Discursos Fora Da Ordem Sexualidades Sab PDF
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Richard Miskolci
Larissa Pelúcio
(Editores)
Para Márcia Arán (in memoriam)
Sumário
Parte I 27
Deslocamentos
Richard Miskolci
Larissa Pelúcio
2. O termo pode equivaler ao que no Brasil reconhecemos como travestis. É importante ressaltar, como faz a
própria Ochoa, que essas categorias têm marcas locais, assim, carregam histórias, marcas culturais, preconcei-
tos sociais gestados em contextos específicos.
13 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
o debate desde suas filiações mais liberais até as abordagens mais críticas.
A partir desse pormenorizado levantamento, Piscitelli passa a proble-
matizar a apropriação extra-acadêmica dos debates sobre intersecciona-
lidade, mostrando que, por vezes, justamente o que ele pode ter de mais
rico parece não ser tomado em conta pelas agências públicas nacionais
e transnacionais: o potencial dos “marcadores de identidade, como gê-
nero, classe ou etnicidade não aparecem apenas como formas de catego-
rização exclusivamente limitantes”, mas também “oferecem, simultanea-
mente, recursos que possibilitam a ação” (Piscitelli). Esta possibilidade
de agir e a capacidade para pensar articuladamente sobre suas próprias
vidas aparecem subestimadas, por exemplo, em algumas abordagens so-
bre a imigração de mulheres para o mercado do sexo.
Para desenvolver essa discussão teórica, Piscitelli parte de dados
empíricos sobre tráfico de pessoas e turismo sexual, reunindo um sig-
nificativo número de documentos e pesquisas não-acadêmicas, para
assimcompreender como foi moldada e disseminada a caracterização
das vítimas de tráfico internacional de pessoas com fins de exploração
sexual. A pesquisadora mostra como algumas agências internacionais
têm buscado, nas discussões acadêmicas sobre interseccionalidade, antes
uma espécie de a fórmula do “desempoderamento” do que perceber gê-
nero, raça ou classe como categorias articuladas e que devem ser conside-
radas na complexidade: existem e são conformadas em relações íntimas,
recíprocas e contraditórias.
Na sequência, acompanhamos Adriana Vianna por espaços acadê-
micos e políticos nos quais os diretos sexuais têm sido largamente deba-
tidos. Em “Atos, sujeitos e enunciados dissonantes: algumas notas sobre
a construção dos direitos sexuais”, Vianna tece uma instigante reflexão
sobre esse campo novo, derivado de outro corpus, o dos direitos huma-
nos, revelando as tensões, embates e arranjos em uma arena na qual as
sexualidades dissidentes podem correr o risco da normalização jurídica,
num grande e arriscado salto rumo ao século XVIII, para ficarmos com
a cronologia proposta por Foucault em Os anormais.
Vianna transita pelos territórios onde se têm construído lutas,
discutido agendas e, sobretudo, pensado o lugar político do sexo e dos
21 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
[...] a primeira dessas linhas fala-nos basicamente dos atos como fator
preponderante para construção, definição e mesmo aprisionamento de
pessoas na condição de sujeitos-objetos das políticas e direitos sexuais. A
segunda nos fala, em movimento inverso, dos enquadramentos dos sujei-
tos como elemento determinante para qualificar os atos que as atingem
ou os significados que dão para situações sociais específicas.
Referências bibilográficas
Miriam Adelman
2. Discuto noutro lugar a importância desta problematização do pensamento desde uma posição de sujeito femi-
nino (Adelman, 2009), a qual complementa-se com o conceito oferecido por Sedgwick: [a epistemologia do
armário] “... proposes that many of the major modes of thought and knowledge in twentieth-century Western
culture as a whole are structured – indeed, fractured – by a chronic, now endemic crisis of homo/heterosexual
definition, indicatively male , dating from the end of the nineteenth century…. an understanding of virtually
any aspect of modern Western culture must be, not merely incomplete, but damaged in its central substance
to the degree that it does not incorporate a critical analysis of modern homo/heterosexual definition… the
appropriate place for that critical analysis to begin is from the relatively decentered perspective of modern gay
and antihomophobic theory” (Sedgwick, 1990:1).
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3. Equipe de pesquisa: Profa. Dra. Miriam Adelman (UFPR), coordenadora; Profa. Dra. Jane Felipe de Souza
(UFRGS); Bianca Guizzo, doutoranda em Educação, UFRGS; Milena Costa de Souza, mestre em sociologia
pela UFPR.
35 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
4. Entendo aqui a “localização pós-colonial” como tratando de um momento discursivo (de deslegitimação de
relações que impõem a hegemonia de um olhar e pensar ocidentais e imperialistas e a conquista da legitimação
discursiva de grupos cuja voz era negada ou suprimida por este regime discursivo) que se desenrola em espaços
geográficos diversos e diferentes.
5. Por exemplo, no conto de Jhumpa Lahiri, “Sexy” (1999), uma jovem trabalhadora inglesa que se envolve com
um homem indiano casado – alguém que ela admira tanto por sua formação cultural e educacional elevada
quanto pelo que ele representa de “exótico” – descobre algo ainda mais importante sobre ela mesma, e sobre
ser mulher, através da forte amizade que ela desenvolve com uma colega de trabalho, também da Índia.
6. O conceito de hibridização, vale a pena assinalar, é um conceito-chave dos estudos culturais contemporâneos,
enquanto uma tentativa de superar visões dicotomizadas que opõem culturas “ocidentais” e “não-ocidentais”;
remete às trocas e influências recíprocas, às transformações culturais e à própria impossibilidade de existir
qualquer manifestação ou fenômeno cultural “puro”e “autêntico”; também contempla a esfera da cultura
como um mundo impulsionado por conflitos e lutas simbólicas onde os resultados nunca são, e nunca serão,
simples ou predeterminados.
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Trajetórias de algumas…
7. “A woman must always be ready to jump on a horse and cross alien territories. Uncertainty is a woman´s
destiny” (Mernissi, 2001: 178).
37 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
8. Em circunstâncias parecidas ou diferentes, mulheres do Sul global protagonizam muito do movimento mi-
gratório do mundo contemporâneo. Os casos apresentados e cenários discutidos no excelente livro Global
Woman, organizado por Arlie Hochschild e Barbara Ehrenreich (2003), enfatizam e ilustram a relação deste
movimento de mulheres com as necessidades geradas nos países do Primeiro Mundo por mão de obra femini-
na no setor (e em empregos comumente precários) na indústria do cuidado de pessoas (crianças, idosos etc.).
Enfrentando uma série de dificuldades para poder melhorar suas vidas e/ou as de seus familiares, não são só
mulheres solteiras que emigram sozinhas: em países como Sri Lanka e Filipinas, é comum hoje ver mulheres
casadas que deixam seu lugar de origem para procurar uma saída para a crise, enquanto seus maridos (frequen-
temente desempregados ou subempregados) ficam no país. São circunstâncias que tendem a produzir efeitos
muito desestabilizadores sobre a estrutura familiar e a ordem de gênero “tradicional”.
9. Ver, por exemplo, Hodgson (2002).
10. Estas necessidades não devem ser menosprezadas, pois não é de duvidar que continuem sendo os fatores que
mais obrigam ou empurram pessoas em diversas partes do Sul global a sair dos seus países de origem e enfren-
tar o que é, muito frequentemente, uma vida de novas dificuldades e marginalidade em contextos sociais e
culturais que lhes são estranhas
11. Um ótimo exemplo de uma narrativa neste gênero, protagonizada por uma jovem pobre do interior brasileiro,
é o excelente filme de Karim Ainouz, O céu de Suely (Brasil, 2006), “um filme” segundo Walter Salles, seu
produtor, “sobre a necessidade que temos de nos reinventar” (http://www.cinemaemcena.com.br/ceudesue-
ly/blog.asp ).
12. Vale lembrar a pergunta feita em 1996 por Avtar Brah: “Will the consolidation of a new European identity
strengthen the racisms through which Europe and its diasporas have constructed the non-European ‘others’?”
A “racialização” do conceito de “brasileiro”, apontada por pesquisadoras como Pontes (2004) e Piscitelli
39 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
(2008), faz parte deste cenário – os/as brasileir@s são automáticamente marcad@s como “não branc@s”
em função dela e independentemente de sua origem étnica particular. Sua “racialização” – e a “sexualização”
geralmente associada a ela – pode agir de maneira mais ou menos forte sobre a forma como são percebidas,
recebidas e tratadas, como uma informante nossa explica (um pouco mais adiante).
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eu: “porra”, ou seja, um vazio, né... “realmente eu tenho que ir embora da-
qui...eu tenho que ir embora daqui”... só que eu tenho a minha família...
bruxaria, minha família tava meio assim Família Adams... porque tudo é
muito bruxo.
frio e mau tempo... Então eu disse, primeiro eu vou pra Espanha, depois
eu vou ver o que acontece... Na verdadeeu não tinha um plano fixo. Eu
queria descobrir coisas. Foi mais um impulso.
Ana, que afirma “nunca ter gostado do estudo”, nem por isso quis
se limitar.Num português apimentado com frases e palavras castelhanas,
se caracterizou como uma pessoa dinâmica e empreendedora – nas pala-
vras dela, a “mais criativa” de uma família de seis irmãos. Falou do dese-
jou que nutria, desde cedo, deir embora da cidadezinha nordestina onde
nasceu, cujo ambiente ela identificou como “entediante” e “estagnado”:
...a caçula da casa, mas sempre tive um olho mais adelante do que as outras,
eu sempre quis sair de aí, sair de onde eu vivia, que era uma cidade muito
pequena. Não é capital, as coisas sempre chegavam com... mais atrasadas e
eu llegava junto com as coisas, no sentido de... que as coisas já estavam lá
fora e eu já queria para mim isso. E eu sempre falava que um dia eu ia sair de
Imperatriz... que ali não era lugar para mim. Sempre dizia isso aí pra minha
mãe, pras minhas irmãs. E as minhas irmãs sempre diziam: “Como que tu
vai? Pra ir pra fora não é assim, tão fácil... não é só dizer: ‘eu vou’”. Mas todo
mundo pensava que era só coisa de menina, de menina de 12, 13 anos. E eu
cresci aí, trabalhei aí... não mucho porque, lógico, a cidade era muito peque-
na e não tinha muitas oportunidades de trabalho e como sempre fui muito
criativa pa’ tudo... eu sempre fui muito ágil, eu sempre queria tá no meio de
todo mundo... aprendi a trabalhar com festas de crianças e conheci pessoas,
pessoas importantes na cidade. Tive bons relacionamentos.
Foi a partir daí que ousou uma viagem a Portugal, através de conta-
tos pessoais, onde surgiu a possibilidade de trabalhar como cabeleireira,
que logo se tornaria seu novo campo de profissionalização.
Elisa (39 anos) nos surpreendeu com sua história, pois vinculou
sua busca existencial a um projeto religioso evangélico.“Sempre fui
muito sonhadora, muito idealista”, é como ela se caracteriza.Após uma
experiência de estudos frustrados de Jornalismo e Direito, já casada,
morando na Amazônia, estudou e terminou sua formação na área de
Discursos fora da ordem 42
Enfermagem. Aos 32 anos e com três filhos, ela foi “pega de surpresa”
pelo fim do seu casamento. Ela conta que estava feliz, levava uma vida
“estável” de classe média, era “apaixonada pela família, filhos e marido”
e, de repente, se viu perante a necessidade de ter que “começar de novo”:
... por causa da língua inglesa, que eu sou apaixonada, não sei, eu sempre
tive assim, sabe?... Estados Unidos, Canadá, países totalmente desen-
volvidos, com alta qualidade de vida, de educação, de saúde e tudo, mas
assim, nunca na minha cabeça a Europa, isso nunca tinha passado pela
minha cabeça. Aí meus filhos começaram a me pedir: “Ah, vamos embora
daqui, eu quero ir embora do Brasil, eu quero”. E até mesmo pelas circuns-
43 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
tâncias, o fato de não ter contato com o pai, de ver que o pai estava próxi-
mo, mas não ter contato, de ter um pai totalmente ausente na vida deles.
Num mesmo sentido que ela sustentou ao longo da entrevista,
conectava sua busca pessoal e familiar a noções religiosas de destino e
Providência. “Pessoas falavam para mim que Deus ia me levar para fora
do Brasil, ia me tirar do Brasil... como profecia. Ele ia fazer tudo novo na
minha vida, fazer novos frutos, novas flores...”. E ela diz que respondia:
“Eu vou, eu vou sim, o melhor lugar pra você estar é quando você está na
vontade de Deus, nada acontece por acaso...”.
