy” em 1969. De fato, este livro trouxe
Foi com a chegada do casal Perls nos Estados Unidos, em 1946, que as inquietações e
inaugural, pensado juntamente com o Grupo dos Sete, formado por Fritz e Laura Perls, Paul
36
Goodman, Paul Weiz, Isadore From, Elliot Shapiro, Sylvester Eastman – mais tarde
O contato com Paul Goodman, importante escritor, poeta, crítico social e anarquista,
fora decisivo para o desenvolvimento da GT, pois ele deu forma às ideias rascunhadas por
Fritz na África. De acordo com Laura, sem Goodman a Gestalt nunca teria um corpo teórico
(Perls, 1992). Goodman imprime seu tom de crítica política e social na Gestalt-terapia,
1997). Além disso, o autor acreditava que a sociedade vigente impedia que os jovens
desenvolvessem sua máxima capacidade (Goodman, 1960), que se reflete nos preceitos da
abordagem, como a busca pelo crescimento, pela espontaneidade, ao se conhecer aquilo que
se é.
Apesar de diversas vezes não ser citada, Laura Perls tem influência importante no
Psicologia da Gestalt, e com Goldstein, da Teoria Organísmica. Sempre fora envolvida com
dança e tocava piano desde criança, trazendo essa influência também para a abordagem. Além
disso, era leitora ávida de Kierkegaard, Heidegger e Husserl (Frazão, 2013). Mesmo ainda se
considerando psicanalista, atendia face a face e possuía uma postura mais acolhedora do que
oferecidos por Fritz em suas viagens de divulgação da abordagem. Sua atuação era descrita
como mágica: anos de traumas não resolvidos pela psicanálise eram prontamente
Juliano (2004) afirma que era ele quem ia abrindo caminho, enquanto os outros gestaltistas
37
A partir disso, se formam duas correntes distintas dessa abordagem: a dos workshops,
da prática, da irreverência, inquietude, muito bem representada por Perls; e, por outro lado,
havia aqueles que se preocupavam com o aprofundamento teórico, que era restrito a Nova
Iorque e pouco disseminado, com Laura, Isadore From e Goodman (Frazão, 2013). Talvez por
isso as bases epistemológicas da GT, por vezes, foram acusadas de ser apenas uma colcha de
Isso se reflete nas formas de fazer e pensar a Gestalt-terapia. Aylward (1999) aponta
relações no processo de subjetivação (Aylward, 1999). Esses diferentes enfoques não geram,
gestáltico.
Apesar dessas divergências, o fato é que a GT surge como uma das abordagens
correntes que eram muito deterministas na época. Assim, um dos preceitos básicos da GT era
liberdade e saúde.
2. Bases Filosóficas
2.1. Fenomenologia
esforços para resolver a crise da filosofia e das ciências do homem (Dartigues, 2003; Cerbone,
2013), a qual se torna uma epistemologia, um método e uma filosofia (Holanda, 2014), já que
38
o método utilizado em sua época não dava conta de uma dimensão da realidade vivida, pois
falava dela sem, contudo, explica-la (Amatuzzi, 2009; Moreira, 2010). A fenomenologia
levar em consideração seus julgamentos de valor (Amatuzzi, 2009). Para tanto, seria
(Holanda, 2014).
Com esse intuito, é necessário colocar entre parênteses as crenças do mundo exterior,
2013). A partir dessa atitude, o fenômeno se desvela e, para Husserl, isto se relaciona tanto
com o aparecer quanto àquilo que aparece (Galeffi, 2000). Assim, a fenomenologia é uma
tentativa de descrição direta da experiência tal como ela é, sem levar em conta a gênese
Esse retorno às coisas mesmas é tido como uma atitude transcendental (Galeffi, 2000)
e traria a consciência como uma atividade constituída de atos ou noesis e, assim, toda
39
consciência atribuir sentido para a realidade e não mais faria sentido revelar o mundo, mas
desvelar seus sentidos para a consciência (Forghieri, 1993; Holanda, 2014). É por meio da
definição do objeto só pode se dar por meio de sua relação com a consciência e vice-versa
A consciência é livre, é ativa, cabe a ela dar sentido (intenção) às coisas. Ela não é um
mero depósito de imagens e representações de objetos que agiriam sobre os nossos
sentidos. Não são os objetos do mundo exterior que criam as imagens na consciência,
mas é ela que dá sentido ao que existe na realidade objetiva. (...) Estar consciente de
algo, portanto, é ter refeito ou descoberto toda a linha da intencionalidade da relação
sujeito-mundo (p. 52).
essa consciência só existe para o objeto, havendo, então, uma correlação entre consciência-
objeto (Ribeiro, 1985). Este autor afirma que “tudo aquilo de que a consciência toma
conhecimento de uma maneira intencional pode ser chamado de fenômeno e se torna uma
significação para a consciência” (p. 51). Não se questiona, pois, a existência ou não das coisas
percebidas, pois o mundo só toma significado na consciência e o objeto jamais será um objeto
em si, mas algo percebido (Moreira, 2010). Ao mesmo tempo, isso não quer dizer que o
objeto está contido na consciência, mas que ele só tem sentido quando intencionado por uma
Então, os fenômenos são sempre dotados de uma essência, isto é, de um sentido para a
consciência (Dartigues, 1992). A intuição das essências para Husserl seria a “descrição das
estruturas do aparecer de qualquer fenômeno” (Fontana, 2007, p. 168), ou seja, o próprio ser
do fenômeno: é a partir dessa intuição que se chega à ontologia husserliana. Ainda sobre a
40
estamos assegurados de sua essência ou porque ao menos acreditamos estar. Não
existe, com efeito, nenhum fenômeno do qual possamos dizer que ele não é nada, pois
o que não é nada não é (...) todo fenômeno tem uma essência, o que se traduzirá pela
possibilidade de designá-lo, nomeá-lo, isso significa que não se pode reduzi-lo à sua
única dimensão de fato, ao simples fato que ele tenha se produzido. Através de um
fato é sempre visado um sentido (p.16).
afirmação, Husserl conclui que o ser humano encontra-se sempre em relação, imerso no
mundo, enquanto a redução fenomenológica seria uma forma possível de sair da alienação e
consciência e, assim, não há uma existência própria senão no ato da consciência: não há um
objeto em si, mas aquele que é apreendido, percebido, intuído; “perceber um objeto é
intenciona-lo e torna-lo significativo” (Gonçalves et al, 2008, p.407). Não existe uma verdade
definem a partir da correlação entre eles e o estudo da fenomenologia seria para revelar como
regressão, de limpeza apriorística até chegar a Lebenswelt, que seria o mundo onde o sujeito
recebeu passivamente os sentidos do objeto (Lyotard, 1954). Ao chegar nesse ponto, o ego
transcendental, que é aquilo que doa intenção e significação, pode se restituir como o doador
(Dartigues, 1992).
41
A partir dessa atitude fenomenológica, o próprio mundo se revela como um fenômeno
e não mais algo em si mesmo, no qual seu sentido é construído a partir da vivência, do ser-no-
não o sujeito puro, o que faz com que o objetivo seja conhecer a forma que esse mundo se dá
uma proposta impossível para a psicologia e psiquiatria (Moreira, 2010). Apesar disso, foi de
Gonçalvez et al (2008),
verdade universal sobre o comportamento humano, o centro de uma unidade básica de todos
(Gonzalez Rey, 2005). Isso gerava, também, uma posição desconfortável de quem trabalha
com psicologia, já que tomava para si o poder confiável das ciências naturais, porém isso nem
um caminho para a subjetividade, a qual deveria se ocupar das estruturas internas, constituída
42
também abriu o caminho para um maior estreitamento entre a clínica da psicologia e a
Essa descrição, entretanto, não é o mero relato daquilo que se vê, mas a busca da essência
1985).
Assim, a realidade observável é um portal para uma realidade muito mais complexa.
Pelo uso da redução fenomenológica, então, busca-se o desvelamento das essências, que se
(Robine, 2006). Além disso, a definição de pessoa como campo organismo/ambiente deixa
claro que, para a GT, interessa a relação entre organismo/ambiente e de quais formas são
2.1 Existencialismo
Primeiramente, chamamos atenção para a crítica trazida por Holanda (2005), na qual o
autor afirma que há um uso dessa corrente filosófica dentro da GT sem, contudo, especificar
de qual “existencialismo” estamos falando; tal crítica vale, também para o uso da
43
fenomenologia. Sem a pretensão de tentar resolver essa questão epistemológica,
de seu caráter metafísico empregado na busca da essência da consciência. Seu maior objetivo
era a questão “sobre o que significa para qualquer coisa ser” (Cerbone, 2013, p. 68). O
próprio conceito de consciência é criticado e superado pelo Dasein, que “refere-se ao existir
humano, que se dá como um acontecer (sein) que se realiza aí (Da), no mundo, sendo o
a questão, já que o compreender levaria ao entendido do próprio ser (Cerbone, 2013). A tarefa
da fenomenologia seria, então, "deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal
ontológica do ser, ou seja, aquela que já está implícita, se manifesta na atividade diária, logo,
isolar experiência consciente, como preconiza a fenomenologia pura, seria uma distorção do
A temporalidade e historicidade são centrais nesse pensamento, pois é por meio delas
que se dá a possibilidade de compreender a existência humana, que era seu principal objetivo
(Moreira, 2010; Gonçalves et al, 2008). O Dasein é constituído por Existências Fundamentais,
44
Para Heidegger, era necessário superar o Esquecimento do Ser e resgatar sua ontologia
(Gonçalves et al, 2008). Ele defende, assim, um ser que está sempre se transformando
(Heidegger, 1927/2015). Buscar uma ontologia de substância, ou seja, uma realidade própria e
À nossa relação com objetos, Heidegger denomina uma ocupação; já com os outros, a
solicitude, os quais revelam a estrutura geral do nosso Dasein e que leva o nome de cuidado
(Heidegger, 1927/2015). De acordo com Cerbone (2013) “o cuidado sumariza a ideia de que
as coisas aparecem importando para nós de vários modos, mesmo quando nos encontramos
indiferentes para com elas” (p. 84), que seria resumida na fórmula adiante-de-si-já-em (o-
trazendo a ideia de que aquilo que se é não está fechado ou já previamente estabelecido, mas
algo para o qual sempre devemos nos projetar (Cerbone, 2013). Essa noção de projeção nos
possibilidades.
Befindlichkeit, que diz respeito a como estamos no mundo em disposição, ou seja, a ideia de
nosso ser-no-mundo nem sempre é uma questão de escolha: estamos lançados à existência,
não escolhemos nascer, por exemplo (Cerbone, 2013). Nosso passado, de certa forma,
influencia nossa orientação para situações e como elas se apresentam, não sendo, entretanto,
algo estático. Esse mesmo passado é transformado e afetado pela forma como nos projetamos
em nossas possibilidades.
45
Por fim, o sendo-junto-a se relaciona à compreensão daquilo que estou fazendo agora,
denominado de queda, já que o Dasein está caindo, pois está sempre implicado em uma tarefa
completo, mas sempre a caminho de ser. Passado e presente são orientados pelas
Isso não quer dizer, contudo, que nossa atividade é puramente subjetiva: há uma
relação normativa, de uma dimensão anônima (das Man) que indica a finalidade padrão,
como, por exemplo, uma caneta se destina a escrever, mesmo que possamos utilizá-la para
outros fins. Não somos nós que imbuímos a tudo um significado, mas já encontramos a caneta
para este fim, o que nos leva a pensar que nosso mundo é público e o Dasein é um “ser-no-
Esse das Man não nos influencia apenas de um modo neutro, mas se refere, também, a
uma autoridade anônima a qual submetemos nossa existência a ela e a tomamos como forma
de nivelamento, uma preocupação com o estar a altura (Cerbone, 2013). Somos imersos no
das Man e buscamos um sentido de individualidade. Partindo da ideia de que o ser é um tema
para o Dasein, quando este se dispersa e se perde no mundo e no das Man, Heidegger chama-
o de inautêntico, o qual deixa de se autopossuir e não encara mais a sua existência como um
tema (Heidegger, 1927/2015). Para ir em direção à autenticidade, é necessário que haja algo
que destrua com esses padrões. Esse momento de rompimento é chamado de angústia
(Angst), conceito fundamental para abordar a existência humana. Cerbone (2013) ensina que:
46
Mais dramaticamente, na angústia, o mundo e tudo que ele contém se distancia como
irrelevante, como não mais reivindicando nossa atenção ou ocupação. Isso não é uma
questão de perder a consciência, de modo que na angústia simplesmente cessamos de
ver nossos arredores, mas mais uma questão de desapego e desafeição; o mundo e o
que ele tem para oferecer, mostra-se como inteiramente sem importância ou apelo (p.
94)
Esse distanciamento faz com que o ser se confronte com sua própria existência e seu
modo de ser-no-mundo. Heidegger (1927/2015) afirmar que “aquilo com o que a angústia se
angustia é o ser-no-mundo como tal” (p. 249) e prossegue dizendo que a ameaça está presente
e, ao mesmo tempo, em lugar nenhum, ou seja, o nada, que não se revela. Esse nada se funda
Esse sentimento gera uma estranheza, um não se sentir em casa, pois arranca o Dasein
Outro ponto que torna a angústia ameaçadora é o fato de ela nos revelar e confrontar
com a morte, já que a morte se determina a partir da própria essência ontológica da vida,
A morte não pode ser superada; todos nós vamos morrer. Essa é a condição mais
própria do ser humano, já que a morte não pode ser transferida, delegada. Reconhecer nossa
mortalidade como algo que nos é próprio, se reconhecer como um ser-para-a-morte significa
47
uma forma de buscar a realização da autenticidade pelo Dasein. Ao ser deparado com nossa
finitude, segundo Heidegger (1927/2015), seria como um impulso para olharmos com mais
cuidado nossas escolhas, pois o nosso tempo também é finito. Seria uma forma de
despertamos e tomarmos posse da nossa existência, uma decisão, “escolher escolher” e não
apenas ser levado pela tranquilidade do das Man (Heidegger, 1927/2015). O apelo é para que
Mas, é nessa angústia que está o caminho para a autenticidade, isto é “(...) o ser-livre
para o ser-livre para... para a propriedade de seu ser enquanto possibilidade de ser aquilo que
já sempre é.” (Heidegger, 1927/2015, p. 252). Existir é sempre um fato e a angústia convoca o
Dasein para confrontar sua própria existência, para que se perceba a capacidade de escolha e
aspectos existenciais de cada cliente buscando, a partir da awareness, fazer com que a pessoa
redescubra seu poder de escolher perante sua existência. Assim, a pessoa estaria se
própria angústia que essa liberdade gera: ao ser o autor de suas escolhas, ao se orientar por
uma existência autêntica, o sujeito torna-se seu próprio senhor. De acordo com Cardinalli
48
(2004), a clínica tornaria possível e saudável a escolha, devolvendo o poder da vida ao ser
humano para que suas potencialidades sejam realizadas sem angústia, em sua plena vontade e
respeitando seus desejos. O intuito é o de apresentar ao ser humano a sua própria perspectiva,
a partir de seu pensamento e convicção. Não mais produto passivo do meio e de sua história,
Para a GT, essa influência se traduz, também, na crença de que o ser humano está
constantemente se re-fazendo, não havendo, portanto, uma natureza humana básica a ser
transformando continuamente por seu estar-no-mundo e criando sua existência por meio de
suas ações, direcionadas por sua temporalidade. É o ser que a cada momento que tem
2005).
Segundo Sartre (1987), a existência precede a essência. Isso se reflete na clínica pela
próprio ser o determinante de sua existência: ele só pode ser entendido a partir de sua própria
caracteriza constantemente. Somente a realidade pode ser definida pelo indivíduo. Vive-se e
então se é. A beleza deste pressuposto é começar a entender que só se é o que se decide ser -
“(...) a essência surge como uma resultante de seus atos.” (Ribeiro, 1985, p. 56). Sartre (1987)
afirma que
se Deus não existe, há pelo menos um ser, no qual a existência precede a essência, um
ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o
homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana. Que significa então que a
existência precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se
49
descobre, surge no mundo; e que só depois se define. O homem, tal como o concebe o
existencialista, se não é definível, é porque primeiramente é nada. Só depois será, e
será tal como a si próprio se fizer (p. 5).
