NUNES Questões Metodologicas em Guerra e Paz
NUNES Questões Metodologicas em Guerra e Paz
NUNES Questões Metodologicas em Guerra e Paz
1. Este artigo tem como base uma comunicação apresentada no 37º Encontro Anual da Anpocs, em ou-
tubro de 2013, no st-20 (Teoria social no limite: novas frentes/fronteiras na teoria social contemporâ-
nea). O texto foi adaptado e reformulado levando em conta as considerações feitas pelos debatedores e
colegas presentes.
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sobre A lógica das ciências morais (1999), em que propunha a pesquisa empírica da
vontade humana livre da causalidade necessária que impera no mundo natural, fazen-
do uso da história, da psicologia e da “etologia”, uma ciência ainda a ser constituída,
cujo objeto seria a educação em sentido mais amplo, abarcando desde a formação do
caráter social, coletivo, até a formação do caráter individual.
Provavelmente autores como Windelband, Dilthey ou Stuart Mill não fizeram
parte da formação de Tolstói, ainda que tenha lido David Hume, um dos pioneiros
da moderna discussão epistemológica da causalidade, e alguns iluministas, como
Rousseau e Montesquieu, antes de escrever o romance, conforme indicam seus
Diários de juventude (Tolstói, 1917). No entanto, a análise de suas considerações
epistemológicas em Guerra e paz evidencia que o autor russo já identificava os
principais elementos da discussão sobre a história como ciência e sua relação com
outras áreas de conhecimento, bem como antecipava algumas questões teóricas que
só viriam a ser discutidas metodologicamente em meados do século xx.
Embora as considerações filosóficas sobre a história e as ações ou os “movimentos
dos homens” orientados no tempo sejam predominantes no primeiro capítulo dos
volumes iii e iv e no epílogo, na primeira metade da obra, referente aos anos de 1805 e
1806, há diversas passagens que denotam uma concepção mecanicista da causalidade,
ainda que não expressa de forma objetiva ou rigorosa. Os fatores apontados como cau-
sas são fatos físicos e observáveis, mas também estados de alma (afecções, motivos etc.):
É importante notar que as causas, mesmo que sejam estados mentais, estão
sempre associadas a ações, e estas são observáveis e geram transformações no
ambiente, ou em ações relacionadas com outros sujeitos, ou ainda em situações e
interações. No entanto, há um trecho, no final do primeiro volume, que merece
ser reproduzido na íntegra, pois antecipa, por meio de metáforas, a argumentação
crítica de Tolstói à história como ciência:
2. Todas as citações de Guerra e paz são extraídas da edição brasileira publicada em 2012, com tradução
de Rubens Figueiredo, a partir do original russo. Decidiu-se referendar a obra designando o livro (ou
parte), seguida do capítulo, em algarismos romanos. Assim, por exemplo, “12-xvii” remete ao capítulo
xvii do livro 12.
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A eficácia das ações desempenhadas com base nessas ordens depende, entretanto,
de variáveis subjetivas, como empenho, ambição pela carreira, sentimento pátrio,
motivações pessoais etc. e até de móveis contingenciais, como estado de ânimo e
condições de saúde, além de fatores físico-geográficos ou condições operacionais
que podem acelerar ou dificultar a transmissão e a recepção das mensagens. No
entanto, nessa passagem a ênfase é na sucessividade e na dispersão das mensagens
derivadas da ordem até a “massa” de soldados que, em vozerio comparado a um
“zunido”, responde ao comando e se põe em movimento.
Tolstói emprega aqui, e em diversas outras passagens de Guerra e paz, a metáfora
da sociedade ou do grupo social como um “enxame” de abelhas ou como um “for-
migueiro”. Esse tipo de metáfora certamente não remete a uma ontologia do social,
mesmo porque tradicionalmente é empregada em contraposição a concepções da
natureza humana ancoradas em atributos como consciência, vontade, racionalidade
ou trabalho. O narrador parece dirigir-se a uma relação entre uma ação coletiva,
que conduz a um resultado como a vitória ou a derrota num conflito, e as ações
individuais nesse processo, mais ou menos orientadas pela ordem de comando. Por
outra perspectiva, ilustra a dificuldade de explicarmos o resultado dessa ação coletiva
caso pretendamos identificar como causa o comportamento individual do soldado.
