Lingua Estrangeira

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Língua estrangeira

Ensino e aprendizagem

Vilson J. Leffa
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PELOTAS

Chanceler
D. Jacinto Bergmann

Reitor
José Carlos Bachettini Júnior

Pró-Reitora Acadêmica
Patricia Haertel Giusti

Pró-Reitor Administrativo
Eduardo Luis Insaurriaga dos Santos

EDUCAT - EDITORA DA UCPel

Editora Executiva
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Cezar Augusto Burket Bastos – FURG
Christiane Saraiva Ogrodowski – FURG
Eduardo Antonio Cesar da Costa – UCPel
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Hiram Larangeira de Almeida Júnior – UCPel
Luiz Antônio Bogo Chies – UCPel
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Vilson José Leffa – UCPel

EDUCAT
Editora da Universidade Católica de Pelotas
Rua Félix da Cunha, 412
Fone (53)2128.8297 – FAX (53)2128.8229 - Pelotas - RS - Brasil
Vilson J. Leffa

Língua estrangeira

Ensino e aprendizagem

Editora da Universidade Católica de Pelotas


2016
© 2016 Vison J. Leffa
Direitos desta edição reservados à
Editora da Universidade Católica de Pelotas
Rua Félix da Cunha, 412
Fone (53)2128.8297 - Fax (53)2128.8229
Pelotas - RS - Brasil

Editora filiada

A revisão textual e de conteúdo é de inteira responsabilidade do(s) autor(es)


e do(s) organizador(es).

PROJETO EDITORIAL
EDUCAT

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E CAPA


Ana Gertrudes G. Cardoso

Este livro usa a licença Creative Commons CC BY. O leitor pode distribuir,
remixar e adaptar o texto, desde que atribua ao autor o devido crédito.

L493l Leffa, Vilson J.


Língua estrangeira. Ensino e aprendizagem. Vilson J. Leffa. -
Pelotas: EDUCAT, 2016.

324p.

ISBN 978-85-7590-180-9

1. língua estrangeira - aquisição 2. língua estrangeira – estudo


e ensino. 3. língua estrangeira – ensino fundamental. I. Título. II.

CDD 418.40071

Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Cristiane de Freitas Chim


CRB 10/1233
Sumário

Introdução .......................................................................... 7

Primeira Parte – Ensino

1. Do método ao pós-método: a evolução no ensino


de línguas...................................................................... 21
2. O ensino das línguas estrangeiras no Brasil .................. 49
3. O professor ideal ........................................................... 67
4. Aspectos políticos da formação do professor de LE .... 81
5. Como produzir materiais para o ensino de línguas ....... 105
6. O ensino da LE na era da cibercultura .......................... 127
7. O ensino da LE no futuro: da dicotomia para a
convergência ................................................................. 147

Segunda Parte – Aprendizagem

8. A perspectiva do aluno da escola fundamental ............ 169


9. A perspectiva do aluno universitário ............................ 181
10. A leitura da outra língua: uma crítica das estratégias . 195
11. Texto autêntico e interdisciplinaridade em língua
instrumental: utopia ou realidade? ............................... 211
12. O processo de autorrevisão na produção do
texto em LE ................................................................. 221
13.Escrevendo para a comunidade científica: o desafio
de ser original de acordo com as normas ..................... 243
14. Aspectos externos e internos da aquisição lexical ...... 257
15. A autonomia na aprendizagem de línguas ................... 287

Referências ........................................................................ 305


6 Vilson J. Leffa
Língua Estrangeira 7

Introdução

A paixão de aprender uma língua estrangeira

Este livro foi escrito por alguém que sempre se sentiu


seduzido pelo mistério da língua estrangeira (LE doravante). Não
se trata de uma segunda língua, falada pelo vizinho que mora do
outro lado da rua ou por colegas da sala de aula; e nem se trata de
uma língua adicional, dada por acréscimo e sem mistério. No
meu caso, eram línguas estrangeiras mesmo, estranhas no som e
na combinação das palavras, prometendo mundos distantes que
eu estava ansioso por conhecer.
Um dos prazeres de minha juventude era economizar uns
trocados para poder passar numa boa banca de revistas e escolher
um jornal em espanhol, uma revista em francês ou um livro de
bolso em inglês. Muitas noites passei com o ouvido colado no
rádio de ondas curtas, buscando estações do mundo inteiro e
ouvindo noticiários em línguas diferentes. Quando ia ao cinema,
buscava não só aqueles que apresentavam o filme que eu queria
ver, mas também aqueles que tinham o melhor equipamento de
som, para que eu pudesse entender o que as pessoas falavam.
Não tinha preferência por uma ou outra língua; gostava de todas
– sem a mínima preocupação de saber se minha mente estava ou
não sendo colonizada. Tinha não só os olhos e ouvidos abertos,
mas também a mente e o coração.
Com essa abertura total, sem qualquer tipo de filtro ou
proteção, é inevitável que eu tenha sido contaminado por algum
vírus, provavelmente um “Cavalo de Tróia” – daquele tipo que
entra disfarçado no organismo, carregando dentro de si o inimigo.
Vou me esforçar para mostrar os conflitos e os perigos que
enfrentamos ao aprender uma língua estrangeira, mas, como
acabei ficando totalmente seduzido pelo que vou abordar neste
livro – o ensino e a aprendizagem da língua estrangeira –, sinto
que a visão, lá no fim, será pacificadora.
8 Vilson J. Leffa

Do estranhamento ao entranhamento

Ao me deixar levar pela paixão das línguas estrangeiras,


descobri também que sua aprendizagem não é fácil. Trata-se de
uma façanha tão extraordinária que muitos não conseguem realizá-
la por mais que se empenhem. Dominar uma língua com
proficiência pode levar muitos anos ou mesmo uma vida inteira.
Não conheço alguém que tenha se arrependido de ter aprendido
uma língua estrangeira, mas conheço alguns que teriam desistido
se soubessem que seria tão difícil.
Essa dificuldade surge, em primeiro lugar, da necessidade
de modificar os automatismos básicos que construímos ao longo
dos anos de uso da língua materna e, em segundo lugar, da própria
complexidade do que é aprender uma LE. Em relação direta com
a mudança dos automatismos, há os estranhamentos iniciais que
devem ser vencidos, incluindo sons que precisam ser percebidos,
mas que escapam ao nosso ouvido ou que precisam ser articulados,
mas que nos parecem impronunciáveis.
A tarefa de aprender uma LE envolve também uma
reestruturação múltipla, que repercute em diferentes domínios
da nossa mente. No domínio cognitivo, as relações que
tranquilamente acreditávamos existir entre as frases e o mundo,
deixam de existir. Se em português dizemos “bom dia” antes do
almoço e “boa tarde” depois, temos que aprender que em francês
se diz “bom dia” de manhã e de tarde. No domínio afetivo, aquilo
que amávamos pode tornar-se execrável e vice-versa. Nossa
própria ideologia entra em rota de colisão com o mundo da LE
em áreas que julgávamos insuspeitas, incluindo diferentes relações
de poder, novas questões éticas, distanciamentos maiores e
menores entre os corpos etc.
Descobrimos que o domínio de uma LE não é um
conhecimento a mais que se adquire e que se soma ao que já
temos, como se fosse uma mercadoria acrescentada ao patrimônio.
O que é estrangeiro e, portanto, estranho a nós, precisa penetrar
na nossa intimidade, provocando um entranhamento que mexe
na nossa estrutura psicomotora, afetiva, cognitiva e social.
Língua Estrangeira 9

Essa passagem do estranhamento para o entranhamento é


muito mais difícil do que faz acreditar a publicidade de alguns
cursinhos e livros didáticos, às vezes prometendo o domínio da
LE em menos de um ano, com uma hora de estudo por dia. Não
há uma fórmula mágica que produza um resultado tão rápido, a
não ser, talvez, a paixão.

Delimitando o território

A complexidade da LE abrange diferentes domínios do


conhecimento, não só do ponto de vista individual, mas também
do ponto de vista coletivo, como ciência interdisciplinar. São
dois universos que se desdobram e que precisam ser estudados
em dois planos diferentes: um que está dentro de nós, entranhado
em nossa mente – envolvendo, como já vimos, os domínios
cognitivo, afetivo e psicomotor –, e um outro, externo a nós,
envolvendo áreas de conhecimento como a Linguística,
Linguística Aplicada, Psicologia, Pedagogia, Antropologia etc.
Escrever um livro sobre o ensino e aprendizagem da LE é
mapear esses dois universos: o interno, com endereço impreciso,
mas residente em algum lugar do nosso cérebro; e o externo,
disseminado por diferentes disciplinas, o que dá o caráter
essencialmente transdisciplinar da área. Um mapeamento
adequado exige, portanto, o estabelecimento de fronteiras para
que se possa definir com alguma precisão o que pertence ou não
pertence à LE.
Identificar as fronteiras de cada um desses universos já é,
em si, uma tarefa desafiadora, mas é apenas o primeiro passo. O
outro, mais importante e necessário pela extensão da área, é
selecionar os tópicos que não podem faltar num livro sobre o
ensino da LE, escrito numa determinada época e num determinado
lugar. O desafio aqui é determinar a nacionalidade dos tópicos,
principalmente quando fronteiriços, trazendo-os para a LE quando
relevantes para a área, ou deixando-os do outro lado da fronteira
quando não forem essenciais. Parto aqui do princípio de que é
melhor abranger menos e aprofundar mais, saindo da superfície e
10 Vilson J. Leffa

perfurando o terreno, do que abranger mais e aprofundar menos,


ficando na superfície e não construindo uma base sólida.
Pretende-se fazer essa demarcação usando dois pontos de
referência: o ensino e a aprendizagem. Mostra-se de um lado a
perspectiva do professor, com ênfase no ensino, visto como a
oferta de condições para que a aprendizagem ocorra; do outro,
está a perspectiva do aluno e de como ele percebe essa
aprendizagem que lhe é oferecida. Enquanto o professor tem um
ponto de referência mais ou menos fixo, o aluno se caracteriza
pela mobilidade, marcada pela sua evolução no processo de
aprendizagem. O aluno da escola fundamental, por exemplo, não
pode ser visto da mesma maneira que o aluno universitário.

A questão do ensino

Na primeira parte do livro, enfoco alguns problemas do


ensino da LE, partindo da perspectiva do professor. A ideia, nestes
sete capítulos iniciais, é situar o professor de línguas estrangeiras
nos diferentes espaços que ele pode ocupar: do histórico ao
geográfico e do metodológico ao político. Tento refletir sobre
algumas questões essenciais, incluindo as opções metodológicas
disponíveis ao professor, o que é um professor ideal, a formação
política do professor, a produção de materiais de ensino e a
evolução do ensino de línguas, procurando mostrar,
essencialmente, de onde viemos, onde estamos e para onde vamos.
O Capítulo 1, Do método ao pós-método: a evolução no
ensino de línguas, trata da questão do método. Tento resgatar aí
o essencial do que já foi feito e o que está sendo proposto sobre a
ciência e a arte de se ensinar uma LE, mostrando o caminho
percorrido pelos diferentes métodos. A meu ver, evoluímos da
ideia do método único para uma convivência mais saudável de
diferentes maneiras de ensinar e aprender. A verdade não está
mais contida numa capela fechada, inacessível aos que não
aderirem a uma determinada cartilha, mas transborda e se espalha
por diferentes teorias. Considero este capítulo um texto de
fundamentação teórica, abordando o que é básico para qualquer
reflexão sobre a área.
Língua Estrangeira 11

O Capítulo 2, O ensino das línguas estrangeiras no Brasil,


aborda a questão do ensino da LE em nosso país em sua evolução
histórica, mostrando o contorno de ascensão e queda da LE na
escola. A história da LE no Brasil parece ser marcada por
diferentes movimentos pendulares, indo de um extremo a outro.
Tento resgatar aí algumas dessas dicotomias, mostrando os
momentos de centralização e descentralização, os períodos de
construção e destruição – e as difíceis reconstruções para recuperar
os prejuízos causados por determinadas legislações. Inicio neste
capítulo algumas questões que serão retomadas mais tarde, como
a questão política do ensino de línguas e o uso das novas
tecnologias.
O Capítulo 3, O professor ideal, enfoca a questão das
qualidades desejáveis do professor de línguas estrangeiras.
Inicialmente teço algumas considerações sobre teorias que
aparentemente conspiram contra a ação do professor, diminuindo
sua importância, como a ideia, por exemplo, de que o professor
não sabe o que ensina ou de que a verdadeira aprendizagem não
pode ser implementada pelo professor, na medida em que ocorre
abaixo do nível da consciência. Tento mostrar que ao lado de
uma ênfase no papel do inconsciente, existe um movimento
contrário, de valorização da consciência, incluindo a ideia de que
o professor deva ser um profissional reflexivo. Faço uma revisão
da literatura sobre as competências desejáveis do professor, em
termos do conteúdo, da metodologia e dos traços de personalidade
que ele deve possuir para facilitar a aprendizagem. Finalmente,
destaco e amplio dessa literatura algumas competências essências,
com ênfase no domínio afetivo.
A que interesses deve servir o professor de línguas
estrangeiras? Esta é a pergunta que tento responder no Capítulo
4, Aspectos políticos da formação do professor de línguas
estrangeiras, destacando a importância da formação política do
professor. Parto do pressuposto de que o ensino da língua
estrangeira envolve um conflito de interesses que o professor
precisa saber resolver – e proponho um novo paradigma de
prioridades, usando como exemplo o ensino da língua inglesa
12 Vilson J. Leffa

para alunos brasileiros. Tento argumentar que o inglês na


atualidade – como é também, até certo ponto, o espanhol e como
foi o francês no passado – não são línguas nacionais, mas
multinacionais; e por isso requerem uma abordagem diferente.
Essa abordagem diferente deve permitir, por exemplo, que se
escolha uma determinada variedade da língua, até mesmo uma
variedade local, quando disponível; como a opção pelo “inglês
brasileiro”, por exemplo.
O professor não precisa estar sempre presente para atuar;
ele pode também atuar na ausência, através de algum artefato,
como um texto ou uma folha de exercícios. Este é o tópico do
Capítulo 5, Como produzir materiais para o ensino de línguas,
em que trato da produção de materiais de ensino pelo professor.
A ideia é mostrar que, ao produzir seu próprio material, o professor
tem mais condições de atender aos interesses e necessidade de
seus alunos. Tenta-se oferecer ao professor um roteiro básico do
que ele precisa fazer para ampliar sua ação didática, retomando
alguns conceitos clássicos do ensino, como a taxionomia dos
objetivos de Bloom, os eventos instrucionais de Gagné e o modelo
clássico da motivação, envolvendo atenção, relevância, confiança
e satisfação. Consideram-se também alguns aspectos básicos da
produção de materiais como o ensino mediado pelo instrumento
e o uso de materiais autênticos.
O Capítulo 6, O ensino da LE na era da cibercultura, é
uma tentativa de descrever o ensino da língua estrangeira na era
da globalização e da internet, retomando algumas questões que
considero fundamentais, como a dicotomia entre realidade e
virtualidade, a criação das comunidades virtuais, não mais
baseadas em fronteiras geográficas, mas em fronteiras
ocupacionais, e o impacto que tudo isso traz para o ensino da LE,
na medida em que cria e aumenta a necessidade de aprender outras
línguas. A virtualidade é apresentada aqui, não como oposição à
realidade, mas como uma forma de materialização do virtual.
Argumenta-se que, ao lado de uma “realidade virtual”, temos
também uma “virtualidade real”. Todo esse contexto lança para
o professor um desafio maior, que é preparar o aluno, não para o
Língua Estrangeira 13

mundo em que vivemos hoje mas para o mundo em que o aluno


vai viver amanhã.
O Capítulo 7, O ensino da LE no futuro, encerra a primeira
parte do livro. Analisando os dados que temos sobre o passado e
do que sabemos sobre o presente, tento identificar alguns padrões
recursivos para fazer uma projeção sobre o futuro do ensino da
língua estrangeira. Entendo que estamos encerrando um período
de dicotomias, finalmente vencendo a síndrome do pêndulo, para
iniciar uma era de convergências, numa posição assumidamente
otimista. Vislumbro para o futuro um processo generalizado de
convergências, fundindo tecnologias, métodos e teorias. Entre
as possíveis convergências destaco a união da pesquisa com o
ensino, da inteligência com a emoção, do local com o global e do
real com o virtual. A ideia é de que vivemos num mundo
interdependente onde tudo e todos se relacionam.

A questão da aprendizagem

A segunda parte do livro enfoca a aprendizagem da LE da


perspectiva do aluno, tentando descrever como ele vê essa
aprendizagem, as estratégias que usa para resolver os problemas
que encontra, como lê, como escreve e como administra sua
própria aprendizagem.
O Capítulo 8, A perspectiva do aluno da escola
fundamental, tenta descrever qual é a visão que o aluno tem da
língua estrangeira antes de começar a estudá-la. É uma pesquisa
de campo em que se analisam quatro aspectos: que conceito o
aluno tem da LE, o que é um falante da LE, como se aprende uma
LE e, finalmente, para que serve aprender uma determinada LE.
A principal conclusão desse estudo é que os alunos veem a LE
como uma disciplina do currículo, usada basicamente na sala de
aula e não como um instrumento de comunicação usado na vida
real por pessoas em situações autênticas de uso.
Enquanto o Capítulo 8 analisou a perspectiva do aluno antes
de estudar a língua, o Capítulo 9, A perspectiva do aluno
universitário, vai analisar a concepção de LE do aluno que passou
14 Vilson J. Leffa

por vários anos de estudo. Selecionou-se um grupo de alunos


que eram leitores proficientes da língua estrangeira e solicitou-se
a esse grupo que individualmente ajudasse um colega menos
proficiente a entender um texto em língua inglesa, escrevendo
um diário sobre a experiência. A análise dos diários mostrou que
os leitores proficientes da LE, nunca expostos a aulas de inglês
instrumental, têm uma concepção de leitura muito próxima do
que dizem os teóricos da área, incluindo o uso dos processos de
inferenciação para resolver as dificuldades do léxico. Veem como
fatores importantes da compreensão, no entanto, tanto a
competência linguística como a competência estratégica, sem
priorizar uma ou outra.
O Capítulo 10, A leitura da outra língua: uma crítica das
estratégias, retoma essa questão da necessidade maior ou menor
da competência estratégica em contraponto com a competência
linguística. Faço uma revisão de como as estratégias têm sido
usadas pelos especialistas da área da leitura; desde o que chamo
de abordagem quantitativa, em que o sucesso do leitor vai
depender de sua proficiência no uso de diversas estratégias;
passando por abordagens qualitativas, com ênfase na ideia de que
há estratégias certas e erradas; até a hipótese da compensação de
Stanovich (1980), segundo a qual o déficit que o leitor possa ter
em alguma área de conhecimento (ex.: lexical) tem a possibilidade
de ser compensado pelo domínio de uma outra área (ex.:
conhecimento do tópico).
O Capítulo 11, Texto autêntico e interdisciplinaridade em
língua instrumental: Utopia ou realidade? aborda a questão das
línguas instrumentais, com os problemas que o seu ensino traz
para o professor e para o aluno. Embora eu não defenda o uso de
textos simplificados – e até concordo com a ideia de que se deva
simplificar a tarefa e não o texto – mesmo assim sinto a
necessidade de chamar a atenção para as dificuldades do texto
autêntico quando usado na sala de aula, tanto para o professor
como para o aluno. O professor porque precisa ler e entender um
texto que normalmente não é de sua área de conhecimento; o
aluno porque geralmente acaba lendo um texto que na realidade
Língua Estrangeira 15

não foi escrito para ele – e que por isso deixa de ser um texto
autêntico. Algumas possíveis soluções são apresentadas, com
suas respectivas vantagens e desvantagens.
No Capítulo 12, O processo de autorrevisão na produção
do texto em língua estrangeira, procuro analisar como o aluno
universitário escreve na língua estrangeira. O processo da revisão,
importante na produção de texto em língua materna, é ainda mais
importante na LE, pelas dificuldades maiores que apresenta,
demandando mais esforço do aluno para superar os problemas
encontrados, principalmente de ordem linguística. Embora os
alunos aparentemente não revisem seus textos de modo
espontâneo, ficando apenas no “passar a limpo”, com algumas
alterações que se resumem a aspectos de apresentação gráfica e
correção gramatical do texto, o estudo realizado aqui mostrou,
que quando obrigados a reescrever novamente todo o texto, esses
mesmos alunos introduzem mudanças significativas,
principalmente na expressão das ideias – quer corrigindo
incoerências, quer melhorando o estilo.
O Capítulo 13, Escrevendo para a comunidade científica:
o desafio de ser original de acordo com as normas, abordo a
questão da escrita no nível do mestrado, quando o aluno passa
pelo “batismo de fogo”, ao ser obrigado a produzir uma dissertação
e entrar na comunidade discursiva dos especialistas de sua área.
Trata-se, portanto, de um processo de aculturação, que procuro
descrever em 5 passos essenciais que o aluno precisa galgar: (1)
adquirir competência na língua estrangeira, geralmente visto como
um pré-requisito; (2) familiarizar-se com a terminologia
privilegiada pela comunidade; (3) apropriar-se do conhecimento
compartilhado pressuposto pelos especialistas da comunidade;
(4) adquirir as convenções que determinam o discurso específico
da comunidade em questão; (5) identificar os objetivos da
comunidade, que podem ter uma orientação mais teórica ou mais
prática. Enfatizo no capítulo a importância da criação de
comunidades solidárias de pesquisadores, em os alunos possam
não só interagir com os mestres, mas também apoiar-se uns nos
outros.
16 Vilson J. Leffa

No Capítulo 14, Aspectos externos e internos da aquisição


lexical, analiso a questão de como o aluno pode desenvolver o
vocabulário, com ênfase na tensão que se estabelece entre a
palavra, com seu significado pré-definido, e as forças do texto,
ressignificando a própria palavra. Entender até onde vai o sentido
da palavra e até onde predominam as restrições do texto é uma
das competências que o aluno precisa adquirir para usar a língua
adequadamente. Várias estratégias para o desenvolvimento do
vocabulário são também apresentadas, ressaltando a importância
da profundidade de processamento, o uso adequado do contexto,
a necessidade de ser seletivo e as estratégias de fixação. A ideia
geral do capítulo é de que o vocabulário é um aspecto importante
na aprendizagem de uma língua, mas que só faz sentido quando
se leva em consideração as restrições do texto.
Finalmente, no Capítulo 15, A autonomia na aprendizagem
de línguas, abordo a questão do aluno autônomo, capaz de
gerenciar sua própria aprendizagem. Parto do princípio de que o
mundo atual conspira contra a autonomia. Teoricamente, tanto
na Psicologia, como na Linguística e principalmente na Análise
do Discurso, há a ideia generalizada de aniquilamento do sujeito.
Além das restrições teóricas, há também as restrições práticas,
tanto de parte do aluno, como do professor e da escola. Em que
pese todas essas restrições, tento mostrar a necessidade que o
aluno tem de ir além do que é dado na escola, o que só é possível
com o exercício da autonomia.

A sedução da LE

Há mais coisas sobre o ensino e aprendizagem de uma LE


do que está exposto neste livro. Como qualquer texto, há também
aqui lacunas que o leitor precisa preencher para completar a obra.
O que se oferece na realidade é um balizamento, colocando
plataformas sobre um território que considero vasto, movediço e
até perigoso. A aprendizagem de uma língua estrangeira mexe
não apenas com nossa inteligência e sentimentos mais íntimos,
mas também com relações de poder entre os países – envolvendo
Língua Estrangeira 17

amores e ódios, autonomia e submissão, conquistas e frustrações.


A aprendizagem de uma língua estrangeira atravessa o indivíduo
e a sociedade. Tudo isso é abordado neste livro, mas não pode
ser feito de modo exaustivo. Por isso, optou-se pela construção
de plataformas; a travessia entre uma plataforma e outra fica sob
a responsabilidade do leitor.
Na imagem bíblica da Torre de Babel, as línguas
estrangeiras foram criadas para castigar e confundir as pessoas.
O objetivo secreto, ingênuo e quase inconfessável deste livro é
fazer o contrário; destruir a torre, aproximar as pessoas e mostrar
o fascínio de aprender a língua do outro.
18 Vilson J. Leffa
Língua Estrangeira 19

PRIMEIRA PARTE

ENSINO
20 Vilson J. Leffa
Língua Estrangeira 21

Capítulo 1
Do método ao pós-método:
a evolução no ensino de línguas1

Introdução

O objetivo deste capítulo é dar uma visão dos principais


métodos de ensino de línguas, tanto do ponto de vista diacrônico
(a sucessão histórica dos diferentes métodos) como sincrônico (a
convivência de diferentes métodos numa época). A intenção não
é doutrinar o professor no uso de um determinado método, mas
informá-lo das opções existentes. Cabe a ele, partindo de sua
experiência, das características de seus alunos, e das condições
existentes, tomar a decisão final.
O que se pretende com uma revisão histórica dos métodos
é fazer com que o professor comece onde os outros pararam, sem
necessidade de reinventar a roda ou repetir os erros do passado.
Sem uma visão histórica, a evolução se torna impossível.

O problema da terminologia

Para descrever os diferentes métodos pelos quais se pode


aprender uma língua estrangeira, precisa-se de uma terminologia
adequada. Devido à grande abrangência com que se usava o termo
“método” no passado – desde a fundamentação teórica que
sustenta o próprio método até a elaboração de normas para a
criação de um determinado curso – convencionou-se subdividi-
lo em abordagem (“approach” em inglês) e método propriamente
dito. Abordagem é o termo mais abrangente e engloba os

1
Este capítulo é uma versão atualizada e ampliada de: LEFFA, Vilson J.
Metodologia do ensino de línguas. In: BOHN, Hilário; VANDRESEN,
Paulino. (Org.). Tópicos de linguística aplicada; o ensino de línguas
estrangeiras. Florianópolis, 1988, v. 1, p. 211-236.
22 Vilson J. Leffa

pressupostos teóricos acerca da língua e da aprendizagem. As


abordagens variam na medida em que variam esses pressupostos.
0 pressuposto, por exemplo, de que a língua é uma resposta
automática a um estímulo e de que a aprendizagem se dá pela
automatização dessas respostas vai gerar uma determinada
abordagem para o ensino de línguas – que será diferente da
abordagem gerada pela crença de que a língua é uma atividade
cognitiva e de que a aprendizagem se dá pela internalização das
regras que geram essa atividade. O método tem uma abrangência
mais restrita e pode estar contido dentro de uma abordagem. Não
trata dos pressupostos teóricos da aprendizagem de línguas, mas
de normas de aplicação desses pressupostos. O método, por
exemplo, pode envolver regras para a seleção, ordenação e
apresentação dos itens linguísticos, bem como normas de
avaliação para a elaboração de um determinado curso.
A única dificuldade nessas definições de abordagem e de
método está na imprecisão histórica do termo “método”, já
consagrado tanto no sentido amplo como no restrito (Exemplo: o
“método Direto”, que na verdade não é um método mas uma
abordagem). A solução proposta aqui é usar o termo na acepção
atual e fazer a necessária ressalva para cada caso.
Um outro refinamento atual é a distinção entre
aprendizagem e aquisição. Entende-se por aprendizagem o
desenvolvimento formal e consciente da língua, normalmente
obtido através da explicitação de regras. Aquisição é o
desenvolvimento informal e espontâneo da segunda língua, obtido
normalmente através de situações reais, sem esforço consciente.
Na aprendizagem, o enunciado tem origem na língua materna,
podendo conscientemente passar para a segunda língua. Na
aquisição, o enunciado já se origina diretamente na segunda
língua.
Não existe um termo abrangente para as duas acepções,
embora a palavra “desenvolvimento” tenha sido sugerida por
alguns teóricos. Usar-se-á aqui o termo aprendizagem quando se
precisar dessa abrangência, que assim valerá tanto para aquisição
como para aprendizagem propriamente dita.
Língua Estrangeira 23

Uma distinção que também precisa ser feita refere-se aos


termos segunda língua e língua estrangeira. Temos o estudo de
uma segunda língua no caso em que a língua estudada é usada
fora da sala de aula da comunidade em que vive o aluno (exemplo:
situação do aluno brasileiro que foi estudar francês na França).
Temos língua estrangeira quando a comunidade não usa a língua
estudada na sala de aula (exemplo: situação do aluno que estuda
inglês no Brasil). Para os dois casos usa-se aqui, como termo
abrangente, a sigla L2.
Um último termo é necessário; este para descrever a pessoa
que examina, critica e/ou propõe métodos de ensino de línguas.
Essa pessoa pode ser um educador, um linguista aplicado, um
teórico, um autor de livro didático a até um professor, mas não
exerce nenhuma dessas funções quando assina um artigo sobre o
ensino de línguas. Para essa pessoa usa-se aqui o termo
metodólogo.

A abordagem da gramática e da tradução (AGT)

Conhecida tradicionalmente como “método”, a AGT tem


sido a metodologia com mais tempo de uso na história do ensino
de línguas, e a que mais críticas tem recebido. Surgiu com o
interesse pelas culturas grega e latina na época do renascimento
e continua sendo empregada até hoje, ainda que de modo bastante
esporádico, com diversas adaptações e finalidades mais
específicas.
Basicamente a AGT consiste no ensino da segunda língua
pela primeira. Toda a informação necessária para construir uma
frase, entender um texto ou apreciar um autor é dada através de
explicações na língua materna do aluno. Os três passos essenciais
para a aprendizagem da língua são: (a) memorização prévia de
uma lista de palavras, (b) conhecimento das regras necessárias
para juntar essas palavras em frases e (c) exercícios de tradução
e versão (tema). É uma abordagem dedutiva, partindo sempre da
regra para o exemplo.
24 Vilson J. Leffa

A ênfase está na forma escrita da língua, desde os exercícios


iniciais até a leitura final dos autores clássicos do idioma. Pouca
ou nenhuma atenção é dada aos aspectos de pronúncia e de
entonação. A origem da maioria das atividades da sala de aula
está no livro-texto, de modo que o domínio oral da língua por
parte do professor não é um aspecto crucial. O que ele precisa
mais é o domínio da terminologia gramatical e o conhecimento
profundo das regras do idioma com todas as suas exceções. Saber
responder prontamente a uma dúvida surgida em aula, ainda que
usando a obscura exceção de uma regra, é mais importante do
que saber pronunciar corretamente a mais simples das frases. (O
Anexo 1 mostra atividades desenvolvidas na sala de aula em que
se utiliza a metodologia AGT).
O objetivo final da AGT é – ou era – levar o aluno a apreciar
a cultura e a literatura da L2. Na consecução desse objetivo,
acreditava-se que ele acabava adquirindo um conhecimento mais
profundo de seu próprio idioma, desenvolvendo sua inteligência
e capacidade de raciocínio.

A abordagem direta (tradicionalmente “Método Direto”)

A Abordagem Direta (AD) é quase tão antiga quanto a AGT.


Surgiu como uma reação a esta e evidências de seu uso datam do
início do século XVI. O caso de Montaigne, o famoso ensaísta
francês, que já na década de 1530 aprendeu latim pelo método
direto, é citado pelos defensores da AD como um exemplo de seu
sucesso.
Enquanto que a AGT sofreu sempre severas críticas, sem
nenhum nome importante ligado a ela (é até mais fácil citar
pessoas que se destacaram por ataques a abordagem, como Vietor
no século XIX na Alemanha) – a AD teve grandes defensores
(Harold Palmer, Otto Jespersen, Emile de Sauzé etc.). A primeira
escola Berlitz, fundada nos Estados Unidos em 1878, é um
exemplo do sucesso comercial da abordagem. A oficialização do
método direto na Bélgica (1895), França (1902) e Alemanha
(1902), obrigando seu uso nas escolas públicas, atesta o prestígio
Língua Estrangeira 25

de que gozava a abordagem no início do século. Harold Palmer,


na Inglaterra, batizou-o de “Método Científico”, inaugurando um
epíteto que mais tarde seria reivindicado por vários outros
métodos. O Anexo 2 mostra como na prática a AD apresenta o
material de ensino.
0 princípio fundamental da AD é de que a L2 se aprende
através da L2; a língua materna nunca deve ser usada na sala de
aula. A transmissão do significado dá-se através de gestos e
gravuras, sem jamais recorrer à tradução. 0 aluno deve aprender
a “pensar na língua”.
A ênfase está na língua oral, mas a escrita pode ser
introduzida já nas primeiras aulas. 0 uso de diálogos situacionais
(Ex.: “no banco”, “fazendo compras” etc.) e pequenos trechos de
leitura são o ponto de partida para exercícios orais (compreensão
auditiva, conversação “livre”, pronúncia) a exercícios escritos
(preferencialmente respostas a questionários). A integração das
quatro habilidades (na sequência de ouvir, falar, ler e escrever) é
usada pela primeira vez no ensino de línguas.
A gramática, e mesmo os aspectos culturais da L2, são
ensinados indutivamente. 0 aluno é primeiro exposto aos “fatos”
da língua para mais tarde chegar a sua sistematização. 0 exercício
oral deve preceder o exercício escrito. A técnica da repetição é
usada para o aprendizado automático da língua. 0 uso de diálogos
sobre assuntos da vida diária tem por objetivo tornar viva a língua
usada na sala de aula. 0 ditado é abolido como exercício.
A AD foi introduzida no Brasil em 1932 no Colégio Pedro
II, através de uma “reforma radical no método de ensino” (turmas
de 15 a 20 alunos, seleção rigorosa de professores, escolha de
material adequado etc.).
A AD, em que pese seu prestígio e apoio oficial (inclusive
no Brasil) teve sempre dificuldade em se expandir. Ou por não
ter os pré-requisitos linguísticos exigidos (fluência oral e boa
pronúncia) ou por não possuir a resistência física necessária para
manter a ênfase na fala durante várias horas diárias, o professor,
após o entusiasmo inicial com a AD, acabava sistematicamente
regredindo a uma versão metodológica da AGT.
26 Vilson J. Leffa

0 antagonismo entre a AD, defendida pelos metodólogos


e a AGT, empregada pela maioria dos professores na prática,
parece mostrar uma luta constante que perpassa todo o ensino de
línguas através das mais diferentes abordagens e métodos.
O desabafo de Gatenby, um dos mais recentes defensores da AD,
atesta, do lado dos metodólogos essa batalha aparentemente
inglória com os professores:

A recusa de gerações de professores e administradores


escolares em se beneficiar dos experimentos bem
sucedidos e das teorias comprovadas do passado é em
parte um exemplo da perversidade humana: as pessoas
negam-se a escolher o certo, o melhor ou o que é bom
quando isso lhes é mostrado (GATENBY, 1972:45).

Abordagem para a leitura (tradicionalmente “Método da


Leitura”)

Um dos poucos países que não deu apoio oficial à


Abordagem Direta foram os Estados Unidos da América. Ao
examinar a AD em 1892, a “Comissão dos Doze”, composta de
autoridades educacionais americanas, concluiu que o
desenvolvimento da língua oral não era o objetivo principal do
ensino de línguas nas escolas secundárias americanas. A
habilidade da fala era apenas um objetivo secundário, que mesmo
assim parecia contrariar a natureza e função da escola, já que em
condições normais só seria atingido num grau modesto. O ensino
de línguas deveria antes visar o gosto pela cultura e literatura do
povo estudado, o que seria melhor conseguido em versões
atualizadas da Abordagem da Gramática e da Tradução
(MACKEY, 1965:148).
Na verdade o que faltava era um estudo comparativo entre
a AD e a AGT. As vantagens e desvantagens de cada abordagem
precisavam ser avaliadas não só em termos absolutos, mas também
relativos a uma determinada realidade e aos objetivos para o qual
se estuda uma determinada língua. Este estudo foi feito através
Língua Estrangeira 27

de uma das maiores pesquisas já realizadas sobre o ensino de


línguas, o Modern Foreign Language Studies (MFLS).
O MFLS começou nos Estados Unidos em 1923 e terminou
no Canadá em 1927, depois de investigar, entre outros
estabelecimentos de ensino, 647 centros de ensino superior, 128
faculdades de educação e 1980 departamentos de línguas
estrangeiras.
Os resultados foram publicados entre 1927 a 1932 em
dezessete volumes, envolvendo os mais diferentes aspectos do
ensino de línguas. De acordo com Valnir Chagas:

Tudo como se vê, foi feito pacientemente, objetivamente,


estatisticamente. Cientificamente, em suma. Nada, até onde
possível, se deixou á mercê do acaso ou das soluções
improvisadas, não raro personalíssimas, que haviam
caracterizado a renovação didática dos idiomas estrangeiros
nos últimos cinquenta anos (CHAGAS, 1957:75).

A conclusão de todo este estudo foi de que o objetivo da


aprendizagem de línguas na escola secundária deveria ser
essencialmente prático. Para isso propõe-se uma combinação da
Abordagem da Tradução com a Abordagem Direta; da primeira
adotava-se a ênfase na língua escrita com a reformulação das
regras de gramática, fixando-se no essencial para a compreensão;
da AD adotava-se o princípio de que o aluno deveria ser exposto
diretamente à língua. A praticidade estava, em primeiro lugar, no
fato de que, dentro das condições existentes na escola secundária,
não era possível o desenvolvimento equilibrado das quatro
habilidades da língua. Em segundo lugar, defendia-se a premissa
de que as necessidades dos alunos, na sua grande maioria, não
envolviam conhecimento da língua oral.
O objetivo principal da Abordagem para Leitura (AL) era
obviamente desenvolver a habilidade da leitura. Para isso
procurava-se criar o máximo de condições que propiciassem a
leitura, tanto dentro como fora da sala de aula. Como o
desenvolvimento do vocabulário era considerado essencial,
tentava-se expandi-lo o mais rápido possível. Nas primeiras lições
28 Vilson J. Leffa

era cuidadosamente controlado, uma média de seis palavras novas


por página, baseadas em estatísticas de frequência.
Embora houvesse a preocupação de ensinar a produzir e
reconhecer os sons da língua, a ênfase na pronúncia era mínima.
Predominavam os exercícios escritos, principalmente os
questionários baseados em textos.
A gramática restringia-se ao necessário para a compreensão
da leitura, enfatizando os aspectos morfofonológicos e construções
sintáticas mais comuns. Os exercícios mais usados para
aprendizagem da gramática eram os de transformação de frases.
Ocasionalmente, exercícios de tradução eram também
empregados.
A AL expandiu-se pelas escolas secundárias dos Estados
Unidos na década de 1930, tendo permanecido até o fim da
Segunda Guerra Mundial.
Críticos não faltaram contra a AL, dentro e fora dos Estados
Unidos. De acordo com o Professor Carneiro Leão:

O ensino das línguas vivas é a parte fraca do sistema norte-


americano de educação. Não há um só educador, um só
crítico de educação nos Estados Unidos que assim não
pense. As escolas norte-americanas não deram ainda às
línguas vivas a situação a que elas têm direito (LEÃO,
1935:235).

A premissa de que se pudesse desenvolver uma só


habilidade para fins específicos foi o ponto mais atacado. Segundo
Gatenby:

Não se concebe que um professor de matemática decida


evitar a multiplicação e a divisão devido a sua dificuldade,
e dedique sua atenção ao desenvolvimento da adição e da
subtração entre seus alunos; no entanto um procedimento
muito semelhante é adotado pelo professor de línguas que,
exasperado pela incapacidade de seus alunos em aprender,
ou de si mesmo em ensinar, abandona o ouvir, o falar, o
escrever e se concentra somente na leitura (GATENBY,
1972:43).
Língua Estrangeira 29

Segundo o Professor Valnir Chagas:

Há uma interdependência tão íntima dos quatro aspectos


instrumentais do ensino dos idiomas – ouvir, falar, ler e
escrever que nenhum deles poderá ser atingido
isoladamente, sem que se dê justo relevo aos demais.
Treinados exclusivamente para a leitura, os escolares
americanos terminaram por não aprender nem mesmo a
ler. Não se altera impunemente a ordem natural das coisas
(CHAGAS, 1957:420).

Abordagem audiolingual

A Abordagem Audiolingual (AAL) é a reação dos próprios


americanos contra a AL. Surgiu durante a Segunda Guerra
Mundial quando o exército americano precisou de falantes fluentes
em várias línguas estrangeiras e não os encontrou. A solução foi
produzir esses falantes da maneira mais rápida possível. Para isso
nenhum esforço foi poupado: linguistas e informantes nativos
foram contratados, as turmas de aprendizagem foram reduzidas
ao tamanho ideal, e o tempo, apesar da urgência, foi dado com
liberalidade: nove horas por dia por um período de seis a nove
meses.
Embora nada houvesse de novo no método usado pelo
exército – uma reedição da Abordagem Direta, anteriormente
rejeitada pela Comissão dos Doze – seu sucesso foi tão grande
que as universidades se interessaram pela experiência. Depois,
as escolas secundárias seguiram na adoção do método, provocando
um aumento significativo no número de matrículas. Devido à
existência de linguistas no projeto, o ensino de línguas adquiria
agora o status de ciência. Com o tempo o Método do Exército foi
refinado e se desenvolveu no que hoje é conhecido como
Abordagem Audiolingual. As premissas que sustentavam o
método foram reformuladas com clareza a formaram uma doutrina
coesa que por muitos anos dominou o ensino de línguas. Essas
premissas são as seguintes:
30 Vilson J. Leffa

Língua é fala, não escrita

Estava restabelecida a ênfase na língua oral. No momento


em que se equiparava a fala com a língua, o que não fosse fala
também não era língua. Daí que ensinar a leitura não era ensinar
a língua, já que a escrita era uma fotografia muito mal feita da
fala.
A implicação pedagógica dessa premissa era de que o aluno
deveria primeiro ouvir e falar, depois ler e escrever; como acontece
individualmente na aprendizagem da língua materna e como
acontece com os povos em geral, que só aprendem a escrever
muito depois de terem aprendido a falar. 0 aluno só deveria ser
exposto à língua escrita quando os padrões da língua oral já
estivessem bem automatizados. A apresentação precoce da escrita
prejudicava a pronúncia. A forma preferida de apresentação era o
diálogo, justamente por representar a língua viva do dia-a-dia. 0
laboratório de línguas, pela possibilidade de apresentar gravações
de falantes nativos, possibilitando assim uma pronúncia perfeita,
tornou-se um importante recurso audiovisual.

Língua é um conjunto de hábitos

O behaviorismo de Skinner foi o suporte da AAL em termos


de aprendizagem. A língua era vista como um hábito condicionado
que se adquiria através de um processo mecânico de estímulo e
resposta. As respostas certas dadas pelo aluno deveriam ser
imediatamente reforçadas pelo professor.
Havia uma grande preocupação em evitar que os alunos
cometessem erros. Para isso o ensino era feito através de pequenos
passos, com a aprendizagem gradual das estruturas, que eram
apresentadas uma a uma. No audiolingualismo não se aprendia
errando. Acreditava-se que quem errava acabava aprendendo os
próprios erros.
As estruturas básicas da língua deveriam ser praticadas até
a automatização, o que era conseguido através de exercícios de
repetição. A aprendizagem só ocorria quando o aluno tivesse
Língua Estrangeira 31

realizado a superaprendizagem, isto é, quando tivesse


automatizado a resposta; menos do que isso não era aprendizagem.

Ensine a língua não sobre a língua

A premissa era de que se aprendia uma língua pela prática,


não através de explicitações ou explicações de regras. Perguntas
por parte dos alunos eram desencorajadas. A gramática era
ensinada através da analogia indutiva. Como na abordagem direta,
o aluno era exposto aos fatos da língua.

A língua é o que os falantes nativos dizem, não o que alguém


acha que eles deveriam dizer.

O que a gramática normativa muitas vezes apontava como


errado era, no entanto, sistematicamente usado pelos falantes da
língua padrão. Em vez de certo e errado preferiu-se usar os termos
aceitável e não aceitável. Se os falantes cultos do inglês, por
exemplo, usavam em situações informais a expressão “it’s me”
em vez do prescrito “it’s I”, o professor deveria ensinar nos
diálogos a forma “it’s me”. Do mesmo modo, em cursos de
português para estrangeiros, sugeria-se a expressão “vi ele” em
vez do tradicionalmente correto “vi-o”.

As línguas são diferentes

O audiolingualismo defendia uma versão forte da análise


contrastiva. Pela comparação dos sistemas fonológicos, lexicais,
sintáticos a culturais entre duas línguas podia-se prever os erros
dos alunos. A tarefa primordial do planejador de cursos era detectar
as diferenças entre a primeira e a segunda línguas e concentrar aí
as atividades, evitando assim os erros que seriam causados pela
interferência da língua materna.
O audiolingualismo dominou o ensino de línguas até o
início da década de 1970. Bloomfield, no campo da linguística,
Skinner, no da psicologia, Nida, Fries e Lado, no da metodologia,
são alguns dos grandes nomes do movimento.
32 Vilson J. Leffa

As objeções que foram surgindo contra a AAL, tímidas


na década de 1960 e cada vez mais frequentes na década seguinte,
eram tanto de ordem teórica como prática. Teoricamente começou-
se a questionar o embasamento linguístico e psicológico da
abordagem. A primazia da fala cedeu lugar a uma visão da língua
em que a fala e a escrita eram formas paralelas de manifestação.
Devido à capacidade do ser humano de gerar frases novas, a língua
não podia ser um conjunto de hábitos. 0 professor não devia só
ensinar a língua, mas também sobre a língua. Competência na
língua é mais importante que a performance dos indivíduos com
todos os erros e hesitações. Finalmente os aspectos universais da
língua sobrepujavam de longe as pequenas diferenças entre uma
língua a outra.
Na prática, havia também problemas sérios. Os alunos
que aprenderam pela abordagem audiolingual pareciam apresentar
as mesmas falhas de aprendizes de métodos anteriores: no
momento em que se defrontavam com falantes nativos, em
situações reais de comunicação, pareciam esquecer tudo o que
tinham aprendido na
sala de aula. As repetições intermináveis para desenvolver a
superaprendizagem tornavam as aulas cansativas para os alunos
e professores. A ênfase na forma, em detrimento do significado,
faziam os alunos papaguear frases que não entendiam. (O Anexo
3 apresenta alguns exercícios que exemplificam esta
“mecanização” no ato de “aprender”)
O humanismo e o cognitivismo que predominavam agora
na psicologia não aceitavam a fragmentação da aprendizagem
em pequenas etapas. A ideia de que uma teoria de aprendizagem
humana pudesse se basear em automatismos passou a ser rejeitada:

Até recentemente [início da década de 70], considerava-


se uma heresia sugerir que seres humanos eram de algum
modo interessante diferente de ratos. Acreditava-se que
uma pessoa aprendia uma língua, tanto a primeira como a
segunda, como ela e os ratos aprendiam qualquer outra
coisa: através da repetição, do exercício e da assimilação
de coisas novas sobre uma estrutura antiga já aprendida.
Língua Estrangeira 33

(...) Achava-se que era perigoso deixar uma pessoa pensar


sobre as frases que elas estavam aprendendo (LAKOFF,
1972:60-1).

O ensino de línguas tinha entrado em uma de suas crises


mais sérias. 0 que tinha acontecido até então, quando se rejeitava
uma abordagem, era porque se tinha outra supostamente melhor
para oferecer. Com a rejeição do audiolingualismo, no entanto,
isso não acontecia; os linguistas gerativo-transformacionais, ao
contrário dos linguistas de escolas anteriores, não traziam uma
solução pronta para o ensino de línguas.

Período de transição

Obviamente o ensino de línguas não morreu com o


audiolingualismo; ao lado de um ecleticismo generalizado que
seguiu seu desaparecimento, floresceram vários métodos,
geralmente ligados a um nome, às vezes envoltos numa aura de
misticismo, e com propostas pouco convencionais para o ensino
de línguas.
Entre esses métodos destacam-se:

Sugestologia de Lozanov

Enfatiza os fatores psicológicos da aprendizagem, que


devem ser favorecidos até pelo ambiente físico. A sala deve ser
confortável – poltronas macias, luz indireta, música de fundo
suave – a fim de proporcionar o ambiente mais agradável possível.
Para reduzir a ansiedade e inibição, os alunos podem receber
pseudônimos e adquirir uma nova personalidade.
O desenvolvimento maciço do vocabulário é o aspecto
linguístico mais enfatizado. As quatro habilidades são ensinadas
ao mesmo tempo, principalmente através de longos diálogos lidos
pelo professor com constantes variações de entonação.
34 Vilson J. Leffa

Método de Curran -Aprendizagem por Aconselhamento

Método de aprendizagem centrado no aluno que consiste


no uso de técnicas de terapia de grupo para o ensino de línguas.
Os alunos são colocados em círculos, confrontando-se, enquanto
que o professor circula pelo lado de fora. Quando alguém deseja
dizer alguma coisa, o professor se aproxima e traduz em voz baixa,
na língua estrangeira, a frase do aluno. 0 aluno, usando um
gravador, repete em voz alta a frase traduzida pelo professor. No
fim da sessão, a gravação com todas as frases dos alunos é
reproduzida e transcrita para comentários e observações, incluindo
reações pessoais dos alunos ao processo de aprendizagem da
língua. Com o tempo, os alunos começam a criar frases
diretamente na segunda língua, e podem assumir o papel do
professor do lado de fora do círculo.