Para além das diversas correntes existencialistas, Fonseca (2007) afirma que os temas
servem como base para o pensamento clínico em GT, além de influenciarem diretamente a
2.3. Humanismo
Essa corrente foi escolhida para ser a última a ser discutida neste trabalho por ter sido
diversos pontos que não serão retomados. Nesse sentido, o humanismo prima por um retorno
ao humano. Se durante o renascentismo esse paradigma havia chegado para libertar o homem
objetivo de devolver ao ser humano o direito de ser aquilo que se é (Ribeiro, 2011). A visão
mecanicista estava impregnada nas ciências de modo geral e se fazia necessário uma mudança
de paradigma.
Entretanto, por mais que aqui referenciamos como uma base filosófica para a GT, o
humanismo não possui ideias fechadas, orientações ou um corpo teórico próprio. Ele poderia
ser apontado, como nos mostra Holanda (2014), como um conjunto de ideias que
(...) não há, propriamente uma “corrente” humanista ou uma “escola” humanista que
se possa destacar da história do pensamento – seja na Filosofia ou em qualquer das
ciências humanas e sociais. Seria mais apropriado encararmos o humanismo como um
50
“movimento” contínuo, que invariavelmente brota em duas direções: por um lado,
como crítica a apropriações diversas que – de certa forma, “dessubjetivaram” a
realidade, ou que desapropriam o sujeito humano de sua própria perspectiva – e
privilegiam valores específicos em detrimento de uma visão de “globalidade” –
melhor seria dizermos em detrimento de uma visão de interação ou de complexidade -;
e por outro lado, como um projeto de valorização (ou de re-valorização) do humano
(p. 107).
naquilo que ele tem de mais particular: a sua relação intersubjetiva, a convivência da pessoa
A GT pode ser considerada como uma terapia de cunho humanista principalmente por
constituição do ser humano como em relação com os outros, olhando em sua totalidade
Tal movimento influenciou um despertar de valores que levaram a uma maior e mais
51
(Ribeiro, 1985). A valorização do homem em sua singularidade faz com que ele próprio seja a
diretamente lidar com o que de positivo tem a pessoa, procura lidar com seu potencial
de vida (saúde, beleza, força etc.), procura que o cliente tome, de fato, posse de si
mesmo e do mundo. (...) É a postura humanística que, sem esquecer os limites
pessoais, os fracassos e as impossibilidades de mudanças, aqui e agora, procura fazer
uma reflexão a partir do positivo, do criativo, do que é ainda potencialmente
transformador (...). (Ribeiro, 1985, p. 44).
se a terapia transforma assim numa arte de viver, o terapeuta abandona por sua vez seu
compromisso com a ciência para assumir a função do guru, aquele que sabe
naturalmente viver. (...) o estilo de linguagem deriva da vocação mais profunda da
nova terapia: da vocação que faz com que ela se esquive do domínio do saber para
consagrar-se ao domínio da sabedoria (Prado Jr, 1977, p. 91).
Talvez essa crítica realizada faça sentido principalmente pelo expoente mais
conhecido da GT ser o próprio Perls que afirmava abertamente que teorizar era
Apesar dessa análise, não podemos desvalorizar a importância dessa corrente para a
realidade para ser a própria pessoa, como ser pensante, o objeto do estudo. E como foco de
observação seria impossível pensar o outro sem se-pensar também. Por meio dessa
determinada: é pela criatividade que o homem rompe com os condicionamentos e cria sua
natureza.
52
3. Bases Teóricas
Alguns autores como Yontef (1998), Holanda (2005), Henle (1978, em Yontef, 1998)
questionam como a Psicologia da Gestalt pode ser considerada uma teoria de base para a
Gestalt-terapia por parecerem contraditórias em diversos aspectos. Essa diferença pode ser
que é impossível comparar os dois pensamentos olhando somente para os detalhes de suas
partes, mas uma aproximação possível seria a partir de um reconhecimento do todo (Yontef,
1998, p. 155-158).
imediatamente experienciado, que é o todo da situação percebida. Esse todo tem qualidades
próprias que não são possíveis de serem apreendidas pela mera soma das partes: o todo é
Os objetos são percebidos se destacando de um fundo, sendo a atenção voltada para uma
figura (Antony e Ribeiro, 2004). Ou seja, emergência de figuras se dá por meio de um fundo
importante se torna figura e quando é satisfeita retorna para o fundo e abre espaço para que
uma nova figura emerja, completando, assim uma Gestalt. Para estes autores, o enrijecimento
53
problemas, pois deixa Gestalten incompletas. A partir do princípio da boa-forma da
Psicologia da Gestalt, compreende-se que há uma tendência para que a percepção de uma
Psicologia da Gestalt, que significa uma reorganização dos dados díspares no e do campo em
uma unidade de sentido, um todo. Para Yontef (1998) “tanto a Gestalt-terapia quanto a
psicologia da Gestalt buscam um insight das forças que fornecem a estrutura inerente da
situação, processo ou evento em estudo. Ambas incluem todos os tipos de dados, conforme
Nesse sentido, o cliente, em GT, é um todo. Rodrigues (2000) afirma que a Gestalt-
Terapia teria como um de seus objetivos fazer com o cliente se considere uma totalidade, que
vai além da parte que ele traz em sessão. Ele se mostra para o terapeuta por meio de uma parte
sua, aquela que ele elencou como uma figura para o momento. Assim, “o homem é um ser em
processo dinâmico. Não se pode seccioná-lo para entendê-lo. Tudo nele tem sentido a partir
de seu todo” (Ribeiro, 1985, p. 72) e, tendo ciência que o todo é diferente de um mero
agrupamento das partes, o terapeuta pode compreender que transformar uma parte também é
alterar a totalidade, mas que a compreensão da pessoa precisa ser realizada orientada para um
todo.
54
3.2. Teoria de campo: “eu sou eu e minha circunstância”
É apontada como a teoria que melhor se afina aos pressupostos teóricos da GT, bem
como de suas bases filosóficas, sendo um pensamento que auxilia na coesão de suas bases
fundamentais (Yontef, 1998; Holanda, 2005). Como afirma Parlett (1991), normalmente
usamos mapas para entender territórios e a teoria de campo não seria um mapa específico,
influenciáveis que, em conjunto, formam uma fatalidade interativa unificada” (p. 185). Tal
ideia de campo nasce a partir dos estudos realizados pela Psicologia da Gestalt, em que se
observou que a forma como um objeto é percebido determina-se de acordo com o contexto
em que este está inserido, ou seja, partindo-se das relações que este objeto estabelece em seu
campo perceptivo e não na individualidade dos componentes deste campo. Uma figura só faz
sentido em um fundo.
conjunto de fatos que compõem o campo em dado momento; começar sua análise
De acordo com Lewin (1965), a pessoa (P) é circundada pelo meio psicológico (M)
que, por sua vez, é circulado pelo mundo físico – P + M = espaço vital (V). Tanto a pessoa
quanto o meio psicológico têm limites, mas que são permeáveis e estão em mútua
atualmente presentes.
55
Atualmente está grifado no parágrafo anterior, pois a temporalidade é um ponto fulcral
dinâmico, ele só pode ser compreendido no aqui-agora (Yontef, 1998). Logo, esta constante
se passaram que dizem respeito a nós, porque aquele campo não está mais presente agora.
não estão preocupados em explicar os fenômenos buscando o que se passou ou no que será,
mas com o que é. As circunstâncias do presente afetam o modo que o passado ou futuro são
Assim, a pessoa é um campo organismo/ambiente, sendo que “tudo que existe consiste
em uma teia de relacionamentos. Um campo é uma teia de relacionamentos que existe num
contexto de teias de relacionamentos ainda maior” (Yontef, 1998, p. 186). Esta teia segue uma
dinâmica de organização e busca um equilíbrio e, assim, quando há uma tensão neste arranjo,
Então, o indivíduo é definido, num dado momento, apenas pelo campo do qual faz
vista de alguém (Ribeiro, 2006). Assim, sujeito e objeto não são uma dicotomia, mas
adquirem suas qualidades por meio de sua interdependência, propriedades estas que só tem
A partir da ideia de que o campo se define por meio de sua temporalidade, suas
56
campo organismo/ambiente implica no princípio da singularidade. Ou seja, cada pessoa é
única e por isso generalizações são suspeitas, pois, de acordo com esse pensamento, o
indivíduo não respeita uma ordem previsível, pois está no fluxo do/com/para o campo.
Na clínica em GT, isso implica em não haver procedimentos fixos, já que se foca no
processo emergente. Tudo é estruturado pelas forças dinâmicas do campo, que se move pelo
tempo e pelo espaço. Os fenômenos clínicos são descritos em termos de processos e não de
3.3. Holismo
O holismo foi primeiramente pensado por Jan Smuts em seu livro Holism and Evolution,
em 1926. Neste livro, Smuts propõe que o verdadeiro avanço só poderia ser realizado quando
ciência e filosofia se aproximarem e, a partir disso, busca desenvolver sua teoria (Lima,
2008). A palavra Holismo vem do grego holos, que significa todo ou inteiro. Smuts define
Holismo como algo que subjaz “a tendência sintética no universo e é o princípio que faz a
Ribeiro (2009) afirma que os três princípios básicos do Holismo são: “tudo afeta tudo,
tudo muda e tudo é um Todo” (p. 61). O Universo, segundo este pensamento, tem muita
similaridade com a ideia da Psicologia da Gestalt sobre o todo. Nesse sentido, o Holismo
acredita que o Universo não é um simples agrupamento de partes que se relacionam, mas
1
Tradução livre do “(…) the synthetic tendency in the universe, and is the principle which makes for the origin
and progress of wholes in the universe”
57
A partir dessa ideia de Universo, Smuts acredita que a própria evolução da natureza é
também uma criação, uma assimilação ativa do organismo de novas formas de se relacionar às
predeterminações futuras (Lima, 2008). Tal formação de tudo no Universo se daria por meio
de uma estratificação a partir de princípios inorgânicos até as formas mais complexas, por
(Lima, 2008).
Mais do que uma ferramenta para o contexto clínico, o Holismo para a Gestalt-Terapia
deu bases para o rompimento definitivo com o pensamento mecanicista e reducionista (Lima,
2007; 2008). Segundo essa autora, a incorporação do holismo pela GT abriu as portas para o
Pode-se também pensar que o holismo traz uma forma de pensar o ser humano muito
diferente da corrente científica vigente na época e isso reflete na prática clínica: ao separar o
ser humano do todo com a errônea ideia do individualismo, de acordo com o paradigma
científico moderno, cria-se a ideia, segundo Ribeiro (2009) de uma “esquizofrenia globalizada
que o Planeta vive” (p. 42). Segundo o autor, retomar a conexão do ser humano com seu
2005). Segundo a autora, foi o neuropsiquiatra, Kurt Goldstein que, ao trabalhar com soldados
lesionados, propôs que nenhum sintoma deve ser entendido apenas partindo de uma lesão
58
Apesar dessa premissa, Goldstein buscava estudar os seres humanos a partir de um
viés biológico. Como foi uma teoria de grande influência dentro da GT, podemos encontrar
muitos termos que seguem essa tendência, como organismo, comportamento normal e
anormal. Lima (2005) aponta que isto é uma contradição dentro da teoria gestáltica, pois
embasado” (s.p.).
uma clara influência da Psicologia da Gestalt. Além disso, só seria possível apreender a
existência a partir da relação com os outros no mundo, ideia próxima a Teoria de Campo.
manifestação do princípio de autorrealização, sendo, na maioria das vezes, estados falhos aos
Este princípio se relaciona diretamente com a ideia de Gestalt aberta, posto que o organismo
está inclinado a pragnância para se organizar: a busca pela autorrealização é a orientação por
gestalten com boa forma (Yontef, 1998). Assim, um sintoma também é visto por Goldstein
59
como uma forma de busca de equilíbrio. Esta seria uma maneira de resposta do organismo a
uma demanda do meio, ideia que será englobada pela GT (Lima, 2005).
O ponto em comum das teorias de base da Gestalt-Terapia é que elas atentam para a
retomada do ser humano total, para que se entenda a pessoa partindo de sua totalidade. A
Psicologia da Gestalt traz a ideia de que o Todo não é um mero agrupamento das partes, além
de dar bases para melhor compreensão da mudança do campo perceptivo na clínica. A Teoria
do Campo retoma a importância do campo para o ser humano, ou seja, ele é do campo e no
paradigma moderno das ciências. Por fim, a Teoria Organísmica traz a importância do corpo,
primam por uma pessoa em transformação, que tem suas potencialidades e se dirige para o
crescimento; que não é dicotômica, mas é o organismo e o ambiente, que é ativa, pois
intenciona os objetos.
Assim, as bases teóricas e filosóficas são importantes para a compreensão da visão que
a GT tem de pessoa. PHG (1997/1951), no livro inaugural da abordagem, dão pistas sobre o
Podemos ver, de início, que a tendência dos autores foi a de se focar no crescimento humano,
no desenvolvimento de suas potencialidades, sua espontaneidade que, por ter sido criado
numa “atmosfera cheia de rupturas, perdeu sua inteireza, sua integridade. Para reintegrar-se de
novo, ele tem que sobrepujar o dualismo de sua pessoa, de seu pensamento e de sua
60
A pessoa é entendida, então, como um organismo total, do qual só poderá ser vista em
sua totalidade, sendo compreendida a partir de sua função do/no campo organismo/ambiente –
(Yontef, 1998). Isso significa uma abordagem unitária e não dicotômica entre o organismo e o
ambiente. Então, a compreensão daquilo que é pessoa só tem sentido se olhado todo o campo
teoria de campo de Lewin, se refere a um fenômeno que leva em conta todas as forças que
podem moldar e/ou dar sentido a uma figura emergente. Já o ambiente não se refere apenas ao
totalidade significativa de tudo aquilo que eu encontro e que me interpela (...) eu sou, cada
vez, um mundo e o mundo que eu sou me é dado, cada vez, nesta minha situação” (p.148).
Assim, o mundo se organiza de acordo com nossa percepção, que é um processo unificado:
não há somente um mundo dado ou um mundo percebido, mas uma relação que dá sentido a
se chama contato, que é a forma da fronteira funcionar entre o organismo e seu ambiente
(PHG, 1997/1951). Essa limita e protege o organismo ao mesmo tempo em que realiza trocas,
61
organismo, não é estrutural ou um lugar específico, mas muda de acordo com as necessidades
"falamos do organismo que se põe em contato com o ambiente, mas o contato é que é a
realidade mais simples e primeira" (PHG, 1951/1997, p. 41). Sendo essa realidade que se dá
na experiência imediata, o contato é uma função realizada pelo organismo com vistas a
Como levanta Robine (2006), o contato abrange algo, ao mesmo tempo, mais e menos
amplo que a relação: o contato pode indicar a relação interpessoal, mas também uma parte
mais primária que ainda não é a relação “mas simplesmente aquilo que articula o sujeito com
aquilo que é o não-eu, que seja humano ou um objeto” (p. 29). Dessa forma, o contato não é
representado como um investimento no objeto, mas como “um esquema sensório-motor” (p.
51).
inevitáveis (Polster & Polster, 2001). É na fronteira onde o contato se intensifica, sendo onde
o organismo toca o ambiente, é tocado por ele, modifica seu campo e por ele é transformado
(Ribeiro, 2006).
1997/1951, p. 45). Ou seja, awareness é uma forma de entrar em contato com a figura
62
Para Alvim (2014), a awareness é dada de modo pré-reflexivo, já que na re-flexão há
presentes no campo, orienta a formação de gestalten, produzindo um saber tácito” (p. 15).
imediata.