A metáfora do comportamento social comparado com formas de comportamento e
produção coletiva em animais organizados em colmeias, ou formigueiros, pode ser
estendida a outras situações em que se torna praticamente impossível chegar a um
agregado racionalmente representativo de decisões individuais, muitas vezes tomadas
com base em motivações contingenciais, no limite, irracional ou inconscientemente
efetivadas. A movimentação caótica dos soldados numa batalha é comparada ao
frenesi desordenado das trajetórias das formigas quando o formigueiro é abalado por
um desastre casual (10-iv, p. 1463). Porém, em situações de convivência normais,
essas formas de organização coletiva são estáveis e produzem inclusive a própria
estrutura material que permite uma certa segmentação de funções e atividades entre
os seres componentes. O abandono de Moscou por seus habitantes, na investida
napoleônica de 1812, é analogicamente representado no abandono de uma colmeia
pelas abelhas: “Estava vazia assim como fica vazia uma colmeia moribunda sem sua
rainha” (11-xx, p. 1811).
O ambiente em instituições militares é prototípico desse tipo de “vida em colmeia”
a que Tolstói diversas vezes se refere no romance. Entretanto, a metáfora do relógio,
explorada nos três parágrafos seguintes, tem extensões analógicas não somente ao
domínio do tempo, mas a explicações de tipo causal. Sua experiência em fronts de
guerra e com a vida no campo pode ter inspirado a composição da primeira metáfora.
Já a segunda tem como base não somente o mundo visível, em que formas de vida são
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nativa de história que propôs não estivesse, segundo aqui se considera, propriamente
adequada a um papel normativo ou a subsidiar regras metodológicas a historiadores
de ofício. Contudo, os insights e esboços de uma filosofia da história que produziu em
Guerra e paz, se avaliados tendo como suporte um instrumental teórico metodológico
contemporâneo, podem conduzir a um diagnóstico menos severo.
No início do volume iii, livro 9, o narrador especula sobre as causas da guerra
franco-russa, a partir do momento em que as tropas da Europa Ocidental atraves-
saram as fronteiras da Rússia, em 12 de junho de 1811. Apresenta algumas causas
atribuídas à guerra por historiadores em meados do século xix, como a afronta
imposta ao duque de Oldenburg, a ambição de Napoleão, a tenacidade de Alexandre
i, os erros dos diplomatas etc. A seguir justifica cada uma das hipóteses causais em
relação a interesses individuais ou de grupo, empregando uma mesma expressão,
primeiramente dirigida a uma categoria genérica e depois repetida substituindo essa
categoria por um exemplo específico: “É compreensível que a questão se apresentasse
assim para os contemporâneos. É compreensível que Napoleão achasse que a causa
da guerra eram as intrigas da Inglaterra (como ele disse na ilha de Santa Helena);
é compreensível que [...]” (9-i, pp. 1272-1273). Cada causa estaria coerentemente
justificada em função de interesses e contingências específicos. No entanto, esse grau
de relativismo não seria certamente aceito na metodologia de uma ciência objetiva,
horizonte visado pelos historiadores da época, até mesmo pelo próprio Tolstói, que
concebia a história como movimento humano cuja explicação científica também seria
submissa a leis gerais. No entanto, essa licença epistemológica torna-se coerente com
a declaração de uma dualidade, digamos, ontológica, do ser humano em sociedade:
“Em toda pessoa, a vida tem dois lados: a vida pessoal, que é tanto mais livre quanto
mais abstratos são seus interesses, e a vida elementar, de colmeia, na qual a pessoa
cumpre inevitavelmente as leis a ela prescritas” (9-i, p. 1276).
Esse tipo de dualismo entre liberdade e necessidade na agência do ser social tem
reflexos na metodologia para investigar o “movimento humano” na história. Os
“grandes homens”, como reis, administradores, generais etc., têm menor liberdade
para agir, pois seus papéis na estrutura social já são fixados, legitimados e cultural-
mente reconhecidos. A rede de expectativas sociais a respeito de suas ações, institu-
cionalmente inscritas, limitaria o leque de escolhas, constrangendo-os. Estes seriam,
paradoxalmente, menos “agentes”, em menor grau responsáveis pelos resultados
históricos efetivos, quando comparados, por exemplo, a soldados que, no final da
cadeia causal, matam ou são atingidos, saqueiam ou desertam. Não se justificaria,
portanto, uma história guiada pelos feitos de “notáveis”. Tolstói antecipa, ainda que
por outra argumentação, a crítica que a Escola dos Annales viria a desfechar contra
a história dos grandes eventos.
