Guerra, historicismo e direito

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 4

Guerra, historicismo e direito

War, Historicism and Law

Marco Antonio Silveira Resumo


Doutor em História Social pela Este breve artigo visa questionar em que medida os discursos sobre a guer-
Universidade de São Paulo (FFLCH/ ra das raças, descritos por Clément Thibaud em “La ley y la sangre”, embora
USP - São Paulo/Brasil) e professor retomem elementos do historicismo, não reproduzem as estratégias de
adjunto no Departamento de modelos historiográficos voltados à subordinação da guerra à soberania.
História da Universidade Federal de Abstract
Ouro Preto (ICHS/UFOP – Mariana/ This short paper aims at questioning the extent in the which the discourses
Brasil) about the war of races described by Clément Thibaud en “La ley y la san-
e-mail: gre”, although retaking elements from historicism, reproduce the strategies
[email protected] of historiographical patterns that intend to subordinate the war to the
sovereingty.

Palavras-chave
guerra, historiografia, vocabulário político, Independência, América
Espanhola

Keywords
war, historiography, political vocabulary, Independence, Spanish America

DOI - http://dx.doi.org/10.1590/2236-463320110102
Almanack. Guarulhos, n. 01, p.24-27, 1º semestre 2011 fórum 24
Para o leitor brasileiro, o artigo que Clément Thibaud nos apresenta
merece destaque por diversas razões, a mais importante delas referindo-
1 se à própria abordagem que o fundamenta1. A retomada da perspectiva
THIBAUD, Clément. La ley y la sangre. La
“guerra de razas” y la constitución en la América
foucaultiana, particularmente aquela exposta no livro Em defesa da
Bolivariana. Almanack, Guarulhos, n.01, p.5-23, sociedade, encontra a historiografia num momento particular em que
1ºsemestre de 2011. modelos explicativos de matriz jurídica se tornaram decisivos2. Nesse
sentido, a apropriação que Thibaud faz do conceito de guerra abre espaço
2
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São
para uma atitude mais crítica em relação aos vínculos entre discurso
Paulo: Martins Fontes, 1999. soberano e discurso historiográfico.
Do que se trata quando são referidos discursos de matriz jurídica
ou elementos do discurso soberano? Colocando o problema de maneira
simples, trata-se do uso de modelos de análise e de investigação que os
historiadores têm partilhado, especialmente desde a metade do século
XVIII, com as ciências sociais e com os agentes preocupados em afirmar a
soberania do Estado. Em outras palavras, trata-se de modelos explicativos
que, de uma maneira ou de outra, articulam sistematicamente as
complexas relações entre população, comportamento, território, mercado
e instituições estatais. Evidentemente, o uso de categorias e de modelos
de matriz jurídica por parte dos historiadores não implica sempre sua
adesão ao discurso soberano. Também não significa necessariamente
a dissolução dos conflitos sociais em explicações que reproduziriam
tautologicamente a ordem – nesse caso, como entender o pensamento
liberal ou o pensamento marxista? Faz-se necessário, contudo, reforçar
a idéia de que os discursos historiográficos devem muito às tentativas
de explicar, e por vezes justificar, a existência e a constituição do Estado,
cabendo aqui a lembrança de que parte expressiva das fontes com que
trabalham os historiadores foi produzida por instituições estatais. Assim
sendo, considerações teórico-metodológicas calcadas no conceito de
guerra convidam, numa apropriação mais radical, à elaboração de modos
alternativos de escrita historiográfica.
A crítica inicial proposta por Thibaud – dedicada à constatação
de que a guerra tem sido vista como “fator secundário” porque ligada à
“historiografia acadêmica tradicional” – nos impele a refletir sobre um
problema decisivo: visto que a guerra, doutrinária e historiograficamente,
tem sido submetida ao discurso soberano, como liberar suas amarras
e torná-la conceito-chave na elaboração de outros modelos de escrita
da história? O texto de Thibaud apresenta alternativas ao investigar
os vínculos entre a noção de guerra de raças e o historicismo. Porém,
desse ponto partem três problemas marcantes. O primeiro nos leva a
questionar em que medida a própria perspectiva descrita por Thibaud,
referente à Venezuela e à Colômbia das décadas de 1810 e 1820, não
implica um modelo explicativo que, ao fim e ao cabo, termina também
por subordinar a guerra e o historicismo ao direito. O segundo indaga se
o uso do conceito de guerra não deve nos conduzir à releitura de autores
da Antiguidade. O terceiro problema, enfim, significa avaliar se, para além
do estudo da apropriação do vocabulário historicista e bélico por parte
de agentes sociais – operação muito bem reconstituída por Thibaud -, o
conceito de guerra não é válido ainda como fundamento de paradigmas
historiográficos que dizem algo importante sobre as sociedades colonias.
O segundo e o terceiro pontos remetem, pelo menos em parte,
à crise do marxismo. Em certa medida, o questionamento à dimensão
teleológica e materialista do marxismo esvaziou parte das leituras voltadas