O objetivo principal da GT, então, é a awareness que, segundo Ginger e Ginger (1987)
perceptiva”. Esse processo seria imprescindível para a mudança, pois estar aware é estar em
contato: “a awareness não é uma reflexão sobre o problema, mas é ela própria uma integração
fronteira, na medida em que se delimita a cada contato, precisa ter plasticidade, para se
al, 2014). Nesse sentido, ela demarca o eu do não-eu, dando início a um ciclo dinâmico de
fechamento de Gestalten. É por meio dessa experiência que o organismo assimila o não-eu
63
em um eu, que implica em crescimento e transformação da organização anterior ao contato
(Robine, 2006).
o fundo possui as experiências de contato que foram sendo reintegradas ao longo do tempo.
das necessidades campo organismo/ambiente. Essa é uma “tendência de uma forte tensão a
dominância pode ser espontânea, seguindo a autorregulação natural do organismo ou pode ser
Além disso, ainda pode se organizar frente a gestalten abertas, já que “cada situação
inacabada mais premente assume a dominância e mobiliza todo esforço disponível” (PHG,
“se considerarmos a relação figura/fundo, poderemos dizer que o mais importante (...) [é] a
‘/’, a relação entre ambos. E, portanto, os fatores que levaram à elaboração dessa dominância”
figura pode ser compreendido como a própria emergência de uma direção de sentido de
64
organismo/ambiente (Robine, 2006). O desenrolar dessa intencionalidade que inicia o próprio
novidade gera uma mudança e desestabiliza o equilíbrio anterior, mas o organismo busca
retornar a uma homeostase. Esse ajustamento é criativo e pode ser compreendido como um
ou criação por si só não integra a novidade no campo (Robine, 2006) e, nesse sentido, “todo
dessa nova situação e da descoberta de estratégias para dar conta da mudança. Assim, esse
processo se orienta e se energiza pela agressão e destruição de velhas formas para assimilação
elementos do campo que são tóxicos e, portanto, devem ser rejeitados para sua manutenção e
crescimento.
necessários ao ajustamento no campo imbricado (...) não se deve pensar o self como uma
instituição fixada; ele existe onde quer que haja de fato uma interação na fronteira de contato”
(p.179). Nessa formulação de self, percebe-se que não é uma entidade fixa, um núcleo ou
65
essência da pessoa, mas um processo de ajustamento que se dá em situações de contato: se
refere ao como da pessoa, à sua forma de ser-no-mundo (Spagnuolo-Lobb, 2011; Ginger &
Ginger, 1995).
Assim, o self é o próprio processo figura/fundo e quando o campo exige contato, o self
está mais intenso e quando a situação vai alcançando o equilíbrio, o self se reduz. Ou seja, é
uma função do campo e se presta a contatar a situação concreta e transiente, sendo limitado
Essa função não pertence ao organismo nem ao ambiente, mas se dá nesta relação.
Dessa forma, o self é temporal, é um devir, ocorrendo nos processos de contato que ocorrem
em uma fronteira de contato que não é fixa. Não é conhecido de antemão, mas revelado em
sua temporalidade e por isso a atitude fenomenológica é buscada dentro da GT, pois se busca
“atingir o fenômeno em seu movimento, penetrar e estar implicado nele e ser capaz de
Essa ideia de self, de acordo com Robine (2006) é a maior ruptura empreendida pela
GT, pois ao conceituar self como contato, Perls e Goodman introduzem uma temporalidade
implícita. Self, portanto, não é substância ou essência, mas o próprio ato de contatar. Esse
self tradicional, atrelada ao eu, é uma construção conceitual que faz com que cada um seja
Nesse contexto, podem-se destacar três atribuições do self (Ribeiro, 2006) ou três
formas de funcionamento (Ginger e Ginger, 1987): a função id, a função ego e a função
personalidade. Essas são algumas das funções parciais da função self, que atuam em
66
propósitos específicos, colocando atenção em alguns processos enquanto exercita livremente
o restante (PHG, 1997/1951). Estas são as principais funções e foram escolhidas para serem
trabalhadas dentro da GT por já terem sido tratadas de outras formas nas outras abordagens,
ou seja, por mais que PHG considerem o self como processual, descrevem algumas estruturas,
Essa divisão cria um embate epistemológico, ou seja, como o self, sendo visto como
processo, poderia ter funções específicas que atribuem a ele uma estrutura ou
terminologia, a GT tende a coloca-los de fundo para focar-se em outros processos, como a co-
criação da fronteira de contato. Funções id, ego e personalidade são apenas algumas das
capacidade de contato: “they are understood as examples of the person’s capacity to relate to
primitivo e as emoções básicas, as quais tem contrapartida direta no corpo (Ginger e Ginger,
1987; Ribeiro, 2006). Essa forma de funcionamento, entretanto, não se refere a conteúdos na
Ampliando essa noção, temos a ideia de dois tipos de contato: o que contata a
novidade, gerando crescimento e aquele que já foi assimilado e reintegrado ao fundo (PHG,
2
“eles são compreendidos como exemplos da capacidade da pessoa de se relacionar com o mundo” (tradução
livre)
67
contatos que já foram assimilados. Por exemplo, eu não preciso reaprender a andar toda vez
que levanto, mas se estou andando a primeira vez em um terreno escorregadio eu preciso
assimilar a novidade ambiental e agir com uma nova forma de andar. Assim, se relaciona ao
do id diz respeito às necessidade fisiológicas, que excitam o self e podem tanto vir do
necessidade fisiológica ou evento. Essa distinção é puramente metafórica, já que o self é uma
Por fim, outra maneira de funcionamento da função id, que articula essas duas
supracitadas, é a que se relaciona à experiência corporal, àquilo vivido como “dentro da pele”.
Esta forma oferece o senso de integração na experiência de confiança básica em fazer ou não
passadas são reintegradas e assimiladas, ou seja, a figura criada com a novidade no processo
de contato, construindo a noção de identidade (Ginger e Ginger, 1987; Ribeiro, 2006; PHG,
anteriores, por exemplo, se a pessoa se define como inteligente ela reorganiza sua forma de
3
“Ele reflete a delicada relação entre autossuporte e suporte ambiental, entre senso de preenchimento interno e o
senso que o ambiente pode ser confiado. As duas experiências estão ligadas; quanto mais se experiencia o senso
de ser capaz de confiar no ambiente, maior a experiência de preenchimento interno como um relaxamento da
angústia ou dos desejos fisiológicos. Vice versa, quanto mais segurança for sentida internamente, mais será
possível e funcional de confiar-se ao mundo” (tradução livre)
68
contato com o campo de forma diferente daquela que se acha incapaz. Ou seja, é um sistemas
de assimilações e alienações.
A função ego diz respeito ao “como” o self funciona, estando relacionado à realização
das necessidades, sendo a função que executa o contato (Ginger e Ginger, 1987; Ribeiro,
funcionando com base nas informações das outras duas funções supracitadas, pois a
deliberação é dada a partir daquilo que se sente e aquilo que se pensa de si (Spagnuolo-Lobb,
2011).
Essas funções parciais do self estão relacionadas ao ciclo do contato, que, como dito
anteriormente, se refere ao processo de contato com a figura de interesse no campo até o seu
fechamento e reintegração ao fundo. Durante o ciclo, o processo de contato passa por várias
fases diferentes e pode ser tanto fluido quanto bloqueado. Usaremos o ciclo do contato
proposto por Ribeiro (1997), no qual cada bloqueio no contato vem acompanhado de um fator
A seguir, serão descritas as diferentes fases do Ciclo do Contato proposto por Ribeiro
(1997):
69
movimentar-se, de deixar posições antigas, de ser espontâneo, de se deixar entrar em
contato intencionalmente;
2. Dessensibilização/sensação – A Dessensibilização é um processo no qual o organismo
sente-se quase desestimulado para o contato, havendo uma diminuição das sensações
sentidas pelo corpo, impossibilitando, assim, a diferenciação de estímulos. Já a Sensação é
estar aware dessa estimulação tanto externa quanto interna, estando atento e se
relacionando com excitamentos sensoriais;
3. Deflexão/Consciência – A Deflexão é uma atitude de evitamento do contato, por meio dos
sentidos ou um contato vago, distante, que floreia, mas não chega ao cerne da questão
diretamente. Polster e Polster (2001) afirmam que esse processo é uma forma de fuga e
evitamento, impedindo qualquer contato direto. Isso faz com que a ação fique esvanecida,
desenergizada, pois a energia está sendo desviada do alvo. Em um bloqueio do contato
nesta fase, a pessoa pode sentir-se desvalorizada e incompreendida. O fator de cura da
Deflexão é a Consciência, na qual o indivíduo sente-se atento ao que ocorre a seu redor e
de si mesmo de forma reflexiva.
4. Introjeção/Mobilização – Introjeção é uma forma de engolir elementos exteriores sem
assimilação (Ginger e Ginger, 1987). Isso faz com que a pessoa obedeça, aceite e siga
valores, normas e opiniões alheias que lhe são estranhas, havendo um desejo mudar, porém
preferindo situações que não lhe fogem ao controle. É como se a pessoa fosse, de certa
forma, invadido pelo mundo exterior, entregando seu senso de identidade (Polster &
Polster, 2001). Robine (2006) sugere que a introjeção, para ser considerada patológica,
deve ter sido interrompida antes de sua assimilação e que em uma forma saudável favorece
o conhecimento de regras sociais, linguagem etc. De outro lado, a Mobilização refere-se a
capacidade de assertividade quanto às necessidades, de expressar os sentimentos e
pensamentos, de “buscar meios propícios para a ação” (Carvalho, 2008, p.95) de se separar
do outro. É buscar as escolhas disponíveis, conseguir utilizar a agressividade para não
apenas aceitar as coisas como são, ou seja, não apenas perceber o que foi introjetado, mas
agir (Polster & Polster, 2001).
5. Projeção/Ação – Ao contrário da Introjeção, na Projeção a pessoa tende a responsabilizar o
meio. Ou seja, “enquanto na introjeção o self é invadido pelo mundo exterior, na projeção
é, pelo contrário, o self que transborda e invade o mundo exterior” (Ginger e Ginger, 1987,
p. 135). Ribeiro (1997) afirma que nessa forma de bloquear o contato o indivíduo está
incapacitado de identificar o que é de seu, atribuindo responsabilidades, sentimentos,
sensações que são suas de fato aos outros ou ao meio. É como se a pessoa não aceitasse
certos sentimentos e ações suas e, ao invés de reconhecê-las, coloca-as no meio,
distribuindo seu senso de identidade (Polster & Polster, 2001). Por outro lado, a projeção é
necessária para que se conheça minimamente alguns elementos do campo que não estão
óbvios, além de despertar sentimentos de empatia e alteridade (Robine, 2006). A Ação é o
fator de cura desta fase, na qual a pessoa se responsabiliza por seus sentimentos e atos,
assumindo um comportamento que se direciona rumo ao contato (Carvalho, 2008). Além
disso, o indivíduo tem uma postura de maior confiança em seu meio e nas pessoas.
6. Proflexão/Interação – Na Proflexão, mecanismo pensado por Sylvia Crocker, há uma
combinação de retroflexão e projeção (D’Acri, Lima e Orgler, 2007). A pessoa faz e/ou é
com os outros aquilo que deseja que os outros façam ou sejam com ela, sempre agindo na
70
esperança de receber em troca. É como se houvesse uma substituição da pessoa pelo meio
(Yontef, 1998). A Interação, por outro lado, é justamente o conviver sem esperar esta
troca, compreendendo que apenas o estar com no aqui-agora é fonte de prazer e
completude.
7. Retroflexão/Contato Final – A Retroflexão é o bloqueio no contato em que a pessoa volta
para si mesma a energia que deveria ser investida nos outros (Ginger e Ginger, 1987).
Ribeiro (1997) afirma que o indivíduo em um bloqueio como este se acha inadequado,
sente-se que é sua própria inimiga e não faz determinadas coisas por medo de se ferir ou
ser ferida. Nesse caso, ela investe a energia no único lugar seguro que conhece: ela própria
(Ginger e Ginger, 1987). Há crescente cisão na integridade da pessoa, já que ela bloqueia a
excitação para o meio e se estagna (Polster & Polster, 2001). O Contato Final é quando se
dá o contato, o momento em que há a interação entre o organismo e o objeto, usando essa
energia para “usufruir o prazer do momento” (Ribeiro, 1997, p. 48). Os Polster (2001)
também afirmam que é preciso haver uma integração entre essa divisão para que a pessoa
possa buscar no meio o alvo de sua energia.
8. Egotismo/ Satisfação – O Egotismo ocorre quando um indivíduo volta-se excessivamente
para si próprio e, buscando resistir ao contato que lhe faz mal, tenta controlar rigidamente
todo o meio externo, impondo suas vontades (Ribeiro, 1997). Entretanto, Ginger e Ginger
(1987) afirmam que um período de Egotismo é necessário no processo terapêutico, pois é
uma retomada da responsabilização de si mesmo, além de fortalecer sua autossuficiência e
promover a awareness de seus processos. É claro que isso é um período transitório no
processo, tendo a Satisfação como o fator de cura. Neste caso, a pessoa tem a capacidade
de reconhecer que o objeto o qual ela fez contato é fonte de nutrição e que o meio externo
pode ser fonte de prazer.
9. Confluência/Retirada – Na confluência o indivíduo fica ligado aos outros e/ou ao meio,
sem saber o que é seu e o que é do outro. Teme ficar sozinho, submetendo-se a valores dos
demais com o objetivo de agradá-los, sendo que seu senso de eu se confunde com o do
outro. Yontef (1998) afirma que a fronteira de contato é perdida frente à tamanha
indistinção. A retirada, por outro lado, é quando a pessoa se retira da situação,
diferenciando aquilo que é seu e o que do outro. É preciso diferenciação e articulação,
presenciando a liberdade de escolher aquilo que lhe convém sem se submeter com os
desejos das outras pessoas ou meio (Polster & Polster, 2001). Nas palavras de Ribeiro
(1997) “amo o ‘eu’ e aceito o ‘nós’ quando me convém, procuro o novo e convivo com o
velho de uma maneira crítica e inteligente” (p. 49).
relacionadas à função id, ou seja, com o sistema sensório-afetivo. Por outro lado, a
71
Na prática, nem sempre o contato passa por todas essas fases e, como afirma Ginger e
Ginger (1987) “são numerosas as Gestalten inacabadas, os ciclos interrompidos por uma
não permite o desabrochar do self” (p.132). Essa divisão é puramente didática e metafórica.
compreendida na sua intencionalidade e campo em que está inserida. É, portanto, “uma força
criativa para administrar um mundo difícil” (Polster & Polster, 2001, p.67). Assim, nem todos
os bloqueios tem características de serem disfuncionais. Além disso, bloquear não significa
que o contato não será realizado, mas que a espontaneidade fica comprometida (Robine,
2006).
percepção, influenciada pela psicologia da gestalt. Porém, essa estrutura também está
figura/fundo.
A natureza humana, portanto, é flexível, em parte dada pela estrutura que constitui
pelos aspectos que fazem que nos percebamos como humanos e, por outro lado, é construída
pela interação com o campo e nossos ajustamentos criativos. Essa parte dada da estrutura
também é uma potencialidade, pois a natureza humana é sempre recriada, mas também indica
72
CAPÍTULO III – GESTALT-TERAPIA E PSICOSE: UM DIÁLOGO POSSÍVEL
A psicose não se entrega. Nesse trecho, Maldiney (1976, em Tatossian, 2006, p. 317)
pensar em outras abordagens, a pessoa que tem uma experiência de psicose existe. Uma das
Dentro dessa ideia como a Gestalt-terapia, então, compreende a psicose? Como pensar
uma vivência, que tem sido vista dentro de um paradigma biológico, como um impasse
que se desvela no aqui-agora, sem a prioris. Essa ideia é correta, mas há algo que escapa e que
73
nos faz, por vezes, recorrer a outras abordagens. Para Robine (2006b), a psicopatologia,
enquanto a compreensão do pathos, do sofrer, deve ser inerente à psicoterapia, mas não deve
vir anterior à prática, com o perigo de a clínica ser apenas uma psicopatologia aplicada.