Finalmente, as passagens para Europa foram oferecidas por um se-
nhor da sua igreja; de Portugal, a porta de entrada, que não gostou (“foi
assim um choque, porque pra mim eu tinha um outro conceito de Por-
tugal, outra visão pelo fato de estar na Europa, eu achei que fosse como...
uma Suíça...”), se mudaram para Barcelona.“Foi na aventura mesmo”,
porque tinham apenas um contato com um brasileiro, amizade virtual
de uma de suas filhas – e só a esperança de encontrar moradia e trabalho
–, mas uma aventura que, segundo ela, deu certo.
Por outro lado, vale a pena observar que todas as nossas entrevis-
tadas eram solteiras ou “livres” na hora de deixar o Brasil (num caso, di-
vorciada com três filhos; nos outros casos, solteiras e sem filhos) e todas,
já vivendo na Espanha, estabeleceram relações com homens europeus13.
Contudo, é só no caso de Ana – aliás, a única de nossas informantes que
não tinha curso superior nem “capital cultural” acumulado para destacar
– que o estabelecimento de uma relação com um homem espanhol toma
lugar central na sua narrativa.
Em certo sentido, as histórias das nossas informantes repetem temas
e questões que aparecem noutras pesquisas, que discutem as representa-
ções que circulam em nível transnacional sobre mulheres brasileiras e sobre
as possibilidades de relacionamento entre mulheres brasileiras e homens
europeus (cf. Piscitelli, 2008; Roca I Girona, 2007a; 2007b). Enquanto
13. Carla mora com o namorado catalão, Ana é casada há vários anos com um engenheiro de outra parte da
Espanha, Márcia casou recentemente com um garçom catalão com quem acabou de ter um filho, Giovanna
é casada com um italiano que conheceu em Barcelona e Elisa namora um engenheiro que mora numa outra
cidade, a aproximadamente 150 quilômetros de distância de Barcelona.
Discursos fora da ordem 44
No Brasil a gente tem algo que a gente não tem aqui, que é o afeto... que é o
respeito, digamos... é... como ser humano, uma valorização pelos sentimen-
tos que você pode construir, né... então, eu acho que no Brasil as relações
são mais bonitas, são mais amáveis, as pessoas são mais dadas, as pessoas são
mais alegres, as pessoas são mais lutadoras, as pessoas são mais, de alguma
forma, solidárias... e aqui é um pouco diferente, aqui as coisas são mais frias,
as pessoas são frias, não existe uma, uma questão assim de ajuda, no sentido
de sentimentos até... então, essa é uma, um ponto muito forte... eu vim de
uma família, que acabei de dizer, uma família grande, bonita...
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...eu vi que aqui tem um limite pra se crescer como estrangeira... como
imigrante... tem um limite, né. E o meu limite é muito mais alto do que
o que eles me dão aqui... E minha família... eu via que aqui também as
coisas não eram perfeitas... aqui também tem problema, eu vi que a base
onde tava a economia era uma bolha, que havia uma imobiliária que era
especulativa,que ia estourar,que não tem fonte de energia, que aqui é uma
terra que provavelmente vai ter problema de secura, de seca, que não tem
plantação, que não tem autonomia alimentar, são coisas muito sérias pra
um país... então, esse não é um lugar pra você viver... dizer: “Não, eu vou
49 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
passar o resto da minha vida aqui”... não... se você não tem família aqui.
E chegou um momento em que eu disse: “Eu vou ter que ir embora...
Alberto [seu cônjuge], querido, a gente vai ter que ir embora”.
Porto Alegre é uma cidade com recursos limitados na área artística, né,
nós temos uma indústria musical muito local... Barcelona é uma cidade
que proporciona várias coisas assim... melhor estrutura, melhores trans-
portes, melhor saúde, melhor segurança.
Esclarece que pretende voltar para o Brasil, mas enfatiza que sua
motivação é “exclusivamente familiar”, porque não está disposta a passar
o resto da sua vida longe de pai, mãe e irmãos. Explica, aliás, que seu na-
morado entende essa necessidade sua, e ficará ao seu critério, finalmente,
decidir se a acompanha ou não.
Elisa, que veio para a Europa após uma época de intensos sacrifí-
cios e sofrimento no Brasil, reitera que embora haja coisas que ela ama
no seu país de origem, prefere pensar na sua vida – e no futuro dos seus
filhos – na Europa.
Somente Ana parece ansiosa em desvincular-se do seu lugar e país
de origem, afirmando contundentemente que a vida que tem na Espa-
nha é muito melhor da que tinha no Brasil, embora sinta muita falta de
sua mãe e de outros familiares – os quais, aliás, ela ajuda a sustentar, com
o envio mensal de dinheiro do salário dela .As remessas, aliás, como Ana
relata com orgulho, permitiram que sua mãe ajeitasse sua casa e futu-
ramente darão às suas sobrinhas a oportunidade de estudar em colégio
particular. Curiosamente, é seu marido, engenheiro espanhol, que “ado-
raria morar no Brasil” se houvesse oportunidade.
Discursos fora da ordem 50
14. A Teoria Queer se desenvolve iluminando processos fundantes da modernidade que hegemonizam determi-
nados valores ou maneiras de ser como “o normal”; são, agora sabemos, processos que instauram o mito (como
sabemos, “de perto, ninguém é...”) e que constroem e validam o poder (disciplinamento, controle, punição de
quem não aparenta ser normal). Metodologicamente, como Miskolci deixa muito claro no seu texto, incorporar
esta “analítica da normalização” à teoria sociológica contemporânea nos capacita para entender uma ampla gama
de processos que pertencem à dinâmica profunda da vida social, nas suas facetas institucionais e cotidianas.
Discursos fora da ordem 54
15. “In queer renderings of postmodern geography, the notion of a body-centered identity gives way to a model
that locates sexual subjectivities within and between embodiment, place and practice. But queer work on
sexuality and space, like queer work on sexuality and time, has had to respond to canonical work on ‘post-
modern geography’... [with its] foundational exclusion, which assigned to the body/local/personal and took
class/global/political as its proper frame of reference, [making] it difficult to introduce questions of sexuality
and space into the more general conversations about globalization and transnational capitalism.”
16. Vale lembrar aqui o que foi tão claramente articulado por Goffman (1988) falando, no início dos anos 1960
nos Estados Unidos: “... num sentido importante há só um tipo de homem que não tem nada de que se enver-
gonhar: um homem jovem, casado, pai de família, branco, urbano, do Norte, heterossexual, protestante, de
55 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
Referências bibliográficas
educação universitária, bem empregado, de bom aspecto, bom peso, boa altura e com um sucesso recente nos
esportes. Todo homem americano tende a encarar o mundo sob essa perspectiva, constituindo-se isso, num
certo sentido, em que se pode falar de um sistema de valores comuns na América. Qualquer homem que não
consegue preencher um desses requisitos ver-se-á, provavelmente – pelo menos em alguns momentos –, como
indigno, incompleto e inferior...” (p. 139).
17. No que Halberstam (2005) fala sobre (os possíveis) queer subjects “...they live (deliberately, accidentally or
necessity) during the hours when others sleep and in the spaces (physical, metaphysical and economic) that
others have abandoned, and in terms of the way they might work in the domains that other people assign to
privacy and family … also those people who live without financial safety nets, without homes, without steady
jobs, outside the organizations of time and space that have been established for the purpose of protecting the
rich few from everyone else ...” (p. 10) ressoa muito que condiz com as vidas das mulheres que saíram de suas
casas, de seus países, para viver longe de suas famílias, por necessidade e/ou por escolha.
Discursos fora da ordem 56
Marcia Ochoa
[...] nós nos enturmávamos com fãs de futebol brasileiros, travestis e pros-
titutas. O fotógrafo Fran Beaufrand, o estilista Ángel Sánchez e eu nos
alternávamos com os travestis, dando a eles conselhos sobre suas roupas.
Inclusive, eles nos explicavam gentilmente que queríamos vesti-los como
señoras e “isso, meu bem, é a morte” [para nós].(Izaguirre, 2000:230)
1. Este artigo é a tradução de Richard Miskolci de minha apresentação feita no Seminário Internacional Sexuali-
dades, Saberes e Direitos, na UFSCar, em agosto de 2010. O capítulo completo será publicado emQueen For
a Day: Transformistas, Misses and Mass Media in Venezuela, meu livro editado pela Duke University Press.
Discursos fora da ordem 60
2. Na Venezuela, “transformista” é uma categoría de gênero que se refere a pessoas do sexo masculino que se
transformam em mulheres ou “meninas de aparência feminina”. O trabalho sexual muitas vezes é parte desta
identidade, mas é importante reconhecer que nem todas as mulheres trans da Venezuela são transformistas
tampouco trabalhadoras sexuais.
61 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
parte porque é uma das muitas expressões, como “Caracas Mortal”, que
(meio que alegremente) liga Caracas, a capital venezuelana, com a morte,
o fracasso e a desordem. Essa não é uma figura de linguagem incomum
na América Latina. No caso de La moda... e Caracas Mortal, a morte é
evocada pelo queer, mas também materializa a ideia de poluição, da con-
taminação de algo puro com algo impuro ou tabu.
Neste artigo, vou explorar a lógica cultural de morte e poluição na
qual um lugar como Caracas pode consumir a moda europeia por meio
da morte e então transformá-la, e propor o glamour como uma tecno-
logia de intimidade que media o espaço da morte venezuelana. Como
todo bom pervertido, devemos começar com um ato de poluição.
Sobre o (trans)nacional
No projeto de livro do qual esse ensaio faz parte, dou atenção es-
pecialmente aos meios aplicados pelas transformistas para sobreviver a
essas forças mortais que encontram em seu dia-a-dia. No mesmo modelo
analítico, eu considero os modos pelos quais a Venezuela foi construída
como uma nação periférica no sistema mundial moderno, e os modos
como essa periferia foi contestada e reformulada através do concurso na-
cional de beleza. Por fim, tento entender os modos pelos quais essas áreas
discrepantes estão conectadas – como a perversão das pessoas e lugares
negocia sua existência continuada nos circuitos hostis de poder. Exploro
a lógica cultural que possibilita a ligação entre queer, morte e a nação
venezuelana, mas também sem considerar exclusivamente sujeitos queer
ou transgênero, como essa lógica de queer, poluição e morte funcionam
na construção de nação na Venezuela – ou como a Venezuela vem a ser
vista como um espaço de morte, fracasso e poluição: um lugar perverso.
Desse modo, estou fazendo essas indagações no nível do (trans)nacio-
nal – ou seja, embutindo aspessoas transgênero em lógicas existentes do
nacional ao invés de vê-las como exceção, e entendendo a nação como
um autoconstruto em economias transnacionais, tanto simbólicas quan-
to materiais. Enquanto isso se desenrola em uma paisagem confusa de
perspectivas contorcidas, de pequenos atos sobre o corpo a mobilizações
arrebatadoras de pessoas e tecnologias, desbravar esse terreno irregular
permite-me fazer ligações importantes por entre lugares sociais díspares.
Centro e periferia
Ir aos índios por seus poderes de cura e matá-los por sua selvageria não
são atitudes tão distantes. De fato, tais ações não são somente interliga-
das, mas também codependentes – e é essa codependência que se tece de
forma assustadora quando consideramos quão tênue é a linha que separa
o uso dos índios como trabalhadores, por um lado, e como objetos míti-
cos de tortura,por outro.
O terror em Putumayo foi o terror dessa linha tênue, enquanto o capi-
talismo internacional convertia os “excessos” da tortura em rituais de
produção, não menos importantes que a própria extração da borracha.
A tortura e o terror não eram simples meios utilitários de produção. Eles
eram uma forma de vida, um modo de produção e, de várias formas, para
muita gente, os próprios índios eram o principal produto e insumo da
tortura e do terror. (Taussig, 1986:100)
65 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
A automontagem crioula
Duijm. Montaldo Pérez reconta que Duijm foi chamada india, negra,
fea e pata en el suelo (descalça) mas, de qualquer maneira, seguiu repre-
sentando a Venezuela no cenário global.
O reinado de Duijm como Miss Venezuela começou com uma
viagem a Long Beach, Califórnia, para o concurso de Miss Universo,
no qual ela chegou às semifinais. Ela foi coroada Miss Mundo naquele
mês de outubro e viajou para Londres e Paris antes de voltar a Caracas.
Foi capa da Paris Match, a única venezuelana a aparecer na capa, e era a
personificação da contradição entre os sistemas de valores criollo e euro-
peu. Altamente premiada por sua beleza, ela encantou os europeus, mas
dizem ter depreciado seus costumes, atenção e comida. Trabalhou como
modelo em Paris por pouco tempo após ganhar o título de Miss Mundo,
recebeu o apelido de "Carmen, a Selvagem" (Carmen la Sauvage) após
desfazer um penteado caríssimo, e após dez dias retornou a Caracas. Ela
estava farta do “mundo refinado” de Londres e Paris, e sentia falta de
suas caraotas (feijão preto) e de seus entes queridos.
