Analises Do Falocentrismo Na Psicanalise e No Feminismo

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Revista Interamericana de Psicología/Interamerican Journal of Psychology

2022, Vol. 56, No. 1, e1728

Subjetividade e Diferença Sexual: Análises do Falogocentrismo


na Psicanálise e no Feminismo Pós-estruturalista
Laura Christofoletti da Silva Gabriela , Mériti de Souzaa , & Gustavo Angelia1

Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasila

Resumo

A leitura sobre a diferença sexual ocupa lugar central nas teorias sobre a constituição subjetiva e na construção do
falogocentrismo. Nosso objetivo neste artigo é problematizar a leitura sobre a diferença sexual questionando o pressuposto
falogocentrico como referência à elaboração da subjetividade, bem como, o binarismo e a hierarquia que ancoram o par
masculino e feminino. Realizamos uma pesquisa qualitativa teórica na qual selecionamos obras de autores referenciados
na psicanálise e analisamos as relações entre a diferença sexual e o sujeito, bem como, selecionamos obras de autores
contemporâneos referenciados na psicanálise contemporânea e nos estudos feministas pós-estruturalistas considerando suas
críticas ao falogocentrismo. Concluímos pela necessidade de questionar a separação entre natureza e cultura, corpo e simbólico,
sexo e gênero, para colocar em bases críticas a leitura e o trabalho sobre a diferença sexual.
Palavras-chave
Falogocentrismo; Subjetividade; Feminismo; Binarismo

Abstract

Reading about the sexual difference occupies a central place in theories about the subjective constitution and phallogocentrism
construction. The article problematizes the reading of sexual differences. It questions the phallogocentric assumption regarding
the elaboration of subjectivity, binarism, and hierarchy that anchors the male and female pair. It was possible to perform the
qualitative-theoretical research by selecting works of authors referenced in psychoanalysis to analyze the relationship between
sexual difference and the subject. Also, it was possible to select works by contemporary authors regarding contemporary
psychoanalysis and poststructuralist feminist studies by considering their phallogocentrism criticisms. It is possible to conclude
by the need to question the separation between nature and culture, body and symbolic, sex and genderto critically base the
reading and work on sexual difference.

Keywords
Phallogocentrism; Subjectivity; Feminism; Binarism

1 Correspondence about this article should be addressed to Gustavo Angeli: [email protected]


2 Conflicts of Interest: The authors declare that the research was conducted in the absence of any commercial or financial relationships that could be construed as a potential conflict of interest.

Reference: Christofoletti da Silva Gabriel, L., de Souza, M., & Angeli, G. (2022). Subjetividade e Diferença Sexual: Análises do Falogocentrismo na Psicanálise e no Feminismo Pós-
estruturalista. Revista Interamericana de Psicología/Interamerican Journal of Psychology. 56(1), e1728. https://doi.org/10.30849/ripijp.v56i1.1728

ARTÍCULOS | 1
Laura Christofoletti da Silva Gabriel, Mériti de Souza, & Gustavo Angeli

Subjectivity and Sexual Difference: Analyzes of Phallogocentrism


in Psychoanalysis and Poststructuralist Feminism

Introdução

“Faz-de-conta”, dizem as crianças em meio a uma brincadeira. Com um pedaço de tecido fazem uma
cabana ou um castelo, um galho é transformado numa espada, um par de tênis se transforma num travessão
para gols e água com areia pode ser uma comida deliciosa, tudo pelo faz-de-conta. Mesmo no momento
atual, com a pandemia da doença Covid-19, é possível ver crianças brincando em diversos lugares. Ao
conversar com elas, as meninas costumam dizer que “não podem” brincar de tudo que gostariam, como
futebol, handbol e basquete, por que são brincadeiras de meninos, mas que elas não se importam, brincam
mesmo assim. Os meninos geralmente dizem que não podem brincar de boneca, casinha ou panelinhas
porque as pessoas dão risadas. A partir dessas cenas e da escuta dessas falas, percebemos que poderia
haver algo a ser explorado sobre a diferença sexual.
Desde a descoberta da gravidez, na cultura ocidental, vemos que a descoberta do sexo do(a)
bebê ainda no útero é tema em enigma, gera expectativa e festividade temática, “chá revelação” como
denomina-se no Brasil. Na infância, é comum que mães, pais, amigos ou parentes, ofereçam brinquedos
às crianças, geralmente esses brinquedos são seleccionados e categorizados com critérios desde a cor
até a destinação específica para os meninos ou para as meninas. Ou seja, os destinados às meninas em
geral são bonecas, panelinhas, e outros objetos domésticos em miniatura. Os destinados aos meninos
são armas, animaizinhos como bois e vacas, carros, tratores e caminhões. A depender da situação temos
brinquedos em comum, peças de montagem e encaixe, instrumentos musicais e papéis para desenhar e
pintar. Conforme vamos crescendo, vamos percebendo, com ainda maior nitidez, que existem diferenças
sexuais que nos marcam ao longo da vida, na escolha profissional, vemos que existem profissões
predominantemente masculinas e outras predominantemente femininas, nas organizações empresariais
geralmente os cargos de chefia e liderança são ocupados por homens e a diferençasalarial também é
queixa das mulheres que recebem salários inferiores mesmo quando ocupam o mesmo cargo.
Assim, no decorrer dessas experiências que vivenciamos ao longo da vida e que fazem parte no
nosso desenvolvimento, podemos perceber que as diferenças sexuais e suas reverberações na constituição
subjetiva marcam os sujeitos de tal maneira nos laços sociais que nos movem a pensar no tema de
investigação posto neste artigo.
Consideramos que a relação com brincadeiras e diferença sexual, não configuram uma experiência
única, porém dizem respeito à maioria das famílias, configurando o modo de funcionamento
falogocentrado que opera até os dias atuais nas sociedades e nas configurações subjetivas. O
falogocentrismo diz respeito à relação de poder que produz a idealização do falo e do logos como
referências últimas aos modos de entender a subjetividade e o conhecimento moderno (Derrida, 2001;
2004). Ou seja, a maioria das teorias sobre os modos de conhecer e de subjetivar presentes no mundo
moderno atribuem ao falo e ao logos a origem e o sentido os quais carregam valores e sobrepõem, em
termos valorativos, o masculino em relação ao feminino. (Peters, 2000; Chauí, 1996; Derrida, 1992, 2004;
Derrida & Roudinesco, 2004; Butler, 2019).
Judith Butler (2019), em Problemas de Gênero, questiona a gramática substantiva do gênero e
aponta que os atributos de masculinidade e de feminilidade configuram exemplos do sistema binário