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Isaiah Berlin recupera uma carta de Tolstói a um amigo [Nazarev], em que ele
declara que a “história é apenas uma coleção de fábulas e ninharias, agrupadas com
uma massa de figuras desnecessárias e nomes próprios. A morte de Igor, a cobra que
picou Oleg – o que é isso senão intrigas de velhas senhoras?” (Berlin, 1952, p. 13).
Essas narrativas envolvendo fatos a que o historiador confere maior importância, com
certo grau de arbitrariedade, não constituiriam uma ciência, pois esta deve se pautar
em nexos causais que devem ser submissos a leis. Os historiadores tendem a explicar
os resultados da guerra atrelando uma característica de alto valor moral a um “grande
homem”, como um general que, por sua decisão racional, brilhante e estratégica, no
momento adequado inicia uma série causal que culminaria na vitória de seu exército.
No entanto, o historiador deixa de lado outras decisões, um pouco diferentes ou até
contrárias, tomadas por este general ou outro de importância compatível que, caso
efetivadas até o último elo da cadeia, ou seja, a ação do soldado, poderiam conferir
outro termo ao evento.
Tolstói demonstra aceitar que fenômenos históricos ou sociais não podem ser
decorrentes de apenas uma única causa, mas sim de uma pluralidade de causas que,
no entanto, não são concorrentes ou conjuntas; algumas podem ser disjuntivas em
relação ao efeito. Um procedimento indutivo para selecionar racionalmente uma
causa responsável pelo efeito, como os métodos de seleção por indução3, formulados
por Stuart Mill, não seria adequado para grande parte dos eventos sociais. Além dis-
so, como se trata de provar uma hipótese isolada, a de que a ambição desmedida de
Napoleão teria provocado o fracasso na campanha francesa na Rússia, não bastaria
apenas provar o fato antecedente, ou seja, que Napoleão era demasiadamente am-
bicioso. Deveríamos provar também uma série de hipóteses auxiliares, em contexto
mais amplo, como num sistema, para conferir apoio à hipótese, que não se manteria
isoladamente. Nesse exemplo um sistema de hipóteses auxiliares mostra-se implau-
sível, pois é razoável considerar que a ambição desmesurada pode ter levado muitos
generais, ou empresários, ou colonizadores, ao sucesso, e esse traço de caráter tende
mais a concordar com o sucesso do que com o fracasso, inclusive em fenômenos como
a guerra. A impossibilidade de provar uma hipótese isolada, como propriedade de
sistemas de proposições científicas, viria a ser demonstrada, de forma independente,
por Pierre Duhem e William Quine. Hoje conhecida como tese de Duhem-Quine,
certamente pode ser considerada como uma limitação à exigência empirista de que
todos os enunciados científicos devem ser verificáveis com base na experiência dos
3. Entre os cinco métodos de seleção de causas por indução prescritos por Mills, o da diferença e o das
variações concomitantes foram empregados por Durkheim em algumas de suas principais obras, como
O suicídio e A divisão do trabalho social.
sentidos. Essa restrição não é específica para as ciências humanas, como pensava Mill,
mas para as ciências naturais, e, para esses autores, a metodologia da história e das
ciências sociais deveria ser redutível às mesmas leis e regras da observação da natureza.
Outro problema responsável para que se considere, como faz Tolstói, que a his-
tória científica não revela as causas e “apresenta somente uma sucessão de eventos
não explicados” (Idem, ibidem) são os procedimentos que a historiografia adota para
chegar às leis do movimento humano, como o de tomar arbitrariamente uma série
de acontecimentos contínuos e avaliá-la separadamente dos demais (11-i, p. 1707).
O escritor não abdica de sua analogia com a mecânica e de sua ideia de mecanismo
causal, embora admita a dificuldade de explicar um movimento da humanidade
como resultante de “bilhões” de ações ou movimentos individuais; apenas em alguns
desses casos conseguiríamos evidências de uma conexão causal entre uma decisão
voluntária e um efeito observável:
A ciência histórica, em sua marcha, toma sempre unidades cada vez menores para exame,
e com esse método almeja se aproximar da verdade. No entanto, por menores que sejam as
unidades tomadas pela história, sentimos que a admissão de uma unidade separada da outra
[…] e a admissão de que todas as pessoas se expressam nas ações de um personagem histórico
são de todo falsas em si mesmas (11-i, p. 1709).