Apesar de Londres e Paris, ela retornou para ser adorada como íco-
ne do entretenimento nacional. Ao posicionar-se como “selvagem” em
relação à Europa e como a encarnação criolla, Susana Duijm personifi-
cou um tipo de relação venezuelana com a modernidade que critica as
normas europeias ao mesmo tempo que as abraça e as incorpora. Duijm
pôde capitalizar no imaginário europeu da América do Sul, no qual pa-
receu “exótica” e “selvagem”. Ao mesmo tempo, ela era segura o suficien-
te para atuar reconhecidamente bem na Europa e na Venezuela. Ela é
“incivilizada” o suficiente para ignorar o valor de um caro penteado, mas
ela não está tão fora da lógica e da estética ocidental moderna a ponto
de tornar-se ininteligível como tal (negra, india, fea). Pois não importa
quão negativamente Duijm tenha sido retratada pela imprensa e pela
sociedade venezuelana após sua coroação, ela não é de fato nem india,
nem negra, mas enfaticamente criolla. A turnê europeia de Carmen La
Sauvage ilustra uma indiferença venezuelana em relação aos padrões eu-
ropeus que, em sua rejeição, também os abraça completamente. Por fim,
essa história não é uma liberação das normas colonialistas; é um modo
de compreender as negociações íntimas de modernidade, centro e peri-
Discursos fora da ordem 70
feria que ocorrem nos corpos das venezuelanas. Então como nós, assim
como Susana Duijm, vamos de Paris a Caracas? O que Duijm nos diz da
arte queer de morrer?
Duijm, diferentemente de Bill T. Jones e Tupac Shakur, não ne-
cessariamente se localiza no espaço da morte. Mas como Carmen la
Sauvage, ela responde às normas eurocêntricas capitalizando o excesso
de significados produzido pelo imaginário colonial. Ela incorpora, de
certo modo sem crítica, o canibalismo instigado por Oswald de Andra-
de no Manifesto Antropofágicode 1928. Mas ela o faz através do que eu
nomeio a tecnologia íntima do glamour. Enquanto há diversos modos
de contestar e reformular a marginalidade – resistência, revolução, opo-
sição, aculturação, sincretismo ou outros termos controversos –, quero
me concentrar especificamente no glamour como uma tecnologia de
intimidade, a qual marcou minha experiência com homens gays e mu-
lheres transgênero da América Latina, e com a Venezuela como cenário.
Glamour
Referências bibliográficas
Iara Beleli
1. Agradeço as sugestões de Adriana Piscitelli, Taddeus Blanquet e Ana Paula Silva à primeira versão deste texto.
A elaboração do texto final se beneficiou das discussões empreendidas no I Seminário de Estudos sobre Imigra-
ção Brasileira na Europa (Barcelona, 25-27/11/2010), do qual participei com apoio da Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
2. Segundo o dicionário Houaiss, catatua é um pássaro, mas também pode se referir à “mulher mais velha que se
veste de forma espalhafatosa”.
Discursos fora da ordem 74
Mediações
5. A pesquisa de pós-doutorado foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Su-
perior (Capes), em convênio de cooperação internacional Pagu/ISCTE(Instituto Universitário de Lisboa
- ISCTE-IUL). Entre janeiro e abril de 2008 entrevistei 14 brasileiros/as (12 mulheres e 2 homens), três
mulheres e dois homens portuguesas/es (exceto no caso de duas interlocutoras, naquele momento todos/
as estavam inseridos em programas de pós-graduação). Paralelamente, fiz um levantamento de produtos de
mídia mencionados nas entrevistas ou que mereceram destaque em veículos dirigidos aos meios (atualizado
até meados de 2010). Agradeço a Margarida Moz, Paula Togni, Maria Manuel e Vanda Silva por facilitar o
contato com os primeiros entrevistados/as, possibilitando a formação de uma rede. Agradeço especialmente
a Antonia Pedroso de Lima que, além da recepção calorosa no ISCTE, sugeriu formas de lidar com situações
conflitantes que se apresentaram na pesquisa de campo.
Discursos fora da ordem 76
6. Em outro contexto, “a vocação inata do Brasil e dos brasileiros para a felicidade” é um dos argumentos utiliza-
do por Juan Arias, articulista do El País, para explicar a escolha do Rio de Janeirocomo sede dos Jogos Olímpi-
77 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
cos de 2016, vencendo a disputa com Madri, Chicago e Tóquio: “Assim são os brasileiros. São mergulhadores
no mar da felicidade e, como não escondem isso, acabam contagiando os outros. Sem dúvida esse contágio
também teve a ver na hora da votação em Copenhague”. ARIAS, Juan. “O que explica Rio-2016? A vocação
inata do Brasil para a felicidade”. El País, Madrid, 14/10/2009. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/
midiaglobal/ elpais/2009/10/14/ult581u3555.jhtm>. Acesso em outubro de 2009.
Discursos fora da ordem 78
7. Segundo Feldman-Bianco (2001), os imigrantes brasileiros são percebidos pela primeira vez como um “pro-
blema” no início dos anos 1990, devido ao processo de proletarização. No caso das “mães de Bragança”, a
reivindicação estava claramente associada ao trabalho sexual.
8. Cf. <http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia>. Acesso em 17/09/2008.
9. Esse caso, mesmo passados alguns anos, também foi o mais lembrado pelas brasileiras entrevistadas por Valdi-
gem (2006), em pesquisa sobre os usos dos media.
79 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
Contrastando imaginários
10. Em matéria veiculada pelo jornal Público (14/11/2007), Rui Marques salientou a centralidade dos produtores
de mídia na promoção do diálogo intercultural e da tolerância, referindo-se à importância do trabalho dos
jornalistas portugueses. Apesar do discurso de integração e de algumas ações promovidas pelo Alto Comissa-
riado em 2008, este ano foi marcado pelas mudanças de discursos políticos de líderes de vários países europeus
no tocante à restrição da imigração (ver Togni, 2008).
Discursos fora da ordem 80
11. “Os Malucos do Riso”, levado ao ar aos domingos, às 21 horas, é a série de humor mais antiga da SIC (no ar
desde 1995) e consiste na dramatização de anedotas populares referente aos alentejanos, às loiras, à mercearia,
entre outras. O sucesso desta série levou à criação de outras versões, entre elas, “Os Mini Malucos do Riso”. No
Brasil, o programa guarda semelhança com o “Zorra total”, exibido pela Rede Globo aos sábados à noite.
12. A Associação de Pesquisadores e Estudantes Brasileiros em Coimbra (APEB-Coimbra) solicitou a retratação
do canal televisivo mediante requerimento encaminhado diretamente à emissora e denúncias à Entidade Re-
guladora para a Comunicação, notificando o ocorrido ao Ministério das Relações Exteriores, ao Ministério
do Turismo, à Embaixada do Brasil em Portugal, ao Consulado do Brasil em Lisboa, ao Consulado do Brasil
no Porto, à Casa do Brasil em Lisboa e à Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Até o final de 2009,
apenas a Entidade Reguladora respondeu a solicitação, afirmando que iria averiguar o ocorrido.
13. O tempo de permanência no país tem como referência o ano de 2008 e se aplica a todos/as entrevistados/as.
81 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
O início foi bem difícil, eu não entendia o que falavam e eles se irritavam
com o meu “o quê?”... se eles entendiam tudo o que eu dizia, porque eu
não conseguia entender eles, acho que era isso que irritava... também ti-
nha a coisa muito formal, por exemplo, se eu queria tomar um café com
um colega, eu logo convidava e aquilo parecia para ele um evento, ou uma
cantada, e não, eu só estava convidando para um café mesmo... isso me
parecia meio burro, quero dizer, tinha que dizer, explicar, que só queria
mesmo tomar um café, continuar a discussão da aula, coisa que no Brasil
é comum fazer depois da aula...
...tem aspectos positivos, tem boas pessoas aqui... fiz bons trabalhos,
mas aqui parece muito o Brasil em determinados aspectos... um país tão
corrupto quanto o Brasil, já foi o mais rico... a quantidade de ouro que
tiraram do Brasil, as riquezas da África e está complemente arruinado,
a coisa não funciona, tem uma burocracia impensável... não tem um pen-
samento linear, dá mil voltas para chegar ao ponto... são muitas reuniões,
mas o trabalho em si é muito pouco... se perdem na sua própria burrice...
vou falar uma coisa, agora entendo o porquê do imaginário de português
burro, que tanto se ouve em piadas no Brasil... faz sentido! Prá você ter
uma ideia, eu prestei um concurso para dar aula no Estado e tive que fazer
uma prova de língua portuguesa, junto com os ucranianos... o que era um
absurdo, porque essa deveria ser a nossa vantagem, ou o que eu achava
que era uma vantagem, o fato de já sabermos a língua.
mento do passado dos dois países poderia ser um fator que amenizaria
as dificuldades de estar longe de casa. A nostalgia de Fernando parece
estar acompanhada de um sentimento ambíguo. Ao mesmo tempo, ele
acredita que a ida a Lisboa foi a melhor decisão para impulsionar sua
carreira de músico, mas seu olhar se torna melancólico ante a perda do
que imagina não ter vivido no Brasil (Appadurai, 1996).
Quanto às imagens das brasileiras na mídia, Fernando compactua
com ideia de que as mulheres, “de cara”, tem que desconstruir o imagi-
nário de sensualidade, e aponta para as diferenças entre as comunidades
migrantes, afirmando que os/as brasileiros/as são mais respeitados que
os africanos, e estes geram menos desconfiança que os ciganos14. A per-
cepção de Fernando ecoa as análises de Machado (2009), em pesquisa
realizada na cidade do Porto, ao apontar que os brasileiros se encontram
numa posição intermediária, o que reitera a análise de Corrêa (1996)
para o Brasil – uma maior rejeição à “negra... preta”.
Em entrevista a mim concedida, uma publicitária portuguesa, par-
te da equipe de uma importante agência de publicidade, afirma que o
estereótipo da “mulher sensual” é recorrente em propagandas de produ-
tos brasileiros ou portugueses que se ancoram em imagens de brasileiras,
mas ela explica que a utilização de modelos (Daniela Cicarelli, Juliana
Paes, Ivete Sangalo) está vinculada ao apelo das novelas – “não estamos a
partir do zero”, diz ela. Além disso, “é mais barato”, comparado às portu-
guesas que se destacam na cena cultural lisboeta. A publicitária também
aponta diferenças quanto às comunidades migrantes: “os africanos são
um folclore... tens a negra quase nua com o rabo empinado, os brasilei-
ros... há um desconhecimento profundo do que se passa no Brasil... tudo
que é Brasil dá ideia de vida boa”.
Esses imaginários, segundo Joice (de Minas Gerais, há cinco anos
em Lisboa, cabelos pretos, curtos e anelados, olhos castanho-escuros,
pele clara, mestranda), são acionados em ambientes distintos. Dois epi-
sódios vividos por ela merecem destaque:
14. Para Cabecinhas (2003), os ciganos são vistos com o menor status social pelos portugueses. Sobre a diferença
de percepções de comunidades migrantes pela mídia portuguesa, ver Ferin (2006a).
83 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
15. Hexis corporal remete à inculcação do habitus bourdieriano, queinclui posturas, gestos, e se associa a signifi-
cados e valores sociais que se realizam na, e pela, prática (ver Bourdieu, 2006).
Discursos fora da ordem 86
Eles vêm atrás do estereótipo, mas quando convivem comigo eles veem
que não tem nada a ver... e se surpreendem, claro que depende da experi-
ência que eles têm de conhecer outras mulheres, pode ser do Brasil ou da
Europa mesmo, digo fora de Portugal... o estresse é quando eu percebo
que eles e elas também já fazem a referência direta com a “Gabriela, cravo
e canela”, e já ouvi de portuguesas coisas como “onde tem uma brasileira,
tá tudo tramado, elas vêm para seduzir nossos homens”... fui elegante, mas
deixei de barato, o que me rendeu, depois, muitos pedidos de desculpas.
16. Sobre a presença das novelas brasileiras em Portugal e seus impactos na noção de brasilidade, ver Ferin (2005).
17. Agradeço a Paula Togni, que fotografou a capa da revista.
87 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
eu sinto a diferença na rua, como minha pele é mais clara, não chama
muito a atenção, e quando começo a falar, eles e elas já sabem que sou bra-
sileira e aí já relacionam com o que pensam que brasileiras são... também
tem a questão do gueto, os brasileiros estão mais espalhados pela cidade,
os africanos ficam mais juntos.