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que mascara o discurso hegemônico do masculino. Uma questão trazida por Butler é pensar até que
ponto a relação binária não está fadada a reproduzir-se interminavelmente, e a autora também questiona
quais seriam as possibilidades de ruptura do próprio binarismo ancorado em oposições. “O deslocamento
estratégico dessa relação binária e da metafísica da substância em que ela se baseia pressupõe que a
produção das categorias de feminino e masculino, mulher e homem, ocorra igualmente no interior da
estrutura binária” (Butler, 2019, p.53).
De forma específica, diversos(as) autores(as) apontam que o binarismo e a hierarquia atravessam os
modos de conhecer e de subjetivar predominantes na rede social ocidental moderna, bem como, realizam
a crítica a essas modalidades de conhecimento e de subjetivação (Derrida, 2004; Foucault, 1984; 1985;
1988; 1996). O binarismo e a hierarquia são modos de funcionar que operam a partir de pares de oposição
- natureza e cultura; corpo e mente; masculino e feminino; sujeito e objeto, dentre outros - sendo que um
dos membros desse par ocupa o lugar de poder sobre o outro. Esse modo de funcionar é muito presente e
atravessa os modelos de conhecimento e de subjetivação hegemônicos, construindo de forma específica
o que denominamos de masculino e de feminino considerando o parâmetro da diferença sexual apoiado
no falogocentrismo, no binarismo e na hierarquia dos corpos.
Em outras palavras, a leitura de que a diferença sexual se ancora na diferença biológica entre homem
e mulher atravessa a maioria das teorias sobre a constituição subjetiva. Porém, teorias como a psicanálise,
trazem problematizações a essa concepção, sendo que na obra de autores como Sigmund Freud e Jacques
Lacan localizamos questões importantes que questionam a organização subjetiva a partir das referências
do corpo e do inconsciente. Ou seja, na psicanálise, autores como os citados acima problematizam a leitura
da diferença sexual consoante a críticas às concepções hegemônicas de conhecimento e de subjetividade
modernas que organizam o mundo ocidental. Entretanto, é necessário reconhecer que, na extensa obra
que produziram, eles mantêm leituras complexas sobre a diferença sexual e, em alguns momentos,
utilizam-se de referências binárias e falologocentradas e, em outros, fazem críticas a essas referências.
Ainda, localizamos autores e autoras contemporâneos como a feminista e filósofa pós-estruturalista Judith
Butler (2019) e a psicanalista contemporânea Márcia Arán (2009), que problematizam as leituras da
psicanálise que remetem a subjetividade como atravessada pela diferença sexual e pelo falogocentrismo
que configuram o masculino e o feminino.
No presente artigo o objetivo é problematizar a leitura sobre a diferença sexual e questionar o
pressuposto falogocêntrico como referência à elaboração da subjetividade, bem como, o binarismo e a
hierarquia que ancoram o par masculino e feminino. Perguntamos sobre a recorrência ao falogocentrismo
como matriz universal utilizada para a elaboração de teorias sobre a subjetividade que sustentam o
binarismo e a hierarquia postos, de forma específica, no par masculino e feminino. Entendemos que a
manutenção da referência falogocentrada se associa a manutenção de específicas concepções sobre o
sujeito que ancoram relações de poder e o status quo na sociedade contemporânea. Também entendemos
que recorrer a leituras que possam criticar essas concepções e suas teorias correlatas podem contribuir
para com a modificação dessas relações de poder ampliando as leituras sobre a subjetividade e a diferença
sexual.
Para lidar com a proposta posta acima, o presente estudo configura uma pesquisa qualitativa e
descritiva do tipo análise documental. Selecionamos obras e autores(as) que analisam a constituição
subjetiva considerando a questão da diferença sexual, de forma específica, analisamos autores(as) que
trabalham com a referência psicanalítica e a referência feminista pós-estruturalista. As obras selecionadas
foram lidas e organizadas em referências temáticas sobre a diferença sexual, a hierarquia e o binarismo
vinculados às construções do masculino e do feminino, ocorrendo as comparações entre esses temas e a
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constituição subjetiva. O campo de análise do material se reporta à psicanálise, filosofia pós-estruturalista,


história, pois recorremos a teorias e conceitos psicanalíticos e pós-estruturalistas. Em outras palavras,
neste artigo, construído por meio de referências metodológicas qualitativas e teóricas, selecionamos e
analisamos obras de Freud e de Lacan a partir do viés da diferença sexual, bem como, selecionamos
e analisamos obras da filósofa pós-estruturalista Judith Butler e da psicanalista contemporânea Márcia
Arán, considerando as problematizações direcionadas aos primeiros autores.

Subjetividade, Falogocentrismo: Algumas Leituras Freudianas

O surgimento da psicanálise se dá no seio da Modernidade, momento em que o discurso da ciência


