Antropologia e Educação 1 PDF
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DOSSIÊ TEMÁTICO
Pesquisa em Educação: abordagens metodológicas
Anthropology, ethnography and education: questions of/for research from the indigenous
ethnology
Clarice Cohn
Universidade Federal de São Carlos – Brasil
Resumo
Neste artigo interessa-nos pensar a relação entre antropologia, etnografia e educação a partir
de um duplo exercício: primeiramente, refletir acerca da possibilidade de construção de um
diálogo entre antropologia, etnografia e educação, como tem sido discutido por Gusmão
(1997, 2003, 2010, 2015), Dauster (1996, 2007, 2014), Rocha e Tosta (2009), Tosta e Rocha
(2014), Oliveira (2012, 2013a, 2013b, 2013c), dentre outros; por outro lado, procuraremos
demonstrar como esse diálogo tem sido construído a partir das experiências escolares entre
povos indígenas em nosso país, e do como a etnografia tem se tornado central para a
compreensão dessas experiências.
Abstract
In this article we are interested in thinking about the relation between anthropology,
Ethnography and education from a double exercise: first, to reflect on the possibility of
constructing a dialogue between anthropology, ethnography and education, as been discussed
by Gusmão (1997, 2003, 2010, 2015), Dauster (1996, 2007, 2014), Rocha e Tosta (2009),
Tosta e Rocha (2014), Oliveira (2012, 2013a, 2013b, 2013c), among others; still, we will try
to demonstrate how this dialogue has been constructed from the school experiences among
indigenous people in our country and how ethnography has become central to the
understanding of these experiences.
Revista Práxis Educacional, Vitória da Conquista, v. 13, n. 25, p. 112-138, maio/ago. 2017.
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Resumen
En este artículo nos interesa pensar la relación entre la antropología, la etnografía y la
educación desde un ejercicio dual: en primer lugar, para reflexionar sobre la posibilidad de
construir un diálogo entre la antropología, la etnografía y la educación, como se ha hecho por
Gusmão (1997, 2003, 2010, 2015), Dauster (1996, 2007, 2014), Rocha y Tosta (2009), Tosta
y Rocha (2014), Oliveira (2012, 2013a, 2013b, 2013c), entre otros; por otro lado, se busca
demostrar cómo este diálogo ha sido construido a partir de las experiencias de la escuela entre
las personas indígenas en nuestro país, y como la etnografía se ha convertido en fundamental
para la comprensión de estas experiencias.
O campo da educação continua permeado por muitas questões e sobre a educação são
depositados diferentes desejos e perspectivas, especialmente em relação à escola/educação
escolar, esta herança moderna. A escola, portanto, se vê confrontada e, nesse sentido, é a
própria concepção de escola – “suas funções e relações com a sociedade, o conhecimento e a
construção de identidades pessoais, sociais, culturais – que está em jogo”, (CANDAU, 2010,
p. 9). Ademais,
Globalização, multiculturalismo, pós-modernidade, questões de gênero e
raça, novas formas de comunicação, manifestações culturais dos
adolescentes e jovens, sociedade virtual, movimentos culturais e religiosos,
diversas formas de violência e exclusão social configuram novos e diferentes
cenários sociais, políticos e culturais presentes nas sociedades
contemporâneas. [...] A educação não pode ignorar esta realidade. O impacto
destes processos no cotidiano escolar é cada vez maior. (CANDAU, 2010, p.
9).
Além das questões apresentadas por Candau (2010) temos, na cena contemporânea,
diferentes coletivos que reclamam a escola e a enxergam como força potente para a produção
de relações mais simétricas frente às estruturas de poder do Estado e aos processos que
acentuam muitas das desigualdades sociais em nosso país, a exemplo dos povos indígenas,
comunidades quilombolas, povos do campo, para citar apenas alguns exemplos. Esses novos
(velhos) contextos têm exigido a construção de olhares interdisciplinares acerca desses muitos
fenômenos, como nos tem apresentado Gusmão (1997; 2003; 2010; 2015), Consorte (1997),
Tosta (2014), Rocha (2012), Rocha e Tosta (2009), Tosta e Rocha (2014), Lopes da Silva
(2001a; 2001b), Dauster (1996; 2007; 2014), Vieira (2012; 2014), Wulf (2005), Valente
(1996), Oliveira (2012; 2013a; 2013b; 2013c) e Gomes (2014) quando refletem acerca da
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necessidade de um diálogo entre antropologia e educação que seja capaz, ao mesmo tempo, de
refinar e deslocar o olhar da antropologia e de produzir entendimentos acerca dos processos
educativos que se dão nos mais variados contextos sociais/culturais. Todavia, mesmo diante
de sua “vocação interdisciplinar” (STOCKING, 2002), a antropologia parece ter
negligenciado ou subvalorizado o “fenômeno educação”.