18. O “Ciclo Outras Lisboas”, parte das comemorações do Ano Europeu do Diálogo Intercultural (2008), promo-
veu palestras, eventos, shows e festas, dedicando uma semana a cada comunidade migrante: África (14 a 24 de
fevereiro), Europa do Leste (6 a 15 de março) e Brasil (17 a 28 de abril). Conversas informais, pautadas por
críticas a esse Ciclo, apontam para a institucionalização da diferença, provocando hierarquias entre nacionais e
imigrantes, diferente do discurso de diálogo cultural impulsionado pelo Alto Comissariado. Essa ideia é corrobo-
rada por Togni (2008) em pesquisa sobre os fluxos matrimoniais transnacionais entre brasileiras e portugueses.
Discursos fora da ordem 88
destacado pela sua cor clara, “o contraste sempre é destacado”, diz ela, mas
lembra que os pares de dança se surpreenderam no início da conversa, ao
perceber que ela era brasileira. O alto grau de teor alcoólico de um dos
seus pares de dança (português), aliado à descoberta de sua nacionalida-
de, pode ter influenciado, segundo Mariana, “o comportamentoincove-
niente” de querer dançar de forma que os corpos ficassem muito colados.
De forma ambivalente, Mariana marca sua sensualidade particular e, ao
mesmo tempo, tenta se distanciar do imaginário “brasileira fácil”.
Mariana narrou outro episódio, segundo ela, desconfortável. Fazia
muito calor, ela estava no comboio (trem) e usava um vestido indiano de
alcinha, deixando parte de seu colo discreto à mostra. Um jovem senhor,
sentado à sua frente, perguntou se ela era brasileira e, ante sua confirma-
ção, ele tentou entabular uma conversa, que ela considerou pouco usual,
dada sua dificuldade em estabelecer conversas mais pessoais com seus
colegas na universidade. A primeira pergunta foi justamente se ela era
casada. Ela percebeu isso como uma espécie de assédio, cortou a conver-
sa e mudou de lugar.
Outras entrevistadas brasileiras e portuguesas atribuem essa forma
de abordagem mais direta, “atirada”, aos brasileiros, diferente da maioria
dos depoimentos que apontam para o “tempo excessivo” que os homens
portugueses levam para assediar uma mulher, marcado de forma mais
evidente no depoimento de Joice:
há uma forma de ser que é para o outro [masculino]... e minha amiga diz
que o homem português pode ficar atrás de quem encara o olhar, mas
não se casará com essa mulher, quando ele quer algo mais sério, ele vai
bem devagar.
Discursos fora da ordem 90
Ao longo da narrativa, Clara se diz confusa, pois sabe que seu jeito
espontâneo, falante e de olhar o outro no olho marca uma identidade,
muitas vezes percebida, e positivada, pelos portugueses com os quais
convive também como “sensualidade”. No entanto, o diagnóstico da
amiga sobre quem os homens portugueses, de fato, levam a sério, algu-
mas vezes a faz duvidar de seu comportamento, de modo semelhante às
narrativas apresentadas na pesquisa de Ferin (2006). Como pergunta
minha interlocutora: “Para ser levada a sério preciso deixar de ser eu?”.
Ainda no tocante ao flerte e às relações afetivo/amorosas ou de
amizade entre brasileiras e portugueses, uma narrativa se destaca. Cata-
rina (de São Paulo, pele clara, estatura mediana, formas arrendondadas)
veio trabalhar em Lisboa a convite de uma empresa de telecomunica-
ções, por seu desempenho na área no Brasil. Diferente do deslumbra-
mento de algumas interlocutoras com o fato de “terem conseguido estar
na Europa”, ela não tinha certeza se queria trocar São Paulo por Lisboa,
mas acabou “colocando na balança” e percebeu que a relação custo-be-
nefício lhe era favorável, não só pela questão econômica, mas também
por ter uma experiência profissional internacional em seu currículo, o
que lhe permitiria alçar outros vôos.
Durante a entrevista, Catarina se mostrou focada no trabalho e
sem interesse em estabelecer relações amorosas com portugueses, o que
aguçou minha curiosidade – “Por que não com os portugueses?”:
Olha... sei que estou aqui porque tenho uma especialização que eles pre-
cisam, mas mesmo assim eles me vêem como menos, porque sou do Bra-
sil, é como se eles ainda pensassem que são os colonizadores... o tempo
todo tenho que ficar reafirmando que fui convidada... eu não batalhei por
este trabalho, eles foram me buscar no Brasil... e não tenho culpa se eles
têm pouca gente capacitada nessa área. Por isso eu evito ter relações com
os portugueses... parece que eles ainda pensam o Brasil como colônia...
Considerações finais
Referências bibliográficas
Karla Bessa
Celuloides
1. Utilizarei a sigla FQL para referir-me ao Festival Queer Lisboa. Quando a sigla vier acompanhada de um
número (ex. FQL 08), este fará referência à edição do Festival.
99 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
2. Em 2008 a Caixa Cultural realizou no Rio de Janeiro uma mostra da filmografia de D. Cronemberg. No link
abaixo encontram-se artigos que fazem um grande diálogo com o cinema autoral de Cronenberg, passando
tanto por leituras mais psicanalíticas quanto históricas. Destaque para o artigo de Ivana Bentes. Cf. <http://
www.carneviva.com/textos.html#artigoivanabentes>.
Discursos fora da ordem 100
Tapetes
3. De acordo com o site do Cinema São Jorge, trata-se de um dos mais renomados cinemas da cidade de Lisboa.
“Situado na artéria central da cidade e considerado o mais emblemático dos cinemas de Lisboa, o Cinema
São Jorge foi inaugurado em 1950, segundo projecto da autoria do Fernando Silva, que lhe valeu o Prémio
Municipal de Arquitectura (atribuído em 1951). Como polo central da actividade cultural da urbe, o Cinema
São Jorge apresenta, hoje, uma programação eclética, ao longo de temporadas anuais que têm na sua essência
a apresentação dos principais festivais de cinema da cidade, para além de inúmeras ante-estreias cinematográ-
ficas, concertos de música e espectáculos de teatro”.
103 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
Filmes e temas
1) Travestismo
Glen or Glenda (EdWood Jr.,EUA, 1953)
Privates on Parade (Michael Blakemore, Inglaterra, 1992)
The Rocky Horror Picture Show ( Jim Sharman, Inglaterra, 1975)
3) Hermafroditismo/intersexualidade
L´Hypothese Hemaphrodite (Alain
Burosse,França, 1997)
4) Drag Queen
Paris is Burning ( Jennie Livingston, EUA,
1991)
Discursos fora da ordem 104
6) Sadomasoquismo
Noir et Blanc (Claire Devers,França, 1986).
7) Aids/SIDA
The Dead Boys Club (Mark Christopher, EUA, 1992)
Des Majorettes dans L´Espace (David Fourier, França, 1996)
The Last Supper (Cynthia Roberts, Canadá, 1995)
10) Homenagens
Um Chant d’Amour ( Jean Genet, França, 1950)
Les Diaboliques (Henri-Georges Clouzot, França, 1955)
Celuloides e closes
4. Conheço de perto o debate espinhoso sobre o casamento ou união civil entre pessoas do mesmo sexo e sou
particularmente favorável a essa luta. No entanto, a crítica realizada aqui pelo FQL, e também subtendida na
minha escrita, é de que o problema está em fazer desta luta mais uma maneira submissa de integrar a dissi-
dência no seio da normalidade heteronormativa. A crítica à necessidade do casamento, da parentalidade, da
monogamia e outras formas de organização da família nos padrões burgueses é extensiva aos casais e práticas
heterossexuais tanto quanto homo. Por que deveríamos responsabilizar os casais de mesmo sexo a carregar a
luta pelo reconhecimento de uniões afetivas sem a tutela da Igreja ou do Estado? Enquanto cidadãos, penso
que os tipos de parceria e contrato possíveis entre casais hetero deveriam estar automaticamente disponíveis
para casais de mesmo sexo, independente do gênero que professam. Numa sociedade laica, suscitar a questão
do casamento “gay” não deveria nem se constituir em um problema legal.
Discursos fora da ordem 112
5. Outro filme deste mesmo festival foi um documentário brasileiro sobre prostitutas que tralhavam na Praça
da Luz, em São Paulo (o filme é 69, Praça da Luz). O documentário é dirigido por Carolina Markowicz e
Joana Galvão e participou do 18° Festival de Curtas-Metragens de São Paulo, em 2007, no qual as diretoras
ganharam o troféu "Coelho de Prata". O filme foi inscrito também no Festival Mix Brasil (Festival de Cinema
e Vídeo da Diversidade Sexual - 2007), no qual ganhou o prêmio de "Melhor Filme Brasileiro".
113 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
6. Registro aqui um inspirador grupo radical canadense, os Anti-capitalist Ass Pirates, que desde 2003 realizam
manifestações públicas contra a estetização vazia do mundo gay. Aconsituição dos guetos (primeiramente
étnicos e depois gays e lésbicos) possui uma longa história, em especial como forma de isolamento e controle
(durante a Segunda Guerra Mundial), e na década de 1960 como alternativa de sobrevivência, comunitarismo
e proteção. Nos anos 1990 essa primeira tendência dos guetos diminui, configurando novas territorialidades e
novos propósitos aos bairros e locais de sociabilidade destinados a glbt (no Brasil também GLS). Alguns au-
tores discutiram essa construção territorial sexual e afetiva, tais como Nestor Perlongher, Júlio Simoes, Maria
Toneli, Juliana Perrucchi e Isadora França. Cf. <http://www.hour.ca/news/news.aspx?iIDArticle=3768>.
7. Para diferenciar-se da expressão “mundinho gay”, que carrega uma conotação muito pejorativa ou “meio gay”,
que em geral remete ao mercado e espaços de sociabilidade voltados para consumidores gays.
119 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
Primeiras conclusões
8. O primeiro diretor do festival foi Celso Júnior, atualmente o diretor do festival é João Ferreira.
9. Segundo relatório dos organizadores do FQL, o número total de espectadores do Queer Lisboa em sua 12ª
edição foi 7.818. Isso representou um crescimento de 26% no número oficial de espectadores em relação à sua
edição de 2007 (que teve 6.183 espectadores), de 85% em relação à sua edição de 2006 (4.228 espectadores) e
de 100% em relação à edição de 2005 (3.924 espectadores). Num espaço de três anos o Queer Lisboa dobrou
o seu número de espectadores.
10. Saliba partilha do argumento que apresentei no início do texto sobre a análise de Xavier a respeito do dom de
iludir do cinema como revelação.
121 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
Referências bibliográficas
que “liberdade”, como definida pelo Estado racial branco, permeie no-
vas formas de aprisionamento, mas também que a as próprias definições
de liberdade e humanidade dentro das quais os abolicionistas operavam
limitavam severamente a habilidade dos ex-escravos pensarem transfor-
mações sociais em termos fora da estrutura do terror racial. Hartman
nota: “a longa e íntima ligação entre liberdade e aprisionamento tornou
impossível imaginar a liberdade independente da restrição ou a perso-
nalidade e a autonia separada da santidade da propriedade e das noções
proprietárias de si mesmo” (Hartman, 1997:115). Dessa forma, onde a
liberdade foi oferecida nos termos de propriedade, localizada e produti-
va, o ex-escravo devia escolher entre “mover-se em torno” ou mudar-se
para experienciar o significado da liberdade. Hartman escreve: “Como
uma prática, mover-se acumulava nada e não causava nenhuma mudan-
ça do poder, mas incansavelmente levava ao irrealizável – ser livre – por
eludir temporariamente os constrangimentos da ordem”. Ela continua:
“como entrar sem ser notado, era mais simbolicamente fragrante do que
transformador materialmente” (Idem: 128). Não há comparações sim-
ples a serem feitas entre os ex-escravos e as minorias sexuais, mas quero
unir às revelações surdas de Hartman sobre a continuidade da escravidão
por outros meios as formulações de Leo Bersani, Lynda Hart e Heather
Love de histórias e subjetividades queer que são melhor descritas em ter-
mos do masoquismo, da dor e do fracasso do que do domínio, do prazer
e da liberação heroica.Como o modelo de Hartman de uma liberdade
que se imagina nos temos de uma ordem social ainda não alcançada, as-
sim os mapas do desejo que rendem o sujeito incoerente, desorganizado
e passivo provêm uma linha de fuga melhor do que aquelas que levam
inexoravelmente ao sucesso, ao reconhecimento e à aquisição.
Uns poucos exemplos da literatura podem revelar os pontos po-
líticos em um projeto como este que soa como se não tivesse nenhuma
aplicação material. Os textos que considero brevemente aqui propõem
uma forma radical de passividade masoquista que oferece uma crítica,
não apenas da lógica organizadora da agência e da subjetividade elas
mesmas, mas que também surgem de certos sistemas construídos em
torno de uma dialética entre colonizador e colonizado, mestre e escravo.