No final do capítulo que inicia o livro 11, Tolstói propõe sua solução para o
problema da descontinuidade entre as menores unidades da história, ou seja, os
fatos, que são observáveis ou passíveis de documentação ou de relato objetivo, e o
movimento total que envolve o grande feito, o evento, merecedor de consideração
histórica, como a guerra. A solução não provém das técnicas de observar, relatar ou
documentar, mas de um nível de abstração muito mais alto: o cálculo diferencial e
integral: “Apenas admitindo uma unidade infinitesimal para observação – o dife-
rencial da história, ou seja, as tendências homogêneas das pessoas – e alcançando a
arte de integrar (fazer a soma dessas unidades), podemos esperar apreender as leis da
história” (11-i, p. 1709). Esses elementos infinitesimais, homogêneos, “é que dirigem
as massas”; assim, os historiadores “deveriam deixar em paz os reis, os ministros e
os generais” (11-i, p. 1712).
A sugestão de utilizar o cálculo integral na metodologia para investigar as causas
do movimento humano, tarefa da história científica, é retomada na segunda parte do
epílogo. Há indícios históricos de que Tolstói apreciava matemática; em seus Diários
ele relata que gostaria de fazer novamente o curso de matemática e que ensinara os
“binômios de Newton” a um colega. Foi amigo de um matemático, E. P. Yanichevski,
professor da Universidade de Kazan, onde estudara Tolstói, que apresentaria, em
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Quando os prisioneiros foram postos em movimento outra vez, Pierre olhou para trás. Ka-
ratáiev estava sentado na beira da estrada, junto à bétula, e dois franceses falavam algo perto
dele. Pierre não se virou mais para olhar. Caminhava mancando pelo morro.
Atrás, no local onde estava Karatáiev, soou um tiro. (14-xiv, pp. 2187-2188).
e paz, e talvez também não em outros textos, que remetam à ideia da causalidade
como decorrente da regularidade na ocorrência de um evento ou fato. Porém, sua
sugestão de aplicar o cálculo diferencial e integral parece aproximar Tolstói da
causalidade com matriz indutiva. Por um lado, a divisão infinitesimal, como ope-
ração que caracteriza o “diferencial”, e, por outro, a reintegração, somatória desses
elementos infinitamente pequenos e em quantidade infinita, que corresponde ao
“integral”, são aplicadas ao mundo físico, ou seja, ao espaço, ao tempo e à matéria, que
preenche os corpos físicos. Quando Tolstói, imbuído de sua concepção mecanicista
da causalidade, fala em “elementos infinitesimais que dirigem as massas”, faz uma
analogia com o mundo físico. Abdicando da ambição epistemológica de explicar
as causas objetivas da guerra franco-russa levando em conta as vontades humanas
envolvidas, ele constatava a impossibilidade de se obter racionalmente o resultado
agregado de milhões de vontades e interesses divergentes.
O risco de se chegar ao problema que hoje designamos como “associações espú-
rias” é grande, conforme no exemplo do próprio Tolstói: se todas as vezes em que
olhamos o relógio e vemos o ponteiro próximo a dez horas e ouvimos o sino da igreja
tocar nesse instante, não podemos, contudo, julgar que a causa do sino da igreja
tocar é o movimento do ponteiro. Insatisfeito com as tentativas dos historiadores de
explicar racionalmente o contínuo movimento histórico, geralmente conectando-o
a atos de indivíduos notáveis que representariam “esse número infinito de vontades
pessoais”, Tolstói explica o retrocesso do exército russo em Moscou, em 1812, após
a batalha de Borodinó, empregando uma tosca analogia física que prescinde total-
mente da reconstrução racional de estratégias ou decisões. O exército de Napoleão,
como uma bola em crescente movimento, rumava em direção a Moscou, aumen-
tando sua força de impulso, “como a velocidade de um corpo que cai à medida que
ele se aproxima do solo”. A invasão ocorre por si mesma, apenas em decorrência do
impulso. O choque com a outra bola, o exército de Kutúzov, ocorre em Borodinó,
e as tropas russas, diante da força do choque, reagem em sentido oposto, recuando
até além de Moscou. Enquanto isso, as tropas francesas, com maior força, já que
incluíam mais soldados, continuaram a rolar por inércia, parando em Moscou e por
lá ficaram, sem se movimentarem, por cinco semanas, enquanto as tropas russas se
recuperavam, quase cento e trinta quilômetros à frente.