Método silencioso de Gattegno

Consiste fundamentalmente no ensino da língua através


de pequenos bastões coloridos, que o professor usa para criar as
mais diferentes situações de aprendizagem, juntamente com
gráficos, também coloridos, para o ensino da pronúncia. A segunda
língua é adquirida à medida que o aluno vai manipulando os
bastões e consultando o gráfico. 0 professor permanece calado a
maior parte do tempo.

Método de Asher – Resposta física Total

Basicamente consiste no ensino da segunda língua através


de comandos emitidos pelo professor e executados pelo aluno.
No começo, estes comandos são simples (exemplo: “levante-se”,
“sente-se”), mas tornam-se mais complexos à medida que se
avança no curso (ex.: “Carlos, vá ao quadro e desenhe uma cadeira
com giz amarelo, uma mesa com giz branco e um armário com
giz vermelho”).
Língua Estrangeira 35

A premissa fundamental do método é de que se aprende


melhor uma língua depois de ouvi-la e entendê-la. Daí que a prática
oral por parte do aluno só começa mais tarde, quando ele estiver
interessado em falar.

Abordagem Natural

É a abordagem que tenta aplicar na sala de aula a teoria de


Stephen Krashen, conhecida como Modelo do Monitor ou Modelo
do Input. Visa desenvolver a aquisição da língua (uso inconsciente
das regras gramaticais) em vez da aprendizagem (uso consciente).
A premissa básica é que o aluno deve receber um input linguístico
quase totalmente compreensível, de modo a ampliar sua
compreensão da língua. A fala deve surgir naturalmente, sem
pressão do professor.

Abordagem Comunicativa

Enquanto que nos Estados Unidos, quer na linguística


estruturalista de Bloomfield ou na gramática gerativo-
transformacional de Chomsky, os linguistas se concentravam no
código da língua, analisada ascendentemente até o nível da frase,
na Europa os linguistas mantinham a tradição dos estudos
semânticos e sociolinguísticos, enfatizando o estudo do discurso.
Esse estudo pressupunha não apenas a análise do texto – oral ou
escrito – mas também as circunstâncias em que o texto era
produzido e interpretado.
A língua era analisada não como um conjunto de frases,
mas como um conjunto de eventos comunicativos.
Essa nova visão da língua, aliada a um grande interesse
pelo seu ensino – que não existia na escola gerativo-
transformacional veio preencher o enorme vazio deixado pelo
declínio do audiolingualismo. Os metodólogos do ensino de
línguas, após vários anos de abandono, reencontraram o apoio
que lhes tinha sido negado pelos linguistas da escola de Chomsky.
36 Vilson J. Leffa

Nascia dessa nova união, com grande impacto para o ensino de


línguas, a Abordagem Comunicativa (AC).
Enquanto que no audiolingualismo o ensino da língua se
concentrava no código, amplamente descrito durante os vários
anos do estruturalismo, a nova abordagem enfatizava a semântica
da língua, descrita fragmentariamente em alguns estudos esparsos.
Dai que o primeiro desafio dos metodólogos foi elaborar um
inventário das noções e funções que normalmente se expressam
através da língua. 0 objetivo não era descrever a forma da língua,
mas aquilo que se faz através da língua.
Não faltaram as chamadas taxionomias, tentativas de
classificação sistemática das noções e funções. As duas mais
citadas são as de Wilkins (1976) e van Ek (1976)
Wilkins dividiu as noções em duas categorias: categorias
semântico-gramaticais e categorias de funções comunicativas. As
categorias semântico-gramaticais expressam noções gerais de
tempo, espaço, quantidade, caso etc. As categorias de funções
comunicativas expressam o propósito para o qual se usa a língua.
Van Ek dividiu as funções da língua em seis grandes
categorias, cada uma subdividida em funções menores: (1)
expressando e descobrindo informações factuais (exemplo:
identificando, perguntando etc.) (2) expressando e descobrindo
atitudes intelectuais (exemplo: concordando, negando etc.), (3)
expressando e descobrindo atitudes emocionais (exemplo:
expressando ou inquirindo sobre prazer, surpresa, gratidão etc.),
(4) expressando e descobrindo atitudes morais (exemplo: pedindo
desculpas, expressando aprovação etc.), (5) suasão (exemplo:
pedir a alguém para fazer alguma coisa), (6) socialização
(exemplo: cumprimentar, despedir-se etc.).
O uso de elementos dessas taxionomias na elaboração de
material didático foi uma das características mais salientes da
AC. Até os títulos das unidades eram muitas vezes expressos em
termos funcionais: “perguntando e dizendo o nome”, “oferecendo,
aceitando e recusando ajuda”, “perguntando e dizendo o que as
pessoas fazem todos os dias” etc. Como essas funções podem ser
expressas não só em diferentes graus de complexidade sintática,
mas também em diversos níveis de formalidade, elas são
Língua Estrangeira 37

apresentadas várias vezes durante o curso, partindo geralmente


do uso de expoentes linguísticos mais simples para os mais
complexos; é a chamada abordagem espiral.
O fato de que a mesma função pode ser expressa através
de um grande número de expoentes linguísticos demonstra que
as palavras não têm apenas significado imediato, aquele registrado
no dicionário, mas adquirem um valor especifico relativo ao
contexto em que são usadas. Há por exemplo inúmeras maneiras
de se pedir para que alguém deixe o recinto em que a gente se
encontra. Pode ser um simples “sai”, um “preciso me concentrar
neste artigo”, um “não quer brincar lá fora com a bola nova?”,
um jocoso “vai ver se estou lá na esquina”, ou até uma expressão
altamente contextualizada como “meu marido vai chegar daqui a
pouco”. A função, a força ilocucionária, ou o valor de todas essas
expressões é o mesmo: o interlocutor é solicitado a se retirar do
recinto. É o contexto, o relacionamento entre os participantes e
até as características intelectuais e afetivas do falante que vão
determinar a escolha do expoente linguístico.
O uso de linguagem apropriada, adequada à situação em
que ocorre o ato da fala e ao papel desempenhado pelos
participantes, é uma grande preocupação na Abordagem
Comunicativa. Os diálogos artificiais, elaborados para
apresentarem pontos gramaticais são rejeitados. A ênfase da
aprendizagem não está na forma linguística, mas na comunicação.
As formas linguísticas serão ensinadas apenas quando necessárias
para desenvolver a competência comunicativa e poderão ter mais
ou menos importância do que outros aspectos do evento
comunicativo. O desenvolvimento de uma competência estratégica
– saber como usar a língua para se comunicar – pode ser tão ou
mais importante do que a competência gramatical.
O material usado para a aprendizagem da língua deve ser
autêntico. Os diálogos devem apresentar personagens em situações
reais de uso da língua, incluindo até os ruídos que normalmente
interferem no enunciado (conversas de fundo, vozes distorcidas
no telefone, dicções imperfeitas, sotaques etc.). Os textos escritos
não devem se restringir aos livros ou artigos de revista, mas
38 Vilson J. Leffa

abranger todas as formas de impressos: jornais (notícias,


manchetes, fotos com legendas, propagandas, anúncios
classificados, etc.), cartas, formulários, contas, catálogos, rótulos,
cardápios, cartazes, instruções, mapas, programas, bilhetes,
contratos, cartões, listas telefônicas, tudo enfim ao que o falante
nativo está exposto diariamente. 0 uso de textos simplificados
deve ser evitado, porque prejudicaria a autenticidade do material;
simplificar a tarefa, se necessário, mas não simplificar a língua.
Não existe ordem de preferência na apresentação das quatro
habilidades linguísticas nem restrições maiores quanto ao uso da
língua materna. Em cursos gerais as quatro habilidades são
apresentadas de modo integrado, mas dependendo dos objetivos,
pode haver concentração em uma só. 0 desenvolvimento do
vocabulário passivo é defendido. 0 uso da língua materna é
permitido, principalmente no início do curso ou quando se deseja
criar um contexto para o uso e aprendizagem da L2. (0 Anexo 4
mostra algumas das diferenças entre a Abordagem Audiolingual
e a Abordagem Comunicativa.)
Um dos aspectos mais criticados pela Abordagem
Comunicativa em relação às abordagens anteriores foi a falta de
objetivos específicos no ensino de línguas. O pressuposto,
anteriormente defendido de que, independente do objetivo final,
há sempre um núcleo comum, inicial, a ser aprendido por todos é
questionado pela AC. Os cursos devem ser planejados a partir
das necessidades e interesses dos alunos. Um curso de L2
preparado para um bancário pode não servir para um comerciário
e vice-versa. Os inúmeros cursos existentes atualmente para os
mais diversos fins atestam a importância do que em inglês se
convencionou chamar de ESP (English for Specific Purposes).
A Abordagem Comunicativa defende a aprendizagem
centrada no aluno não só em termos de conteúdo mas também de
técnicas usadas em sala de aula. 0 professor deixa de exercer seu
papel de autoridade, de distribuidor de conhecimentos, para
assumir o papel de orientador. O aspecto afetivo é visto como
uma variável importante e o professor deve mostrar sensibilidade
Língua Estrangeira 39

aos interesses dos alunos, encorajando a participação e acatando


sugestões. Técnicas de trabalho em grupo são adotadas.
O entusiasmo dos metodólogos pela Abordagem
Comunicativa foi avassalador na teoria e na prática do ensino de
línguas, produzindo uma safra fecunda de manuais nocionais-
funcionais para professores e de material comunicativo para
alunos. Publicações anteriores, oriundas de uma abordagem
estruturalista, ou eram abandonadas, ou transvestidas numa
roupagem comunicativa. A ideia generalizada entre metodólogos,
autores de livros didáticos e professores era de que a AC tinha
vindo para ficar; o entusiasmo inicial se transformaria na
consolidação definitiva.
Há, no entanto, alguns problemas. No âmbito da teoria
persiste a grande dificuldade em se definir categorias semânticas,
tanto nocionais como funcionais, de modo distinto e abrangente.
O verbo “solicitar”, por exemplo, foi proposto por Dobson (1979)
como uma categoria maior que engloba, entre outras, as seguintes
subcategorias: perguntar, indagar, solicitar e interrogar (em inglês:
to ask, to inquire, to request, to question). 0 problema é, de um
lado, como fazer a distinção entre os dois verbos “solicitar”, que
aparecem em duas categorias de níveis diferentes e, do outro lado,
como estabelecer os limites de abrangência dos verbos perguntar,
indagar e interrogar, que aparecem na mesma categoria?
Embora a abordagem comunicativa tenha produzido na
teoria várias tentativas de taxionomias, na prática parece
impossível aplicar os princípios taxionômicos de modo que uma
unidade de ensino forme um todo integrado pelas suas partes. O
fato de que uma função independe da realidade física em que se
encontram os participantes (uma pessoa pode discordar numa loja,
num restaurante ou numa aula) torna difícil ou impossível
encapsular uma série de funções menores numa função maior.
Um dos problemas, por exemplo, com materiais comunicativos é
identificar o conteúdo de cada unidade, normalmente expresso
através de listas de funções simultaneamente repetitivas,
incompletas e sem qualquer relação entre si. A
compartimentalização da língua em funções corre o risco de
atomização da aprendizagem.
40 Vilson J. Leffa

O pós-método

Numa época em que predomina o prefixo “pós” (pós-


graduação, pós-modernidade, pós-humano) seria de se esperar que
esse prefixo chegasse também ao ensino de línguas, o que
realmente aconteceu com a cunhagem do termo “pós-método”,
proposto e desenvolvido por Kumaravadivelu (1994, 2001, 2003,
2006a, 2006b). Há três aspectos que caracterizam, de modo
especial, o pós-método: (1) a busca da autonomia do professor,
(2), a aprendizagem baseada em projetos e tarefas e (3) a proposta
de uma pedagogia crítica.
Em relação ao professor, a ideia é de que ele deve guiar
sua ação não por aquilo que os teóricos dizem que ele deve fazer,
mas pelo que emerge de sua prática no contexto em que atua;
ninguém conhece sua realidade melhor do que ele, principalmente
quando vista e analisada por sua própria reflexão e pesquisa
(SCHÖN, 1995; TRIP, 2005; THIOLLENT, 2005; LEFFA, 2008c).
Durante o longo período da história de línguas, o professor sempre
esteve submisso ao que determinavam os teóricos da área; agora,
pela primeira vez, cria-se uma situação nova, em que ele tem a
possibilidade de exercer sua autonomia, tomar suas decisões e
até investigar sua ação pedagógica.
Já a aprendizagem baseada em projetos e tarefas torna o
aluno responsável e agente de sua aprendizagem, saindo do modelo
passivo de “aprender sentado” para ingressar no paradigma
dinâmico de “aprender fazendo”, envolvendo-se mais com os
colegas, recursos de aprendizagem e comunidade, dentro e fora
da sala de aula (HERNÁNDEZ, 1998; MACHADO, 2000;
ALMEIDA, 2002; PRADO 2009). Um exemplo de aprendizagem
baseada em projetos, com o uso de textos autênticos e relevantes
para o aluno, pode ser encontrado em Schlatter e Garcez (2012).
Também as propostas baseadas nos recursos da internet, como a
Webquest (ABAR; BARBOSA, 2008), estão ganhando espaço,
com apelo motivacional significativo para os jovens (SANTOS,
2012), por priorizar o trabalho em grupo e o uso de diferentes
mídias.
Língua Estrangeira 41

Por fim, a pedagogia crítica tenta alertar o professor e os


alunos para o fato de que não basta o conhecimento contemplativo
da língua, vista apenas como o domínio de uma habilidade
individual; é também preciso vê-la e saber usá-la como um
instrumento coletivo de mudança, visando o bem comum e a
cidadania. A língua é um instrumento de poder na nossa relação
com o outro; por meio dela podemos ser mentalmente colonizados
e manipulados, mas podemos também, junto com o outro, tentar
construir um mundo melhor, mais fraternal e solidário
(PENNYCOOK, 1994, 1995; COX & ASSIS-PETERSON, 2001).

Conclusão

Um fator ainda não estabelecido no ensino de línguas é até


que ponto a metodologia empregada faz a diferença entre o
sucesso e o fracasso da aprendizagem. Às vezes dá-se à
metodologia uma importância maior do que ela realmente possui,
esquecendo-se de que o aluno pode tanto deixar de aprender como
também apreender apesar da abordagem usada pelo professor.
As inúmeras variáveis que afetam a situação de ensino podem
sobrepujar a metodologia usada, de modo que o que parece
funcionar numa determinada situação não funciona em outra e
vice-versa.
As abordagens que dão origem aos métodos são geralmente
monolíticas e dogmáticas. Por serem uma reação ao que existia
antes, tendem a um maniqueísmo pedagógico sem meio-termo:
tudo estava errado e agora tudo está certo. Abordagens
pedagógicas, que pela experiência do professor deveriam conviver
na prática, tornam-se preceitos antagônicos e irredutíveis: indução
versus dedução, escrita versus fala, significado versus forma,
aprendizagem versus aquisição, material autêntico versus material
adaptado – são apenas alguns exemplos. Daí que a história do
ensino de línguas tem sido comparada por alguns metodólogos
aos movimentos de um pêndulo, balançando sempre de um lado
a outro; uma constante sucessão de tese e antítese sem jamais
chegar à síntese.
42 Vilson J. Leffa

A solução proposta por alguns metodólogos é a do


ecleticismo inteligente, baseado na experiência da sala de aula:
nem a aceitação incondicional de tudo que é novo nem a adesão
inarredável a uma verdade que, no fundo, nunca é para todos os
contextos. Nenhuma abordagem contém toda a verdade e ninguém
sabe tanto que não possa evoluir. A atitude sábia é incorporar o
novo ao antigo; o maior ou menor grau de acomodação vai
depender do contexto em que se encontra o professor, de sua
experiência e de seu nível de conhecimento.

ANEXO 1

Abordagem da Gramática e da Tradução (COLEÇÃO FTD, s. d.


p. 12-14)
Fragmentos mostrando as principais características da abordagem:
estudo do vocabulário e explicações gramaticais com longos
exercícios de tradução (“versão”) e versão (“tema”).
Table, (tê’boel), meza. Grammar:
Box, (bo’ks), caixa. 8. A forma affirmativa do “partitivo
Chalk, (tcho´lk), giz. inglez” é some (soe’m). Não se
Duster, (does´ter), escova para traduz geralmente em vernaculo.
pedra. Emprega-se diante de qualquer
Curtain, (koer´tin), cortina. substantivo, evocando idéia de
Easel, (i´zoel), cavallete. quantidade. Ex.:
Picture, (pik´tchoer), quadro, She had some ink, ella tinha tinta.
pintura.
Gas-lamp, (gas´lamp), bico de
gaz.
Electric-lamp, (ilek´triklamp),
lampada electrica.

INDICATIVE MOOD

Past Tense PRETÉRITO IMPERFEITO


I was, (uo’z), era, estava we were, (ue’r), eramos,
thou wast, (uo’zt), eras, estavas estavamos
he, he, it was, era, estava you were, ereis, estaveis
They were, eram, estavam
Língua Estrangeira 43

Versão IV Thema IV

II. – What is “some”? “Some” I. – A pedra estava num cavallete.


is not a definite article, it is a 2. A mesa e a caixa eram curtas;
partitive. 11. Was I a bad pupil? mas a cortina era comprida. 3. N
12. Was she not diligent? 13. aula ha um bico de gaz e não ha
Who has an easel? The teacher lampada electrica. 4. O professor
has an easel; on the easel is a estava na aula; nós tambem
good blackboard. 14. Where estavamos alli. 5. Ereis
were you? I was with the teacher applicados ou preguiçosos? 6.
in the class. 15. Was not the first Tinham um bom professor; mas
lesson difficult? No, it was not; não eram applicadas. 7. Nós não
but the third and the fourth were tinhamos a mesma lição; mas,
not easy. 16. What is in the box? elles tinham o
Some chalk.

ANEXO 2

Abordagem Direta (ROBIN & BERGEAUD, 1941, P. 6-7)

Montagem mostrando o uso da ilustração para a transmissão do


significado e alguns exercícios característicos da abordagem. Note
o uso exclusivo da L2.
44 Vilson J. Leffa

LA CHAMBRE

Le garçon est dans la chambre. – Voilà la porte. Voilà la fenêtre.


Voilà la porte et la fenêtre. – Voilà le plafond, le mur et le plancher.
– Voici la table, la lampe et la chaise. – Voici l’encrier, le papier
buvard et le plumier. – L’encrier est ici, la fenêtre est là, la maison
est là-bas. – Le cahier est dans le sac de classe.

Ou est ...?

La question: La réponse:
1.Où est le garçon? Le garçon est dans la chambre.
2. Où est la chambre? La chambre est dans une maison.
3. Où est le professeur? Le professeur est dans la salle de
4. Où est l’encre (une encre)? classe.
5. Où est le porte-plume? L’encre est dans l’encrier.
6. Où est le cahier? Le porte-plume est dans le plumier.
7. Où est la craie? Le cahier est dans le sac de classe.
La craie est dans la boîte.

ANEXO 3

Abordagem Audiolingual (YÁZIGI, s. d. , p. 18)

Note a ênfase nos padrões lingüísticos (“patterns”) que devem


ser automatizados pelos alunos.
Língua Estrangeira 45

dialogue II

Mr. Pep – I like to drink coffee.


Pepita – Do you drink milk?
Mr. Pep – Yes, I do. I like milk with coffee.
Pepita – Don’t you like tea?
Mr. Pep – No, I don’t.
Pepita – You like tea, don’t you Zip?
Zip – No, I don’t.
Pepita – What do you like to drink, Zip?
Zip – I like to dink wine; don’t you?

pattern drill

I drink coffee. I don’t drink tea.

I drink beer. I don’t drink wine.


I drink milk. I don’t drink water.

I like coffee I don’t like coffee You like tea

I like beer. You don’t like beer. You like wine.


I like English. You don’t like English. You like French.
I like Spanish. You don’t like Spanish. You like Italian.
I like tennis. You don’t like tennis. You like basketball.
I like soccer. You don’t like soccer. You like baseball.

I like to drink milk. I don’t like to drink tea.

I like to drink beer water. I don’t like to drink milk.


I like to speak English. I don’t like to speak French.
I like to speak German. I don’t like to speak Italian.
I like to play tennis. I don’t like to play soccer.
I like to play soccer. I don’t like to play basketball.
46 Vilson J. Leffa

ANEXO 4

Abordagem Audiolingual versus Comunicativa

O primeiro sumário (ABBS & FREEBAIRN, 1977, p. 5) mostra


a ênfase no uso, enquanto que o segundo (ALEXANDER, 1976,
p. v) mostra a ênfase na forma.

Ênfase no uso:

Contents

UNIT 1. My name’s Sally


Set 1. Ask somebody’s name and say you name
Set 2. Ask and say where places and people are

UNIT 2. I’m a Journalist


Set 1. Greet people formally and introduce yourself
Set 2. Ask and say what somebody’s job is (1)
Sat what your job is

UNIT 3. Hello and Goodbye!


Set 1. Introduce people (1) and greet informally
Set 2. Ask and say what somebody’s job is (2)
Set 3. Ask and say somebody’s name
Língua Estrangeira 47

Ênfase na forma:

3 This is (Alice)
She is (she’s) French
He is (he’s) German
It’s a (French) car
It’s (French)
It’s an (English) car
It’s (English)
His/her name is (name’s) …
He’s/she’s a (French) student
Yes, she is / No, she isn’t
Yes, he is / No, he isn’t

4 Are you (French), too?


Yes, I am / No, I am (I’m) not.
I’m a (typist)
I’m an (engineer)
What’s you his/her job?
48 Vilson J. Leffa
Língua Estrangeira 49

Capítulo 2
O ensino das línguas estrangeiras no Brasil2

Introdução

O objetivo deste capítulo é descrever o lugar das línguas


estrangeiras no contexto educacional do Brasil. Pretende-se
mostrar de onde viemos, resgatando parte da nossa história, e
tentar descrever onde estamos, mostrando o contexto
metodológico e político da questão. Na medida em que ensinar é
tocar o futuro, pretende-se também sugerir alguns possíveis
caminhos, usando-se para isso não algum exercício de futurologia,
mas a trajetória percorrida até aqui.
Entende-se que há uma complexidade crescente no
desenvolvimento desta tarefa: enquanto é relativamente fácil
mostrar o caminho percorrido, já que se olha para o conhecido, é
mais difícil descrever o presente, e extremamente mais complexo
tentar prever o futuro, na medida em que se procura tornar
conhecido o que ainda é desconhecido. Esse, no entanto, é nosso
grande desafio como professores: preparar os alunos não para o
mundo em que nós vivemos hoje, mas para o mundo em que eles
vão viver amanhã. Trata-se, na verdade, de uma questão de
sobrevivência. A história tem demonstrado que um povo incapaz
de usar o passado para prever o futuro não está apenas condenado
a repetir os erros do passado, mas fadado à extinção.
Os brasileiros somos muitas vezes criticados por copiar
aqui dentro o que acontece lá fora, numa imitação servil de outras
culturas e violação da nossa identidade. É óbvio que um país não
pode viver fechado dentro de si mesmo, mas parece que ao invés
de incorporar aspectos de outras culturas à nossa, o que fazemos

2
Este capítulo é uma versão atualizada e ampliada do texto publicado em:
LEFFA, Vilson J. O Ensino de línguas estrangeiras no contexto nacional.
Contexturas, São Paulo, v. 4, n. 4, p. 13-24, 1999.
50 Vilson J. Leffa

muitas vezes é submeter nossa cultura às outras. Isso fica mais


evidente no caso da língua estrangeira, uma questão extremamente
delicada, onde nem sempre fica claro se estudamos uma língua
para servir ao nosso país ou servir aos interesses dos outros.
Historicamente o que aconteceu com o ensino de línguas
no Brasil tem sido um eco do que aconteceu em outros países,
geralmente com um retardo de alguns decênios, tanto em termos
de conteúdo (línguas escolhidas) como de metodologia (método
da tradução, método direto etc.). O método direto, por exemplo,
foi introduzido no Brasil em 1931, ou seja, 30 anos depois de sua
implementação na França.
Este capítulo pretende mostrar o ensino das línguas
estrangeiras no contexto nacional, resgatando parte de sua história
e mostrando os movimentos de centralização e descentralização
de seu ensino, os períodos de ascensão e declínio da língua
estrangeira, os momentos de construção e de destruição – e das
trabalhosas reconstruções para tentar recuperar os estragos feitos
por certas legislações.

Durante o império e antes dele

Deixando de lado os primórdios da catequização dos índios,


quando o próprio português era uma língua estrangeira, e
começando com as primeiras escolas fundadas pelos jesuítas,
pode-se dizer que a tradição brasileira é de uma grande ênfase no
ensino das línguas, inicialmente nas línguas clássicas, grego e
latim, e posteriormente nas línguas modernas: francês, inglês,
alemão e italiano (O espanhol só muito recentemente,
considerando a perspectiva histórica, foi incluído no currículo).
Durante o período colonial, antes e depois da expulsão dos jesuítas
pelo Marquês de Pombal, o grego e o latim eram as disciplinas
dominantes. As outras, incluindo o vernáculo, história e geografia,
eram normalmente ensinadas através das línguas clássicas, nos
exercícios de tradução e nos comentários dos autores lidos
(Franca, 1952). Foi só muito lentamente, a princípio com a
chegada da Família Real, em 1808, posteriormente com a criação
Língua Estrangeira 51

do Colégio Pedro II, em 1837, e finalmente com a reforma de


1855, que o currículo da escola secundária começou a evoluir
para dar ao ensino das línguas modernas um status pelo menos
semelhante ao das línguas clássicas.
O ensino das línguas modernas durante o império parecia
sofrer de dois graves problemas: falta de metodologia adequada
e sérios problemas de administração. A metodologia para o ensino
das chamadas línguas vivas era a mesma das línguas mortas:
tradução de textos e análise gramatical. A administração,
incluindo decisões curriculares, por outro lado, estava centralizada
nas congregações dos colégios, aparentemente com muito poder
e pouca competência para gerenciar a crescente complexidade
do ensino de línguas. Segundo Chagas (1957), “subtraiu-se à
escola a sua função primordial de ensinar, e educar, e formar,
para relegá-la à burocrática rotina de aprovar e fornecer diplomas”
(p. 88).
Foi também durante o império que se iniciou a decadência
do ensino de línguas, junto com o desprestígio crescente da escola
secundária, onde parecia predominar a ideia do ensino livre
seguido de exames (os chamados exames de madureza, parcelados,
preparatórios ou de Estado), geralmente realizados “às pressas e
sem qualquer rigor científico” (CHAGAS, 1957, p. 89). Ainda
que não se tenha estatísticas exatas sobre aspectos importantes
do ensino de línguas desse período, muitos deles dependentes de
decisões locais tomadas pelas congregações das escolas, tais como
a carga horária semanal de cada língua ensinada, o que se tem,
através de leis, decretos e portarias, mostra uma queda gradual
no prestígio das línguas estrangeiras na escola. Somando os anos
de estudo prescritos para cada língua, o número de línguas
ensinadas e estimando uma carga horária semanal de 2 a 3 horas,
chega-se, em termos aproximados, aos dados da Tabela 1. Esses
dados mostram que os alunos, durante o império, estudaram no
mínimo quatro línguas no ensino secundário, muitas vezes cinco
e, às vezes, até seis, quando a língua italiana, facultativamente,
era incluída. Embora o número de línguas ensinadas tenha
permanecido praticamente o mesmo, o número de horas dedicadas
52 Vilson J. Leffa

ao seu estudo foi gradualmente reduzido, chegando a pouco mais


da metade no fim do império.

Tabela 1 – O ensino das línguas no império em horas de estudo


___________________________________________________

Ano Latim Grego Francês Inglês Alemão Italiano Total em


horas
1855 18 009 09 08 06 3(F) 50
1857 18 006 09 10 04 3(F) 47
1862 18 006 09 10 04 6F 47
1870 14 006 12 10 - - 42
1876 12 006 08 06 6F - 32
1878 12 006 08 06 04 - 36
1881 12 006 08 06 04 3F 36
_______________________________________________________
Fonte: Chagas, 1957.

Nota: O número de horas é a soma das horas semanais em


cada ano de estudo. Exemplo: uma carga horária de 2 horas
semanais durante 5 anos equivale a uma soma de 10 horas.

Na primeira república

Durante a república, embora partindo de um ímpeto inicial


bastante expressivo, principalmente com a reforma de Fernando
Lobo em 1892, nota-se uma redução ainda mais acelerada na carga
horária semanal dedicada ao ensino das línguas. Assim para 76
horas semanais/anuais em 1892, chega-se em 1925, a 29 horas, o
que é menos da metade. O ensino do grego desaparece, o italiano
não é oferecido ou torna-se facultativo e o inglês e alemão passam
a ser oferecidos de modo exclusivo; o aluno faz uma língua ou
outra, mas não as duas ao mesmo tempo.
A frequência livre permaneceu, de certa maneira
“desoficializando” o ensino, que era substituído por uma prova
de estudos “realizada por meio de um exame sumário, superficial
e incompleto, como simples formalidade para o início do curso
Língua Estrangeira 53

superior” (FREITAS, apud CHAGAS, 1957, p. 89). A crítica de


Chagas sobre o ensino neste período da república é bastante dura:
“Se antes não se estudavam os idiomas considerados facultativos,
a esta altura já não se aprendiam nem mesmo os obrigatórios,
simplesmente porque ao anacronismo dos métodos se aliava a
quase-certeza das aprovações gratuitas (p. 89)”.

Tabela 2 – O ensino das línguas de 1890 a 1931 em horas de


estudo
________________________________________________________

Ano Latim Grego Francês Inglês Alemão Italiano Espanhol Total em


horas
1890 12 08 12 11 ou 11 - - 43
1892 15 14 16 16 15 - - 76
1900 10 08 12 10 10 - - 50
1911 10 03 09 10 ou 10 - - 32
1915 10 - 10 10 ou 10 - - 30
1925 12 - 09 08 ou 08 2F - 29
1931 06 - 0 09 08 6F - - 23
________________________________________________________________
Fonte: Chagas, 1957.

A reforma de 1931

Em 1930 foi criado o Ministério de Educação e Saúde


Pública e em 1931 a reforma de Francisco de Campos propunha-
se a “soerguer a educação de segundo grau do caos e do descrédito
em que fora mergulhada” (CHAGAS, 1957, p. 89). Extinguiu-se
a frequência livre e instituiu-se o regime seriado obrigatório,
visando não apenas preparar o aluno para a universidade, mas
proporcionar a formação integral do adolescente.
No que concerne ao ensino de línguas, a reforma de 1931
introduziu mudanças não apenas quanto ao conteúdo, mas
principalmente quanto à metodologia de ensino. Em termos de
conteúdo, foi dada mais ênfase às línguas modernas, não por um
acréscimo em sua carga horária, mas pela diminuição da carga
54 Vilson J. Leffa

horária do latim. A grande mudança, porém, foi em termos de


metodologia. Pela primeira vez introduzia-se oficialmente no
Brasil o que tinha sido feito na França em 1901: instruções
metodológicas para o uso do método direto, ou seja, o ensino da
língua através da própria língua.
O grande destaque da época foi a figura do Professor
Carneiro Leão que, dentro do espírito da reforma, introduziu o
método direto no Colégio Pedro II no Rio de Janeiro, em 1931,
experiência relatada em detalhes no livro que publicou em 1935,
O ensino das línguas vivas. O método estava baseado em 33
artigos, entre os quais destacamos, a título de ilustração, os
seguintes:

· A aprendizagem da língua deve obedecer à sequência


ouvir, falar, ler e escrever.
· O ensino da língua deve ter um caráter prático e ser
ministrado na própria língua, adotando-se o método
direto desde a primeira aula.
· O significado das palavras deve ser transmitido não
pela tradução mas pela ligação direta do objeto a sua
expressão, usando-se para isso ilustrações e objetos
do mundo real.
· As noções gramaticais devem ser deduzidas pela
própria observação e nunca apresentadas sob a forma
teórica ou abstrata de regras.
· A leitura será feita não só nos autores indicados mas
também nos jornais, revistas, almanaques ou outros
impressos, que possibilitem aos alunos conhecer o
idioma atual do país.

Além dessas instruções metodológicas, outras medidas


também foram tomadas na reforma feita no Colégio Pedro II,
incluindo a divisão das turmas, seleção de novos professores e
renovação dos materiais de ensino. Nas palavras de Chagas, a
reforma introduzida pelo Professor Carneiro Leão é “uma
experiência magnífica que até hoje não achou continuadores no
âmbito da escola brasileira de segundo grau” (CHAGAS, 1957,
p. 92).
Língua Estrangeira 55

A reforma Capanema

A reforma Capanema, de 1942, teve o grande mérito de


equiparar todas as modalidades de ensino médio – secundário,
normal, militar, comercial, industrial e agrícola – de um lado
democratizando o ensino, ao dar a todos os cursos o mesmo status,
embora, de outro lado, tenha sido acusada por alguns de ser uma
reforma fascista e de promover o classicismo aristocrático e
acadêmico dos últimos dias do Império. O próprio ministro
Capanema, na sua exposição de motivos, ao apresentar o projeto
ao governo, reforça a ideia de que o ensino não deve ficar apenas
nos aspectos instrumentais. A lei que propõe, segundo ele, deve
“formar nos adolescentes uma sólida cultura geral, marcada pelo
cultivo a um tempo das humanidades antigas e das humanidades
modernas e, bem assim, de neles acentuar e elevar a consciência
patriótica e a consciência humanística” (apud CHAGAS, 1957,
p. 94). O ensino médio ficava dividido em um primeiro ciclo,
denominado “ginásio”, com duração de quatro anos, e um segundo
ciclo, com duas ramificações, uma denominada “clássico”, com
ênfase no estudo de línguas clássicas e modernas, e outra
denominada “científico”, com ênfase maior no estudo das ciências
(física, química, biologia, matemática etc.).
Como a reforma de 1931, a reforma Capanema, com as
instruções que a seguiram (Portaria Ministerial 114, de 29 de
janeiro de 1943), preocupou-se muito com a questão
metodológica. Recomendava-se o uso do método direto, com
ênfase em “um ensino pronunciadamente prático”, embora
deixando claro que o ensino de línguas deve ser orientado não só
para objetivos instrumentais (compreender, falar, ler e escrever)
mas também para objetivos educativos (“contribuir para a
formação da mentalidade, desenvolvendo hábitos de observação
e reflexão”) e culturais (“conhecimento da civilização estrangeira”
e “capacidade de compreender tradições e ideais de outros povos,
inculcando [no aluno] noções da própria unidade do espírito
humano”).
56 Vilson J. Leffa

Os instrumentos que deveriam ser usados para atingir esses


objetivos, foram também detalhados até o nível da aplicação
pedagógica na sala de aula. O vocabulário seria escolhido pelo
critério de frequência; a leitura deveria iniciar-se por manuais
“de preferência ilustrados” dentro e fora da sala de aula,
começando com “histórias fáceis” e progredindo até a leitura de
obras literárias completas; os recursos audiovisuais, desde giz
colorido, ilustrações e objetos até discos gravados e filmes são
amplamente recomendados.
A educação nacional ficou centralizada no Ministério de
Educação, de onde partiam praticamente todas as decisões, desde
as línguas que deveriam ser ensinadas, a metodologia a ser
empregada pelo professor e o programa que deveria ser
desenvolvido em cada série do ginásio e em cada ano do colégio,
em todo o território nacional.
Algumas dessas decisões parecem ter sido mais facilmente
seguidas do que outras. Não houve problema quanto às línguas a
serem ensinadas, deve ter havido algumas dificuldades quanto
ao programa a ser desenvolvido, mas a metodologia proposta,
baseada ainda no método direto, parece não ter chegado à sala de
aula. No caminho entre o Ministério e a escola, o método direto
foi substituído por uma versão simplificada do método da leitura,
usado nos Estados Unidos. Segundo Chagas

(...) não é o “método direto”. Não é nem mesmo o “método


da leitura”, porque do sistema de Claude Marcel, ou do
velho “reading method” americano, tomou apenas a forma
exterior, captou simplesmente a “liturgia”, sem penetrar-
lhe o verdadeiro e profundo sentido (CHAGAS, 1957,
p.99).

A Reforma Capanema, ainda que criticada por alguns


educadores como um documento fascista pela sua exaltação do
nacionalismo, foi, paradoxalmente, a reforma que deu mais
importância ao ensino das línguas estrangeiras. Todos os alunos,
desde o ginásio até o científico ou clássico, estudavam latim,
Língua Estrangeira 57

francês, inglês e espanhol. Muitos terminavam o ensino médio


lendo os autores nos originais e, pelo que se pode perceber através
de alguns depoimentos da época, apreciando o que liam, desde as
éclogas de Virgílio até os romances de Hemingway. Visto de
uma perspectiva histórica, as décadas de 40 e 50, sob a Reforma
Capanema, formam os anos dourados das línguas estrangeiras no
Brasil.

LDB de 1961

A LDB de 1961, publicado no dia 20 dezembro, mantém


os sete anos do ensino médio, ainda com a divisão entre ginásio e
colégio, e inicia a descentralização do ensino. Cria para isso o
Conselho Federal de Educação “constituído por 24 membros
nomeados pelo Presidente da República, por seis anos, dentre
pessoas de notável saber e experiência, em matéria de educação”.
No artigo 35, parágrafo 1o. estabelece que “Ao Conselho Federal
de Educação compete indicar, para todos os sistemas de ensino
médio, até cinco disciplinas obrigatórias, cabendo aos conselhos
estaduais de educação completar o seu número e relacionar as de
caráter optativo que podem ser adotadas pelos estabelecimentos
de ensino.”
Decisões sobre o ensino da língua estrangeira ficaram sob
a responsabilidade dos conselhos estaduais de educação. O latim,
com raras exceções, foi retirado do currículo, o francês quando
não retirado, teve sua carga semanal diminuída, e o inglês, de um
modo geral, permaneceu sem grandes alterações.
58 Vilson J. Leffa

Tabela 3 – O ensino das línguas após 1931


______________________________________________________
Ano Latim Grego Francês Inglês Alemão Italiano Espanhol Total em
horas
1942 8 - 13 12 - - 2 35
1961 - - 8 12 - - 2 22
1971 - - - 9 - - 9 9
1996 - - 6 e/ou 12 e/ou - - 6 18
_______________________________________________________________
Fonte: Autor.

Nota: 1) O número de horas nas reformas de 1961, 1971 e 1996 é


estimativo, em valores aproximados, do que se considera a média
nacional.

Comparada à Reforma Capanema e à LDB que veio em


seguida, a lei de 1961 é o começo do fim dos anos dourados das
línguas estrangeiras. Apesar de ter surgido depois do lançamento
do primeiro satélite artificial russo, que provocou um impacto na
educação americana, com expansão do ensino das línguas
estrangeiras em muitos países, a LDB do início da década de 60,
reduziu o ensino de línguas a menos de 2/3 do que foi durante a
Reforma Capanema.

LDB de 1971

Menos de dez anos depois da LDB de 1961, era publicada


a nova LDB, Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971. O ensino é
reduzido de 12 para 11 anos, introduzindo-se o 1o. grau com 8
anos de duração e o segundo com 3. Enfatiza-se a formação
especial com ênfase na habilitação profissional. O Conselho
Federal de Educação (artigo 4o., parágrafo 3o.) ficava encarregado
de fixar “além do núcleo comum, o mínimo a ser exigido em
cada habilitação profissional ou conjunto de habilitações afins”.
A redução de um ano de escolaridade e a necessidade de se
introduzir a habilitação profissional provocaram uma redução
drástica nas horas de ensino de língua estrangeira, agravada ainda
Língua Estrangeira 59

por um parecer posterior do Conselho Federal de que a língua


estrangeira seria “dada por acréscimo” dentro das condições de
cada estabelecimento. Muitas escolas tiraram a língua estrangeira
do 1o. grau, e no segundo grau, não ofereciam mais do que uma
hora por semana, às vezes durante apenas um ano. Inúmeros
alunos, principalmente do supletivo, passaram pelo 1o. e 2o. graus,
sem nunca terem visto uma língua estrangeira.

LDB de 1996

No dia 20 de dezembro de 1996, 25 anos da LDB anterior,


é publicada a nova LDB (Lei nº 9.394). O ensino de 1o. e 2o.
graus é substituído por ensino fundamental e médio. Continua
existindo uma base nacional comum, que deve ser complementada
“em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma
parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais
da sociedade, da cultura, da economia e da clientela” (Art. 26).
O § 5º. desse mesmo artigo deixa bem clara a necessidade da
língua estrangeira no ensino fundamental: “Na parte diversificada
do currículo será incluído, obrigatoriamente, a partir da quinta
série, o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna,
cuja escolha ficará a cargo da comunidade escolar, dentro das
possibilidades da instituição” (Art. 26, § 5º). Também em relação
ao ensino médio, a lei dispõe que “será incluída uma língua
estrangeira moderna, como disciplina obrigatória, escolhida pela
comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo, dentro
das disponibilidades da instituição” (Art. 36, Inciso III).
A ideia de um único método certo é finalmente abandonada,
já que o ensino será ministrado com base no princípio do
“pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” (Art.3º, Inciso
III), dentro de uma grande flexibilidade curricular, conforme está
previsto no Art. 23: “A educação básica poderá organizar-se em
séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de
períodos de estudos, grupos não seriados, com base na idade, na
competência e em outros critérios, ou por forma diversa de
organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem
60 Vilson J. Leffa

assim o recomendar”. O inciso IV, do Art. 24, corrobora essa


disposição: “poderão organizar-se classes, ou turmas, com alunos
de séries distintas, com níveis equivalentes de adiantamento na
matéria, para o ensino de línguas estrangeiras, artes, ou outros
componentes curriculares”.

PCNs, OCEM e BNCC

Complementando a nova LDB, foram publicados diversos


documentos legais, incluindo os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs) para o Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino
Fundamental de Línguas Estrangeiras e as Orientações
Curriculares para o Ensino Médio (OCEM): Linguagens, Códigos
e suas Tecnologias. Está também em andamento a Base Nacional
Comum Curricular (BNCC). Os PCNs, amplos em seus objetivos,
estão baseados no princípio da transversalidade, destacando o
contexto maior em que deve estar inserido o ensino das línguas
estrangeiras e incorporando questões como a relação entre a escola
e a juventude, a diversidade cultural, os movimentos sociais, o
problema da violência, o tráfico e uso de drogas, a superação da
discriminação, educação ambiental, educação para a segurança,
orientação sexual, educação para o trabalho, tecnologia da
comunicação, realidade social e ideologia.
Os Parâmetros não chegam a propor uma metodologia
específica de ensino de línguas, mas sugerem uma abordagem
sociointeracional, com ênfase no desenvolvimento da leitura,
justificada, segundo seus autores, pelas necessidades do aluno e
as condições de aprendizagem:

Portanto, a leitura atende, por um lado, às necessidades


da educação formal, e, por outro, é a habilidade que o
aluno pode usar em seu próprio contexto social imediato.
Além disso, a aprendizagem de leitura em LE pode ajudar
o desenvolvimento integral do letramento do aluno. A
leitura tem função primordial na escola e aprender a ler
em LE pode colaborar no desempenho do aluno como
leitor em sua LM.
Língua Estrangeira 61

Deve-se considerar também o fato de que as condições


na sala de aula da maioria das escolas brasileiras (carga
horária reduzida, classes superlotadas, pouco domínio das
habilidades orais por parte da maioria dos professores,
material didático reduzido ao giz e livro didático etc.)
podem inviabilizar o ensino das quatro habilidades
comunicativas. Assim, o foco na leitura pode ser
justificado em termos da função social das LEs no país e
também em termos dos objetivos realizáveis tendo em
vista condições existentes. (Parâmetros Curriculares
Nacionais para Línguas Estrangeiras)

Esta ênfase na leitura gerou muitas críticas por parte de


muitos professores. Argumenta-se que enquanto a própria lei
baseia-se no princípio do pluralismo de ideias e de concepções
pedagógicas (Art.3º, Inciso III), os Parâmetros restringem o espaço
de ação do professor. Embora haja muitos argumentos a favor
dessa ênfase, a escola não vai recuperar o ensino da língua
estrangeira, “deslocado para os cursos de línguas”, como está
explicitado nos próprios parâmetros, devido justamente à ênfase
na leitura. Muito breve o aluno provavelmente perceberá que
para “falar” uma língua estrangeira, só frequentando um “um curso
de línguas”.
As OCEM, publicadas em 2006, trazem para o ensino de
línguas, a perspectiva do letramento digital, associando educação
com tecnologia, mas indo além da dimensão meramente
operacional (saber operar a máquina), para chegar às dimensões
cultural, intercultural e crítica da aprendizagem. O ensino da
língua estrangeira na escola não visa apenas ao desenvolvimento
da habilidade linguística, característica dos cursos de línguas, por
exemplo: entre outros aspectos, põe ênfase maior na função
educacional da língua, reafirmando a relevância da noção de
cidadania; debate a relação exclusão/inclusão e o domínio de uma
língua estrangeira no mundo globalizado atual; e chama a atenção
de que os objetivos do ensino de LE na escola são diferentes dos
objetivos dos cursos de línguas.
62 Vilson J. Leffa

A proposta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC)3,


embora ainda em discussão no momento da elaboração deste
capítulo, merece ser mencionada pelo impacto que pode trazer
para a área do ensino de línguas, não tanto pela novidade do que
propõe, já que fundamentalmente retoma propostas de outros
documentos, mas pelo cuidado na sua elaboração, partindo de
uma ampla consulta nacional. Das OCEM, inclui a necessidade
de acesso ampliado do aluno a diferentes espaços, físicos e
virtuais, incluindo o uso das TIC; da LDB de 1996, traz a
pluralidade de ofertas de línguas, além do inglês e do espanhol,
incluindo línguas de herança, de sinais etc.; dos documentos
oficiais em geral retoma, com maior ênfase, o que podemos
chamar de práticas cidadãs, incluindo a aceitação da diferença,
questões de consumo, ética na publicidade e no trabalho, entre
outras. Em relação aos PCNs, no entanto, há uma divergência
clara: além da compreensão e produção escrita, propõe também a
inclusão das habilidades de escuta e produção oral. Chama
também a atenção a ideia de uma base comum, incluída no título
(“Base Nacional Comum”), que sugere uma retomada da LDB
de 1971, que propunha um núcleo comum para todo o território
nacional.

Onde estamos

O momento atual é de um grande interesse na educação,


de um modo geral, e de uma revitalização do ensino de línguas,
de modo particular, em que pese alguns percalços, como as
sugestões dos Parâmetros Nacionais. Há, a meu ver, uma
percepção geral de que a riqueza de um país não está apenas no
seu solo ou subsolo, nem mesmo nos seus recursos hídricos ou
na sua biodiversidade, mas principalmente no conhecimento e no
domínio da tecnologia para saber usar esses recursos. É óbvio
que no momento em que se valoriza o conhecimento, cria-se um

3
Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/inicio.
Língua Estrangeira 63

contexto favorável para a aprendizagem da língua estrangeira,


veículo importante para a divulgação desse conhecimento.
A educação deixou de ser tratada apenas em reuniões de
professores para ser tratada também em encontros de cúpula entre
países. Na grande imprensa, inúmeras são as reportagens sobre a
escola, a necessidade de se investir na educação, entrevistas com
especialistas da área, as reformas que estão sendo propostas etc.
Parece haver um consenso de que a melhoria do ensino
passa pelo investimento no professor, quer na sua formação, quer
na melhoria de seu salário. As oportunidades de emprego no
magistério, principalmente para professores de línguas, são
maiores do que em muitas outras áreas. Há também melhores
perspectivas de crescimento profissional, devido à necessidade
de professores qualificados, principalmente nas universidades.