131 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
as versões do fascismo que estão dentro de seu ser – por meio do gosto,
por meio das respostas emocionais, por meio do amor ao país, o amor à
música, por meio do amor à sua mãe.
Quero concluir com três pequenos takes em algumas cenas de
corte, de excesso masoquista, feminilidade queer e passividade radical.
Cada uma combina raça a gênero, feminilidade a masoquismo e sexua-
lidade com uma contranarrativa do ser como precariedade, e cada uma
representa a feminilidade queer como perigo: em uma, a feminilidade é
uma forma de sacrifício; na outra, a feminilidade queer requer o desapa-
recimento do corpo e, no exemplo final, a feminilidade queer desmonta
à beira do colapso. Todos os três conectam estranheza [queerness] e fe-
minilidade a formas de negatividade que oferecem, ambas, crítica social
e recusa das convenções da crítica social no mesmo gesto.
1) Peça corte: Uma parte considerável da arte performática – fe-
minista ou não – da cena experimental dos anos 1960 e 1970 do século
passado explorara o solo fértil do colapso masoquista.A peça performá-
tica de Faith Wilding,Waiting,retrata a narrativa viva de mulheres como
desejos não-realizados, como antecipação sem fim e como vidas em sus-
penso. Chris Burden permitiu-se ser fotografado em sua peça de perfor-
mance Shoot, de 1971. Em 1974, em “Rhythm 0”, Marina Abramovicz
convidou seu público a usar e abusar dela com 72 objetos que ela deixou
na mesa. Alguns objetos podiam dar prazer, alguns infligir dor, as armas
incluíam uma pistola e uma única bala. Abramovicz tinha isto a dizer
depois da performance:
Referências bibliográficas
BERSANI, Leo. Marcel Proust: the fictions of life and of art. New York:
Oxford University Press, 1965.
FERGUSON, Roderick. Aberrations in Black.Minneapolis: Univ. of
Minnesota Press, 2004.
HARTMAN, Saidiya.Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self-
making in Nineteenth Century America. New York: Oxford Univ.
Press, 1997.
JELINEK, Elfriede.The Piano Teacher. New York: Weidenfeld & Nicol-
son, 1988.
137 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
Márcia Arán
1. Esta reflexão tem como referência a pesquisa “Transexualidade e saúde: condições de acesso e cuidado inte-
gral” (IMS-UERJ/MCT/CNPq/MS/SCTIE/DECIT). Esta pesquisa teve como objetivo (1) aprofundar
o conhecimento sobre a genealogia do transtorno de identidade de gênero na biomedicina e nos saberes psi;
(2) analisar as praticas de saúde nos serviços que prestam assistência integral a usuários/as transexuais na rede
de saúde pública no Brasil; (3) analisar a diversidade de construções de gênero e formas de subjetivação na
transexualidade (Arán; Murta, 2009).
Discursos fora da ordem 140
2. Para um maior aprofundamento do tema ver Judith Halberstam (2009) e Mauro Cabral (2003).
141 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
Para socializar alguém como menina, para que sua identidade feminina
tenha êxito, é imprescindível que o corpo seja, em sua aparência exterior,
de uma menina standard, capaz de sustentar o olhar e a palavra da sua
mãe, de seu pai e a sua própria percepção como ser sexuado. O corpo
volta, portanto, não como uma determinação a priori – biológica – senão
como uma sustentação material imprescindível da assunção do gênero e
do êxito desta assunção ao longo da vida. (Cabral; Benzur, 2005: 288)
dos, e que o desejo se desvie através da divisão sexual para membros do sexo
oposto. Se um homem pode identificar-se com sua mãe e desejar partindo
dessa identificação, ele de algum modo já confundiu a descrição psíquica do
desenvolvimento de gênero estável. E se esse mesmo homem deseja outro
homem ou uma mulher, será que o seu desejo é homossexual, heterossexual
ou mesmo lésbico? E o que significa restringir qualquer indivíduo dado a
uma única identificação? (Butler, 1993: 99; Arán; Peixoto Jr., 2007)
Referências bibliográficas
dem em casas com outras travestis, 15% moram com a família nuclear,
4% residem com o companheiro e 2% sozinhas.
Em relação à procedência, 48% informam ter nascido na cidade de
Uberlândia e o restante seria procedente de várias partes do Brasil: 10%
migraram da região Norte; 8% da região Nordeste; 6% da região Cen-
tro-Oeste, com destaque para o estado de Goiás; 25% da região Sudeste,
sendo que 10% de cidades próximas a Uberlândia. Não foi identificada
nenhuma procedência do sul do país. A ausência das travestis oriundas da
região não reflete a ausência das mesmas em outros projetos do programa,
ou mesmo nos espaços das casas e da prostituição. Flavia Teixeira (2008)
aponta para o deslocamento para a cidade de Uberlândia como uma etapa
para a realização do projeto migratório, preferencialmente a Itália. O fato
de 52% de travestis procederem de outras regiões tem respaldo na literatu-
ra que indica um trânsito interno significativo de travestis no Brasil.
Também em consonância com os estudos sobre as dificuldades de
acesso e permanência das travestis na escola, a escolaridade do grupo anali-
sado situa-se, em cerca de 80% dos casos, no ensino fundamental. A socia-
lização vivida nas ruas parece substituir o direito à experiência na escola.
Frases soltas como “estudei na calçada”, “aprendi tudo na rua” são aciona-
das diante da pergunta sobre escolaridade e mais parecem uma justificativa
para o processo de expulsão, visto que muitas vezes não o conseguem no-
mear e acreditam ser uma escolha (responsabilidade) individual2.
A demanda principal pelo ambulatório é para atendimento clíni-
co em geral, desde o que denominam por check-up a queixas por lesões
dermatológicas, irritações, náuseas, realização de exames para sorologia
HIV e DST, seguida por hormonioterapia3 e complicações por silicone
injetável.
Considerando as vivências da equipe no atendimento ambulato-
rial a essa população e as lacunas da literatura a esse respeito, destaca-
2. Os trabalhos dos antropólogos Hélio Silva (1993), Mônica Siqueira (2004), Marcos Benedetti (2005) e La-
rissa Pelúcio (2007) com as travestis em diferentes locais se referem a um processo de subjetivação, “um modo
de ser travesti”, tendo como orientadoras (professoras) as travestis mais velhas.
3. A construção do Protocolo para Uso do Hormônio segue a recomendação da Profa. Dra. Mariluza Terra
Silveira, coordenadora do Programa de Transexuais da Universidade Federal de Goiás, e as adequações neces-
sárias para as travestis são discutidas com a mesma (Silveira, 2010: 29).
Discursos fora da ordem 158
Entre as travestis a aids pode ser silenciada e, até mesmo, negada, sendo
quase um tema tabu, sobre o qual se calam, tornando-o impronunciável.
Talvez por isso, entre elas, a aids tenha recebido nomes carinhosos: “tia
Lili”, ou simplesmente “tia” (denotando parentesco, afinidade, alguém
mais velho que cuida); “babadinho”, “bichinho”. (Pelúcio, 2007: 221; des-
taques no original)
4. Segundo Goffman (1988), quem porta um estigma está inabilitado para uma aceitação social plena; este seria
um traço que poderia se impor e afastar os outros atributos da pessoa. Para o autor, o estigma pode apresentar-
se em uma dupla perspectiva: a primeira, quando a característica que distingue o estigmatizado é conhecida ou
imediatamente evidente, posicionando o indivíduo como desacreditado; e a segunda quando a característica
que distingue o estigmatizado não é conhecida nem imediatamente perceptível, posicionando o indivíduo
como desacreditável. Passar da categoria indivíduo desacreditável para a desacreditado pode tornar a vida do
sujeito insuportável.
Discursos fora da ordem 160
5. A Instituição Fraternidade Assistencial Lucas Evangelista (FALE), de Uberlândia, é reconhecida como desti-
nada a abrigar “portadores de Aids”.
6. Acreditamos que esta relação tenha sido iniciada nos anos 1980, porém William Peres (2005) problematizou
a dificuldade de se pensar em projetos de vidas com as travestis diante de uma expectativa compartilhada
da morte que aparece historicamente atrelada à situação de violência. Existe um consenso de que, embora
a violência contra as travestis tenha diminuído, a violência permanece como causa significativa de óbitos,
compartilhando o espaço com as doenças decorrentes da Aids. No entanto, não temos dados seguros sobre
essa mortalidade, porque nem mesmo as mortes de travestis por causas externas (violências) podem ser quan-
tificadas, uma vez que estas integram os relatórios e laudos como óbitos de homens. O reconhecimento da
precariedade destas vidas pode ser sustentado pelas afirmações sobre a baixa expectativa de vida das travestis
brasileiras (aproximadamente 30 anos) proferidas durante diferentes eventos organizados pelo Ministério da
Saúde, sem que em nenhuma situação houvesse contestação dessas afirmações.
7. Janela imunológica é o intervalo de tempo entre a infecção pelo vírus da aids e a produção de anticorpos
anti-HIV no sangue. Esses anticorpos são produzidos pelo sistema de defesa do organismo em resposta ao
HIV e os exames irão detectar a presença dos anticorpos, o que confirmará a infecção pelo vírus. Informação
disponível no site do Departamento Nacional de Aids e Hepatites Virais no endereço eletrônico: <http://
www.aids.gov.br/pagina/o-que-e-janela-imunologica>. Consultado em dezembro de 2010.
Discursos fora da ordem 162
8. Temos observado, de 2006 a 2010, as dificuldades enfrentadas pelas travestis que se identificam como soropo-
sitivas de pautarem temáticas sobre suas vivências, necessidades e expectativas durante os Entlaids (Encontro
Nacional de Travestis e Transexuais na Luta contra a Aids).
163 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
9. Nosso agradecimento à Dra. Mariluza Terra Silveira, coordenadora do Programa de Transexualidade da Uni-
versidade Federal de Goiás, que capacitou e mantém um diálogo constante com a nossa equipe.
10. Necessidade explicitada nas diretrizes das políticas públicas, como por exemplo: Política Nacional de Saú-
de Integral LGBT (Ministério da Saúde, 2010), disponível em: <http://www.ccr.org.br/uploads/noticias/
Pol%C3%ADtica_nacionalLGBT.pdf>; e do Plano de Enfrentamento da Epidemia de Aids e das DST entre
Gays, HSH e Travestis (Ministério da Saúde, 2007), disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publi-
cacoes/plano_enfrentamento_epidemia_aids_hsh.pdf>. Essas Políticasforam corroboradas pelas delibera-
ções dos Entlaids realizados em 2007, 2008, 2009 e 2010.
Discursos fora da ordem 164
11. Essa é uma expressão utilizada pelas travestis para identificar uma pessoa embriagada.
167 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
12. Em consonância com as existentes, como a Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários
de Álcool e outras Drogas, 2004. Além da Política Nacional sobre Drogas, 2005, e da Política Nacional sobre
o Álcool, 2007.
13. A Política Nacional sobre Drogas de 2005 prevê a promoção de estratégias e ações de redução de danos vol-
Discursos fora da ordem 168
tadas para saúde pública e direitos humanos, que deve ser realizada de forma articulada intra e intersetorial,
visando à redução dos riscos, das consequências adversas e dos danos associados ao uso de álcool e drogas para
a pessoa, a família e a sociedade.
169 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
14..Código: 5198, profissional do sexo. Refere-se a Garota de programa, Garoto de programa, Meretriz, Messa-
lina, Michê, Mulher da vida, Prostituta, Trabalhador do sexo. Disponível em: <http://www.mtecbo.gov.br/
cbosite/pages/pesquisas/BuscaPorTituloResultado.jsf>.
15. Artigo 229 do Código Penal: “Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra ex-
ploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente: Pena - reclusão,
de dois a cinco anos, e multa”.
Discursos fora da ordem 170
18. Portaria nº 675, divulgada em março de 2006. Essa resolução foi revogada e redimensionada com a Portaria 1820,
de agosto de 2009. Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2009/01_set_carta.pdf>.
Discursos fora da ordem 174
19. Embora o documento não possua legitimidade jurídica para substituir qualquer documento de identifica-
ção, o diálogo estabelecido a partir do Programa Em Cima do Salto: Saúde, Educação e Cidadania com os
integrantes da 9ª Região da Polícia Militar de Minas Gerais tem facilitado os acordos e as parcerias entre a
Associação das Travestis do Município, Triângulo Trans e a polícias Militar e Civil – facilitando os encontros
e diminuindo as vulnerabilidades.
175 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
não foi incluído. Essa situação, ainda hoje, gera constrangimentos e difi-
culta os serviços ao encaminharem os usuários para outras unidades ou
para realização de procedimentos.