substitui o discurso teológico, e a subjetividade passa a ser entendida como constituída exclusivamente
pela razão ede forma plena pela consciência, como apresenta Chauí (1996). É a partir desses pressupostos
que a psicanálise se propõe a falar do subjetivo por meio do inconsciente, considerando o singular e
o universal, articulando com temas tocantes ao social. O modelo clássico de ciência, que é o modelo
hegemônico nas diversas áreas do conhecimento, apresenta uma concepção de sujeito e realidade calcados
no binarismo cartesiano e apoiado na lógica formal e causal (Peters, 2000). Em contrapartida a esse
modelo que ganhou hegemonia, outras estratégias de produção de conhecimento surgem numa tentativa
de romper, ou a menos mostrar, um novo modelo onde a concepção de subjetividade também diz respeito
ao sujeito marcado pelo inconsciente e a concepção de realidade também reconhece a singularidade e
importância da realidade psíquica (Chauí, 1996).
Recordamos as/os leitoras(es) que a teoria freudiana tem seu pilar estruturante na sexualidade e no
inconsciente, tema que não fica fora do mundo das crianças. Freud é disruptivo à medida que afirma que já
nascemos seres de sexualidade e que as crianças se interessam demasiadamente por esse tema. Portanto,
ao pensar na constituição subjetiva em Freud é também importante apresentar as pesquisas e teorias
sexuais das crianças. Aqui apresentaremos recortes de textos freudianos que consideramos fundamentais
para pensar a constituição subjetiva a partir das diferenças sexuais, são eles: Três ensaios sobre a teoria
da sexualidade (1905), Organização genital infantil (1923), A dissolução do Complexo de Édipo (1924)
e Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos (1925). Esses textos foram
escolhidos por acreditarmos que, dentro a extensa obra freudiana, eles ajudam a pensar a questão da
constituição psíquica a partir da diferença sexual, colaborando na busca e tentativa de trabalhar o objetivo
posto neste trabalho. A(o) leitora(or) perceberá que os textos foram organizados em ordem cronológica,
isso justifica-se devido à própria construção teórica freudiana que atualiza suas ideias ao longo dos anos.
O texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, é considerado por muitos críticos freudianos um texto
célebre e polêmico. Célebre por toda a novidade e densidade teórica do escrito e polêmico porque em
sua época na qual a moral religiosa imperava, falar da sexualidade humana (especialmente das crianças),
era/é um grande tabu. Neste artigo, recorremos ao segundo ensaio A sexualidade infantil, em que Freud
(1905/1989h) observa que a vida sexual das crianças se manifesta a partir dos três ou quatro anos e que
elas despertam para essa questão de forma espontânea, por causas internas.
Freud (1905/1989h) explora a questão da meta sexual na pulsão infantil que, segundo ele, é
direcionada no sentido de produzir satisfação da zona erógena e considera assim a busca de objetos
sexuais, que denominou de pulsões parciais. Assim, numa tentativa de demonstrar um retrato da vida
sexual infantil, o autor aponta a necessidade de pensar que já na infância há uma escolha de objeto, escolha
essa que será característica do desenvolvimento da puberdade, momento em que, na tentativa de atingir
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as metas da pulsão sexual, os empenhos se dirigem a uma só pessoa, assim, essa é a maior aproximação
da forma definitiva da vida sexual que surge logo na infância.
No texto Organização genital infantil, já não se dá satisfeito com a afirmação de que o primado dos
genitais não se realiza, ou o faz muito imperfeitamente, no período da primeira infância. A aproximação
da vida sexual infantil àquela dos adultos vai muito adiante, e não se limita ao surgimento da escolha
de objeto. Freud (1923/1989b) destaca que a principal característica dessa organização genital infantil
constitui, ao mesmo tempo, o que a diferencia da definitiva organização genital dos adultos, consiste
no fato de que para ambos os sexos, apenas um genital, o masculino, entra em consideração. Não há,
portanto, segundo o autor, uma primazia genital, mas uma primazia do falo, para ele, a ausência de pênis
é vista como resultado de uma castração, e o menino se acha ante a tarefa de lidar com a castração em
relação a ele próprio.
Freud (1923/1989b) considera importante perceber as mudanças que a criança experimenta ao longo
do desenvolvimento sexual, em que a polaridade sexual nos é familiar. Ele aponta que a primeira oposição
é introduzida com a escolha do objeto, que naturalmente pressupõe sujeito e objeto, mas no estágio da
organização pré-genital sádico-anal, não se pode ainda falar de masculino e feminino, pois prevalece a
oposição entre ativo e passivo. No estágio da organização genital infantil seguinte, há masculino, mas
não feminino; nesse momento, o autor aponta a existência de uma oposição binária: genital masculino
ou castrado, já que somente ao se completar o desenvolvimento, na época da puberdade, a polaridade
sexual coincide com masculino e feminino. Freud (1923/1989b) descreve muito bem o que compreende
como o par binário e oposicional da diferença sexual, explicando que “[...] o masculino reúne o sujeito,
a atividade e a posse do pênis, o feminino assume o objeto e a passividade” (p. 155).
No texto A dissolução do Complexo de Édipo, Freud (1924/1989a) ressalta a importância do
complexo de Édipo como fenômeno central do período sexual da infância. O autor acrescenta, em 1924,
que a organização genital fálica da criança sucumbe devido a essa ameaça de castração, pois o menino
não acredita nessa ameaça a princípio, mas ao se deparar com o genital feminino tem de admitir que há
falta do pênis, assim, ele explica que ao admitir a possibilidade de castração e perceber que a mulher
é castrada, o menino põe fim a possibilidade de obter satisfação do complexo de Édipo. Ele finaliza o
texto explicando que a menina aceita a castração como fato consumado, e o complexo de Édipo vai sendo
abandonado porque o desejo não se realiza.
O texto Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos, tem como
proposta fazer marcações em relação à diferença sexual numa tentativa de reeditar o Édipo, ou preencher
lacunas no que concerne ao Édipo na menina que, até então, Freud não havia elaborado. Ele já começa
esse texto explicando que era de maior interesse examinar as configurações psíquicas da vida sexual na
criança, “normalmente do sexo masculino” e que possivelmente na garota as coisas deveriam se passar
de modo semelhante, mas com algumas diferenças. A seguir apresentaremos essas diferenças.
A indagação freudiana sobre como a menina abandona o primeiro objeto (a mãe) e toma então o
pai como objeto, faz-lhe pensar que o complexo de Édipo da menina traz em si problemas a mais que
no garoto, já que inicialmente a mãe é tomada como objeto para ambos, menina e menino (e para este se
mantém no complexo edipiano). Freud (1925/1989c) aponta que há um contraste no comportamento de
meninas e meninos sobre a primeira vez que se vê a região genital do sexo oposto. Com o menino, ele se
mostra indeciso, desinteressado e numa postura de recusa, mas quando aparece a ameaça da castração,
então, isso toma outra proporção. Já com a menina, num primeiro instante ela faz sua observação e toma
sua decisão: “ela o viu, sabe que não o tem e quer tê-lo” (p. 281).