Para o domínio de uma antropologia da educação, “uma das primeiras questões a
colocar é a seguinte: trata-se de estudar a educação ou de estudar os processos educativos”?
(VIEIRA, 2014, p. 31). A pergunta levantada por Vieira é relevante, na medida em que o que
se entende por educação pode ganhar diferentes contornos e sentidos a depender do lugar de
onde se fala. Por exemplo, a educação pode ser pensada a partir do lugar onde se pratica
“certa ciência”, como a Pedagogia ou as Ciências da Educação; ademais, pode significar uma
fração do modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam, entre tantas outras
invenções de sua cultura, em sua sociedade e, nesse sentido, como sugere, Brandão (2002,
2003) educação é cultura. De toda sorte, segundo Vieira (2014, p. 31), “qualquer que seja a
sociedade, ela necessita, também, de criar, de construir conhecimento. Para assegurar tal
missão, desenvolve mecanismos, os quais designamos de processos educativos”. Nesse
sentido,
Há múltiplas abordagens da educação e seus processos, e a problemática não
é nova: podemos considerar as abordagens dos “protopedagogos” gregos
(filósofos), mas também chineses, hindus, árabes, etc. – refletindo sobre
“modos de ser”, “comportamentos espirituais” e “técnicas formativas”.
Podemos considerar, na Europa, ainda, as abordagens dos “pré-pedagogos”
religiosos (escolas da Igreja) e dos tutores e preceptores (da nobreza), com
seus manuais de comportamento espiritual e social (nobre) [tão bem
retratado por Ariès, 2006]. O iluminismo civilizacional europeu tinha fortes
preocupações com a educação e com a infância e juventude, com as
habitações dos educadores; e valorizava o papel da mulher como reprodutora
e educadora. [...]. No domínio específico da sociologia da educação,
podemos considerar uma fase de arranque com o positivismo e com Émile
Durkheim na qual brotam os projetos moralizadores da escolarização e o
progresso industrial, que gera a escola de massas. (VIEIRA, 2014, p. 31-32).
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Professor adjunto e inspetor de Antropologia na Universidade de Pensilvânia. Conferência apresentada: As
escolas nas sociedades revolucionárias e conservadoras.
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Professor adjunto de Antropologia e Linguística na Universidade de Califórnia (Berkeley). Conferência
apresentada: As funções da linguagem do ponto de vista evolucionista.
3
Professor adjunto e presidente efetivo do Departamento de Antropologia na Universidade de Pensilvânia.
Conferência apresentada: Educação e identidade.
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De forma mais pontual, no Brasil, temos uma tradição muitas vezes esquecida pelos
antropólogos que remete aos laboratórios de Antropologia Pedagógica ainda no começo do
século XX, que funcionavam junto às Escolas Normais, voltadas para a formação de
professores (OLIVEIRA, 2012; 2013a).
Nesses termos, “a aproximação entre a antropologia e a educação não visa apagar as
fronteiras das áreas de conhecimento, mas sim promover o diálogo, colocar em prática a
vocação antropológica da interdisciplinaridade” (DAUSTER; TOSTA; ROCHA, 2012, p. 18),
que nem sempre ocorre de forma tranquila. Nesse sentido, como articular o projeto
antropológico de produção de conhecimento com o projeto educacional de intervenção na
realidade? Como o campo educacional tem recorrido ao projeto antropológico de produção de
conhecimento e que categorias antropológicas são acionadas na produção desse diálogo? Que
limites e possibilidades se instauram? Segundo Dauster, Tosta e Rocha,
4
Professor de Educação na Universidade de Pensilvânia.
5
Martin G. Brumbaugh (1862-1930) foi o primeiro catedrático de Pedagogia da Universidade de Pensilvânia,
regendo a cadeira desde 1895 a 1905.
