100 Anos de Totem e Tabu
100 Anos de Totem e Tabu
100 Anos de Totem e Tabu
fuks
carina basualdo
néstor a. braunstein
— Thomas Mann
n. dos o. Este parágrafo inicial não consta das edições em espanhol e também, pelo que
nos foi possível averiguar, das edições em francês e em português do texto de Thomas
Mann intitulado “O lugar de Freud na moderna história do espírito” [“Die Stellung Freuds
in der modernen Geistesgeschichte”], de 1929. Não sabemos por que, entre a primeira
edição em alemão e as seguintes em diferentes línguas, ele foi omitido. Devemos a Márcio
Seligmann-Silva sua indicação e sua tradução para o português. Temos muito prazer em
retirá-lo do esquecimento a que foi levado e em torná-lo acessível aos admiradores e
conhecedores das obras de seu autor e de seu homenageado.
“Estou todo em Totem e tabu”. Com essas palavras, Freud declarou a Sándor
Ferenczi, em carta de 11 de agosto de 1911, o quanto se sentia absorvido pela
escrita de um texto que o levaria – aludimos aqui às reflexões de Michel de
Foucault em O que é um autor? (1969) – a comprometer-se com uma nova e
estranha relação consigo mesmo. Muitos comentaristas de Freud consideram
que essa obra, escrita entre 1911 e 1912, e publicada em 1913, resume-se a uma
aplicação da teoria psicanalítica à antropologia. Evidentemente, trata-se de
uma leitura apressada e equivocada. O livro em questão é um escrito meta
psicológico que oferece, como subproduto, a elucidação do princípio psica
nalítico do vínculo indissolúvel entre o individual e o coletivo, algo mais cla-
ro hoje do que cem anos atrás. Tal postulação exige que o analista ocupe o
lugar de crítico da cultura, na qual dá seu testemunho. Sendo assim, é legítimo
afirmar que Totem e tabu é um desses textos solitários que terão de ser conside-
rados fundamentais não apenas no âmbito da obra de seu autor, mas também
como uma das maiores criações do século xx. O ensaio inaugura o que até
então era impensável: um mesmo espaço, um espaço em comum, para apreen-
der a psicologia individual e a psicologia coletiva. Recordemo-lo: “A psicologia
individual é também, desde o início, psicologia social” (Freud, 1921: 14).
Treze anos depois de publicar, em A interpretação dos sonhos (1900),
alguns relatos pessoais que lhe abriram a via de acesso à singularidade do
desejo, Freud construiu, em Totem e tabu, a cena que funda a vida social, o
mito do assassinato do pai. Por que foi necessário forjar um mito nesse mo-
mento, quando quase todos os conceitos psicanalíticos extraídos da clínica já
configuravam uma teoria aceita e reconhecida?
Em primeiro lugar, deve dizer-se que a tarefa foi árdua, como se lê em outra
carta de Freud a Ferenczi, datada de 30 de novembro do mesmo ano, 1911:
“O trabalho sobre o totem está uma porcaria. Estou lendo livros enormes sem
interesse algum, o instinto já me diz a conclusão, enquanto tenho de rastreá-
-la em todo o material. Enquanto isso, o raciocínio se obscurece”. Sucedia-se
assim porque os dados da literatura antropológica e etnológica arrolados nos
quatro ensaios que compõem Totem e tabu confirmavam, de um modo ou de
outro, o que Freud estava habituado a escutar de si próprio e de seus pacientes.
Era preciso, portanto, fazer uma inferência lógica do material divulgado pelos
livros de Charles Darwin, George Frazer, W. Robertson Smith e James J. Atkin-
son, bem como tecer um enredo literário que se mostrasse capaz de manifestar
a verdade analítica sobre as origens da religião (totem) e da moral (tabu).
O espírito crítico do pai da psicanálise se antecipou a estudos mais re-
centes sobre a função dos mitos na cultura, entendidos como relatos de uma
criação que, emersa num passado remoto, perpetua-se em aspectos da rea
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lidade presente. Como histórias dramáticas que autorizavam os costumes, os
ritos e as crenças, ou bem aprovavam suas mutações, os mitos se situam entre
a dominação, de um lado, e o conhecimento da natureza, do outro, dos quais
decorrem sua eficácia simbólica. De modo geral, Freud rompeu com a valo-
ração negativa dada pela razão ao mito, ao considerá-lo uma narrativa de alto
valor social e individual, cuja função consistiria em expressar uma verdade
sobre as origens e a arquitetura do espírito humano. Nesse sentido, a entrada
das construções míticas no campo psicanalítico excede uma simples monta-
gem de ilustrações; ela é, simultaneamente, um modelo inabitual de expres-
são do pensamento científico.