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Como já mencionado anteriormente, não é novidade verificar a teoria freudiana como apresentando
aspectos binários, hierárquicos e falogocentrados, o que fica evidente ao percebermos os escritos nos
textos citados acima. Em sua explicação sobre a diferença sexual durante a organização genital, nota-
se que essa organização é desde sempre binária: ausência ou presença de falo, posição passiva e ativa,
masculino e feminino. Com essa análise, o objetivo não é atribuir um “erro” ou um descrédito à teoria
freudiana, cabe lembrar que esses textos, mesmo que sejam considerados à frente do tempo em que foram
escritos, ainda carregam muitos valores morais desse tempo. Freud faz um exercício de descrever como os
papéis sociais daquele tempo eram extremamente marcados e que, culturalmente já havia uma valorização
do masculino sobre o feminino. O que chama a atenção na análise dos textos acima, é que o autor aponta
como a diferença sexual é importante no desenvolvimento subjetivo, como essa diferença é binária e
hierárquica e como, desde muito cedo, sujeitos são inseridos nessa lógica.
Entretanto, cabe destacar que os últimos textos freudianos apresentam alterações que nos
possibilitam aberturas e críticas em torno da anatomia como destino à constituição e aos caminhos da
sexualidade. “Aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida
que foge do alcance da anatomia” (Freud, 1933/1989e, p.115). A masculinidade e a feminilidade
são construções ao longo do desenvolvimento da sexualidade. Freud solicita a seus ouvintes “[...]
familiarizarem-se com a ideia de que a proporção em que masculino e feminino se misturam num
indivíduo, está sujeita a flutuações muito amplas” (p. 115).
Freud, ao questionar a naturalização do sexo, gênero, masculino, feminino, ativo, passivo,
desconstrói cristalizações em relação aos conceitos da feminilidade e masculinidade. Dessa forma,
possibilita uma revisão de sua obra e a descoberta de novos e outros caminhos para se pensar a
sexualidade.O autor não desconsiderou a necessidade de realizar uma releitura da feminilidade e
masculinidade, porém, oscila em seus manuscritos ao sustentar que a teoria psicanalítica não é capaz de
responder todos os questionamentos em torno da sexualidade feminina, não apresentando conceitos e
hipóteses precisas sobre a constituição e o desenvolvimento da sexualidade e, ao mesmo tempo, propõe
aberturas e diálogos sobre a temática.

Subjetividade, Falogocentrismo: Algumas Leituras Lacanianas

Jacques Lacan (1901-1981), médico e influente psicanalista francês nos ajuda a pensar sobre a
questão da constituição subjetiva e a diferença sexual. Problematizaremos as concepções lacanianas que,
ao tratarem da diferença sexual, insistem na lógica binária e falogocentrada.
Em Valor de significação do falo, Lacan (1957/1985) começa o texto fazendo uma articulação entre
desejo, demanda, gozo e significante. Partindo da leitura freudiana, afirma que o desejo não é um efeito
colateral, mas sim que está localizado numa relação com a cadeia significante, que se instaura e se propõe
inicialmente na evolução do sujeito humano como demanda. Essa demanda está sempre ligada ao outro,
pois é o significante da criança desejada que constitui o sujeito em seu ser, é aí que se constitui o ideal do
eu, que marca todo o desenvolvimento psicológico de um sujeito. Ou seja, de acordo com a orientação
lacaniana, é somente a partir do desejo do Outro que podemos falar em sujeito.
Sobre a função constitutiva do desejo, é importante atentar para o fato de que aquilo que se estrutura
do sujeito passa sempre pela intermediação do mecanismo que faz com que seu desejo já seja, como tal,
moldado pelas condições da demanda. Lacan (1957/1985) sugere, então, que o que vai sendo inscrito,

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conforme a história do sujeito, em sua estrutura, são as peripécias da constituição desse desejo, na medida
em que ele está submetido à lei do desejo do Outro. Nessa articulação, poderíamos pensar não só na
questão da constituição subjetiva atrelada ao Outro, mas em tudo o que esse Outro deseja para uma
criança, desde sua orientação sexual (direcionada para a heteronorma), seu comportamento, suas escolhas
e o seu brincar. Aliás, o objeto-brinquedo já vem com uma demanda (do Outro) intrínseca.
No Seminário 5, o falo também é lido a partir de uma função constitutiva, visto que é na dialética
da introdução do sujeito em sua existência pura e em sua posição sexual que podemos deduzir o
estabelecimento do falo como o significante fundamental, pelo qual o desejo do sujeito tem que se fazer
reconhecer como tal, quer se trate do homem, quer se trate da mulher (Lacan, 1957-1958/1985). Aqui
é importante nos atentarmos para o fato de que sustentamos que a teoria psicanalítica é falogocentrada
justamente por estabelecer o falo como estruturante da constituição subjetiva, que também é binária, já
que Lacan estabelece ‘homem’ e ‘mulher’ como as saídas possíveis ao desejo do sujeito.
De acordo com Lacan (1957-1958/1985), o desejo, seja ele qual for, tem no sujeito essa referência
fálica. É o desejo do sujeito, mas na medida em que o próprio sujeito recebeu sua significação, ele tem que
extrair seu poder de sujeito de um signo, e esse signo ele só obtém ao se mutilar de alguma coisa, por cuja
falta tudo o mais será valorizado. Daí vem à máxima lacaniana: “O falo intervém como significante” (p.
290), e, mais adiante, percebemos que, na condição de significante, é sempre significante do desejo do
Outro.
Mais uma vez, mesmo tendo elaborado sua teoria anos após Freud e numa sociedade que possuía
um pouco mais de abertura para discutir questões sobre a diferença sexual e de gênero, ainda assim Lacan
insiste na lógica falogocentrada, a constituição subjetiva a partir da ausência ou presença do falo (mesmo
que o autor diga que o falo é significante, não é bem isso que se evidencia nos textos abaixo).
Fica claro, quando se observa as crianças, que elas exigem tudo (exigência impossível de satisfazer,
logo, ao dar de cara com o impossível, vão entrando numa posição que Lacan denomina como mais
‘normatizadora’). É nessa dialética de entrada no sistema significante que Lacan aponta que não há
nenhum outro desejo que a criança dependa mais do que o desejo da mulher, na medida em que ele é
significado exatamente por aquilo que lhe falta.
É ao ser objeto exclusivo do desejo da mãe que se instaura uma barreira à satisfação do desejo
da criança. Na constituição subjetiva, essa relação sempre retorna, seja como redução, seja como
identificação dessa tríade. Assim, Lacan (1957-1958/1985) nos aponta que é à medida que a criança
não renuncia a seu objeto que seu desejo não consegue se satisfazer. O desejo só consegue satisfação
sob a condição de fazer uma renúncia parcial (tem de se tornar demanda), ou seja, desejo significado, e
significado pela existência e pela intervenção do significante, ou seja, em parte, desejo alienado.
Lacan (1957-1958/1985) ensina que o caráter problemático deste significante particular, o falo,
é que é apenas por intermédio de uma certa posição, assumida em relação ao falo (na mulher, como
carente dele; e no homem, como ameaçado), que se realiza, necessariamente, aquilo que se apresenta
como devendo ser o desfecho mais feliz. Aqui, ao falar sobre constituição subjetiva, percebemos o quanto
Lacan valoriza o falo como estruturante e como responsabiliza o Outro por desejar pela criança (que ainda
não é capaz de fazer isso por si só), e aí constatamos, mais uma vez, uma questão binária e hierárquica,
que diz respeito ao falo “mulher carente, homem ameaçado” – a ideia da inveja do falo perdura de Freud
a Lacan.
No texto De um e outro sexos, Lacan (1972/1999, p. 13) disserta sobre a diferença sexual,
enfatizando a piori que “[...] a pequena diferença já é destacada desde muito cedo como órgão”. Para