Relembramos que uma luta não substitui a outra, e enquanto de-
fendemos a ampliação do uso do nome social, referendamos a luta pelo
direito à alteração do registro civil independentemente da realização de
procedimento cirúrgico ou diagnóstico de transexualidade.
As jurisprudências disponíveis para fundamentar a alteração do
nome civil, na maior parte dos casos, se relacionam ao estabelecimento
de uma suposta coerência entre sexo (genitália), gênero e prática sexual,
sendo “necessário que a expressão de um sexo não biológico esteja confi-
gurada como um transtorno e reafirme os laços entre o poder judiciário
e o poder médico” (Teixeira, 2009: 71), geralmente condicionados à ci-
rurgia de transgenitalização.
Compartilhando os desafios
Referências bibliográficas
1. Opto pela utilização dos termos intersex e intersexualidade por razões teóricas e políticas. É importante res-
saltar, contudo, que em 2006 foi publicado um “Consenso” médico, o Consensus Statement on Management
of Intersex Disorders, conhecido também como “Consenso de Chicago”, que sugere a utilização do termo
“Disorders of Sex Development” (DSD) no lugar da nomenclatura “Intersex” ou “Estados Intersexuais” (Lee
at al., 2006).
2. Nesse contexto, merece destaque não apenas a preocupação com a origem da “diferença sexual” mas também
a descoberta dos hormônios sexuais como promessa de desvelamento da “chave” ou ponto inequívoco para
entender tal diferenciação (Oudshoorn, 1994; Wijngaard, 1997, Rohden, 2008).
Discursos fora da ordem 180
3. O primeiro grupo de ativismo intersex, a Intersex Society of North América (ISNA), surgiu nos Estados
Unidos nos anos 1990. O grupo passou a promover o uso do termo “Disorders of Sex Development” (sem,
necessariamente, abandonar o antigo termo “intersex”) e, em 2008, encerrou seu trabalho, dando lugar a uma
nova organização, chamada Accord Alliance, que adota a nova nomenclatura DSD. Disponível em:<http://
www.isna.org>. Acesso em maio de 2008.
4. Sobre o desafio de construir modos não medicalizados da intersexualidade, conferir a “Presentación” e o sub-
título “Acerca de este libro” da obraInterdicciones. Escrituras de la intersexualidad en castellano, por Mauro
Cabral (2009).
5. Conforme será desenvolvido ao longo do artigo, a partir da concepção de “corpo múltiplo” de Annemarie Mol
(2002).
181 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
6. Para uma análise mais aprofundada sobre o gerenciamento sociomédico e cotidiano da intersexualidade, a
partir de uma etnografia realizada em um hospital no sul do Brasil e em Paris, ver minha tese de doutorado
(Machado, 2008a). Os dados de trabalho de campo que embasam e que foram utilizados neste artigo inte-
gram essa pesquisa, a qual, de um lado, tratou de compreender as perspectivas, as práticas e os discursos de
profissionais de saúde (contexto brasileiro e francês) e, de outro, aqueles das famílias e jovens intersex (apenas
no contexto brasileiro).
7. Casos, por exemplo, em que a genitália é considerada pelos médicos como feminina, mas o cariótipo é 46XY
e a gônada apresenta tecido testicular (como ocorre nas chamadas Insensibilidades Completas aos Andróge-
nos) ou quando a genitália é definida como masculina e o cariótipo é 46XX, e/ou identifica-se presença de
tecido ovariano (caso dos “Homens XX”, segundo descrito pelos médicos).
Discursos fora da ordem 182
8. Alguns trabalhos fundamentais dessas autoras sobre intersexualidade devem ser destacados, como: Fausto-
Sterling (2000); Kessler (1998); Dreger (2000); Preves (2003). Para uma abordagem mais atual do geren-
ciamento sociomédico da intersexualidade no contexto dos EUA, ver Karkazis (2008). No que se refere à
América Latina, ver o livro Interdicciones, editado por Mauro Cabral (2009), no qual estão incluídos artigos
185 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
[...] rotular alguém homem ou mulher é uma decisão social. Podemos utilizar
o conhecimento científico para nos ajudar a tomar a decisão, mas só nossas
crenças sobre o gênero – e não a ciência – podem definir nosso sexo. Além
disso, nossas crenças sobre o gênero também afetam o tipo de conhecimento
que os cientistas produzem sobre o sexo. (Fausto-Sterling, 2001/2002: 15)
que oferecem, a partir de diferentes olhares, uma perspectiva crítica aos tratamentos vigentes nesse contexto,
como em Eva Alcántara Zavala (2009), Luciana Lavigne (2009) e Paula Sandrine Machado (2009).
9. O que ficava explícito no conhecido trocadilho dito entre os médicos a propósito das cirurgias realizadas em inter-
sexuais: “It is easier to poke a hole than to build a pole” (É mais fácil cavar um buraco do que construir um poste).
10. Os trabalhos de Anne Fausto-Sterling (1985, 2000) são um bom exemplo dessas análises que buscam demons-
trar como a ciência constrói a diferença entre os sexos a partir de um olhar masculino.
Discursos fora da ordem 186
11. Vale destacar que a ideia de que existem múltiplas interações e mútuas produções entre ciência e sociedade já
aparece em um artigo de Ludwik Fleck, de 1929, intitulado “On the crisis of ‘reality’” (Fleck, 1986 [1929]),
conforme assinala Ilana Löwy (2004).
189 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
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LEE, Peter A.; HOUK, Christopher P.; AHMED, S. Faisal; HU-
GHES, Ieuan A. (in collaboration with the participants in the Inter-
195 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
Adriana Piscitelli
Apresentação
Eixos de opressão?
1. Uma versão mais elaborada dessa discussão foi publicada em Piscitelli (2008).
201 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
2. Agradeço a Gloria Bonelli por ter levantado este ponto no seminário Sexualidades, Saberes e Direitos, no qual
este trabalho foi apresentado.
203 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
3. Amy Allen (1998) traça um histórico dessas leituras sobre poder, desenvolvidas na década de 1980. Segundo
ela, as formulações de autoras como Catherine MacKinnon, Andrea Dworkin e Carol Pateman oferecem
exemplos das leituras do “desempoderamento” ou a dominação. De acordo com MacKinnon e Dworkin, a
dominação das mulheres é anterior às diferenças entre homens e mulheres, que seriam efeitos desse sistema
e são utilizadas para justificá-lo. As três autoras aderem a uma leitura da dominação como díade, como a re-
lação entre amo e escravo, mas enquanto Pateman realiza uma leitura crítica do contratualismo clássico, para
MacKinnon e Dworkin essa dominação deriva diretamente da sexualidade, no âmbito da heterossexualidade.
Entre as teóricas do “empoderamento”´, cujo foco é no poder das mulheres para a transformação, estariam
Carol Gillighan e Sarah Ruddick, que considerama valoração positiva da vinculação das mulheres com o
cuidado e a maternidade como caminho para novas compreensões feministas da interação social. Pensar essas
atividades como fontes de poder e controle possibilitaria outras maneiras de considerar o poder.
Discursos fora da ordem 204
4. Agradeço também a observação de Judith Halberstam sobre a relação entre agência e resistência, formulada
no seminário no qual foi apresentada a primeira versão deste texto.
5. Em termos antropológicos, a agência é a capacidade de agir, mediada social e culturalmente, realizando ações
que têm efeitos nos outros. Na medida em que envolve efeitos, envolve dimensões de poder. Marilyn Strathern
(2006) trata da agência chamando a atenção para a relevância de não confundir o agente com a pessoa. De
acordo com ela, o agente age tendo outro em mente e a maneira de agir revela a modalidade de pessoa em jogo.
Essa é uma ideia particularmente fértil para pensar em ações que, orientadas por diferentes interesses, evidenciam
diferentes modalidades de pessoa, mais “individuais”, ou relacionais, como corporificação de relações.
6. Isto não significa que os antropólogos tenham resolvido os problemas relativos à agência. As abordagens
vinculadas à teoria da prática destacam as influências das estruturas sociais que moldam as ações humanas,
mas também se preocupam em compreender como, além de constrições, abrem possibilidades para que as
ações reforcem ou reconfigurem essas estruturas. Contudo, há um problema central, relativo a explicar como
a reprodução social se torna transformação social, evidente na obra de Bourdieu, que enfatiza as tendências à
reprodução do habitus. Esse problema foi enfrentado por autoras como Sherry Ortner (2001), que chama a
atenção para as tensões e contradições inerentes no habituse considera que uma direção proveitosa é distinguir
entre tipos de agência, reconhecendo que há múltiplos tipos envolvidos em qualquer ação. Isso possibilitaria
compreender a complexidade e ambiguidade da agência.
205 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
7. Nesse ponto, vale prestar atenção à citação de Audre Lorde, afirmando que o lugar [das feministas] é a própria
casa da diferença e não a segurança de qualquer diferença particular, reproduzida por McKlintock na Intro-
dução ao seu livro, Couro imperial (2010).
Discursos fora da ordem 206
Questões
8. Ver <http://www.slideshare.net/observatorionegro/mulher-negra-e-interseccionalidades>.Consultado em
janeiro de 2011.
9. Ver ARTICULANDO Eletronicamente, veículo de informação da Articulação de Mulheres Brasileiras, ano 4,
125, 30/06/2005, p. 1. Disponível em: <www.articulacaodemulheres.org.br/amb/adm/uploads/.../AE%20
125-.doc>. Consultado em janeiro de 2011.
10. Ver <http://www.criola.org.br/artigos.htm>. Consultado em janeiro de 2011.
209 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
Vítimas
Turismo sexual
11. Comunicação pessoal da equipe de atenção da ONG em São Paulo, em junho de 2009; ver também Secretaria
Nacional de Justiça/ASBRAD, 2009.
12. No Protocolo de Palermo, ratificado pelo Brasil em 2004, o crime de tráfico de pessoas é definido concedendo
ênfase à coerção, ao engano ou ao abuso de situação de vulnerabilidade em qualquer fase do processo do des-
locamento para ser explorado em qualquer setor de atividade. As leis sobre tráfico do Código Penal Brasileiro,
de 1940, tipificavam o crime de maneira diferente. Essas leis definiam o crime como promoção ou facilitação
da entrada no território nacional de mulheres que nele viessem a exercer a prostituição, ou, ao contrário, a saí-
da de mulher que fosse exercê-la no estrangeiro (artigo 231). O emprego de violência, grave ameaça ou fraude,
centrais para a definição do crime no Protocolo de Palermo, eram apenas agravantes no Código Penal. ALeinº
11.106, de 28 de março de 2005, modificou o capítulo V do Código Penal, tratando de tráfico internacional
de pessoas (e não mulheres) e adicionando disposições relativas ao tráfico interno de pessoas (isto é, no âmbito
do território nacional). E as alterações legais mais recentes, Lei nº 12015, de 7/08/2009, modificam essas
disposições adicionando (artigo 231.1) que as penas se estendem àqueles que agenciem, aliciem ou comprem
a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, a transportem, transfiram ou alojem.
Discursos fora da ordem 212
gráficos relativos ao gênero e idade das pessoas consideradas traficadas e às “rotas”, nacionais e internacionais.
O relatório explicita que registrar a identificação étnica das pessoas envolvidas foi uma das propostas originais
da equipe de pesquisa. Contudo, foi inviabilizada, pois apenas duas matérias faziam menção explícita a esse
aspecto. A análise dos estudos de caso apresenta um quadro semelhante: apenas dois dos dez casos contem-
plados na pesquisa aludem à cor. Apenas uma das pessoas apresentada como vítima aparece como parda e uma
como negra, mas nos restante oito casos não há alusões à cor. Finalmente, na análise de inquéritos policiais e
processos judiciais não há nenhuma alusão à cor das vítimas.
15. Esse programa incluiu a realização de pesquisas, a criação de escritórios de Combate e Prevenção ao Tráfico de
Seres Humanos, a realização de seminários em diversas partes do país e cursos de capacitação e sensibilização
para operadores de direito, policiais, agentes que trabalham em aeroportos e pessoas de instâncias governa-
mentais e não-governamentais que atenderiam às vítimas. Entre 2005 e 2006 foi elaborada a Política Nacional
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que incluiu uma ampla consulta à sociedade (Ministério da Justiça,
2007).
Discursos fora da ordem 216
16. Este é o caso do conjunto de sentenças analisadas pela Dra. Ela Wiecko de Castilho (2008) e Marina Pires
de Oliveira (2008). São 23 decisões (14 de primeiro grau e 9 de segundo grau) em ações penais relativas à
aplicação do art. 231 do Código Penal. As sentenças foram proferidas, no período de 2004 a 2008, na maioria
por juízes federais. Os fatos objeto das sentenças ocorreram nos anos de 1999 a 2006.