Para onde vamos

Língua é informação e a grande mudança que está


ocorrendo atualmente no mundo da informação, conforme
Negroponte (1995), é a substituição do átomo pelo bit. O bit
oferece algumas grandes vantagens sobre o átomo, incluindo um
custo baixíssimo, capacidade de ser teletransportável e uma
camaleônica versatilidade. Um livro impresso em folhas de papel,
por exemplo é átomo. Como tal é relativamente caro, seu
transporte só é possível por meios físicos e sua apresentação é
fixa. O mesmo livro, transposto para a internet, transforma-se
em bits, configurando-se como arquivo digital. Como tal, seu
preço pode ser reduzido em várias centenas de vezes, chegando a
ser praticamente gratuito para quem já tem acesso à rede. Isso
vale não só para livros mas para cursos completos de línguas,
incluindo, além de texto verbal escrito, recursos de áudio e vídeo.
Por ser um arquivo digital, o livro eletrônico ou curso pode
ser transportado para qualquer parte do mundo, na velocidade de
transmissão das bandas largas da internet. Ao contrário de um
livro impresso, o arquivo digital pode ser instantaneamente
reproduzido e multiplicado em inúmeros computadores, sem
64 Vilson J. Leffa

restrições geográficas ou alfandegárias, resguardando obviamente


os princípios de autoria, com base nas licenças da Creative
Commons.4
A apresentação gráfica do texto pode também ser
modificada ao gosto e preferência de cada leitor, incluindo cor,
tamanho e tipo de letra. Leitores com dificuldade de visão podem
ter as letras ampliadas, ou mesmo ouvir o texto, se assim o
desejarem. Buscas de determinadas palavras ou expressões podem
ser feitas em segundos, por maior que seja a extensão do texto.
Levantamentos de vocabulário em contextos de uso, que antes
consumiam anos de trabalho, hoje poder ser feitos em minutos.
O computador, na medida em que lida com bits, oferece uma
versatilidade de usos cujo único limite parece ser a imaginação
do leitor ou pesquisador.
Essa transformação do átomo para bits, do mundo analógico
para o digital, acabará tendo um impacto na educação, com novos
desafios para o professor. A máquina não poderá substituí-lo,
mas poderá ajudá-lo na sua interação com o aluno. Acho
equivocada a ideia de que no futuro estaremos interagindo com
máquinas. A máquina servirá apenas como um instrumento para
realçar a ação do professor, tanto para o aspecto positivo como
negativo. Além da máquina, estará sempre o aluno. Se o professor
for bom o benefício será grande para o aluno; se for ruim, o
prejuízo também será enorme. O desafio, para o professor, será
“encontrar novas maneiras de utilizar esses recursos tecnológicos
para o benefício da aprendizagem” (CELANI, 1997, p. 161).
Durante o império e república, como na história geral do
ensino de línguas com a ênfase no método, o grande problema foi
sempre o professor, que em qualquer época e lugar, parece ter
sempre atrapalhado a implementação da metodologia proposta –
levando até à procura de um método à prova de professor. Uma
máquina que seguisse à risca as instruções de uma determinada
metodologia proposta seria, portanto, um excelente substituto.

4
ONG voltada para a distribuição de obras que permitam a cópia sem o
tradicional “todos os direitos reservados”.
Língua Estrangeira 65

Com a chegada das máquinas ditas inteligentes, descobriu-se, no


entanto, que uma metodologia que possa ser implementada por
uma máquina não merece confiança e que o verdadeiro professor
é insubstituível. Estamos descobrindo agora, no início de um
novo milênio, que o professor não é o problema mas a solução e
que há um retorno maior investindo no professor e no seu
aperfeiçoamento do que na metodologia. As novas tecnologias
não substituem o professor mas ampliam seu papel, tornando-o
mais importante.
A máquina pode ser uma excelente aplicadora de métodos,
mas o professor precisa ser mais do que isso. Para usar a máquina
com eficiência, ele precisa ser aquilo que a máquina não é, ou
seja, crítico, criativo e comprometido com a educação. Esse é,
na minha percepção, o caminho apontado pela trajetória que
percorremos até aqui.
66 Vilson J. Leffa
Língua Estrangeira 67

Capítulo 3
O professor ideal5

Introdução

Neste capítulo, vou abordar a questão das qualidades


desejáveis que o professor de línguas estrangeiras deve possuir.
Estou dividindo o conteúdo em três partes. No primeiro momento
abordo a questão do ensino versus aprendizagem, mostrando a
necessidade de uma compatibilidade entre os dois; não há razão
para se falar no trabalho do professor se não descobrirmos uma
relação entre o que ele faz e o que o aluno aprende. Em seguida,
faço um rápido levantamento dos infindáveis estudos que têm
sido feitos para caracterizar o professor ideal de línguas
estrangeiras. Finalmente na última parte, aprofundo o que
considero o essencial no trabalho do professor e que pode ter um
impacto na aprendizagem do aluno.

A questão ensino/aprendizagem revisitada

Há uma longa tradição no ensino de línguas de que


ensinamos aos alunos uma coisa e eles aprendem outra. Cito
aqui dois exemplos que, a meu ver, confirmam essa tradição. Um
está relacionado à premissa histórica, já parcialmente abandonada,
de que os alunos deveriam aprender sempre as quatro habilidades
– escutar, falar, ler e escrever – independente dos objetivos que
tivessem no estudo da língua, independente de, em algumas
circunstâncias, precisarem desenvolver proficiência em apenas
uma habilidade. O outro exemplo vem do debate que existiu

5
Uma versão anterior deste capítulo, em inglês, foi publicada em: LEFFA,
Vilson J. Making ends meet in the classroom: The attributes of the good
language teacher. CADERNOS DO IL, n. 12, p. 107-116, 1994.
68 Vilson J. Leffa

entre aquisição versus aprendizagem, em que o professor


conscientemente ensinava uma coisa ao aluno e o aluno
inconscientemente adquiria outra.
Considerando o contexto histórico do ensino das quatro
habilidades (veja abordagem audiolingual no Cap. 1), a ideia de
que os professores pudessem focalizar apenas a habilidade da
leitura, em vez de leitura e fala, criou um dilema teórico, já que a
língua era definida como fala e não como escrita. A escrita, na
melhor das hipóteses, seria uma mera e pobre representação da
língua, uma fotografia desfocada, sem vida e sem cor do que era
o objeto real da língua. E talvez não chegasse nem a isso. Uma
foto pelo menos mostra semelhança com o objeto real; a escrita,
nem isso. A qualidade de reprodução da escrita é tão pobre que
qualquer semelhança possível com a língua falada era perdida.
Quando, por exemplo, lemos uma palavra nunca ouvida,
principalmente numa língua em que há pouca concordância entre
fonemas e letras, como é o caso do inglês, não conseguimos
pronunciar a palavra, ou seja, não sabemos a que se refere a forma
escrita, não sabemos o que ela representa. Logo, seguindo esse
raciocínio, é impossível aprender uma língua através de sua
escrita.
A analogia da escrita com a fotografia do objeto real
fornecia um argumento imbatível para os defensores da língua
como fala. Vejamos um outro exemplo. Se vejo uma foto de
minha mãe, eu imediatamente a reconheço na foto. Posso me
lembrar de sua voz, ainda que a foto não seja sonora; da cor de
seus olhos, ainda que a foto não seja colorida. Mas se olho para
a foto de uma pessoa que nunca vi antes, a foto vai me dizer
muito pouco. Não dá para saber como realmente é a pessoa e
posso ser facilmente enganado pelo que penso ver na foto. A
pessoa pode ser mais velha ou mais jovem do que parece. O que
posso discernir sobre a personalidade da pessoa? Será
entusiástica? Criativa? Inteligente? Ambiciosa? Generosa?
Egoísta? Não posso obter todas essas informações apenas pelas
informações da foto.
Língua Estrangeira 69

Há, portanto, uma grande diferença entre ver uma foto de


alguém que já conhecemos e alguém que nunca vimos antes.
Assim, seguindo a linha de raciocínio, se lemos uma palavra que
já conhecemos, uma palavra que já ouvimos e falamos, podemos
reconhecê-la imediatamente – e reconstruir todas as associações
entre aquela desfocada representação da palavra impressa na
página e a rica experiência de vida que está além dela. Por outro
lado, se for uma palavra que nunca vimos não podemos saber
como realmente é esta palavra. Temos uma experiência artificial,
vicária da língua.
Tudo isso levou ao princípio pedagógico de que na
aprendizagem da língua as habilidades não devem ser apresentadas
ao mesmo tempo, mas em sequência, dentro de uma ordem de
aprendizagem. Primeiro, ouvimos a língua, depois a falamos,
depois a lemos e finalmente a escrevemos. Em nenhuma
circunstância, independente de qualquer objetivo que se possa
ter, essa ordem pode ser quebrada. “O princípio [fala antes da
escrita] deve ser obedecido, mesmo quando o objetivo seja apenas
ler.”
A ideia de que os alunos secundários deveriam adquirir
apenas a habilidade da leitura em língua estrangeira teve uma
aceitação muito grande nos Estados Unidos, como vimos no
Capítulo 1. A hipótese de que compreensão oral seria necessária
para a leitura foi testada várias vezes.
A primeira grande investigação (COLEMAN, 1929) foi
realizada na década de 20, envolvendo milhares de escolas e
centenas de universidades, tanto nos Estados Unidos como no
Canadá. A conclusão deste estudo foi de que os alunos leem
melhor uma língua estrangeira se a habilidade da leitura foi
enfatizada na escola. O segundo estudo foi conduzido na década
de 40 (AGARD; DUNKEL, 1948). Conclusão: os alunos leem
melhor uma língua estrangeira se a habilidade da leitura for
enfatizada na escola. O terceiro estudo, conhecido como The
Pennsylvania Foreign Language Project (SMITH, 1970), foi
conduzido na década de 60. Conclusão deste estudo: os alunos
leem melhor uma língua estrangeira se a habilidade da leitura for
70 Vilson J. Leffa

enfatizada na escola. Tudo isso sugere, em termos de escrita


versus leitura, que os alunos aprendem aquilo que lhes for
ensinado: ensine a ler e eles aprenderão a ler; ensine a falar e
eles aprenderão a falar.
A ideia de uma correlação entre ensino e aprendizagem
está desacreditada na pedagogia atual e tem o apoio de áreas afins
como a Psicologia e a Linguística – em que pese algumas vozes
tímidas de abordagens metacognitivas (COHEN, 1998;
HOSENFELD, 1981; SOLÉ, 1998), que defendem o ensino
consciente das estratégias de aprendizagem. É no mínimo
ingênuo, se não perigoso, deixar o professor pensar que seu ensino
possa gerar uma aprendizagem correspondente no aluno quando
há tantas outras variáveis atuando na sala de aula
Na Linguística, e na aprendizagem de línguas em particular,
a dicotomia deixou de ser entre ensino e aprendizagem; introduziu-
se uma distinção mais complexa, dando mais crédito ao que é
inconsciente. Refiro-me aqui à dicotomia aquisição/
aprendizagem. Pode-se até aceitar a ideia de que haja uma
correspondência entre uma e outra, mas o que os alunos aprendem
conscientemente não é importante. O que é importante é o que
eles adquirem – e o que eles adquirem é diferente do que eles
aprendem.
Retoma-se a ideia da ordenação (“learning order” em
inglês), não mais no âmbito da aprendizagem, mas no próprio
âmbito da aquisição. Passou-se a defender a ideia de que as
pessoas adquirem uma segunda língua numa determinada ordem.
No caso da aquisição do inglês, por exemplo, a forma _ING, o
passado irregular e a terceira pessoa do singular são sempre
adquiridos nessa ordem, independentemente de onde venham os
sujeitos ou de qual seja sua língua materna. A ideia é de que a
chamada “ordem natural de aquisição” é totalmente refratária a
qualquer instrução formal da sala de aula; mesmo que o professor
ensine ao seu aluno a terceira pessoa do singular antes da forma
_ING, o aluno não vai adquirir esses dois morfemas na sequência
em que foram ensinados, mas na sequência oposta, de acordo
com a ordem natural. Em outras palavras, o ensino não afeta a
Língua Estrangeira 71

aquisição. Na melhor das hipóteses pode acelerar a aquisição e


talvez melhorar o desempenho do aluno em termos de correção
gramatical, o que seriam considerados aspectos marginais. O
aspecto crucial da ordem natural de aquisição é imune ao ensino.
De certo modo, a ideia antiga de que era preciso ensinar os
alunos a falar uma língua estrangeira para que eles aprendessem
a ler nessa língua – o professor ensina uma coisa e o aluno aprende
outra, na dicotomia ensino/aprendizagem – evolui para uma
tricotomia: o professor ensina uma coisa, o aluno aprende outra e
adquire uma terceira. A aquisição dá-se através de uma caixa
preta, tecnicamente conhecida como Dispositivo de Aquisição
da Língua (Language Acquisition Device – LAD – em inglês),
que é ativada automaticamente, sem controle da consciência,
quando ocorre input linguístico no ambiente em que se encontra
o sujeito. A aquisição da língua dá-se, portanto, de modo
incidental, onde o aluno conscientemente faz uma coisa e
inconscientemente adquire outra.
O objetivo – ambicioso – deste capítulo é propor uma
abordagem que reduza a polaridade entre o que o professor ensina
e o que o aluno aprende. A premissa – ainda mais ambiciosa – é
de que embora muitas das atividades feitas pelo professor estejam
abaixo do nível da consciência, algumas delas pelo menos possam
ser trazidas para a arena aberta da consciência. Pode-se
argumentar também que ao lado de uma ênfase no papel do
inconsciente, existe um movimento contrário de valorização da
consciência, incluindo aí o que tem sido proposto em termos de
ensino de estratégias de aprendizagem (SOLÉ, 1998; OXFORD,
1989; COHEN, 1998); a ideia de que a consciência desempenha
um papel mais importante na aquisição da língua do que
originalmente aceita (SCHMIDT, 1990); o papel da
conscientização no ensino de línguas estrangeiras e a ideia do
professor como um profissional reflexivo (WALLACE, 1991).
O argumento principal, no entanto, talvez seja a ênfase dada
ao aspecto afetivo; no fundo, defendo a ideia de que a paixão é o
caminho mais curto para aproximar a ação do professor dos
resultados desejados. Para isso proponho aqui como atributos
72 Vilson J. Leffa

básicos do professor ideal três características: (1) criatividade,


(2) intuição e (3) paixão.

O professor como ele deveria ser

Antes de entrar nas três características básicas que estou


propondo para o professor ideal de línguas estrangeiras, gostaria
de fazer uma breve resenha do que diz a literatura nessa área.
O ensino de uma língua estrangeira exige do professor
determinadas qualidades, umas mais óbvias do que outras. A mais
óbvia de todas é que o professor deve conhecer o conteúdo daquilo
que ensina; deve também possuir uma metodologia adequada para
transpor esse conteúdo para o aluno e, finalmente, deve ter
determinados traços de personalidade para facilitar todo esse
processo de aprendizagem.
Segundo Lund & Pedersen (2001) não faltam sugestões de
quais seriam essas qualidades. No domínio do conteúdo, por
exemplo, podemos encontrar indicações de que o professor deve
conhecer a língua que leciona e sua respectiva cultura. Dentro da
língua, deve conhecer, idealmente, sua história, os diferentes
registros de uso, desde a língua informal falada até a língua formal
escrita, além de um bom domínio da gramática. Entre os aspectos
culturais, é desejável que o professor tenha algum conhecimento
da história do povo cuja língua ensina e que tenha lido pelo
menos as principais obras de sua literatura,
Também não faltam indicações do que o professor deve
saber em termos de abordagens, metodologias e técnicas de ensino.
O que segue é a lista de um levantamento feito no estudo clássico
de Politzer & Weiss (1971); o bom professor de línguas
estrangeiras:

- conhece psicologia educacional;


- sabe motivar os alunos:
- produz input adequado ao nível dos alunos;
- estabelece objetivos claros;
- envolve os alunos;
Língua Estrangeira 73

- avalia com imparcialidade;


- incentiva participação;
- sabe dar feedback;
- possui domínio de classe;
- sabe preparar materiais de ensino;
- tem uma filosofia de educação;

Finalmente, em termos de traços desejáveis de


personalidade, os inúmeros levantamentos feitos junto aos alunos,
têm demonstrado, entre outros aspectos, que o bom professor de
línguas estrangeiras:

- é paciente;
- é flexível;
- tem mente aberta;
- é tolerante;
- tem senso de humor;
- gosta de ensinar;
- tem entusiasmo;
- é honesto;
- é criativo;
- é eficiente;
- tem autodisciplina;
- assume a autoridade quando necessário;
- é prestimoso;
- é humilde;
- é organizado;
- inspira os alunos;
- é competente;
- é sensível;
- tem calor humano.

Deixando de lado os aspectos mais óbvios, como aqueles


que se relacionam ao conhecimento do conteúdo e de uma
metodologia de ensino, eu gostaria de retomar e aprofundar
algumas das características psicológicas do professor, com ênfase
74 Vilson J. Leffa

no domínio afetivo e fixando-me em três aspectos: (1)


criatividade, já citado na literatura como uma qualidade desejável;
(2) intuição, não diretamente citado mas que pode ser percebido
na afirmação de que o professor deve ser “sensível”; e (3) paixão,
também não citado diretamente mas percebível em termos como
“gosta de ensinar”, “tem calor humano” e “mostra entusiasmo”.
Vejamos cada um desses aspectos.

Criatividade

O ensino da língua estrangeira é mais uma arte do que uma


ciência e o professor cria a partir daquilo de que dispõe na sala de
aula. Um artista não precisa de muita coisa para criar uma obra-
prima – às vezes nada mais do que um cinzel, um martelo e um
bloco de pedra. Às vezes, quanto menos se tem, melhor é a obra,
que pode sair mais densa e enxuta. Na sala de aula, portanto,
podemos definir criatividade como a capacidade de explorar os
recursos limitados de que se dispõe para criar um número ilimitado
de condições de aprendizagem. Tal como o bloco de pedra, que
oferece inúmeras possibilidades ao escultor, uma sala cheia de
alunos pode ser uma fonte de inspiração para o professor como
artista.
Como supervisor de estágio, tenho observado centenas de
aulas e tenho assistido a algumas que são verdadeiras obras de
arte – do mesmo modo que uma pintura, uma peça musical ou
uma obra dramática. Sentado no fundo da sala, vi alguns
professores produzindo com seus alunos o que realmente se
poderia chamar de uma obra prima.
Uma aula tem componentes espaciais e temporais; não só
acontece dentro de quatro paredes, como também acontece num
espaço de tempo, envolvendo o encontro de pessoas que interagem
entre si, exercendo diferentes papéis, falando como alunos e como
professor. A aula como arte, pode estar centrada no professor, no
aluno ou na tarefa que esteja sendo executada. Não privilegia
necessariamente o aluno sobre o professor. Às vezes pode até
estar centrada no professor.
Língua Estrangeira 75

Lembro de um professor que tinha uma grande capacidade


de criar um ritmo em sua aula. Era um professor que se poderia
classificar de tradicional, na medida em que todas as atividades
de aula emanavam dele. Mas não agia como um sargento dando
ordem unida; na verdade parecia mais um maestro conduzindo
uma orquestra, fazendo com que todos os músicos participassem,
uns mais outros menos, mas cada um tocando seu instrumento.
O professor desenvolvia um conteúdo específico, e todas as
perguntas dos alunos eram reconhecidas rapidamente e
incorporadas ao conteúdo. Conseguia fazer com que os alunos
dessem o melhor de si, talvez porque também desse a eles o melhor
de si – de modo que parecia haver na aula um contrato implícito
de que se aceitaria apenas o melhor de cada um. Não percebi
qualquer sinal de angústia ou ansiedade entre os alunos. As
atividades fluíam serenamente, como fluem as notas musicais de
uma sinfonia. No final da aula, aquela sensação agradável de
que tinham realizado alguma coisa.
Admito que a descrição oferecida acima seja extremamente
subjetiva, mas espero que não seja inútil. Foi um rápido exemplo
de aula como arte nas mãos de um professor experiente. Tal como
o personagem Santiago em O Velho e o Mar, esse professor
conhecia todos os truques de sua profissão e sabia usá-los para
criar sua aula, como o compositor usa seu conhecimento dos
instrumentos para criar uma música, como o escultor usa sua
habilidade com o cinzel para criar uma estátua.
O ensino como uma arte não deve, no entanto, ser um
atributo exclusivo do professor experiente. Vi também muitos
professores principiantes usando muita criatividade em suas aulas.
O que segue é apenas um exemplo.
Sexta série do ensino fundamental, cerca de 35 alunos na
sala, uma tarde quente. A aula estava pela metade e os alunos
trabalhavam em um diálogo sobre o que gostavam e não gostavam,
com um foco gramatical no uso de pronomes. A professora, que
parecia quase da mesma idade que os alunos, abre uma pasta e
mostra um pôster de um cantor popular. Reação imediata dos
alunos, uns aprovando e outros reprovando. Outro pôster é
76 Vilson J. Leffa

apresentado, com uma reação semelhante, só que desta vez com


resultados invertidos: os alunos que gostaram do primeiro pôster
detestaram o segundo e vice-versa. Era exatamente o que a
professora queria. Dividiu a aula em três grupos: os que preferiam
um cantor, os que preferiam o outro e os que não tinham
preferência.
Cada aluno em cada grupo deveria escrever duas frases
relacionadas entre si, usando as preferências e rejeições em suas
famílias, com o vocabulário da unidade em que estavam
trabalhando. A professora deu alguns exemplos (no caso em língua
inglesa):

My mother likes Roberto Carlos. I can’t stand him.


My sister likes the Ramones. She thinks they are terrific.

Com alguma supervisão da professora, os alunos foram


solicitados a criar suas próprias frases, que eram recolhidas,
dobradas e colocadas num caixa de sapato. A professora então
explicou que eles iam fazer um jogo e demonstrou as regras. Um
aluno de um dos grupos viria para a frente da aula, pegaria um
pedaço de papel da caixa, leria as duas frases silenciosamente e
deveria então interpretar a frase para os membros de seu grupo,
usando apenas gestos. Os membros do grupo tentariam adivinhar
o que estava escrito produzindo em voz alta diferentes frases
durante até um minuto. Se conseguissem adivinhar qual era a
frase, o grupo ganhava um ponto. Depois um outro aluno de um
outro grupo viria para a frente e repetiria o procedimento para os
membros do seu grupo. O jogo continuaria usando cada vez um
aluno diferente. O grupo com o número maior de pontos seria o
vencedor. Durante cerca de 20 minutos os alunos ficaram
conversando naquela aula, gostando do que estavam fazendo e
provavelmente aprendendo muitas coisas, incluindo os pronomes
da língua inglesa.
Gostaria de terminar esta parte sobre criatividade,
parafraseando Emily Dickinson, poetisa americana do Século
XIX:
Língua Estrangeira 77

Para ser criativo na sala de aula o professor precisa de


alunos e de uma lousa, mas se não tiver uma lousa, bastam
os alunos.

Intuição

Vejamos agora o segundo dos nossos atributos desejáveis,


que vou chamar de intuição.
Podemos definir intuição como a capacidade de fazer
conexões; quanto mais conexões se fizer, mais intuição se tem.
De certa maneira, a intuição implica a habilidade de reconstruir
dentro de nós o mundo externo, de modo a maximizar nossas
relações com este mundo. A habilidade de se adaptar às
circunstâncias, de perceber as relações entre aspectos teóricos e
o que acontece na sala de aula, de identificar num conjunto
complexo de variáveis aquela que pode influir na aprendizagem
de um determinado traço linguístico são, a meu ver, indícios da
intuição.
Uma vez se acreditava que a língua era feita de palavras.
Mais tarde, fomos informados de que a língua era feita de sons.
Com Chomsky, recebemos a garantia de que a língua era feita de
sentenças, que eram geradas e transformadas da estrutura profunda
pela aplicação de certas regras. Com o advento da pragmática,
nos disseram que a língua era feita de eventos comunicativos.
Posteriormente suspeitamos que a língua seja feita de sintagmas
lexicais; não adquirimos uma língua criando regras, mas
absorvendo esses fragmentos pré-fabricados da língua. Como
será no futuro?
Parece que precisamos de intuição não apenas para
compreender o passado e relacioná-lo ao presente, mas
principalmente para prever o futuro. Em termos da disciplina
que lecionamos como será o futuro daqui a uma década? Será
que nossos alunos querem ou precisam do que temos para lhes
oferecer? Parece que o ensino da língua é sempre afetado pela
tecnologia que temos ä disposição. Até agora a chegada de uma
nova tecnologia – rádio, gravador de áudio, gravador de vídeo,
78 Vilson J. Leffa

computador, correio eletrônico, máquina de fax, CD-ROMs – tem


não apenas modificado a maneira como ensinamos a língua, mas
também, permanentemente, aumentado a necessidade de aprender
uma língua estrangeira. Cada vez mais alunos, a cada ano, sentem
a necessidade crescente de reservar umas horas no meio de suas
outras disciplinas para estudar uma língua estrangeira. A maioria
deles não porque gosta, mas porque sente a necessidade de.
Como será no futuro? Seguiremos a mesma tendência?
No caso do inglês, terá essa língua se tornado tão invasiva, tão
onipresente que será usada por todos como uma língua franca, ou
surgirá uma nova tecnologia, como a tradução automática e
instantânea, que tornará desnecessária a aquisição de uma nova
língua? Algumas atividades, relacionadas ao nosso campo de
trabalho, provavelmente serão feitas por máquinas num futuro
não muito distante, incluindo muitas tarefas de tradução, como
cartas comerciais e boletins de previsão do tempo.
Outras atividades mais próximas do nosso campo de
trabalho também serão afetadas pelas tecnologias emergentes. Até
agora a interação professor/aluno só era possível com a atividade
do professor. Até recentemente as tecnologias disponíveis podiam
apenas apresentar conteúdo para os alunos, às vezes com a ajuda
de som e animação, mas essas tecnologias em si não reagiam ou
se transformavam para atender as necessidades específicas do
aluno. Agora também isso está mudando. O vídeo interativo e
programas de computador, com preços cada vez mais acessíveis,
podem se adaptar ao estilo de aprendizagem do aluno e simular
muitas das atividades do professor. Assim, provavelmente teremos
que nos adaptar a este novo mundo. Muitas das coisas que ainda
precisamos fazer talvez se tornem desnecessárias, o que poder
ser bom porque nos dará tempo para outras coisas mais
interessantes.
Na minha percepção, esses aspectos se relacionam à
intuição porque chegamos a eles ligando um ponto com outro e
fazendo projeções sobre o futuro. Podem parecer confusos e
caóticos, mas devem ter um padrão recursivo – que poderá ser
percebido através da intuição.
Língua Estrangeira 79

Paixão

Paixão é entusiasmo pelo que se faz, e entusiasmo, como


todos sabemos, é uma palavra que em sua origem grega significa
“ter Deus dentro de si”. Paixão é um estado de espírito ou, se
preferirem, um estado de coração. Não é algo que vem de fora; é
algo que está dentro de nós. Pode ser às oito horas de uma manhã
de segunda-feira ou às duas horas de uma tarde quente e abafada.
Quando temos paixão podemos mais facilmente mudar as
coisas que nos cercam, e que não nos agradam, do que ser mudado
por elas. Isso é assim porque não somos afetados pelas coisas
que não vemos; se não vemos o fracasso e a derrota eles não
existem para nós. Não podemos ser afetados por algo que nos é
totalmente estranho. Não interagimos com o mundo como ele é,
mas como nós o percebemos. Se percebo meus alunos agressivos
como seres humanos e sensíveis, e os trato com toda delicadeza e
respeito, minhas palavras tocarão esses alunos de um modo mais
efetivo. É até provável que no fim sejamos, consciente ou
inconscientemente, mudados pelo mundo que nos cerca, mas será
um mundo que já foi alterado pelo nosso desejo.
Admito que isso possa ser idealístico e talvez impraticável,
se não ingênuo. De fato pode ser perigoso, porque na nossa
ingenuidade podemos ser destruídos pelo mundo que não
queremos aceitar. Não posso chegar ao ponto de adotar a filosofia
de Hemingway em O Velho e o Mar, e afirmar que o homem pode
ser destruído mas não vencido. Não vejo razão para destruir o
professor, mesmo argumentando que suas ideias permanecerão
vivas. Mas também não posso aceitar a ideia de que o professor
seja ameaçado de destruição por tentar mudar o mundo. Acredito
que não correrá este perigo, principalmente se combinar a paixão
com os dois outros atributos apresentados: criatividade e intuição.
O segredo da paixão é que ela afeta o sentimento das
pessoas e por isso as envolve. As pessoas não aprendem se não
forem envolvidas. A ideia do envolvimento como pré-requisito
da aprendizagem vem de longe, aparentemente da Antiga China,
provavelmente de Confúcio:
80 Vilson J. Leffa

Diga-me e eu esqueço
Ensina-me e eu lembro
Envolva-me e eu aprendo.

Conclusão

Meu principal objetivo neste capítulo foi argumentar que


é possível diminuir a diferença entre o que o professor ensina e o
que o aluno aprende se os professores possuírem o que considero
os três atributos fundamentais de nossa profissão: criatividade,
intuição e paixão.
Em termos de criatividade, meu argumento principal é de
que as coisas não vêm prontas para as nossas circunstâncias; temos
que criar as condições para que a aprendizagem ocorra, usando
os recursos que temos num determinado momento numa
determinada aula.
Em termos de intuição, enfatizei a ideia de que devemos
tentar prever o futuro imediato. Devemos preparar os nossos
alunos para o mundo em que eles vão viver amanhã, não para o
mundo em que nós vivemos hoje.
E finalmente devemos usar a paixão para envolver nossos
alunos. O domínio afetivo é muito importante e será atendido na
medida em que trabalharmos com paixão.
Língua Estrangeira 81

Capítulo 4
Aspectos políticos da formação
do professor de LE6

Introdução

O ser humano possui algumas características que são


exclusivas de sua condição humana. Nenhum outro ser, por
exemplo, tem a capacidade da articulação linguística em termos
de léxico e sintaxe; nenhum outro ser é capaz de pensar e refletir
sobre sua própria condição; e nenhum outro ser é capaz de evoluir
de uma geração para outra, como faz o ser humano. Dessas
características exclusivas - e essenciais - do ser humano, duas
precisam ser destacadas quando se fala em formação de
professores de línguas estrangeiras. Uma é a capacidade da fala;
o homem não é apenas um animal político; é um animal político
que fala. A outra característica importante é a capacidade de
evoluir. O ser humano não permanece o mesmo de uma geração
para outra; ele se transforma, transforma o mundo e transforma a
percepção que temos do mundo.
O professor de línguas estrangeiras, quando ensina uma
língua a um aluno, toca o ser humano na sua essência, tanto pela
ação do verbo ensinar, que significa provocar uma mudança,
estabelecendo, portanto, uma relação com a capacidade de evoluir,
como pelo objeto do verbo, que é a própria língua, estabelecendo
aí uma relação com a fala. Mas, se lidar com a essência do ser
humano é o aspecto fascinante da profissão há, no entanto, um
preço a se pagar por essa prerrogativa, que é o longo e pesado
investimento que precisa ser feito para formar um professor de

6
Uma versão anterior deste capítulo foi publicada em: LEFFA, Vilson J.
Aspectos políticos da formação do professor de línguas estrangeiras. In:
LEFFA, Vilson J. (Org.). O professor de línguas estrangeiras; construindo
a profissão. 2. Ed. Pelotas, 2008d, p. 353-376.
82 Vilson J. Leffa

línguas estrangeiras. Sem esse investimento não se obtém um


profissional dentro do perfil que se deseja: reflexivo, crítico e
comprometido com a educação.
A formação de um professor de línguas estrangeiras envolve
o domínio de diferentes áreas de conhecimento, incluindo o
domínio da língua que ensina, e o domínio da ação pedagógica
necessária para fazer a aprendizagem da língua acontecer na sala
de aula. A formação de um profissional competente nessas duas
áreas de conhecimento, língua e metodologia, na medida em que
envolve a definição do perfil desejado pela sociedade, é mais
uma questão política do que acadêmica. A sala de aula não é uma
redoma de vidro, isolada do mundo, e o que acontece dentro da
sala de aula está condicionado pelo que acontece lá fora. Os
fatores que determinam o perfil do profissional de línguas
dependem de ações, menos ou mais explícitas, conduzidas fora
do ambiente estritamente acadêmico e que afetam o trabalho do
professor. Entre as ações mais explícitas temos as leis e diretrizes
governamentais, o trabalho das associações de professores, os
projetos das secretarias de educação dos estados, os convênios
entre diferentes instituições etc. Entre as menos explícitas temos
aquelas que resultam das relações de poder que permeiam os
diferentes setores da sociedade, hoje globalizada. No caso das
línguas estrangeiras, temos os fatores políticos e econômicos que
influenciam a decisão por uma ou outra língua, incluindo, por
exemplo, a questão da multinacionalidade da língua inglesa na
atualidade. Todas essas questões afetam a formação do professor
tanto em situações de pré-serviço (e.g. a definição de uma carga
horária mínima para uma disciplina no curso de graduação) como
em situações de serviço (e.g. a organização de um curso de
atualização para professores do ensino médio).

O grande desafio

Um aspecto que tem sido muito enfatizado na preparação


de professores é a necessidade de estabelecer de modo bem claro
a diferença entre treinar e formar e, a partir dessa diferença, passar
Língua Estrangeira 83

a formar o professor e não apenas a treiná-lo. Tradicionalmente


tem-se definido treinamento como o ensino de técnicas e
estratégias de ensino que o professor deve dominar e reproduzir
mecanicamente, sem qualquer preocupação com sua
fundamentação teórica (Pennington, 1990; Wallace, 1991, ver
também Celani neste volume). “Caracteriza-se por abordagens
que concebem a preparação profissional como a familiarização
dos alunos mestres com técnicas e habilidades para serem
aplicadas em sala de aula” (Richards e Nunan 1990, p. xi). Por
outro lado, formação tem sido descrita como uma preparação mais
complexa do professor, envolvendo a fusão do conhecimento
recebido com o conhecimento experimental e uma reflexão sobre
esses dois tipos de conhecimento.
Neste capítulo, procura-se introduzir uma perspectiva
temporal para distinguir treinamento de formação. Assim, define-
se treinamento como a preparação para executar uma tarefa que
produza resultados imediatos. A formação, por outro lado, é vista
como uma preparação para o futuro.
Um exemplo clássico de treinamento são os cursos às vezes
oferecidos pelas escolas particulares de línguas aos seus futuros
professores e que visam simplesmente desenvolver a competência
no uso do material de ensino produzido pela própria escola. O
objetivo imediato é ensinar o professor a usar aquele material; no
dia em que o material for substituído, o professor deverá fazer
um outro curso. Geralmente não há condições de dar ao professor
um embasamento teórico; buscam-se resultados imediatos que
devem ser obtidos da maneira mais rápida e econômica possível.
Formação é diferente: busca a reflexão e o motivo por que
uma ação é feita da maneira que é feita. Há, assim, uma
preocupação com o embasamento teórico que subjaz à atividade
do professor. Enquanto que o treinamento limita-se ao aqui e
agora, a formação olha além.
A figura 1 tenta ilustrar a diferença entre treinamento e
formação. Formação, por ser um processo contínuo, é
representada por um círculo, onde a iniciação pode dar-se em
qualquer um dos três pontos. Começando pela teoria, que
84 Vilson J. Leffa

podemos definir também como conhecimento recebido, vai-se


para a prática, que é o conhecimento experimental, ou
experiencial, e chega-se à reflexão, que, por sua vez, realimenta
a teoria, iniciando um novo ciclo. O treinamento já segue uma
linha horizontal, serial e sequencial, onde não há retorno; inicia e
termina com a prática.
A necessidade de prever o futuro é o maior de todos os
desafios. Quando formamos um professor não o estamos
preparando para o mundo em que vivemos hoje, mas para o mundo
em que os alunos desse professor vão viver daqui a cinco, dez ou
vinte anos. Como será esse mundo não temos condições de prever.
Podemos aventar algumas hipóteses, mas não podemos garantir
que essas hipóteses serão confirmadas. O que podemos fazer é
alertar o futuro professor que o conteúdo que ele está recebendo
agora através dos livros é um conteúdo de valor temporário, e
que muito brevemente, como muitos outros produtos fabricados
pelo homem, terá sua validade vencida.
Já está se desenvolvendo no meio acadêmico a consciência
de que o conhecimento tem uma validade que prescreve depois
de um certo período. Para a avaliação do currículo de um
pesquisador, por exemplo, só interessa sua produção científica
dos últimos cinco anos, sendo que em muitas circunstâncias, como
na avaliação de cursos, por exemplo, só é considerado o que foi
produzido nos últimos dois anos. Na verdade, um diploma de
conclusão de curso deveria ter impresso, junto com a data, um
termo de validade, deixando bem claro que um determinado
conhecimento é um bem perecível. O conhecimento evolui e
aquilo que é verdade hoje provavelmente não será verdade
amanhã. O conhecimento não é apenas o armazenamento de fatos,
mas também a reflexão de como esses fatos podem ser obtidos,
avaliados e atualizados. Isso é formação.
Língua Estrangeira 85

Figura 1 - Diferença entre formação e treinamento

Fonte: Autor

O treinamento tem um começo, um meio e um fim. A


formação, não. Ela é contínua. Um professor, que trabalha com
um produto extremamente perecível como o conhecimento, tem
a obrigação de estar sempre atualizado.

Representação e participação

Ao refletir sobre a questão dos aspectos políticos na


formação do professor, parte-se do princípio de que nenhum ser
humano tem a mínima possibilidade de existir sozinho. A ideia
do herói solitário que vai enfrentar sozinho, sem qualquer ajuda,
os bandidos que estão ameaçando a cidadezinha do Velho Oeste
tem um apelo romântico muito grande, mas não é realidade; é
ficção.
86 Vilson J. Leffa

O grande escritor americano do Século XX e expoente


máximo do individualismo exacerbado, Ernest Hemingway usou
como título de um de seus livros o título de um poema de John
Donne, poeta inglês que viveu na Inglaterra no Século XVII: Por
quem os sinos dobram. Hemingway, na verdade, não usa apenas
o título do poema para seu livro, mas, certamente para deixar
bem claro o que ele quer dizer com o título, usa o próprio poema
como epígrafe do livro. Um poema que, resumidamente, diz o
seguinte: nenhum homem é uma ilha; todo homem é parte do
continente - por isso, quando ouvirmos os sinos tocarem pela
morte de alguém não devemos perguntar por quem os sinos
dobram; eles dobram por nós.
Viver, portanto, é conviver - e a necessidade de convivência
aumenta na medida em que evolui a humanidade. Cada vez mais
a execução de uma tarefa depende da interação com os outros. A
própria inteligência, que sempre foi vista como uma característica
individual, passa a ser vista como uma característica social,
distribuída entre os participantes de um determinado grupo, quer
seja um time de futebol, a equipe da Nasa que enviou o homem
à lua ou os responsáveis pela produção de um automóvel. Muitas
atividades que há algum tempo ainda eram executadas
individualmente - um sistema operacional para
microcomputadores, um dicionário monolíngue, um projeto de
lei - agora só podem ser realizadas coletivamente. Nomes como
Webster, Aurélio ou Michaelis, indivíduos que deram origem aos
dicionários que levam seus nomes, atualmente não seriam mais
individualmente responsáveis pelas obras que idealizaram - hoje
seus dicionários são obras coletivas, resultado de um trabalho de
equipe.
É pertinente lembrar que a palavra “política”, que
historicamente surgiu com a criação das cidades, tem em comum
com a palavra “cidade” o mesmo radical “polis” em grego. As
palavras “cidade” e “cidadania”, por sua vez, também têm o
mesmo radical - o que mostra, em suma, que “política”, “cidade”
e “cidadania” são palavras da mesma família - todas surgidas da
intensificação da convivência entre os seres humanos. Essa
Língua Estrangeira 87

convivência, com o tempo, foi se tornando tão complexa que


surgiu a necessidade de se regulamentar as relações entre as
pessoas, basicamente estabelecendo uma série de direitos e
obrigações para que cada indivíduo pudesse exercer na
coletividade a sua cidadania.
Surgia assim a ciência da política, que no início tinha
condições de ser totalmente participativa: todas as pessoas
interessadas se reuniam num determinado local e estabeleciam
sem intermediários a normas de convivência que deveriam seguir
para poder sobreviver coletivamente. Com o crescimento da
cidade e a complexidade das relações entre as pessoas, a
participação foi substituída pela representação - o cidadão não
participava mais diretamente das decisões que afetavam sua vida,
mas escolhia um representante para defender seus direitos.
Atualmente, com o avanço da tecnologia, que amplia a
possibilidade de comunicação e interação entre as pessoas, há
uma tendência de retorno à cidadania participativa, com maior
ou menor grau, dependendo apenas da vontade política dos
principais interessados. Assim como é possível, por exemplo,
identificar em poucas horas, entre milhões de apostadores da Loto
em todo o país, quem possui o cartão vencedor, seria também
possível verificar diretamente o desejo de toda a população nas
decisões que afetam a todos.

Não há razão para sermos consultados somente a cada


eleição. ... na era digital o exercício da cidadania já não
será esporádico e direcionado pelos governos, mas sim
exercido pró-ativamente pelos cidadãos digitais
interconectados em poderosas redes virtuais (ROSSI,
2000, p. 34).

Se não é feito - numa época em que já estamos


definitivamente entrando num sistema de governo digital (e-
government) com grande possibilidade de participação
(TAQUARI, 2000, p. 2) - é porque falta vontade política, tanto
de representantes como de representados. A tradição liberal de
que o ser humano estaria mais interessando na proteção de seus
88 Vilson J. Leffa

interesses individuais do que no bem da coletividade (LEVINE,


1981), parece que ainda é muito forte.
Da parte dos representados é mais fácil delegar do que
participar, já que participar exige não só inteirar-se dos problemas
que ameaçam nossos direitos mas também trabalhar
concretamente em sua defesa. O preço que se paga pela cidadania
participativa é o tempo de que precisamos dispor para poder
exercê-la, incluindo reflexão e ação.

A luz condutora da democracia participativa é a


consciência de que as escolhas devem ser feitas dentro de
qualquer contexto social sem o domínio da vontade de
uma elite (mesmo de uma elite eleita...). Ao contrário da
teoria liberal clássica, a democracia participativa
reconhece a escolha como a essência da atividade de um
ser humano moral, responsável e comprometido. A
política não é uma atividade para ser exercida de modo
superficial e ocasional em determinados momentos
(BEYER, 1988, p. 265). (Tradução minha)

A legislação vigente

Do ponto de vista político, a formação do professor de


línguas estrangeiras envolve não só questões ligadas estritamente
à formação, incluindo aí as exigências legais para o exercício da
profissão, mas também questões de política linguística. A
legislação a respeito, começando pela LDB (Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional), parece bem clara em todos esses
aspectos, esclarecendo, por exemplo, quem deve estar legalmente
habilitado para o ensino de uma língua estrangeira, onde a
formação deve ser obtida, quais os conteúdos que devem ser
desenvolvidos, incluindo até a carga horária mínima para a prática
de ensino, quem e a partir de que série deve estudar línguas
estrangeiras, a quem cabe decidir a escolha das línguas a serem
ensinadas na escola etc.
Os dispositivos da LDB sobre o ensino da língua estrangeira
têm sido recebidos, de um modo geral, com simpatia pelos
Língua Estrangeira 89

pesquisadores. No levantamento que fiz dos trabalhos


apresentados no II Encontro Nacional sobre Políticas de Ensino
de Línguas Estrangeiras, realizado em Pelotas, em setembro de
2000, não encontrei um único trabalho que criticasse
negativamente o que estabelece a lei. Alguns eram explicitamente
favoráveis (ex.: GONÇALVES, 2000; KUNDMAN, 2000)
enquanto que outros davam a entender que a lei deveria ser
cumprida (ex.: CAIXETA, 2000; COSTA et al., 2000). Entre os
pontos positivos mais citados está a obrigatoriedade do ensino da
língua estrangeira a partir da quinta série e a determinação de no
mínimo 300 horas para a prática de ensino na graduação.
Outro consenso entre os especialistas é de que a lei está
certa quando estabelece que o ensino da língua estrangeira deva
ser decidido pela comunidade onde está inserida a escola. Não é
a lei, não é o estado quem vai decidir qual ou quais línguas deverão
ser ensinadas; é a comunidade, a partir de seus interesses e
necessidades.
O grande impacto da LDB está na habilitação para a
docência. O trabalho do MEC, avaliando as condições dos cursos
de graduação e futuramente aplicando exames nacionais de línguas
estrangeiras para alunos da graduação, haverá de mexer com a
formação do professor. As universidades, até agora, não têm sido
capazes de formar profissionais competentes e suficientes para
suprir as necessidades do mercado de trabalho. Embora seja talvez
um exagero afirmar que a universidade, em vez de formar está
deformando o professor (PAIVA, 1997), a verdade é que há um
desequilíbrio entre a oferta e a procura, envolvendo aspectos
quantitativos e qualitativos: a procura por professores é maior do
que a oferta de profissionais competentes. O resultado é o
surgimento de propostas e ações para formar o professor fora da
universidade, em escolas de línguas ou instituições estrangeiras
de divulgação de outras culturas que atuam dentro do Brasil - o
que tem provocado a reação de muitos especialistas, que defendem
a universidade como a instância responsável pela formação do
professor (ex.: VOLPI, 2000).
90 Vilson J. Leffa

Achar que um profissional de letras possa ser formado nos


bancos da universidade é uma ilusão, necessária ou não (Será
necessária na medida em que o professor formador vai precisar
dessa ilusão para dar continuidade ao seu trabalho). Possivelmente
não há tempo e nem condições para isso na universidade. A
formação de um verdadeiro profissional - reflexivo, crítico,
confiável e capaz de demonstrar competência e segurança no que
faz - é um trabalho de muitos anos, que apenas inicia quando o
aluno sai da universidade. A verdadeira formação, que incorpora
não apenas aquilo que já sabemos, mas que abre espaço para
abrigar também aquilo que ainda não sabemos - é mais ou menos
como fizeram os gregos na antiguidade, que construíram altares
não apenas para os deuses conhecidos, mas que já deixaram um
altar pronto para venerar um possível deus que viesse a surgir no
futuro. Entre as propostas específicas que têm surgido dos
pesquisadores da área, destacam-se a necessidade da educação
contínua (SILVA, 2000), a atualização dos professores (BOHN,
2000) e a criação de bancos de materiais nas escolas (PAIVA,
1997).
A legislação, por si só, não pode ter condições de garantir
um ensino de qualidade. Sua própria implementação depende de
muitos fatores, não só de ordem econômica, mas também da
vontade política de governantes, alunos, pais e professores. A
grande vantagem da LDB, em relação ao ensino de línguas
estrangeiras, é que ela tem mais aspectos positivos do que
negativos, fazendo com que a maior preocupação do professor
esteja, não em modificar a lei, mas em fazer com que ela seja
implementada e cumprida.
O problema maior da LDB pode ser a falta de condições
para que ela seja efetivamente implementada, o que nos coloca
na estranha situação de não estarmos à altura da lei que temos.
Isso a princípio pode ser preocupante, mas talvez seja mais um
aspecto positivo: na pior das hipóteses temos que evoluir, temos
que melhorar para que possamos cumprir a lei. O que se deve
fazer, portanto, não é tentar mudar a lei, mas criar condições,
com urgência, para que ela possa ser cumprida.
Língua Estrangeira 91

O papel das associações de professores

As associações de professores podem desempenhar dois


papéis importantes na formação do professor, um interno e outro
externo. Internamente, a associação pode promover a interação
entre seus associados, basicamente pondo os professores em
contato uns com os outros para a troca de ideias e experiências.
Externamente, espera-se que a associação contribua para a defesa
dos interesses de seus associados.
Essa contribuição pode dar-se, com maior ou menor
intensidade, através de diferentes iniciativas como eventos,
publicações, formação de comissões, encaminhamento de moções
junto às autoridades educacionais e governamentais. Entre os
eventos, estão os inúmeros encontros regionais e nacionais de
professores realizados anualmente em todo o Brasil, incluindo
congressos, simpósios, fóruns de debates, cursos e jornadas de
atualização, além de centenas de atividades menores como
palestras, demonstração de materiais didáticos, relatos de
experiências e de viagens (colegas que voltam de um estágio no
exterior, por exemplo), oficinas de preparação de materiais.
Alguns desses eventos às vezes têm sido realizados em convênio
com as secretarias de educação, tanto do estado como do
município. No caso de algumas línguas, incluindo aí o espanhol,
francês e alemão, o apoio de órgãos estrangeiros tem sido bastante
frequente.
As associações procuram também divulgar as informações
entre seus associados através de diferentes formas de publicação,
incluindo periódicos acadêmicos (Ex.: Contexturas da Associação
dos Professores de Língua Inglesa do Estado de São Paulo), anais
de congressos e principalmente boletins e informativos.
As associações, além de promover a interação entre seus
associados, podem também agir junto às autoridades educacionais
e governamentais, fornecendo subsídios para determinados
projetos políticos na área da educação ou mesmo encaminhando
outros.
92 Vilson J. Leffa

As associações científicas e de professores, na medida em


que conseguem dar ao professor a oportunidade de formar com
outros colegas uma comunidade discursiva, com interesses
comuns, para a troca de ideias, pode contribuir muito para a
formação contínua do professor. O professor não deve apenas
querer ouvir o que os especialistas têm a dizer, e muito menos
esperar fórmulas prontas. Ele deve também ter a oportunidade de
trazer suas ideias e trocar experiências com os colegas de sua
profissão. As associações podem contribuir neste aspecto,
continuando o trabalho de formação iniciado na universidade.