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Para uma crítica aos estudos do “tipo etnográfico” conforme apresentado por André (2005) ver Oliveira
(2013a; 2013b).
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Para uma crítica à denominada antropologia pós-moderna ver Peirano (1995), Strathern (2014) e Goldman
(2016)
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De todo modo, pesquisas instigantes têm sido realizadas, aproximando o diálogo entre
antropologia e educação, sobre diferentes temáticas, como demonstram os próprios títulos das
publicações aqui citadas: Diálogos sem fronteira: História, etnografia e educação em
culturas Ibero-Americanas (organizado por Sandra Pereira Tosta e Gilmar Rocha [2014]);
Etnografia e educação: culturas escolares, formação e sociabilidades infantis e juvenis,
organizado por Tania Dauster, Sandra Pereira Tosta e Gilmar Rocha (2012); Sertão de jovens:
antropologia e educação, de Vanda Silva (2014); Antropologia e Educação: um saber de
fronteira, organizado por Tania Dauster (2007); Pesquisa em educação: a produção do
Núcleo de Etnografia em Educação (NetEDU), organizado por Carmen Lúcia de Matos
[et.al.] (2015); e tantos outros artigos que têm sido publicados em periódicos.
No próximo tópico, a partir de pesquisa que temos realizado, procuraremos
demonstrar como esse diálogo tem sido construído a partir das experiências escolares entre
povos indígenas em nosso país, e de como a etnografia tem se tornado central para a
compreensão do como cada povo indígena tem produzido sua escola.
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Cada escola indígena deve ser pensada como experiência única, em sua força
particular, e esse é um direito e não uma concessão do Estado Brasileiro.
Sendo assim, não é demais exigir que as escolas indígenas sejam
diferenciadas em relação às escolas da rede regular de ensino, mas também
diferenciadas entre si. Também não é demais exigir que os processos de
formação de professores indígenas sejam planejados de modo a contemplar
as diferenças- não as diferenças genéricas, que embasam certas propostas de
formação para índios, mas a diferença de um povo indígena em relação aos
demais (2008, p. 106-107).
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suas famílias preocupam-se em oferecer esta formação. As experiências, elas mesmas, são das
mais variadas, diferindo como diferem as situações mesmo de povos e comunidades indígenas
no Brasil, indo desde o lugar onde se aprende o “conhecimento do branco” até o lugar onde
resgata a (própria) cultura (COHN, 2014).
Apesar desta diversidade, percebe-se uma homogeneidade, ou uma espécie de
denominador comum, no discurso oficial e nas práticas que deve ser debatida, e que está
exatamente nesta característica de uma política cultural para os povos indígenas, e que se
refere aos modos como cultura tem sido entendida, operada e construída em cada situação.
Nos discursos oficiais (e na prática) a escola, em contexto indígena, é valorizada porque passa
a se constituir como espaço de resgate da tradição e de valorização da cultura. A cultura –
acionada para as mais diversas finalidades – no ambiente escolar - é entendida como
produtora de conhecimento ou tradição indígena (COHN, 2014).
Nesse novo cenário, em que a educação escolar é acionada pelos povos indígenas, na
relação com o Estado brasileiro, em que se normatizam e se instituem princípios e
características do que deva ser a educação escolar em contexto indígena (nos seus sentidos
específico, diferenciado e intercultural) emergem questões que se colocam e que atravessam o
campo do currículo, a concepção de conhecimento próprio a cada povo indígena e,
consequentemente, o que pode e deve ser ensinado no espaço escolar. Dessa forma, é preciso
investir em pesquisas que atentem para essas questões.
No contexto atual, compreender os modos como os próprios indígenas refletem sobre
a escola e se relacionam com ela, bem como a execução das políticas públicas destinadas a
essa área e a atuação dos profissionais que trabalham diretamente neste local, sejam eles
indígenas ou não, para tentar entender as possibilidades de arranjos dessas relações, é tarefa
que vale a pena investigar e para isso a antropologia tem muito a contribuir (BELTRAME,
2013). No mesmo sentido, como afirma Beltrame (2013, p. 18-19, grifos nossos),
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“Retomadas” consistem em processos de recuperação, pelos indígenas, de áreas por eles tradicionalmente
ocupadas, no interior das fronteiras da Terra Indígena - TI, e que se encontravam em posse de não índios. São
ações encabeçadas por um cacique, algumas de suas lideranças e famílias indígenas que ao identificarem uma
área improdutiva ou abandonada dentro da TI investem na ocupação territorial da mesma (MEJÍA LARA, 2012;
ALARCON, 2013; ROCHA, 2014).