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ele, essa diferença é inata e natural, pois “[...] os sexos parecem dividir-se em dois números mais ou
menos iguais de indivíduos. Bem cedo, mais cedo do que se espera, esses indivíduos se distinguem, isso
é certo” (p. 15). Dessa forma, Lacan reforça a ideia freudiana de que “anatomia é destino” e pontua que
serão exatamente assim mais tarde: “homem” e “mulher”. Nesse mesmo texto, no entanto, o autor aponta
que o que faz a diferença é o órgão, explicando que a diferença passa enganosamente para o real por
intermédio do órgão, e que, logo, o órgão também é um significante. O desenvolvimento dessa ideia é
um tanto complexo e confuso; parece, por vezes, não haver consistência teórica por parte do autor, pois
há momentos em que ele reforça que a diferença importa, que ela é percebida através de um órgão, mas
um órgão é apenas um significante. Ao fim do texto, Lacan (1972/1999) aponta que não importa chamar
de ‘x’ ou ‘y’, ‘homem’ ou ‘mulher’, mas sim como nos distinguimos um do outro. Ou seja, ele coloca
em evidência a diferença, como algo a ser marcado e distinguido.
No seminário O homem e a mulher, apresentado no livro 18, Lacan (1971/2009) dá continuidade
à questão da diferença sexual e descreve a identidade de gênero a partir da perspectiva “parecer homem
e parecer mulher”. Ele inicia apontando que não é preciso esperar pela fase fálica para diferenciar
uma menina de um menino, pois, desde muito antes, já não são iguais. Lacan continua seu seminário
explicando que, para o menino, trata-se de, na fase adulta, parecer homem, e que é sobre isso que podemos
interrogar o comportamento infantil: a criança orientando-se para esse “parecer-homem”. O autor explica
que “[...] a identificação sexual não consiste em alguém se acreditar homem ou mulher, mas em levar em
conta que existem mulheres para o menino, e existem homens para a menina” (p. 33).
A partir da leitura desses textos, percebemos que Lacan trabalha com a diferença sexual a partir
de referências binárias e falogocentradas, bem como explica a constituição subjetiva por meio de
um desejo do Outro. Lacan tem evidentemente como referência sexual a mulher e o homem, e nada
mais para além dessas possibilidades; a sua referência de constituição subjetiva é, portanto, calcada na
heteronorma. De fato, hegemonicamente é, dessa forma, que vemos na sociedade moderna ocidental,
parece haver na estrutura social apenas duas formas de existência: homem ou mulher, e isso fica bem
marcado desde a tenra idade, desde a descoberta do sexo de um bebê. Porém, perguntamo-nos se
Freud e Lacan não deixaram escapar dois pontos importantes: a) universalização e singularização e a
b) subversão. Explicamo-nos: universalização e singularização porque, em várias passagens dos textos,
parece existir um aspecto universalizante na explicação da constituição subjetiva; em alguns momentos,
parece difícil pensar na singularização, no ‘um a um’, que é tão caro à psicanálise contemporânea. Já
em outras passagens, parece de fato não haver possibilidade para pensar gênero, sexualidade e desejo
para além da matriz heterossexual. E sobre um aspecto subversivo, que também é tão importante para o
pensamento psicanalítico, em nossa leitura e análise desses textos, achamos difícil de encontrá-la. Lacan,
que desenvolveu seu pensamento numa sociedade intelectual francesa que já vinha há algum tempo
debatendo e pensando questões feministas, de gênero e sexualidade, não utiliza conceitos psicanalíticos
favoráveis a essa discussão para estar à frente de seu tempo, por outro lado, um caráter conservador sobre
a diferença sexual aparece com maior intensidade.
Ao longo da leitura desses textos, deparamo-nos com contradições, ambiguidades e algumas
questões paradoxais. As noções binárias (‘falo versus não falo’) e hierárquicas (entre quem tem e quem
não tem o falo) estão presentes em todos os textos selecionados, de forma que podemos concluir que
a psicanálise (freudiana e lacaniana) teorizou sobre o comportamento hegemônico ocidental, tendo
inúmeras possibilidades para articular de outro modo que não por meio dessa rede, mas, por razões
impossíveis de se apreender, não o fizeram.

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Entendemos que atualmente existem psicanalistas e teóricas feministas pós-estruturalistas que


produzem críticas à matriz psicanalítica freudiana e lacaniana acerca da diferença sexual e da constituição
subjetiva. Pensamos em psicanalistas contemporâneos como Márcia Arán e Joel Birman e na filósofa
pós-estruturalista Judith Butler. Realizamos a seguir uma articulação sobre esses temas, a potencialidade
e possibilidade do repensar a diferença sexual como ato disruptivo e como possível deslocamento para
pensar a constituição subjetiva na atualidade.