Questões de multinacionalidade

As questões político-econômicas, muitas vezes resultantes


da multinacionalidade de uma língua, podem também afetar a
formação do professor, influenciando desde decisões pessoais na
escolha da língua (o aluno, por exemplo, pode gostar mais de
francês mas resolve estudar inglês porque acha essa língua mais
importante na hora de conseguir um emprego) até decisões
coletivas, feitas pela comunidade escolar ou mesmo pelos sistemas
municipais ou estaduais, provavelmente determinadas por fatores
econômicos ou ideológicos, levando ou não em conta as
preferências individuais dos alunos.
A língua estrangeira mais estudada no mundo é o inglês.
Há uma série de fatos que contribuem para isso, entre os quais
podemos destacar os seguintes: (1) o inglês é falado por mais de
um bilhão e meio de pessoas; (2) o inglês é a língua usada em
mais de 70% das publicações científicas; (3) o inglês é a língua
das organizações internacionais. A razão mais forte, no entanto,
é o fato de que o inglês não tem fronteiras geográficas. Enquanto
que o chinês, por exemplo, também é falado por mais de um bilhão
de pessoas, a língua chinesa está restrita à China e a alguns países
vizinhos. O inglês, por outro lado, é não só declaradamente a
língua oficial de 62 países, mas é também a língua estrangeira
mais falada no mundo: para cada falante nativo há dois falantes
não-nativos que a usam para sua comunicação. O inglês é
Língua Estrangeira 93

provavelmente a única língua estrangeira que possui mais falantes


não nativos do que nativos.
A situação multinacional do inglês tem gerado muito
protesto em todo o mundo, não só de países periféricos, mas
também de países do primeiro mundo, que se veem na
contingência de terem que estudar o inglês, como a França e o
Japão, por exemplo. A oposição de muitos intelectuais franceses
contra a multinacionalidade do inglês é notória e pode refletir os
sentimentos de muitos alunos, tanto de países centrais como
periféricos:

Eu penso, eu vivo, eu amo e eu ... critico em francês. É


nesta língua que eu faço as reflexões ‘mais sofisticadas,
mais refinadas que eu consigo produzir. Escrever em inglês
significa enfraquecer, mediocrizar meu trabalho. (GOUIN,
1998).

Há muitas diferenças entre estudar uma língua estrangeira


multinacional e uma língua estrangeira nacional, envolvendo
aspectos como obrigatoriedade versus deslumbramento,
colonialismo mental versus consciência crítica, motivação
instrumental versus motivação integrativa, entre outras.
Quando um aluno brasileiro escolhe estudar alemão,
italiano ou mesmo francês, ele normalmente faz isso por gosto
pessoal, envolvendo questões afetivas. O aluno, por exemplo,
chega à faculdade e resolve estudar italiano porque essa era a
língua falada em sua comunidade na infância. Essa busca pelas
suas raízes é vista como algo que deve ser incentivado. Caso ele
venha a se deslumbrar com a língua e a cultura italiana ou alemã,
isso é também visto com bons olhos - pelo menos hoje quando
tanto a Itália como a Alemanha não têm mais pretensões
explicitamente colonialistas, como acontecia durante a II Guerra
Mundial, por exemplo. O fascínio pela arquitetura veneziana ou
mesmo pela filosofia alemã é visto como um deslumbramento
lícito.
94 Vilson J. Leffa

No entanto, se o aluno escolhe inglês, as hipóteses de sua


motivação já são diferentes; ele pode estar escolhendo o inglês,
não por gosto pessoal, mas por uma motivação instrumental, por
uma imposição do mercado de trabalho. Vai estudar inglês porque
precisa; não porque gosta. Há um interesse imediato, menos nobre,
que se sobrepõe a uma motivação integrativa, no sentido de
Gardner e Lambert (1972). A hipótese de que o aluno quer estudar
inglês porque admira a língua e a cultura pode ser vista neste
caso como alienação e colonialismo mental.
A formação do professor de inglês, ou de qualquer língua
que venha a se tornar multinacional, deve incluir também a
preparação do professor para que ele se dê conta de que há uma
diferença entre ensinar uma língua que é ou não multinacional.
Que reflexos essas diferenças teriam na formação do professor?
Oferecem-se aqui algumas sugestões, considerando uma língua
multinacional como é o inglês na atualidade.
Parte-se da ideia, herética para alguns, de que a vinculação
entre língua e cultura não é unívoca e indissolúvel: uma língua
pode representar mais de uma cultura. Uma língua, como a
inglesa, por exemplo, falada nos mais diferentes países, no
hemisfério norte e no hemisfério sul, no ocidente e no oriente,
não fica atrelada a uma única cultura. Não só a cultura, mas
também a própria língua muda. O inglês da África do Sul é
diferente do inglês dos Estados Unidos, que é diferente do inglês
da Austrália, que é diferente do inglês da Nigéria, e assim por
diante. O inglês tornou-se uma língua internacional, mas teve que
pagar um preço por isso: perdeu sua identidade, perdeu sua
nacionalidade. Atualmente existe até a variedade, já reconhecida,
de inglês brasileiro - que qualquer professor pode, e até talvez
deva, ensinar.
Ninguém vai estudar finlandês se não estiver interessado
na Finlândia, como não vai estudar javanês se não estiver
interessado na Indonésia ou na Malásia. Com o inglês, isso não
acontece: pode-se estudar inglês sem estar de modo algum
interessado num determinado país. Pode-se perfeitamente estudar
inglês estando interessado apenas em computadores, ou em
Língua Estrangeira 95

telefonia celular ou mesmo na Finlândia, onde praticamente toda


a população fala inglês. Como colocou Bhatia: “... essa língua
[a inglesa] não representa apenas uma cultura ou apenas uma única
maneira de viver” (BHATIA, 1997, p. 315). (Tradução minha)
Não se quer dizer com isso que o inglês seja uma língua
neutra. Nenhuma língua o é, nem mesmo uma língua artificial
como o Esperanto, criada, segundo Zamenhof, seu autor, para
promover a fraternidade universal. Embora ninguém
provavelmente seja contra a celebração da fraternidade universal,
é preciso reconhecer, no entanto, que no momento em que se
associa essa ideologia a uma língua, essa língua deixa de ser
neutra, por mais desejável que seja a ideologia.
Algo semelhante pode acontecer com o inglês. Vai sempre
transmitir uma ideologia, que não precisa ser necessariamente de
conteúdo negativo; o que parece até ser reconhecido pelos próprios
críticos da hegemonia da língua inglesa (PENNYCOOK, 1994,
1995; COX; ASSIS-PETERSON, 2001). Nas palavras de Cox &
Assis-Peterson:

A expansão do inglês no mundo não é a mera expansão


de uma língua, mas é também a expansão de um conjunto
de discursos que fazem circular idéias de
desenvolvimento, democracia, capitalismo,
neoliberalismo, modernização (...) [P]odemos perceber
que o ensino instrumental é só mais uma armadilha”
(COX; ASSIS-PETERSON, 2001, p. 19)

Embora a maioria dos intelectuais atribua às palavras


capitalismo, neoliberalismo e mesmo modernização uma
conotação negativa, seria um exagero achar que ideias de
desenvolvimento e democracia não devem ser disseminadas.
Achar também que o ensino instrumental do inglês deva ser
evitado porque “é só mais uma armadilha” para a colonização
mental do aluno, seria falta de discernimento, num mundo onde
mais de 70% das publicações científicas estão em língua inglesa.
A solução, me parece, estaria no ensino crítico da língua inglesa
- mas partindo principalmente da ideia de Bathia (1997) de que o
96 Vilson J. Leffa

inglês não representa necessariamente uma única cultura. Esta


mesma ideia está subjacente na proposta de Pennycook (1994)
quando sugere que na prática de sala de aula “o ensino de inglês
deve começar criticamente explorando as culturas dos alunos”
(ênfase minha) (PENNYCOOK, p. 311).
Ao se propor o ensino da língua inglesa a partir da cultura
do aluno, não se está na realidade propondo qualquer novidade,
pelo menos no Brasil. É preciso reconhecer que, já na década de
60, o Instituto de Idiomas Yázigi, sob a orientação pedagógica do
Prof. Francisco Gomes de Matos, ainda que com ênfase mais na
fala do que na leitura, apregoava e praticava o ensino da língua
dentro da cultura brasileira. A Figura 2, por exemplo, reproduz
uma página do 2o. Estágio do Curso de Inglês Conversacional,
onde se pode observar a ênfase na cultura brasileira. O tema do
livro é na verdade uma viagem pelas principais cidades do Brasil,
onde se mostram a uma família americana diferentes aspectos da
cultura local.
A ideia do enfoque na cultura brasileira tem permanecido
através das décadas, conforme se pode perceber na Figura 3,
retirada do livro de Luiz Paulo da Moita Lopes, Read, Read, Read,
publicado em 1998, com ênfase não mais na fala, mas na leitura.
Desta vez, não só os locais, mas os próprios personagens são
também totalmente brasileiros (alunos de quinta e sexta séries).
Língua Estrangeira 97

Figura 2 - Exemplo de ensino de inglês com ênfase


na cultura brasileira na década de 60

Fonte: Course of conversational English, Yázigi, Second Stage, p. 17)

Uma língua multinacional, como o inglês, caracteriza-se


por não ter nacionalidade. Adapta-se como um camaleão não aos
interesses da Inglaterra ou dos Estados Unidos mas aos interesses
das pessoas que a falam e que podem ser do Japão, da Suíça, ou
mesmo do Brasil. Pode ser a língua da internet, da Globalização
ou do capitalismo, mas não é a língua de um determinado país.
Falar uma língua multinacional é como possuir ações de uma
grande empresa: na medida em que o acionista se unir a outros
98 Vilson J. Leffa

acionistas e formar com eles uma maioria, pode até decidir a


política da empresa. Falar uma língua é apropriar-se dela, seja
como falante nativo ou não-nativo.

Figura 3 - Exemplo de ensino de inglês com ênfase


na cultura brasileira na década de 90

Fonte: Moita Lopes, 1998, p. 13

Se um dia a língua portuguesa fosse falada mais por falantes


estrangeiros do que brasileiros, na proporção de dois estrangeiros
para cada falante nacional, e fosse fonológica e lexicamente
invadida por elementos estranhos à própria língua, provavelmente
leríamos editoriais na imprensa e veríamos manifestações dos
imortais da Academia Brasileira de Letras contra a
desnacionalização da língua portuguesa. O português deixaria
de ser a língua do Brasil ou de Portugal para ser a língua dos
outros, multinacional e multicultural. As pessoas deixariam de
estudar o português por afeição a Portugal ou ao Brasil; estudariam
mais por motivação instrumental, às vezes até detestando um ou
outro país de fala portuguesa. É o preço que se paga por ser uma
língua multinacional.
Língua Estrangeira 99

Como ensinar uma língua multinacional

Pode-se estudar uma língua estrangeira para defender os


interesses do país onde se mora, como, por exemplo, estudar inglês
no Brasil para receber turistas de outras nacionalidades ou para
vender um produto brasileiro no exterior. Pode-se também estudar
uma língua estrangeira com interesse no país onde a língua é
falada, como, por exemplo, estudar japonês para melhor conhecer
a cultura do Japão. O foco de interesse, portanto, pode estar
localizado no país onde a língua é estudada ou no país onde é
falada. A determinação do foco de interesse tem implicações
metodológicas para seu ensino, e consequentemente para a
formação de professores.
Quando se estuda uma língua multinacional, tem-se
geralmente uma motivação instrumental, onde não cabe mais a
ideia tradicional do ensino de línguas estrangeiras baseado na
noção de uma língua uma cultura. Quando se trata de uma língua
multinacional, como o inglês na atualidade, sem uma identidade
nacional definida, precisa-se de um novo paradigma de ensino de
línguas, capaz de dar conta dessa natureza multinacional. Há
necessidade de uma mudança de prioridades no ensino da língua
estrangeira. Entre essas novas prioridades, tomando a língua
inglesa como exemplo, podemos destacar as seguintes: (1) ensine
a variedade local da língua multinacional; (2) ensine a língua
multinacional para produção; (3) ensine a língua multinacional
para objetivos específicos.
Ensine a variedade local da língua multinacional. No caso
do ensino do inglês no Brasil, por exemplo, não se preocupar se
se deve ensinar inglês britânico ou inglês americano; ensine inglês
brasileiro como uma variedade legítima da língua inglesa. Assim
como existe o inglês dos Estados Unidos, da Inglaterra, e mesmo
da Nigéria, existe também o inglês de Gerard Depardieu, com
sotaque francês, o inglês de Antônio Banderas, com sotaque
espanhol, e pode existir, com toda legitimidade, o inglês do Brasil.
Não há razão para supor que os brasileiros devam falar inglês
como falantes nativos que, a propósito, são uma minoria entre os
100 Vilson J. Leffa

falantes da língua. Uma das condições para que o inglês seja


uma língua multinacional é aceitar a diversidade da própria língua.
No momento em que o inglês passa a ser falado no Brasil, há de
ter uma variedade brasileira - como o português falado no Rio
Grande do Sul tem uma variedade gaúcha. Se a variação de uma
língua pode ocorrer de um estado para outro, por que não ocorrerá
de um país para outro? Havia uma escola de línguas no Brasil
que usava a seguinte frase para mostrar a qualidade de seu ensino:
“depois do nosso curso o difícil vai ser provar para os outros que
você é brasileiro”. A ilusão de que uma escola possa ensinar
uma língua estrangeira sem sotaque pode ser necessária como
um jogo de marketing, mas sabemos que é uma ilusão - e que
nem é necessária.
Ensine a língua multinacional para produção. A língua
multinacional não deve ser ensinada apenas para recepção,
fazendo com que os alunos sejam, por exemplo, apenas leitores
da língua, incapazes de falar, de escrever ou mesmo de ouvir e
entender a língua. Sabemos que uma língua possui quatro modos
de passar a informação, sendo dois de produção - fala e escrita -
e dois de recepção - escuta e leitura. Para haver interlocução, isto
é, a troca, e não apenas a recepção de ideias, é necessário que
pelo menos dois canais sejam usados, sendo um de recepção e
outro de produção: fala e escuta ou escrita e leitura. A informação
precisa fluir nos dois sentidos. A leitura, sozinha, não permite a
interlocução. A Figura 4 ilustra como a informação na leitura
flui apenas de quem produz para quem recebe o texto, já que fala
e escrita ficam desativadas.

Figura 4 - Fluxo da informação na leitura.

Fonte: Autor
Língua Estrangeira 101

Pode-se argumentar também que uma ênfase exclusiva na


leitura reforça a ideia de que a informação, no mundo, deve fluir
unilateralmente dos países centrais para os periféricos,
disseminando a arte, cultura e ciência em apenas uma direção. O
aluno será no máximo um consumidor de informação, sem
condições de chegar a produzi-la, embora vivendo num mundo
em que tecnicamente, e pela primeira vez na história da
humanidade, é possível a interlocução entre duas pessoas de
qualquer parte do mundo, fazendo a informação fluir nos dois
sentidos. Basta ter algo para dizer. A ênfase na leitura deve ser
vista como uma fase transitória no caminho da produção
linguística, e não como um fim no ensino de uma língua
multinacional.
Ensine a língua multinacional para objetivos específicos.
A língua estrangeira normalmente não compete com a língua
materna: é usada para funções diferentes. Em situações normais,
ninguém precisa aprender uma língua estrangeira para falar com
o cônjuge no café da manhã, pedir o carro emprestado do pai ou
discutir com o irmão. Quando aprendemos uma língua estrangeira
normalmente a usamos para objetivos específicos: comercialmente
para encomendar um produto do exterior, academicamente para
apresentar um trabalho em nossa área de conhecimento ou até
por lazer, trocando e-mails com alguém de um outro país com
quem temos um interesse em comum. A língua estrangeira e a
materna normalmente coexistem, em distribuição complementar,
desempenhando funções diferentes, sem necessariamente
concorrer uma com a outra.
Quando se ensina uma língua multinacional como o inglês,
onde os falantes nativos são uma minoria, ensina-se uma língua
franca, usada como meio de comunicação entre povos diferentes
e culturas diferentes. Pode-se, por opção, associar esse ensino a
uma determinada cultura, mas não necessariamente dos Estados
Unidos ou da Inglaterra; pode ser até a cultura do país onde a
língua é ensinada (e.g. o ensino do inglês explorando aspectos da
cultura brasileira, o que já tem sido uma prática frequente em
muitos livros didáticos produzidos no Brasil).
102 Vilson J. Leffa

Conclusão

A formação de um professor de línguas estrangeiras envolve


aspectos acadêmicos e políticos. Este capítulo enfocou alguns
aspectos políticos dessa formação, considerando implicações da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), o papel
das universidades e das associações de professores e
principalmente as implicações que podem advir do ensino de uma
língua multinacional, como parece ser a língua inglesa na
atualidade.
Partiu-se da ideia de que a formação de um professor de
línguas estrangeiras, competente, crítico e comprometido com a
educação é uma tarefa extremamente complexa, difícil de ser
completada num curso de graduação, por envolver aspectos
linguísticos e políticos da natureza humana. Linguisticamente,
temos a expectativa de que o professor de línguas estrangeiras
seja competente o suficiente para criar uma nova língua na mente
do aluno, tocando o ser humano naquilo que ele possui de mais
essencial, que é a capacidade da fala. Politicamente, temos
também a expectativa de que o professor seja suficientemente
crítico para perceber as relações de poder que se estabelecem
entre falantes de diferentes países quando se comunicam através
de uma língua estrangeira, e que possa definir o lugar do aluno
nesses eventos comunicativos, não apenas como receptor, mas
também produtor de informação.
Fomos criados numa tradição de que o professor, na sala
de aula, não deve se envolver com política. “A realidade política
não é percebida como um assunto adequado para ser discutido
com os alunos. Os professores não se veem como seres políticos
e nem veem o ensino como uma atividade política.” (PONDER,
1971, p. 364).

No entanto, como vimos, somos todos - professores,


alunos e a própria escola - afetados por escolhas políticas.
Transmitimos valores políticos não só pelo que fazemos,
mas também pelo que somos. Os estudantes, por sua vez,
Língua Estrangeira 103

também precisam aprender que o desenvolvimento -


individual, da comunidade e do país - depende da
habilidade em conduzir negociações nas novas relações
de poder que se estabelecem com o uso da língua
estrangeira.
104 Vilson J. Leffa
Língua Estrangeira 105

Capítulo 5
Como produzir materiais
para o ensino de línguas7

A produção de materiais de ensino é uma sequência de


atividades que tem por objetivo criar um instrumento de
aprendizagem. Essa sequência de atividades pode ser descrita de
várias maneiras, envolvendo um número maior ou menor de
etapas. Minimamente, deve envolver pelo menos quatro
momentos: (1) análise, (2) desenvolvimento, (3) implementação
e (4) avaliação. Idealmente essas quatro etapas devem formar
um ciclo recursivo, onde a avaliação leve a uma nova análise,
reiniciando um novo ciclo.
A produção de materiais é também um processo sistemático
e de complexidade variada. Na extremidade mais simples está,
por exemplo, o resumo esquemático distribuído durante uma
palestra para acompanhar o que diz o palestrante. Na extremidade
superior da escala, podem ser listados projetos envolvendo o uso
de vídeo ou de multimídia interativa, o que pela sua complexidade
exige um planejamento mais detalhado. Falta de planejamento,
nesse nível, pode resultar em perda de tempo, dinheiro e esforço
(FARDOULY, 2002).

Análise

A análise parte de um exame das necessidades dos alunos,


incluindo seu nível de adiantamento e o que eles precisam
aprender. As necessidades são geralmente mais bem atendidas
quando levam em consideração as características pessoais dos

7
Uma versão anterior deste capítulo foi publicada em: LEFFA, Vilson J.
Como produzir materiais para o ensino de línguas. In: LEFFA, Vilson J.
(Org.). Produção de materiais de ensino: teoria e prática. Pelotas: EDUCAT,
2008b, p. 15-41.
106 Vilson J. Leffa

alunos, seus anseios e expectativas, preferência por um ou outro


estilo de aprendizagem. Para que a aprendizagem ocorra é também
necessário que o material entregue ao aluno esteja adequado ao
nível de conhecimento do conteúdo a ser desenvolvido. O que o
aluno já sabe deve servir de andaime para que ele alcance o que
ainda não sabe. Ninguém aprende algo que é totalmente conhecido
e nem algo que seja totalmente novo. A capacidade de acionar o
conhecimento prévio do aluno é uma condição necessária para o
sucesso de um determinado material.
O que o aluno precisa aprender, portanto, não é determinado
apenas pela soma de competências exigida por uma determinada
circunstância, seja ela originada pela escola, pela comunidade ou
mesmo pelo mercado de trabalho. Uma determinada circunstância
pode exigir do aluno, por exemplo, que ele seja capaz de escrever
cartas comerciais numa língua estrangeira, envolvendo uma série
de competências como domínio de uma terminologia específica,
o uso correto das normas sintáticas da língua, disposição gráfica
do texto na página, conhecimento do gênero epistolar etc. Isso
não significa, no entanto, que o aluno precisa aprender, num
determinado momento, todas essas competências; o que o aluno
precisa aprender vai depender do que ele já sabe. O material a
ser produzido deve oferecer ao aluno a ajuda que ele precisa no
grau exato de seu adiantamento e de suas necessidades,
preenchendo possíveis lacunas. A análise inicial das necessidades
deve ser capaz não só de estabelecer o total das competências a
serem desenvolvidas, mas também descontar dessas competências
o que o aluno já domina. O saldo dessa operação é o que o aluno
precisa aprender.

Desenvolvimento

A etapa do desenvolvimento parte dos objetivos que são


definidos depois da análise das necessidades. A definição clara
dos objetivos dá uma direção à atividade que está sendo
desenvolvida com o uso do material. Ajuda a quem aprende
porque fica sabendo o que é esperado dele. Ajuda a quem elabora
Língua Estrangeira 107

o material porque permite ver se a aprendizagem está sendo


eficiente, facilitando, assim, a avaliação.

A definição dos objetivos

Os objetivos podem ser gerais ou específicos. Objetivos


gerais são elaborados para períodos maiores de aprendizagem,
como o planejamento de um curso; os objetivos específicos, para
períodos menores, envolvendo, por exemplo, uma aula ou
atividade. Ambos devem começar com um verbo que descreva o
comportamento final desejado para o aluno.
Para os objetivos gerais usam-se geralmente verbos que
denotam comportamentos não diretamente observáveis. Entre
esses verbos, os seguintes têm sido usados com mais frequência:
saber, compreender, interpretar, aplicar, analisar, integrar, julgar,
aceitar, apreciar, criar etc.
Para os objetivos específicos, usam-se verbos de ação,
envolvendo comportamentos que podem ser diretamente
observados. Entre eles, destacam-se: identificar, definir, nomear,
relacionar, destacar, afirmar, distinguir, escrever, recitar,
selecionar, combinar, localizar, usar, responder, detectar etc.
Verbos que denotam processo “ aprender, desenvolver,
memorizar, adquirir etc. “ não podem ser usados para elaborar
objetivos educacionais; eles não descrevem o resultado da
aprendizagem.
O objetivo de aprendizagem tem três componentes
essenciais: (1) as condições de desempenho; (2) o comportamento
que o aluno deve demonstrar (expresso por um verbo); (3) o
critério de execução da tarefa. No modelo clássico de Bloom
(ANDERSON; KRATHWOHL, 2001), o objetivo é sempre
apresentado em termos do que o aluno deve alcançar, sob a
perspectiva do próprio aluno, não do material desenvolvido. A
ênfase está na aprendizagem, naquilo que o aluno deve adquirir e
no comportamento que ele deve demonstrar “ não no ensino, não
no material que vai ser usado para levar o aluno a atingir o objetivo.
108 Vilson J. Leffa

É objetivo de aprendizagem: “ao ler um texto o aluno


deverá ser capaz de identificar três ideias principais”.
Não é um objetivo de aprendizagem: “Ensinar a diferença
entre ideia principal e ideia secundária”.

As condições de desempenho especificam as circunstâncias


sob as quais o comportamento deve ser demonstrado. Podem, e
devem, ser expressas de modo simples, através de uma afirmação.
Alguns exemplos:

Ao assistir o vídeo de um comercial, o aluno deverá...


Ao ouvir a gravação de uma música, o aluno deverá ...

O comportamento que o aluno deve demonstrar deve ser


expresso através de um verbo que denota uma ação diretamente
observável.
Os critérios de execução da tarefa podem ser expressos em
termos de velocidade, grau de correção ou qualidade. O critério
estabelecido no objetivo é visto como o mínimo que o aluno deve
atingir. Se a atividade pede, por exemplo, que o aluno responda
a dez perguntas com 70% de acertos (critério), o objetivo será
atingido com qualquer percentual igual ou acima de 70%.
É possível traçar os objetivos do material a ser produzido,
não só no domínio cognitivo (envolvendo conhecimento), mas
também no domínio afetivo (envolvendo atitudes) e mesmo no
domínio psicomotor (envolvendo habilidades). A definição desses
objetivos leva em consideração não só a análise das necessidades
mas também o tempo disponível, sendo às vezes muito difícil
adequar os objetivos ao tempo de que se dispõe.
Língua Estrangeira 109

A seguir, apresentamos uma lista de exemplos em cada um


desses objetivos nos três domínios, aplicado ao ensino de línguas
(cada objetivo geral é seguido de objetivos específicos).
Taxionomia de objetivos para o ensino de línguas

Domínio cognitivo
1. Conhece o vocabulário relacionado a um determinado tópico
1.1 identifica sinônimos
1.2 relaciona antônimos
1.3 define palavras
1.4 nomeia objetos
1.5 soletra palavras
1.6 deduz o significado de palavras desconhecidas através do
contexto

2 Compreende a estrutura gramatical


2.1 substitui palavras numa frase
2.2 transforma frases (interrogação, negação)
2.3 identifica anomalias gramaticais
2.4 fornece o tempo verbal correto
2.5 identifica sentenças completas
2.6 identifica sinonímia estrutural

3 Aplica regras gramaticais


3.1 constrói frases
3.2 responde oralmente
3.3 responde por escrito
3.4 traduz para o português
3.5 traduz para a língua estrangeira
3.6 apresenta alguém
3.7 cumprimenta
3.8 atende a um pedido

4 Analisa textos escritos


4.1 infere emoção
4.2 identifica estereótipos culturais
110 Vilson J. Leffa

4.3 deduz consequências


4.4 descreve personagens
4.5 esquematiza enredo
4.6 descreve contexto
4.7 identifica tema
4.8 relaciona informação textual com informação extratextual

5 Integra conhecimentos de diferentes áreas


5.1 usa mecanismos adequados para iniciar e encerrar turnos
de conversação
5.2 resume extraindo as ideias principais de um texto
5.3 usa o sumário e índice remissivo de um livro para encontrar
a informação desejada
5.4 escreve um parágrafo bem organizado
5.5 completa exercícios de cloze
5.6 expressa relações entre partes do texto através de
conectores
5.7 organiza adequadamente a informação num texto
dissertativo
5.8 faz o mapa conceitual de um texto
5.9 transforma um mapa conceitual em texto
6 Julga o valor de material escrito
6.1 explica a finalidade de um mecanismo retórico
6.2 justifica o uso da linguagem figurada
6.3 relaciona estilo com objetivo
6.4 identifica níveis de formalidade

Domínio afetivo
1 Aceita diferenças culturais
1.1 olha com atenção para fotos
1.2 faz perguntas sobre ilustrações
1.3 aponta para detalhes das ilustrações
1.4 faz comentários sobre fotos
2 Demonstra interesse no tópico
2.1 oferece-se como voluntário para responder perguntas
2.2 faz atividades além do que é solicitado
Língua Estrangeira 111

2.3 traz material extra para a aula


2.4 pergunta sobre cursos na comunidade
2.5 cumprimenta o professor na LE
3 Aprecia obras literárias
3.1 empresta livros da biblioteca
3.2 lê além do que pede o professor, por prazer
3.3 discute diferentes autores
3.4 elogia algumas obras literárias
4 Integra conhecimento da língua em seu plano de vida
4.1justifica a importância de conhecer a língua em sua futura
profissão
4.2 lê revistas especializadas
4.3 busca na internet tópicos tratados em aula
5 Demonstra consistência na prática da língua estrangeira
5.1 aproveita todas as oportunidades para praticar a LE
5.2 participa de salas de bate-papo na LE na internet
5.3 procura ouvir e ler a LE diariamente

Domínio psicomotor
1 Reconhece vogais na língua estrangeira
1.1 discrimina vogais em pares mínimos
1.2 identifica a vogal numa sentença
2 Sabe a posição dos órgãos da fala para os diferentes fonemas
2.1 pronuncia corretamente sequências de fonemas
inexistentes na língua materna (slow)
2.2 explica a posição da língua para uma determinada vogal
2.3 mostra a posição correta dos lábios
2.4 abre a boca corretamente
3 Imita sentenças que ouve
3.1 repete adequadamente o modelo
3.2 executa exercícios simples de expansão
3.3 executa substituições em exercícios orais
4 Fala naturalmente
4.1 pronuncia sentenças em velocidade normal
4.2 usa a entonação adequada para perguntas
112 Vilson J. Leffa

4.3 acentua adequadamente palavras em uma frase


5 Fala fluentemente
5.1 fala sem hesitação
5.2 produz frases no ritmo adequado da língua
5.3 usa pausas corretamente
6 Ajusta a fala à situação
6.1 fala mais rápido quando tem menos tempo
6.2 articula as palavras com mais cuidado quando diante de
um auditório maior
7 Muda a pronúncia
7.1 imita sotaques regionais
7.2 imita a fala de pessoas famosas

A definição da abordagem

UUma vez definidos os objetivos de aprendizagem, é


necessário selecionar os conteúdos pelos quais os objetivos serão
alcançados. Se o objetivo, por exemplo, for levar o aluno a
compreender um texto de uma determinada área de conhecimento,
o conteúdo selecionado pode ser um texto, uma amostra do léxico
típico da área, uma lista de determinados mecanismos retóricos
ou uma integração de diferentes conteúdos. A opção por um desses
aspectos é determinada pela filosofia de aprendizagem a que se
filia o professor. Tradicionalmente, no ensino de línguas, há seis
grandes abordagens (KRAHNKE, 1987), que ampliamos abaixo,
incluindo aspectos da língua materna.
Abordagem estrutural. O que o aluno precisa aprender são
o léxico e as estruturas gramaticais da língua. Deve saber
expressar-se dentro de um vocabulário adequado e com correção
gramatical. Pode haver uma tolerância maior ou menor para com
os vícios de linguagem, incluindo estrangeirismos, problemas de
regência, mas geralmente não são aceitos. A preocupação é mais
com a forma do que com o conteúdo.
Abordagem nocional/funcional. A ênfase está no objetivo
para o qual se usa a língua, na realidade, mais na função do que
na noção. No caso da língua estrangeira, parte de uma taxionomia
Língua Estrangeira 113

das funções: como discordar, apresentar alguém, pedir desculpas


etc. Também pode ser aplicado ao ensino da língua materna:
como escrever uma carta de pedido de emprego, como rejeitar
um convite educadamente, como solicitar ao auditório que se
levante para cantar o hino nacional etc.
Abordagem situacional. O conteúdo a ser ensinado parte
de uma situação em que a língua é usada: visita ao médico, check-
in no aeroporto, abertura de uma reunião de negócios etc. O
pressuposto é de que nessas situações há uma sequência típica de
funções que ocorrem sempre da mesma maneira usando sempre
o mesmo tipo de linguagem “ e que pode, portanto, ser pré-
determinado.
Abordagem baseada em competências. Parte do princípio
de que a linguagem usada numa determinada situação é
relativamente independente da situação, dependendo mais de
competências e processos linguísticos (domínio dos aspectos
fonológicos, lexicais, sintáticos, discursivos, capacidade em
detectar a ideia principal, em fazer uma apresentação oral etc.)
que perpassam diferentes situações.
Abordagem baseada em tarefa. Caracteriza-se por
subordinar a aprendizagem da língua à execução de uma
determinada tarefa. É a execução da tarefa que vai determinar
que conteúdo linguístico precisa ser aprendido. Diferencia-se da
abordagem situacional, por não predeterminar esse conteúdo, que
pode surgir de modo imprevisível durante o desempenho da tarefa.
Abordagem baseada em conteúdo. Põe a ênfase no
conteúdo, usando a língua que o aluno precisa aprender. O
pressuposto é de que enquanto o aluno presta atenção no conteúdo,
acaba adquirindo a língua incidentalmente. O material, portanto
não é desenvolvido a partir de tópicos linguísticos, mas de tópicos
do próprio conteúdo.
Ainda que seja possível desenvolver material de ensino
rigorosamente dentro de uma única abordagem, a prática sugere
a integração de duas ou mais. É também aconselhável levar em
consideração os objetivos de aprendizagem, e, a partir daí,
escolher a abordagem mais adequada.
114 Vilson J. Leffa

A definição do conteúdo

O conteúdo na produção de um determinado material pode


ser definido de várias maneiras, dependendo da concepção que
se tem de língua. Se entendo, por exemplo, que língua é um
conjunto de palavras ligadas por regras gramaticais, faço um
recorte do léxico e da sintaxe; se vejo a língua como um conjunto
de eventos comunicativos, incluo outros aspectos como regras
de formalidade, os lugares sociais de onde falam os interlocutores,
os efeitos de sentido que suas falas podem provocar etc.; se
entendo a língua como um meio para desempenho de
determinadas atividades, posso selecionar uma lista de tarefas
que devem ser executadas pelos alunos: como escrever uma carta
comercial, elaborar um currículo, fazer uma homepage etc.
Quando se fala em produção de materiais, tem-se privilegiado
o ensino baseado na tarefa. Nesse caso, há uma preocupação maior
com o mundo real e o uso de dados linguísticos autênticos. A ideia é
de que o aluno não deve passar por um curso sem conhecer a língua
como ela é realmente usada fora da sala de aula. Muitas vezes os
alunos têm dificuldade de transferir para o mundo real aquilo que
aprendem na escola. Não vendo aplicação prática para o
conhecimento adquirido, acham-se muitas vezes donos de um
conhecimento inútil. O uso de material autêntico pode ser uma
maneira de facilitar essa transferência de aprendizagem.
A transferência, no entanto, parece estar apoiada em um
paradoxo de difícil solução (1) para sobreviver no mundo real, o
aluno precisa ser preparado pela escola; (2) para ser preparado,
de modo que a aprendizagem faça sentido, o aluno precisa
conhecer o mundo real. O desafio aqui “ usando uma metáfora
frequentemente citada na educação (WEININGER, 2001) “ é
como levar o aluno do ambiente protegido do aquário para os
perigos do mar aberto. A solução proposta por alguns, usando
ainda a mesma metáfora, é jogar o aluno no mar, puxando-o de
vez em quando para que respire (WILSON; JONASSEN; COLE,
1993). A ideia é de que o tempo entre o investimento inicial do
aluno na aprendizagem e o retorno pelo esforço despendido seja
o mais breve possível, o que pode ser facilitado na medida em
Língua Estrangeira 115

que o aluno seja solicitado desde o início a realizar tarefas


significativas e próximas do mundo real (CARROLL, 1990).
Na definição do conteúdo, a preocupação está em definir
da maneira mais clara possível o que exatamente o aluno precisa
aprender para atingir os objetivos definidos anteriormente.

A definição das atividades

A produção de materiais de ensino é uma área


essencialmente prática. A teoria é importante na medida em que
fornece o suporte teórico necessário para justificar cada atividade
proposta, mas subjaz à atividade, podendo ou não ser explicitada.
Quem prepara o material precisa ter uma noção bem clara da
fundamentação sobre a qual se baseia, mas vai concentrar todo
seu esforço em mostrar a prática, não a teoria. A teoria trabalha
nos bastidores; a prática é o que aparece no palco. Um bom
trabalho de bastidores dá segurança ao que é apresentado,
permitindo inovações e até ousadias.
As atividades propostas para o ensino de línguas têm sido
tradicionalmente classificadas em quatro grandes áreas: (1) fala,
(2) escuta, (3) leitura e (4) escrita. Os materiais podem ser
preparados para cada uma dessas habilidades, em separado, ou
de modo integrado, incluindo duas ou mais habilidades. A Figura
1 mostra o recorte de uma atividade que pode ser usada para a
prática da leitura de tabelas, produção oral e escuta.

A definição dos recursos

A definição dos recursos envolve basicamente o suporte


sobre o qual a língua vai ser apresentada ao aluno.
Tradicionalmente o suporte mais comum tem sido o papel, que
por sua vez pode ser subdividido em muitos outros (livro, jornal,
revista, revista em quadrinhos, revista acadêmica etc.). Com o
desenvolvimento e barateamento das tecnologias de comunicação,
outros suportes tornaram-se populares, incluindo fitas de áudio,
fitas de vídeo e, mais recentemente, o computador e a internet.
116 Vilson J. Leffa

A introdução do computador parece demandar uma nova


alfabetização, ou letramento, com a exigência de novas

Figura 1 - Exemplo de material para ensino de Português como


língua estrangeira.

Fonte: Autor

competências, incluindo a capacidade de trabalhar com arquivos


eletrônicos (saber como salvar um arquivo, copiá-lo de um
computador para outro, compactá-lo e descompactá-lo, enviá-lo
pela internet, navegar na rede, localizar arquivos em qualquer
ponto do planeta, instalar e desinstalar programas, usar antivírus
etc.). O computador, na realidade, representa uma convergência
de diferentes tecnologias, incluindo textos, imagens, sons e
movimentos.
Para quem possui as competências pressupostas pela nova
literacia, os recursos que podem ser usados para o
desenvolvimento de materiais de aprendizagem nunca foram
tantos, tão fáceis de usar e tão disponíveis. Muitos recursos que
há alguns anos só estavam disponibilizados para grandes
empresas, com altos custos de produção, agora podem ser
acessados praticamente por qualquer indivíduo, a um custo
Língua Estrangeira 117

irrisório ou inexistente. A Figura 2, por exemplo, mostra o


resultado de uma pesquisa usando o Google, onde o objeto
procurado era a imagem de mãe com filho (“woman” e “child”
em inglês). Em menos de um segundo o sistema conseguiu
localizar milhares de arquivos contendo imagens de mulher com
criança.
Depois de acessado, um arquivo eletrônico, por sua natureza
líquida, altamente mutável, pode ser modificado e reformulado
de inúmeras maneiras (MALEY,1998). Uma imagem pode ser
não só ampliada, reduzida, alongada, distorcida etc. mas também
inserida num determinado texto que o professor tenha selecionado
para um grupo de alunos. Seja qual for o texto, é sempre possível
ilustrá-lo com uma foto ou desenho rigorosamente adequado a
um determinado conteúdo ou objetivo de uma aula.

Figura 2 - Imagens selecionadas do Google com as palavras-chave


“woman” e “child”, de um universo de milhares de imagens.

Fonte: Autor
118 Vilson J. Leffa

Ordenamento das atividades

Os dois critérios básicos para o ordenamento das atividades


são facilidade e necessidade. Pelo primeiro critério, inicia-se
pelo que é mais fácil e simples para o aluno, progredindo
gradativamente para o que é mais difícil e complexo. O retorno
pelo investimento feito na aprendizagem pode às vezes demorar
um pouco, até produzir algo útil. Pelo critério da necessidade,
começa-se pelo que é mais necessário e útil para o aluno, com
retorno mais imediato. A situação ideal é aquela em que se possa
unir os dois critérios; quando isso não for possível, a tendência
tem sido sacrificar pelo menos parte da facilidade em benefício
da utilidade antecipada.
Uma maneira mais ampla e geral de ordenar as atividades
baseia-se nos nove eventos instrucionais de Gagné, assim
descritos:
Garanta atenção. Inicie despertando a curiosidade do aluno
para o tópico da atividade. Conte uma história, mostre uma
ilustração, faça uma analogia, conte uma anedota, cite um
pensamento interessante.
Informe os objetivos. Deixe claro para os alunos o que eles
vão aprender: “No fim dessa atividade vocês vão saber como...”.
Crie uma expectativa através dos objetivos.
Acione o conhecimento prévio. Faça os alunos pensar sobre
o que eles já sabem. Relacione a atividade nova a situações e
conhecimento que lhe são familiares.
Apresente o conteúdo. Mostre os pontos mais importantes,
use técnicas variadas para manter a atenção e aumentar a
compreensão. Use ilustrações, fotos, objetos.
Facilite a aprendizagem. Ajude os alunos a seguir no
processo de aprendizagem, orientando, esclarecendo, dando
exemplos.
Solicite desempenho. Mantenha participação ativa dos
alunos. Peça para que executem tarefas relacionadas ao que estão
aprendendo. Envolva-os perguntando, discutindo, demonstrando.
Forneça feedback. Deixe claro para seus alunos de como
eles estão acompanhando a atividade, ajudando com mais
Língua Estrangeira 119

esclarecimento quando necessário. Tente produzir o material de


aprendizagem de modo a poder inserir feedback.
Avalie o desempenho. Verifique a aprendizagem dos alunos
pela observação, perguntas. Na produção de materiais abra espaço
para avaliação contínua.
Ajude na retenção e transferência. Faça com que os alunos
lembrem o que estão aprendendo e ajude-os a aplicar seus novos
conhecimentos.

A questão da motivação

Manter a motivação durante e após a atividade de ensino


tem sido uma das grandes metas da educação e é uma das
preocupações básicas na produção de materiais. A atividade deve
ser prazerosa para o aluno, despertar sua curiosidade e mantê-lo
interessado no assunto, mesmo depois que tenha terminado. O
modelo mais conhecido para incorporar técnicas de motivação
em atividades de ensino é o ARCS (Sigla para Atenção,
Relevância, Confiança e Satisfação), desenvolvido por John Keller
na Universidade do Estado da Flórida.
A teoria básica sobre a qual se apoia o modelo é a chamada
expectativa de valor, segundo a qual a motivação é medida pelo
esforço demonstrado na execução de uma tarefa. Para que haja
esforço, duas condições são necessárias: (1) a pessoa deve
acreditar que a tarefa seja importante; (2) a pessoa deve acreditar
que é capaz de executar a tarefa (VROOM, 1964; PORTER;
LAWLER, 1968; TOMLINSON, 1998).
O modelo ARCS identifica quatro estratégicas básicas para
sustentar a motivação:
Estratégias de atenção [A] para despertar e manter a
curiosidade e o interesse. Pense em maneiras pela qual se pode
introduzir uma novidade, surpresa ou incerteza no início de uma
atividade. Como fazer perguntas e apresentar problemas que
possam estimular a curiosidade? Como introduzir variação na
atividade que está sendo proposta?
120 Vilson J. Leffa

Estratégias de relevância [R] para mostrar a utilidade de


uma tarefa, quais são seus objetivos e quais são os métodos que
podem ser usados para chegar aos objetivos, mostrando também
a importância que a tarefa pode ter na vida dos alunos. Permitir
que os alunos exponham seus interesses e necessidades.
Relacionar a tarefa à experiência e valores apreciados pelos
alunos. Expor a tarefa de maneira clara e compreensível para os
alunos.
Estratégias de confiança [C] que ajudem os alunos a
desenvolver uma expectativa positiva de sucesso. Informar aos
alunos quais são os critérios de avaliação, o que se espera deles
em termos de trabalhos a serem executados. Oferecer
oportunidades de sucesso através de projeto menores que
preparem os alunos para os projetos maiores. Reconhecer o
esforço pessoal do aluno e seus acertos em cada atividade
proposta.
Estratégias de satisfação [S] que mostre reconhecimento
pelo esforço intrínseco e extrínseco do aluno. Exemplos de
esforço intrínseco envolvem a satisfação pela própria
aprendizagem, possivelmente mostrando o exemplo de pessoas
conhecidas que possuem a habilidade em questão. Exemplos
extrínsecos incluem feedback, diplomas, homenagens etc.

Implementação

A etapa da implementação pode receber um cuidado maior


ou menor dependendo, via de regra, da maior ou menor presença
de quem preparou o material. Há três situações básicas: (1) o
material vai ser usado pelo próprio professor, (2) o material vai
ser usado por outro professor, (3) o material vai ser usado
diretamente pelo aluno sem presença de um professor. Cada um
desses casos requer uma estratégia diferente de implementação.
Quando o próprio professor prepara o material para os seus
alunos a implementação dá-se de modo intuitivo, complementada
pelo professor, que oralmente explica aos alunos o que dever ser
feito. Normalmente o material pressupõe essa intervenção oral,
Língua Estrangeira 121

funcionando em “distribuição complementar” com o professor.


Erros maiores e mal-entendidos que atrapalharam na
implementação podem ser anotados e reformulados para uma
próxima apresentação. A Figura 3 mostra um exemplo deste tipo
de atividade.
Quando o material vai ser usado por um outro professor há
necessidade de instruções de como o material deve ser apresentado
e trabalhado pelos alunos. Usando ainda como exemplo a Figura
3, o autor teria que explicar o objetivo da atividade, o tipo de
conhecimento que está sendo construído, como a atividade deve
ser conduzida junto com os alunos, as possíveis respostas para as
questões que estão sendo colocadas, como certas respostas dadas
pelos alunos deveriam ser trabalhadas etc.

Figura 3 - Exemplo de material sem instruções de uso.

1 - Trabalhando em grupo, complete as lacunas do pseudopoema


abaixo, usando, sem repetir uma consoante de cada vez.

PSEUDOPOEMA DIGITAL

É uma arma mas não tem _ala


Às vezes não salva e me _ala
Outras vezes fica mudo e _ala
Com um disco se acende e _ala
Se a festa for de _ala
Ele se destaca na _ala
Quando se quebra não leva _ala.
Se fica velho, joga-se na _ala.
É antirreflexo e não usa _ala
O computador que levo na _ala

2 - Que fontes de conhecimento o leitor deve acionar para apreciar


o significado de cada uma das frases abaixo?
- Mais vale um pássaro voando do que dois na mão.
122 Vilson J. Leffa

- Dizem que Pedro morreu como um passarinho; deve ter


sido de estilingue.
- Quando bebia ficava falando com todos na rua; dizia que
preferia ser um bêbado conhecido ao um alcoólatra anônimo.
- Todo mundo acreditou na história do sapo que virou
príncipe, menos a mãe da princesa.
- Era do tempo em que a filha apresentava o namorado à
mãe; hoje é a mãe que apresenta o namorado à filha.
- Anúncio de linha no ZH classificado. É o menor barato.

Fonte: Autor

A situação mais difícil e que requer maior cuidado é aquela


em que o material vai ser usado sem a presença do professor. Há
dois grandes desafios aqui: O primeiro é estabelecer contato com
o aluno, idealmente oferecendo nem menos nem mais do que ele
precisa, descendo ao seu nível de conhecimento mas sem distorcer
a complexidade do saber que precisa ser apreendido. O segundo
desafio, é tentar prever o que pode acontecer. Como o professor
não estará presente durante a execução da tarefa, é preciso ter
uma ideia das possíveis dúvidas do aluno. Prever, no entanto, é
partir do pré-construído, sem espaço para a criatividade e o
inesperado. Tudo o que o aluno fizer além do que estiver previsto
no material ficará sem retorno, de modo que quanto mais criativo
for o aluno mais abandonado ele ficará.
Alguns exemplos tradicionais de material produzido para
ensino sem a presença do professor são os livros com chaves de
respostas, cursos de línguas com fitas de áudio, às vezes incluindo
perguntas com tempo de espera para a resposta do aluno, seguida
da gravação da resposta correta para que o aluno possa escutar e
comparar seu desempenho.
Com a informatização e a possibilidade da tomada de
decisão pela máquina, a aprendizagem sem a presença do professor
pode ser melhorada em termos de gerenciamento: uma ajuda
Língua Estrangeira 123

automática pode ser apresentada para o aluno em caso de erro, a


avaliação do desempenho pode ser dada logo após a resposta
solicitada, uma estratégia de leitura pode ser sugerida no momento
em que o aluno demonstrar precisar dela etc.
A aprendizagem independente, sem a ajuda do professor,
parece ter duas grandes limitações:
(1) Necessidade de alta motivação. A aprendizagem só
ocorre se o aluno demonstrar o empenho suficiente para vencer
todos os obstáculos que podem ocorrer durante a execução das
tarefas. Será preciso muitas vezes refazer o trabalho, buscar ajuda
em outros materiais, usando diferentes estratégias para resolver
os inúmeros problemas que surgem. Sem essa motivação
constante, que perdure além do entusiasmo inicial, não há
possibilidade de manter o envolvimento necessário com o
conteúdo para que a aprendizagem ocorra.
(2) Falta de uma avaliação externa. O aluno é o juiz de seu
próprio desempenho. Como seu desempenho não é assistido,
haverá erros e desvios em sua aprendizagem que passarão
desapercebidos e poderão ficar automatizados. Mesmo em
ambiente informatizado, não há possibilidade de captar todos os
desvios que podem ser produzidos pelo aluno e que afetarão
negativamente sua aprendizagem.
É possível que com a distribuição do conhecimento em
rede - não apenas informação que se observa do lado de fora, mas
conhecimento que se compartilha - o aluno tenha oportunidade
de testar seus conhecimentos, comparando-o com o conhecimento
dos outros. Algumas hipóteses já construídas serão rejeitadas,
outras serão confirmadas e uma validação mais precisa da
aprendizagem será possível. A aprendizagem autônoma não será
a utopia prometida em muitos livros populares que aparecem nos
jornaleiros, com títulos chamativos do tipo “Aprenda a falar em
público sozinho”, “Francês sem mestre”, “Inglês em 30 dias”
etc., mas poderá ser mais viável, por uma razão muito simples.
Num mundo em que se distribui a inteligência e a cognição, a
distribuição do conhecimento parece uma hipótese razoável. A
própria autonomia - como a cognição, a inteligência e o
124 Vilson J. Leffa

conhecimento - deixa também de ser individualizada para ser


coletiva e distribuída.