9
Nesse texto, diante do limite de páginas, não é possível apresentar a densidade dos dados produzidos durante a
pesquisa de doutorado, que resultou na etnografia intitulada “A letra é a mesma, mas a cultura é diferente”: A
escola dos Tupinambá de Olivença (2015). Todavia, interessa-nos apresentar aspectos que consideramos
importantes e que, no limite, sinalizam para os modos como os Tupinambá de Olivença têm produzido sua
escola.
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Compreender como cada povo indígena tem produzido suas escolas é de fundamental
importância, posto que, como já nos advertiu Sahlins (2004, p. 184) “nenhum objeto,
nenhuma coisa existe ou tem movimento numa sociedade humana exceto pela significância
que os homens lhe possam atribuir”. Nesse sentido, são muitos os sentidos e significados que
os povos indígenas, a exemplo dos Tupinambá, têm atribuído à escola, através de suas
“políticas culturais”, como propõe Carneiro da Cunha (2014). A etnografia (PEIRANO, 1995;
LOPES DA SILVA, 2001a; 2001b; COLLET, 2006), portanto, se torna fundamental para a
compreensão desses processos. A pesquisa que temos realizado junto aos Tupinambá, no
sentido de compreender como estes produzem e se apropriam da instituição escolar, teve
início em abril de 2011 e se estendeu, de forma sistemática a maio de 2012, com retorno a
campo em 2013 e 2014, por período mais curtos. No entanto, continuamos, até o presente
momento, desenvolvendo pesquisa junto a esse povo.
O movimento indígena de organização dos atuais Tupinambá se configura desde os
anos 1980, mas ganha corpo principalmente a partir do final dos anos de 1990 quando uma
mulher nativa, Núbia Batista da Silva, com formação escolar superior (graduação em
Pedagogia pela Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus/BA) e ligada a uma organização
não governamental de alfabetização (CAPOREC10) passa a mobilizar as famílias de diversas
localidades, que hoje compõe o perímetro da Terra Indígena Tupinambá de Olivença. É nesse
contexto de mobilização e reorganização interna que a educação escolar indígena começa a
ser pensada e construída de modo a atender às necessidades deste povo, buscando atuar em
duas frentes: a luta pelo reconhecimento étnico e a retomada de seu território ancestral. O que
se vislumbra, a partir desse novo contexto, é uma escola que seja produzida pelos e para os
Tupinambá.
O projeto de educação escolar iniciado a partir de 1996, sob a liderança de Núbia
Batista da Silva, ganha força na medida em que um grupo de professores começam a trabalhar
voluntariamente para alfabetizar os moradores da aldeia. Estimulados por Núbia, essas
professoras participaram do Coletivo de Alfabetizadores Populares da Região Cacaueira –
CAPOREC responsável pelo acompanhamento, e assessoria pedagógica e tinha como
proposta pedagógica fundamentada na obra de Paulo Freire, como outras propostas de
educação voltadas para povos indígenas da Bahia, a exemplo dos índios Kiriri, como
demonstrou Cortês (1996), e consistia nos seguintes passos: primeiro, a identificação e
10
CAPOREC – Coletivo de Alfabetizadores Populares da Região Cacaueira, ONG institucionalizada em
05/09/96, mas que vem atuando na educação de jovens e adultos desde 1992.
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O movimento que multiplica a escola pelo território indígena, em especial pelas áreas
de retomadas, através dos processos de nucleamento, tem sido central para a compreensão da
importância que a escola assume entre os Tupinambá que, como já demonstrado em nossa
tese de doutorado, está articulado à luta pela demarcação e defesa do território, à defesa do
parentesco, à produção da cultura e ao estar na cultura, além da construção da identidade
(COHN; SANTANA, 2016; SANTANA, 2015; MEJÍA LARA, 2012). Ademais, como
demonstrado por Rocha (2014), a produção da escola e sua dispersão pelo território também
se articula e é articulada pela forma como os Tupinambá fazem política.