Segundo o autor, esse estudo dentro da GT se refere ao olhar para experiência e “et cette
quebras paradigmáticas realizadas pela GT, mas um estudo que nos dê base para ampliar a
Nesse sentido, partimos do ponto de que a psicoterapia gestaltista existe por acreditar
que ela pode produzir mudanças. Algumas pessoas sofrem e, em algum momento de sua
existência, pode ocorrer uma vivência em que a pessoa se sinta incapaz de ser lidar. E por isso
a psicoterapia seria uma forma de construir a criatividade – o ajustamento criativo – frente aos
de um bom contato. Ou melhor, a algo que se apresenta de uma forma, mas que poderia ou
deveria ser diferente do que é (Robine, 2006). Isso nos remete a necessidade de clarificar a
ideia de (a)normalidade para a GT, que por vezes está mascarada, mas que com certeza serve
de norte para os gestaltistas. Dessa forma, como conciliar uma abordagem de campo com a
4
“E a psicopatologia só pode ser uma psicopatologia dos movimentos do campo e suas flexões, ou seja, uma
psicopatologia do contato, psicopatologia da presença no mundo, a psicopatologia da ligação com os outros e
com o mundo” (tradução livre)
74
necessidade de um sujeito diferenciado? Ou, como nos aponta PHG (1951/1997), de que
Para PHG, seria necessária uma terapia que estabeleça o mínimo possível de norma e
que se concentre naquilo que emerge da situação concreta, ou seja, “estrutura da situação é a
coerência interna de sua forma e conteúdo; e estamos tentando mostrar que se concentrar
uma ideia de normalidade rígida a qual o paciente precise voltar e, assim, corroborar a própria
teoria. Sair de um estado conhecido como doente pela abordagem para entrar em uma
nivelação esperada nada mais é do que se encaixar em outro modelo absoluto exigido do
contexto terapêutico: “confrontado com um padrão de saúde à altura do qual ele não pode
chegar, o paciente é culpado (...) cada vez mais o método tem razão e o paciente está errado”
(p. 94).
sua finalidade como uma situação que se dirige a seu fechamento. Na segunda, a ação é vista
em comparação com outra coisa, seja um ideal de ego ou de saúde. Uma avaliação
comparativa não faria sentido dentro da GT pelo perigo de alienação da vivência da pessoa,
sendo preferível um olhar a partir daquilo que emerge de sua própria autorregulação. Assim,
Se funda naquilo que, teoricamente, temos como visão de mundo e pessoa, enquanto campo
75
organismo/ambiente, dotado de temporalidade. Isso nos remete ao debate sobre a teoria de
personalidade em GT, já que aquilo que se deseja alcançar, como pessoa, é própria dessas
formulações. Primeiro, devemos relembrar que a função personalidade do self não se refere a
uma ideia de aspecto normativo das estruturas psíquicas, mas a uma habilidade de fazer
Dada essa diferenciação, por um lado temos Holanda (2005) afirmando que falta aos
O que o autor traz é uma reflexão sobre a nossa noção velada de normalidade, que se
normalidade” (Augras, 2002, p. 12). Isso nos remete à uma avaliação intrínseca, mas só faz
Por outro lado, temos Yontef (1998), que define alguns aspectos de uma teoria da
Ainda sobre essa ideia processual, Deslile (1999) insere, também, o pensamento de
76
comportamental, dando um senso de identidade. Essa organização poderia ser vista,
bloqueios.
Temos, também, outra visão de Ribeiro (2005), que afirma que “a Gestalt-Terapia,
personalidade” (p.159). Além disso, aponta que “podemos dizer que uma das riquezas da
Gestalt-terapia é não ter uma teoria de personalidade que a constitua, com o perigo de
sendo o ser algo a ser conquistado, trabalhado e intencionado (Fernandes, 2005). Há uma
essa possibilidade. Isso traz a ideia de abertura para a criação: o ser não é algo pronto, mas um
conjunto de possibilidades, que, ao decorrer de sua existência, vai se atualizando, sendo livre
vivencial, estando intimamente ligada pela forma de perceber o mundo, de realizar contato.
Por ser impermanente, o foco está na maneira de experienciar o tempo e o espaço na vivência
77
imediata, pois comporta a totalidade da experiência, em que passado e futuro se fundem e se
Assim, a natureza humana, se esta é possível de ser apontada, é vista como uma
temporalidade, ou seja, “só pode ser conhecida da maneira como foi realizada nos feitos da
história, e da maneira como cria a si própria hoje” (PHG, 1951/1997, p. 126). A experiência
integram em uma totalidade doadora de significação ao campo que se forma (Távora, 2005).
ter uma visão de pessoa a qual nos referimos. Por esse motivo de divergências sobre a
constituição de uma teoria de personalidade ou não dentro de GT, nos apoiamos nessa ideia
trazida por Forghieri (2005). Acreditamos que, de fato, não possuímos uma teoria de
personalidade, mas de pessoa. Sem esvaziar essa discussão que pode ser frutífera, observamos
que não possuímos uma visão essencialista e estrutural da personalidade, mas possuímos uma
sendo, também, o próprio ambiente. Um projeto nunca pronto, tendo a própria pessoa como
78
A base para pensarmos esses construtos e consequente prática psicoterapêutica, é a
próprio sentido de pessoa, seja suas ações, emoções, pensamentos, relações, se dá na direção
(Latner, 1973).
portanto, de uma normalidade inerente, que seja desejável alcançar, mas de um funcionamento
determinado campo ou momento, mas em outros não. É por isso que é impossível falarmos de
processo de formação figura/fundo pode ocorrer de forma vívida e fluida: para que as
gestalten sejam criadas de acordo com a intencionalidade das necessidades, é necessário que
(Latner, 1973).
Perls (1977) define saúde como o “equilíbrio apropriado da coordenação daquilo que
somos” (p. 20). Assim, a ideia do saudável é mais do que um construto pronto, a qual é dada
ou tida por alguém, mas algo que se relaciona com o próprio existir. Não se pode localizar,
organismo/ambiente. Não é algo que temos, mas que somos e que permeia todo o campo
79
organismo/ambiente. A saúde se expressa pela “ability to deal successfully with any situation
we encounter now, and success is the satisfactory resolution of situations according to the
assim poderíamos estar em contato com as necessidades que emergem e escolher aquela mais
espontaneidade; conhecimento das nossas necessidades, saber o que precisamos, quem somos
no aqui-agora e o que não somos; rendição ao processo; auto suporte; awareness e contato
por meio da formação e destruição de gestalten. A criatividade, dessa forma, é o meio que nos
torna capazes de criar maneiras de lidar com as demandas que se apresentam em um campo
Alvim (2014) dá importância à essa capacidade criativa, afirmando que “nosso critério
aquela totalidade em um equilíbrio dinâmico” (p.23). Essa passagem também coloca ênfase
5
“Habilidade de lidar com sucesso com qualquer situação que encontremos agora, e sucesso é a resolução
satisfatória das situações de acordo com a formação e destruição dialética de Gestalt.” (Tradução livre)
80
no contato que não está fixado, mas experiencia o momento como transiente e se equilibra
nessas transformações.
A criatividade é tão central para GT que o próprio o objeto de estudo é definido como
os “(..) ajustamentos criativos. Seu tema é a transição sempre renovada entre a novidade e a
rotina que resulta em assimilação e crescimento” (PHG, 1951/1997, p. 45). Então, interessa
pensamos neles com base no mesmo processo (Latner, 1973). Não são estados fixos, mas
81
O problema, contudo, não são os bloqueios de contato, pois estes são vistos como um
ajustamento criativo, em um primeiro momento, mas quando a interrupção indica que não há
espontaneidade. Por exemplo, se uma pessoa está com sono, mas precisa terminar de estudar
para uma prova, é provável que ela vá buscar bloquear o contato com o sono, se
Quatro qualidades podem ser levantadas a partir desse exemplo: a primeira é que
nenhuma interrupção do processo pode ser vista fora do seu contexto, ou seja, há uma
awareness: ela está aware do sono, mas escolhe não dormir e não fechar essa Gestalt. No
momento em que fica aware, de alguma forma ela está em contato com a figura e se depara
com uma variedade de opções, mas decide por uma, se responsabilizando por ela. O terceiro
ponto diz respeito a cronicidade, ou seja, com que frequência ela tem bloqueado o contato
com essa figura em prol de outras atividades? Esse é um funcionamento que sempre ocorre,
fechamento da Gestalt ou não? Supomos que, em um primeiro momento, ter estudado até
mais tarde tenha surtido efeito, tendo alcançado boas notas, mas em outras vezes o cansaço
não a fez compreender o que lia, não atingindo um bom resultado. Se ela mantem essa mesma
funcionamento não-saudável, pois não se tem mais ajustado criativamente, mas mantido o
Não dizemos, então, que todo bloqueio de contato é disfuncional ou funcional, pois o
bloqueio, como figura, só pode ser significado a partir de um fundo. Nesse sentido,
precisamos olhar para a totalidade, para o campo em que se dá, seu processo, sua função para
o campo organismo/ambiente, que parte do self está sendo alienada em detrimento das outras,
82
fechamento das gestalten. Além disso, a awareness é o ponto central dessa diferenciação e,
o fenômeno comporta uma intencionalidade e, desde sua origem, não se trata mais de
consciência, mas sim consciência de... alguma coisa, awareness de... aquilo que a
constitui, quer se trate de uma lembrança, uma percepção, quer de outro conteúdo, terá
um sentido, uma direção de sentido, uma intencionalidade. A emergência de uma
figura não é mais do que a emergência de uma direção de sentido, o que talvez
tentamos dizer de modo um pouco desajeitado quando falamos em ‘necessidade’ como
figura de pré-contato. E o ciclo de contato ou processo de construção/destruição de
gestalts não é nada mais que o desenrolar dessa intencionalidade (p. 35).
Damos atenção a esse ponto quando afirmamos que o objetivo da terapia gestáltica é a
própria awareness, justamente porque observamos que quando há um bloqueio este é dotado
desta intencionalidade. Assim, buscamos apreender o para quê e o como objetivando levar a
pessoa a visualizar suas opções para que ela possa escolher e se responsabilizar. Se, como no
exemplo anterior, a pessoa se torna aware de que precisar sempre tirar boas notas, que estaria
relacionado a uma introjeção de que ela precisa se mostrar inteligente e ao mesmo tempo se
sente incapaz de alcançar esse introjeto, ela poderia escolher entre outras opções do campo ou
manter seu comportamento, mas agora dotada de responsabilidade. Boss, (em Forghieri,
Esse poder dispor livremente de suas potencialidades tem estreita relação com a
1951/1997, p.33).
83
Assim, percebemos que o adoecimento está ligado, também, a um bloqueio de
formação – ou não formação – de uma Gestalt fraca e confusa, a falta de ajustamento criativo,
parte de uma orientação não-dicotômica, não faz sentido tentarmos localizar a fonte da
perturbação, pois ela não se encontra nem no organismo nem no ambiente, mas no entre, na
saudável também está a serviço da sobrevivência (Frazão, 2007). Além disso, é uma tentativa
de significar o contato em meio ao processo dinâmico figura/fundo. Por ser relacional, Perls
(1977) afirma que as perturbações são na e da fronteira de contato, ou seja, quando se perde a
função de distinção entre objetos tóxicos e saudáveis, se tornando mais ou menos permeável
distúrbio de seu funcionamento pode direcionar a um não crescimento. Para Salomão et al,
2013,
repetidas frustrações, que se relacionam com uma necessidade não satisfeita, isto é, uma
Gestalt que não se completou. Normalmente, necessitamos lidar com isso, sendo esta vivência
84
saudável e fundamental para o desenvolvimento. Buscar meios alternativos para satisfazer a
consegue ajustar criativamente, isso gera ansiedade, a qual será evitada ou resistida. A cada
bloqueio não deliberado desse contato há uma situação inacabada, que mobiliza esforços até
inacabadas gera sobrecarga, impedindo que se sejam formadas figuras claras, pois a energia
está empregada em uma figura que não foi fechada. Contudo, como discutimos anteriormente,
Essas dificuldades podem indicar diversas situações e são, basicamente, “um conflito
próprio, objetivos alucinados; e a função do self é atravessar esse conflito” (PHG, 1951/1997,
alternativas irão surgir, o que, por vezes, gera uma figura débil, opaca (Alvim, 2014).
como “algo que se coloca de forma que interrompa a necessidade originária” (Schillings,
organismo se protege com mecanismos diversos de bloqueio, como vimos no capítulo II. Aos
85
poucos, a energia que seria investida na satisfação da figura é deslocada para manutenção
que clama por atenção e interfere na formação de qualquer Gestalt nova, vital. Em vez de
p.33).
seria uma manobra defensiva de proteção crônica, uma quebra na unicidade. Como
Spagnuolo-Lobb (2001), afirma a energia que deveria ser posta no contato fica como um
adoecimento parte de uma desarmonia relacional (Antony, 2009). Além disso, em saúde-
doença há um continnum entre as duas polaridades (Carvalho, 2008). Para Holanda (1998)
interessa focar na dimensão saudável do ser, pois apenas dessa forma é possível olhar para seu
todo e não apenas para sua parte adoecida, trazendo a saúde como figura no processo clínico.
Para Boss, a doença (modo de ser-doente) só pode ser compreendida a partir da saúde (modo
de ser-sadio), pois o ser-doente seria uma dimensão da própria saúde (Moreira, 2010). O
alteração dessa unicidade do campo” (Robine, 2006, p. 48). Essa unicidade se expressa na
Da mesma forma, “eu adoeço o mundo e sou adoecido por ele. Para a GT, não há lugar para o
indivíduo encapsulado em si. A formação das patologias, portanto, é o caminho dos encontros
O adoecer, portanto, é uma desarmonia relacional (Holanda, 1998), que só pode ser
realidade em si mesma” (Ribeiro, 1997, p.36). É por isso que, para a GT, não existe uma
doença mental, mas uma desordem organísmica, que afeta o funcionamento e crescimento
(Latner, 1973). A atenção dada, portanto, não é entre o organismo ou ambiente, mas entre a
É por essa razão que não falamos de uma psicopatologia, mas de uma relação
psicopatológica (Holanda, 1998). Robine (2006) aponta que as tentativas dessa construção
gestálticos os avanços das outras abordagens da psicologia. Há uma lacuna nessa construção,
principalmente porque no momento de seu nascimento esse não era um dos interesses centrais
humano.
ideal difícil de ser alcançado pelo ser humano. Além disso, eles apontam que o estudo da
É válido para uma teoria que se funda no movimento humanista focar-se nas
88
Porém, como afirma Robine (2006), uma “postura psicopatológica torna possível abordar o
fato psicopatológico, mas não supõe, ipso facto, a elaboração de uma nosografia” (p.113).
olhar total para o ser humano enquanto campo organismo/ambiente. Visamos o modo de
experienciar o ser-no-mundo, pois a existência está diretamente ligada a isto. Entendemos que
cada experiência é singular, sendo o foco a “reorganização dessa experiência onde e quando
GT. Como a própria definição de saúde para GT é o ajustamento criativo, não faz sentido
se alcançar, já que ajustamento por ajustamento só criaria conformismo (Yontef, 1998). É por
humanista
terapêutica não se pautava nele, mas no encontro e na relação. Para Yontef (1998), porém,
esse movimento antidiagnóstico prejudica a GT, pois, segundo o autor, realiza-se diagnósticos
psicodiagnóstico informal entre os gestaltistas. Por mais que pareça contraditório, é possível
profissionais da área e estamos imersos em uma política pública que se pauta nessas
Porém, para a práxis em GT, parece não fazer sentido a categorização extensa como
orientado pelos manuais psiquiátricos, como DSM e CID. Se orientamos o trabalho para
aquilo que aparece na relação, se temos uma visão da natureza humana como em constante
acredito que a importação de todas as categorias não tem uso em GT. Principalmente porque
não existe uma categoria diagnóstica que oriente o trabalho (Robine, 2006b).