Essa ilustração analógica vincula uma total desimportância à agência humana
numa explicação causalista, impotente para contribuir para um desfecho positi-
vo e irrelevante para ser responsabilizada por uma derrota. Entretanto, Tolstói
vislumbra ainda uma saída, um estratagema metodológico, que consiste em con-
siderar as pessoas como homogêneas, ou seja, suas ações têm o mesmo valor para
a realização de um objetivo que seria resultante da conjunção de infinitas outras
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objetivo coletivo, maior. O objetivo da espécie humana não se reduz aos objetivos do
indivíduo, é incomensurável em relação a estes. Vejamos como Tolstói exemplifica a
impossibilidade de captar racionalmente o objetivo final de um coletivo:
Uma abelha, depois de pousar numa flor, pica uma criança. A criança teme a abelha e diz
que o objetivo da abelha é picar as pessoas. Um poeta admira a abelha que chupa o cálice de
uma flor e diz que o objetivo da abelha é chupar os aromas das flores. O apicultor, ao notar
que a abelha recolhe o pólen das flores e o leva para a colmeia, diz que o objetivo da abelha
é a coleta do mel. Outro apicultor, que estudou a vida da colmeia mais detidamente, diz que
a abelha coleta o pólen para a nutrição das abelhas jovens e para a incubação de uma mãe e
que o objetivo da abelha é a continuação da espécie. Um botânico observa que, ao voar com
pólen de uma flor dioica para um pistilo, a abelha o fertiliza, e o botânico vê nisso o objetivo
da abelha. Outro, ao observar a migração das plantas, vê que a abelha contribui para essa
migração, e esse novo observador pode dizer que nisso reside o objetivo da abelha. Mas o
objetivo final da abelha não se esgota no primeiro, no segundo nem no terceiro objetivo que
a razão humana está em condições de descobrir. Quanto mais alto se ergue a razão humana
na descoberta de tais objetivos, mais fica evidente para ela a inacessibilidade do objetivo final.
Ao homem só é acessível a observação da correlação entre a vida da abelha e outros fenô-
menos da vida. O mesmo se passa com os objetivos dos personagens históricos e dos povos.
(e1-iv, p. 2337).
Nesse longo trecho, com estrutura de argumento e conclusão nas duas últimas
frases, Tolstói expõe dramaticamente seu empirismo e a impossibilidade de cons-
truir uma história como ciência empírica com base na identificação de intenções,
propósitos, motivações e objetivos que, embora estejam na mente das pessoas e
orientem suas ações, não são visíveis ou perceptíveis. Mas ao menos ele reconhece
que o fenômeno da vida suscita interpretações diferentes e que os seres humanos
adquiriram uma competência para conviver com essas interpretações subjetivas.
Sim, mas isso é o que o leitor pode ser levado a considerar diante do que o escritor
efetivamente faz: ele mostra essas interpretações, usando as formas de falar dos
próprios tipos sociais protagonistas (criança, poeta, apicultor, botânico) e exibindo
pequenas amostras de seus vocabulários típicos.
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“agenciamento dos fatos”, que torna inteligível a história contada. Pela discordância
intervêm os acasos, as reviravoltas e peripécias, que dificultam a percepção de qual
será o final, embora o autor componha a narrativa tendo em vista esse final. Na
refiguração, o leitor, assim como ocorre em alto grau em novelas policiais, pode
até ficar surpreso com o ineditismo do final, mas, reconstruindo a história no
sentido inverso, percebe que o desfecho é razoável e causalmente ordenado. Bem,
é evidente que esse padrão de roteiro não ocorre em diversas formas literárias
contemporâneas, nas quais a narração emerge em um fluxo da consciência, e os
personagens experimentam níveis de percepção diferentes. Guerra e paz, como
romance histórico singular, também não se enquadraria no mythos aristotélico.
Contudo, isso não invalida o modelo compreensivo de Ricoeur, desde que rela-
tivizado para outras formas de roteiro que, ainda assim, não deixam de atender
ao requisito de constituir uma unidade inteligível que articula uma sucessão de
eventos no contexto de um mundo cultural.