Os Tupinambá fazem escola para resistir e resistem fazendo escola. Estudar é resistir.
Possibilidade, inclusive, para se manter no território, cuidando dos parentes. Se a escola
produz novos postos de trabalho e, portanto, novas funções, novos empregos, que são,
também, disputados internamente, a partir do modo como se faz política, que envolve a
relação entre caciques, escola e professores, é verdade, também, que muitos permanecem no
território, fortalecendo a cultura, a luta, o movimento, porque tem a escola e as vantagens que
esta oferece, a exemplo de emprego.
Estudar é como fazer retomada, em duplo sentido: é resistência, diante dos perigos,
das dificuldades que se enfrenta para chegar à escola. Alguns desses perigos são muito reais,
sobretudo quando se instaura tensões mais agudas com os fazendeiros, dentro do próprio
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território. Ir à escola, nessas circunstâncias, é sempre perigoso. Ouvi de professores que nestas
situações as crianças, especialmente as que precisam atravessar fazendas para chegarem à
escola, têm que esconder sua cultura, a pintura corporal, colares, tanga, como forma de não
serem facilmente identificadas e, com isso, sofrerem ataques. Outras, ainda, segundo relato de
um professor, não querem chegar pintadas em casa porque tem medo do patrão, de serem
expulsas da terra. Medo de sair da terra e não ter para onde ir. Por outro lado, estudar é
“retomar”, de forma sempre atualizada, através do que se aprende na e pela escola, a história
dos antepassados, suas lutas, resistências; é produzir e estar na cultura como temos afirmado.
Ingrid Weber, em seu livro Um copo de cultura: Os HuniKuin (Kaxinawá) do rio
Humaitá e a escola, nos apresenta reflexões interessantes, mostrando-nos como os Kaxinawá
do Acre se apropriam da escola e, da mesma forma, reflete sobre o papel da escola na
definição dos limites da comunidade-aldeia e na apropriação da noção de “cultura”. O que a
autora pretende mostrar é como os métodos didáticos utilizados na escola Kaxinawá e, da
mesma forma, a introdução da escola na aldeia e a função que esta passa a desempenhar no
atual contexto seguem o mesmo padrão das aprendizagens das habilidades tradicionais, como
por exemplo, a prática da tecelagem. Nesse sentido, a utilização da cópia, “decoreba”
enquanto método de alfabetização11, na escola Kaxinawá, reflete muito mais a singularidade
da pedagogia Kaxinawá12 do que uma simples repetição das práticas de alfabetização das
escolas ditas “oficiais”.
Nesse sentido, e conforme Weber,
11
Como a aquisição de qualquer habilidade, o aprendizado da escrita é lento. Ele provém de um envolvimento
individual e gradual (mas não sistemático) com o contexto em que a escrita é “praticada” e onde, passo a passo e
através da repetição (cópia), cada uma de suas técnicas vai sendo internalizada. Entende-se, assim, porque a
alfabetização leva, em média, quatro anos (ou mais), o que, visto da nossa perspectiva, poderia ser julgado como
fruto da incompetência do professor. (WEBER, 2006, p. 203-204).
12
A visão é uma importante habilidade para aqueles que estão aprendendo [...] A maior parte da pedagogia
envolve o aprendiz observando as ações do professor, mais do que ouvindo suas explicações. De fato, os
Cashinahua são notoriamente refratários à pedagogia discursiva. Eles sentem que os estrangeiros, como as
crianças, devem aprender mais por meio da observação e imitação do que escutando e depois pondo em prática.
(MCCALLUM, 1998).
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um fator constitutivo das festas antigas, assumiu outras formas. Nestes novos
tempos de “cultura”, a escola kaxi do São Vicente – o cupixau-escola -, vem
provendo um (novo) contexto para a transmissão dos cantos rituais, entre
outros saberes, e atribuindo sentido a sua prática. (2006, p. 220).
Para Celia Collet (2006, p. 272), a escola, entre os Bakairi parece, em um primeiro
momento, estar completamente alheia aos processos e aos contextos “tradicionais” nativos de
aprendizagem, pois os Bakairi fazem questão de que ela seja ‘como a do branco’ e para isso
se esforçam em copiar a disciplina, as maneiras e o conhecimento das ‘coisas da cidade’.