Avaliação

A avaliação de materiais pode ser feita de modo informal,


geralmente quando envolve o trabalho de um único professor que
prepara uma folha de exercícios, usa uma vez, vê como funciona,
reformula para usar uma segunda vez, e assim indefinidamente
com diferentes grupos de alunos, sem chegar a uma versão
definitiva. Em outras situações, o material é preparado por um
grupo de professores para uso próprio e/ou de outros colegas da
mesma instituição. Nesses casos, a avaliação assume um caráter
mais formal e pode ser feita por consultoria de um especialista
ou por questionários e entrevistas com os alunos. Em escala maior,
como no caso da publicação de um livro, os materiais são
normalmente pilotados. (DONOVAN, 1998)
A avaliação formal pode também ser feita através de
protocolos, onde os alunos, ao fazerem as tarefas solicitadas pelo
material, procuram expressar o que estão pensando, demonstrando
assim os tipos de raciocínio em que estão envolvidos, as estratégias
de aprendizagem que estão usando e as atitudes que estão
desenvolvendo.
Os questionários, entrevistas e mesmo a análise de
protocolos têm sido criticados por não serem muito confiáveis.
Por questões de respeito e ameaça à face do professor, o aluno
poderá dizer não exatamente o que pensa mas o que acha que o
professor gostaria de ouvir. Por isso, muitos pesquisadores
preferem a observação direta do trabalho do aluno com o material;
mais importante do que o que os alunos respondem ou dizem é o
que eles realmente fazem. Isso só se obtém pela observação.
A pilotagem mostra basicamente o que pode permanecer
como está e o que precisa ser melhorado. Isso só é possível quando
o material é testado com os alunos para o qual se destina, quando
então se pode constatar se houve ou não o ponto de contato entre
o nível de conhecimento pressuposto pelo material e o nível real
do aluno.
Língua Estrangeira 125

Conclusão

Em termos de teoria, principalmente no que concerne os


papéis do professor e do aluno, a produção de materiais diverge
tanto da abordagem tradicional, que põe o professor no centro do
processo de aprendizagem, como da abordagem mais recente, que
salienta o papel do aluno. Produção de materiais não está centrada
nem no professor nem no aluno; está centrada na tarefa.
É importante não confundir produto com tarefa. O produto
é o artefato produzido (a folha de exercício, a fita de áudio, o
programa de computador). A tarefa é a atividade que resulta do
encontro desse artefato com o aluno. Em outras palavras, o
artefato é o instrumento pelo qual a tarefa se realiza. Ensino
centrado na tarefa, realça obviamente a tarefa e não o artefato.
126 Vilson J. Leffa
Língua Estrangeira 127

Capítulo 6
O ensino da LE na era da cibercultura

Introdução

O objetivo deste capítulo é fazer algumas reflexões sobre


o ensino de línguas estrangeiras na atualidade. Parte-se do
princípio de que vivemos um momento de transição, onde
podemos saber de onde viemos, mas temos dificuldade de saber
onde estamos, e achamos que é impossível saber para onde vamos.
Essa dificuldade em achar uma direção pode ser explicada pelo
fato de que atualmente estamos mais habituados a navegar do
que a caminhar. Há uma diferença muito grande entre uma
atividade e outra. Caminhar pressupõe uma estrada em terra firme,
construída anteriormente por uma outra pessoa, que deixou os
sulcos abertos no chão para direcionar os viajantes. Navegar é
diferente. Quando se navega não há caminhos; é impossível abrir
sulcos na água. Quando se navega tem-se pela frente apenas a
extensão do mar aberto. Quando se caminha, olha-se para baixo,
procurando a estrada. Quando se navega olha-se para cima,
procurando orientação no sol e nas estrelas.
Para dissertar sobre o ensino de línguas estrangeiras na
atualidade, sigo aqui o seguinte roteiro argumentativo. Em
primeiro lugar, tento retomar alguns conceitos básicos, incluindo
a ideia de globalização, como ponto de partida, e a questão
fundamental da evolução do átomo ao bit.
Associo depois o átomo ao que normalmente entendemos
como sendo a realidade concreta e o bit à realidade virtual,
argumentando que a evolução da humanidade é na sua essência
um processo de virtualização. A ideia aqui é mostrar como a
virtualização cria uma nova realidade, expandindo as relações
entre as pessoas para além das fronteiras geográficas, criando a
necessidade de expandir o nosso conhecimento de outras línguas.
128 Vilson J. Leffa

A partir daí, tento argumentar que quando aumentamos


nosso círculo de relações para incluir pessoas de outros países e
até de outros continentes, não apenas aprendemos a conviver com
a diversidade linguística e cultural, mas iniciamos um lento e
gradual processo de unificação, incorporando alguns traços e
descartando outros.
Finalmente, tento mostrar como todas essas transformações
têm afetado o ensino de línguas estrangeiras, onde o maior desafio
não é preparar o aluno para o mundo em que nós vivemos hoje,
mas para o mundo em que eles viverão amanhã.

A globalização

A globalização pode ser definida como um processo que


se caracteriza pela livre movimentação de capital, bens, serviços
e trabalho por diferentes países do mundo. Na sua essência,
envolve aspectos ideológicos, econômicos e tecnológicos e sua
complexidade está na interação desses três elementos básicos.
Ideologicamente, a globalização pode ser vista de várias
perspectivas e, neste caso, nada parece ser menos globalizado do
que a própria percepção de globalização. Para alguns,
globalização significa simplesmente uma combinação saudável
entre democracia e livre mercado, com desregulamentação da
economia e retração do papel do estado. A ideia é de que o livre
mercado estimula a criatividade e gera a prosperidade. Nesta
visão otimista do mundo globalizado, as estatísticas são usadas
para mostrar que os pobres estão ficando menos pobres e vivendo
mais do que viviam antes.
Para outros, no entanto, globalização significa a dominação
dos países centrais, principalmente dos Estados Unidos e dos
países da União Europeia. Para essas pessoas, o que está
ocorrendo não é um processo de globalização, mas de
americanização e McDonaldização do mundo.

Nem nós, nem a humanidade em geral, nem mesmo Deus


pode aceitar a globalização que nos está sendo imposta
pelo onipotente mercado global que exclui a grande
Língua Estrangeira 129

maioria da humanidade e destrói o ambiente (Pedro


Casaldáliga).

Do ponto de vista econômico, globalização significa a


desterritorialização das empresas, que deixam de ser argentinas
ou brasileiras, ou mesmo alemãs ou americanas, para serem todas
multinacionais. Exemplos dos últimos anos são as fusões da
Mercedes alemã com a Chrysler americana, da Volvo sueca com
a Ford, que era originalmente dos Estados Unidos, ou dos bancos
brasileiros com os espanhóis.
Mas é na tecnologia que parece estar o fator mais importante
da globalização, principalmente pela fusão do computador com o
satélite, facilitando as telecomunicações e transformando o mundo
numa comunidade digital. A tecnologia não só tornou possível o
contato entre empresas de diferentes países, mas também
possibilitou a interação de milhões de indivíduos com milhões
de outros indivíduos. Não apenas tornou a comunicação viável,
mas, o que é mais importante, tornou-a economicamente viável.
Isso foi possível porque a tecnologia realizou a proeza de ter
chegado ao bit, ao dígito binário, que é a unidade mínima de
informação.

Átomos e bits

Retomando e expandindo o que já dissemos no Capítulo 2,


podemos dizer que a ciência é a busca do indivisível, da miragem
da partícula mínima que paira além da molécula, do átomo e das
cadeias de DNA. A única área em que se conseguiu chegar a essa
partícula mínima foi na informática, talvez justamente por não se
ter chegado a ela, mas por se ter partido dela, já que a ciência da
computação foi construída de modo ascendente a partir do bit.
O bit, como unidade mínima de informação, permite apenas
dois estados opostos: ligado ou desligado. Esses dois estados
podem ser representados de várias maneiras no mundo que nos
cerca, desde que seja possível construir uma oposição binária,
incluindo, por exemplo, estados como perfurado ou não-perfurado,
aberto ou fechado, aceso ou apagado, luz ou treva, ruído ou
130 Vilson J. Leffa

silêncio. Combinando sequências de oposições, é possível não


só construir uma representação complexa do mundo que nos cerca,
desde um quadro de Renoir a uma sinfonia de Beethoven, mas, o
que é mais importante, transmitir essas representações de um lugar
para outro por qualquer meio disponível de transmissão,
teoricamente desde sinais de fumaça ou rufar de tambores, até
ondas de rádio, cabos telefônicos ou fibras óticas. Por se tratar
de transmissão de dígitos binários, unidades mínimas e
indivisíveis, não há possibilidade de distorção; a imagem de
chegada é sempre rigorosamente igual à imagem de partida, a
cópia é sempre igual ao original, ainda que intermediada por
inúmeras outras cópias.
Uma maneira de melhor entender o bit como unidade
indivisível é compará-lo a uma unidade divisível, como o átomo,
por exemplo. O átomo, embora ironicamente tenha o significado
de indivisível, é na realidade composto de outras unidades, que
por sua vez são ainda compostas de unidades menores. As
diferenças entre os objetos feitos de átomos e os feitos de bits são
cruciais para se entender o papel da tecnologia na globalização.
Partindo da ideia inicial de Negroponte (1995), podemos destacar,
entre outras, as seguintes diferenças (Quadro 1):

Quadro 1 - Diferenças entre átomos e bits

Átomos Bits

Tangíveis Intangíveis
Difíceis de manipular Fáceis de manipular
Não teletransportáveis Teletransportáveis
Alto custo Baixo custo
Não compactáveis Compactáveis
Com fronteiras Sem fronteiras
Com limitações de tempo Sem limitações de tempo
Com limitações geográficas Sem limitações geográficas
Comunidades tradicionais Comunidades customizadas

Fonte: Autor
Língua Estrangeira 131

Os objetos feitos de átomos são tangíveis. Podem ser


tocados, olhados, escutados, cheirados e muitas vezes até
degustados. Têm uma presença física marcante, com
características de peso, densidade, cor etc., fazendo parte do
mundo real que nos cerca. Os bits, por outro lado, fazem parte de
um mundo digital, virtual e desmaterializado, que podem simular
o mundo real, mas que na verdade não têm suas características.
Os objetos constituídos de átomos, justamente por suas
características físicas, são mais difíceis de serem manipulados.
Acomodar um piano numa sala, dar um nó em uma gravata ou
estacionar um carro numa ladeira movimentada podem exigir
níveis elevados de habilidade motora ou de esforço físico que
nem todas as pessoas possuem.
Os átomos são mais difíceis de serem transportados. Mover
um piano de cauda de um canto a outro da sala já pode ser uma
tarefa extenuante, mas é ainda mais difícil levá-lo de um prédio a
outro, descendo e subindo escadas. Se for necessário transportá-
lo para um outro país, haverá problemas de alfândega e burocracia,
gastos de transporte e tempo, que pode, em alguns casos, chegar
a várias semanas. O teletransporte de objetos constituídos de
átomos, ou mesmo sua compactação, que permitisse, por exemplo,
reduzir em dez ou cem vezes o peso e o tamanho de um objeto,
ainda pertence, como se sabe, ao mundo da ficção científica.
Quando, no entanto, o concerto produzido pelo pianista
for gravado e transformado num arquivo digital, este concerto
fica disponível em unidades mínimas de informação, os bits, e
pode, portanto, ser facilmente manipulável. Pode ser
teletransportado de um lugar para outro sem restrições de
alfândega (embora não seja impossível, é difícil reter um arquivo
digital na fronteira entre um país e outro). O arquivo digital não
tem restrições de tempo ou de espaço geográfico (o arquivo é
recebido praticamente no mesmo momento em que é enviado,
independente da distância geográfica entre um ponto e outro).
Além de serem teletransportáveis, os arquivos digitais podem ser
compactados e ter seu tamanho reduzido, em alguns casos, em
mais de cem vezes “ o que torna o custo de armazenagem e
132 Vilson J. Leffa

transporte ainda mais acessíveis: a prensagem de um CD-ROM,


por exemplo, representa um custo inferior à impressão de um
livro de 100 páginas, com a capacidade, no entanto, de armazenar
o equivalente a 400 livros do mesmo tamanho.

A questão da virtualidade

Uma das premissas básicas da educação, incluindo aí o


ensino de línguas, é de que a aprendizagem ocorre apenas quando
o aluno se envolve em algum tipo de interação. Essa interação
pode ser descrita como uma ação recíproca não apenas entre duas
pessoas, mas também entre pessoas e objetos. Até o advento dos
computadores no ensino, e na sociedade em geral, a interação
com objetos era geralmente vista como algo natural, sem qualquer
conotação negativa; uma menina brincando com uma boneca, um
menino andando num cavalo de pau, um aluno lendo um livro
eram atividades percebidas como desejáveis e necessárias para o
desenvolvimento saudável da criança. A interação com o
computador, no entanto, é muitas vezes vista como algo
basicamente indesejável e prejudicial. Dois exemplos:

O computador e ciberespaço podem embotar a capacidade


da criança em separar o humano do inanimado, contribuir
para o escapismo e desligamento emocional (...)
(TURKLE, citado por REPORT, 2003)

Minha preocupação é de que estamos expondo os alunos


a muitas versões controladas e fabricadas da realidade e
não à natureza como ela realmente é. (HAYBRON, 1996,
p. 8E)

Quando se critica o uso do computador, dizendo, por


exemplo, que ele “expõe a versões controladas e fabricadas da
realidade”, acho que todos nós concordamos. Trata-se de uma
realidade virtual. E daí? O livro faz exatamente mesma coisa;
uma biblioteca é um centro de realidade virtual. A virtualidade
não se manifesta apenas no computador mas também no livro,
Língua Estrangeira 133

num quadro pintado pelo artista, num relato feito pelo viajante
quando volta para casa, na cultura, na própria humanidade. O ser
humano é essencialmente virtual.
Há três aspectos que precisam ser considerados aqui, ainda
que rapidamente: (1) a virtualização da humanidade, (2) a
oposição entre realidade virtual e virtualidade real e (3) a hipótese
da simulação.
Sobre a virtualização da humanidade podemos argumentar
que o homem é um animal virtual e a evolução da humanidade se
caracteriza por um crescente e contínuo processo de virtualização,
desde que o homem criou o símbolo e desde que rabiscou as
primeiras imagens nas cavernas. Pierre Lévy (2003) divide a
virtualização em três tipos: (1) virtualização da língua, através
da qual o homem passa a existir não só no presente mas também
no passado e no futuro, virtualizando em tempo real o que está
distante; (2) virtualização da técnica, vista como uma espécie de
materialização do corpo, das ações e de ambientes físicos; e
finalmente (3) a virtualização do contrato, que enfoca a
complexidade das relações sociais e que Lévy define como a
virtualização da violência: “Os rituais, as religiões, as morais, as
leis, as regras da economia e da política são dispositivos sociais
para virtualizar as relações baseadas na força, nas pulsões, nos
instintos e nos desejos imediatos (LÉVY, 2003)”. Uma quarta
virtualização seria aquela realizada pela arte, que Lévy chama de
“virtualização da virtualização”, a mais essencialmente humana,
já que o homem é o único animal que produz arte. Ainda que
para muitos, a virtualização seja vista como a mais desumana e
terrível das alteridades, para Lévy a humanidade é constituída
pela virtualização.
Um outro aspecto interessante é que ao lado da “realidade
virtual” podemos ter também uma “virtualidade real”. Para alguns
filósofos os dois termos da expressão “realidade virtual” excluem-
se mutuamente porque o virtual é no fundo real; falar de uma
“realidade virtual” seria como falar de uma “realidade real”, o
que seria um paradoxo. Conforme Deleuze, “o virtual possui
uma realidade plena, enquanto virtual” (DELEUZE, 1995, p. 207).
134 Vilson J. Leffa

As imagens dos animais pintadas nas paredes das cavernas não


eram vistas como representação da realidade mas a própria
realidade. As imagens dos deuses na Antiguidade não
representavam os deuses, mas eram os próprios deuses e por isso
reverenciadas. Possivelmente o virtual seja uma realidade mais
psicológica do que física, já que seria difícil, por exemplo, beliscar
alguém virtualmente – embora não seja impossível em ambientes
virtuais de imersão total – mas não deixa de ser realidade. O
virtual é uma realidade que muda a própria realidade. Somos
constantemente transformados por palavras, sons e imagens. Ao
lado de uma “realidade virtual”, que ninguém questiona, embora
às vezes a desqualifiquem como uma realidade inferior, temos
também uma “virtualidade real”, que por ser virtualidade pode
ser desqualificada do ponto de vista do mundo físico, mas
certamente não do ponto de vista psicológico e nem mesmo
cultural, conforme Castells (1998), para quem a sociedade em
rede (“network society”) introduz a cultura da virtualidade real
(p. 349).

A hipótese da simulação

A hipótese da simulação, finalmente, questiona se aquilo


que percebemos como sendo a realidade é na verdade uma
realidade ou uma virtualidade. Essa ideia vem de longe e, pelo
que sei, pode ser encontrada já em Platão, no exemplo da caverna,
onde as pessoas viam as imagens projetadas na parede, e tomavam
aquilo como a própria realidade. Ou seja, viam a realidade no
que era apenas uma projeção da realidade. Se pensarmos um
pouco mais, vamos descobrir que tudo o que vemos é projeção da
realidade. Nossos olhos são como dois buracos que projetam
imagens no fundo de uma caverna. Mais do que isso: o mundo
que percebemos pelos olhos é totalmente processado pelo cérebro
a partir de pontos luminosos projetados na retina. A sensação de
distância e profundidade que temos do mundo é construída dentro
do cérebro, a partir de uma imagem bidimensional. O mundo
que percebemos como externo a nós está na realidade dentro de
Língua Estrangeira 135

nós, entre a retina e o interior do cérebro onde as imagens são


processadas. É lá que existe o mundo. Qualquer substância que
afete este espaço cria um mundo diferente, como acontece, por
exemplo, na alucinação, causada pelo uso de drogas ou por outras
razões.
A hipótese da simulação prevê que a mente pode existir
não apenas no cérebro mas também em outros substratos, o que
no futuro poderá levar a uma civilização pós-humana. De acordo
com o Professor Nick Bostrom, do Departamento de Filosofia da
Universidade de Yale existem três possibilidades em relação ao
futuro:
1. Possibilidade 1: A civilização humana será extinta
e substituída por uma civilização pós-humana;
2. Possibilidade 2: Nossos descendentes no futuro
não terão qualquer interesse em seus ancestrais e
nos esquecerão completamente;
3. Possibilidade 3: Nossos descendentes no futuro
usarão o enorme poder de computação disponível
para rodar simulações de seus antepassados, com alto
grau de granularidade, de detalhamento
(BOSTROM, 2003).

De acordo com o autor, essa é a hipótese mais provável.


Sendo assim, não seria um absurdo imaginar que vivemos hoje
numa simulação criada por nossos descendentes.
Temos o direito de achar que a hipótese da simulação é
apenas uma ideia divertida ou provocadora. Ou podemos achar
que tem implicações metafísicas, provavelmente estabelecendo
analogias com concepções religiosas tradicionais, como o próprio
autor sugere no seu texto. Independente, no entanto, do que
podemos achar, a hipótese da simulação mostra até onde pode ir
a virtualidade, a ponto de substituir completamente tudo o que
tão arraigadamente defendemos como sendo a realidade. A
virtualidade passa a ser vista não como termo acessório, mas como
parte essencial da natureza humana. O homem é um animal que
fala e, por isso, é virtual.
136 Vilson J. Leffa

A internet e a expansão das relações

A internet, como a conhecemos hoje, com sua interface


gráfica e com os recursos de hipertexto e hipermídia, é a fusão de
tudo o que já tinha sido inventado em termos de meios de
comunicação. Da imprensa, traz a palavra escrita; do rádio, a
fala; da televisão, a imagem em movimento. O mais importante,
no entanto, é que, ao contrário do rádio, jornal e televisão, a
internet incorporou também as características do telefone,
tornando o internauta não apenas receptor, mas também emissor
da informação.

Cada reserva de memória, cada grupo, cada indivíduo,


cada objeto pode tornar-se emissor e aumentar o fluxo. A
esse respeito e de maneira colorida, Roy Ascott fala do
segundo dilúvio. O dilúvio de informações. Para o melhor
ou o pior, esse dilúvio não será acompanhado por nenhum
refluxo. Devemos acostumarmo-nos a essa profusão e a
essa desordem. A não ser alguma catástrofe cultural,
nenhum grande reordenamento, nenhuma autoridade
central nos levará de volta à terra firme, nem às paisagens
estáveis e bem balizadas anteriores à inundação (LÉVY,
1999, p. 160-161).

O resultado dessa evolução é a expansão das relações entre


as pessoas. Hoje se pode interagir com alguém de qualquer canto
da terra, recebendo e dando informações, através do correio
eletrônico, chats, listas de discussão, fóruns etc. Deixamos de
ser apenas espectadores, para nos tornarmos também participantes
- e podemos fazer isso em escala mundial.
Para os otimistas, o lado positivo da globalização, no que
se refere aos relacionamentos entre os indivíduos, é que
aprendemos a conviver com a diversidade, tanto linguística como
cultural. Não causa mais tanta estranheza que alguém tenha um
sotaque diferente do nosso, consuma outros alimentos ou vista-
se com outras roupas. O lado negativo é que a convivência,
paradoxalmente, leva á uniformização. Cria-se uma cultura
Língua Estrangeira 137

homogênea, onde alguns traços de outras culturas podem ser


incorporados, mas muitos outros serão descartados.
À medida, portanto, que se expandem as relações entre as
pessoas, acaba acontecendo com as línguas e com as culturas
aquilo que também acontece com as grandes empresas: criam-se
mais e mais fusões, com a consequente diminuição da diversidade
cultural e do número de línguas faladas na terra. Parece uma
epidemia. Quando o mundo começa a funcionar em rede, não só
as empresas, as línguas e as culturas se fundem, mas os próprios
países; a União Europeia já está num processo bem adiantado de
fusão, o Mercosul, mais lentamente, caminha para uma fusão de
diferentes países e a NAFTA, reunindo os países da América do
Norte, também já começou. Para o bem ou para o mal, e apesar
dos focos de resistência, está diminuindo o número de empresas,
o número de países e o número de línguas faladas.
Se antigamente podíamos viver interagindo apenas com os
membros de nossa família, hoje para viver e exercer nossa
cidadania, temos que interagir com pessoas que estão mais
distantes de nós: além do círculo familiar, além dos limites da
cidade, além das fronteiras do país “ pelo menos enquanto
existirem os países, já que um dia provavelmente desaparecerão.
Nossa pátria será o planeta Terra. Vários pensadores, já há algum
tempo, vem batendo nesta tecla. Podemos citar, por exemplo, o
grande escritor H. G. Wells, que disse o seguinte: “nossa
verdadeira nacionalidade é a humanidade”. Se preferirmos um
grande cientista, temos Einstein, que afirmou, “o nacionalismo é
uma doença infantil; é o sarampo da humanidade” (citado por
FIORIN, 2000, p. 62). A ideia de relação assimétrica de poder
entre os países é substituída pela ideia de interdependência, de
convivibilidade: nenhum país é tão rico e autossuficiente que nada
precise dos outros, nem tão pobre que nada tenha a oferecer.
Ainda conforme Morin:

O mundo torna-se cada vez mais um todo. Cada parte do


mundo faz, mais e mais, parte do mundo e o mundo, como
um todo, está cada vez mais presente em cada uma de
suas partes. Isto se verifica não apenas para as nações e
138 Vilson J. Leffa

povos, mas para os indivíduos. Assim como cada ponto


de um holograma contém a informação do todo do qual
faz parte, também, doravante, cada indivíduo recebe ou
consome informações e substâncias oriundas de todo o
universo. (MORIN, 2000, p. 67).

Partindo da ideia de Morin, podemos dizer que a relação


que se estabelece entre o indivíduo e o mundo, no exemplo do
holograma, é também semelhante à relação que existe entre a
célula e o corpo. Parece-me bastante esclarecedor descobrir que
no corpo humano todas as células que o compõem são ao mesmo
tempo iguais e diferentes entre si. O que torna uma célula diferente
da outra é sua localização no corpo. Uma célula do cabelo, por
exemplo, é diferente de uma célula da glândula mamária. Ao
mesmo tempo em que são diferentes, elas também são iguais,
considerando que cada uma possui dentro de si as informações
do corpo em que se encontram. A célula que nasce no fio de
cabelo vai desenvolver as características que interessam ao fio
de cabelo, a que nasce no rim vai desenvolver as características
que interessam ao rim, e assim por diante.
Na humanidade, cada ser humano traz dentro de si, em
potencial, os traços de toda a humanidade, incluindo todas as
características possíveis, desde as mais desejáveis até as mais
hediondas. Um brasileiro de pais católicos que, ao nascer, fosse
adotado por uma família muçulmana seria muçulmano, adotado
por uma família protestante americana, seria protestante.
Dependendo de para onde fosse levado e criado, poderia ser um
criminoso, um monge budista e falante de qualquer uma das
milhares de línguas que existem no mundo. Como a célula em
relação ao corpo, o homem traz dentro de si, em potencial, todas
as informações de que precisa para se tornar um habitante de
qualquer parte do mundo.

Expansão e contração das línguas

Quando se é pequeno o relacionamento com os outros é


restrito à família, aos vizinhos mais próximos, aos moradores do
Língua Estrangeira 139

prédio. Quando se vai para a escola, o círculo de convivência


aumenta para o tamanho da comunidade, e a criança precisa fazer
adaptações da língua que traz de casa. Mais tarde quando vai a
escola de ensino médio e possivelmente para a universidade fará
outras adaptações. A língua falada numa sala de aula universitária,
com alunos de diferentes cidades e, às vezes até de diferentes
estados, quando não de diferentes países, pode acabar sendo uma
fusão de dezenas de dialetos diferentes, originalmente falados
por cada um dos alunos na sua infância. O que era, portanto,
várias línguas fica reduzido a uma língua única, ainda com
variantes individuais, é claro, mas genérica o suficiente para que
possa ser produzida e consumida pela comunidade discursiva da
sala de aula sem problemas de comunicação, pelo menos no nível
da fonologia, léxico e sintaxe.
Isso, do ponto de vista da evolução individual, do que
poderia ser chamado de ontogenia. Do ponto de vista da evolução
da humanidade, da filogenia, a história não é diferente; o que
aconteceu com cada um de nós já aconteceu antes, em escala
maior, com a humanidade. Inicialmente, há milhares de anos,
quando começou a vida em comunidades fixas, vivia-se em aldeias
separadas uma das outras, e a interação entre as pessoas ficava
restrita aos habitantes da aldeia. Fazendo uma adaptação livre de
Oliveira Martins (1909), podemos dizer que vida e morte, religião
e trabalho, o fogo e o amor, tudo se incluía neste mundo minúsculo,
microcosmo que tem por centro a aldeia (p. 126-127).
Durante milênios, à medida que os povos se espalharam
pela terra e se distanciaram entre si, as línguas foram se
diversificando e aumentado em número; o latim, por exemplo,
transformou-se em francês no que é atualmente a França, em
espanhol na Espanha, em português em Portugal, italiano na Itália,
e assim por diante.
Com o encolhimento do planeta, as línguas em vez de se
afastarem estão agora se aproximando. Atualmente, com a
globalização, estamos assistindo a um movimento de contração,
com redução no número de línguas faladas. Os indícios parecem
apontar para um mundo, embora ainda muito distante, que vai
140 Vilson J. Leffa

terminar onde começamos: falando uma única língua. Acredito


que essa língua não será qualquer das línguas faladas na
atualidade, nem mesmo o inglês, apesar de toda sua hegemonia.
As línguas atuais vão desaparecer, mas não serão substituídas;
elas vão evoluir, provavelmente incorporando elementos umas
das outras, até formar uma língua única, verdadeiramente
universal, o esperanto da humanidade.
Nem mesmo a língua de um país colonizador com um
regime de força parece ser capaz de substituir as línguas locais,
como foi, por exemplo, o caso do latim popular levado pelos
romanos para as regiões conquistadas. O que houve não foi uma
substituição, mas uma evolução. Não vingou nem a língua do
país colonizado, nem a língua do colonizador. Houve uma fusão
que provocou a extinção das duas línguas e o surgimento de uma
terceira em cada uma das regiões colonizadas.
O processo de fusão e contração das línguas pode ser visto
também sob uma ótica mais sombria. Para alguns estudiosos (ex.
PHILLIPSON, 1992; PHILLIPSON; SKUTNABB-KANGAS,
1996; SKUTNABB-KANGAS, 2000), estamos caminhando para
um mundo em que as línguas minoritárias serão gradativamente
exterminadas e substituídas pelas línguas hegemônicas -
provocando um verdadeiro genocídio linguístico. A redução das
línguas faladas na face da terra acarreta a extinção da diversidade
linguística, causando uma verdadeira falta de equilíbrio ecológico
na comunicação entre as pessoas, o que representa, segundo
Skutnabb-Kangas (2000), uma ameaça maior para a humanidade
do que a extinção da biodiversidade. As pessoas que não podem
mais usar sua língua materna quando se comunicam com outras
pessoas ficam em desvantagem na interação com falantes nativos
de outras línguas. Na medida em que desaparece o
multilinguísmo, desaparecem também o multiculturalismo, a
soberania nacional das minorias e até a garantia dos direitos
humanos, substituídos pelo imperialismo cultural e linguístico
dos países centrais, resultando na americanização e
homogeneização da cultura mundial (PHILLIPSON;
SKUTNABB-KANGAS, 1996, p. 436).
Língua Estrangeira 141

Desafios para o ensino de línguas estrangeiras

Na medida em que aumentam as relações entre as pessoas,


mediadas basicamente pela linguagem, aumenta a importância
do professor de línguas estrangeiras, que pode estar vivendo,
agora, seu melhor momento histórico. Nunca foi tão necessário
aprender e falar uma língua estrangeira como agora.
Para assumir essa importância, o professor precisa evoluir
“ o que geralmente é difícil porque a educação ainda é concebida
não como geradora de novos saberes mas simplesmente como
transmissora de conhecimentos antigos. O que muitas vezes o
professor “passa” para os alunos é o conhecimento da geração
anterior, sem se dar conta de que o que caracteriza o ser humano
sobre todas as outras espécies é justamente a capacidade de
evoluir. Cada geração, para garantir a sobrevivência da
humanidade, tem a obrigação de ir além da geração anterior. O
manual de sobrevivência do professor de línguas estrangeiras no
início do terceiro milênio envolve, a meu ver, quatro desafios:
(1) geração do conhecimento, (2) animação da inteligência
coletiva, (3) desenvolvimento da consciência planetária e (4)
reletramento. Colocam-se esses desafios não como exigências a
mais a serem impostas a um professor já sobrecarregado de tarefas,
mas como oportunidades a lhe serem oferecidas “ e pelas quais
também o professor deve lutar.
O desafio da geração do conhecimento sugere que o
professor deve não apenas “passar” o saber, mas também produzi-
lo. A sociedade precisa de novos conhecimentos para enfrentar
os inúmeros desafios do dia a dia e o professor é o profissional
que, por excelência, tem condições de suprir essa necessidade.
A globalização, aliada à necessidade de acesso a um saber
cada ver mais dinâmico, torna a trabalho do professor
imprescindível na sociedade atual. Isso pode ser confirmado,
por exemplo, através da importância que se tem dado ao
conhecimento, que precisa ser constantemente renovado. Segundo
Lévy (1999, p. 157), há três constatações importantes na educação
atual, assim resumidas:
142 Vilson J. Leffa

1. a maioria das competências adquiridas por uma


pessoa no começo de seu percurso profissional serão
obsoletas no fim de sua carreira;
2. trabalhar equivale cada vez mais a aprender,
transmitir saberes e produzir conhecimentos;
3. o ciberespaço suporta tecnologias intelectuais que
ampliam, exteriorizam e alteram muitas funções
cognitivas humanas.

O conhecimento é a matéria prima do professor, que deve


agir não apenas como transmissor de saber, mas também como
produtor. É difícil saber o que é mais importante, se gerar ou
transmitir conhecimento. A preocupação em estabelecer essa
diferença, no entanto, não existe para o professor, na medida em
que ele pode exercer as duas atividades. Se o conhecimento, por
si só, nunca foi tão valorizado como agora, o professor, no duplo
papel de gerador e transmissor de conhecimento, deve ser
duplamente valorizado. Em muitos momentos da história, e em
muitos setores, ainda hoje, os detentores do saber, muitas vezes,
têm-se caracterizado por reter e até sonegar o conhecimento. O
professor vai mais longe: distribui o conhecimento que possui. A
importância maior do professor não está em construir o
conhecimento para si, e nem mesmo em construir para os outros;
a importância do professor está em construir o conhecimento nos
outros.
O desafio da animação da inteligência coletiva sugere que
o professor precisa aprender não só a trabalhar em equipe, mas
também a pensar coletivamente. Qualquer tarefa de ensino e
pesquisa envolve tanto conhecimento que ninguém é mais capaz
de executá-la sozinho; precisa também da inteligência dos outros,
envolvendo especialistas de outras áreas de conhecimento. Se
antes o professor de inglês, por exemplo, se reunia apenas com
outros professores de inglês, hoje precisa se reunir com
professores de outras disciplinas; há sempre temas e tarefas
transversais que só podem ser executadas reunindo as inteligências
de diferentes pessoas e áreas do saber.
Língua Estrangeira 143

Formar um grupo afinado onde a inteligência fique


coletivamente distribuída, de modo que o conhecimento de um
se encaixe no desconhecimento do outro, e vice-versa, era uma
tarefa extremamente difícil, talvez impossível na comunidade da
aldeia tradicional. Na comunidade virtual, com a rapidez e
facilidade de transmissão de informações sem limites geográficos,
a formação de uma comunidade discursiva, afinada em seus
interesses específicos, torna-se possível. Paradoxalmente, o
virtual, que existe apenas como potencialidade em seu significado
original, transforma o ideal em realidade, possibilitando o prazer
de se trabalhar num grupo onde a inteligência de cada um se soma
à inteligência do outro. É o que Lévy (1999) chama de “sinergia
de competências”, um trabalho coordenado de forças em que o
todo é maior que a soma das partes.

O ideal mobilizador da informática não é mais a


inteligência artificial (tornar uma máquina tão inteligente,
mais inteligente até, quanto um homem), mas sim a
inteligência coletiva, isto é, a valorização, a utilização
otimizada e a colocação em sinergia das competências,
imaginações e energias intelectuais, independentemente
de sua diversidade qualitativa e de sua localização (LÉVY,
1999, p. 167).

O desafio da consciência planetária é sugerido a partir de


Morin (2000). Nossa pátria não é mais nossa família, nossa
comunidade ou nosso país. Nossa pátria é o planeta Terra. Somos
todos filhos do mesmo planeta, habitando a mesma biosfera e
sujeitos aos mesmos tipos de sentimento, oscilando entre amor e
ódio, medo e coragem, alegria e tristeza.

Temos todos uma identidade genética, cerebral, afetiva


comum em nossas diversidades individuais, culturais,
sociais. Somos produto da vida da qual a Terra foi matriz
e nutriz. Enfim, todos os humanos, desde o século XX,
vivem os mesmos problemas fundamentais de vida e morte
e estão unidos na mesma comunidade de destino planetário
(MORIN, 2000, p. 76).
144 Vilson J. Leffa

O professor de línguas estrangeiras está no ponto de


encontro de duas forças antagônicas e poderosas. De um lado, o
apelo constante em resguardar e defender nossa língua e cultura;
do outro, a necessidade de conviver com a língua e cultura do
outro. O desafio para o professor é achar o ponto equilíbrio entre
a preservação da nossa individualidade e a aceitação da
diversidade do outro, evitando uma espécie de esquizofrenia
cultural. Maior do que esse desafio, só a importância do professor
neste momento. Recorro aqui mais uma vez a Morin:

É necessário aprender a “estar aqui” no planeta. Aprender


a estar aqui significa: aprender a viver, a dividir, a
comunicar, a comungar; é o que se aprende somente nas “
e por meio de “ culturas singulares. Precisamos doravante
aprender a ser, viver, dividir, e comunicar como humanos
do planeta Terra, não mais somente pertencer a uma
cultura, mas também ser terrenos (MORIN, 2000, p. 76).

Finalmente, o desafio do reletramento parte do princípio


de que o professor não pode ser analfabeto ou iletrado, e deve
conhecer, com bom nível de proficiência, não só os processos de
mediação através dos quais se dá o acesso ao conhecimento, mas
também a prática social implícita nesse conhecimento. Quando
foi introduzida a imprensa, por exemplo, o professor da época
talvez preferisse os livros caprichosamente copiados pelos
escribas profissionais, em vez dos incunábulos e alfarrábios que
começaram a circular, mas teve que se reletrar. Atualmente, pode
preferir lápis e borracha, escrevendo e apagando várias vezes,
mas não pode ignorar que já existem outras tecnologias para
redigir um texto.
Esse reletramento envolve não só o desenvolvimento de
competências, mas também de atitudes produtivas. Entre as
competências, existe a necessidade de desenvolver as habilidades
mínimas no uso do computador, tais como criar e salvar um
arquivo, movimentar parágrafos dentro do texto, usar os recursos
gráficos mais comuns como tabelas e folhas de estilo, usar o
correio eletrônico, enviar arquivos anexados e fazer pesquisas na
internet.
Língua Estrangeira 145

Em termos de atitude, acredito que o professor deve


procurar evitar aquela resistência surda que muitas pessoas têm
contra tudo que envolve novas tecnologias; deixar de desejar,
por exemplo, que numa apresentação, as coisas não funcionem.
Ter também uma expectativa razoável do que a máquina pode e
não pode fazer. Finalmente, encarar o computador como um servo,
um escravo obediente e submisso. O computador pode ser
extremamente útil no trabalho do professor e deve ser visto como
um meio, um instrumento de mediação entre o professor, seus
colegas e seus alunos.

Conclusão

O objetivo deste capítulo foi tentar mostrar como as


mudanças da sociedade atual, na medida em que intensificam e
aumentam as relações entre as pessoas, podem afetar o ensino de
línguas estrangeiras. Os vários fatores que levaram a essas
transformações foram analisados e comentados, incluindo a
questão da globalização, a evolução do átomo para o bit e a
virtualização da humanidade.
Assim como a língua não pertence ao indivíduo, mas à
comunidade que a usa, a inteligência também deixa de ser um
dote do indivíduo para ser um patrimônio da coletividade. Muitas
tarefas, pela sua complexidade, só podem ser executadas pela
convergência da inteligência distribuída entre as pessoas
empenhadas na sua execução, incluindo a tarefa de ensinar uma
língua estrangeira.
Gostaria de concluir, retomando o famoso poema de John
Donne (Meditation XVII):

Nenhum homem é uma ilha, completo em si mesmo. Cada


homem é um pedaço do continente, uma parte do todo.
Se um torrão for arrastado pelo mar, a Europa fica menor,
como ficaria um rochedo, como ficaria a casa do teu amigo
ou a tua própria casa. A morte de qualquer homem diminui
a mim, porque estou envolvido na humanidade; por isso,
146 Vilson J. Leffa

nunca perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram


por ti. (Tradução minha)

A diferença entre o poema de John Donne e o mundo em


rede que vivemos hoje é apenas uma diferença de extensão. O
homem participa agora de um mundo maior. Não é parte do
continente mas da coletividade máxima. Deixa de ser brasileiro,
nigeriano, europeu ou asiático para ser habitante do planeta Terra,
como afirma Morin.
Língua Estrangeira 147

Capítulo 7
O ensino da LE no futuro
Da dicotomia para a convergência8

Algumas considerações iniciais

A maior dificuldade em se falar sobre o futuro do ensino


da LE é a constatação de que o futuro está se tornando cada vez
mais imprevisível. As duas razões geralmente apresentadas para
essa imprevisibilidade são (1) a ideia de que o futuro é apenas
uma projeção do presente e (2) a convicção de que as mudanças
atualmente estão acontecendo de modo muito mais rápido do que
aconteciam antes. De acordo com Maturana e Rezepka, “não
sabemos como será a vida durante o século XXI, e qualquer
predição nesse sentido é apenas uma extrapolação do presente”
(MATURANA; REZEPKA, 2000, p. 9).
Outros propõem que se busque o futuro no passado. A
ideia de que é preciso conhecer o passado para prever o futuro é
tão antiga quanto a própria História. Está em George Orwell
quando afirma que quem controla o passado controla o futuro;
está na placa comemorativa da restauração do Pelourinho na
cidade de Salvador, na Bahia, ao dizer que o futuro pertence a
quem ama o passado; e está de maneira mais comovente num
quadro de Ticiano, exposto na National Gallery de Londres, onde
está escrito que é preciso olhar o passado para não arriscar o
futuro.

8
Este capítulo é uma versão atualizada de: LEFFA, Vilson Jose. O ensino
do inglês no futuro: da dicotomia para a convergência. In: STEVENS,
Cristina Maria Teixeira; CUNHA, Maria Jandyra Cavalcanti. (Org.).
Caminhos e colheita: ensino e pesquisa na área de inglês no Brasil. Brasília,
2003, v. 1, p. 225-250.
148 Vilson J. Leffa

Quer se busque o futuro no presente ou no passado, o fato


é que está ficando cada vez mais difícil prevê-lo devido à rapidez
com que acontecem as mudanças. Mil anos de história no antigo
império egípcio, onde se construíram pirâmides durante seis mil
anos, parecem ter provocado menos mudanças do que os dez
últimos anos do século XX, por exemplo. Em outras palavras, se
no antigo Egito, era possível educar a criança, simplesmente
ensinando o ofício do pai ou da mãe, porque o futuro era previsível,
de certo modo igual ao presente, hoje isso não é mais possível. A
educação não pode mais se restringir ao conhecimento da geração
anterior; se ficar apenas na transmissão de conhecimento, sem
criá-lo, corre o risco de transmitir um conhecimento inútil. Com
a rapidez das mudanças, o futuro tornou-se imprevisível.
Conforme Morin, “O século XX descobriu a perda do futuro, ou
seja, sua imprevisibilidade” (MORIN, 2001, p. 79).
Não é possível, no entanto, viver sem tentar prever o futuro.
A ideia de que nossas ações são determinadas pelas experiências
que temos do passado pode projetar uma imagem falsa da
importância do futuro; não podemos mexer no passado, mas o
futuro está em nossas mãos. Na medida em que cada ação, cada
palavra e cada gesto, por menor que seja, projetam-se sobre o
futuro, podemos, por um lado, prever e modificar o futuro; e
podemos também constatar, por outro lado, que não é possível
viver sem mudar o futuro. Se eu sei, por exemplo, que aprendendo
uma língua estrangeira hoje, terei mais oportunidade de conseguir
um bom emprego mais tarde, estou ao mesmo tempo fazendo
uma previsão e modificando o futuro.
Os acontecimentos têm relações de causa e efeito, estando
sujeitos a determinados padrões recursivos. Isso em si não resolve
o problema porque a dificuldade não é saber que os padrões
recursivos existem; a dificuldade está em identificar exatamente
quais são esses padrões. O que se oferece a seguir é uma tentativa
de descrição de um desses padrões. A pretensão é que se possam
fazer algumas previsões sobre o ensino da LE no futuro, ou pelo
menos identificar suas tendências no presente.
Língua Estrangeira 149

A SÍNDROME DO PÊNDULO

A metáfora do pêndulo tem sido muitas vezes usada para


descrever o movimento da história, em geral, e do ensino de
línguas, em particular; mas pode também ser usada para prever o
futuro, não necessariamente partindo de uma linha mística (onde
o pêndulo tem sido usado juntamente com cartas e tarô), mas
usando a metáfora da física (onde pelo cálculo da posição e
velocidade do pêndulo num determinado momento é possível
prever sua posição e velocidade em qualquer momento do futuro).
A metáfora do pêndulo supõe o fluxo e refluxo da história; o
mecanismo básico de expansão e contração que caracteriza o
próprio universo. Se o universo está agora, segundo os
astrônomos, numa fase de expansão, um dia entrará numa fase de
retração, seguida de uma outra fase de expansão e, assim,
sucessivamente pela eternidade; o universo, como tudo que nele
está contido, se repetirá sempre, renascendo, crescendo e
morrendo.
A metáfora do pêndulo, com seu movimento oscilatório de
um extremo a outro, parece incorporar não só misticismo e ciência,
mas também, por extensão, o padrão recursivo de que tudo acaba
voltando ao ponto de partida para iniciar um novo ciclo. A ideia
de fluxo e refluxo não é, portanto, apenas cientificamente correta,
mas também romanticamente viável: pode estar nas marés que
fluem e refluem sobre a praia; na planta que nasce da semente,
cresce e morre para renascer da própria semente; e, no ser humano,
é claro, que vive uma história que pode pensar ser única, mas que
se repete de geração em geração, como variáveis sobre um mesmo
tema.
A língua falada pelos homens segue também esse padrão
de fluxo e refluxo. Começou sendo única, quando a humanidade
aprendeu a falar, mas se expandiu e se babelizou, chegando a
milhares. Agora, ao contrário do universo, as línguas estão em
franco processo de retração; com o tempo, e com as fusões que
ocorrerão entre elas, a humanidade voltará a falar uma língua
que será novamente única sobre a face da terra.
150 Vilson J. Leffa

O padrão de fluxo e refluxo leva à ideia de repetição. A


repetição parece ser a essência não só do universo mas também
da eternidade; para prever o futuro basta que se identifique o
início e o fim da cada ciclo. A descoberta do segmento de tempo
que corresponde ao ano, por exemplo, permite prever o outono
depois do verão e a primavera depois do inverno. Vendo a que
horas o sol nasce hoje e a que horas nasceu há um ano atrás,
posso prever com exatidão a que horas ele nascerá amanhã. Da
mesma maneira que o verão traz em si o embrião do inverno, o
ser vivo carrega dentro de si o germe da morte. Se todos que
viveram no passado um dia morreram, todos os que vivem hoje,
um dia morrerão. A repetição não permite a imprevisibilidade.
A repetição se desdobra de várias maneiras, incluindo ciclos
de adesão e rejeição que se sucedem em vários recortes, criando
inúmeras dicotomias. Um período histórico de adesão à
aprendizagem individualizada, por exemplo, levará não só à
rejeição desse modelo, mas sua substituição por um modelo que
estará no outro extremo, com ênfase na aprendizagem socializada,
criando assim uma dicotomia. A conciliação dos opostos é sempre
malvista. Ainda que o dizer possa apregoar um continuum entre
os extremos e defender a interdisciplinaridade, o fazer fica com a
dicotomia, rejeitando o ecletismo das ideias como obscenidade
intelectual, segundo uma expressão atribuída a Krashen
(BARASCH; JAMES, 1994).
O ensino de línguas estrangeiras tem sido historicamente
marcado por dicotomias, que abrem e fecham inúmeros ciclos,
nos mais diferentes recortes. Entre as oposições clássicas, podem-
se destacar, por exemplo: língua escrita versus língua falada, forma
versus função, léxico versus sintaxe, dedução versus indução,
individualizado versus socializado etc.
São ciclos históricos que se retomam, seguindo a ideia de
fluxo e refluxo. Quando hoje buscamos na História o provérbio
africano de que é preciso uma aldeia inteira para educar uma
criança, estamos reiniciando um novo ciclo. A diferença é que
agora a aldeia está maior; não se restringe mais ao verde da praça
defronte ao templo, onde todos se encontravam para trocar ideias
Língua Estrangeira 151

e mercadorias; interagindo e transacionando. As pessoas


continuam exercendo as atividades de troca, tanto por interação
como por transação, só que agora em escala global, fazendo do
planeta Terra a aldeia: “a união planetária é a exigência racional
mínima de um mundo encolhido e interdependente” (MORIN,
2001, p.75). Em outras palavras, se antes precisávamos de uma
aldeia para educar uma criança, hoje precisamos do planeta inteiro.