Psicanálise e feminismo pós-estruturalista: para além do falogocentrismo

A humanidade sempre contou com a diferença no entendimento do que significa “ser homem” e
“ser mulher”, por exemplo, quando se vivia em comunidades/tribos, os homens por se sentirem mais
fortes e viris direcionavam sua responsabilidade para a caça, as mulheres consideradas mais frágeis
tinham a tarefa de cuidar do plantio e das crianças. Nos séculos seguintes, não houve muitas mudanças
significativas, a dicotomia entre público e privado permaneceu reinando. Homens usufruíam da vida
pública com os direitos ao trabalho, estudo, voto, sendo os provedores do lar, já às mulheres lhes restava a
vida privada, o cuidado com o lar, a educação dos filhos, o bem-estar e a submissão ao marido, consistindo
assim no que denominamos família patriarcal. Ser homem era o modelo ideal de corpo e funções sociais,
era considerado um ser superior, o que fosse diferente do sexo masculino, era inferior, “um defeito da
sociedade”, por assim dizer.
Uma das autoras, referência nacional que trabalha acerca do tema da subjetividade e diferença
sexual é Márcia Arán, que em seus textos problematiza esses temas na teoria psicanalítica, especialmente
lacaniana, e para tal, recorre a autores como Butler e Foucault. Em suma, a autora propõe considerar
a historicidade da diferença dos sexos e, admitir que há um conflito entre os sexos e também novas
possibilidades. A concepção de subjetivação apresentada por Arán (2003, p. 407) é que essa é uma “forma
de singularização no universo da alteridade, universo de valores compartilhados que se constitui pela
práxis da experiência cotidiana, pela forma de ser com o outro”, assim percebemos que esse conceito
impacta para a construção de uma concepção de sujeito da autora, tal como um fio condutor, exprime
também como ela pensa uma organização social que, segundo ela, é construída a partir de oposições
binárias e hierárquicas.
Essa modalidade de organização social, segundo Arán e Peixoto Júnior (2007), pressupõe uma
naturalização de sistemas normativos que exclui possibilidades subjetivas, já que essa normatividade
opera de forma imanente às práticas históricas e sociais, produzindo efeitos no campo subjetivo. Ela
concorda com Butler (2019) ao reforçar que as regras que governam a identidade inteligível são
parcialmente estruturadas a partir de uma matriz que estabelece a um só tempo uma hierarquia entre
masculino e feminino e uma heterossexualidade compulsória. Arán (2003) resgata Héritier (1997) para
pensar o sistema binário e hierárquico na diferença sexual, Héritier considera que a própria estrutura do
pensamento é construída a partir de um sistema hierárquico de categorias binárias, esses dualismos estão
impregnados tanto no sistema de pensamento como nas organizações sociais.
Arán (2009) considera que a questão da sexualidade e da diferença sexual é a que mais sofreu
modificações ao longo da obra e teoria freudiana. Ela pontua que, desde Freud, a teoria psicanalítica oscila
entre descrever a sexualidade feminina (dialética: ter ou não-ter o pênis-falo), de forma que a mulher
só pode ser pensada como um sujeito marcado pela inferioridade, e ainda, a suposição de que a mulher
não existe.
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Segundo Arán e Peixoto Júnior (2007), repensar o sexual na psicanálise é uma tarefa teórica da
maior importância, é uma necessidade ética e política, pois, embora a sexualidade esteja relacionada ao
conceito de inconsciente e pulsão, essa precisa ser uma formulação histórica e contigente, ou seja, para
considerar a atualidade da psicanálise, os autores colocam que é preciso levar em conta as mudanças
ocorridas no território da sexualidade nos últimos anos (ex: escolarização das mulheres, mulher no
mercado de trabalho, etc.), uma vez que todos esses fenômenos provocaram deslocamentos importantes
nas referências simbólicas da sociedade moderna, “deslocamento das fronteiras entre homem (público) e
mulher (privado), configurando um novo território para pensar a diferença sexual” (Arán, 2009, p.655).
Arán e Peixoto Júnior (2007) pontuam que a teoria psicanalítica, principalmente a lacaniana, é
centrada na primazia do simbólico, do Édipo e da castração e que, com isso, o entendimento do processo
de subjetivação tem se restringido a dicotomias opositivas binárias que, segundo eles, são “fundadas
no poder coercitivo dos referentes com sua pretensão de universalidade” (Arán & Peixoto Júnior, 2007,
p.131).
Arán (2009) demarca bem que a teoria psicanalítica reproduz o modelo binário da diferença sexual
construído nos séculos XVIII e XIX. Essas críticas levantadas por ela são muito consistentes, pois além
de evidenciar furos na teoria psicanalítica, permite pensar a possibilidade de um arranjo histórico e
contingente, que provocaria um deslocamento da concepção normativa da dualidade “mulher (natureza)/
homem (cultura)” (p.658).
Arán (2009), demonstra que a concepção de universal está atrelada ao falo, na teoria psicanalítica,
a dissimetria entre os sexos é evidenciada no fato de que o lado feminino é o “não-todo”, sustentado pelo
pressuposto de que “a mulher não existe”, a autora demarca que essa concepção está também atrelada ao
modo masculino de ver as coisas, “pois se trata, antes de tudo, de proporcionar ao sujeito do inconsciente,
descrito como sendo necessariamente masculino, um acesso ao gozo” (p.661).
Lacan utiliza os significantes ‘homem’ e ‘mulher’ em seus seminários, Arán (2009) problematiza
essa construção lacaniana das fórmulas da sexuação, já que vários psicanalistas argumentam que
masculino e feminino não correspondem necessariamente ao que se define homem ou mulher, dessa
forma, a teoria lacaniana sustenta que qualquer sujeito de linguagem pode se inscrever de um ou de outro
lado da fórmula da sexuação, mas a autora intervém questionando: “por que cabe às mulheres o lugar do
“não-todo”, já que apenas se trata de um affaire lógico?” (p.661).
Diante disso, podemos perceber que a construção de Arán (2009) até aqui critica um modelo
tradicional, historicamente construído nos séculos XVIII e XIX que, segundo ela, é um modelo da
hierarquia entre masculino e feminino e o da exclusão da homossexualidade. Ela problematiza como
a teoria psicanalítica mantém uma lógica falogocentrada reproduzindo o modelo binário e hierárquico
da diferença sexual, que caracteriza uma matriz binária compulsória marcada pelas oposições feminino/
masculino, sexo/gênero, natureza/cultura, heterossexualidade/homossexualidade. A autora também
aponta para a necessidade da teoria psicanalítica pensar como cada sujeito vive a diferença para além
das definições da heteronormatividade, bem como a necessidade da psicanálise estabelecer uma relação
produtiva com as novas formas de construção de gêneros na cultura contemporânea, o que não é tarefa
fácil para a psicanálise, que precisará sucumbir à lei simbólica (Arán, 2009).
Freud inscreveu sua obra no campo do paradigma moderno, trabalhando com leituras diferenciadas
no decorrer do seu percurso profissional. Inicialmente, o autor adotou a referência falogocentrada e
mesmo a referência que dissocia sexo e gênero no campo do material biológico e do simbólico. Porém,
no final da sua obra, ele enuncia e apresenta o discurso sobre a feminilidade e se desloca para o campo da