Todavia, ela acrescenta:
Com o tempo, através de várias evidências, comecei a perceber que o
método característico da escola bakairi não diferia muito do ‘não escolar’,
sendo centrado na ritualização e na performance, bem como na pedagogia da
repetição. O que me levou a essa conclusão foi uma questão que me
apresentou desde o início da pesquisa. Percebia que a escola era uma
instituição extremamente valorizada pelos bakairi, o que era demonstrada
pela baixíssima abstenção nas aulas, pela longa distância que os alunos de
outras aldeias percorriam diariamente para chegar à escola, pela ansiedade
que demonstravam os alunos à espera do horário da aula, pela excitação que
demonstram por estar na escola, pelo tempo gasto em preparar seus corpos
para ir à aula, pelo lugar de destaque que ocupa o prédio escolar nas aldeias,
pela preocupação dos pais diante do estudo dos filhos e pela valorização da
posição do professor. Por outro lado, também, observava que os conteúdos
escolares não eram tratados com a mesma importância, seja por parte dos
alunos, seja pelos professores. A maioria dos alunos não tem o hábito de
estudar em casa, abrindo o caderno somente para fazer suas ‘tarefas’ ou para
‘decorar’ o conteúdo da prova, e reclamando muito de ter que ler ou estudar
– dizendo que ‘a cabeça dói’ – em decorrência do privilégio da oralidade e
da observação na transmissão do conhecimento, o que faz com que o hábito
de ler ou estudar ainda seja um comportamento muito distante das formas de
aprendizado a que estão acostumados. (COLLET, 2006, p. 274).
As reflexões de Ingrid Weber (2006) e Célia Collet (2006) nos remetem a novas
possibilidades de análise acerca do papel que a educação escolar pode e tem assumido nos
contextos dos grupos indígenas, partindo das demandas específicas de cada povo e, sobretudo,
pensadas a partir da “lógica da cultura” ou dos modos como os povos indígenas traduzem para
dentro da aldeia seus projetos de educação. No caso específico dos Kaxinawá, a partir da
etnografia de Weber, é explicitado como o modo de ser Kaxinawá vai traduzindo a escola
para o contexto da aldeia, ao mesmo tempo em que a escola vai se apropriando desse modo de
ser Kaxinawá. Isso conduz a novos processos de aprendizagem e de reelaboração da cultura
desse povo, ultrapassando a lógica do discurso que busca na educação escolar indígena a
possibilidade do resgate cultural a partir de uma ideia de cultura genuína, localizada no
passado, necessitando ser resgatada. Por outro lado, segundo Collet (2010, p. 176),
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Camila Beltrame (2013) apresenta em sua dissertação de mestrado questões similares em relação à escola dos
Xikrin.
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Uma dessas professoras já era formada em Pedagogia e a outra estava terminando o curso. Talvez por isso, as
“acusações” em relação a seus colegas, de serem copistas. Atualmente, os “discursos” da Pedagogia se
contrapõem às atividades de cópia. Por outro lado, pude observar que, em sala de aula, as atividades de “cópia”
eram muito recorrentes entre essas professoras.
15
As chamadas provas, no final dos períodos ou unidades escolares.
16
Muitos desses estudantes não “levavam a sério” as atividades escolares, no que dizia respeito à aprendizagem
de certos conteúdos; eram alunos que não se saiam bem nas provas.
17
Em conversa que tivemos com dona Lourdes, quando falávamos sobre José - considerado o estudante que mais
vivia na cultura, por estar sempre pintado, com colares - e sua ida para São Paulo, ela pergunta: “será que ele vai
perder a cultura”? Afastar-se dos parentes corre-se o risco de tornar-se um outro, ou ao menos, torna-se mais
“fraco” na cultura. Perder a cultura, no caso de José, não é só perder os elementos que caracterizariam, também,
a cultura tupinambá (pintura, colares, tanga, dentre outras coisas). O “perder a cultura” é antes um afastamento
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cultura (com e sem aspas), como proposto por Carneiro da Cunha (2009); diz respeito
também a algo que costumava ouvir em conversas que tinha com alguns Tupinambá: é
preciso ser índio, índio, índio mesmo, já que há, inquestionavelmente, uma disputa por estar
no ápice do gradiente da “indianidade” nativa. Por outro lado, sabe-se que quem não está no
território, em uma aldeia, em uma retomada, é cotidianamente questionado e acusado, como
se negasse a própria “cultura”. Perder a cultura, ou a possibilidade de vir a perdê-la, como
parece sugerir Dona Lourdes em relação a José, significa, justamente, perder tudo e todas as
relações que ela possibilita. Nesse sentido, ser e tornar-se Tupinambá forte significa estar apto
a obter o conhecimento e as ferramentas necessárias para se articular com o mundo – seja ele
dos brancos ou dos próprios Tupinambá, como também sugeriu Rocha (2014).