A COMUNIDADE PLANETÁRIA

Na aldeia tradicional a convivência dava-se pela


diversidade de ocupação entre as pessoas, todas ocupando um
mesmo espaço geográfico. Como para algumas ocupações só
havia um representante de cada profissão (um curandeiro, um
ourives, um tanoeiro, um cervejeiro, um mestre-escola etc.) a
interação obrigatoriamente dava-se fora dos interesses
profissionais, possivelmente pela prática de algum esporte ou
outro passatempo de interesse comum (participar de algum festival
religioso, caçar javalis, dançar ao redor da fogueira etc.). Em
algumas profissões, a interação com os pares da mesma atividade
era praticamente inexistente na dimensão espacial; ocorria apenas
na dimensão temporal, geralmente de pai para filho, ou mesmo
de avô para neto.
Com o avanço das telecomunicações, principalmente da
internet, as fronteiras geográficas desapareceram e a interação
entre membros com interesses diversificados diminui para dar
lugar à interação entre membros com interesses comuns, naquilo
que podemos chamar de comunidades ocupacionais. A
diversidade, que caracterizava a composição da aldeia tradicional,
evolui para a homogeneidade, que caracteriza, por exemplo, a
composição das listas de discussão da internet: cada lista formando
uma comunidade com os mesmos interesses e, muitas vezes, a
mesma profissão. Os limites entre as comunidades deixam de
ser geográficos para serem ocupacionais. O fonoaudiólogo que
mora num bairro da cidade de São Paulo provavelmente interage
mais intensamente com os fonoaudiólogos de outros continentes
do que com os moradores de seu prédio.
152 Vilson J. Leffa

Uma consequência imediata da queda das fronteiras


geográficas é que mais pessoas começam a falar a mesma língua.
E quando isso acontece, o número de línguas faladas na face da
Terra começa a diminuir. Quando aumentamos nosso círculo de
relações para incluir pessoas de outros países e até de outros
continentes, iniciamos um lento e gradual processo de unificação
linguística, incorporando traços de uma e outra língua, ainda que
com ênfase na língua hegemônica, e descartando outros traços,
principalmente das línguas minoritárias. Apesar da unificação
linguística, a diversidade permanece, só que num outro recorte –
não mais geográfico, baseado na aldeia tradicional, onde cada
pessoa tinha interesses diferentes da outra – mas ocupacional,
baseado em comunidades discursivas; cada uma com seus
interesses específicos. A diversidade deixa de existir entre os
membros da mesma comunidade para existir entre uma
comunidade e outra, tornando-as, portanto, diferentes. Estamos
nos unificando geograficamente, mas nos diversificando
ocupacionalmente. Enquanto que as aldeias tradicionais eram
relativamente homogêneas entre si (uma aldeia era parecida com
a outra) e heterogêneas em sua composição, as comunidades
discursivas agora, pelo contrário, são heterogêneas entre si (lista
dos cervejeiros, dos fonoaudiólogos etc.) e homogêneas em sua
composição. Outra diferença importante é que enquanto as aldeias
tradicionais tendiam a desenvolver um dialeto próprio, às vezes
até chegando a uma língua diferente, as comunidades atuais, para
manter a comunicação entre seus membros, às vezes distantes
geograficamente, tendem a uma língua comum. O processo de
expansão das relações entre as pessoas está em relação inversa
ao processo de retração das línguas, que diminuem em número.
Os meios de comunicação de massa da era pré-internet,
ainda que de alcance global como o rádio de ondas curtas e a
televisão via satélite, eram meios de mão única, geralmente
transmitindo informação dos países centrais para os periféricos.
A internet se caracteriza não só por facilitar ainda mais o acesso
à informação, mas também por transformar as pessoas de meros
espectadores em participantes do processo comunicativo.
Língua Estrangeira 153

Qualquer pessoa plugada na rede tem a oportunidade não só de


receber, mas também de produzir informação. Para isso precisa
de duas condições importantes: (1) ter algo a dizer e (2)
compartilhar uma língua com o interlocutor. O que dizer depende
de cada um, de sua criatividade ou originalidade; a língua a ser
usada, no entanto, depende de uma escolha da comunidade a qual
o indivíduo pertence ou deseja pertencer. Se a língua escolhida
não for a língua materna do indivíduo, ele não tem outra opção a
não ser aprender a língua da comunidade.
Tem a liberdade de ver o uso de uma língua estrangeira
sob duas perspectivas opostas: ou como um processo de
colonização dos países centrais ou como um meio de capacitação
pessoal (“empowerment” em inglês). Existem argumentos que
favorecem um e outro lado. Pelo lado da colonização, podemos
listar as medidas tomadas pelos países falantes da língua
hegemônica em favor não só de sua manutenção como de sua
expansão (British Council, 1995). Pelo lado da capacitação
pessoal, a constatação de que não saber a língua hegemônica leva
à exclusão. Na atualidade o desconhecimento da língua inglesa,
não só restringe o acesso à informação a ser recebida, como
também limita o alcance da mensagem a ser transmitida.

AS CONVERGÊNCIAS

Aceitando a metáfora do pêndulo, a previsão do futuro é


uma tarefa extremamente simples; basta que se identifique o
momento de retorno, quando se inicia um novo ciclo; a partir daí
a história começa a se repetir, sendo, teoricamente igual ao que já
foi. Pode-se falar em renovação, mas renovar nada mais é do que
tornar novo o que já é velho e conhecido. Pode-se falar em
renascimento, mas renascer é apenas nascer de novo, iniciando
algo que já aconteceu e que, na realidade, nada tem de novo.
Seria, no entanto, muito arriscado restringir a previsão do futuro
à identificação de um determinado ciclo que supostamente renasce
de tempos em tempos; havendo um engano qualquer na tentativa
de identificação desse ciclo, fica-se simplesmente preso ao
passado e perde-se o futuro.
154 Vilson J. Leffa

A ideia de que se possa prever o futuro olhando para o


passado soluciona em parte o grande dilema do ensino, sempre
indeciso entre um e outro; de um lado, a preocupação com a
história, de buscar as identidades que marcaram as gerações
anteriores e tentar preservar essas identidades para as gerações
seguintes; mas do outro lado, também a preocupação com o futuro,
preparando os alunos, não para o mundo em que, hoje, vivem os
professores, mas para o mundo em que, amanhã, viverão os alunos.
Pode-se dizer que o ensino vive de saudade e esperança, de
realidade e sonho. Para ser útil, não basta preservar a história;
precisa também prever o futuro, ainda que assumindo o risco de
supor a fantasia.
O que se sugere aqui é incorporar à ideia dos ciclos que se
repetem a ideia de evolução, transformando o movimento
oscilatório do pêndulo em espiral, onde o retorno não se dá
exatamente ao ponto de partida, mas a um ponto que vai
gradativamente se afastando do ponto inicial. O que era retorno
transforma-se em evolução. A busca mais simples de um padrão
recorrente é substituída pela busca de um padrão em evolução,
em constante processo de mudança, que, se, por um lado, é bem
mais difícil de ser identificado, por outro, pode mostrar-se depois
bem mais proveitoso.
O que basicamente se vislumbra para o futuro é um processo
generalizado de convergência, fundindo tecnologias, métodos e
teorias. Parte-se do pressuposto de que a história do ensino de
línguas estrangeiras já superou o modelo baseado na dicotomia
do pêndulo e marcado por uma relação de temor, intransigência
ou ódio ao que predomina num determinado momento, levando
sempre a desejar o oposto. Depois de tanta decepção com as
promessas feitas e não cumpridas por diferentes teorias, parece
que chegamos à conclusão de Diderot de que a verdade é uma
prostituta: dorme com todos é não é fiel a ninguém.
Metaforicamente pode-se afirmar que as teorias não têm o direito
de exigir admiradores que se casem monogamicamente com elas
para o resto da vida; as teorias devem ter apenas usuários, de
preferência com alto índice de infidelidade e mesmo de
Língua Estrangeira 155

promiscuidade, se for o caso. Diante de uma teoria é melhor ser


promíscuo do que fiel. A história não caminha se as teorias não
forem traídas.
A visão dicotômica da história vê erroneamente a evolução
como um processo de substituição; jogar fora uma teoria para
abraçar outra, descartar o homem pela máquina, substituir o
cérebro humano pela inteligência artificial, o método audiolingual
pelo comunicativo etc. Na visão proposta aqui a evolução é
descrita como um processo de transformação; o novo não substitui
o antigo, mas é incorporado a ele. É nessa perspectiva que se
delineiam as grandes tendências do ensino da língua inglesa no
início do milênio, baseadas todas na ideia comum de convergência.
Selecionamos para nossa discussão sobre o futuro do ensino
da LE, quatro convergências: (1) ensino e pesquisa, (2)
inteligência e emoção, (3) local e global, (4) real e virtual.

Ensino e pesquisa

A convergência do ensino com a pesquisa tem sido proposta


há tanto tempo que rigorosamente não pode ser mais referida como
uma tendência. Por outro lado, são tantas as vozes divergentes,
conclamando a separação entre uma e outra, que me parece
necessário retomar e tentar justificar a importância dessa fusão.
Veja-se entre as vozes contrárias, por exemplo, o que diz Emília
Ferreiro:

Quando se faz [pesquisa ação] com a ideia de que os


professores são investigadores, eu digo que não é bem
assim. Ser pesquisador é uma profissão como qualquer
outra, nem mais, nem menos. (...) todos podemos cantar,
mas há alguns que são cantores profissionais,
especializados, e ninguém pode transformar-se em cantor
por uma decisão coletiva (FERREIRO, 2001, p. 36).

Tenho grande admiração por Emília Ferreiro e sua obra,


incluindo aí não só suas pesquisas sobre a aquisição da escrita,
mas também a franqueza com que expõe suas ideias, sem qualquer
156 Vilson J. Leffa

preocupação de estar ou não agradando seus inúmeros


admiradores, da qual a citação acima é um exemplo. Entendo
que a pesquisa ação, vista aqui como aquela investigação feita
pelo professor para resolver um problema de sua sala de aula,
pode tornar a pesquisa muito local, sem possibilidade de ser
generalizada; o que é verdade numa aula de inglês em Juiz de
Fora pode não ser verdade numa aula de inglês em Nova York, o
que é verdade hoje pode não ser mais verdade amanhã. Seria
uma verdade extremamente contextualizada, válida apenas para
um determinado local numa determinada hora.
O problema quando se separam o ensino e a pesquisa, não
permitindo que o professor pesquise, é que se deixa o professor
sem opção, obrigando-o a aceitar a verdade dos outros. Pior do
que uma verdade local, mas contextualizada, é uma verdade
imposta de fora, sem contextualização. Os resultados de uma
pesquisa feita numa sala de aula em Londres, com alunos de
diferentes nacionalidades e de diferentes línguas maternas, tendo
necessariamente que se comunicar em inglês, não podem ser
aplicados em uma sala de aula do interior do Brasil onde todos
falam a mesma língua materna e não usam o inglês fora da sala
de aula.
Se considerarmos que o professor deve não apenas
consumir pesquisa produzida por outros em outros lugares, mas
produzir sua própria pesquisa, dentro de sua própria realidade, o
trabalho de pesquisa é imprescindível, inseparável do ensino.
Isso se aplica não só ao ensino de nível universitário, onde, apesar
do que diz Emília Ferreiro, já se sedimentou a ideia da
inseparabilidade entre ensino e pesquisa, mas também pode ser
aplicada ao ensino médio e mesmo ao fundamental.
Considerando as vozes divergentes sobre a conveniência
ou não unir o ensino com a pesquisa, propõe-se uma pequena
agenda com dois compromissos básicos para o professor de LE:
Procurar não apenas “passar” conhecimento para os
alunos, mas também gerar o conhecimento necessário para uma
melhor aprendizagem da língua. Partindo do princípio de que
qualquer pesquisa é a tentativa de responder a uma pergunta, o
Língua Estrangeira 157

professor pode começar um projeto de pesquisa pelas tantas


perguntas que ainda não foram satisfatoriamente respondidas e
que estão diretamente ligadas a muitos dos problemas da sala de
aula. Alguns exemplos: O que pode ser feito para ajudar os alunos
a não cometer com tanta frequência determinados erros?
Considerando que a sala de aula parece ser o lugar onde o
desempenho precede a competência, que estratégias o professor
poderia usar para assistir o desempenho do aluno e acelerar sua
competência na LE? O que o professor pode fazer numa cidade
do interior do Brasil para dar um interlocutor ao aluno de LE?
Pertencer a uma comunidade de pesquisadores envolvidos
com problemas afins. Está ficando cada vez mais fácil formar
comunidades discursivas com interesses comuns (no sentido de
Swales, 1990), por meio de listas de discussão, fóruns virtuais,
associações de professores de LE etc.; independentemente da
localização geográfica de seus membros. A tendência atual é
socializar não apenas o conhecimento gerado, mas a própria
geração do conhecimento, através da pesquisa coletiva. Como a
andorinha diante do verão, o professor sozinho não faz pesquisa.

Inteligência e emoção

O ensino da LE fundamenta-se nos três grandes domínios


da aprendizagem: o cognitivo, o afetivo e o psicomotor. A
convergência da inteligência com a emoção abre caminho para
explorar a conexão com o prazer na aprendizagem, que pode ser
feita tanto pela via biológica como pela via sociointeracional.
Essa conexão é uma tentativa de integrar o domínio cognitivo
com o afetivo, uma preocupação que não é recente entre os
pesquisadores da área (MOSCOVITZ, 1978; CELANI, 1983),
mas que, a meu ver, ainda está para ser desenvolvida.
Pela via biológica, podemos representar a aprendizagem
como a formação de novas conexões entre os neurônios, as células
do cérebro. Essas conexões, estabelecidas pelos
neurotransmissores, são causadas tanto por fatores genéticos como
por informações que chegam ao cérebro através do meio ambiente,
158 Vilson J. Leffa

como imagens, sons, cheiros etc. Um elemento importante para


ampliar essa “fiação” do cérebro é a presença do prazer na
atividade. Se a criança ou o adulto não gostar do que estiver
fazendo, se a aula for cansativa, a aprendizagem diminuirá ou
deixará de ocorrer (PRADO, 1998).
O prazer afeta a produção de uma substância chamada
dopamina, um neurotransmissor que envia mensagens de uma
célula para outra no cérebro e que regula os movimentos, a
coordenação motora, e finalmente o desenvolvimento cognitivo.
Experimentos feitos por neurocientistas (WALDRON; ASHBY,
2001) parecem sugerir que a dopamina, como mensageiro
químico, facilita a aprendizagem, reforçando com sensações de
bem-estar e prazer determinados comportamentos considerados
importantes para o desenvolvimento do ser humano. Se, por um
lado, o prazer artificial causado pelo uso de certas drogas (heroína,
cocaína, anfetaminas, nicotina) pode deteriorar os neurônios, o
prazer natural que acompanha a aprendizagem é um fator
importante para realimentar a própria aprendizagem e ampliar a
“fiação” do cérebro.
As duas faces do prazer, para o bem e para o mal, também
podem ser observadas no âmbito sociocultural, não-biológico.
Na sala de aula, o uso da emoção pode tanto ajudar como
atrapalhar, principalmente no caso do ensino da língua inglesa.
Há um fator ideológico que precisa ser administrado. Admiração
pela língua ou cultura é muitas vezes vista como o
deslumbramento ingênuo e inadequado de uma mente colonizada.
Sabe-se, no entanto, que uma atitude positiva é um fator
importante na aprendizagem da língua estrangeira: reduz o filtro
afetivo (KRASHEN, 1985) e contribui para uma motivação
integrativa e não apenas instrumental (GARDNER; LAMBERT,
1972).
Parece que um dos segredos do sucesso na aprendizagem
está em tornar o ambiente da sala de aula o mais agradável
possível, lutando incansavelmente para despertar entre todos,
professor com alunos e alunos com alunos, sentimentos de respeito
e solidariedade, não de maneira tímida mas com força e
Língua Estrangeira 159

determinação. Até as empresas já descobriram que estamos


entrando numa economia que não está mais baseada em riquezas
naturais, e nem mesmo apenas no conhecimento, mas na emoção,
e elegem como prioridade a gentileza com que deve ser tratado o
cliente.
A emoção de aprender uma língua nova e conhecer a cultura
de um povo não deve, portanto, ser prejudicada por
doutrinamentos ideológicos mal conduzidos. Gostaria, neste
sentido, de contrapor as palavras de Albert Camus: “Odeio, logo
existo” com as palavras de Edgar Morin:

Civilizar e solidarizar a Terra, transformar a espécie


humana em verdadeira humanidade torna-se o objetivo
fundamental e global de toda educação que aspira não
apenas ao progresso, mas a sobrevida da humanidade. A
consciência de nossa humanidade nesta era planetária
deveria conduzir-nos à solidariedade e à comiseração
recíproca, de indivíduo para indivíduo, de todo para todos.
A educação do futuro deverá ensinar a ética da
compreensão planetária (itálico no original) (MORIN,
2001, p. 78).

Local e global

Sobre a questão do local versus global, gostaria de enfocar


o exemplo da língua inglesa. Como vimos no capítulo 4, o inglês
tem a característica única, entre as principais línguas do planeta,
de possuir mais falantes não-nativos do que nativos; de cada três
pessoas no mundo que falam inglês, duas usam a língua como
falantes não-nativos. Isso traz algumas implicações que considero
importantes quando se discute questões como a do genocídio
linguístico (SKUTNABB-KANGAS, 2000), o extermínio das
línguas locais pelas línguas hegemônicas, a associação entre língua
e cultura etc. Defendo aqui a ideia de que a língua local pode e
deve conviver com a língua global. Quando um cientista
brasileiro, por exemplo, usa inglês para consultar a bibliografia
de sua área de pesquisa ou mesmo apresentar um paper em um
160 Vilson J. Leffa

congresso internacional, ele não vai deixar de usar o português


brasileiro; usará as duas línguas, embora, é claro, em situações
diferentes e para objetivos diferentes. É provável que para as
questões de foro íntimo, com seus familiares, usará português;
para o exercício de sua profissão, para divulgar suas pesquisas,
usará inglês. As duas línguas podem conviver harmoniosamente
na mesma pessoa, de maneira complementar, sem causar conflitos.
A ideia também de que cada língua está identificada com
uma cultura pode ser questionada. A associação entre língua e
cultura só é válida para as línguas geograficamente presas a um
país; no momento em que se globaliza, a língua corre até o risco
de perder sua identidade. Quando um cientista brasileiro, com
seu sotaque característico, usa o inglês para comunicar o resultado
de sua pesquisa, ele pode ser prejudicado por não ter a fluência
de um falante nativo e talvez tenha que vencer alguns preconceitos
de seus colegas. O inglês que ele fala, no entanto, provavelmente
refletirá a variação internacional da língua, com traços fonéticos
do inglês brasileiro, além, é claro, do conteúdo lexical de sua
área específica de conhecimento.
Ao se globalizar, o inglês perdeu sua uniformidade e teve
que incorporar a diversidade, não só no seu léxico, com as
inúmeras palavras estrangeiras que emigraram para o seu sistema,
mas também a diversidade fonológica e mesmo sintática. A
diversidade linguística com a existência não apenas do inglês
canadense, australiano, nigeriano ou indiano – mas também do
inglês coreano, japonês ou brasileiro – reflete a diversidade
cultural. O inglês deixa de transmitir uma única cultura para
transmitir várias culturas, produzindo o fenômeno estranho de
uma língua multilíngue e multicultural. Acaba-se usando o inglês
não apenas para a aquisição do conhecimento científico mas
também cultural. Certamente não se chegará ao ponto de cantar
uma ópera italiana em inglês, embora isso já tenha sido feito,
mas muitas outras obras literárias, de valor essencialmente
cultural, e produzidas em lugares pouco conhecidos, só chegam
até nós através do inglês. Ao difundir certos conhecimentos e
culturas até então inacessíveis, o inglês tem globalizado o que
muitas vezes é apenas local.
Língua Estrangeira 161

A convergência do local com o global já existe na prática,


em todos os segmentos da sociedade, desde os mais ricos até os
mais pobres. O exemplo apresentado por Morin (2001) é bastante
convincente neste aspecto. Se os ricos consomem produtos
provenientes de todas as partes do mundo, o mesmo acontece
com os pobres, diferenciando-se, é claro, pela qualidade dos
produtos:

Enquanto o europeu está neste circuito planetário de


conforto, grande número de africanos, asiáticos e sul-
americanos acha-se em circuito planetário de miséria. (...)
Utilizam recipientes de alumínio ou de plástico, bebem
cerveja ou Coca-Cola. Dormem sobre restos recuperados
de espuma de polietileno e usam camisetas com estampas
americanas. Dançam ao som de músicas sincréticas cujos
ritmos tradicionais chegam em orquestrações vindas da
América. Dessa maneira, para o melhor e o pior, cada ser
humano, rico ou pobre, do Sul ou do Norte, do Leste ou
do Oeste, traz em si, sem saber o planeta inteiro. A
mundialização é ao mesmo tempo evidente, subconsciente
e onipresente. (MORIN, 2001, p. 68)

A língua inglesa poderá ter um papel importante não só


levando o conhecimento e a informação do centro para a periferia,
mas também no sentido inverso. Através do inglês, aqueles que
são meros receptores do conhecimento poderão também se
transformar em emissores. Com o advento da internet,
potencialmente transformando cada ouvinte e leitor em
interlocutor, a ênfase na leitura, proposta nos PCNs, talvez deva
ser revisada, para uma ênfase nas quatro habilidades, incluindo a
fala e a escrita. Com a internacionalização da imprensa, passamos
a comprar jornais e revistas de outros países nas bancas de nossas
cidades. Com a televisão via satélite, passamos a telespectadores
do mundo. Com a internet evoluímos de espectadores para
participantes, podendo interagir com pessoas de qualquer parte
do mundo, não só recebendo mas também enviando mensagens.
Para falar ao mundo precisamos de duas condições: a primeira,
162 Vilson J. Leffa

de caráter essencial, é que tenhamos algo a dizer; a segunda,


altamente recomendável, é que saibamos inglês.

Real e virtual

Chegamos finalmente à quarta convergência, que considero


a mais delicada e perigosa de todas: a união do real com o virtual.
Até meados do século XX temos visto a máquina como uma
extensão dos músculos do homem; o automóvel como uma
extensão das pernas, a lavadora de louças como uma extensão
das mãos, o binóculo como uma extensão dos olhos etc. A partir
da segunda metade daquele século, passamos a ver o computador
como uma extensão do cérebro; tínhamos agora uma máquina
com capacidade de memorizar e processar dados, usando regras
e restrições. Já partir de Turing (1950), em seu famoso artigo
“Computing machinery and intelligence”, começou-se a
questionar se as máquinas poderiam ser inteligentes. Em seu
famoso teste para verificar se uma máquina tinha inteligência,
Turing propôs que se colocasse uma pessoa e um computador
atrás de uma parede para serem questionados por alguém através
de um teclado durante cinco minutos. Se esgotado esse prazo, o
arguidor não conseguisse distinguir as respostas dadas pela
máquina daquelas que foram dadas pela pessoa, a máquina poderia
ser considerada inteligente.
Vários prêmios têm sido oferecidos para quem conseguisse
criar um programa de computador que enganasse o arguidor
fazendo-se passar por humano. Desses prêmios, destaca-se o de
Loebner no valor de 100.000 dólares, com concursos realizados
anualmente desde 1990; até hoje sem vencedor.
Como extensão dos músculos, as máquinas superam com
folga a capacidade humana. Nenhum homem jamais terá a força
de um trator, a velocidade de um automóvel e, muito menos, a
capacidade de voar de um avião. Qualquer homem, no entanto,
supera de longe qualquer máquina quando a comparação é feita
em relação à capacidade de usar a língua. A máquina pela sua
capacidade de memória e de processamento pode guardar,
Língua Estrangeira 163

transportar e reproduzir as palavras do ser humano, mas não pode


criar a linguagem; a capacidade de falar ainda é uma característica
exclusivamente humana.
Com a oralidade, sem a escrita, todos os dados eram
guardados na memória viva das pessoas; nas palavras de Levy,
“A morte de um velho é uma biblioteca em chamas” (LÉVY, 1999,
p. 163). O narrador tinha a vantagem de estar sempre presente,
acompanhando a reação do auditório e adaptando sua fala. Com
a invenção da escrita os dados tornaram-se permanentes, e podiam
ser transportados de um lugar para outro, mas tornaram-se
fisicamente incapazes de se adaptarem a cada leitor, que era, assim,
obrigado a se ajustar ao texto. Com o advento da internet estamos
entrando em uma nova alfabetização e em um novo letramento,
com novas exigências para o leitor, feitas a partir do rompimento
de algumas fronteiras. Há novas aproximações entre o domínio
cognitivo e o psicomotor (necessidade de sincronizar os olhos
com as mãos, por exemplo); entre a leitura e a escrita (para ler
uma palavra no dicionário eletrônico é preciso escrever a palavra);
entre o real e o virtual (aspectos da interação real da sala de aula,
por exemplo, são simulados no computador).
A simulação tem sido normalmente apresentada como uma
substituição do real: o jogo de futebol na tela substitui o jogo
real no campo; o computador substitui o parceiro humano no jogo
de xadrez; o ensino a distância substitui o ensino presencial. O
que se vislumbra para o futuro tanto para ensino do inglês como
para a educação em geral não é a substituição do real pela virtual,
mas uma convivência entre os dois. No caso particular da LE,
essa convivência poderá ser maior dada a facilidade com o que
ensino de LEs adapta-se a situações de ensino a distância.
Ao virtualizar a realidade a máquina, no entanto, não tem
condições de substituir o real. O computador é um instrumento
de mediação que facilita, amplia e agiliza a comunicação entre as
pessoas, mas não as substitui. A possibilidade de ampliar a ação
do professor de LE, vai torná-lo mais presente no ensino a
distância, incluindo, por exemplo, a criação de sites pessoais na
rede onde disponibilizará atividades para seus alunos,
complementando o que é visto em sala de aula.
164 Vilson J. Leffa

Conclusão

Vivemos num mundo que está se tornando cada vez mais


interdependente, envolvendo nações e pessoas, objetos e animais,
ideias e sentimentos. Cada vez mais damo-nos conta de que
ninguém tem condições de sobreviver sozinho. Até hoje parece
que ainda não tínhamos percebido o quanto nossa própria
existência depende da existência do outro. Achávamos que se
uma pessoa tentasse se isolar e não sobrevivesse era problema
dela exclusivamente. Hoje sabemos que o problema é nosso
também; se uma pessoa morre, um pouco de nós morre com essa
pessoa.
Foi a partir desse pressuposto que discutimos neste capítulo
algumas convergências que vislumbramos em relação ao futuro
do ensino do inglês como língua estrangeira. Não há como negar
que quando olhamos para o futuro projetamos o presente, ou
mesmo o passado. Podemos fazer projeções mais otimistas ou
mais pessimistas. Neste capítulo ficamos mais para o lado do
otimismo e corremos assumidamente o risco de tentar prever o
futuro não como ele realmente será mas como talvez gostaríamos
que ele fosse. É um viés que assumimos aqui.
Para falar sobre o futuro elegemos a ideia geral de
transformação da realidade em vez de substituição. E vemos para
o futuro a necessidade de conviver com a diversidade generalizada,
marcada pelo princípio da divergência. As ideias e as pessoas
são diferentes, andam por caminhos diferentes, mas podem
convergir para um mesmo objetivo, ainda que vindas de lados
opostos. A convergência corrige as divergências. A consciência
dessa necessidade foi o que nos levou a prever o futuro nesta
direção.
Podemos retomar as quatro convergências discutidas aqui
dentro de uma metáfora geográfica, numa dimensão planetária.
A convergência da pesquisa com o ensino deve reunir não só a
pesquisa com a docência mas também transformar o professor
em pesquisador. No campo específico da língua inglesa, por
exemplo, não se pode pesquisar apenas no hemisfério norte, onde
Língua Estrangeira 165

muitas vezes o inglês é aprendido como segunda língua e tentar


depois aplicar os resultados dessa pesquisa no hemisfério sul,
onde o inglês é normalmente ensinado como língua estrangeira.
A facilidade de acesso à informação e a existência do
conhecimento em rede tornarão viável a transformação do
professor em pesquisador.
Em contraposição a essa convergência norte/sul, podemos
ter também uma convergência leste/oeste, unindo a racionalidade
do ocidente com a sensibilidade do oriente. A própria ideia de
que é preciso prever para prover, a meu ver um dos pilares da
racionalidade, será complementada pela ideia de que é também
necessário cuidar do lado afetivo. A aprendizagem do inglês no
futuro vai evoluir das relações de ódio entre as nações para a
constatação de que somos todos seres humanos habitando o
mesmo planeta.
A convergência do local com o global está na essência do
aprendizado da língua inglesa, que como língua internacional, na
minha percepção, perderá sua identidade nacional, britânica ou
norte-americana, para transmitir as culturas locais ou as diferentes
ciências. Assumo o risco de afirmar que o inglês pode ser
considerado uma língua multi: multinacional e multicultural.
Expressões que já se tornaram comuns como “inglês brasileiro”,
“inglês coreano” etc. confirmam essa multinacionalidade da língua
inglesa.
Finalmente, com a convergência do real com o virtual,
estaremos rompendo não só as fronteiras que separam um país
do outro, mas também as fronteiras que separam as pessoas dos
objetos. Mais uma vez, não se trata de substituir o real pelo virtual,
o professor pela máquina, mas de fazer convergir os dois. Vivemos
numa sociedade cuja existência está sendo ameaçada, justamente
por tentar substituir o real pelo virtual, desde as salas de fliperama
até o uso de drogas que proporcionam o prazer artificial. Seria
um erro, no entanto, banir o virtual; teríamos que começar por
destruir as próprias bibliotecas, considerando a natureza
essencialmente virtual do livro, e em última análise a própria
língua teria que ser destruída, já que no fundo não é a realidade
166 Vilson J. Leffa

mas uma representação dela. O ser humano é virtual; tirando-lhe


a virtualidade, não terá como transmitir o conhecimento, perderá
o dom da fala e deixará de existir como ser humano.
Língua Estrangeira 167

SEGUNDA PARTE

APRENDIZAGEM
168 Vilson J. Leffa
Língua Estrangeira 169

Capítulo 8
A perspectiva do aluno
da escola fundamental9

Introdução

Ensinar uma língua estrangeira envolve o domínio de três


áreas de conhecimento: a língua a ser ensinada, a metodologia
usada para ensiná-la e o aluno a quem ensinamos. A língua é
normalmente a parte que recebe o quinhão maior em qualquer
curso de graduação em Letras; a parte menor fica para a
metodologia, onde podemos incluir não só aspectos do ensino e
aprendizagem da língua, mas também aspectos que envolvem o
aluno – em alguma disciplina de psicologia da aprendizagem e
mais indiretamente através das aulas de prática de ensino. O
aluno como sujeito do processo de aprendizagem da língua
estrangeira é geralmente muito pouco estudado.
Há uma crença muito forte na história do ensino de línguas
de que o aluno recebe cada vez mais atenção a cada nova
metodologia que é proposta. Coisas mais antigas como a instrução
individualizada ou mesmo o teste de aptidão linguística foram
durante algum tempo consideradas maneiras de centralizar a
atenção no aluno. Mais recentemente, as abordagens usadas nos
estudos de aquisição da segunda língua, os pressupostos
subjacentes nas propostas da análise das necessidades dos alunos
e os procedimentos usados em muitas abordagens humanísticas,
incluindo aí a Sugestologia de Lozanov e a Aprendizagem por
Aconselhamento do Padre Curran (ver o Capítulo 1), sugerem
uma pedagogia centrada no aluno. A ênfase no uso da experiência
vivida do aluno, seu conhecimento prévio, as técnicas de

9
Uma versão anterior deste capítulo, em inglês, foi publicada em: LEFFA,
Vilson J. A look at students’ concept of language learning. Trabalhos em
Linguística Aplicada, n. 17, p. 57-75, 1991.
170 Vilson J. Leffa

sensitização, que são maneiras de tentar conscientizar o aluno


para a tarefa que ele tem pela frente (Riley, 1985), são ideias que
se aproximam daquilo que estou abordando aqui.
O problema, a meu ver, é que quando falamos em atividades
centradas no aluno partimos do nosso ponto de vista. Temos um
conceito de língua e de sua aprendizagem e o que fazemos na
preparação de atividades centradas no aluno é manipular as coisas
de modo que o aluno seja levado a adotar o nosso ponto de vista.
O pressuposto aí é de que a conceituação que o aluno tem de
língua e aprendizagem é ingênua e deve ser substituída pelas
nossas ideias, que são mais esclarecidas e teoricamente
fundamentadas.
Um problema sério é que os conceitos que nós professores
temos de língua e aprendizagem são sempre negados com o tempo
e descartados como errôneos. Muito do que acreditávamos ser
correto no passado e foi por isso imposto aos nossos alunos,
acabou sendo contestado, gerando um movimento contrário tão
forte que levou a sua completa rejeição. Repetimos sempre o
conhecido movimento do pêndulo, indo da tese para a antítese,
sem conseguir chegar à síntese. A frustração gerada com a adoção
incondicional de uma metodologia de ensino é sempre mais forte
que o entusiasmo de sua implementação e acabamos indo para o
outro extremo, negando tudo o que foi antes defendido. Entre
estar errado e ser ingênuo, preferimos estar errados, e com isso
afastamo-nos mais do lugar em que se encontra o aluno.
Este capítulo relata uma pesquisa feita para se aproximar
do aluno e descrever o que ele pensa da língua estrangeira antes
de iniciar seu estudo. Há quatro perguntas básicas que se tenta
responder aqui: (1) que conceito o aluno tem da língua que ele
ainda não estudou (variável da língua) ; (2) que percepção ele
tem de um falante da língua estrangeira (variável do falante); (3)
que conhecimento ele tem do que caracteriza a aprendizagem de
uma língua estrangeira (variável da estratégia); (4) que
conhecimento ele tem das possíveis vantagens de falar uma língua
estrangeira (variável do objetivo).
Língua Estrangeira 171

Metodologia

A investigação envolveu um grupo de 33 alunos da quinta


série de uma escola pública da Grande Porto Alegre. Os alunos
eram de um bairro de classe média baixa e nunca tinham estudado
qualquer língua estrangeira.
Os dados foram coletados numa sessão de duas horas na
própria sala de aula dos alunos. A sessão iniciou com uma
atividade de escrita de livre associação em que os alunos foram
solicitados a escrever todas as palavras que pudessem lembrar
depois de ouvir determinadas palavras estímulo. Essas palavras
estímulo foram ‘Xuxa’ e ‘futebol’, sendo dados aos alunos cinco
minutos para cada palavra. A atividade foi apresentada como um
jogo competitivo e aqueles que escreviam o maior número de
palavras recebiam um pequeno prêmio (uma barra de chocolate).
Num segundo momento, os alunos foram solicitados a
escrever dez palavras que vinham a sua mente quando cada uma
das seguintes palavras ou expressões fossem fornecidas: ‘língua
portuguesa’, ‘guerra nas estrelas’ e ‘língua inglesa’. Desta vez
não foi fixado um limite de tempo.
O pressuposto subjacente a esta atividade foi de que as
palavras escritas pelo aluno depois de ouvir ‘inglês’ deveriam
refletir seu conceito de língua estrangeira ou a fala dele.
Considerando que este pressuposto pode ser questionado,
procurou-se na pesquisa incorporar uma medida de validade,
solicitando ao aluno que produzisse palavras a partir de ideias
geradoras que deveriam ser extremamente familiares como o nome
da apresentadora Xuxa e da palavra ‘futebol’. Na medida em
que ocorresse um encaixe entre essas ideias geradoras familiares
e as palavras produzidas pelos alunos, acredita-se que o
procedimento possa ser validado. Considerando, assim, com
relação a Xuxa, que a palavra mais frequente foi ‘bonita’ e que
esse adjetivo, pelo senso comum dos telespectadores, descreve
realmente a apresentadora em questão, conclui-se que é possível
estabelecer uma associação entre o que os alunos escreveram e o
conceito que eles tem das palavras ou expressão geradora.
172 Vilson J. Leffa

Na última parte da sessão, em vez de palavras os alunos


foram solicitados a completar uma história. Receberam quatro
folhas de papel, uma de cada vez. No topo de cada folha havia
um segmento incompleto da história, que foi lido em voz alta. O
primeiro segmento apresentava a contextualização, uma escola
típica, e os personagens, Maria e Bill. Maria era brasileira e Bill
americano; ele acabara de chegar dos Estados Unidos e era incapaz
de dizer uma única palavra em português.
Os sujeitos foram instruídos a continuar a história,
descrevendo Bill, como ele era, tanto na sua aparência externa
(que aspecto tinha, como se vestia etc.), quanto na sua aparência
interna (que tipo de pessoa era, o que pensava etc.). A
preocupação aqui era com a variável falante da língua e o objetivo
era fazer os alunos definir, com suas próprias palavras, que
estereótipos eles tinham, se é que tinham, de um típico jovem
americano.
O segmento seguinte da história, na segunda folha,
acrescentava que Maria tinha decidido aprender inglês. Os
sujeitos foram então solicitados a escrever o que ela tinha que
aprender para se comunicar com Bill. Na terceira folha, o
segmento iniciava que Maria ainda estava tentando aprender inglês
e pediu-se aos sujeitos que escrevessem o que ela fazia quando
não conseguia entender o que Bill dizia ou o que estava escrito
numa revista. O objetivo aqui era avaliar os conceitos em termos
da variável estratégia.
Finalmente, na última folha, o segmento da história
informava que Maria terminara a universidade, tinha uma
profissão e falava inglês muito bem. A tarefa solicitada aos
sujeitos agora era de que descrevessem para que servia o inglês
que Maria tinha aprendido. Buscava-se aqui uma definição para
variável objetivo na aprendizagem de uma língua estrangeira.
Língua Estrangeira 173

Resultados

As palavras e as histórias produzidas pelos 33 alunos foram


então analisadas em termos de frequência de palavras e de
unidades de ideias. As palavras e as ideias foram computadas
para cada uma das variáveis pesquisadas: língua, falante da língua,
estratégias de aprendizagem e objetivo.
Esperava-se que alguns padrões recorrentes surgissem das
respostas dadas pelos alunos. Esses padrões foram pesquisados
para cada uma das variáveis.

A Variável Língua

Para esta variável os sujeitos foram solicitados a escrever


dez palavras que lhe viessem à mente depois de ouvirem a palavra
‘inglês’. Abaixo temos um exemplo das palavras que foram
escritas por um aluno:

Inglês: língua, país, Inglaterra, matéria (disciplina


do currículo), rico, poderoso, sotaque, artistas,
cinema, Disneyworld.

O que interessa saber aqui é que palavras, se houve alguma,


foram repetidas por diferentes alunos. A Tabela 1 mostra as
palavras que foram citadas por mais de quatro alunos.
174 Vilson J. Leffa

Tabela 1 – Palavras citadas cinco ou mais vezes pelos alunos


depois de ouvirem a palavra ‘inglês’

Palavra Frequência

palavral 23
íngua 13
livro 12
lápis 11
caneta 11
pessoas 10
caderno 9
país 8
estudar 7
falar 7
Inglaterra 5
matéria (disciplina) 5
interessante 5
professor 5

Fonte: Autor

O primeiro aspecto que merece ser mencionado é que os


alunos realmente mostraram uma tendência em repetir certas
palavras. O segundo é que as palavras que eles citaram podem
ser agrupadas em diferentes áreas.
A palavra mais frequente foi ‘palavra’. Esta palavra
pertence a um grupo que podemos classificar o léxico próprio da
linguagem. Outras palavras frequentes deste grupo foram ‘língua’,
que foi citada 13 vezes, e o verbo ‘falar’, citado 5 vezes. Não
houve ocorrência de ‘frase’, ‘texto’, ‘parágrafo’, ou mesmo termos
mais comuns como ‘ler’ e ‘escrever’. As palavras ‘compreender’,
‘pronunciar’ e ‘sotaque’ ocorreram uma vez.
Língua Estrangeira 175

Um segundo grupo importante que surgiu deste


levantamento consistiu de palavras relacionadas ao ambiente da
sala de aula. Nesse grupo encontramos as palavras ‘livro’, ‘lápis’,
‘caneta’, ‘caderno’, ‘matéria’, ‘professor’ e ‘estudar’.
O terceiro grupo, mais difícil de determinar, sugere
conceitos relacionados à cultura em seu sentido mais amplo. Os
termos mais frequentes neste grupo foram ‘pessoas’, ‘país’ e
‘Inglaterra’. Outros, mencionados apenas uma vez, foram
‘parlamento’, ‘rainha’, ‘América’, ‘Califórnia’, ‘Disneyworld’,
‘estátua da liberdade’, ‘Nova York’ e ‘baseball’.
O quarto grupo refere-se às atitudes em relação à língua
inglesa (positivas ou negativas). O exemplo mais óbvio é a palavra
‘legal’, citada cinco vezes. Alguns alunos também escreveram
palavras em inglês, o que interpreto como um sinal positivo.
Outras palavras relacionadas foram ‘fácil’, citada duas vezes, e
‘difícil’, citada três vezes.
Uma área em que esperava a produção de muitas palavras,
mas que não aconteceu, foi no que defino como consciência da
língua inglesa na comunidade; ‘cinema’ foi mencionado duas
vezes, mas palavras como ‘ator’, ‘atriz’, ‘cantor’ e ‘televisão’
foram mencionadas apenas uma vez. Muitas marcas registradas,
identificadas pelo seu nome em inglês, não foram mencionadas.

A Variável Falante Nativo

Os dados da variável falante foram coletados da descrição


que os alunos fizeram de Bill. Os alunos foram incentivados a
descrever Bill não apenas pela sua aparência externa, mas também
levando em consideração as possíveis ideias que lhe passavam
pela cabeça. Foram pródigos em oferecer detalhes da aparência
física de Bill, mas não conseguiram encontrar traços psicológicos.
O que segue é um exemplo fornecido por uma aluna (editado
para ocultar alguns erros ortográficos e de pontuação; os nomes
são fictícios, mas o sexo é mantido):
176 Vilson J. Leffa

Bill era alto, moreno, cabelo liso e escuro e olhos grandes.


Ele estava pensando o seguinte: tinha deixado os Estados
Unidos para começar vida nova no Brasil. Queria
trabalhar no teatro, fazer peças para crianças e adultos
(Dóris).

Em termos de traços físicos, apenas duas unidades de ideia


formaram um padrão recursivo. Uma era que Bill tinha olhos
castanhos, repetida por nove alunos. A outra era que Bill era
baixo, repetida por oito alunos. O mais próximo que se chegou
de um possível estereótipo americano foi a descrição de Bill como
caubói.
Muito pouco foi produzido em termos de características
psicológicas. Algumas qualidades foram mencionadas (tímido,
amigo, trabalhador), mas não chegaram a formar um padrão
discernível.

A Variável Estratégia

Para levantar os conceitos de estratégias de aprendizagem


solicitou-se aos alunos que dessem sugestões de como Maria
poderia aprender inglês. Esta foi a parte da pesquisa onde se
obteve o maior número de dados. Exemplo de uma resposta dada
por um aluno:

Maria não conseguia compreender a revista que tinha


pedido emprestada de Bill. Aí ele pegou um super
dicionário, que tinha todas as palavras, mas mesmo assim
tinha dificuldade com algumas palavras. Ela não era muito
inteligente e não conseguia decorar as palavras apesar da
ajuda de seu pai. Mas Bill, que falava inglês muito bem,
fez Maria repetir cada palavra 20 vezes, 30 vezes. Então
ela começou a aprender (Daniel).

A Tabela 2 mostra as coisas mais frequentes que, de acordo


com os alunos, Maria tinha que fazer para aprender inglês. As
unidades de ideia mais citadas sugeriam que Maria deveria estudar,
Língua Estrangeira 177

geralmente intensificadas por advérbios como ‘bastante’, ‘muito’


e ‘sempre’.

Tabela 2 – Unidades de ideia mais frequentes listadas


pelos alunos em relação a estratégias de aprendizagem.

Estratégia Frequência

Estudar 19
Frequentar um curso de línguas 10
Usar um livro 8
Usar um dicionário 6
Usar gestos 6
Falar com os amigos em inglês 5
Conseguir um professor 5

Fonte: Autor

Variável Objetivo

Na última parte da história os alunos foram solicitados a


descrever que utilidade o conhecimento da língua inglesa traria
para Maria, depois que ela terminasse a faculdade. Eis uma
resposta fornecida por um aluno:

O inglês vai ser muito útil para Maria. Ela vai conseguir
estudar em outros países, falar com Bill, viajar para muitos
lugares, tirar muitos cursos, falar com todo mundo que
sabe inglês e lecionar inglês (Cláudia).

A unidade de ideia mais frequente foi que Maria podia ser


uma professora de inglês, repetida por dez alunos. Nove
mencionaram que poderia viajar e seis disseram que inglês seria
útil nos seus estudos na faculdade. Três mencionaram que Maria
178 Vilson J. Leffa

podia ler em inglês. Um, apenas, citou que o inglês poderia ajudá-
la a conseguir um emprego.

Conclusão

A primeira conclusão que a pesquisa sugere é que os alunos


têm a tendência de ver a língua como um conjunto de palavras.
Aprender uma língua é aprender novas palavras, uma ideia que é
repetida constantemente pelos alunos, incluindo decorar listas de
palavras, usar o dicionário ou alguma outra estratégia semelhante:

Um dia Maria teve uma idéia brilhante: foi ao centro e


comprou um monte de cartões. Quando chegou em casa,
colou os cartões na parede com as palavras em inglês e
sua tradução. Assim ela aprendeu a falar inglês (Walter).

Os alunos não faziam distinção entre ler em português e


ler em inglês. Em primeiro lugar, pareciam não possuir o que
poderíamos definir como consciência fonológica da língua
estrangeira, no sentido de que em inglês encontrariam sons
inexistentes em português. Em segundo lugar, pareciam também
ignorar que em inglês temos relações grafema-som diferentes das
que existem em português. Todos os exemplos sugerem que
aplicando as regras grafo-fonológicas do português pode-se ler
(e pronunciar corretamente) qualquer palavra em inglês. Embora
os alunos tivessem a tendência de definir o conhecimento de uma
língua como a capacidade de ‘falar’ a língua, ninguém, por
exemplo, mencionou o gravador como um recurso para sua
aprendizagem. Para eles o dicionário possibilita não apenas
traduzir de uma língua para outra, seguindo o método de palavra
por palavra, mas também serve para ensinar a falar. Não há,
portanto, consciência nem dos aspectos fonológicos nem
sintáticos. Aprender uma língua estrangeira é aprender seu léxico,
sobrepondo-se às letras os mesmos sons que temos na língua
portuguesa, ou seja, ler com as mesmas regras grafo-fonológicas
e finalmente dar às palavras o mesmo lugar na frase que elas
Língua Estrangeira 179

ocupam em português. A língua estrangeira é vista como uma


paráfrase da língua portuguesa; aprender uma outra língua é
aprender sinônimos para as coisas que já são conhecidas.
A segunda conclusão é que os alunos viam a língua inglesa
principalmente como uma matéria do currículo. O inglês estava
associado ao ambiente da sala de aula, juntamente com as palavras
que repetiram com mais frequência tais como ‘livro’, ‘caneta’,
‘lápis’, ‘caderno’, ‘professor’ etc. Na maneira de ver dos alunos,
aprendemos uma língua estrangeira da mesma maneira que
aprendemos as outras disciplinas do currículo, lendo dos livros,
fazendo anotações, copiando palavras e estudando muito, às vezes
sozinhos. Três alunos, por exemplo, escreveram que Maria só
conseguiu aprender inglês depois que ela se fechou no seu quarto
por várias tardes. Mesmo em termos de objetivos, a principal
razão citada para aprender inglês estava relacionada ao ambiente
escolar, isto é, tornar-se professor de inglês. O uso autêntico da
língua foi visto como algo muito distante de sua experiência
imediata de aluno, viável apenas para a pessoas que tinham a
oportunidade de viajar para o exterior.
Os alunos parecem ter feito uma distinção entre o que eles
aprendem e o inglês que a personagem da história aprenderia. O
inglês que eles aprendem é para a escola apenas; será útil para
eles se um dia voltarem como professores. O uso autêntico da
língua estrangeira é reservado para os personagens, que terão a
oportunidade de usá-la no contexto adequado.