Totem e tabu, um mito científico, foi o escândalo introduzido pela psica-
nálise no âmago do saber moderno como efeito da grande importância que
Freud atribuiu à confluência entre mito e logos. Não é excessivo lembrar, a
despeito de todas as críticas recebidas, que o mestre de Viena jamais renun-
ciou a valer-se do mito, cujo relato adquire o tom de uma grande lenda, para
representar, graças a ele, uma origem desconhecida, mas sempre necessária.
“Um dia, os filhos expulsos da horda pelo pai que gozava de todas as mulheres
regressaram, mataram-no e devoraram seu cadáver, pondo fim à existência
daquela forma arbitrária de poder”. O assassinato é o ato que instaura a cul-
tura. Essa equação pode ser expressa também em termos metapsicológicos: o
assassinato representa o momento mítico de instalação do recalque primário
(Urverdrängung), mecanismo que organiza as representações no interior do
aparato psíquico.
Na década de 1930, ao sentir-se cada vez mais convencido de que os mitos
possuíam um valor incalculável para a investigação científica, Freud escre-
veu a Einstein: “Talvez o senhor tenha a impressão de que nossas teorias são
uma espécie de mitologia, e nem mesmo agradável nesse ponto. Mas toda
ciência não termina numa espécie de mitologia? Parece-lhe diferente na fí-
sica hoje?” (Freud, 1932: 429) Seria o mito de Totem e tabu uma espécie de
mitologia nada alegre? Mais ainda, cabe perguntar: o que há de agradável na
verdade histórica de que cada pai é um pai morto e cada filho, um assassino
involuntário? Trata-se sim de um mito desagradável, que é, no entanto, uma
ferramenta poderosa e precisa para a inteligência do psiquismo e da ordem
social: o passado remoto, perdido no tempo e no espaço, floresce no presente
e chegará ao futuro do sujeito individual e, em conjunto, à cultura. Nesse
sentido, Freud tece a célebre e discutível série de analogias entre a criança,
o neurótico, o selvagem e o homem pré-histórico, para pôr em ação teórica
o tabu do incesto, o desejo proibido. Não por acaso, retoma em Totem e tabu
a análise do pequeno Hans: trata-se de demonstrar como a fobia infantil em
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é intemporal, impermeável ao fluxo dos fatos sociais e à transitoriedade dos
fenômenos culturais e políticos que transformaram a face da terra, mas não
as posições subjetivas de seus habitantes. Transcorreram-se 100 anos e a atua
lidade do texto permanece impávida; mais ainda, confirmou-se com as mais
abjetas, mas também com as mais sublimes ações. Nossa humanidade se mani-
festou tanto nas guerras genocidas quanto nos avanços da medicina; no rosto
descarnado dos mercados como nas produções da arte; na devastação e no
assassinato de alma dos filhos pelos pais de Schreber, e também no começo do
fim do colonialismo e do regime patriarcal; seja na destruição ecológica e na
abolição do tempo e do espaço, seja no monopólio nas comunicações. Totem e
tabu, como já indicado, é um texto memorável que exibe os vestígios do passado
no presente e, por isso, é uma obra profética: o passado continuará modelando
o futuro e as imprevisíveis transformações acarretadas pelo desenvolvimento
das ciências exacerbarão a luta que forja a história entre as forças titânicas de
Eros e de Tânatos. Cem anos é uma marca temporal, arbitrária, que permite
estabelecer uma visão retroativa e, portanto, é também uma maneira de esprei-
tar o futuro com suas ameaças e suas promessas, com o progresso simultâneo e,
ao mesmo tempo, conflitante do cálculo e do pensamento a fomentar em nós,
herdeiros de Freud, a esperança de sua fecundação recíproca.
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Referências bibliográficas
foucault, Michel
(1969) O que é um autor? Lisboa: Vega, 1992.
freud, Sigmund
(1912) “De quelques concordances dans la vie d’âme des sauvages et des névrosés”. In: Œuvres
complètes, vol. xi: 1911–1913. Paris: Presses Universitaires de France, 1998.
(1921) “Psicologia das massas e análise do eu”. In: freud, Sigmund. Obras completas, vol. 18.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
(1932) “Por que a guerra? (Carta a Einstein)”. In: freud, Sigmund. Obras completas, vol. 15.
São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
mann, Thomas
(1929) “Die Stellung Freuds in der modernen Geistesgeschichte”, Die psychoanalytische
Bewegung, i. Jahrgang, Wien, Mai-Juni, 1929.