Nós Quem Somos - Autor: Alvaro DeAngelis
Nós Quem Somos - Autor: Alvaro DeAngelis
Nós Quem Somos - Autor: Alvaro DeAngelis
Se este possível realmente procede, então, não somos mera e somente humanos. Somos
então uma aliança de seres humanos e não humanos associados? Para verificar estes
possíveis em "alter-ação" como modos de existência, tentemos interpretar ou traduzir o
que isso pode significar.
Em Bruno Latour e sua teoria do ator-rede, são levantados dois aspectos importantes que
nos aproximam dos aspectos relacionais e constitutivos das estruturas associativas, quais
sejam: a "natureza heterogênea" das entidades que a compõem e o "caráter distribuído da
ação que a anima" (Bruno, Felinto, Santaella, 2011).
Sobre a(s) natureza(s), o apoio de Latour vem de Tarde, que concebe uma filosofia
sociológica a partir de três princípios: diferença ontogênica de todos os seres, caráter
infinitesimal do real e indeterminação do real (Milet, 1970 apud Molina, 2010). Para
Tarde, existir é passar do possível ao real.
Em Alfred North Whitehead, com seus objetos eternos e suas entidades atuais, Latour
aproveita a perspectiva de que, individual e coletivamente, pertencemos a uma realidade
interrelacionada, uma estruturada sociedade de ocasiões que tentamos tornar manifesta
através de nossa atualização como entidades, "como fundamental evidência enquanto
natureza das coisas" (Whitehead, 1968).
À exceção de Alphonse de Candolle, autor que não será aqui examinado, procuraremos
desenvolver uma breve aproximação sintética dos trabalhos de Tarde, Latour e Whitehead
em seus possíveis e suas associações relacionais. Por fim, o artigo buscará sintetizar este
esforço com a contribuição perspectivista de Deborah Danowski e Viveiros de Castro,
como admissão de uma conjuntura plural da identidade compossibilitada em nós e
mundo(s).
Como imagina Tarde, tudo começa a partir do infinitesimal e todos os retornos são para o
mesmo; nada aparece fortuitamente na esfera do finito. E por ser a infinita a realidade,
por consequência, nós - enquanto individuações em associação - não somos elementos
originais, somos antes o resultado de um processo de composição (Tarde, apud Themudo,
2002, p. 36).
Assim, a identidade do que somos não é uma causa; é apenas um produto, um caso limite
de diferenciação infinitamente atenuada. A ontologia tardiana argumenta que todos os
seres são diferentes. Este é o grande princípio da sua filosofia: "a diferença é o alfa e o
ômega do universo" (Tarde, 2007, p. 133).
Nesta perspectiva, a existência do real é a passagem da possibilidade ao ato, uma vez que
tudo o que acontece no mundo traz em si uma "radiação de possíveis realidades"
(ibidem). Assim, a realidade é nada mais do que uma transformação em ato de uma
potência do possível.
Entretanto, este autor nos chama a atenção de que nem todo o possível pode tornar-se
real, por conta de forças concorrentes, em luta constante para emergir em termos de
realidade.
Neste sentido, vejamos as implicações que alguns termos como actâncias, coletivos,
entidades atuais e objetos eternos, entre outros, podem nos dar pistas destas outras
possibilidades que podem vir a se tornar real em nós e no mundo.
A Teoria Ator-Rede (Actor-Red Theory - ART) tem Bruno Latour como principal autor
(além dele, John Law e Michel Callon). A ART tem como principal foco o desejo de
diluição da dicotomia entre o social e o natural, inserindo atores humanos e não-humanos
em uma mesma teia de associações.
Latour propõe uma aproximação nada ortodoxa para a compreensão do social, uma outra
via, não homogeneizada, mas, sim, através do movimento e das associações que se
estabelecem entre elementos heterogêneos presentes numa rede de relações (Camillis et
al, 2013).
Em sua ressignificação, ele propõe que o termo social seja alterado pelo termo "coletivo".
Assim, coletivo traduz melhor, segundo ele, o projeto de reunir em aliança os elementos
presentes na atualidade das coisas presentes na realidade, erigindo nesta forma uma nova
categoria de social.
Por sua vez, Whitehead entende que devemos estudar a realidade, mas essa realidade
apenas está realmente disponível para nós através da experiência que temos dela.
Partindo deste pressuposto, o estudo do mundo não é realmente o estudo do mundo; é o
estudo de nossa experiência do mundo (Digby, 2014, p. 65).
Para Whitehead, a diferença entre um organismo vivo e o meio inorgânico é apenas uma
questão de nível. Portanto, há uma profunda interconexão entre a(s) natureza(s), o(s)
corpo(s) e as atividades mentais entre todas as entidades que compartem um mesmo
mundo.