As três atividades miméticas parecem não remeter a ordens ontológicas distintas
no romance: o mundo real e as ações no mundo natural, o mundo configurado
pelo texto e o mundo refigurado pela leitura do texto. Em relação à composição
literária, isso não constitui um problema; ao contrário, eleva a fruição no aspecto
estético e intelectual-cognitivo. Em relação à reflexão metodológica, há limitações,
embora talvez em decorrência de falta de um instrumental lógico, epistemológico
e técnico para acolher não só o modelo que Tolstói intui para a história, mas a sua
própria práxis literária. Em relação à composição, ou seja, à mímesis 2, o principal
recurso empregado por Tolstói é a singularização, conforme comentado, procedi-
mento enaltecido pelos formalistas russos no início do século xx, designado como
“estranhamento” (ostraniene). Chklovski, um desses formalistas, o considerava
pioneiro nessa técnica (1971, pp. 45-46). Contudo, a ostraniene é coerente com seu
empirismo; portanto sua função não é apenas estética ou estilística, mas também
metodológica. Engendrando um tipo de poética empirista, Tolstói apresenta os
objetos como eles são vistos ou como se apresentam aos sentidos e não indireta-
mente por meio de termos genéricos ou conceitos que a eles aludem, mas que não
recuperam sua individualidade.
Tolstói escrevia sobre o que experimentara; há muito de vida própria em seus
romances. A singularização foi aplicada em tipos de cenas ou situações que vivenciou
diversas vezes e que o impressionaram muito e tocaram seus sentimentos, lembrando
que, para mecanicistas como Hobbes ou Hume, as sensações provêm de forças exter-
nas sobre as quais reagem em sentido contrário os órgãos internos, da percepção. É
necessário reconhecer, no entanto, que essa adesão ao empirismo de matriz inglesa,
também presente nos iluministas, cuja influência na Rússia foi forte em decorrência
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res, ou porque não possuíam documentos ou traços para indicar sua existência, ou
porque não validariam suas hipóteses ex post.
A presentidade, como recurso na composição do texto, catalisa no leitor a recepção
da narrativa, transportando-o não só para o local da cena, mas também colocando-o
no lugar do personagem e levando-o a sentir sensações próximas ou similares às do
personagem. Do ponto de vista metodológico, esse “colocar-se no lugar do outro” está
muito mais próximo da empatia e da valorização de situações, típicas de uma sociolo-
gia inspirada no pragmatismo ou na hermenêutica, que de abordagens externalistas
ou objetivistas. Aproxima também o autor das próprias cenas que presenciou com
frequência, pois pertencia a uma família tradicional russa, como a rotina dos salões de
Moscou e Petrogrado, descritas em inúmeras passagens da obra, com emprego brilhante
da ostraniene, ou ainda como correspondente de guerra, antes de iniciar a escrita de
Guerra e paz. Talvez a presentidade que se evidencia na composição do romance tenha
raízes em seus diários de guerra. Da perspectiva da mediação entre tempo e narrativa,
aproximaria a mímesis 1 da mímesis 2. No entanto, a justificativa epistemológica desse
procedimento implicaria aceitar uma aproximação entre representações e realidade, um
tipo de construcionismo social com que Tolstói estaria distante de concordar. Porém,
ao integrar essas duas ordens de representação em uma composição narrativa, o autor
russo evidencia esteticamente a situação de um mundo em que as representações se
misturam à “realidade” de forma crescente, com o avanço tecnológico dos meios de
informação e comunicação, situação que, a meu ver, só recebeu um olhar metodológico
mais acurado a partir da teoria da ação comunicativa de Habermas e, recentemente, da
obra de John B. Thompson (1995), que contempla, do nível metateórico ao técnico,
a pesquisa da ideologia e da cultura na era dos meios de comunicação de massa.
A questão do enredo na composição merece considerações específicas. A or-
ganização dos capítulos e partes da obra é cronológica, embora não seja sucessiva.