Nesse caso, concordo com Robine (2006) quando ele afirma que seria suicida tanto
introjetar categorias estrangeiras à nossa epistemologia, quanto criar uma nosologia própria,
como, por exemplo, o que Deslile (1999) buscou fazer ao propor uma avaliação diagnóstica
90
e usando termos gestálticos para tentar explica-los. Por mais que possamos reconhecer na
Nesse sentido, faz mais sentido a GT considerar o diagnóstico como a forma de buscar
significados, de prestar atenção a como a pessoa se mostra, tanto como indivíduo único como
no que diz respeito às formas compartilhadas com outros indivíduos. Por se compreender que
com os elementos presentes aqui-agora no campo, construção essa que emerge na relação
formação de gestalten. Para tanto, podemos utilizar essas compreensões que nos auxiliam no
em que momento a pessoa mais bloqueia seu contato e qual seria o fator de cura
ideia crítica, buscando compreender as relações que a pessoa estabelece com o mundo. Por
91
isso, esse processo deveria ser realizado junto a terapia, em que o cliente é central na
(2009), afirma que esse processo em GT se torna experimentação que torna o diagnóstico e
assim por diante, de acordo com o ritmo elegante do contato. Assim, o diagnosticar e a terapia
seriam o mesmo processo, que partem de hipóteses sobre o contato e contém uma
experimentação que possibilita sua própria avaliação. Por exemplo, se um cliente diz que está
com raiva, mas tem um sorriso no rosto, o gestaltista pode intervir apontando isso como “eu
percebi que você diz estar com raiva, mas mantem-se sorrindo”. Nesse exemplo, o “percebi
uma atitude que entrelaça a reflexão do terapeuta, que o ajuda a compreender o que se passa
com o cliente, com um conhecimento que objetiva a discriminação do que o cliente desvela. É
atualização com os novos dados que emergem no campo, que não seja categorizável.
aspectos tem se apresentado como disfuncionais em seu funcionamento, ou seja, quais formas
ela tem tido que estão desatualizadas e descontextualizadas com seu atual campo. Objetiva-se
percepção junto e com o cliente, ou seja, ir além do diagnóstico explicativo, mas pautar-se no
92
Não se diagnostica, então, a partir somente de um sintoma, que, segundo Robine
(2006), seria uma criação objetivando o fechamento de uma Gestalt. Ele é compreendido em
sua intencionalidade no presente campo e, por isso, não é possível abordá-lo fora do contexto,
mas entender como ele aparece e o que o mantém funcionando: não se busca uma causalidade
explicativa. Isso só pode se dar na relação terapeuta cliente, que objetiva uma nova
figura que traz consigo qualidades próprias do fundo e só faz sentido em relação a ele, logo as
sem um fundo.
A cura, então, é “a realização de uma Gestalt vigorosa (...), mas porquanto a figura de
contato não é apenas uma indicação da integração criativa da experiência, mas é a própria
Essa construção que realizamos até agora objetivou nos dar bases para debater uma
dos vazios teóricos da GT: a psicose. Dessa forma, na compreensão do sintoma como uma
vezes citam a psicose. O primeiro apontamento foi no livro embrionário da GT, o Ego, Fome
e Agressão, em que Perls (1942, em Muller-Granzotto & Muller Granzotto, 2008) afirma que
93
Os resultados desses apontamentos nunca foram concluídos ou expandidos, o que gera
uma lacuna na conceituação dessa vivência dentro da GT. Por esse motivo, buscaremos e
Robine (2006) e seu pensamento sobre a psicopatologia, acreditamos que podemos construir
um saber teórico acerca desse fenômeno usando a teoria gestáltica e não apenas importar
Apesar disso, como sabido, neste primeiro livro Perls ainda era psicanalista. Tal orientação
psicanalista permeia essa temática na GT, talvez pela falta de aprofundamento dos primeiros
autores. A própria divisão das vivências em neurose e psicose indica essa influência, além da
psicose ser apontada como um desequilíbrio da função id, assim como é visto pela
psicanálise.
Essa orientação psicanalítica também está presente nos apontamentos de Perls sobre a
psicose no livro Gestalt-terapia explicada (1977). Há uma explicação que se utiliza de termos
psicanalíticos, afirmando que “o psicótico tem uma camada de morte muito grande, e esta
zona morta não consegue ser alimentada pela força vital” (p. 174) e, também relata que
“geralmente o psicótico nem tenta lidar com as frustrações; ele simplesmente nega as
frustrações, e se comporta como se elas não existissem” (p. 175). Além disso, compara a
psicose com os sonhos, afirmando que ambos, apesar de serem absurdos e irreais, fazem
Nesses apontamentos, observa-se uma clara contradição: enquanto PHG afirmam que
não seriam necessários maiores estudos sobre a psicologia do anormal, pois essa seria apenas
94
psicanalítica estrutural entre neurose e psicose. A confusão gerada é que, ao mesmo tempo em
Apesar de apresentar duas categorias possíveis de vivência do sofrimento, elas não são
bem distinguidas por PHG. As pistas deixadas foram que a psicose estaria associada a um
enquanto na neurose a função mais prejudicada do self seria o ego. Porém, mesmo havendo o
levantamento dessas diferenciações, ambas tem base no mesmo processo figura/fundo e talvez
Outro ponto de vista para essa dificuldade e poucas menções sobre a psicose é que os
autores não apontam nenhum sinal ou sintoma específico de cada uma e, dessa maneira,
mantem aqueles que “definem as psicoses, do ponto de vista psiquiátrico clínico” (Buarque,
2007, p. 178).
tema partindo da ideia de que não seria uma estrutura da personalidade, mas um processo
(Latner, 1972). Assim, independente de se focarem em uma diferenciação entre o que seria
uma neurose ou uma psicose, na raiz da GT todas as pessoas se regulariam por esse processo
A partir desse trecho, neurose e psicose se relacionam e parece que uma psicose só é
compreendida em comparação a neurose. Essa ideia está de acordo com uma das discussões
empreendidas por Tatossian (2006), na qual ele afirma que, para a fenomenologia, neurose e
95
Ambas se diferenciariam, então, quantitativamente. Segundo Carvalho e Costa (2008),
nas psicoses a awareness estaria mais prejudicada – na neurose, e muito mais na psicose –
indicando, novamente, que ambos processos partem da formação de gestalten, mas gerando
mais dificuldades. Muito mais em que sentido? Quanto mais? Por isso, acreditamos que uma
Ribeiro (2006) afirma que ambas partem de um processo de negação das necessidades,
um contínuo bloqueio de contato “naquele lugar onde se relacionar com o mundo pareça mais
difícil” (p. 152). Então, o processo de adoecimento é o mesmo, porém na psicose este estaria
figuras, o que pode ser mais bem compreendido a partir de outro apontamento realizado no
livro Gestalt-terapia:
Spagnuolo-Lobb (2002) afirma que é imprescindível essa diferenciação, pois a forma como os
concretude da experiência.
96
Muller-Granzotto e Muller-Granzotto (2012) explicam essa passagem indicando que
estabeleceria no campo empírico” (p. 128). Em outro momento, afirmam que a concretude da
A nosso ver, a concretude da experiência, a partir do exemplo dado por PHG (“por
concreta da experiência, a excitação para se criar uma figura, seja a percepção do organismo
ou ambiente. Para dar mais luz a essa questão, busquemos o trecho original “at the extreme, is
psychosis, the annihilation of some of the given-ness of the experience, e.g., the perceptive or
notarmos que uma definição dessa palavra, segundo o dicionário Collins (s.d.) é de “the
actuality of being given”, o que, em uma tradução livre para o português, significaria “a
realidade do que está sendo dado”. Além disso, observa-se que a palavra está separada por
si. Logo, a psicose seria a aniquilação da parte da realidade do que está sendo dado na
experiência. Para entender essa ideia, precisaremos pausar esse raciocínio e entender o que é
6
O trecho em questão não será traduzido no momento, pois sua tradução será explicada no decorrer do texto.
97
apontado como experiência para PHG: “a experiência se dá na fronteira entre o organismo e
seu ambiente (...) a experiência é função dessa fronteira, e psicologicamente o que é real são
as configurações “inteiras” (whole) desse funcionar (...) são estruturas unificadas definidas”
(p.41). Como vimos no capítulo anterior, a forma de experienciar dessa fronteira é o contato,
enquanto a própria realidade é dada por meio dele. Então, poderíamos entender que o
alguma coisa e o próprio “self não tem consciência de si próprio abstratamente, mas como
Ao ser excitado por uma novidade e se dirigir ao contato, o organismo usa de sua
agressão para fragmentar o que está dado no meio, seja no ambiente (percepção) ou em seu
corpo e hábitos (propriopercepção) para criar sua realidade. Essa dissolução, contudo, é
necessária para o contato. Dentro desse pensamento, entendemos a ideia de aniquilação como
uma agressividade extrema, na qual há uma necessidade de destruir o objeto até que ele não
esteja no campo, ou seja, “aniquilar é transformar em nada, rejeitar o objeto e suprimir sua
Dessa forma, Perls (1977), que afirma que a energia “torna-se incontrolável no caso da
psicose. Em vez de ser diferenciada e distribuída, ela sai em jatos” (p. 174). De acordo com
Vieira (2010), o excesso desse excitamento pode acarretar a não identificação das figuras que
precisam emergir e sua falta faz com que a energia fique diluída no fundo, sem
98
emergencial para exaurir o excitamento na fronteira de contato que não consegue energizar
uma figura e em
campo e a função desse mecanismo. Apesar de não indicarem o que é considerado alucinação,
dilui e não segue mais as tendências de contatar a realidade, mas usa de fragmentos possíveis
Apesar de ser um mecanismo que busca a saúde, percebe-se que, se há rigidez do uso
relaciona a neurose, enquanto muita criação sem ajustamento ao real à uma psicose: “a
99
Assim, o aniquilamento de parte da experiência dada seria a destruição da própria
concretude da situação, que é dada como uma resposta “defensiva à dor, à invasão do corpo
obliterado ou irreal sob outros aspectos” (PHG, p. 45). Esse mundo se torna gradativamente
contatos já assimilados. Além disso, é um processo crônico, que ocorre pelo excesso de
frustrações nas formações de gestalten ao longo do tempo e, aos poucos, a pessoa precisa
controlar os excitamentos para formação de novas figuras, como uma fuga dessa frustração.
a pessoa não responde mais às próprias necessidades nem às do meio. Há uma perturbação na
7
Ao invés de encontrar um posicionamento no ambiente, no mundo com suas diferenças; ao invés de criar novos
ajustamentos com o ambiente e nos diferentes contextos de vida. Quando encontramos meios intolerantes em
relação às nossas diferenças, ambientes que nos zombam, que nos depreciam, que nos humilham por causa de
nossas diferenças e às vezes de maneira sutil, então a doença se pode declarar: seja física ou mental ou ambas,
em geral é a parte mais vulnerável que aguenta o soco e que é atacada em sua integridade” tradução livre.
100
Uma das razões para isso, segundo Spagnuolo-Lobb (2011), é porque há uma falta de
percepção da fronteira de contato e o contato é dominado por sensações que invadem o self,
sem que se possa separar os elementos tóxicos dos saudáveis. Assim, nada pode ser
assimilado, pois nada é reconhecido como novidade no campo – o que ocorre no organismo
ocorre no ambiente e vice-versa. Haveria, então, uma confluência rígida, em que a pessoa não
sente o excitamento que a impulsiona a formar figuras e, ao mesmo tempo, é invadida por um
excesso de estímulos que não adquirem sentido (Carvalho & Costa, 2010).
está parcialmente indisponível e do qual não se sobressaem figuras – lembrando que toda
figura só tem sentido se relacionado a um fundo. Perls (1977) confirma essa ideia de
perderá sua função, já que está ligado a processos básicos, como aprendizagens passadas, fala
etc. Da mesma forma, é impossível, também teoricamente, se perder um fundo. Porém, fica
claro que pode haver um grave desequilíbrio, como se observa em algumas manifestações da
imergida em sensações que não fazem sentido naquele contexto (Carvalho e Costa, 2010),
101
um primeiro momento, pode ter sido uma forma do organismo se proteger de situações e/ou
sensações de certa forma dolorosas e/ou ameaçadoras (Galli, 2009). Porém, a cronificação e
rigidez desse bloqueio no contato podem acarretar, entre outras coisas, a interrupção da
assimilação de novas e antigas experiências, bem como uma desconexão com a realidade.
Além disso, o desequilíbrio nessa função de contatar, que se expressa pela quebra da
acarretar uma dificuldade na propriopercepção. Para Ribeiro (2006), há uma cisão do corpo
em que “ele se dividiu ao meio (...) ambas as partes estão interligadas (...) de tal modo que
uma parte vigia a outra que não é sentida como dele” (p.98-99). Spagnuolo-Lobb (2002)
afirma, também, que a experiência do vivido “dentro da pele” é altamente ansiogênica, pois é
tempo, espaço e pessoa” (p.305). A partir dessa ideia, podemos entender que a psicose
em constante mutação e exige respostas diferentes a todo o momento, além de ter outra
vivência da espacialidade.
inexistência de uma estrutura existencial, mesmo em pacientes muito afetados (Santos, 2012).
102
uma desproporção que se relaciona a presunção, na qual o sujeito olharia muito além de suas
possibilidades e ficaria perdido nessa Altura, fora do mundo comum (Chamond, 2011).
Tatossian (2006) afirma que essa forma de experienciar “tem por essência subir aí de onde
não se pode mais nem avançar nem recuar e onde não se pode mais que permanecer suspenso
ou cair (...) tendo perdido toda a comunicação existencial, constrói mais alto do que pode
subir” (p.69). Percebe-se, então, que é uma vivência incapacitante quanto ao horizonte
experiencial, no qual o sujeito fica estagnado. A perda desse horizonte temporal e espacial é,
sempre orientado para uma futuridade, o abismo, ao mesmo tempo em que implica a
possibilidade do sujeito de não ser ele próprio (a queda), define-se pelas diversas possiblidade
de ser como um projeto. Se perderia, então, a noção de orientação nesse espaço vivencial
(Santos, 2012).
Para Boss (1975), a vivência de uma psicose implica na perda da liberdade, uma
dificuldade básica para enfrentar o mundo e alcançar o seu significado em conjunto com o
sentido da existência. Para esse autor, é necessário compreender esse ser-doente a partir da
incapacidade de abertura para o mundo e uma correlativa falta sentimento de si próprio, uma
Assim, se faz necessário que olhemos para a totalidade desse fenômeno, observando
Nesse sentido, retomando a discussão sobre as funções parciais do self, não podemos apenas
afirmar, segundo essa teoria, que a psicose é pura e somente um desequilíbrio do id, mas
abarca o sujeito como um todo. A separação das funções é didática, porque na prática todas se
relacionam e tem interdependência. Por exemplo, a função ego opera pela junção do id e
personalidade – o que sinto e o que penso de mim me fazem agir de determinada forma.
103
A função id, que se relaciona com as figuras que já foram integradas dos outros ciclos,
se torna, de certa forma, inacessível. A não coerência de figuras corresponde a uma não
identificação porque elas não foram reintegradas ao fundo ou não estão acessíveis. Da mesma
forma, a função personalidade está implicada nesse processo, porque as figuras que foram
integradas são confusas e cristalizadas, logo a identificação de si próprio também ocorre dessa
o ego na forma de realizar o contato e determinar, já que essa falta de um fundo integrado
Sem uma atuação da função Ego, o self torna-se cada vez mais fragilizado, indefeso
quanto aos introjetos tóxicos disponíveis no campo. A desorganização na função
Personalidade impede que o self integre satisfatoriamente as experiências de contato,
deixando abertas gestalten e inúmeras possibilidades falseadas de preenchimento. (p.
16).
Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2008, 2012) apontam formas de funcionar da
função ego nessas situações. Como as excitações ou não são reconhecidas ou estão confusas,
a função ego pode operar articulando o fundo, quando este se mostra confuso, seja
Assim, a partir da citação de PHG: (“na medida em que há qualquer integração, o self
o objeto de uma conspiração total etc.” p.235) percebemos que, na psicose, há uma tentativa
contato, há uma tentativa de conexão entre o que é dado. Assim como o mecanismo de
104
alucinação, em que se busca criar a partir de fragmentos, há uma tentativa de criação e
sendo uma forma distorcida de perceber o mundo, apresentando uma barreira no acontecer da
pessoa (Santos, 2004). Nos seminários de Zollikon, Heidegger (1987) já trazia a ideia de que
não importava definir o caráter de realidade ou não da alucinação, mas como estaria a relação
da pessoa com o seu próprio mundo. É uma experiência que causa tormento, mas necessária
para que o ser possa se experienciar como existente. Santos (2004) completa “podemos ir
coisificadas na relação com o Dasein, justamente porque ser-com tornou-se uma experiência
Sem esse contato e abertura para experiência, a criação sem ajustamento ocorre de
acordo com a necessidade do sujeito, mesmo que os elementos tenham sido aniquilados no
para que o contato seja mantido, além de ser uma forma de conservar sua diferenciação por
novidade a ser assimilada, pois nada é visto como novo. Porém, ainda há a necessidade de
preenchimento da experiência com sintomas positivos ou, ainda, uma não tentativa de
Assim, a função ego começa a deliberar e a funcionar como o próprio bloqueio de contato,
105
Outras formas de bloqueio de contato mais presentes em uma psicose foram levantadas
em situações do passado que não tem mais importância no presente), o qual Vieira (2010)
também associa ao pensamento concreto, “levando ao pé da letra tudo que lhe é dito” (p. 75);
qual a pessoa viveria em apatia, não se sentido excitada pela novidade na fronteira); a
emergência de uma figura clara). Nesse caso, segundo Polster e Polster (2001), a pessoa foge
qual dirige a energia para si mesmo, pois teme ser prejudicado ou decepcionado e,
psicoses, já que a pessoa pode introjetar conteúdos diversos com objetivo de dar alguma
significação para si mesma, mas que não necessariamente tenham relação com ela (Galvão,
2008). A projeção também se relaciona com essa vivência, pois, quando cronificado, este
bloqueio pode gerar sentimentos persecutórios e paranoicos, em que o mundo todo está contra
delírios de grandeza. Essa forma de bloquear o contato, de acordo com Latner (1973), gera
em que poderia haver o contato, provocando a substituição do contato pelo delírio, que seria
uma forma de projeção dos introjetos. Isso ocorre como uma maneira de evitar o conflito com
o ambiente, mas esse desacordo continua existindo e bloqueado por meio da retroflexão. Para
106
ele, o episódio psicótico ocorre para preencher a lacuna do contato onde este fora quebrado.