Para Danowski e Viveiros de Castro (2014, p. 16), o Antropoceno significa o fim de uma
época no que concerne à vida das espécies na Terra, uma coisa como um tempo presente
sem esperança de um futuro animador, cuja agência do homem para mitigar seus efeitos
não tem a garantia de o conseguir. "O Antropoceno aponta para uma catástrofe
compartilhada" (Chakrabarty apud Danowski e Viveiros de Castro, ibidem).
Neste cenário desolador, há chance para o alento, entretanto: "o 'fim do mundo' só tem
sentido determinado nestes discursos - só se torna ele próprio pensável como possível -se
se determina simultaneamente para quem este mundo que termina é mundo" (ibidem, p.
32).
E o que isto quer dizer? Os autores afirmam que o fim do mundo tem que ser pensado e
discutido como algo que é pensado a partir de um nós que necessariamente tem que
incluir o sujeito do discurso sobre este fim (ibidem, p. 33).
Entretanto, e voltando ao tema do artigo, a questão que surge é: quem é o nós a que se
referem Danowski e Viveiros de Castro? A abordagem desta questão é conclamada pelos
autores como uma tarefa estratégica. "O que se entende por humano ou pessoa em outros
coletivos consensualmente considerados (por nós) como humanos, raramente é colocada"
(ibidem, p. 34).
Como sugerirá Latour e também Gunther Anders (Le temps de la fin), "o tempo do fim
contém dois tipos de homens: os culpados e as vítimas. Devemos levar em conta essa
dualidade em nossa reação" (p. 114). Latour, em seminário na Universidade de
Edimburgo, deu nomes a esses dois tipos: "Humanos" e "Terranos" (Latour, Gifford
Lectures, 2013).
A guerra de Gaia opõe dois campos ou partidos povoados
de humanos e não humanos - bichos, plantas, máquinas,
rios, glaciares, oceanos, elementos químicos, enfim, toda
a gama de existentes que se acham envolvidos no
advento do Antropoceno, e cuja persistência (...) se põe,
virtual ou atualmente, como "negadora" do campo oposto
(...): na situação (...) de inimigo político, portanto
(DANOWSKI e CASTRO 2014, pp. 133-134).
Terranos, humanos, ou seja lá o que isso signifique, nós não somos a individualidade que
cada um parece ser. Estamos mesmo mais para um processo irradiado de de associações
humanas e não humanas em estado atual de permanência, em um movimento natural de
finitude que se completa no infinito.
Nesta condição, ao mesmo tempo de devir frequente e objetivação eterna, somos uma
espécie de "Nós" que é, embora ainda estejamos por vir? Somos no real uma consciência
processual coletiva, em uma identidade de realidade possível, de um aqui-e-agora que
termina e recomeça infinitamente? São interrogações que não nos abandonam, desde os
questionamentos isolados do "quem sou" humano perdido na treva do individualismo e
do antropocentrismo.
Somos - prefiro pensar como os pensadores aqui comentados nos permitem a ilação -
portadores de uma identidade ainda não de todo definida, vivendo uma espécie de
processo de conexões associadas de coexistência, de oposição e de exclusão entre seres e
coisas em constante alteridade.
Se esta identidade pode ser nomeada terrana é algo a ser pensado no que diz respeito às
finalidades conceituais. Entretanto - em que pese sua direção primeira de referência dizer
respeito à Terra (ou Gaia, ou Pachamama) sem considerar as múltiplas conexões que nos
envolvem a todo o real além da nossa identidade planetária - é uma nominação melhor do
que a de humanos, a julgar todas as implicações nefastas que a condição imposta pelo
paradigma antropocêntrico trouxe a todos os seres e ao mundo.
Referências
BERNAL, Jorge Enjuto. La filosofia de Alfred North Whitehead. Madrid: Editoral
Tecnos, 1967.
DEL CONT, Valdeir. Francis Galton: eugenia e hereditariedade. Sci. stud., São Paulo ,
v. 6, n. 2, p. 201-218, June 2008. Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S1678-31662008000200004&lng=en&nrm=iso>
FANCHER, R. E. Alphonse de Candolle, Francis Galton, and the early history of the
nature-nurture controversy. Journal Hist. Behav. Sci. 1983 Oct;19(4):341-52. Disponível
em: <http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/1520-6696(198310)19:4%3C
%3E1.0.CO;2-3/issuetoc>
LATOUR, Bruno. ¿El cosmos de quién? ¿Qué cosmopolítica?: Comentarios sobre los
términos de paz de Ülrich Beck. Madrid: Rev. Pléyade, v. 14, Jul-Dic, 2014, pp. 43-59.
Disponível em: <http://132.248.9.34/hevila/PleyadeSantiago/2014/no14/3.pdf>
LEVINAS, Emmanuel. Entre nós: Ensaios sobre a alteridade. Rio de Janeiro: Vozes,
1997.
TARDE, Gabriel. Monadologia e sociedade. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac
Naify, 2007.
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