Para Mainardi (2010), a escola, entre os Tupi Guarani da terra indígena Piaçaguera –
SP, exerce um papel importante no resgate cultural deste povo, a partir das relações que
articula com seus outros ‒ Guarani Mbya, os não indígenas e outros indígenas. A escola,
segundo Mainardi, tem papel importante na medida em que se torna o local de ensino da
língua e da cultura às crianças. Nesse sentido, a “escola e a casa de reza são locais de
negociação, onde ocorre constante atualização/construção do conhecimento e do que pode ser
Tupi Guarani” (2010, p. 53).
Vieira (2010, 2014) analisa a relação entre saber xamânico e educação escolar,
sugerindo que, assim como os cantos rituais são usados para pacificar os espíritos, a escrita é
usada para pacificar os brancos. Se os Maxakali podem imitar os cantos e ritos ensinados pelo
próprio yãmiy18 para pacificá-los, podem também usar a escrita e a escola para pacificar o
branco. No limite, segundo Vieira, os Maxakali vêm utilizando a escola e a escrita para a
produção, num primeiro momento, de um conhecimento sobre os brancos e, num segundo
momento, de um discurso para os brancos (VIEIRA, 2010, p. 146-148).
dos parentes, é o não compartilhamento dessas “relações de proximidade”, de afetos, de memórias que são o
tempo todo produzidas e que acionam um “tipo de consciência” do que é ser Tupinambá, que é também
produzida na escola.
18
Os yãmiy são agrupados pelos Maxakali em diferentes yãmiyxop (xop– grupo). [...] Durante os rituais taxtaxkox
(lagarta da taquara) de iniciação masculina, os meninos são capturados por espíritos e passam um mês em
reclusão no Kuxex (‘casa de religião’, no português falado pelos Maxakali. Local frequentado apenas por
homens, por onde os espíritos devem passar ao entrar ou sair da aldeia), aprendendo sobre os yãmiy. Cada grupo
de parente está ligado a um grupo de yãmiy. Aqueles que frequentam um mesmo Kuxex e sempre realizam
rituais juntos são chamados xape (parentes) e possuem o conhecimento de determinado conjunto de práticas
rituais e cantos. Este repertório é um patrimônio familiar passado de geração para geração. Um canto é sempre
propriedade de um vivente, mas esta propriedade é compartilhada com um yãmiy (VIEIRA, 2010, p. 139-139).
Para mais informações ver dissertação de Myrian Alvares “Yãmiy, os espíritos do canto: a construção da pessoa
na sociedade Maxakali”.
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Souza (2001) fez uma etnografia da escola dos Pataxó de Barra Velha, pensando-a a
partir do diálogo entre Antropologia e Educação. Nesse sentido, segundo a autora “o
problema em que me defronto é o da [...] possibilidade de dialogar e incorporar uma
abordagem antropológica da educação escolar indígena” (SOUZA, 2001, p. 38), diálogo
construído de forma competente, como se pode ver em sua dissertação.
A escola, para os Pataxó de Barra Velha, constitui-se como espaço privilegiado de
afirmação da identidade étnica, de fortalecimento cultural, de atualização da memória e da
história, de aprendizado da língua Patxohã19, através de diferentes mecanismos e a partir de
diversos sujeitos, a exemplo dos professores, anciãos, pais, estudantes e comunidade. Se
diversos sujeitos participam desse processo, segundo Souza, os professores ganham destaque
privilegiado ou estão entre os mais importantes interlocutores, “convertendo-se em
promotores do resgate étnico”. Desde quando passaram a lecionar, os professores indígenas
começaram um processo de reflexão geral no interior de sua categoria profissional, a qual,
organizada em ações culturais, passa a reexaminar seu próprio papel, e sua condição
sociocultural e política na comunidade; são esses mesmos professores que estimulam os mais
velhos a participarem do ensino diferenciado.