Essa ideia explica um pouco melhor aquilo que PHG indicam como o preenchimento da
experiência.
claro que a psicose em GT se refere a uma desorganização e uma rigidez mais grave da
experiência. Tal experiência, como afirma PHG no trecho supracitado, exige que a pessoa
busque se ajustar criativamente e integrar de alguma maneira possível essa Gestalt mal
Portanto, focamos, até agora, na parte do organismo e em seu adoecimento, porém, olhar
apenas para a pessoa é uma forma incompleta e não abarca o totalmente o fenômeno. Ao
afirmar que qualquer adoecimento é relacional, a perda da unicidade do campo, uma vivência
campo organismo/ambiente e que, por ser relacional, há um ambiente também que faz parte
desse adoecimento.
A psicose, portanto, não pode ser vista isolada, como um funcionamento intrapsíquico.
Quando afirmamos que ela é um excesso de criação sem ajustamento ou uma aniquilação do
dado da experiência?
campo e abrir essa visão implica em considerar também a comunidade, sociedade, política. O
sofrimento constrói e é construído pelo campo, tanto em termos históricos como na dimensão
107
do próprio sofrer. Enquanto ser-no-mundo, o sofrimento é, sobretudo, psicossocial, se
exemplo, sempre há o atendimento familiar. Muitos estudos (Costa & Carvalho, 2012;
Gonçalves-Pereira, Xavier, Neves, Barahona-Correa & Fadden, 2006; Gottesman & Shields,
cuidado da psicose, mas poucos são os serviços que empreendem, efetivamente, na atenção à
Dessa forma, a psicose é vista não apenas como uma busca de um ajustamento criativo,
mas também tem uma funcionalidade no aqui-agora da situação. Qualquer sintoma é também
uma forma de comunicar algo ao ambiente, uma produção saudável de diversas forças do
campo, mas que encontra vazão em um indivíduo em particular. Em outras palavras, para
Delacroix (2005), é uma tentativa de buscar um equilíbrio onde há desordem e, nesse caso, a
interrupção do contato tem mais relação com o ambiente do que com o próprio organismo. O
vivência.
Esse olhar para o ambiente em que a psicose tem lugar traz um dos importantes
relação estreita, formando um campo. Assim, uma vivência psicótica é do campo, em que há
naturalmente, não é apenas físico e, dessa forma, se faz necessário considerar onde ele está
108
inscrito socialmente, “não se podendo considerar fatores históricos ou culturais modificando
ou complicando condições de uma situação biofísica mais simples, mas como intrínsecos à
gestáltica e lança luz nessa questão do adoecimento relacional. Para ele, a psicose se relaciona
a vivências intersubjetivas limitadas, a uma presença esvaziada (Holanda, 1998; Carvalho &
Costa, 2010). Isso ocorre por meio da desconfirmação do Outro na relação, por
destruição” (p. 179) e não a pessoa que experiencia esse tipo de vivência. Esse olhar para a
qualificação no sujeito – a pessoa não é psicótica, ela está em uma vivência conhecida como
psicótica. Assim, por mais que busquemos um entendimento teórico, ampliamos a visão para
o entendimento que cada pessoa vive esse momento de forma singular, tanto em suas
109
CAPÍTULO IV – EM BUSCA DE UMA CLÍNICA GESTÁLTICA DAS PSICOSES
teoria e método estão unidos e se complementando, em um elegante ritmo. Isso se dá pelo fato
processo. Ele se doa ao encontro, sendo parte ativa. Tanto cliente quanto psicoterapeuta se
unem em parceria para criar um campo que seja próprio da relação terapêutica, sendo o
Ampliando esse pensamento, Robine (2005) reflete que sempre que falamos em
campo de estudo separado. Para ele, pensar em uma psicopatologia só faz sentido se for uma
“psychopathologie de ses acteurs” (psicopatologia de seus atores) (p.14), pois esse saber
relacional, é impossível pensarmos o Gestalt-terapeuta fora desse contexto, não sendo ele
É por isso que Laura Perls (1992) afirma que não existem gestaltistas iguais, pois toda
forma de se praticar Gestalt passa pela própria vivência do clínico enquanto pessoa. Há várias
formas de se fazer Gestalt, pois imprimimos nossa própria subjetividade ao processo. Nesse
110
sentido, é impossível uma tentativa de padronização das intervenções. O que buscamos, nesse
capítulo, é encontrar posturas gestálticas que possam auxiliar a travessia de quem experiencia
um processo de psicose.
Perls (1977) indica, em uma passagem na qual ele debate um pouco sobre a psicose,
que “vemos no esquizofrênico exatamente a mesma polaridade que vemos na maioria das
pessoas. Encontramos pessoas que estão em contato consigo mesmas, as pessoas retraídas,
que estão fora de contato com o mundo (...)” (p. 175)8. Buarque (2007) acrescenta que, para a
psicoses, que não é usado como parâmetro para a estruturação de um projeto terapêutico, nem
mesmo para nortear o que deve ser necessariamente trabalhado numa sessão” (p. 178). Por
outro lado, Spagnuolo-Lobb (2011) afirma que as diferenças qualitativas entre neuroses e
Esses pensamentos apresentados, apesar da tensão por serem ideias diferentes, criam
um saber que os complementam. Primeiro porque essa noção de diferenciação entre duas
manifestações não busca objetificar a situação, utilizando-se de categorias exteriores, mas ela
teórica na clínica. Além disso, é inegável a diferença de manifestação e uma firmeza teórica
Nesse sentido, Robine (2006b) afirma que não existe uma modalidade diagnóstica em
desvelamento da experiência presente. Ao mesmo tempo, ele afirma que nos falta uma
psicopatologia própria que possa se unir à dimensão prática, sem que tenhamos que recorrer a
8
Utilizamos essa mesma passagem anteriormente, porém acreditamos ser pertinente debater novamente algumas
ideias levantadas por ela.
111
A partir do trecho supracitado de Perls (1977) observamos que a manifestação de uma
psicose não transporta a pessoa para outra categoria vivencial, já que a própria psicose não é
da pessoa, mas da relação. Em GT, portanto, não há uma clínica para neuróticos e uma
clínica para psicóticos, justamente porque não existe uma pessoa neurótica ou psicótica.
Existe sim um sofrimento do entre, que pode ser percebido e sentido pelo organismo, mas não
formação de gestalten. O que buscamos aqui são possíveis direcionamentos que podem
Yontef, 1998; Robine, 2006; Latner, 1973; Perls, 1977). Por compreender que todo
9
“Não se trata de limitar o paciente em uma etiqueta e curar essa etiqueta. Trata-se de escutar a uma pessoa cuja
relação com o mundo está perturbada, e que sofre por conta disso. Trata-se de o acompanhar para que tome
consciência de suas perturbações, para que capte seus sentido. Todo sintoma, qualquer manifestação descrita
como psicopatológica: fobia, obsessão, angústia, depressão, delírio, autismo, poderia ser considerado como um
‘ir em direção a’, como linguagem para se decodificar e como um acontecimento fronteira de contato” (tradução
livre).
112
significa a retomada do funcionamento natural (Latner, 1973). Além disso, desvela como se
da pessoa. Explora-se o como e os para quê desse bloqueio e não causas explicativas. A
continnum desse processo (Polster & Polster, 2001) a partir de um “voltar-se para a
Nesse sentido, há diversos experimentos que formam uma das técnicas gestálticas e
que são largamente explorados na literatura (ver Stevens, 1971; Perls, 1977; Fagan &
Shepherd, 1970; Latner, 1973). São uma opção metodológica que buscam ampliar a
awareness (Ribeiro 2006), porém a aplicação em vivências de psicose deve ser cautelosa
(Arnfred, 2012), já que, geralmente, se focam na awareness da figura e a psicose é vista como
um distúrbio de fundo.
trabalho com fundo (Spagnuolo-Lobb, 2011). Como afirma Hycner (1995), expandir contato
ou awareness objetiva que a pessoa tenha atitude relacional mais saudável com o mundo e,
como em psicoses essa atitude geralmente precisou ser cortada, o direcionamento primeiro é
figuras que surgem. Francesetti e Gecele (2009) afirmam que, mais do que trabalhar com a
awareness, seria necessária criar esse fundo. Além disso, essa técnica exige uma capacidade
de simbolização que muitas vezes se encontra prejudicada. Como sugere Ginger e Ginger
(1985), o uso desse recurso deve ser balanceado com o confronto na realidade, alternando “o
113
trabalho no imaginário (com jogo dramático, desenho criatividade, metáforas verbais) e o
confronto com a situação real atual: relação com o ou terapeutas (...)” (p. 225).
A clínica gestáltica é dirigida à experiência, o que não pode ser confundida com o uso
sentido,
O que desejamos frisar aqui é que a proposta de uma psicoterapia que trabalha com a
experiência se deturpa quando esse sentido fenomenológico de experimentar – ação
expressa por um verbo – se reduz a experimento como técnica ou coisa, expressa por
um substantivo. O que não significa dizer que um experimento não possa ser utilizado
como recurso para o trabalho com a experiência. Tampouco que os mal entendidos
acerca dos experimentos em Gestalt-terapia justifiquem uma postura de alijar o
trabalho com a experiência. (Alvim & Ribeiro, 2009, p. 38).
Dessa forma, para que seja realizado o contato, é necessário um eu e um não-eu e, por
uma só coisa. Ou tudo é eu ou não-eu, fazendo com que a própria capacidade de integrar a
experiência seja reduzida, afinal, os dados no campo são tantos e tão confusos que se torna
vias de trabalho, pois busca organizar o campo a partir de diferenciações entre “what is us,
and what is not us, what is past and what is presente, what is pertinente to our presente needs,
Távora (2005) afirma que o processo de subjetivação em GT ocorre por meio das
psicose também fica prejudicada por conta da confluência e da dificuldade de contato com a
novidade que surge no campo. Esse é um processo complexo, que exige uma fronteira de
10
“o que é nosso, o que não é, o que é passado, o que é presente, o que é pertinente para nossas necessidades
presente e o que não é” (tradução livre).
114
Dans ce processus d’individuation, il y a des moments où je suis je et tu es tu et où
nous pouvons nous rencontrer, certes, mais il y a aussi des moments où je suis tu et tu
es je, d’autres où n’existe qu’un on, d’autres où existe un nous, même illusoire,
d’autres encore où je n’ai aucune idée de qui je suis ni de qui tu es ! (Robine, 2002, p.
27)11.
construída na relação e fica perdida na pessoa que experiencia a psicose. Dessa forma, a
relação terapêutica também se orienta pela valorização daquilo que torna a pessoa única e, ao
mesmo tempo, conectada com seu campo e, progressivamente, a pessoa vai desenvolvendo a
capacidade de lidar com o fluxo sempre constante, por meio, também, da desestabilização de
se busca explorar a situação tal qual ela se apresenta, a se focar da situação concreta. Por meio
pessoas possam “aprender muito com o que estão experienciando, se puderem aprender como
experienciam e como interferem em sua própria existência” (Jacobs, 1995, p. 81). Para Alvim
11
“Neste processo de individuação, há momentos em que eu sou eu e você é você e onde podemos encontrar,
certamente, mas também há momentos em que eu sou você e você é eu, outros onde há apenas um, outros em
que há nós, mesmo ilusoriamente, outros ainda em que eu não tenho nenhuma ideia de quem eu sou ou quem
você é!” (tradução livre).
115
Assim, à medida que o fluxo de awareness é experienciado, é possível entrar em
contato com novas figuras e formar gestalten fortes. Estas são integradas no fundo de
experiência e começam a gerar uma base sólida para que novos contatos sejam realizados. Há
sucedidos realizados dão apoio para que a espontaneidade seja retomada. Isso cria o que
Latner (1973) chama de suporte – cada novo contato suporta o próximo e assim
sucessivamente.
Essa confiança no ambiente fica prejudicada em uma vivência de psicose e, por isso,
Spagnuolo-Lobb (2011) sugere que seria necessário trabalhar primeiro com o fundo do que
com a figura. Essa falta de segurança é a própria falta de gestalten fortes integradas ao fundo,
que não permitem que a pessoa desenvolva habilidades coerentes para lidar com as demandas
terapeuta é o fundo, enquanto o cliente é sempre figura (Ribeiro, 1985; Robine, 2006). O
objetivo é de se orientar para a construção de um fundo existencial seguro, para que a pessoa
consiga fazer as diferenciações entre o que ele aliena e o que escolhe para si (Spagnuolo-
Lobb, 2011).
capítulo II, concretamente, reconhecemos que trabalhar com o fundo é retomar a integração
(Delacroix, 1999). Assim, o fundo se constitui de elementos que auxiliem a articulação dos
116
componentes não articulados, dá sentido à figura. Um fundo confuso não consegue dar
suporte para que a figura surja com intencionalidade clara. O próprio senso de self ocorre na
experiência, que, apoiando-se no fundo, realiza contatos. Isso, contudo, não se refere a um
Para exemplificar como isso ocorreria, sem o objetivo de entrar em detalhes sobre a
dinâmica, tive contato com um caso em que um senhor que estava internado em uma
utilizando nomes diferentes e havia me contado sua história de vida com detalhes confusos e
contraditórios. Ele guardava com esmero recortes de jornais e revistas, me mostrando com
orgulho seus filhos, mas entristecia-se quando mais um dia se passava e ele não recebera
Havia, então, uma perda de sua história de vida, em uma parte de seu fundo de
experiências: ele não se recordava de onde vinha, nem quem seus filhos eram, seu nome e
outras informações relacionadas. Para tanto, ele criou uma nova identidade e uma
historicidade própria, que, de certa forma, preenchia esse gap e o protegia do sofrimento do
retomada de sua real história, mas para a confirmação dessa vivência atual e, nesse sentido, a
em que ele mais se identificava, o que o fez sentir-se mais integrado a uma identidade. Além
disso, ele era reconhecido em suas capacidades de trabalhar com a horta da instituição, o que
também fora valorizado, integrando novas vivências a esse fundo que havia desintegrado.
intervenções são realizadas tão cedo quanto possíveis, e a de uma instituição de saúde mental,
onde a desintegração e cronificação são mais graves. Apontamos que, quando mais cedo o
117
desacordo relacional for transformado, maiores são as opções de crescimento e de
de mestrado.