Não há, como nos romances tradicionais, um enredo com preparação, início,
desenvolvimento e fim. Evita-se um ordenamento temporal ou a percepção de um
encadeamento de tipo causal, em que se justificam as ações dos personagens em
função de capítulos precedentes. Entretanto, em geral cada capítulo descritivo en-
cerra uma unidade narrativa, como uma crônica de costumes. O mosaico resultante
demonstra, no entanto, uma unidade, no sentido de um painel com histórias de vida
transcorridas num período em que ocorreu um fato social marcante, que afetou
ou constituiu, de formas diferentes, o curso das trajetórias narradas. Há também
frequentes digressões em que o autor comenta as situações ou contexto narrado,
histórica ou filosoficamente, em que a ordem temporal é subvertida, quando se re-
torna à narrativa. Esse tipo de descontinuidade temporal ocorre também mediante
deslocamentos narrativos, ainda que separados por fronteira de capítulo. Adotando
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Da capo e coda
– Se é para contar, então é preciso dizer tudo desde o início: como e por que me casei, e como
era antes do casamento.
Antes de me casar, vivi como fazem todos, isto é, as pessoas do nosso meio. Sou proprietário
rural e licenciado por universidade, e já fui presidente do corpo da nobreza. Antes de casar,
vivi como todos, isto é, na devassidão, estava certo de que vivia adequadamente. Pensava
de mim mesmo que era um tipo simpático, um homem plenamente moral. Não corrompia
ninguém, não tinha gostos antinaturais, não fazia disto o objetivo principal da vida, como
faziam muitos da minha idade, e me entregava à devassidão séria e decentemente, para
manter a saúde.
Pózdnichev, personagem em Sonata a Kreutzer, novela de Tolstói.
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que Tolstói admite identificar por meio da historiografia da época são leis negativas,
isto é, contrárias aos fatos (Idem, p. 120).
As narrativas ocorrem também na própria composição, pelo menos em dois
trechos marcantes da obra. O primeiro é a história do cossaco Lavruchka, perso-
nagem histórico que aparece quando as tropas de Napoleão seguiam da cidade de
Viazma para Moscou, antes, portanto, da famosa batalha de Borodinó. O cossaco
deu informações a um emissário de Napoleão a respeito do exército russo e o general,
em agradecimento, pediu que o informante cossaco, que era um servo que Nikolas
Rostóv havia recebido de um amigo, viesse conversar com ele. A narrativa “original”
está no livro de Thiers e alguns trechos são citados, ipsis litteris, por Tolstói em Guerra
e paz (10-vii, pp. 1487-1491). A situação da conversa é reconstruída por Thiers,
enfatizando a simplicidade de Napoleão, em seus trajes e no jeito de falar, a tal ponto
que o cossaco, em sua “imaginação oriental”, não pudera perceber que estava diante
de um soberano e passara a conversar com familiaridade com seu interlocutor sobre
assuntos relativos à guerra em curso. Napoleão lhe perguntou se achava que os russos
iriam vencer, e ele respondeu que, se a batalha fosse breve, sem dúvida os franceses
venceriam, mas, se demorasse, só Deus poderia saber. Napoleão sorriu, despachou o
cossaco e pediu a seus soldados que relatassem ao pobre servo que seu interlocutor
era o próprio general imperador. Tolstói mantém a estrutura do relato de Thiers,
mas o desmente em um detalhe crucial: Lavruchka sabia perfeitamente que estava
diante de Napoleão, não possuía aquela inocente e pura “imaginação oriental” e
fingira durante o tempo todo, comportando-se de acordo com o papel social que se
esperaria dele, isto é, como um ignorante que está conversando com um soldado do
exército estrangeiro invasor e que adotaria uma postura neutra, pois, como membro
de povo que habitava as estepes e não se integrava às sociedades urbanas, manteria
alguma indiferença no conflito. A narrativa de Tolstói pinta Lavruchka como um
enganador e Napoleão quase como otário, de forma paródica.
A segunda narrativa reconfigurada na composição do romance foi realizada por
Karatáiev, o prisioneiro de quem Pierre se tornara amigo. Platon Karatáiev é descrito
como um homem simples, de comportamento espontâneo, que Pierre Bezúkhov
considerava exemplar do caráter russo. O relato de Karatáiev ocorre próximo ao
dia em que foi fuzilado. Estava bastante doente, febril, quando conta, com algumas
variações, uma história que Pierre já conhecia bem, pois ele a relatara antes várias
vezes, mas que é revelada ao leitor apenas na situação em que o exército russo, já
combalido e em retirada, passa a eliminar os prisioneiros. Trata-se da narrativa
de um velho mercador que é condenado injustamente por um assassinato e vem a
encontrar o verdadeiro criminoso anos depois, num campo de trabalhos forçados.
O mercador acaba perdoando àquele que foi culpado pela sua condenação injusta,
mas vem a morrer em breve, sem gozar o benefício da anulação de seu julgamento.