A partir das diferentes etnografias apresentadas é possível visualizar uma
multiplicidade de formas e de modos como a educação escolar tem sido apropriada por
diferentes povos indígenas, como ela tem sido produzida em cada contexto e do como, neste
processo, novas relações, demandas e (des) entendimentos são produzidos. Lopes da Silva
(2001) já colocara a necessidade de aliarmos, em nossas reflexões sobre educação escolar
indígena, as contribuições teóricas e analíticas que a antropologia e a etnologia sul-americanas
contemporânea têm produzido, com as questões que dizem respeito à relação entre
antropologia e a educação. No limite, os desafios que se colocam seriam da seguinte ordem:
como compreender os projetos de educação escolar indígena em nosso país a partir dos
19
“O Patxohã é a língua pataxó resultado de um esforço coletivo entre os Pataxó para a retomada da sua língua
mãe, a partir de um processo de política linguística de autoria, que se desenvolve desde os mais velhos e da
mobilização entre a geração mais nova através da criação de um grupo de pesquisadores pataxó motivados pelo
desejo de aprendê-la, tomaram como tarefa a pesquisa para a documentação e ensino da língua pataxó, através de
um projeto empreendido por eles próprios, desencadeado em 1998 (César, 2011). [...] Enquanto um dos espaços
possíveis para a implementação de política linguística para o ensino do Patxohã, a escola tem sido uma aliada
nesse processo como um lugar significativo, pois é através dela que a geração mais nova está aprendendo o
Patxohã. Isso só pode ser possível porque as lideranças pataxó deram a importância devida e abraçaram esse
sonho de poder ver as crianças falando a língua e valorizando a sua própria cultura. Atualmente, já existem, só
entre os Pataxó da Bahia, 30 professores de patxohã espalhados pelas aldeias através das secretarias municipais e
estadual de educação, pois há uma dificuldade em relação a essa questão, pois grande parte desses professores
não chegou a concluir o ensino médio ou ter uma formação específica para professores.” (BOMFIM; SOUZA,
2013, p. 149-150).
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conhecimentos e categorias analíticas que têm sido produzidos no campo da etnologia e que
pouco tem dialogado com as questões de educação? Como bem nos lembra Lopes da Silva
(2001a, p. 40),
A etnologia do pensamento indígena, que revela a complexidade das
proposições ontológicas e metafísicas ameríndias e sua originalidade
flagrante perante o pensamento ocidental (ilustra-o o perspectivismo
amazônico), alerta para a complexidade das questões com que terão de tratar
experiências de educação escolar que se desejem efetivamente respeitosas
dos direitos indígenas.
Em certa medida, os desafios postos estão na ordem do diálogo que se quer produzir
entre antropologia e educação. Nesse sentido, conforme Lopes da Silva (2001b, p. 113)
Considerações finais
Há que se retomar aqui uma questão mencionada acima: o debate sobre a diferença –
ou não – da etnografia tal como praticada na antropologia e pela educação. Perceba-se que as
etnografias que retomamos aqui são produções em antropologia e testemunham o
reconhecimento que cada vez mais a etnologia indígena tem feito da importância da escola
para se entender o que é ser e se constituir indígena no Brasil contemporâneo. Nestas
etnografias, questões tais como de que modo se configuram as escolas nestes lugares e quais
as expectativas e práticas que voltam os indígenas para as escolas nos revelam, de um lado, a
diversidade de experiências escolares, permitindo-nos rever uma noção estanque de escola,
assim como, de outro, a diversidade de modos se ser indígena e do papel da escola neste fazer.
Dito de outro modo, a etnografia das escolas tal como temos praticado na etnologia
indígena não se volta a responder a questões que tantas vezes se levanta sobre a escola, sobre
suas práticas pedagógicas e a validade e a efetividade de seus ensinos, mas busca seguir os
indígenas ao formular as questões de pesquisa. Sendo assim, importantes deslocamentos são
feitos, desde a ideia mesmo de formação das pessoas – da formação moral da pessoa e a
instrução a uma formação da pessoa que incide sobre os corpos e nas relações – a ideias sobre
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