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subjetividade apontando uma origem comum à constituição do que se denomina masculino e feminino.
Assim, em dado momento, o autor incide suas análises na condição do masoquismo presente na mulher
e o associa à maternidade, bem como, às condições sociais e econômicas da época (Freud, 1908/1989f).
Logo, a saída perante a diferença sexual para as mulheres incidiria sobre a melancolia ou sobre a histeria,
sendo que esse discurso se altera quando o autor faz a famosa pergunta sobre o que quer uma mulher?
Nesse momento, o autor abandona a referência exclusiva restrita ao falogocentrismo que apontava a
sexualidade feminina como associada ao falo, tendo a mulher que encontrar seu caminho abandonando
o falo ou procurando substituí-lo pela maternidade (Freud, 1925/1989c).
Entretanto, a partir da obra Análise com fim e análise sem fim, Freud (1937/1989d) reverte sua teoria
e passa a considerar a feminilidade como o ponto de partida para a elaboração psíquica tanto do masculino
quanto do feminino. Conforme essa nova teoria, a feminilidade entendida como terreno da angústia e
mesmo do horror seria o solo por meio do qual cada pessoa teria que se haver para elaborar seu psiquismo
a partir da lógica do falo. Porém, podemos entender que apesar dessa mudança, ainda permanece em cena
a lógica do binarismo, ainda que sem a primazia do fálico como fundante e da diferença sexual apoiada
exclusivamente no corpo masculino.
Supomos que com as novas condições da mulher, forjadas pelo movimento feminista desde os
anos 60 e 70 – em que as mulheres saíram definitivamente do espartilho da maternidade e buscaram
novas formas sociais de ser além da restrita condição materna –, o segundo discurso freudiano sobre a
feminilidade é mais adequado aos novos ares do tempo. Podemos dizer ainda que o discurso freudiano,
na sua segunda versão teórica sobre a relação entre os gêneros, foi um prenúncio do esgotamento ético,
político e teórico do paradigma moderno, assim como uma formulação incisiva em direção de outra leitura
pós-moderna sobre a relação entre os gêneros. Enfim, essa reviravolta teórica apenas se deu quando Freud
foi tomado inteiramente pela perplexidade diante da formulação: o que querem as mulheres, afinal das
contas?
Judith Butler (2019) pode trazer contribuições ao entendimento do binarismo, hierarquia e noção
de gênero. Ela parte da descrição freudiana de identificação e identidade sexual para interrogar o que
ela chama de matriz heterossexual que está na base da nossa cultura ocidental. Em Problemas de
Gênero, a autora busca desconstruir categorias identificatórias como gênero, sexualidade, corpo, desejo,
heterossexual, homossexual, neste modelo epistêmico hegemônico de inteligibilidade de gênero. Para
Butler, apesar das imposições e das normas binárias que dissociam corpos e desejos em pares opostos para
as pessoas, elas são constituídas de várias maneiras além das matrizes do heterossexual e homossexual,
do masculino e do feminino. A hipótese de um sistema binário dos gêneros encerra implicitamente a
crença numa relação mimética entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo.
Segundo Butler (2019), a matriz cultural por meio da qual a identidade de gênero se torna inteligível
exige que certos tipos de “identidade” não possam “existir”, isto é, aqueles em que o gênero não decorre
do sexo e aqueles em que a prática do desejo não decorrem nem do “sexo” nem do “gênero” (p. 44).
Afinada a alguns pressupostos do pós-estruturalismo, Butler (2019) apresenta e dialoga, em sua obra, com
Michel Foucault que afirma que a gramática substantiva do sexo impõe uma relação binária artificial entre
os sexos, bem como uma coerência interna artificial em cada termo desse sistema binário. “A regulação
binária da sexualidade suprime a multiplicidade subversiva de uma sexualidade que rompe as hegemonias
heterossexual, reprodutiva e médico-jurídica” (Butler, 2019, p.47).
Consideramos importante apresentar a crítica de Butler (2019) à noção de metafísica da substância
que acompanha a tradição filosófica ocidental, segundo a qual cada indivíduo apresenta uma essência
de “ser”, assim, afirmações como “ser mulher” ou “ser homem”, são vistas como problemáticas para
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Butler, pois essas afirmações tendem a subordinar a noção de gênero àquela de identidade, e a levar à
conclusão de que uma pessoa é um gênero ou o é em virtude do seu sexo, de seu sentimento psíquico
do eu, e do desejo sexual.
Butler (2019) também fala da heterossexualidade compulsória ou heterossexualidade institucional
que, segundo ela, “exige e produz a um só tempo, a univocidade de cada um dos termos marcados pelo
gênero que constituem o limite das possibilidades de gênero no interior do sistema de gênero binário
oposicional” (p.52). Entendemos que, a crítica da autora à hegemonia da heterossexualidade, ou à nossa
inteligibilidade binária de gênero, sustenta o que seria a principal ideia de “Problemas de Gênero”:
a performatividade. Para ela, o “gênero mostra ser performativo no interior do discurso herdado da
metafísica da substância, isto é, constituinte da identidade que supostamente é”, bem como, “não há
identidade de gênero por trás das expressões do gênero, essa identidade é performativamente constituída,
pelas próprias ‘expressões’ tidas como seus resultados” (p. 56).
Butler (2019), apoiada no filósofo pós-estruturalista Jacques Derrida (1992; 2001), encontra
suporte no conceito de falogocentrismo para entender as experiências dos sujeitos. Conforme vimos no
início deste artigo, com a referência ao falogocentrismo, Derrida procura enfatizar e problematizar a
predominância de uma determinada maneira de organização do conhecimento e da rede social que gira
em torno do falo e do logos.
Derrida (2004) entende que o binarismo acompanha a rede de poder que predomina nas sociedades
ocidentais e reforça essa rede através da linguagem que atribui específicos sentidos e valores às pessoas
e aos objetos que compõem a realidade. Para o autor, quando são elaborados os pares de opostos e é
atribuído um específico sentido a eles e, ainda, quando se divulga a ideia de que esse sentido é verdadeiro,
é possível encontrar operando um trabalho de hierarquia e de poder. Como exemplo, o conceito de
masculino estabelece o feminino como seu oposto e, ainda, o masculino é vinculado ao racional, ao
completo, à cultura, e o feminino ao afeto, ao incompleto, à natureza. Reiterando o que escrevemos
no início deste artigo, o movimento que predomina na sociedade ocidental recebe a denominação de
falogocentrismo, pressupondo o falo e a razão como o ponto de referência a partir do qual ocorreria
toda modalidade de subjetivação e a produção do masculino e do feminino. “Os binarismos configuram
referências que operam como disjunção, ou seja, como dissociação, e implicam em lugares, pares de
oposições ocupados em relações hierárquicas e de podero” (Derrida & Roudinesco, 2004, p. 55).
Para Derrida (2004), o pensamento metafísico tradicional, por ele chamado de logocêntrico, jamais
se desvinculou de uma abordagem que identifica pares de oposições – razão e sensação, espírito e matéria,
identidade e diferença, lógica e retórica, masculino e feminino, etc., mas, sobretudo, fala e escrita –,
estabelecendo a primazia dos primeiros sobre os segundos termos da oposição. A hierarquização das
relações opositivas nos remete a uma categoria fundamental, a presença, a partir da qual podemos explicar
a realidade em geral.
Portanto, consideramos fundamental questionar como o falogocentrismo adentra as teorias da
diferença sexual. Para isso, foi necessário resgatar autoras(es) que trabalham com a questão da
constituição subjetiva e com a questão das diferenças sexuais. Também salientamos que entendemos
as teorias sobre a diferença sexual articuladas histórica e culturalmente, no sentido de que essas teorias
se associam a questões sobre o subjetivar e o conhecer hegemônicas na rede social moderna. Porém,
a organização subjetiva não se encontra totalmente capturada pelas condições sociais, econômicas e
culturais, hegemônicas, já que elas vão além dos pressupostos do conhecer como o sujeito da razão e da
cognoscência, além da lógica formal e do cálculo matemático. Assim, a diferença sexual vai além dos
pressupostos vinculados ao binarismo, a hierarquia e ao essencialismo remetidos ao corpo biológico. A
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constituição subjetiva envolve o inesperado, o acaso, o disruptivo, o descontínuo, pois não se consegue
calcular o efeito, o resultado de uma subjetividade. Em outras palavras, entendemos que a subjetividade
tem essa potência para subverter, ela tanto é sujeitada às normas, quanto escapa às normas, não seguindo
exclusivamente a lógica formal, linear e temporal (Foucault, 1984; 1985; 1988; 1996).