217 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
17. A primeira pesquisa, centrada em mulheres e travestis, contemplou exclusivamente indícios de tráfico com
fins de exploração sexual (Secretaria Nacional de Justiça, 2005). O segundo estudo trabalhou com um uni-
verso que incluiu homens, mulheres e travestis e considerou indícios de tráfico com fins de exploração em
qualquer setor de atividade (Secretaria Nacional de Justiça, 2007).
18. A amostra contou com 175 pessoas na primeira pesquisa e 73 na segunda, com um número de entrevistados
que não tem representatividade estatística.
19. De dez mulheres, quatro se declararam brancas, uma negra, uma indígena, duas morenas, uma parda, uma
mulata. Entre as nove travestis, duas se declararam brancas, uma amarela e as restantes pardas ou morenas.
Discursos fora da ordem 218
ses “níveis” há uma demanda por diversidade nacional e étnica que inclui
mulheres de diversas nacionalidades e de tonalidades de pele consideradas
como relativamente claras. Nesses espaços há escassa receptividade e, às ve-
zes, rejeição aos “extremos”, nos quais se situam as mulheres consideradas
negras, em termos descritivos, isto é, com pele considerada muito escura.
Nesses casos, a racialização deixa de ser baseada na nacionalidade e se vin-
cula à cor da pele. As pessoas assim percebidas são objeto de graus mais in-
tensos de racismo20. Essas categorizações certamente têm vinculação com
a significativa presença de brasileiras que se consideram “brancas” ou “mo-
renas” entre as que trabalharam na indústria do sexo no Sul da Europa.
Finalmente, o quinto estudo sobre tráfico de pessoas, realizado pela
ONG Só Direitos (2008), contemplou o tráfico de brasileiras com fins de
exploração sexual nos deslocamentos entre Belém e Suriname. Este estudo
também considera a cor na caracterização das vítimas. São 17 mulheres,
predominantemente adultas (apenas uma adolescente). Somente três delas
se declararam brancas, não consta informação sobre outras três, há quatro
negras e as demais se distribuem entre indígenas e pardas. Seus perfis as
diferenciam do universo de entrevistadas do aeroporto. A única ocupação
de todas as entrevistadas de Belém, com “baixíssimos rendimentos”, além
da prostituição, foi o serviço doméstico. As experiências de vida marcadas
pela violência, inclusive sexual, o trabalho iniciado às vezes na infância e o
saldo negativo dos processos migratórios também as diferenciam das entre-
vistadas de Guarulhos. Várias destas últimas conseguiram através do traba-
lho realizado nas viagens comprar imóveis e melhorar a qualidade de vida
de suas famílias no Brasil. Ao contrário, as entrevistadas que foram para
o Suriname retornaram a uma situação econômica igual o pior à anterior.
Gênero e raça
20. Este aspecto, presente em entrevistas com empresários, com clientes desses espaços e em material da web, foi
referendado por minha observação em vários clubes, apartamentos e inclusive na rua, em diversas cidades
espanholas (Piscitelli, 2009).
219 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
Considerações finais
Referências bibliográficas
Adriana Vianna
Preâmbulos e perambulações
1. Agradeço a Larissa Pelúcio e Richard Miskolci o convite para participar do seminário e a paciência na espera
do texto sempre inconcluso. Boa parte dessas ideias foi discutida em outros momentos, em especial no GT Se-
xualidade, Corpo e Gênero da Anpocs de 2009, quando contei com a leitura atenta e com as ricas sugestões de
Bibia Gregori, Júlio Simões e José Miguel Olivar. Sérgio Carrara, interlocutor constante e precioso, também
discutiu em diferentes momentos algumas das ideias aqui presentes.
Discursos fora da ordem 228
2. Esse trabalho teve como primeiro resultado a publicação Vianna; Lacerda (2004). Outros desenvolvimentos
foram apresentados em Vianna; Carrara(2007: 27-52) e em Vianna; Carrara (2008: 334-360).
229 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
3. Cabe notar que não estou pensando aqui no horizonte mais longo e profundo de formas de intervenção,
regulação e normatização da sexualidade, algo que envolve políticas de naturezas as mais diversas, bem como
campos de saberes variados, mas tomando como ponto de partida o enunciado plural dos “direitos sexuais”,
entendo-o como vinculado ao horizonte complexo e recente dos direitos humanos da segunda metade do
século XX.
Discursos fora da ordem 230
4. Podemos sempre lembrar que Foucault (1988) há muito já nos alertava que o fascinante na discursividade
loquaz sobre a sexualidade não era o que se veiculava – sermos “reprimidos” – mas sim a sedução da própria
loquacidade, a obrigação de proclamar aos gritos que “sim, somos reprimidos”!
5. Para um panorama desse contexto e suas implicações, ver, entre outros Correa; Petchesky (1996: 147-177).
Para as complexas implicações e desafios dos direitos sexuais como direitos humanos, ver Correa (2006: 101-
121).
231 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
6. Esses encontros aconteceram em diferentes cidades brasileiras, sendo promovidos por grupos e ONGs arti-
culados principalmente aos movimentos feminista e LGBT. Pude acompanhar apenas três edições, em Belo
Horizonte, São Paulo e João Pessoa.
Discursos fora da ordem 234
Para além dos temas pelos quais vêm sendo instituídas agendas,
estratégias e linguagens em relação aos direitos sexuais, creio ser impor-
tante pensar também em deslocamentos que vêm se dando a partir dos
agentes/sujeitos privilegiados desse processo. Um terreno fecundo para
tanto pode ser identificado na transformação do antigo “movimento
Homossexual” em LGBT – com variadas composições de siglas –, o que
indica o crescente reconhecimento das diferenças antes, do ponto de vis-
ta da exibição política, ocultas sob o manto genérico da homossexuali-
dade. Melhor seria talvez pensarmos que lidamos com alianças possíveis
entre dissidentes sexuais que encontram como ponto de referência co-
mum o seu confronto com a força ideológica e modelarmente dominan-
Gostaria de fechar este texto com duas cenas recentes que falam
das torções entre sexo-gênero e direitos de um modo que me parece es-
pecialmente intrigante e produtivo.
A primeira delas foi amplamente divulgada e trata da imagem do
“homem grávido” que tomou conta dos jornais há cerca de dois anos. As
fotos exibidas traziam um homem, com barba e uma grande barriga de gra-
videz, sendo explicado em geral nos textos que acompanhavam a foto de
8. Cabe lembrar que a homossexualidade também já foi tomada como aprisionamento ou inversão, como aponta
Sedgwick (2007: 19-54).
Discursos fora da ordem 242
que se tratava de uma “mulher” transexual. Para além dos diversos elemen-
tos da ordem dos dispositivos de sexo-gênero que podem ser discutidos a
partir dessa situação, o que me chamou atenção foi, por interesses próprios
de pesquisa, o lugar ocupado pela reprodução, tema tão espinhoso social-
mente e politicamente tão relevante para as agendas LGBT (entre outras).
Curiosamente, nesse caso a reprodução não aparece como reivindicação,
mas como fato dado – mesmo que possa parecer aberrante, do ponto de
vista estético, para muitos, e seguramente bastante provocador para nos-
sas sensibilidades generificadas –, mas intocada e intocável em termos dos
“direitos”. A biologia subvertida na mudança de sexo aparece estabilizada
no direito à maternidade, tão mais questionado em outras situações, como
as que envolvem gays, lésbicas, travestis e transexuais que desejam adotar
filhos ou que, em caso de separação, podem ser eliminados posteriormente
da vida da criança caso não tenham vínculo biológico com ela.
Matéria de jornal? Por certo. Objeto de condenações psicomorais?
Provavelmente. Mas foco de invisibilidade ou perseguição judicial, para
que não pudesse criar @ filh@? De certo que não. A força dos enquadra-
mentos biológicos ou biologizantes para a definição das marcas sociais
dos direitos (especialmente do direito de “ter” pessoas ou “ter” relações
sociais reconhecidas) uma vez mais mostrou aqui sua profundidade.
A segunda cena me veio através trabalho de pesquisa de Flávia
Teixeira, na época doutoranda da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), sobre as travestis na Itália, durante o Seminário organizado
por Adriana Piscitelli e Márcia Vasconcellos, e pelo Núcleo de Estudos
de Gênero Pagu (Unicamp), sobre tráfico de pessoas9. Em certa passa-
gem, Flávia menciona o caso de uma travesti que, mediante pagamen-
to, casa com uma mulher para obter visto. Travestida de homem, fir-
ma seu compromisso heterossexual para poder continuar trabalhando
na prostituição. O jogo farsesco aqui presente me levou às gargalhadas:
como em uma composição cômica de espelhos, vem à tona (e abaixo)
todo o esforço social de manutenção das ficções da nacionalidade, do
9. Tanto o trabalho quanto o comentário feito por mim na ocasião encontram-se publicados no “Dossiê: Gêne-
ro no Tráfico de Pessoas”, organizado por Adriana Piscitelli e Marcia Vasconcellos para os Cadernos Pagu. Ver
Teixeira (2008: 275-308); e Vianna (2008: 309-314).
243 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
Referências bibliográficas
Nós não devemos excluir a identidade se é por meio desta identidade que
as pessoas encontram seu prazer, mas não devemos considerar esta iden-
tidade como uma regra ética universal.
(Michel Foucault)
Introdução
1. Ainda é fraca a presença de ativistas e raras as aparições de grupos bissexuais no cenário das relações entre
movimento “LGBT” e Estado. No entanto, a letra “B” segue sendo utilizada em eventos e manifestações
públicas, com foi o caso da I Conferência Nacional LGBT, ocorrida entre os dias 5 e 8 de junho de 2008 na
cidade de Brasília. O evento foi coordenado pela Subsecretaria de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos,
da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República, e é um marco político
importante a partir da edição do Programa Brasil sem Homofobia.
Discursos fora da ordem 246
2. O sinal de rasura (x) indica que eles não servem mais – não são mais ‘bons para pensar’ – em sua forma original,
não reconstruída. Mas uma vez que não há outros conceitos que os superem, ainda se faz uso deles, deste modo.
251 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
3. Num estudo sobre o Grupo Triângulo Rosa e seu protagonismo na discussão sobre a inclusão da expressão
“orientação sexual” no texto constitucional resultante do processo constituinte de 1988, Cristina Câmara
(2002) anota: “A orientação sexual consolidou o momento emergencial da discussão sobre os direitos indivi-
duais no movimento gay e a criação de um lugar simbólico para a expressão pública da homossexualidade. Foi
a alternativa teórica do movimento gay, que marcou uma posição na luta simbólica contra a medicalização e a
criminalização da homossexualidade, fugindo ao imaginário do séc. XIX” (Câmara, 2002:103).
255 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
4. Não obstante, as práticas repressivas contra a liberdade de expressão sexual que ocorrem na África do Sul,
como o denominado “estupro corretivo” cometido contra lésbicas, vêm sendo denunciadas por organizações
não governamentais. Cf. <http://www.avaaz.org/po/stop_corrective_rape/?fpla>.
Discursos fora da ordem 256
5. Em estudo sobre a apreciação dos Tribunais de Justiça brasileiros sobre o reconhecimento de efeitos jurídicos
às conjugalidades homoeróticas, Rosa Oliveira (2009) anota: “Se pensarmos nas noções presentes na Consti-
tuição Federal sobre a família, podemos perceber que há variadas conexões com a discussão no campo dos di-
reitos sexuais e direitos reprodutivos, como aquela que propugna ser a sexualidade reservada para reprodução,
e que o casamento deva assegurar normativamente (de um ponto de vista técnico – estatuto legal) a institui-
ção familiar, em seu conceito ‘tradicional’, que envolve a conjugalidade heterossexual” (Oliveira, 2009:129).
6. A expressão “conjugalidades homoeróticas” busca designar as relações amorosas estáveis entre pessoas não he-
terossexuais, a partir de marcos teóricos encontrados em Jurandir Freire Costa (1992), bem como em Miriam
Grossi (2003) e Maria L. Heilborn (1993).
Discursos fora da ordem 260
7. Ernesto Meccia (2010:63) empreendeu esforço semelhante ao realizar uma tipologia dos discursos jurídicos
acerca das demandas do movimento “LGBT” e o matrimônio igualitário na Argentina, valendo-se das cate-
gorias “discurso do desconhecimento”, “discurso conservador”, “discurso liberal abstencionista” e “discurso
liberal de reconhecimento”.
263 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
Como também acima referido, não é por acaso que este raciocínio
se disseminou entre profissionais e acadêmicos do direito mediante o
uso do termo “homoafetividade”: expressão familista que muito dificil-
mente pode ser apartada de conteúdos conservadores e discriminató-
rios, por nutrir-se da lógica assimilacionista, sem o que a “purificação”
da sexualidade reprovada pela heterossexualidade compulsória compro-
mete-se gravemente, tudo com sérios prejuízos aos direitos sexuais e à
valorização mais consistente da diversidade sexual.