Maria teve que aprender a falar, dançar, dizer os números


(...). Precisava conhecer o país, as pessoas, o governo.
Enfim, ela teve que aprender como era a vida em inglês
(Karen).

O conceito da língua como paráfrase provavelmente mudará


tão logo os alunos iniciarem o estudo da língua inglesa. A partir
das primeiras aulas provavelmente vão se dar conta de que as
regras grafo-fonológicas do português não podem ser aplicadas
ao inglês e que a ordem das palavras muitas vezes é diferente. A
180 Vilson J. Leffa

descoberta de que a língua inglesa tem fonemas que não existem


em português poderá demorar um pouco mais e pode ter uma
relevância maior ou menor para o aluno, dependendo de como o
aluno vai usar a língua.
O conceito de inglês como matéria do currículo, a meu
ver, tem implicações mais sérias, porque pode permanecer
inalterado à medida que os alunos passam pela escola. Talvez
seja fundamental que os professores de inglês, ou de qualquer
outra língua estrangeira, despertem nos seus alunos a consciência
de que a língua estrangeira é na verdade usada por muitas pessoas
no seu dia a dia, além dos professores de inglês.
Língua Estrangeira 181

Capítulo 9
A perspectiva do aluno universitário10

Introdução

O objetivo deste capítulo é relatar uma pesquisa que foi


conduzida para investigar quais eram os conceitos que alunos
proficientes de língua estrangeira, em nível universitário, tinham
sobre o ensino e a aprendizagem da L2. A ênfase estará no ensino
da língua instrumental, no caso, a língua inglesa, com
concentração na área da leitura. Espera-se que os resultados
possam ter implicações também para outras línguas e mesmo para
outras habilidades, além da leitura.
Os procedimentos usados no ensino instrumental da língua
estrangeira estão baseados em determinados pressupostos sobre
a teoria da leitura e de como ela deve ser implementada na sala
de aula. Alguns exemplos tradicionais desses pressupostos, entre
outros, são de que os leitores devem contribuir com seu
conhecimento de mundo para a construção do sentido do texto;
de que os leitores não precisam processar toda a informação
disponível no texto para chegar ao significado; e de que a
deficiência na língua pode ser compensada por outras fontes de
conhecimento. Em termos de aprendizagem, certas estratégias
de tratamento do texto são selecionadas e ensinadas aos alunos.
Exemplos típicos dessas estratégias incluem, entre outros, como
usar as informações tipográficas do texto impresso, como fazer
previsões a partir do título, como usar as ilustrações – além de
outros procedimentos mais abstratos como ler em busca do
significado, reconhecer pistas retóricas e inferir o significado das
10
Uma versão anterior deste capítulo, em inglês, foi publicada em: LEFFA,
Vilson J. Students As Esp Teachers; An Investigation Of Successful Students’
Assumptions On Reading And Methodology. In: LEFFA, Vilson J. (Org.).
Autonomy in language learning. Porto Alegre: UFRGS, 1994, p. 265-272.
182 Vilson J. Leffa

palavras desconhecidas.
Embora essas estratégias possam ser consideradas como
parte de um procedimento padrão nas aulas de língua instrumental,
elas não raro têm recebido algumas críticas, não só de alunos dos
cursos instrumentais como até de professores, que às vezes vindos
de outros áreas de ensino da L2 sentem um certo estranhamento
quando são aconselhados a adotar essas estratégias. Alguns
professores, por exemplo, ficam relutantes diante da ideia de que
deveriam incentivar seus alunos a ir adiante na leitura quando
encontram uma palavra desconhecida, principalmente quando isso
significa contornar o processamento sintático da frase. Parecem
acreditar que os níveis superiores da leitura, semânticos ou
discursivos, só podem ser alcançados se os níveis inferiores forem
devidamente cuidados. A compreensão do texto é vista como a
culminância de um processo longo e árduo de aprendizagem da
língua, onde não há lugar para qualquer atalho.
Leitores menos proficientes da L2, por outro lado, também
parecem frustrar-se quando são aconselhados a olhar além das
palavras desconhecidas para encontrar o significado do texto.
Veem no léxico desconhecido não apenas um alerta de sua
ignorância, mas também uma fonte potencial de confusão e
insegurança, uma armadilha feita para traí-los de todas as maneiras
possíveis. A orientação de que os leitores de L2 devem adivinhar
o sentido das palavras pelo contexto pode soar como um insulto
para eles, principalmente para aqueles que não fazem outra coisa
quando forçados a ler um texto em língua estrangeira. Sentem
que têm o direito de receber algo mais útil nas aulas de língua
instrumental.
Considerando os procedimentos tradicionais para o ensino
instrumental da língua estrangeira, parece termos um
conhecimento razoável das percepções daqueles que defendem e
daqueles que criticam esses procedimentos, tanto de professores
como de alunos não proficientes. Esse conhecimento vem não só
através da produção científica da área, formalmente reconhecida,
mas também de depoimentos informais de colegas e alunos,
ouvidos na sala de aula e nos corredores. Pouco se sabe, no
Língua Estrangeira 183

entanto, da percepção daqueles que mais podem contribuir para


uma avaliação dos procedimentos tradicionalmente usados: os
alunos bem sucedidos no estudo instrumental da L2. É o que se
propõe fazer neste capítulo.

O estudo realizado

O que se tem investigado sobre a percepção que os alunos


têm da metodologia de ensino instrumental (ex.: CELANI et al.,
1988) geralmente enfoca as reações dos alunos a um determinado
curso de língua instrumental, usando dados que são coletados
depois que os alunos passaram pelo curso. A pesquisa relatada
aqui adota uma abordagem diferente: usa como sujeitos alunos
que são leitores proficientes da L2, mas que nunca assistiram a
um curso de língua instrumental.
A hipótese é de que, como são leitores proficientes, sua
percepção da compreensão leitora, e mesmo do ensino da leitura,
deveria ser semelhante ao que é considerado certo quando se trata
do ensino instrumental da língua estrangeira. Parto aqui da
premissa de que muitos dos procedimentos usados em língua
instrumental estão baseados em pressupostos que ainda não foram
adequadamente testados. Se esses alunos, que não estão
familiarizados com a terminologia do ensino instrumental,
reproduzirem aspectos que concordem com esses pressupostos,
isso certamente validaria alguns dos procedimentos usados no
ensino da língua instrumental. Por outro lado, se não houver o
acordo, os procedimentos talvez precisem de uma revisão – e as
críticas contra o que é feito no instrumental talvez tivessem
fundamento. Os sujeitos foram 22 alunos universitários do curso
de Inglês para Computação. Eles foram selecionados de um grupo
original de 68 alunos através de um teste de compreensão em
leitura e classificados em 2 subgrupos separados: (1) o grupo de
leitores proficientes com um escore de acertos superior a 90%, e
(2) o grupo dos não-proficientes, reunindo os leitores com escore
abaixo de 40%.
184 Vilson J. Leffa

Os alunos do grupo proficiente tinham uma experiência


considerável na língua estrangeira, ou por terem feito cursos
específicos em escolas de língua inglesa, ou por já lerem com
frequência revistas em sua área de interesse; dois deles já tinham
morado em países de fala inglesa. Os alunos do grupo não
proficiente via de regra justificavam sua falta de competência na
língua pelo fato de não terem tido um bom curso de inglês na
escola ou por não terem condições de frequentar um curso
particular de línguas.
O teste de compreensão de leitura, usado para classificar
os sujeitos, tinha quatro tipos diferentes de compreensão,
classificadas como: (1) varredura (scanning) (exemplo: Que idade
tinha Penrose quando o artigo foi publicado?); (2) skimming (ideia
principal) (exemplo: Que parágrafo descreve a limitação do
computador às regras?); (3) leitura detalhada (exemplo: Por que
as críticas do físico irritaram os pesquisadores da inteligência
artificial?); (4) leitura crítica (exemplo: O que o artigo está
tentando provar?).
Os resultados do teste de compreensão em leitura
mostraram uma variação muito grande nos escores, sugerindo que
enquanto os melhores alunos, em termos de proficiência em
leitura, poderiam ser comparados aos falantes nativos, os alunos
mais fracos ficavam bem abaixo do nível intermediário.

Procedimentos

Os onze leitores mais proficientes foram alinhados com os


onze menos proficientes, formando onze duplas. A tarefa para os
leitores menos proficientes foi selecionar um artigo publicado
numa revista em língua estrangeira e fazer uma resenha crítica
do artigo em língua portuguesa. O aluno proficiente de cada dupla
deveria agir como orientador, ajudando o outro aluno, o
orientando, a selecionar o artigo e resolver problemas de
compreensão.
A principal tarefa do aluno orientador foi escrever um
diário, que deveria ser o mais completo possível, descrevendo
Língua Estrangeira 185

tudo o que aconteceu em cada encontro com o aluno orientando.


Deveria incluir um relato detalhado de como a revista foi
examinada, porque alguns artigos foram rejeitados e que critérios
foram usados para a escolha final do artigo.
Em relação às dificuldades encontradas pelo orientando
ao tentar ler e compreender o artigo selecionado, o aluno
orientador deveria: (1) fazer um inventário completo dessas
dificuldades, (2) especificar sua natureza (léxico, estrutura
sintática, tópico etc.), (3) descrever o processo usado na tentativa
de resolver cada atividade, dando o maior número possível de
detalhes.
Foi esclarecido a cada aluno que suas tarefas – tanto a
resenha escrita pelo orientando quanto o diário escrito pelo
orientador – seriam avaliadas individualmente. Foi negociado com
os alunos orientadores que o principal critério para o diário seria
a completude; os diários que fornecessem mais detalhes
receberiam notas mais altas. Os alunos foram também informados
de que os diários escritos por eles seriam usados como dados
para um projeto de pesquisa e concordaram em produzir pelo
menos dez páginas de texto para cada diário, o equivalente a 3.000
palavras.
Os 11 diários escritos pelos alunos orientadores (8 alunos
e 3 alunas) somaram 115 páginas de texto em espaço duplo (34.470
palavras). Apesar do compromisso assumido por todos de escrever
pelo menos 10 páginas, dois alunos tiveram uma produção menor
(um com 7 páginas e outro com apenas 3). O aluno que mais
escreveu produziu um diário de 17 páginas.

Resultados

O objetivo ao se analisar os diários foi tentar encontrar nos


textos como os alunos orientadores ajudaram os orientandos. O
exame dos dados mostrou que a ajuda ocorreu em dois momentos.
Inicialmente tanto o aluno orientador como o orientando ficaram
envolvidos com a seleção do artigo, que, embora fizesse parte de
uma fase preliminar, tomou muito mais tempo do que o esperado,
186 Vilson J. Leffa

incluindo visitas à biblioteca, pesquisa em diferentes publicações,


até chegar a uma decisão final. No segundo momento,
concentraram-se no texto selecionado, tentando resolver os
problemas de compreensão que surgiram a partir dele.
A seleção do artigo mostrou-se bem mais difícil do que se
esperava. Os dados dos diários mostram que as onze duplas
inspecionaram mais de 200 artigos. Um inventário dos motivos
da rejeição mostrou que os principais foram extensão muito longa,
falta de interesse no tópico, dificuldade linguística, falta de
conhecimento do tópico e uso de jargão técnico. O tamanho parece
ter assustado pela necessidade de uma leitura detalhada do texto,
o que provavelmente demandaria mais tempo do que tinham
planejado para a tarefa. A dificuldade linguística foi sentida como
um problema lexical (“Muitas palavras não eram nem encontradas
no dicionário”) e sintático (“As frases eram muito complexas”).
Os critérios que mais pesaram na escolha final do artigo
foram: (1) interesse do leitor no tópico (“Queríamos saber como
o equipamento funcionava”, “Escolhi o artigo sobre scanners
porque queria comprar um”); e (2) uso de linguagem acessível
pelo autor (“O vocabulário era fácil”, “Havia poucas expressões
idiomáticas”). Alguns alunos também consideraram a
apresentação gráfica do texto (“O artigo tinha gráficos e figuras
que ajudavam na compreensão”). Os alunos inspecionaram
diferentes fontes, incluindo livros didáticos, periódicos
acadêmicos e revistas de popularização da ciência. Os livros
didáticos foram todos rejeitados sob a alegação de que eram muito
longos ou desatualizados. Os periódicos acadêmicos foram
considerados muito técnicos, apresentando artigos sobre tópicos
com os quais os alunos não estavam familiarizados. Os onze
artigos finalmente selecionados foram retirados de revistas de
popularização da ciência, com uma única exceção (Datamation);
todos as outras revistas eram facilmente encontradas nas grandes
bancas de revistas. A favorita foi Byte Magazine, com oito
escolhas. Uma dupla escolheu Time Magazine, que embora sendo
uma publicação semanal de notícias gerais, trazia no exemplar
escolhido uma reportagem sobre computadores. Uma dupla
Língua Estrangeira 187

escolheu Amiga Magazine, publicação dedicada aos computadores


da marca Amiga.
Os dados mais importantes dos diários estão no segundo
momento, quando o aluno orientador e o orientando fizeram uma
leitura detalhada do artigo selecionado. Esses dados mostram
que a leitura foi feita de duas perspectivas diferentes. Para o
orientando, os textos apresentavam problemas linguísticos,
principalmente de vocabulário; o que esperavam do orientador
era que ajudasse a esclarecer o significado das palavras
desconhecidas. Os orientadores, por outro lado, quando tentavam
resolver os problemas apresentados pelos orientandos, pareciam
não estar dispostos a se concentrar apenas nos problemas
linguísticos, mas também nas estratégias que deveriam usar para
vencer as dificuldades encontradas no texto. O que segue é um
inventário daquilo que esses orientadores aconselharam aos seus
orientandos, tanto em termos de estratégias de leitura como em
termos de aspectos linguísticos.
Em relação às estratégias de leitura, a sugestão mais
frequente foi de que os orientandos deveriam ignorar as palavras
que eles não conheciam (Todos os nomes são fictícios, mantendo
apenas o sexo do sujeito):

Eu aconselhei que não parasse diante das palavras


desconhecidas, que deixasse elas de lado, tentando usar
aquelas que ele sabia; pois seria muito cansativo e inútil
traduzir todas as palavras do texto, já que ele poderia
entender todo o texto se pegasse as ideias principais
(Vinicius).

Descobrimos que o fato de não conhecer uma palavra num


parágrafo não afeta a compreensão (Anne).

O melhor que se pode fazer é tentar ler o texto e pegar a


ideia sem se preocupar com as palavras na página (Klaus).

A metodologia foi a seguinte: primeiro olhamos o texto


na sua totalidade, sem dicionário ou anotações. Lemos
cada parágrafo rapidamente e discutimos as questões
básicas (Ruth).
188 Vilson J. Leffa

Expliquei para o meu orientando que quando encontramos


uma palavra desconhecida e vemos que ela não é
importante na frase, podemos ignorá-la. Isso ajuda a
entender o texto, porque não há uma interrupção para
procurar a palavra no dicionário, de modo que a leitura
flui naturalmente (Juliano).

Sugeri que ele parasse de procurar as palavras no


dicionário (...) e sempre procurasse ler a frase inteira,
deixando para o fim as dúvidas sobre vocabulário (Roger).

Uma sugestão relacionada a essa de ignorar o léxico


desconhecido foi de que os leitores deveriam usar o contexto para
adivinhar significado das palavras. O uso do contexto poderia
ocorrer em diferentes níveis, desde a informação sintática até o
nível mais elevado do discurso:
Tentei mostrar também que quando não sabemos o
significado de uma palavra podemos adivinhar, achando a palavra
original e depois o significado do prefixo ou sufixo que foi
adicionado (Vinicius).

Deduzimos da frase que “dot” era “ponto” (Ruth).

Adivinhamos que “garner” era “guardar” (Juliano).

Sempre que surgia um problema, tentávamos construir o


significado de uma palavra ou estrutura, lendo adiante ou
relendo o que tinha vindo antes (Gabriel).

O uso do contexto para inferir o significado às vezes


deixava alguns alunos indecisos:

“Coated paper” pode significar “papel grosso” ou “papel


coberto com alguma coisa”. Temos que ver no dicionário
(Ruth).

Usar o contexto é bom mas nem sempre funciona. Quando


uma palavra ou expressão é repetida muitas vezes no texto,
Língua Estrangeira 189

isso é um sinal de que é uma palavra importante; nesse


caso é recomendar procurar o significado exato (Anne).

Em relação ao aspecto linguístico, os alunos orientadores


focalizaram três pontos: formação de palavras, léxico em geral e
sintagmas nominais. Alguns exemplos em termos de formação
de palavras:

Procure ver as partes que compõem a palavra, pois aí


podemos associar a palavra a outras que já conhecemos
(Juliano).

Procurei mostrar o significado das partes de uma palavra


para que ele pudesse chegar ao significado total (...). Os
significados diferentes de “-ing” foi um dos problemas
(Gabriel).

Eu disse para ele que muitas vezes podemos saber o


significado de uma palavra olhando sua terminação como
“_ly”, “ing”, “ment” (Gustavo).

O léxico, que foi considerado o problema mais sério da


perspectiva do aluno orientando, também foi considerado uma
questão importante para o aluno orientador.

A compreensão total do texto dependia quase


exclusivamente do conhecimento do vocabulário (Ruth).

A maior parte das dificuldades estava no vocabulário


(Anne).

Quando não tratado indiretamente através da análise da


palavra ou da inferência pelo contexto, os problemas lexicais
foram abordados de quatro maneiras diferentes: (1) tradução,
(2) uso do dicionário, (3) explicação e (4) exemplificação.
No caso da tradução, a palavra era simplesmente traduzida
pelo aluno orientador. Quando a palavra era procurada no
dicionário, dois critérios foram mencionados: (1) importância (ex.:
190 Vilson J. Leffa

o termo desconhecido era considerado uma palavra chave) e (2)


frequência de ocorrência.
Algumas palavras não eram encontradas no dicionário (ex.:
“superpipeline”); outras eram encontradas mas o significado não
se adequava ao contexto (ex.: “dithering”). Nesses casos,
dependendo da competência do orientador, oferecia-se uma
explicação:

Eu disse para ele que “flatbed” era como no xerox, onde


a folha inteira é escaneada pela máquina (Roger).

Houve também alguns casos de exemplificação em que o


orientador procurava tornar o significado bem expressivo, às vezes
incluindo visualização:

“Tiny holes”: o inseto era tão pequeno que era quase


invisível. Havia um buraco no meio da rua e um cara caiu
dentro. Este buraco era grande, mas no texto são
minúsculos (Ruth).

Os sintagmas nominais foram apresentados como um


problema sério. No inventário apareceram exemplos como:

“Intel’s double-fast CUP’s”


“Tightly-packed light sensors”
“Standard database management system interface”

Alguns orientadores admitiram que foram incapazes de


resolver alguns dos exemplos encontrados:

Esta expressão é uma que eu não sei resolver. Acho que é


preciso muita leitura e conhecimento do assunto. Este
caso está além da minha competência em inglês (Vinicius).

Eu disse para ele que não podia dar uma tradução exata
da expressão mas apenas uma ideia geral (Gustavo).
Língua Estrangeira 191

Outros orientadores, no entanto, procuraram oferecer algum


tipo de ajuda, sugerindo algumas estratégias:

É o contrário do português. Em inglês a palavra principal


vem no fim. Trate o resto como adjetivos ou advérbios
(Roger).

Minha sugestão neste ponto foi mostrar que a regra geral


é considerar a última palavra como um substantivo e o
que vem antes como adjetivos. Para esses adjetivos a
melhor sequência é aquela que faz sentido. É comum
também que uma mesma expressão tenha vários
significados; não se sabe realmente o que o autor queria
dizer quando escreveu (Juliano).

Essas citações refletem o ponto de vista da maioria dos


alunos proficientes, mas é preciso ressaltar que não há
unanimidade aqui. Dos onze alunos orientadores houve pelo
menos um que demonstrou uma visão bastante conservadora da
leitura e se concentrou totalmente no estudo do vocabulário:

À medida que a gente ia trabalhando ficou claro que quase


todas os problemas do meu orientando estavam restritos
ao vocabulário (Cristiano).

O diário de Cristiano era uma longa lista de palavras em


inglês com sua tradução em português. Aparentemente só tentava
inferir o significado quando a palavra não estava no dicionário:

“Clunkier”: Não está no dicionário. Pelo que está no


texto dá para ver que não é uma palavra com significado
positivo. Talvez alguma coisa burocrática, dolorosa,
enfadonha.

Dos onze alunos orientadores, houve um que não forneceu


dados suficientes para análise. Aparentemente não teve tempo
para se encontrar com seu orientando.
192 Vilson J. Leffa

Conclusão

Os onze leitores proficientes deste estudo foram solicitados


a ajudar outros leitores, não proficientes, a selecionar um artigo,
auxiliar na leitura detalhada do texto e escrever um diário sobre a
experiência. O objetivo foi tentar descobrir qual o ponto de vista
que esses leitores tinham da leitura e de seu ensino. Os dados
foram obtidos indiretamente através das entradas que faziam nos
diários.
Há nessa metodologia dois fatores que, a meu ver,
contribuem para a confiabilidade dos resultados. Um é que os
alunos orientadores não foram explicitamente solicitados a ensinar
o outro a ler, como se fosse um curso de leitura; pediu-se apenas
que o ajudassem a entender um determinado e único texto. Não
houve, portanto, qualquer menção de que deveriam desenvolver
habilidades de leitura em geral, que pudessem servir para outros
textos. Não era um professor dando aula para uma turma; era um
aluno sentado ao lado de um colega tentando ajudá-lo.
O outro fator, relacionado ao primeiro, foi que os alunos
também não foram solicitados a expor suas concepções sobre o
que é leitura e como se ensina; pediu-se que escrevessem um
diário da experiência. O que acabou saindo sobre estratégias da
leitura pode ser considerado como produção espontânea, não
diretamente solicitada pelo pesquisador. Se, sem serem
solicitados, optaram por expressar suas opiniões sobre o que
entendem como uma metodologia do ensino da leitura, fornecem
dados que me parecem mais autênticos do que se fossem obtidos
através de um outro instrumento como, por exemplo, um
questionário.
Essas opiniões, genuínas a meu ver, sugerem que os leitores
proficientes percebem a leitura como uma fusão de duas
competências: estratégica e linguística. Em termos de estratégias
de leitura, destacaram a importância da leitura desobstruída,
aquela que flui o mais serenamente possível, sem interrupções
para buscar uma palavra no dicionário, por exemplo. Palavras
desconhecidas devem ser inferidas do contexto ou mesmo
Língua Estrangeira 193

ignoradas se não forem essenciais para o significado. Em termos


de competência linguística os leitores proficientes demonstraram
preferência por uma abordagem diversificada, do léxico à sintaxe,
incluindo, por exemplo, o estudo da formação de palavras e a
estrutura dos sintagmas nominais.
Essas concepções não são muito diferentes do que pode
ser considerado como procedimento padrão no ensino da língua
instrumental da língua estrangeira. Na prática há uma semelhança
muito grande entre o que os leitores proficientes pensam do ensino
da leitura e o que os professores experientes fazem na sala de
aula. Teoricamente, a concepção dos alunos de que os leitores
processam o texto seletivamente não é muito diferente do conceito
de redundância de Goodman (1972) e da hipótese da compensação
de Stanovich (1980) – dois conceitos básicos que subjazem muitas
das práticas no ensino instrumental da língua estrangeira.
A principal conclusão deste estudo, portanto, é de que
aquilo que os professores de língua instrumental fazem na sala
de aula apoia-se não só no referencial teórico que embasa a
disciplina, mas também tem suporte nas crenças dos leitores
proficientes de língua estrangeira. Os resultados obtidos nesta
investigação indicam, de modo até veemente, que se quisermos
questionar o embasamento teórico da língua instrumental, temos
que questionar também as concepções que os leitores proficientes
têm da leitura, o que é uma tarefa mais difícil, considerando que
foi provavelmente por suas concepções que eles tornaram-se
leitores proficientes da língua estrangeira.
O problema, a meu ver, é a ameaça de uma ênfase exclusiva
nas estratégias em detrimento da competência linguística. O
sentido que se constrói de um texto, usando apenas a competência
estratégica, pode ser muito limitado, na medida em que fica apenas
no conhecimento prévio que já tenho do tópico, sem possibilidade
de expandi-lo. Essa dicotomia entre a competência estratégica e
linguística será o tópico do próximo capítulo.
194 Vilson J. Leffa
Língua Estrangeira 195

Capítulo 10
A leitura da outra língua
Uma crítica das estratégias11

Introdução

O ensino da leitura em língua estrangeira tem se debatido,


a meu ver, com um problema crucial, ainda não resolvido pelas
metodologias empregadas até o momento: o que exatamente o
aluno de nível universitário precisa aprender para usar
adequadamente um texto escrito na língua estrangeira?
Dois pontos precisam ser definidos com clareza para
responder a essa pergunta: (1) o que é ler e (2) o que o aluno já
sabe sobre o processo da leitura. Uma definição do ato de ler
deve incluir o papel da língua na leitura, aspectos linguisticamente
específicos e universais da leitura, os diferentes objetivos com
que se pode abordar um texto e a interação do leitor com o texto
para a obtenção do significado. Na avaliação do que um
determinado aluno sabe explícita ou implicitamente sobre o
processo da leitura, incluem-se noções de adequação entre o
suporte de um texto e o texto propriamente dito, conhecimento
de estratégias para a solução de problemas encontrados na leitura
e adequação entre estratégia e o objetivo da leitura.
Existe uma ampla bibliografia sobre a teoria e prática da
leitura em primeira língua, alguma coisa sobre a leitura na segunda
língua e praticamente nada sobre o que o aluno universitário
brasileiro sabe sobre leitura. A opinião geral, a julgar pelos
comentários informalmente expressos em encontros de
professores, é de que o aluno universitário não sabe ler – embora
dados estatísticos sobre a real situação desse aluno em termos de
leitura sejam inexistentes.
11
Uma versão anterior deste capítulo foi publicada em: LEFFA, Vilson J. A
leitura da outra língua. Leitura: Teoria e Prática, Campinas, SP, v. 8, n. 13,
p. 15-24, 1989.
196 Vilson J. Leffa

De um lado temos, portanto, o fenômeno da leitura, que,


se ainda não foi estudado com a profundidade com que desejariam
alguns pesquisadores, pode pelo menos ser explicado e aplicado
através de vários modelos teóricos, de acordo com a preferência
de cada professor. Do outro, temos o aluno universitário brasileiro,
do qual muito se fala mas pouco se sabe. Um perigo desse desnível
de conhecimento é que se pode extrapolar o que se sabe sobre a
teoria da leitura para compensar o que não se sabe sobre o aluno.
O pouco que existe de pesquisa sobre leitura em língua estrangeira
no Brasil, por exemplo, são, via de regra, propostas para a
aplicação de modelos importados da primeira língua – e não
pesquisas para testar a validade dessas propostas no contexto da
língua estrangeira.
O risco maior dessa transposição da primeira para a segunda
língua é que se pode estar tentando ensinar ao aluno o que ela já
sabe, deixando de ensinar o que ele realmente precisa aprender.
O fato de que no contexto da primeira língua o aluno possui o
domínio básico do idioma, enquanto desconhece as habilidades
da leitura – exatamente o contrário do que acontece no contexto
da segunda língua – pode invalidar muitas das premissas
atualmente defendidas sobre o ensino da leitura na segunda língua.

Estratégias de leitura

A maioria dos modelos propostos para o ensino da leitura


em língua estrangeira deriva das teorias de Goodman (1976) e
Smith (1978). A leitura não é um processo ascendente de
decodificação do texto, de mera extração de significados, mas
um processo descendente, onde o leitor não extrai do, mas atribui
ao, texto um significado.
O sucesso da compreensão leitora depende da atividade do
leitor. O bom leitor é aquele que sabe selecionar das inúmeras
atividades possíveis do ato de ler aquela que é mais adequada ao
texto e ao objetivo de uma determinada leitura. Haverá momentos
em que para resolver uma dúvida é aconselhável reler um
determinado segmento do texto e outros em que o correto é
Língua Estrangeira 197

prosseguir na leitura. Segundo BROWN (1980), o leitor eficiente


é aquele que:
1. Determina o objetivo de uma leitura e seleciona as
estratégias adequadas a esse objetivo (se está procurando um
automóvel nos anúncios classificados sabe como correr os olhos
pela página até encontrar o que deseja).
2. Identifica as ideias principais e secundárias de um texto
(sabe quando o autor está resumindo um parágrafo, dando um
exemplo ou acrescentando um detalhe).
3. Distribui a atenção de maneira diferenciada,
concentrando-se mais nos aspectos importantes e menos nos
detalhes.
4. Avalia constantemente a compreensão (“estou
entendendo muito bem isto aqui”, “esta parte não entendi bem”).
5. Interroga-se para avaliar se os objetivos da leitura estão
sendo atingidos (“o que não entendi é importante para o que quero
desta leitura?”).
6. Toma medidas corretivas quando detecta falhas na
compreensão (relê o parágrafo, lê adiante, consulta o dicionário,
faz um esquema).
7. Recupera-se das distrações ocorridas durante a leitura.

O uso dessas estratégias dá ao leitor a capacidade de avaliar


a própria compreensão, fazendo com que a leitura deixe de ser
uma atividade mecânica para se tornar um processo consciente
de construção do significado. O leitor volta-se para si mesmo e,
metacognitivamente vai adquirindo maior consciência do próprio
ato de ler. À medida que vai desenvolvendo essa consciência, o
leitor torna-se mais eficiente aprende a detectar ambiguidades e
incoerências do texto; questiona o que lê; estabelece objetivos
para cada tipo de leitura: avalia o próprio comportamento durante
o ato da leitura; aprende a resolver problemas de compreensão,
selecionando as estratégias adequadas; torna-se eficiente na
adoção de diferentes estilos de leitura para atingir diferentes
objetivos.
198 Vilson J. Leffa

Uma característica comum dos vários modelos propostos


para o ensino da leitura em língua estrangeira é a ênfase nessas
estratégias metacognitivas. A meu ver, podemos encaixar esses
modelos em três paradigmas fundamentais: (1) o paradigma aluno-
não-sabe, (3) o paradigma alguns-alunos-sabem e (3) o paradigma
todos-os-alunos-sabem.
Segundo o paradigma aluno-não-sabe, para aprender a ler
é preciso adquirir estratégias específicas, cujo conhecimento é
de domínio do professor. À medida que o aluno vai frequentando
as aulas, o professor vai aos poucos revelando as estratégias e
treinando os alunos no seu uso.
O paradigma alguns-alunos-sabem apresenta uma
sofisticação maior. Alguns alunos sabem ler, outros não. O que o
professor tem a fazer é identificar as estratégias dos alunos que
sabem e ensiná-las aos que não sabem.
Finalmente, no paradigma todos-os-alunos-sabem, o
professor trabalha no sentido de mostrar ao aluno que o que ele
já sabe deve ser usado para ajudar naquilo que ele ainda não sabe.

Paradigma aluno-não-sabe

O que o aluno não sabe, e que o professor tenta ensiná-lo,


nesse paradigma, é que a leitura é um jogo psicolinguístico de
adivinhação (GOODMAN, 1976). O leitor processa apenas parte
da informação dada pelo texto, explorando a redundância da língua
e seu próprio conhecimento de mundo para preencher os
segmentos não processados e obter assim uma representação
adequada do texto. Pelo suporte do texto (jornal, rótulo), pelo
título, ilustrações e recursos tipográficos o leitor pode prever o
conteúdo de um determinado texto, acionar os esquemas
psicolinguísticos apropriados e ter uma compreensão melhor do
que se desviasse sua atenção para o significado de cada palavra.
A concentração da atenção nos componentes mais elevados da
leitura (uso de inferências, estabelecimento do objetivo de uma
determinada leitura etc. é uma das condições essenciais para
atingir a compreensão).
Língua Estrangeira 199

Segundo Clarice; Silberstein (1977), cabe ao professor


treinar os alunos para descobrir seus próprios objetivos e
estratégias para cada tipo de leitura, dar-lhes prática e incentivo
no uso de um número mínimo de pistas semânticas e sintáticas
para obter o máximo de informação, e incentivá-los para que se
arrisquem, adivinhem e “ignorem os impulsos de estarem sempre
corretos” (p. 135).
Descontando pequenas variações entre livros didáticos e
problemas de especificação de terminologia, é possível classificar
as estratégias de leitura em quatro grandes tipos: (1) rastreamento
(scanning), (2) leitura dos pontos principais (skimming), (3) leitura
detalhada e (4) leitura crítica.
O rastreamento de um texto em busca de uma informação
específica é a estratégia de leitura de mais fácil implementação
pedagógica. Essencialmente consiste em passar os olhos
rapidamente pela página até encontrar a informação desejada.
Segmentos em que tipicamente se faz o rastreamento são
compostos de números e palavras isoladas, em vez de frases e
parágrafos. Entre os exemplos desse tipo estão os dicionários,
listas telefônicas, anúncios classificados, cardápios, programação
de televisão, horário de aviões etc.
A leitura dos pontos principais visa captar numa leitura
rápida a ideia geral de um determinado texto. Usa-se essa
estratégia, por exemplo, quando se deseja apenas descobrir qual
o tópico de um determinado artigo, que posição assume o autor
em relação ao tópico, ou se o texto merece ou não uma leitura
posterior mais atenta. A técnica geralmente envolve a elaboração
de inferências a partir do título, subtítulos, ilustrações, nome do
autor, leitura da primeira frase de cada parágrafo etc.
A leitura detalhada visa, tanto quanto possível, a
compreensão total do texto, incluindo as ideias principais e os
detalhes. É a leitura no sentido mais tradicional do termo, ou
seja, a capacidade de usar as habilidades do ato de ler, incluindo
as pistas grafofonêmicas lexicais, sintáticas e discursivas.
Finalmente, a leitura crítica leva o leitor a tomar uma
posição diante do texto, questionando, entre outras coisas o
200 Vilson J. Leffa

objetivo para o qual o texto foi produzido, o tipo de leitor para


quem foi escrito, o conhecimento prévio pressuposto pelo autor.
Cabe ainda, neste tipo de leitura, o questionamento da validade
das conclusões diante da evidência mostrada pelo autor, o
desenvolvimento da capacidade de discriminar fato de opinião e
o estabelecimento de relações entre o que o autor propõe e a
experiência pessoal do leitor.
O maior problema do ensino da leitura em língua estrangeira
está, a meu ver, na leitura detalhada – justamente a que o aluno
encara como a verdadeira leitura – e que significa pegar um artigo
de uma revista ou o capítulo de um livro e lê-lo do começo ao fim
sem maiores problemas de compreensão. É a leitura independente,
que flui rápida e fácil, sem necessidade de constantes idas ao
dicionário ou outros tipos de interrupção.
Para atingir esse nível de leitura, várias estratégias de
aprendizagem têm sido propostas. Entre as mais comuns, temos
o uso do contexto, análise morfológica da palavra desconhecida,
identificação por semelhança com uma palavra cognata, uso do
conhecimento de mundo, prosseguimento na leitura, ignorando a
palavra desconhecida, uso de pistas gráficas, sintáticas e retóricas
etc.
O uso do contexto para inferir o significado é a estratégia
citada com mais frequência

Inferir o significado de palavras novas usando o contexto


é provavelmente a habilidade mais importante. Os alunos
devem ser conscientizados de que há um grande número
de pistas lingüísticas que podem ser usadas quando se
encontra uma palavra desconhecida. Precisam saber que
normalmente é possível continuar a leitura e obter uma
compreensão geral da palavra. Ao trabalhar com o
contexto, os professores devem conscientizar os alunos
dos parâmetros sintáticos e semânticos. Pode-se enfatizar
a redundância da língua demonstrando os tipos de
contextos que podem fornecer o significado de uma
palavra desconhecida (CLARKE; SILBERSTEIN, 1977,
p. 145).
Língua Estrangeira 201

A meta básica do paradigma aluno-não-sabe é desenvolver


no aluno um repertório variado de estratégias. Sarig (1987) lista
44 estratégias de leitura que o aluno pode usar para tentar a
compreensão do texto.

Paradigma alguns-alunos-sabem

Enquanto que no paradigma anterior parte-se de um


referencial teórico pré-existente, elaborado para explicar o
fenômeno da leitura em termos gerais, geralmente em relação à
língua materna, no paradigma alguns-alunos-sabem, procura-se,
num primeiro momento, descobrir quais as estratégias usadas
pelos bons leitores, para depois, num segundo momento, ensinar
essas mesmas estratégias aos outros alunos.
Após uma série de estudos, Hosenfeld (1977), entrevistando
bons e maus leitores, concluiu, depois de examinar os protocolos
das entrevistas, que há muitas diferenças entre um tipo de leitor e
outro.
O bom leitor:

retém o significado do texto na memória à medida que lê;


lê em segmentos grandes (não palavra por palavra); ignora
as palavras que não são importantes para o significado
total da frase; e tem um autoconceito positivo como leitor
(H0SENFELD, 1977, p. 120).

O mau leitor:

esquece o significado das frases assim que as decifra; lê


em segmentos pequenos; raramente vê uma palavra como
menos importante já que para ele todas as palavras têm
importância igual em termos de sua contribuição para o
sentido da frase, e tem um autoconceito negativo como
leitor (p. 120).

A primeira tarefa do professor, dentro desse paradigma é


identificar as estratégias de leitura usadas pelos alunos. Para isso
202 Vilson J. Leffa

o aluno deve ser instruído em como relatar ao professor a maneira


pela qual atribui significado a um texto. Esse relato deve ser feito,
tanto quanto possível, de modo introspectivo – no decorrer do
próprio ato da leitura. Durante a entrevista, cada aluno é solicitado
a “pensar em voz, alta” à medida que vai lendo, enquanto o
professor anota as estratégias observadas numa ficha. Com base
nos dados da ficha é possível fazer um perfil de cada aluno, que
estratégias são usadas e se de modo satisfatório ou não.
Feito esse levantamento, o professor procura desenvolver
o conceito de estratégias no aluno, demonstrando que há
estratégias que ajudam a compreensão, tomando a leitura mais
rápida e eficiente, outras que dificultam e até impedem a
compreensão e finalmente outras que parecem ajudar mas que
atrapalham a leitura, tornando-a pesada e cansativa.
Parte-se então para a instrução, prática e integração das
estratégias de leitura, iniciando com textos na língua materna do
aluno e promovendo a transferência dessas estratégias para a
leitura da língua estrangeira. A meta é levar o aluno a explorar
com inteligência a redundância do texto. Usando o contexto de
modo adequado, diminui-se o número de consultas ao dicionário,
e a leitura torna-se mais rápida, significativa e interessante.

Paradigma todos-os-alunos-sabem

Ao contrário do aluno que está aprendendo a ler na língua


materna, o aluno que precisa aprender a ler numa segunda língua,
principalmente o aluno universitário, já possui uma grande
experiência de mundo, incluindo a vivência com vários tipos de
textos. A hipótese é de que esse conhecimento pode auxiliá-lo no
que ele ainda não sabe para usar adequadamente o texto da língua
estrangeira.
É o que se conhece na teoria da leitura como hipótese da
compensação. Quando uma determinada fonte de conhecimento
para a obtenção do significado não pode ser ativada, outras fontes
de conhecimento ampliam sua atuação de modo que, por caminhos
alternativos, chega o leitor também ao significado do texto. Onde
Língua Estrangeira 203

faltar, por exemplo, familiaridade com uma determinada palavra,


o leitor pode recorrer ao esquema mental ativado durante a leitura
e deduzir o significado da palavra desconhecida.
A teoria funciona nas duas direções, tanto do geral para o
particular como do particular para o geral. Segundo Stanovich:

Déficit em qualquer fonte de conhecimento resulta numa


dependência maior em outras fontes de conhecimento,
independente de seu nível na hierarquia de processamento.
Assim, de acordo com o modelo compensatório interativo,
o leitor fraco que é deficiente na habilidade de análise de
palavras, pode talvez demonstrar maior emprego dos
fatores contextuais (itálicos no original) (STANOVICH,
1980, p. 63).

Crítica dos paradigmas

No primeiro paradigma – o aluno-não-sabe – parte-se, a


meu ver, de uma abordagem primordialmente quantitativa. O
sucesso na leitura está relacionado à proficiência do leitor no uso
de diversas estratégias. Para aprender a ler na língua estrangeira
o que o aluno precisa é aprender essas estratégias. Quanto mais
estratégias o leitor conhece e aplica, mais eficiente será sua leitura.
O primeiro problema desse paradigma é que o uso de uma
estratégia é, por definição, uma atividade consciente e que
envolve, portanto, a atenção. Quando o leitor, por exemplo,
encontra uma palavra desconhecida e precisa usar o contexto para
adivinhar o significado da palavra ou reduzir a incerteza, a atenção
é desviada e o processo de compreensão da leitura fica
momentaneamente suspenso. A compreensão é mais eficiente
quando não se encontram problemas de compreensão.
Outro problema desse paradigma repousa, a meu ver, numa
incoerência. De um lado pressupõe-se que a leitura seja um
fenômeno universal, facilmente transferível de uma língua para
outra; de outro, propõe-se que o leitor de uma língua, para aprender
a ler em outra, deva ser instruído no uso de estratégias de leitura,
que, fundamentalmente não são diferentes de uma língua para
outra.
204 Vilson J. Leffa

A constatação de que ao ler numa língua estrangeira o leitor


precisa apelar conscientemente a um número maior de estratégias
demonstra, a meu ver, que a solução não está em desenvolver
mais estratégias, mas em criar um outro tipo de conhecimento
que dispense ou, pelo menos, diminua, a necessidade de usar tantas
estratégias. Que tipo de conhecimento é esse, veremos mais
adiante.
O paradigma alguns-alunos-sabem segue uma abordagem
mais qualitativa. O importante não é a quantidade de estratégias
usadas pelo leitor mas a sua qualidade, já que, segundo o
paradigma, há estratégias certas e erradas. O papel do professor é
fazer um levantamento das estratégias certas junto aos bons
leitores e dar condições para que os leitores deficientes as
aprendam.
Entende-se geralmente por estratégia certa aquela que parte
dos níveis superiores da leitura (ex.: uso de inferências). O bom
leitor é aquele que não só capitaliza na redundância da língua
para chegar ao significado mas que também usa seu próprio
conhecimento de mundo para preencher as lacunas do texto.
Pesquisas realizadas sobre o papel dessas estratégias na
leitura em segunda língua têm, no entanto, lançado algumas
dúvidas sobre sua eficácia. Não é fácil estabelecer uma relação
inequívoca entre o uso de estratégias consideradas como certas e
a proficiência em leitura.
Bialystok (1979), após um levantamento das estratégias
de inferência relatadas pelos alunos (uso de ilustrações,
conhecimento prévio do assunto, contexto, palavras cognatas)
descobriu que o maior ou menor grau de inferência usada pelos
leitores não tinha relação com o grau de compreensão da leitura.
Cohen (1986), ao descrever uma série de estudos sobre
estratégias de leitura, realizadas na Universidade Hebraica de
Jerusalém, transcreve o seguinte protocolo de uma leitora,
considerada entre as mais eficientes do grupo:
Língua Estrangeira 205

(Ao encontrar um problema) uso o dicionário e pergunto


aos outros. Nunca pulo uma frase ou uma palavra. Tudo é
importante. Leio sempre palavra por palavra e quase
sempre recomeço a leitura quando não entendo alguma
coisa. Não me canso e não desisto (COHEN, 1986, p.
11).

O que é portanto considerado como uma estratégia errada


– leitura palavra por palavra – é, no caso dessa leitora, uma
estratégia eficaz em termos de compreensão de leitura.
Sobre as limitações do paradigma todos-os-alunos-sabem,
é interessante lembrar, em primeiro lugar, que para Stanovich,
que propõe o modelo interativo da compensação, o acionamento
do mecanismo de compensação caracteriza, não a leitura eficiente,
mas a leitura deficiente. A leitura ideal flui automaticamente sem
necessidade de busca de informações adicionais nos elementos
contextuais ou na experiência prévia do leitor. Para Stanovich é
sempre mais eficiente ler e entender a palavra seguinte do que
elaborar hipóteses sobre seu significado. “A ideia de que uma
maior habilidade em usar a redundância contextual para facilitar
o reconhecimento de palavras também diferencia o bom do mau
leitor pode estar errada” (STANOVICH, 1980, p. 45). O bom
leitor pode ser mais sensível ao contexto, mas depende menos
dele (p. 46).
Uma limitação mais séria da hipótese da compensação é
que ela talvez não funcione como propõe Stanovich. Freebody;
Anderson (1983), em dois experimentos com alunos de sexta série
do primeiro grau, não conseguiram comprovar a hipótese. No
primeiro experimento não detectaram qualquer interação entre
dificuldade de vocabulário e coesão textual. A explicação sugerida
pelos autores é de que a inexistência dessa interação se deveu ao
fato de que apenas o vocabulário afetou a compreensão da leitura;
o grau de coesão do texto, em si, não produziu qualquer efeito.
No segundo experimento, além da dificuldade de
vocabulário, os autores controlaram a ativação de esquemas sobre
o assunto do texto. A ativação de esquemas adequados
(familiaridade) com o tópico influi na compreensão do texto. Não
206 Vilson J. Leffa

houve, no entanto, mais uma vez, qualquer interação entre


familiaridade com o tópico e dificuldade do vocabulário. Segundo
os autores, esses resultados não confirmaram a hipótese de que a
presença de uma fonte de conhecimento pode compensar a falta
de uma outra.

O paradoxo do vocabulário

O domínio consciente de estratégias de leitura não parece


ser, portanto, o conhecimento mais importante para habilitar
alguém a ler numa língua estrangeira. A tese de que o aluno
universitário deve receber instrução maciça em técnicas de leitura
(rastreamento do texto, leitura dos pontos principais, leitura
detalhada, inferenciação a partir do contexto etc.) para compensar
a falta de conhecimento da língua é, no mínimo, questionável.
Duas coisas podem acontecer quando o leitor tenta usar
suas estratégias de leitura numa língua que não conhece. Em
primeiro lugar, usando a terminologia de Clarke (1980), as
estratégias podem entrar em curto-circuito – a falta de competência
linguística impede o leitor de transferir para a segunda língua as
estratégias que aprendeu na primeira.
Em segundo lugar, geralmente quando conhece a língua
um pouco melhor, o leitor consegue aplicar a estratégia, mas
distorce o significado, submetendo o texto aos limites de seu
conhecimento do mundo. Em vez de adequar a estratégia ao texto,
muda o texto para que possa ser usado pela estratégia que aplica.
Um exemplo dessa distorção é apresentado por Laufer; Sim
(1985). Após lerem um texto de Margaret Mead em que a autora
sugere que meninos e meninas devem receber uma educação
diferente, os sujeitos da experiência insistiram, erroneamente, que
a autora defendia a mesma educação para ambos os sexos. A causa
do erro de interpretação só apareceu na entrevista com os alunos,
quando afirmaram que “ninguém hoje em dia ia ter a coragem de
sugerir uma educação diferente para homens e mulheres, muito
menos uma escritora” (LAUFER; SIM, 1985, p. 9).
Língua Estrangeira 207

Esses e outros estudos (LEFFA, 1984;


ATTAPRECHAKUL, 1984) parecem sugerir, à primeira vista,
que o que o aluno precisa mesmo num curso de leitura em língua
estrangeira não é instrução nas técnicas de leitura mas instrução
na língua. Leitura, no sentido comum da palavra, é uma
manifestação da língua não existindo leitura sem processamento
sintático. O próprio Goodman reconhecia isso: “Realmente creio
que o leitor deve passar pela sintaxe para chegar ao significado”
(GOODMAN, 1976-77, p. 579). Mesmo proponentes de
abordagens estratégicas para o ensino da leitura em língua
estrangeira parecem aceitar a prioridade do conhecimento da
língua:

Tentar ensinar alguém a usar as pistas fonêmicas,


morfêmicas, sintáticas, semânticas e discursivas de uma
língua antes que ele saiba quais são, como e quando
ocorrem, e suas variações contextuais, parece fora da
realidade (CLARKE, 1979, p. 139).