Algumas análises finais

É importante considerar que, desde Freud, a teoria psicanalítica passou por transformações.
Acompanhar o movimento da história da psicanálise pode permitir aberturas de diálogos e releituras
capazes de desconstruir uma lógica de manutenção do falogocentrismo.
Se acima apontamos as dificuldades psicanalíticas acerca de algumas questões com o
falogocentrismo, hoje podemos presenciar uma psicanálise que se organiza com mais sentido teórico, para
estar à altura de seu tempo. No cenário contemporâneo, inúmeros psicanalistas dedicam-se a trabalhar
com a questão da diferença sexual em psicanálise, dentre os quais localizamos Mrech (2019), que defende
a necessidade de cuidados ao pensarmos na psicanálise na atualidade, oferecendo uma atualização do
pensamento psicanalítico.
Para a autora, a psicanálise revelou que a diferença sexual não é uma diferença meramente
anatômica; com Freud, ela aponta que a diferenciação sexual não decorre apenas de conteúdos sociais
e individuais, mas também de um longo processo de elaboração. Não obstante, é inegável que em
alguns aspectos as teorias sobre a constituição psíquica, tanto em Freud, quanto em Lacan, acompanham
referências falogocentradas e heteronormativas, referências binárias e hierárquicas, que acompanham as
questões da diferença sexual. No geral, os profissionais da psicanálise contemporâneos tendem a criticar
esses aspectos falogocentrados presentes nas matrizes da psicanálise, e estão atentos as leituras feministas
pós-estruturalistas que criticam os discursos e práticas presentes na rede social ocidental que adotam de
forma hegemônica esses pressupostos normativos.
A partir de uma releitura da teoria psicanalítica freudiana e lacaniana, apostamos em uma
sexualidade entendida no plural, nas singularidades e no caso a caso, assim como na aproximação com
outros e novos saberes que problematizem as leituras sobre a diferença sexual. Apesar das resistências,
encontramos psicanalistas envolvidos no debate e na desconstrução da naturalização do gênero e da
sexualidade. As questões da constituição da sexualidade implicam a psicanálise na problematização de
discussões trazidas pelas leituras feministas e na pluralidade da sexualidade. Dessa forma, o “faz-de-
conta” de uma brincadeira de criança relembra a diversidade de caminhos e de possibilidades da nossa
constituição e da nossa sexualidade, bem como, aponta à importância de desfazer a cristalização teórica
falogocentrada que ainda resiste em alguns setores da teoria psicanalítica. Assim, a importância de
oferecer escuta às leituras feministas e às leituras de psicanalistas contemporâneos que podem contribuir
com a compreensão sobre a subjetividade e a diferença considerando a plasticidade e diversidade das
suas expressões.

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Recepção: 02-11-2021
Aprovação: 04-04-2022

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