Os efeitos colaterais indesejados produzidos pelo assimilacionis-
mo familista não se limitam aos direitos sexuais. Eles também provo-
cam, indireta mas efetivamente, a naturalização da inferioridade e da
precariedade dos abrigos e lares comunitários para crianças e adolescen-
tes, vitais de modo especial para quem a adoção por famílias tradicionais
se mostra inadequada e potencialmente danosa, dado que a tolerância
com adotantes homossexuais se nutre desta premissa.
Registre-se, por fim, que, em sua manifestação mais direta, este dis-
curso tangencia o conservadorismo judicial, na medida em que a orien-
tação sexual das adotantes necessitou ser “higienizada” de conteúdos
negativos (promiscuidade e falta de seriedade) que, a contrariu sensu¸se
associam à homossexualidade. Como registrou outro dos votos concor-
rentes para a decisão sem divergência, “as duas vivem uma relação séria
e estável. A assistente social chega a essa conclusão para recomendar a
adoção, dizendo que não há nenhuma relação de promiscuidade”.
Sob essa ótica, a proteção do Estado ao ser humano deve ser conferida
com os olhos fixos na vedação a condutas preconceituosas, discriminató-
rias e estigmatizantes, forte nos princípios fundamentais da dignidade da
Discursos fora da ordem 270
Considerações finais
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275 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
Cotidiano e currículo
1. Agradeço Rosa Núbia Sorbille pelo generoso diálogo sobre esse texto.
2. O currículo oculto é constituído por todos aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem fazer parte do
currículo oficial, explícito, contribuem, de forma implícita para aprendizagens sociais relevantes [...] o que
Discursos fora da ordem 278
se aprende no currículo oculto são fundamentalmente atitudes, comportamentos, valores e orientações [...]. Entre
outras coisas, o currículo oculto ensina, em geral, o conformismo, a obediência, o individualismo [...] como ser
homem ou mulher, como ser heterossexual ou homossexual, bem como a identificação com uma determinada raça
ou etnia (Silva, 2002: 78-79).
279 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
3. São depoimentos de mulheres, docentes das redes públicas, em geral jovens, de cada região do país. Os poucos
homens presentes quase não intervinham, talvez por um temor (in)consciente de que manifestar maior inte-
resse pelo tema pudesse colocar em risco o reconhecimento social de suas masculinidades.
Discursos fora da ordem 280
4. Busco contribuir para a discussão, inquietar olhares acostumados com um reiterado estado de coisas e – quiçá
– animar aqueles/as que apresentam suas retinas fatigadas, sem pretender ser exaustivo, esgotar análises ou
impor uma leitura como a única possível.
281 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
5. Não por acaso, ao falar de suas lembranças da vida escolar, Guacira Lopes Louro nota: “[...] as marcas perma-
nentes que atribuímos às escolas não se referem aos conteúdos programáticos [...], mas [...] a situações do dia-
a-dia, experiências comuns ou extraordinárias que vivemos no seu interior [...]. As marcas que nos fazem lembrar
[...] dessas instituições têm a ver com as formas como construímos nossas identidades sociais, especialmente
nossa identidade de gênero e sexual (Louro, 1999: 18-19). Obviamente, isso vale também para a construção e
as reconfigurações de nossas identidades étnico-raciais e os processos de edificação de complexas hierarquias
em que somos enredados e que, de variadas maneiras, acionamos ou a elas resistimos.
6. As normas de gênero encontram no campo da sexualidade reprodutiva um dos mais poderosos argumentos
para justificar as teses naturalizantes acerca das identidades sexuais e de gênero e as violações dos direitos das
pessoas que pareçam delas destoar. A escola, porém, ao mesmo tempo que procura garantir o êxito da incor-
poração da norma heterossexual, também se empenha em conter manifestações da sexualidade que considera
normais (Epstein; Johnson, 2000).
Discursos fora da ordem 282
7. Marcadores identitários não se constroem separadamente e sem fortes pressões sociais relativas a outros mar-
cadores sociais, e as identificações produzidas são plurais e estão imbricadas (Butler, 2002). Como Deborah
Britzman (2004) sugere, “as construções racistas do corpo exigem que ele também seja construído através do
gênero e da sexualidade, para que a categoria raça seja inteligível” (p. 165).
8. O termo homofobia, em que pesem seus limites e os equívocos que tende a gerar, conquistou espaços im-
portantes no campo político e parece ainda apresentar certo potencial que não recomenda seu abandono.
Ao buscar evitar a carga semântica da ideia de “fobia” e sublinhar aspectos políticos relativos à discriminação
social, fala-se em heterossexismo (Morin, 1977; Welzer-Lang, 2001; Herek, 2004, entre outros), homonega-
tividade (Hudson; Rickett, 1980), homopreconceito (Logan, 1996) etc. São termos que também apresentam
limites e sofrem resignificações. Para um histórico do termo heterossexismo e suas origens no pensamento de
feministas lésbicas, ver Herek (2004).
283 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
9. O termo homofobia, na acepção aqui empregada, em certa medida se aproxima da noção de heterossexismo
corrente nos Estados Unidos (Welzer-Lang, 2001), porém não a sobrepõe, pois esta ainda gira fortemente
em torno da discriminação e opressão por orientação sexual (não raro, a partir de pressupostos essencialistas),
conferindo pouca ênfase às normas de gênero e à heteronormatividade, que me parecem centrais. Ao conside-
rar tal centralidade, adotar uma acepção mais ampla e evitar abordagens individualizadoras e despolitizantes,
parece adequado empregar heterossexismo ao lado de homofobia, especialmente em referência a um fenôme-
no do qual a homofobia deriva.
10. “O privilégio masculino é também uma cilada e encontra sua contraposição na tensão e na contensão per-
manentes, levadas por vezes ao absurdo, que impõe a todo homem o dever de afirmar, em toda e qualquer
circunstância, sua virilidade. [...] A virilidade, entendida como capacidade reprodutiva, sexual e social, mas
também como aptidão ao combate e ao exercício da violência (sobretudo em caso de vingança), é, acima de
tudo, uma carga” (Bourdieu, 1999: 64).
11. Com efeito, em distintos graus, na escola podemos encontrar heterossexismo e homofobia no livro didáti-
co, nas concepções de currículo, nos conteúdos heterocêntricos, nas relações pedagógicas normalizadoras.
Explicitam-se na hora da chamada (no furor em torno do número 24, mas, sobretudo, na recusa de se chamar
Discursos fora da ordem 284
a estudante travesti pelo seu “nome social”), nas brincadeiras e nas piadas consideradas inofensivas e usadas
inclusive como instrumento didático. Estão nos bilhetinhos, carteiras, quadras, banheiros, na dificuldade de
ter acesso ao banheiro. Afloram nas salas dos professores, nos conselhos de classe, nas reuniões de pais e mes-
tres. Motivam brigas no intervalo e no final das aulas. Estão nas rotinas de ameaças, intimidação, chacotas,
moléstias, humilhações, tormentas, degradação, marginalização, exclusão etc.
285 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
12. Termo cunhado por Graciela Morgade e Graciela Alonso (2008), que, no entanto, não o caracterizam.
Discursos fora da ordem 286
13. “Identificar-se como “gay” não comporta necessariamente “sair do armário”. As lógicas do armário são mais
complexas do que o binarismo dentro/fora pode levar a supor.
287 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
14. Para uma análise dos mitos e medos curricularmente produzidos e alimentados acerca das hetero/homossexu-
alidades, ver Britzman (1996).
Discursos fora da ordem 288
15. Não existe em nossa cultura um correspondente do “Vire homem, moleque!” para as meninas. Em contextos
sexistas, “virar mulher” tende a ser percebido como um desfecho fadado de uma feminilidade naturalmente
incrustada nos corpos das meninas ou, ainda, a se revestir de significados negativos, pois aí “mulher” se con-
trapõe à ideia de “virgem”.
289 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
16. Qualidade na educação tornou-se uma palavra de ordem em torno da qual existem entendimentos muito
distintos. Ver Gentili; Silva (1999).
Discursos fora da ordem 290
19. Não por acaso, Foucault (1997) nos pergunta se ainda devemos nos admirar que prisões se pareçam com
fábricas, escolas, quartéis, hospitais e que estes se pareçam com prisões.
Discursos fora da ordem 292
20. Processos de desumanização também degradam e aviltam quem agride e objetifica o “outro”, similarmente ao
que se dá nos casos de tortura, nos quais o torturador busca prazer no aniquilamento alheio, na vã esperança
de superar a própria (im)potência.
21. Diante de tamanha sanha (hetero)normalizadora, é necessário lembrar que, não raro, os processos disciplinares
por meio dos quais se busca a normalização de indivíduos são também responsáveis por impossibilitá-los de
se constituírem como sujeitos autônomos (Fonseca, 1995). Normalização, heteronomia, alheamento, juntos,
produzem, não raro, um currículo em ação a serviço do enquadramento, da desumanização e da marginalização.
293 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
22. Na mesma esteira desse conformismo encontra-se a rejeição do emprego do termo “opção” ou “escolha sexual”,
em favor de uma adoção essencialista da noção de “orientação sexual”. Trata-se de uma renúncia ao debate
público qualificado e, como sublinha Alípio de Sousa Filho (2009), uma capitulação política.
23. Como reivindicar direitos humanos se você não é considerada/o humana/o? [...] Em contextos mais liberais,
há quem aceite as/os homossexuais como pessoas cujos direitos não devem ser violados. Entretanto, mesmo
neste caso, se o desconforto e o julgamento moral contra o desejo por pessoas do mesmo sexo não são confrontados,
uma mera afirmação dos direitos não será suficiente. Não existe alternativa ao enfrentamento das crenças e dos
valores subjacentes que alimentam a hostilidade (Sharma, 2008: 115).
Discursos fora da ordem 294
24. O fato de a sociedade aceitar certas manifestações de afeto entre as mulheres costuma ser percebido como uma
maior tolerância em relação à lesbianidade. Ledo engano. O que talvez esteja se tornando apenas midiatica-
mente mais palatável é o par que reúne mulheres “femininas”, brancas, em relações estáveis e sem disparidade
de classe ou geração (Borges, 2005).
295 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
25. Estupros são truculências heterorreguladoras de afirmação masculina e heterossexual, mesmo quando um
homem estupra outro. Por meio deles, também se procura fazer as vítimas lembrarem que sexo para elas deve
permanecer “um sofrimento imposto, uma violência sofrida – nunca uma iniciativa ou um prazer” (Calligaris,
2009). Em todos os casos, são atos de tortura, rebaixamento, marginalização, desapossamento e anulação
física, social, psicológica e simbólica. Sua execução em grupo é corriqueira em situações em que o “outro” é
reduzido à condição de presa ou prêmio, atrocidades coletivas de aniquilamento heteronormativo. A força
do universo material e simbólico que o produz explica o tristemente sintomático tom de humor que reveste
a famosa frase “Estupra, mas não mata”. Expressões de humor apaziguadoras sinalizam mais concordância do
que indiferença em relação àquilo de que se ri.
Discursos fora da ordem 296
26. Na escola, banheiros são dispositivos (re)produtores de diferenciações sociais (Carvalho, 2008).
297 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
28. A noção de respeito está historicamente fundamentada no princípio da não-discriminação: respeitar é agir
com justiça e não com bondade. Nesta acepção, trata-se de um direito, dificilmente garantido apenas por via
jurídica. As leis tendem a se reconfigurar ao abrigo das transformações sociais que as engendram, e não se pode
atribuir a elas o dom de, sozinhas, produzir as mudanças.
Discursos fora da ordem 300
29. Diante das possibilidades, descontinuidades, transgressões e subversões que o trinômio sexo–gênero–sexuali-
dade experimenta e produz, vale resistir à comodidade oferecida por concepções naturalizantes que separam
sexo da cultura e oferecem suporte a representações essencialistas, binárias e redutivistas em relação às concep-
ções de corpo, gênero, sexualidade, identidade sexual etc. (Louro, 2004b).
30. A “Pesquisa sobre preconceito e discriminação no ambiente escolar” (BRASIL, INEP, 2009) revelou que a
apresentação de altos níveis de manifestação de preconceitos e de discriminação nas escolas está relacionada à
obtenção de médias gerais mais baixas nos exames da Prova Brasil.
31. É célebre a observação de Philippe Perrenoud (2000: 149): “Se um jovem sai de uma escola obrigatória per-
suadido de que as moças, os negros ou os muçulmanos são categorias inferiores, pouco importa que saiba
gramática, álgebra ou uma língua estrangeira. A escola terá falhado drasticamente [...]”.
301 Richard Miskolci e Larissa Pelúcio (eds.)
Referências bibliográficas