Almanack. Guarulhos, n. 01, p.24-27, 1º semestre 2011 fórum 25


à compreensão da guerra social, cedendo espaço a interpretações que
privilegiam os instrumentos de paz gerados pela presença das instituições
estatais, pelo parentesco e pelos costumes. Esse movimento, por vezes, fez
parecer que o tratamento historiográfico de sociedades da Idade Moderna
através do paradigma bélico teria se tornado anacrônico, uma vez que
tais sociedades seriam reguladas por doutrinas aristotélicas, tomistas e
escolásticas. Sem que se possa aprofundar o tema pelo momento, vale
mencionar que o conhecimento que Marx possuía da Antiguidade e a
presença do problema da guerra em autores escolásticos como Francisco
Suárez sugerem que a guerra pode ser retomada pela historiografia como
um paradigma historiográfico que nada tem de anacrônico. A questão
aqui seria avaliar a validade da elaboração de discursos historiográficos de
matriz bélica que se recusam a submeter-se ao direito e à soberania. Esse
é um problema que aparece formulado na Grécia Clássica e em Roma: se
Platão e Aristóteles submeteram o interesse pessoal à metafísica do bem
comum, o corpo à alma, também deixaram uma reflexão decisiva sobre
os limites das formas de governo, retomada mais adiante por pensadores
como Maquiavel e Montesquieu.
Chega-se, então, ao primeiro ponto levantado acima: se os discursos
referidos por Thibaud, embora perpassados pelo historicismo, não acabam
se dissolvendo no direito e na soberania. Quais seriam as características do
regime de historicidade apontado por Foucault? A “violência original”, a
“neutralidade axiológica” e a compreensão da sociedade como embate de
forças são elementos decisivos. Contudo, parece que seu aspecto crucial
consiste na idéia de que, sendo o direito instrumento dos fracos contra os
fortes, a sociedade consistiria essencialmente numa correlação de forças
radicada na natureza, cujo resultado, também natural, seria o domínio
dos últimos sobre os primeiros. É por isso que, para Foucault, Thomas
Hobbes não pode ser identificado ao discurso historicista do conde de
Boulainvilliers: embora descreva o estado de natureza como a guerra de
todos contra todos, Hobbes pretende, por fim, submeter a guerra ao direito.
Assim, os exemplos citados por Thibaud no decorrer do artigo
suscitam algumas dúvidas acerca da identificação destes com a abordagem
historicista descrita por Foucault. Partindo do pressuposto de que as
noções de violência original e de guerra podem ser também operadas
num discurso de matriz jurídica – como fazem, em perspectivas distintas,
Hobbes e o mencionado Francisco Suárez –, talvez seja excessivo falar
de uma aproximação propriamente historicista no contexto analisado
por Thibaud. Nos ditos de Lorenzo de Villanueva e de Miguel de Pombo,
por exemplo, o uso de palavras como consentimento, contrato do povo,
despotismo e regeneração parece remeter ao vocabulário escolástico. É
interessante observar, acerca do último termo, o que afirma Hannah Arendt
3 a respeito da Independência dos Estados Unidos3: os revolucionários norte-
ARENDT, Hannah. Da revolução. São Paulo: americanos conceberam-se inicialmente como regeneradores, adotando
Ártica, 1988.
a experiência romana e seu modelo soberano como referência para a
4
fundação republicana. No mesmo sentido, destaque-se que, como sugere
Idem. Entre o passado e o futuro. São Paulo: a mesma autora, a questão decisiva para os revolucionários da América do
Perspectiva, 1972, em particular o capítulo “Que Norte era fundar a república na autoridade4. Apesar de algumas diferenças
é autoridade”.
históricas, a Revolução Francesa também lidou com as mesmas questões.
Dessa forma, o constitucionalismo, especialmente quando baseado
nos exemplos norte-americano e francês, tende a resolver o problema
da guerra dissolvendo-a numa releitura de concepções autoritárias e

Almanack. Guarulhos, n. 01, p.24-27, 1º semestre 2011 fórum 26


jurídicas. Talvez seja essa a perspectiva do fiscal da Audiência de Caracas
em 1808, mencionado por Clément Thibaud – perspectiva que se distancia
do paradigma bélico descrito por Foucault, cujos desdobramentos levarão,
por exemplo, a Nietzsche. Os discursos sobre a “guerra a muerte”, com suas
referências à “pátria primitiva”, são os que mais se aproximam da vertente
historicista. Mas, mesmo nesse caso, não deixa de ser surpreendente a
distinção feita por Bolívar entre guerra de libertação e instauração do
novo pacto social. O argumento utilizado por ele não é o do natural, e por
isso legítimo, domínio de uma raça sobre a outra, mas o da validade da
suspensão temporária do direito das gentes em prol de uma guerra justa e
discriminatória que deve ser combatida em defesa dos direitos naturais do
Homem. Há aqui, portanto, clara oposição entre uma vertente historicista,
que vê o domínio violento como algo natural, e uma vertente jurídica, que
o concebe como agressão a direitos estabelecidos pela natureza. Embora
ambas possuam um fundo comum, implicam concepções opostas de
natureza. O que isso significa? Significa que, sendo intensa a percepção da
crise de autoridade na era das revoluções, independentistas e republicanos
procuram solucioná-la fincando a autoridade na natureza. Como os
revolucionários norte-americanos e franceses perceberam, porém, essa
saída era simples demais para dar certo.
Para finalizar, um comentário sobre os pardos. É muito interessante
a análise de Thibaud sobre os esforços visando, através de sua integração,
evitar-se a guerra civil. Mais uma vez, o que parece operar aqui é mais um
discurso jurídico do que historicista. Mas fica uma pergunta que interessa
de perto à historiografia brasileira: por que para a “pardocracia” o antigo
modelo, baseado na mediação dos agentes reais, parecia mais adequado e
integrador que o modelo de matriz liberal?

Recebido para publicação em outubro de 2010


Aprovado em outubro de 2010

Almanack. Guarulhos, n. 01, p.24-27, 1º semestre 2011 fórum 27

Você também pode gostar