A narrativa do mercador reaparece em outra obra de Tolstói, no livro Fábulas para
crianças, publicado em 1872, como parte de um conjunto de obras pedagógicas
que utilizava em suas aulas, quando se havia retirado para o campo, no final da vida.
A história adquiria o tom de parábola, no contexto da narrativa de Karatáiev. Na
versão expandida para crianças, conserva o mesmo caráter moral, recebe o título de
“Deus vê a verdade, mas não conta na mesma hora” e já ganha status de uma ficção
realista, no estilo de Tolstói, como interpreta Hugh McLean: “Ele acrescentou uma
pletora de detalhes, propiciando uma representação muito mais inteira e bem desen-
volvida dos caracteres e eventos envolvidos, do que no esboço muito esquemático
de Karatáiev. São conferidos nomes e personalidades distintas aos atores principais,
o cenário se tornou mais concreto e vivo e o roteiro aumentou em diversos novos
episódios” (2008, p. 89).
O processo de composição que Tolstói desenvolveu em Guerra e paz certamente
suscitará ainda reflexões e análises fecundas e podem-se aguardar interpretações
novas, dada a extensão e a profundidade do romance. Concordaria, sem maiores
reservas, com a constatação de autores como Berlin, que, longe de desqualificarem
as considerações histórico-filosóficas do romance, não as colocam no mesmo nível
de excelência da composição literária e estética. No que concerne às ciências sociais,
talvez a sociologia da literatura possa se beneficiar mais da análise de Guerra e paz
do que, como se tentou aqui, a metodologia. Entretanto, a presença de alguns
princípios empiristas na composição da obra, como a presentidade e a ostraniene,
colocando o leitor na condição de perceber, de estar no lugar, de captar as forças que
incidem sobre os órgãos dos sentidos, demonstra que ciência e arte não se situam
tão distantes na práxis literária de Tolstói.
Referências Bibliográficas
Berlin, Isaiah. (1953), The hedgehog and the fox: an essay on Tolstoy’ view of history. Londres,
Weidenfeld & Nicolson.
Chklovski, Victor. (1971), “A arte como procedimento”. In: Toledo, D. O. Teoria da
literatura: formalistas russos. Porto Alegre, Globo, pp. 39-56.
Collingwood, Robin G. (1994), “Human nature and human history”. In: Martin, Mi-
chael & Mcintyre, Lee (eds.). Readings in the philosophy of social science. Cambridge,
mit Press, pp. 163-171.
Hegel, G. W. F. (1975), Principios de la filosofia del derecho o derecho natural y ciencia política.
Buenos Aires, Sudamericana.
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Resumo
Guerra e Paz, obra magna de Tolstói, transcende o âmbito literário e suscita questões filosóficas
e metodológicas. O objetivo aqui é tomá-la como ponto de partida para a discussão de questões
como as da causalidade e da agência e de questões contemporâneas como as da linguagem e da
escrita, na metodologia das ciências sociais. Na primeira parte, procura-se mostrar como a dis-
cussão sobre as causas da invasão napoleônica elaborada por Tolstói em seu romance histórico
traz elementos que prefiguram o debate sobre explicação e compreensão na filosofia analítica a
partir de meados do século xx. A seguir, discute-se, sob influência das práticas composicionais
de Tolstói e da ideia de circularidade tempo-narrativa de Ricoeur, o potencial metodológico da
refiguração narrativa para interpretar as relações entre arte, sociedade e história.
Palavras-chave: Metodologia das ciências sociais; Causação; Refiguração; Tolstói.
Abstract
Tolstoy’s magnum opus, War and peace transcends the literary scope and elicit philosophic and
methodological questions. The aim here is to take it as a starting point to discuss subjects as
causality, agency and contemporary issues related to language and writing, in the methodology
of history and social sciences. In a first part, it attempts to show how the discussion of Napo-
leonic invasion’s causes, elaborated by Tolstoy in War and peace, brings elements that prefigure
the explanation versus understanding debate in analytic philosophy from the mid-twentieth
century. The following discusses, inspired by Tolstoy’s compositional practices and Ricoeur’s idea
of time-narrative circle, the methodological fruitfulness of narrative refiguration to interpret
art, society and history relationships.
Keywords: Causality; Agency, Refiguration, Tolstoy, War and peace.
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