Esse relato abre a discussão para um ponto importante na clínica das psicoses, a de que
todas as vivências, por mais absurdas que pareçam ao clínico, são genuínas e devem ser
escutadas com atenção. Por nos focarmos naquilo que ocorre no aqui-agora da situação,
valorizamos qualquer fenômeno que apareça – seja uma expressão corporal, uma quebra no
fluxo do relato verbal, um sintoma. Compreendemos que, aquilo que surge tem relação com o
campo e pode ser importante para a exploração. Assim, o valor dado à experiência imediata
valoriza e legitima qualquer experiência vivida (Francessetti & Gecele, 2009). Nesse sentido,
a confrontação com a realidade deve ser feita com o cuidado de que não se deslegitime a
Além disso, o sintoma carrega consigo significados, ou seja, ele não se cria do nada,
mas possui relação com o vivido da pessoa. Ele tem uma função na dinâmica relacional e
precisa ser escutado e legitimado também. Para Delacroix (2005), o necessário seria “ponerle
palabras a los síntomas, a las manifestaciones de la función-Ello, a los estados interiores, a los
su relación con el mundo” 12(par. 54). Pôr palavras significa a simbolização e a apropriação da
Por exemplo, atendemos um caso no GIPSI em que uma jovem de seus vinte e poucos
anos conversava telepaticamente com diversos homens que a desejavam. A questão não era se
isso era verdade ou não, se esses homens realmente tinham interesse, mas gerar uma escuta
que fosse além daquilo que aparecia. Com o trabalho familiar em conjunto, fomos co-
12
“Colocar palavras aos sintomas, às manifestações da função id, aos estados interiores, aos sistemas e
organizações, e tudo isso em relação ao aspecto da história da pessoa e sua relação com o mundo” (tradução
livre).
118
construindo um sentido para aquilo e, progressivamente, ela começava a ter suporte para
Quando ela começou a expressar sua raiva e seus sentimentos de abandono e desamor
que sentia pela família e vice-versa, essa vivência de ser desejada por homens começou a
mudar. Esse sintoma foi aos poucos se diluindo, gestalten foram sendo fechadas, dando
espaço para que outras figuras se mostrassem. Para Delacroix (2005), esse tipo de escuta nos
convida a
suspender, o terapeuta dá espaço para que a situação se mostre tal qual ela é. Manter-se aberto
permite que de um fundo amorfo da situação surjam diversas figuras, que vão se desdobrando
Por mais que compreendamos que o sintoma de uma psicose tem uma função no aqui-
agora, há uma discussão se ele seria um ajustamento criativo ou não. Spagnuolo-Lobb (2003)
13
“levar nossa atenção sobre a experiência em curso e apoiar a experiência do paciente para que juntos possamos
nomeá-la, dá-la uma forma verbal. É assim que poderá sentir-se compreendido. Todo episódio de delírio,
alucinatório, de confusão, é um trauma grande para quem o vivencia. Escutar a experiência do outro, seu
sofrimento, seu temor de virar na loucura. Neste nível, tem que ser tratado e escutado como quem foi
traumatizado por um cataclismo, como às vezes foi vivenciado como tal” (tradução livre)
119
afirma que, mesmo que se adotem soluções criativas para lidar com os conflitos, essa
criatividade não leva ao crescimento ou satisfação. Acreditamos que uma vivência de psicose,
quando esta exerce uma função no campo, ela é um ajustamento criativo, uma tentativa de
cronificado, enrijecido, percebemos que este não levaria mais a um crescimento e, portanto,
não seria mais um ajustamento criativo, mas uma criação sem ajustamento. Um exemplo,
também atendido no GIPSI, foi o de uma mulher que sempre que escutava vozes que pediam
para ela se cortar, ela saía correndo para a rua e ficava vagando sem rumo até ser encontrada
por algum familiar. Isso se repetia sempre, mas mesmo assim ela aparecia com cortes em sua
É claro que a autopreservação, nesse caso, era a principal inclinação da cliente, porém
a estereotipia na resposta impedia suas tentativas de contato. Era mais uma tentativa de
resolver um problema no campo que nunca foi resolvido ou sempre fora interrompido. O
trabalho terapêutico buscou, dentre outras questões, revelar a intencionalidade dessa figura e
Por diversas vezes em GT, falamos que o indivíduo é livre para escolher, que tem
para que a pessoa se torne autora de sua vida e não meramente expectadora. Se
responsabilizar por sua existência, em uma vivência de psicose, pode ser um norte no
a pessoa é response able, ou seja, hábil a dar respostas à novidade do/no campo (Yontef,
1998). Mas, e se ela não consegue perceber as novidades que surgem, como ser hábil a dar
120
Se a clínica se focar somente nesse ponto, as respostas dadas serão tão confusas
quanto a percepção do campo. Por isso que o trabalho com o fundo e a fronteira de contato se
tornam centrais. Assim, quando a pessoa não tem ou perdeu esta habilidade, poderíamos
dizer, então, que ela perde a liberdade de escolha e, portanto, a possibilidade de uma
(Robine, 2006).
Dessa forma, a ênfase no trabalho com o fundo nas psicoses é importante, também,
pois se reconhece que a função id do self é a que, geralmente, mais se encontra prejudicada.
experiência. Atendemos uma jovem no GIPSI que não se sentia pertencente em seu corpo,
mostrando sua quebra da unicidade. Esse sentimento se expressava em ações que ela tomava,
as quais não eram reconhecidas como dela, como se ela não pertencesse ao seu corpo. Além
disso, ela não conseguia saber sensações básicas, como, por exemplo, quando estava com
fome e nem o que sentia. Nesse ponto, o trabalho terapêutico buscou focar-se na
corpo que ela pudesse habitar, que ela reconhecesse como dela.
desequilíbrio. A partir de uma fronteira de contato disfuncional, ela não consegue diferenciar-
se entre organismo/ambiente, não realizando mais contatos espontâneos. Ela afirmava que se
sentia imersa em sensações, as quais não eram possíveis de serem nomeadas e discriminadas.
Pela falta de um fundo integrado que apoiasse seus contatos, sua função personalidade não
possuía um senso de identidade e integridade, no qual seu próprio corpo não era reconhecido
como pertencente a ela. A função ego não conseguia deliberar e agir em congruência com
121
Essa forma de separar os diferentes processos do self é puramente didática, já que, na
instrumento que pode auxiliar a ampliar a compreensão das dinâmicas relacionais da pessoa,
em que momento a sua espontaneidade está bloqueada. Além desse instrumento, o ciclo do
contato também pode ser de grande ajuda, como já fora demonstrado em alguns estudos
(Carvalho, 2008; Vasconcelos & Menezes, 2005; Albo & Costa, 2013). O uso do ciclo, tal
qual proposto por Ribeiro (1997) auxilia o olhar de como e em que parte a pessoa mais
subjetivação; percepção de tempo e espaço como categorias que orientam e dão ritmo ao self;
buscar uma clara e distinta percepção das próprias necessidades. Tais objetivos se inter-
relacionam:
From attention given to ‘the context’ in the form of the therapeutic setting (first goal,
and an indispensable premise for any future progress in the relationship), it is possible
to foster other important experiences for the harmonious differentiation of the self, like
creative differentiation (second goal), the perception of time and space as categories
that orientate and give a rhythm to the self (third goal), and the clear and distinct
perception of one’s own needs (fourth goal) (Spagnuolo-Lobb, 2011, s.p.)14.
Até esse ponto, nos focamos nas dificuldades e orientações para desenvolver o
crescimento nas experiências de psicose, por vezes nos atendo às dificuldades. Pontuamos,
contudo, que essa não é uma vivência somente negativa e de difícil manejo. Como afirma
Maldiney (em Tatossian, 2006) a psicose não se entrega. Enquanto em uma vivência de
14
“A partir de atenção dada ao 'contexto' na forma de ambiente terapêutico (primeiro objetivo, e uma premissa
indispensável para qualquer progresso futuro na relação), é possível promover outras experiências importantes
para a diferenciação harmoniosa do self, como diferenciação criativa (segundo objetivo), a percepção de tempo e
espaço como categorias que orientam e dão um ritmo para o self (terceiro objetivo), e a percepção clara e distinta
de suas próprias necessidades (quarto objetivo)” (tradução livre).
122
neurose o sintoma está encoberto e não muito claro, nas psicoses a vivência de sofrimento se
mostra, escancaradamente. Fica muito claro o que foi criado com vistas a lidar com um
ambiente difícil, para preencher o vazio da espontaneidade dos contatos frustrados e uma
intencionalidade dessa quebra. Como exemplo, transcrevo a fala de uma das clientes
atendidas pelo GIPSI que, já no final do processo terapêutico, relatou que criou um mundo só
seu porque “estava vendo minha vida muito normal, muito parada, o fato dos meus
que eu vivo e o mundo lá fora que me impede de fazer coisas que eu gostaria de fazer. Eu me
sentia muito pressionada, é como se eu tivesse que fazer isso e aquilo” (sic).
Também em vivências de psicose, como nos afirma Robine (2006) há muita criação
mas presente. Um dos casos que atendemos no GIPSI de um jovem que é um artista brilhante,
uma de suas obras, ele respondia apenas de forma concreta – não havia nada mais além do
que rabiscos em uma folha de papel. Apesar de sua enorme criatividade e inovação, suas
produção.
sintoma para lidar com a frustração. Como, dentre tantas formas de bloquear a espontaneidade
do contato, a pessoa cria, por exemplo, um mundo dela, em que ele é o pai de todos – como
no exemplo dado anteriormente? Ou, como em um caso em que uma jovem, mãe de três
filhos, que perante à dificuldade de expressar sua angústia, calou-se? É como se fosse, no jogo
123
de pôquer, um all in15 com cartas sem valor – uma última tentativa, um último recurso de se
manter no jogo, de se colocar completamente implicado no processo, uma busca pela saúde.
Novamente, a psicose não se entrega. A criação está dada, resta desenvolver o ajustamento.
destino, um triste fim que tolheria a vida de qualquer espontaneidade. Saúde-doença são
momento, mas que se insere dentro da complexidade da pessoa. O que queremos dizer é que
pode ocorrer o erro de encerrar essa manifestação como a própria pessoa (“o psicótico, o
doente”), perdendo de vista as capacidades e a saúde; e que, além disso, as psicoses, apesar de
herdarem a ideia de negativo, déficit, falta (Costa, 2003) – como vimos no primeiro capítulo -
tem a sua finalidade e podem trazer possibilidades que não são encontradas em outras formas
Nesse sentido, se faz necessário questionar os parâmetros extrínsecos, que por vezes
busca nos indicar o que seria uma intervenção bem sucedida, pois estes não englobam a
totalidade subjetiva da pessoa. Dessa forma, há um direcionamento para buscar esse critério
na relação, sendo intrínseca a ela, sem perder de vista, contudo, o ambiente ao qual a pessoa
15
Refere-se a quando um jogador aposta todas as suas fichas, obrigando os outros jogadores a apostarem ou a
saírem do jogo
124
desestruturantes ao self, capaz de lidar com os ideais, as frustrações e o ambiente nem
sempre favorável a seu desenvolvimento (p. 98).
Assim, há direções que auxiliam esse pensamento. Latner (1973) afirma que a terapia
demandas de forma que gerem crescimento. PHG (1951/1997) apontam que a reintegração da
totalidade, bem como o livre processo de formação de gestalten. Hycner (1995) direciona seu
pensamento de que a terapia deve ter como norte o desenvolvimento da pessoa, para que ela
implicar no processo, por se doar para a relação se faz necessário refletir sobre a atuação do
Começamos com a frase de Robine (2006) e nos questionamos: como teorizar sobre a
relação terapêutica? Como teorizar sobre o que sempre nos escapará? Para tanto, ele afirma
que o “conceito de relação remete a um relacionamento que liga, quer esse vínculo seja feito
afirma que há um consenso sobre o que seria a relação terapêutica em gestalt, mas pouco
debatida e escrita na literatura. Ela sugere que as características gerais seriam “uma relação
não-hierárquica e uma ênfase no compromisso pleno e genuíno entre paciente e terapeuta” (p.
67).
cliente estabelecem não estaria fora dessa premissa. Criar um ambiente seguro e estável é
pensar em criar outro tipo de relacionamento organismo/ambiente que não seja disfuncional,
125
já que é no entre que se encontra o adoecimento. Assim, Holanda (1994) afirma que “é nesta
Pela veia existencialista dentro da GT, algumas posturas sugeridas pela filosofia
dialógica de Buber tem sido adotadas na prática. Alguns autores discursaram que, apesar de
algumas diferenças entre ambas, é possível que algumas ideias buberianas sejam adotadas em
terapia (Holanda, 1994; Hycner & Jacobs, 1995; Ribeiro, 1994). Segundo Almeida (2010) há
duas direções básicas que fundamentam e orientam a prática clínica: a relação dialógica e o
método fenomenológico.
atitude esta que é uma direção a ser seguida, mas que é impossível de ser completamente
alcançada. Interessa mais até que ponto o Gestalt-terapeuta se torna aware de seus próprios
pré-conceitos e tem o cuidado de não direcionar a terapia de acordo com eles (Hycner, 1995).
que os novos dados que surgem na relação possam ser contatados e elaborados.
ela se apresenta (Jacobs, 1995). Além disso, parte do princípio que “aprender é descobrir.
oportunidade de descobrir por si só” (Stevens, 1978, p. 14). Isso mostra a confiança na
experiência e um respeito à sabedoria organísmica da pessoa, afinal ela é quem sabe suas
respostas.
126
também, pela mutualidade, somos apreciados nesses pontos (Hycner, 1995). É uma
havendo uma alternância necessária entre Eu-Tu e Eu-Isso. Porém, quando a relação se
orienta somente por uma postura Eu-Isso, há uma objetificação do outro, a pessoa se torna
apenas uma forma de alcançar seus próprios objetivos (Yontef, 1998). É necessário, dessa
Assim como awareness e contato, o momento Eu-Tu não tem hora marcada para
acontecer, mas há posturas que facilitam que o encontro ocorra. Uma delas é a Presença, que
se expressa pelo movimento de voltar-se para o outro, olha-lo como ele é, vê-lo em sua
alteridade (Hycner, 1995). É reconhecer o outro como diferente, ao mesmo tempo em que se
traz “para interação a plenitude de nós mesmos” (Jacobs, 1995, p. 78). É a capacidade de estar
criar uma confiança no outro de que ele pode “ir e vir (no entre) e ainda assim permanecer
protegido, inteiro, seguro. A presença do terapeuta dá suporte para que o cliente se arrisque
A Presença, então, é uma abertura e um direcionamento por estar-com este ser-aí que
se apresenta, inclusive saber até que ponto essa disponibilidade é necessária. Nesse sentido,
as psicoses para a filosofia dialógica são vistas como um esvaziamento da presença, que se
estar plenamente presente pode ser uma experiência forte. De fato, para aqueles
indivíduos que não estão habituados a ter um outro plenamente presente diante de si,
ou cujo o sendo de identidade é fraco, esse outro ser totalmente presente pode ser
experienciado como esmagador (...) para o terapeuta, isso precisa ser modulado pela
habilidade e disponibilidade do cliente em absorver essa presença, assim como
127
responder a ela. Nunca é algo imposto ao outro: é necessário ter sensibilidade a como
esta presença vai impactar determinado indivíduo (p. 39)
Outra qualidade da presença é a Confirmação, que seria um esforço para voltar-se para
o outro, afirmar sua existência. A partir da confirmação, dentro da relação, de que aquela
como ser humano e a aceitando da forma que ela se apresenta nesse momento (Hycner, 1995).
geralmente veiculado pelo ambiente, que a pessoa pode experienciar sua desintegração e que,
mesmo assim, estamos confirmando sua existência. A partir da nossa experiência no GIPSI,
os feedbacks dados pelos clientes que eram atendidos eram justamente voltados a como
conseguimos confirma-los em suas existências, por vezes conturbadas, e como isso havia sido
importante para que eles próprios se reconhecessem enquanto pessoa. Enquanto pessoa e não
enquanto doente.
estrangeiros a ela com objetivo de tentar dar alguma significação para sua vivência (Galvão,
2008). Nesse sentido, havia uma jovem que atendemos que fora diagnosticada em sua
adolescência e anos após continuava tendo crises. Em algum momento ela percebeu como a
“doença” fazia parte de sua identidade e como continuar tendo surtos fazia parte de quem ela
era, pois era assim que ela era confirmada por seu ambiente, era assim que ela encontrava
reconhecimento. Ao mesmo tempo em que ela era reconhecida assim, havia uma pressão para
que ela fosse diferente – ninguém queria que ela fosse a “louca” da família, apesar de isso já
ter sido instaurado. Então, seu senso de eu era confuso, pois ao mesmo tempo em que ela
havia encontrado uma forma de ser vista em seus ambiente, essa forma era indesejada.
128
A partir da confirmação dela como total, não apenas na sua loucura, ela foi
afirmar como pessoa de outras formas. Essa aceitação e confirmação da totalidade da pessoa,
quanto ser-no-mundo não significa, contudo, não esperar a transformação, pois “aceitar as
pessoas como elas são não significa desistir da esperança de crescimento. Ao contrário, é
que é o coração da confirmação” (Yontef, 1998, p. 148). Nesse sentido, Vieira (2005) afirma
que
estar junto com o cliente esquizofrênico é, antes de tudo, estar junto com uma pessoa
(...) a necessidade primeira é buscar o ser e não os sintomas que ele apresenta. Por
isso, sua tarefa é a de investigação, presença e profunda confirmação da experiência
deste indivíduo. Pois mediante esse suporte, respeito e cuidado, a pessoa com
esquizofrenia consiga arriscar-se a enfrentar os temores e as delícias de estar-junto-
com o outro (p. 183).
Percebemos que essa atitude está implicada na ideia de criar um ambiente estável e
seguro, que dê apoio para que, progressivamente, a pessoa possa ter awareness de sua
segurança que a relação terapêutica pode proporcionar, em sua dimensão existencial, que
Nesse sentido, a confirmação passa também pela postura da inclusão, pois uma atitude
genuína passa pelo momento de se colocar no lugar do outro sem, contudo, perder seu lugar.
experienciar os dois lados (Hycner, 1995). É claro que a experiência da pessoa pertence a ela,
129
Isso implica, também, que a comunicação entre terapeuta e cliente seja genuína e
transparente. Esse ponto deriva da presença autêntica e deve se direcionar pelo crescimento da
pessoa e não meramente como auto-revelações fora do contexto da terapia, afinal, a figura é o
mais clara. Como, segundo essa autora, em experiências de psicose a pessoa consegue ler com
desconfirmação do ambiente. Por exemplo, quando ainda era estagiária no GIPSI e estava
conseguir fazer alguma coisa e me mostrar “competente”. Estava atendendo meu primeiro
bocejado. Respondi que não e ela continuou insistindo nessa percepção. Confirmar isso seria
positivo, pois foi uma percepção acurada do outro e do ambiente. A realidade é que eu estava
achando aquele momento enfadonho, mas não queria de nenhuma forma transparecer isso a
ela. No decorrer da sessão ela me relatou como estava se sentindo entediada com o que estava
vivendo. A partir desse momento, percebi como a comunicação genuína é importante e pode
espaço seguro onde a pessoa é permitida ser. Por outro lado, a clínica gestáltica também se
pauta pelo uso do confronto e frustração, posturas que parecem ser antagônicas com o que
130
desempenhado, em vez de confrontar o comportamento em si. Ou a confrontação será
plena de aceitação compreensiva obtida pela prática da inclusão (...) às vezes, praticar
a inclusão e ao mesmo tempo confrontar exige paciência e confiança na elasticidade
das fronteiras do próprio terapeuta (Jacobs, 1995, p. 85).
Outro embate entre a filosofia dialógica e a gestalt-terapia é que, enquanto Buber
usava a relação dialógica como o objetivo, a GT acredita que ela é um meio para que se
alcance a awareness (Robine, 2006). Ao mesmo tempo, a relação ainda é central, pois é por
Certa vez escutei de uma supervisora que era impossível de ser realizar supervisão em
terapeuta, já que quando ele fala de um cliente na verdade está relatando de que forma o
Falamos sobre algumas direções que o trabalho clínico pode tomar, mas, um dos meus
questionamentos anteriores à realização dessa dissertação era como, na prática, isso poderia
ser realizado. Como trabalhar com esses conceitos gestálticos no concreto, quando estamos
face a face com o outro. Essa minha angústia aos poucos foi se resolvendo ao perceber que eu,
enquanto pessoa, também faço e sou a relação: como me transformar afeta o trabalho.
Na realidade, assim como Jacobs (1995) afirma – e concordamos com ela - não temos
o poder de mudar ninguém e que esse não é o nosso papel. A cura que tanto se almeja em
casos de psicose, se é que ela existe, não deve ser um norte para o clínico que trabalha com
esse fenômeno. A nossa direção deve ser a de nos dispor à relação, a escutar, dar voz e
ouvidos àquela angústia difícil de ser nomeada. Angústia essa que por vezes reverbera nas
além, uma vivência impossível de ser traduzida, porque pertence à dimensão daquilo que nos
131
"Ir hacia", lenguaje, acontecimiento de frontera-contacto, varias manifestaciones que
significan que otro existe frente a nosotros o al lado nuestro, y que procuramos
alcanzarle, "contactarle", aún con el riesgo de hacernos sufrir y de hacerle sufrir, si es
que no hay otros medios. Cualquier síntoma, ya sea físico o psíquico, es una manera de
significar algo. Si tratamos de significar, siempre es a otro, con el deseo de que el signo
sea percibido y de que conlleve una respuesta (par. 22)16.
Por isso, o cuidado de si é um pressuposto para o cuidado do outro e isso inclui tanto ter
awareness das nossas próprias figuras mal formadas quanto saber do limite de nossa atuação.
Da mesma forma, é impossível “mandar” a pessoa fazer contatos, obrigar que tenha
awareness, mas preparar um terreno que seja facilitador que isso ocorra. Ou seja, não falamos
“fique aware disso!”, pois é impossível forçar, é um momento que acontece. Essa atitude, por
vezes, se mascara no nosso ideal de saúde, onde desejamos que a pessoa chegue. O que
podemos fazer é estar em posição de abertura, criar um espaço seguro para que a awareness
ocorra... ou não. E, por vezes, ela realmente não vai ocorrer e teremos que lidar com nossas
frustrações.
mudança ocorre quando uma pessoa se torna o que é, não quando tenta converter-se no que
não é” (p. 110). Assim é a gestalt-terapia: orientamo-nos por posturas que possam auxiliar a
pessoa a ser quem ela é e não para não ser o que ela não é. Essa ideia também diz respeito ao
terapeuta, pois quanto mais ele estiver sendo quem ele é, mais a abertura existencial para o
vezes escutei e senti o temor de “o que estou fazendo? O que posso fazer frente a essa
demanda?”. Depois de algum tempo, percebi que, a partir dessas ideias que discursamos aqui,
16
“‘Ir em direção a’, linguagem, fronteira de contato, várias manifestações que significam que o outro existe
outro em nossa frente ou ao nosso lado, e que procuramos chegar até ele, ‘contata-lo’, mesmo com o risco de nos
fazer sofrer e faze-lo sofrer, se não houver outros meios. Qualquer sintoma, seja física ou mental, é uma maneira
de dizer alguma coisa. Se tentarmos significar, sempre é ao outro, com a esperança de que a mensagem seja
percebida e envolvida a uma resposta” (tradução livre).
132
estar-com, na totalidade da presença era umas das coisas mais difíceis e que mais gerava
transformações. Parece pouco. Fomos ensinados que temos que fazer algo, temos que intervir,
Em uma dessas experiências, atendemos uma jovem, com quase a mesma idade que eu
tinha na época, com contextos de vida parecidos e que estava em plena crise do tipo psicótica.
Ela se sentia travada, estagnada na vida e eu sentia a mesma coisa no processo terapêutico,
parecia que cada sessão era só uma reafirmação da impotência dela diante da vida e da minha
própria impotência enquanto psicóloga. Entre supervisões e desesperos, eu percebi que eu não
queria que ela estivesse assim. Pela minha própria identificação com ela, percebi que eu não
estava a aceitando, me direcionando por uma atitude Eu-Isso, por um objetivo. Não estava em
relação com ela, mas com o meu ideal de cura. Queria que ela chegasse a um lugar que era
meu e não necessariamente dela. Minha escuta e minha presença estavam comprometidas, não
estava aberta para aquilo que estava emergindo no aqui-agora da relação. Ao entrar em
Therapy, in this context, must express a profound coherence between the background
and the figure - the therapeutic relationship must be focused on the congruence
between ‘the content’ and ‘the relationship’, between ‘the background’ of experience
and ‘the figure’ that both therapist and the patient permit to emerge (s.p.).17
Essa necessidade de coerência se reflete em um dos objetivos que citamos, que é o de
criar um fundo experiencial seguro, em que o terapeuta se torna uma figura clara, forte e
flexível (Robine, 2006). Isso mostra, também, a dificuldade de se trabalhar com esse tipo de
experiência. A psicose fascina ao mesmo tempo em que assusta. Nesses casos, como afirma
17
“Terapia, neste contexto, deve expressar uma profunda coerência entre o fundo e a figura - a relação
terapêutica deve ser focada na congruência entre 'o conteúdo e ‘a relação’, entre o ‘fundo’ da experiência e'
figura' que tanto o terapeuta e o paciente permitem emergir” (tradução livre)
133
consequência da falta de fronteira entre o organismo e o ambiente, qualquer tentativa de
Nesse sentido, se faz necessário que saibamos os limites, que se dão na própria
relação. Reconhecer até onde se pode ir é uma atitude de justiça com o psicólogo e com a
pessoa. Precisamos separar o que depende de nós do que não depende (Robine, 2010). Da
mesma forma, precisamos estar atentos aos limites da própria pessoa que está ali. Por isso,
também, não falamos sobre resistência ou quebrar resistências em GT, por respeitarmos esse
bloqueios vão, aos poucos, dando lugar para outras formas de relação.
terapeuta criam novos sentidos para a experiência. A própria busca pela criatividade e criação
da pessoa frente às demandas na vida sugere esse viés estético em GT. Para Robine (2006), a
134
Dessa forma, o ato estético, também, pode ser considerado como o baile rítmico e
alinhado entre dois parceiros: a relação terapêutica e a base teórica, que sustenta e dá
confiança ao gestaltista para que ele possa ter criatividade e disposição da abertura para
dançar sozinho, o ritmo só faz sentido se houver o outro que conduz e sabe ser conduzido; se
houver dúvida no passo, os parceiros podem confiar um no outro para que a dança seja
135
CAPÍTULO V - CONSIDERAÇÕES FINAIS E A ETERNA SUCESSÃO DE
GESTALTEN
A vida prossegue, fluxo infinito de gestalten incompletas!
(...)
Gestalt surgindo de um fundo...
Eu vivendo a vida
(Perls, 1979)
psicose em Gestalt-terapia e suas possíveis aplicações em uma clínica. Para tanto, buscamos
rever o conceito da própria psicose e como este foi baseado em um paradigma organicista de
doença do corpo, de déficit. A psicanálise, por sua vez, introduziu a subjetividade a esse
fenômeno. A partir das bases teóricas, filosóficas e da antropologia gestáltica vimos que essas
bases epistemológicas nos são estranhas e por isso não seria interessante englobar tais ideias.
psiquiatria fenomenológica para tentar completar o vazio deixado por uma falta de teoria
como seria enriquecedor buscar esse preenchimento dentro da própria Gestalt. De certa forma,
isso reafirma nossa própria identidade enquanto teoria-prática que pode sim dar conta de lidar
Porém, ainda vacilante, esbarramos em uma das limitações da própria Gestalt: não
temos uma base epistemológica totalmente coesa. Robine (2006) fala que não temos uma
coerência teórica, mas que temos desenvolvido, por meio de embates, algo que seja próprio da
vem sido realizados nos últimos anos. Foi um grande desafio prosseguir mesmo diante a essa
136
dificuldade epistemológica. Espero que tenhamos chegado em algum lugar diferente de
quando começamos e que esses nós teóricos tenham sido um pouquinho destrinchados.
propostas em psicologia. De fato, vimos que todo o imaginário foi construído, mas que o
sofrimento é real – é claro que essa representação moldada também influencia nas vivências a
níveis pessoais. Pensar em psicose como uma relação adoecida resolve um pouco do
problema – assim a pessoa não é nem culpada por seu adoecimento e nem eximida da
responsabilidade, mas com certeza o equilíbrio fica melhor dividido. Quem sabe um dia não
precisemos mais cuidar dos sofrimentos humanos fechados em categorias, mas como relações
descompensadas.
psicose, não apenas enquanto manifestação, mas a criação em termos de buscar a saúde e não
a doença, desconstrução essa que pode ser vista na prática de cuidado com as pessoas que
Outra limitação desse estudo foi relacionado a falta de uma sistematização clínica.
Quando esse trabalho foi pensado iríamos partir de estudos de caso para pensarmos a atuação
nesse contexto, porém, por motivos práticos isso não foi possível. Buscamos, por meio de
vinhetas, dar essa claridade, mas reconhecemos que enriqueceria as discussões se tivéssemos
internacional, mas, infelizmente, não conseguimos acesso a todas quanto gostaríamos: umas
137
Nesse ponto, não buscaremos mais retomar tudo o que já foi dito – está, agora, no
nosso fundo adquirido de contatos; entretanto, há alguns excitamentos, algumas figuras que
psicoses sem levar o ambiente para dentro do setting terapêutico? Para a GT, a totalidade do
pessoa para que ela própria consiga se ajustar criativamente ao ambiente. Buscar a
mas parece que a prática terapêutica ainda não conseguiu tirar o peso de a intervenção mais
maiores, mais marcantes, que fazem com que a pessoa, para sobreviver, precise se afastar
completamente. Por isso, quanto mais esse ambiente for facilitador, maior a capacidade de a
ambiente. Trazendo a filosofia dialógica, quanto maior for o suporte da relação terapêutica
qual a pessoa possa desenvolver um Eu. Nesse sentido, é necessário que pensemos um
Mas, se estamos falando de uma psicopatologia da relação, quanto mais ela for
138
GIPSI prova, já há alguns anos, que implicar a família, trabalhar com o psicossocial, sem
Ou seja, por toda situação ser função do campo, quanto mais o ambiente se implicar e se
tornar mais “contatável”, com maior facilidade as vivências de sofrimento poderão ser
próprio, do que se tentar aprender a se mal-ajustar à sociedade” (p. 117). A gestalt que
deixamos em aberto aqui é como isso poderia ser feito em vivências de psicose.
doa a ser ele próprio um ambiente seguro e nutritivo. Por esse direcionamento e pela própria
supervisão constante, o que pode gerar o ambiente também de apoio para o terapeuta. Além
um contexto macro. Robine (2011) afirma que a sucessão de contatos estabelecidos entre
terapeuta e cliente contribuem para transformar e modelar relações sociais e as formas que a
pessoa se inscreve no tecido social. O que ele chama atenção é para que dirijamos nosso olhar
para de que forma o fazer clínica pode influenciar a sociedade. Dessa forma, algumas ideias
da GT foram deliberadamente deixadas de fora, pois, de certa forma, iam de encontro com o
viés empregado aqui. Uma dessas ideias que é digna de nota é a questão do autossuporte,
muito veiculada por Perls. A nosso ver, buscar o autossuporte em terapia é necessário com o
cuidado de não se desenvolver mais pessoas egotistas. Como conseguir que nos suportemos,
139
Pensar a psicose como um desequilíbrio relacional, como um momento de vivência da
relação transforma a forma como lidamos com esse fenômeno. Não mais a pessoa é vista
que não há psicóticos. O que precisamos tratar é a relação. O próprio Perls (1977) afirma que
“nós sabemos com certeza que uma pessoa pode entrar num hospital de doentes mentais e
melhorar, sair do hospital e piorar de novo. Isto mostra que um importante fator situacional ou
ambiental deve estar envolvido, não pode ser apenas química” (p. 175).
Dessa forma, a clínica da Gestalt é interessante como cuidado das psicoses por não se
fixar nessa experiência e sim na busca da pessoa como ela é, por meio da humanização das
relações; por entender que essa é uma vivência de caráter temporal e não uma doença que
acompanhará a pessoa pelo resto da vida; por se pautar no fluxo de experiência que se mostra
no aqui-agora; por não buscar explicações causais, mas explorar o como ocorre o
A psicose, dessa forma, não pode ser vista como algo pertencente a pessoa. Psicose é
uma categoria que define um conjunto de experiências observáveis, que tem em comum a
perda da realidade. É uma vivência de sofrimento, mas assim como a própria pessoa não é
estática, esse experienciar também não o é. Se encararmos assim, uma clínica tem por
objetivo estar-com o sujeito, em um encontro humano que torne esse vivenciar como algo
fluido.
Ao longo desse trabalho, abrimos umas tantas gestalten e esperamos ter, pelo menos,
fechado algumas outras. A intenção é que deixemos nosso fluir livre para que outras figuras
possam surgir...
140
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