Ênfase na língua, porém, esbarra num paradoxo da leitura:


a compreensão do texto está altamente correlacionada com o
conhecimento do vocabulário, mas o ensino do vocabulário não
aumenta a compreensão do texto. Isso foi demonstrado, entre
outros pesquisadores, por Tuinman; Bray (19’74). No pré-teste
da experiência, usando alunos do primeiro grau, mediram seu
nível de compreensão do texto e o conhecimento do vocabulário
difícil encontrado no texto. Depois, usando diferentes exercícios,
treinaram os alunos no domínio das palavras difíceis através de
definições exemplos e até uso de contexto. Finalmente, no pós-
teste, mediram a aprendizagem do vocabulário e a compreensão
do texto. O conhecimento do vocabulário aumentou cerca de 20%,
mas a compreensão do texto permaneceu praticamente a mesma.
208 Vilson J. Leffa

Uma direção a pesquisar

Os resultados das pesquisas realizadas no campo da leitura,


tanto da primeira como da segunda línguas, parecem apontar para
uma constatação bem simples: não é possível ainda especificar o
que o aluno precisa aprender para poder ler na língua estrangeira
– certamente não são listas de palavras desconhecidas (o ensino
da língua para a leitura) e provavelmente não são estratégias a
leitura (o ensino da leitura na língua).
Não é possível ainda – e talvez nem desejável decompor –
o ato da leitura em pequenos elementos, identificar que conteúdos
o aluno já possui e dar a ele instrução específica nos conteúdos
que ele ainda não tem. Por enquanto a receita mais segura para se
aprender a ler é lendo.
A proposição, provavelmente mais fácil de enunciar do que
implementar, implica uma revisão das práticas e conceitos mais
ou menos consagrados no ensino da leitura da língua estrangeira.
Essas práticas, a meu ver, incorrem em mais uma incoerência: a
do texto autêntico. Uma premissa implícita nas técnicas de leitura
usadas no ensino da leitura em língua estrangeira, é de que deve
haver uma adequação entre o texto e o leitor, ou seja, um
determinado texto é sempre produzido tendo em vista um
determinado leitor. No entanto, ao defender que o aluno num curso
de leitura em língua estrangeira deve ser exposto ao texto
autêntico, está se expondo o aluno a um texto que absolutamente
não foi produzido para ele. A ideia amplamente apregoada de que
se deve simplificar a tarefa de leitura e não o texto é, em minha
opinião, um sofisma que tem sido a causa de muitos fracassos de
cursos de leitura em língua estrangeira. A insistência em textos
autênticos, que muitas vezes exigem uma competência linguística
que o aluno não possui, pode impedir que o aluno leia – e não
lendo não aprende a ler.
Os textos simplificados por outro lado, têm se caracterizado
pela insipidez, secura de estilo, de pouco valor comunicativo e
até de inteligibilidade reduzida pela amputação de marcadores
retóricos importantes. A meu ver, o maior problema com os textos
Língua Estrangeira 209

simplificados existentes atualmente é que eles são produzidos


para um mercado internacional, para serem consumidos tanto pelo
aluno de uma escola secundária chinesa como pelo aluno
universitário brasileiro, que em comparação com o aluno chinês,
para citar apenas duas diferenças, fala uma outra língua e lê numa
outra ortografia. É muito difícil produzir um texto que atenda
satisfatoriamente leitores tão distantes e tão diferentes.
Acredito que a solução para propiciar experiência de leitura
a alunos principiantes não está nem em textos simplificados nem
em textos autênticos, mas em textos que poderíamos chamar de
simulados. A característica do texto simulado, e sua vantagem
sobre o texto simplificado, é que, dependendo da primeira e
segunda línguas envolvidas, pode-se produzir textos com as
características essenciais do discurso autêntico. No caso, por
exemplo, do aluno universitário brasileiro, falante da língua
portuguesa, que precisa ler textos em língua inglesa, mesmo com
conhecimento primário dessa língua, é possível preparar textos
simulados altamente inteligíveis para o aluno, sem prejudicar a
coesão que caracteriza o texto verdadeiro.
A passagem pelos textos simulados pode ser rápida e deve
combinar facilidade de texto com facilidade de tarefa de leitura,
em ordem crescente de dificuldade. Quanto à introdução dos textos
autênticos, a ordem de apresentação pode ser a mesma, partindo
da premissa de que, mesmo entre os textos autênticos, existe uma
variação muito grande em termos de dificuldade (há
provavelmente textos autênticos de leitura mais fácil para o aluno
universitário brasileiro do que muitos dos chamados textos
simplificados).

Conclusão

O pouco que sabemos sobre o processo da leitura é ainda


muito controvertido para que possamos usá-lo com confiança num
curso de leitura em outra língua. Muitas das premissas subjacentes
na prática pedagógica não têm respaldo nos achados da pesquisa
a respeito da leitura. O emprego de estratégias de ordem superior
210 Vilson J. Leffa

por parte do leitor, por exemplo (uso do contexto e do


conhecimento prévio), tidas como características da boa leitura
pode ser questionado. A hipótese da compensação, onde a falta
de uma fonte de conhecimento na leitura pode ser compensada
pela extrapolação de um outro conhecimento, também não parece
funcionar como creem alguns teóricos da leitura.
Pouco também se sabe sobre o que o aluno universitário
brasileiro sabe sobre leitura, correndo-se o risco de perder tempo
tentando ensinar o que ele já sabe ou confundindo-o, pressupondo
nele uma competência que não possui.
Combinando o que se desconhece do processo da leitura
em língua estrangeira com o que se desconhece do aluno fica
muito difícil identificar com qualquer grau de precisão o que esse
aluno deve aprender para poder ler um texto na língua estrangeira.
A constatação dessa dupla ignorância, porém, não tira do aluno a
necessidade de aprender. De alguma maneira, o professor terá
que dar ao aluno as condições necessárias para que essa
aprendizagem se realize.
A sugestão dada aqui é de que se gradue o texto e a tarefa,
de modo a dar ao aluno mesmo deficiente em competência
linguística, a experiência da leitura. Não se aprende a ler nem
decorando listas de palavras nem estudando uma taxonomia de
estratégias; aprende-se a ler lendo.
Língua Estrangeira 211

Capítulo 11
Texto autêntico e interdisciplinaridade
em língua instrumental Utopia ou realidade?12

Introdução

O ensino de línguas com objetivos instrumentais (ex.:


Inglês para Medicina, Francês para Informática) enfrenta um
problema de coerência entre a teoria e a prática. Se no nível
teórico prega-se uma convivência mais ou menos íntima entre o
professor de línguas e os conteúdos de outras disciplinas –
incluindo não só a linguística, a psicologia e a pedagogia, mas
até a geografia, a biologia ou qualquer outra disciplina para cuja
compreensão a língua está sendo trabalhada – no nível da prática
de sala de aula, essa convivência é muitas vezes ignorada. O
resultado é a contradição entre princípios fundamentais de
disciplinas teóricas, com as quais convive o professor, e o que é
feito com os alunos, onde os princípios não são aplicados. O
objetivo deste capítulo é mostrar essa contradição entre princípios
e procedimentos, apontar para as dificuldades que o professor de
línguas instrumentais enfrenta e sugerir algumas soluções.

A interdisciplinaridade do professor

O primeiro problema que o professor de línguas


instrumentais precisa resolver é o de estabelecer a fronteira entre
o que pertence ao seu campo de atuação e o que deve ser deixado
de fora. Esse é um problema de qualquer disciplina, mas torna-

12
Uma versão anterior deste capítulo foi publicada em: LEFFA, Vilson J.
Texto autentico e interdisciplinaridade em Língua Instrumental: Utopia ou
realidade? Letras, n. 4, p. 33-40, 1992.
212 Vilson J. Leffa

se crucial no ensino de línguas que, por ser ao mesmo tempo


língua e ensino, já é, de sua própria natureza, interdisciplinar.
Para construir um campo coerente de conhecimento no
ensino de línguas é necessário recorrer a outras disciplinas e, ao
fazer isso, corre-se o risco de incluir tanto a menos como a mais.
Se incluímos a menos, o ensino de línguas, por ser uma ciência
extrinsecamente interdisciplinar, pode ficar escravo de uma
determinada disciplina. Passa a ser considerada uma ciência
parasita, com permissão de viver apenas enquanto a ciência
hospedeira estiver disposta a alimentá-la.
Foi o que aconteceu, por exemplo, quando o ensino de
línguas ignorou as contribuições das ciências do ensino e se ateve
apenas à parte da língua. Ao ficar totalmente dependente da
linguística, o ensino de línguas passou a ser considerado, às vezes
como uma ciência de terceira categoria, outras vezes como uma
área sem identidade própria. Como área sem identidade,
confundia-se com a linguística aplicada. Como ciência de terceira
categoria, o ensino de línguas ficava subordinado à linguística
aplicada, por sua vez subordinada à linguística pura.
Por outro lado, corre-se também o risco de perder a
respeitabilidade quando se recorre a muitas fontes. Os contatos
são muito superficiais e não permitem uma interpenetração
suficientemente profunda para gerar a interdisciplinaridade.
Pontos relevantes das outras ciências deixam de ser
compreendidos e, por isso, aproveitados. Busca-se a
interdisciplinaridade mas fica-se apenas numa espécie de
promiscuidade intelectual.
O ensino de línguas, portanto, precisa não só decidir com
quem deseja interagir mas também que tipo de relação deseja
desenvolver. Há, em princípio, três áreas que interessam aos
professores de línguas e que se relacionam a: (1) o que se ensina;
(2) quem se ensina; (3) onde se ensina. Quanto ao tipo de relação,
espera-se que não seja de superioridade mas de igualdade. Se
por um lado temos a receber, possivelmente em termos de
parâmetros teóricos, por outro lado também temos a contribuir,
talvez com preciosos subsídios para algumas dessas teorias.
Língua Estrangeira 213

Em termos do que se ensina e pressupondo que seja algo


relacionado à língua estrangeira, precisamos de outras áreas que
nos ajudem a responder perguntas como: O que sabemos quando
sabemos uma língua estrangeira? Será algo tão básico como os
sons, as palavras e as regras específicas de uma língua que
combinam essas palavras em frases? Ou será algo tão complexo
como a capacidade de desempenhar papéis adequados nessa
língua? Partindo do que já sabemos da primeira língua, o que
mais precisamos aprender para chegar à segunda? Como
professores de línguas, gostaríamos que houvesse um atalho, de
modo que depois de o aluno ter adquirido uma língua não
precisasse repetir todo o processo para adquirir a segunda.
Em termos de para quem ensinamos, precisamos de
respostas para as seguintes perguntas: Como identificar as
necessidades e expectativas dos aprendizes de línguas? Quais
são as características dos aprendizes bem sucedidos? Que fatores
contribuem mais para a aprendizagem da língua? Como podemos
avaliar e melhorar a qualidade de nossa interação com os alunos?
Até que ponto a aprendizagem depende do conhecimento prévio
do aluno? Como estabelecer contato entre o que temos a oferecer
e o que o aluno tem a contribuir? Qual é o papel do ambiente na
aprendizagem da língua? Como promover a interação entre o
aluno e o ambiente?
Em termos de onde ensinamos, precisamos de informações
imediatas, tais como os objetivos de uma determinada escola ou
curso, a tecnologia disponível, a comunidade onde os alunos
vivem. Precisamos também de informações sobre como nos
adaptarmos às circunstâncias, incluindo maneiras de explorar
materiais de ensino e como ensinar uma língua para diferentes
objetivos.
Podemos, portanto, ver o ensino de línguas como a
incorporação de três objetos de estudo: (1) a língua que ensinamos,
(2) o aluno a quem ensinamos e (3) o ambiente onde ensinamos.
Esses objetos de estudo são abordados por diferentes disciplinas,
cada uma delas descrevendo às vezes o mesmo objeto, mas de
orientações diferentes. Cabe a nós selecionar quais as disciplinas
214 Vilson J. Leffa

que são mais pertinentes aos nossos interesses como professores


de línguas, adquirir uma certa intimidade com os princípios e
conceitos dessas disciplinas e iniciar um processo de comunicação
com elas. Temos dados, descobertas e insights que podem
interessar aos estudiosos dessas disciplinas. Podemos assim nos
enriquecer mutuamente, construindo um conhecimento
verdadeiramente interdisciplinar.

A multidisciplinaridade do aluno

Se o professor de línguas vive num mundo essencialmente


interdisciplinar, o aluno, por sua vez, vive num outro que pode
ser caracterizado como essencialmente multidisciplinar. Esse
aluno, tanto de segundo como de terceiro graus, enfrenta um
currículo dividido em várias disciplinas, muitas vezes
compartimentalizadas, com um maior ou menor grau de
integração.
O que tem acontecido, com uma frequência cada vez maior,
é que o professor de línguas está sendo solicitado a compartilhar
desse mundo multidisciplinar do aluno, incorporando diversas
disciplinas às suas aulas de língua. A justificativa é de que, como
a língua não existe num vácuo, ela pode integrar essas diferentes
áreas de conhecimento, oferecendo aos alunos material de
aprendizagem que não só seja autêntico mas que também esteja
mais próximo de sua realidade. No segundo grau, o professor
pode desenvolver unidades de ensino sobre tópicos como teoria
dos conjuntos, reprodução humana, fusão atômica etc. No terceiro
grau, são os cursos instrumentais totalmente voltados a
determinadas disciplinas.
São óbvias as diferenças entre a interdisciplinaridade do
professor de línguas e a multidisciplinaridade do aluno. Nesse
mundo multidisciplinar, agora compartilhado pelo professor, não
há um ponto de contato entre a área de conhecimento do professor
e a disciplina estudada pelo aluno. Desenvolver a compreensão
do processo da fusão atômica, por exemplo, exige do professor
uma competência que ele normalmente não adquiriu na sua
formação.
Língua Estrangeira 215

Outra diferença está nos enfoques que são dados, de um


lado, ao ensino de línguas como ciência e, do outro, ao conteúdo
desenvolvido na sala de aula. Quando se discute o ensino de
línguas como disciplina, o enfoque é teórico, isto é, parte-se do
ponto de vista do pesquisador. Quando se discute o conteúdo
estudado pelo aluno, o enfoque é essencialmente didático e parte-
se do ponto de vista do aluno. Fusão atômica não só é diferente
da ciência do ensino de línguas, mas também é vista neste contexto
numa perspectiva diferente. Há uma diferença de conteúdo e uma
diferença de critério de classificação.
Isso implica que os professores de língua não só
desconhecem os problemas dessas diferentes áreas de conteúdo
mas também a linguagem em que esses problemas são tratados.
É o que pretendemos demonstrar a seguir.

Texto e discurso

Para entender o problema é necessário esclarecer primeiro


qual o conceito que podemos ter de língua. Vamos oferecer aqui
dois, que definiremos operacionalmente como texto e discurso.
A língua é definida como texto quando implica apenas a
capacidade de identificar uma amostra da língua como uma
amostra da língua, baseando-se na coesão superficial das frases.
Isso significa que quando identifico, por exemplo, como uma
possível frase da língua inglesa, o segmento “Zero-wait machines
are superior to page/interleave memory schemes”, então posso
afirmar que sei inglês. Não sei o que “Zero-wait” significa mas
sei que é parte do sujeito da frase. Baseado também no
conhecimento que tenho do inglês, sei que uma coisa está sendo
comparada a outra. Consigo sobrepor uma estrutura sintática ao
segmento e percebo até a função pragmática da frase. É o que
preciso saber para ser competente na língua. Saber uma língua
neste caso não significa que eu deva relacionar formas a conceitos
que vão além do núcleo comum dessa língua. Muitos falantes
nativos do inglês não sabem o que significa “zero-wait” e nem
por isso deixam de ser considerados competentes na língua.
216 Vilson J. Leffa

A língua é definida como discurso quando implica a


capacidade de desempenhar um papel nessa língua. No exemplo
acima, que envolve uma frase da área da informática, o leitor
deve ser capaz de desempenhar o papel de um especialista em
ciências da computação lendo um periódico de sua área de
conhecimento – o que significa interagir significativamente com
os conceitos e relações que estão sob a superfície do texto. No
exemplo dado, o leitor não só deve ser capaz de conhecer o
significado de “zero-wait” mas também detectar as nuances
negativas da palavra “scheme”, e desse modo perceber a intenção
do autor ao escolher essa palavra em vez de um termo mais neutro
como “design”.
Vamos agora demonstrar como essas duas definições de
língua funcionam numa situação de sala de aula, usando o texto
seguinte, que é uma passagem autêntica de um manual do usuário
da área de informática:

iscntrl:
Syntax: int iscntrl(int c)
iscntrl is a macro that classifies ASCII-coded integer
values by table lookup. It is a predicate returning nonzero
for true and 0 for false. It is defined only when isascii(c)
is true or c is EOF.
You can make this macro available as a function by
undefining (#undef) it.
iscntrl returns nonzero if c is a delete character or ordinary
control character (0x7F or 0x00 to 0x1F ) (Turbo C++,
1990, p. 295).

Usando a primeira definição de língua – que envolve apenas


a capacidade de identificar uma amostra da língua como uma
amostra da língua – vejamos alguns tipos de perguntas que
poderiam ser feitas sobre o texto:

1. Pergunta: O que é iscntrl?


Resposta: É uma macro.
2. Pergunta: O que faz uma macro?
Resposta: Classifica os valores em ASCII.
Língua Estrangeira 217

3. Pergunta: Como faz isso?


Resposta: Consultando uma tabela.

Não preciso realmente entender o texto para perceber que


iscntrl é algo que classifica valores consultando uma tabela. Meu
conhecimento do núcleo comum do inglês me permite fazer isso,
chegando até a operações bastante complexas, como a resposta
dada à pergunta 2.

O problema obviamente é que essas tarefas estão apenas


no nível da frase e não se precisa compreender o texto para
executá-las. O mesmo problema pode também ocorrer no nível
da coesão textual. Posso identificar o trecho como uma definição,
posso inferir que as palavras em itálico sejam palavras chave,
posso relacionar a palavra “macro”, na primeira frase, com a
palavra “predicate”, na segunda, e inferir que macro é uma
subcategoria de predicate – mas nada disso garante que eu
realmente tenha compreendido a passagem.
Grande parte das atividades de leitura propostas nos atuais
cursos de línguas instrumentais podem ser resolvidas neste nível
mais superficial de interação com o texto. O que segue são
exercícios típicos:

1. Tarefa: Liste dois cognatos do texto.


Resposta: macro, predicate.
2. Tarefa: Liste um verbo e um substantivo que
terminem em “s”.
Resposta: classifies (verbo), values (substantivo).
3. Tarefa: O objetivo do texto é
(a) definir algo.
(b) anunciar um produto.
(c) divertir o leitor.
Resposta: Definir algo.
4. Tarefa: Na sua opinião, o texto foi tirado de
(a) uma revista semanal.
(b) um manual do usuário.
(c) um jornal.
Resposta: um manual do usuário.
218 Vilson J. Leffa

Em outras palavras, dissocia-se língua de contexto. A


implicação pedagógica dessa definição é que o professor dê ao
aluno apenas o texto. As conexões entre a forma linguística e os
conceitos ou relações que subjazem a essas formas devem ser
feitas pelo aluno ou simplesmente ignoradas.
Só podemos problematizar o texto se adotarmos a segunda
definição, a do discurso, onde desempenhamos um papel, que
neste caso seria o de um especialista da área de informática. Os
conceitos envolvidos no trecho são agora conhecidos. O
especialista sabe que “macro” e “função” não são argumentos
mas predicados que devolvem valores e entende por que é
importante saber que iscntrl é ao mesmo tempo uma macro e
uma função. Os conceitos pressupostos pelo autor do texto são
do conhecimento do leitor especialista, tais como #undef, que
tipo de caractere fecha um arquivo, a relação entre caracteres de
controle e a tabela ASCII etc.
O texto não foi escrito para que um professor de línguas
instrumentais ensinasse inglês para informática. Foi escrito para
que um especialista em computação resolvesse um problema
específico quando estivesse escrevendo um programa. Quando
usamos um texto como esse em nossas aulas e fazemos as
atividades listadas acima, estamos usando um texto autêntico para
uma finalidade para a qual ele não foi escrito – e podemos levar
os alunos a executar atividades totalmente inautênticas. A não
ser que houvesse, por exemplo, algo errado com o texto, o
especialista da área, no correto desempenho de seu papel, jamais
perguntaria qual teria sido a intenção do autor ou de onde o trecho
teria sido tirado. Perguntas significativas aqui, apenas para
demonstrar exemplos de interação no nível do discurso, poderiam
ser do seguinte tipo:

1. Pergunta: Você está escrevendo um programa onde


o espaço disponível na memória é mais
importante que a velocidade. Baseado na
informação do texto, o que você faria?
Língua Estrangeira 219

Resposta: Definiria iscntrl como uma macro.


2. Pergunta: iscntrl é declarada com dois inteiros.
Qual é a diferença entre os dois?
Resposta: O primeiro é um valor devolvido por
iscntrl. O segundo é um valor aceito.

Seriam, portanto, alguns exemplos de língua no nível do


discurso. As perguntas, que provavelmente não têm sentido para
o professor de línguas, são as que tem sentido para o especialista
da área.
Leitores de áreas específicas e alunos de línguas fazem
perguntas diferentes. Leitores de áreas específicas concentram-
se nos conceitos e nas relações que subjazem ao texto. Estudantes
de línguas preocupam-se com a superfície do texto: cognatos,
formação de palavras, mecanismos de coesão etc.

Conclusão

Parece que o professor de línguas tem três possibilidades


quando incorpora áreas específicas na sua ação pedagógica:

1. Trata a língua como texto, não como discurso. Neste


caso, ignora os conceitos e as relações que subjazem ao texto de
áreas específicas e permanece na superfície, explorando os
mecanismos mais ou menos superficiais da organização do texto.
2. Não usa material autêntico. Usa material didático,
especificamente criado para uso em sala de aula. Vocabulário,
sintaxe e organização textual são controlados para produzir um
texto que pode ou não simular o texto original das áreas de
conteúdo específico.
3. Torna-se um “expert” na área. Aprende os conceitos
importantes da disciplina e problematiza sobre eles para dinamizar
o processo de aprendizagem.

Cada uma dessas opções tem vantagens e desvantagens,


tanto práticas como teóricas, sendo as teóricas muitas vezes
220 Vilson J. Leffa

baseadas em pressupostos importados de outras disciplinas. Cabe


ao professor aqui a tarefa extremamente importante de testar esses
pressupostos na sala de aula. Estará não apenas colhendo dados
para justificar ou não sua opção pedagógica mas também
fornecendo subsídios para outras disciplinas. Perguntas para as
quais procuram-se respostas incluem:

1. Até que ponto o professor de línguas precisa ser


proficiente nas áreas de conteúdo específico para incorporá-las
na sala de aula?
2. Até que ponto, ou em que circunstâncias, pode-se contar
com os alunos para negociar conceitos da área específica?
3. Como os alunos, considerando os diferentes níveis de
proficiência na língua e na área de conteúdo específico, reagiriam
a diferentes tipos de material, incluindo livro didático e textos
autênticos?
4. Qual é a possibilidade de trabalho de equipe no segundo
e terceiro graus, incluindo professores de línguas e de áreas
específicas?
Língua Estrangeira 221

Capítulo 12
O processo de autorrevisão na
produção do texto em LE13

Introdução

O objetivo deste capítulo é analisar a competência do aluno


de língua estrangeira em revisar seu próprio texto, através da
reescrita. Parte-se do pressuposto de que os problemas de
produção textual na língua estrangeira caracterizam-se não tanto
por serem diferentes dos da língua materna mas principalmente
por serem de maior complexidade, devido à falta de domínio
linguístico por parte do aluno. A necessidade de contrabalançar
essa deficiência linguística com um uso mais intensivo de
estratégias compensatórias torna a produção de textos em língua
estrangeira uma espécie de campo de provas onde essas mesmas
estratégias são exigidas e testadas com maior rigor do que na
língua materna. O aluno quando escreve numa língua que conhece
menos tem que revisar mais, esforçar-se mais, superar-se para
vencer mais dificuldades, demonstrando uma variedade maior de
estratégias do que provavelmente faria em sua língua nativa.

A utopia da autorrevisão

A autorrevisão na produção textual do aluno tem sido


geralmente vista como uma utopia, tanto no ensino da língua
materna como no da língua estrangeira. Entre as explicações que
se podem oferecer para essa dificuldade em levar o aluno a revisar
seu próprio texto estão um conceito errôneo de revisão por parte

13
Uma versão anterior, em inglês, deste capítulo foi publicada em: LEFFA,
Vilson J. One Theme And Three Variations: Rewriting a text in a foreign
language. The ESPecialist, v. 16, n. 2, p. 157-182, 1995.
222 Vilson J. Leffa

do aluno, a dificuldade de detectar os problemas do próprio texto


e uma espécie de resistência passiva em modificar o que já foi
escrito.
A maioria dos alunos parece conceber a revisão com um
recurso que é usado apenas quando algo sai errado na tentativa
de escrever e que envolve aspectos superficiais da frase. Revisar
é corrigir, dar um tratamento cosmético ao texto, sem repensar o
que foi escrito, sem necessidade de reescrever o texto
(SOMMERS, 1982). A revisão não é vista pelos alunos como o
centro do processo da escritura, o instrumento pelo qual as ideias
emergem e evoluem e o sentido é construído, mas apenas como a
última leitura que se faz do texto tentando detectar algum erro
superficial de ortografia ou de gramática (LEHR, 1995). Estudos
realizados, tanto com alunos primários e secundários (APPLEBEE
et al., 1986) como universitários (YODER, 1993) mostram que a
revisão é feita principalmente para corrigir problemas superficiais
de ortografia, pontuação e gramática. Raramente os alunos fazem
mudanças globais no texto, reescrevendo partes maiores,
acrescentando ou tirando ideias. No momento em que a revisão
deixa de ser vista como um processo de construção do texto, e
passa a ser vista como um mecanismo de correção de algo que foi
mal construído, a atitude do aluno é negativa e a preocupação é a
de evitá-la.
Existe também o problema de o aluno não conseguir
detectar os erros, quer seja por não percebê-los numa leitura mais
rápida quer por desconhecer o problema, devido a uma
incompetência linguística. Pode ser, portanto, um problema de
falta de atenção ou, principalmente na caso da língua estrangeira,
de falta de conhecimento. Plumb et al. (1994) descobriram que a
incapacidade de detectar o erro (hipótese do déficit de
processamento) é um problema maior do que a capacidade de
saber como resolvê-lo (hipótese do déficit de conhecimento).
Finalmente, existe também a resistência passiva do aluno
em não querer revisar o texto. Vários estudos (COHEN, 1987;
COHEN; CAVALCANTI, 1990; LEKI, 1990) mostraram que os
alunos espontaneamente não reformulam o que já escreveram,
Língua Estrangeira 223

apesar das anotações e sugestões dos professores, que muitas vezes


não são nem lidas pelo aluno.

Estratégias para promover a revisão

Um levantamento dos estudos realizados sobre reescrita


mostra que existem várias propostas para ajudar o aluno a revisar
seu texto. Entre essas propostas destacam-se o feedback do
professor, o uso de instrumentos adequados e os projetos
colaborativos.
O feedback do professor é, de todos os instrumentos, o que
causa menor impacto na produção textual do aluno. Estudos
realizados (ANDRASICK, 1993; FERRIS, 1995; COHEN;
CAVALCANTI, 1990) têm demonstrado que as correções e
comentários do professor no texto do aluno apenas surtem efeito
quando há um retorno do texto do aluno para o professor após o
feedback. Não havendo esse retorno, as correções são geralmente
ignoradas e os alunos, via de regra, vão repetir os mesmos erros
nos textos seguintes. A produção textual neste caso parece que é
vista pelo aluno como um processo em que ele escreve para o
professor, o professor corrige o texto, devolve para o aluno e isso
encerra o ciclo.
O uso de instrumentos adequados, compondo um
agrupamento de recursos controlados pelo próprio aluno, é o
que parece possibilitar o maior grau de autonomia na revisão.
Esses recursos podem estar numa sala de autoacesso, num
laboratório de escrita, ou numa simples “mesa de edição”, à
disposição dos alunos para a produção de seus textos (POWERS,
1995; YOE, 1992). Podem constar de: dicionários de vários tipos,
preferencialmente de aprendizagem, com bastantes exemplos de
uso da língua; gramáticas de cunho prático com os tópicos
organizados de modo a facilitar a consulta do aluno; listas de
falsos cognatos que tendem a ser usados erroneamente por alunos
de uma determinada língua materna; questionários específicos
para a autorrevisão onde se levantam os problemas geralmente
apresentados; lista de itens que devem ser checados pelos alunos;
224 Vilson J. Leffa

estratégias específicas de revisão para cada tipo de texto, cada


parte do texto (frase, parágrafo) e cada tipo de problema
(ortografia, pontuação, concordância, uso de detalhes, abstrato/
concreto etc.). Os exemplos abaixo, extraídos de instruções do
On-Line Writing Lab (1995), dão uma ideia do que pode ser
incluído num roteiro de revisão:

Sou gentil com meu leitor incluindo no meu texto o que


ele precisa saber e só o que ele precisa saber?
Meu texto tem uma tese ou propósito?
Os parágrafos se relacionam com a tese ou propósito?
Cada parágrafo tem um tópico frasal com a idéia central?
Os detalhes de cada parágrafo se relacionam com a idéia
central?
Alguns detalhes devem ser movidos para outro parágrafo?
Há uma frase de conclusão para o parágrafo?
Há transição entre os parágrafos?
O verbo concorda com o sujeito?
A relação pronome/antecedente está correta?
Cada frase contém uma oração independente e apenas
uma?
Há frases muito longas que devem ser separadas?
Há seqüências de frases muito curtas?
Há palavras faltando?
Há palavras repetidas?
(On-Line Writing Lab, 1995)

Os projetos colaborativos (MACDONALD, 1993; IRBY,


95; MENDONÇA; JOHNSON, 1994; GEHRKE, 1993) envolvem
a participação dos outros alunos, que deixam de ser apenas
escritores para ser também leitores. No momento em que o texto
é escrito, lido e revisado tanto pelo aluno escritor como pelo aluno
leitor ele passa a atender também as exigências do leitor,
incorporando suas características. No processo de negociação
que se estabelece entre escritor e leitor, o escritor não escreve
mais só para si mas também para o outro, iniciando a longa
aprendizagem que o pode levar à consciência da necessidade de
cativar o leitor, aperfeiçoando o senso de público. Quando
Língua Estrangeira 225

perceber que o leitor não é cativado apenas pela correção


gramatical do texto, mas principalmente pelo seu conteúdo, ele
poderá sentir a necessidade de considerar as questões globais,
com ênfase na produção de sentido.

O aluno sabe revisar?

O que as investigações realizadas sobre a revisão


demonstram é que os alunos veem a escrita como um processo de
uma única etapa, onde o texto, uma vez escrito no papel, não é
mais alterado. Mesmo com o uso de processadores de texto, onde
fica extremamente fácil introduzir qualquer modificação no texto,
as revisões permanecem escassas (HAWISHER, 1986; KURTH,
1986; DAIUTE, 1986). Se deixados por sua conta, os alunos
espontaneamente não revisam seus textos, quer contando com a
facilidade proporcionada pelo computador, quer com a presença
de outros recursos, como dicionários ou gramáticas. Resultados
melhores foram obtidos com o uso de comentários do professor
no texto do aluno em situações onde há o retorno do texto ao
professor e em projetos colaborativos, onde os alunos escrevem
e leem os textos uns dos outros. Na medida, porém, em que a
revisão é, de certa maneira forçada pela intervenção do professor
ou feita com a ajuda do colega, através de um procedimento
pedagógico, também criado pelo professor, ela deixa de existir
como autorrevisão, na acepção exata do termo.
A questão não respondida, no levantamento que fizemos
dos trabalhos publicados sobre a revisão, é se o aluno sabe ou
não revisar seu próprio texto, se é capaz de fazer a autorrevisão.
Há, na nossa interpretação da bibliografia revisada, uma confusão
entre não fazer e não saber. Sabemos que os alunos
espontaneamente não revisam seus textos, mas não sabemos se
eles realmente não sabem revisar. Não revisar é diferente de não
saber revisar. É possível que esses mesmos alunos, que não
revisam seus textos, saberiam como fazê-lo se estivessem numa
situação em que a autorrevisão fosse de alguma maneira inevitável.
226 Vilson J. Leffa

A pergunta que orientou esta investigação é se os alunos


são capazes de fazer a autorrevisão do texto. Define-se a
autorrevisão aqui não como uma simples leitura para verificar
correção gramatical do que foi escrito, mas como a introdução
de mudanças no texto visando a sua melhoria. Essas mudanças
podem atingir palavras, frases ou parágrafos e ocorrem através
de apagamentos, acréscimos ou deslocamentos. Tratando-se de
um processo de autorrevisão, as mudanças são feitas pelo próprio
aluno sem a ajuda do colega ou do professor.
Os alunos serão ou não capazes de autonomamente revisar
seus textos? Se revisarem, que aspectos irão privilegiar?
Ortografia? Vocabulário? Sintaxe? Estilo? Conteúdo?
A hipótese deste capítulo é que, dadas as condições, o aluno
é capaz de fazer a revisão de seu próprio texto. Essa revisão não
vai afetar questões de correção gramatical (ex.: ortografia,
concordância) mas principalmente as questões de estilo, incluindo
aí mudanças na seleção de vocabulário ¾ substituindo, por
exemplo, palavras de sentido vago por palavras mais precisas ¾
e de construções sintáticas ¾ incorporando, por exemplo, frases
simples num período composto através de mecanismos coesivos.
Essas mudanças não vão portanto tornar o texto mais correto
gramaticalmente mas mais coerente, expressando melhor a relação
entre as ideias. O aluno não vai primeiro escrever errado para
depois escrever certo. A nossa hipótese é de que ele já vai tentar
escrever corretamente na primeira versão, podendo ou não
consegui-lo. O que ele vai procurar melhorar é a expressão de
suas ideias, tornando-as provavelmente mais claras na reescrita.
Para a obtenção dos dados, foram feitas várias tentativas,
inclusive com o uso de processador de texto, tendo-se finalmente
optado pela reescrita com lápis e papel, em três versões e em sala
de aula. Procurou-se garantir a motivação e empenho do aluno,
não só através de uma palestra inicial sobre a importância de sua
contribuição para a pesquisa mas também pela maneira como se
conduziram as sessões, colocando sempre o material à disposição
do aluno e incorporando a atividade no currículo, inclusive para
a avaliação. Apenas não se interveio na autonomia e iniciativa
Língua Estrangeira 227

do aluno, que trabalhou sempre sozinho. A condição dada para a


revisão foi, portanto, principalmente a reescrita do texto. É
provável que o aluno, ao perceber que de qualquer maneira tinha
que reescrever todo o texto em cada sessão, acabasse introduzindo
as mudanças que na sua opinião poderiam melhorá-lo.

Metodologia

Participaram dessa pesquisa 15 alunos de duas turmas do


curso de letras, sendo 6 de uma turma de língua inglesa do segundo
semestre, considerada de nível intermediário, e 9 de uma turma
de sexto semestre, considerada de nível avançado. O critério para
a seleção desses sujeitos foi o fato de terem comparecido a todas
sessões em que se realizou o trabalho. Conforme acordo feito
com a professora de cada turma, o trabalho de todos foi
considerado para a avaliação final de cada aluno, mas apenas os
dados desses 15 alunos, que participaram de todas as tarefas, serão
analisados aqui
Desses 15 alunos, 14 eram do sexo feminino e 1 do sexo
masculino. Eram todos adultos numa faixa etária que variava de
22 a 30 anos, com concentração maior no limite superior de idade,
sendo que 2 já tinham curso superior (enfermagem e licenciatura
em língua portuguesa), 10 faziam bacharelado em tradução, 4
buscavam licenciatura em língua estrangeira e uma aluna fazia
ao mesmo tempo bacharelado e licenciatura.
As sessões de produção escrita foram realizadas durante
três períodos normais de aula em cada uma das turmas. Para os
dois grupos o procedimento foi o mesmo.
Na primeira sessão, explicou-se inicialmente que eles iam
escrever um texto em inglês de aproximadamente uma página e
meia sob o título “Windows 95 and me” expressando sua opinião
pessoal sobre o papel da tecnologia em sua futura profissão como
tradutores ou professores. O texto que eles produzissem, ou parte
dele, teria grande probabilidade de ser selecionado e enviado para
a internet, a rede mundial de computadores, onde poderia ser
lido por pessoas de todo o mundo (um potencial, na época, de 40
228 Vilson J. Leffa

milhões de leitores). O texto seria avaliado pelo pesquisador e


pela professora da turma, levando em consideração originalidade,
organização, correção gramatical e o público a quem se destinava.
Foi salientado que esse público realmente existia e que estava
basicamente interessado não em aspectos técnicos mas em
originalidade de opinião.
Em seguida, foi feito um levantamento das estratégias de
produção escrita dos alunos e de conhecimento prévio do assunto
através de um questionário e de um teste de múltipla escolha
respectivamente. Finalmente solicitou-se que escrevessem a
primeira versão do texto. Para isso cada aluno recebeu um caderno
de 50 folhas, tamanho meio ofício, e uma caneta de cor verde.
Gramáticas e dicionários (monolíngues, bilíngues e de
aprendizagem) foram colocados à disposição dos alunos, ficando
também esclarecido que poderiam consultar qualquer material,
desde que trabalhassem individualmente, e que o pesquisador
estava à disposição para o esclarecimento de qualquer dúvida,
que seria feito também individualmente para não interferir no
trabalho dos outros. Do material trazido pelo pesquisador, apenas
os dicionários bilíngues foram consultados. Os esclarecimentos
solicitados também foram todos de vocabulário (ex.: “como se
diz ‘repercutir’ em inglês?”). Não houve coerção de tempo e os
alunos foram devolvendo os cadernos à medida em que
terminavam os textos.
Na segunda sessão, uma semana depois, os cadernos foram
devolvidos aos alunos, juntamente com uma caneta, desta vez de
cor preta. Foi solicitado aos alunos que relessem o que tinham
escrito na sessão anterior e fizessem o seguinte em relação ao
próprio texto: (1) listar dois aspectos positivos; (2) listar dois
aspectos que poderiam ser melhorados; (3) dividir o texto em
partes e marcar cada uma dessas partes; (4) fazer uma revisão
comentada de cada parágrafo do texto, dizendo se mudaria alguma
coisa, o que mudaria e por que mudaria; (5) reescrever o texto,
mudando o que fosse necessário. Mais uma vez foi enfatizado
que seu texto estava sendo dirigido a um público diversificado
mas que estava principalmente interessado na opinião que eles
Língua Estrangeira 229

poderiam ter do Windows 95, de um modo particular, ou no papel


da tecnologia em sua futura profissão, de um modo geral. Como
na primeira sessão, não houve pressão de tempo e os alunos
devolveram os cadernos à medida que terminavam a reescrita
dos textos.
Para a terceira sessão, após um intervalo de mais uma
semana, foi solicitado aos alunos que reescrevessem mais uma
vez o texto, agora em sua versão final, usando desta vez caneta
de cor azul. Mais uma vez foi lembrado que o texto seria avaliado
em termos do leitor a que era dirigido, originalidade, organização
e correção gramatical, com peso igual para cada uma dessas partes.
O procedimento foi igual às sessões anteriores, com o mesmo
material colocado à disposição dos alunos, e sem pressão de
tempo.

Resultados

O objetivo principal da análise dos dados coletados é tentar


descobrir quais são as crenças que os alunos de letras possuem
sobre o processo da produção escrita. Essas crenças devem
envolver não só as noções que os alunos têm sobre o processo da
escrita, tanto em seus aspectos cognitivos como metacognitivos,
mas também o que realmente fazem quando escrevem.
Considerando que são alunos de nível universitário, num curso
de letras, e, portanto, expostos durante anos ao discurso dos
professores sobre como o texto escrito deve ser produzido, há
sempre a possibilidade de que eles possam dizer o que sabem que
deve ser dito e agir de modo diferente quando realmente
solicitados a escrever. Esta pesquisa procura medir tanto um como
o outro aspecto.

O que os alunos disseram

Vamos analisar primeiramente as noções que os sujeitos


dizem possuir do processo da escrita. Os instrumentos para a
coleta desses dados foram (1) o questionário, aplicado no primeiro
230 Vilson J. Leffa

dia, e (2) os comentários dos alunos, escritos em português sobre


seu texto em inglês, realizados no segundo e terceiro encontros.
O questionário sobre estratégias de produção escrita mostra que
a maioria afirma elaborar seus pensamentos à medida em que
vão escrevendo as palavras na página, não tendo, inclusive, a
frase pronta na mente quando começa a escrevê-la (73%). Isso
parece mostrar que a leitura e releitura do próprio texto serve
para guiar a escrita e a reescrita.
A principal produção escrita dos alunos tem sido a de
trabalhos escolares (80%), aparecendo em segundo lugar cartas
comerciais, o que mostra que alguns alunos já estão no mercado
de trabalho. Quanto aos recursos considerados importantes para
ajudar na escrita, o mais citado foi o dicionário (80%),
provavelmente o bilíngue, pelo que se pode observar nas sessões
de escrita. Quando solicitados a comparar os problemas de
produção textual entre português como língua materna e inglês
como língua estrangeira, os alunos demostraram que em inglês a
preocupação maior é com a gramática (93%), enquanto que em
português predominam questões de estilo (47%). Entre diversas
atividades que se relacionam com a escritura, o tempo gasto em
cada uma, numa situação ideal, seria distribuído da seguinte
maneira: ler previamente sobre o assunto (44%), refletir e se
organizar mentalmente (25%), escrever o texto(23%) e revisar o
texto(8%).
O processo de revisão é visto pela maioria dos alunos como
uma atividade menor, feita quando o texto já está escrito,
constando de uma releitura do texto para verificar sua correção
gramatical (73%) e ocasionalmente ajustar algum aspecto do
mecanismo de coesão (13%).
Quanto aos aspectos considerados mais importantes no
texto, os alunos ficaram divididos entre criatividade (20%),
organização(40%) e correção gramatical (40%). A criatividade,
no entanto, foi considerada mais importante apenas pelos alunos
mais fracos; os mais adiantados elegeram como mais importante
a correção gramatical. Em outras palavras, quanto maior o
adiantamento do aluno maior a preocupação com os aspectos
superficiais do texto (r = .5).
Língua Estrangeira 231

Há uma crença geral de que o professor pode ajudar mais o


aluno em termos de correção gramatical (90%), muito pouco em
organização (10%) e nada em termos de criatividade. Para
aumentar a criatividade e tornar o texto mais interessante, os
alunos citaram como possíveis estratégias: usar a própria
experiência, ter ideias e estilos próprios, ousar na escrita, ter senso
de humor, usar a imaginação e posicionar-se diante do tema. Para
melhorar a organização, a estratégia mais citada foi fazer um
esquema do texto a ser escrito. Para obter correção gramatical,
citou-se com maior frequência o uso do dicionário e da gramática.
Os maiores desafios para quem produz um texto, na opinião dos
sujeitos, é mostrar coisas interessantes para o leitor e passar
segurança no que escreve, dando a impressão de que está bem
informado. O domínio do tema, com capacidade de fornecer
detalhes interessantes, fatos e exemplos, parece ter sido a maior
preocupação dos alunos.

Dados quantitativos

Os 45 textos produzidos pelos 15 alunos nas três versões


foram analisados em termos quantitativos e qualitativos.
Quantitativamente, tentou-se descrever as variações que
ocorreram entre uma versão e outra, ou seja, o que foi
acrescentado, o que foi diminuído e, principalmente, o que foi
modificado internamente, dentro de cada texto. Qualitativamente,
tentou-se não só avaliar até que ponto as modificações
introduzidas contribuíram para melhorar a qualidade do texto,
mas também o que os alunos realmente escreveram sobre o tópico
sugerido, como se organizaram e que ponto de vista adotaram.
Uma análise estatística do texto produzido pelos alunos,
nas três versões, mostra que os sujeitos usam termos comuns da
língua inglesa, com baixa média de letras por palavra (3,9) em
nível que, pelos parâmetros de inteligibilidade (readability test)
de Flesch-Kincaid e Coleman-Liau, corresponde a sexta série do
primeiro grau (Grade Level 6).
232 Vilson J. Leffa

Em termos puramente quantitativos o que variou


significativamente entre uma versão e outra foi a extensão dos
textos, que foram ficando gradativamente maiores. O número de
palavras por frase e de frases por parágrafos permaneceu
constante, como se pode ver na Tabela 1. Uma análise detalhada
dos dados mostrou que a variação ocorria apenas entre sujeitos;
enquanto uns usavam apenas 10 palavras por frase outros
chegavam a 25 palavras em cada frase. Entre uma versão e outra,
no entanto, a tendência era escrever as frases e os parágrafos
sempre do mesmo tamanho, mesmo reescrevendo várias vezes o
mesmo texto e mesmo acrescentando mais frases e mais
parágrafos. Quem começava com frases curtas, terminava com
frases curtas e vice-versa.

Tabela 1 - Dados quantitativos entre versões.

Versão I Versão II Versão III


Média DP Média DP Média DP
Palavras por texto 163 051 190 73 237 69
Palavras por frase 17 03.6 16 3.6 18 4.2
Frases por paragrafo 3.4 02.2 3.1 1.9 3.1 2.0
n = 15
Fonte: Autor

À primeira vista pode parecer que os alunos apenas


acrescentaram mais palavras em cada versão, sem preocupação
de enxugar o texto, eliminando o supérfluo. Comparando, porém,
cada versão frase a frase nota-se que muitas das frases foram
totalmente reescritas, aprimorando a ideia inicial ou mesmo
introduzindo ideias novas, principalmente entre a primeira e a
segunda versão.
As alterações introduzidas pelos sujeitos foram analisadas
em termos de ortografia, vocabulário, sintaxe, pontuação, estilo
e ideias. As maiores alterações entre versões ocorrerem em nível
Língua Estrangeira 233

de estilo e ideias. A Tabela 2 mostra o índice de alteração entre a


primeira e a terceira versão. Enquanto que as alterações
introduzidas por alguns sujeitos ficavam em apenas 10% do texto
(correspondente ao índice 1) outros mudaram 100% (índice 10).
A média 5, correspondente a 50% de alterações em todos os textos,
mostra que a metodologia usada na pesquisa foi eficiente na
provocação de mudanças. Até que ponto essas mudanças
introduziram melhorias no texto é o que veremos a seguir.

Tabela 2 - Alteração entre versões I e III

Média DP Mínimo Máximo

Índice de
alteração 5,0 2,4 1,0 10

n = 15

Fonte: Autor

Dados qualitativos

Em termos qualitativos, um dos aspectos mais salientes do


texto produzido pelos alunos é sua oralidade, confirmando os
dados obtidos no teste de inteligibilidade, com ênfase no uso das
palavras comuns do inglês coloquial. Os alunos escrevem, se
não como falam, pelo menos como foram ensinados a falar, sendo
comuns as contrações (“I’m”, “I’ll”, “don’t”) e construções típicas
da língua oral (“you know”, “I mean”, “as you can see”, “I’m not
sure”, “now I remember”). Até mesmo expletivos usados na
língua falada para marcar transição ou mudança de tópico foram
usados (“well, I...”, “now, I...”). Parece influência do material
didático, com ênfase na comunicação oral, e talvez até das leituras
de obras literárias, muitas delas também calcadas na oralidade.
234 Vilson J. Leffa

Uma análise do conteúdo de todos os parágrafos escritos


mostra que a maioria deles trata de experiências pessoais (42%),
isto é, o aluno preferencialmente aborda o tema -Windows 95
and me - partindo de fatos que aconteceram em suas vidas, com
predomínio do texto narrativo (um namorado que ensinou a usar
o computador, um arquivo que foi impresso na casa de um colega,
um irmão que socorre quando surge um problema). Os demais
parágrafos, analisados globalmente nas três versões e por ordem
decrescente de frequência, foram utilizados pelos alunos para
expressar: conhecimento do tópico (12%), crítica negativa (11%),
fatos gerais (10%), ignorância do tópico (7%), metacomentário
(6%), crítica positiva (4%), definição do tópico (3%), interesse
no tópico (2%), outros (3%). A Tabela 3 mostra exemplos de cada
um desses conteúdos.
A variação do modo de abordar o tema entre uma versão e
outra, nos termos da classificação realizada neste capítulo, foi
quase inexistente. Quem, por exemplo, iniciou o trabalho narrando
fatos de sua experiência pessoal manteve essa perspectiva até o
fim; quem iniciou fazendo uma crítica negativa do tópico
continuou também criticando negativamente. O único modo de
abordagem que variou significativamente foi a manifestação de
conhecimento específico do tópico, já que alguns alunos que nada
sabiam sobre Windows 95, e consequentemente na primeira versão
adotaram uma abordagem evasiva, fizeram leituras entre uma
versão e outra e incorporaram essas leituras dando fatos
específicos. Esses alunos pareciam não se sentir à vontade com
o modo com que foram obrigados a abordar o tema inicialmente
e por isso tomaram a iniciativa de se aprofundar no assunto e
poder mudar a abordagem inicial. Outros alunos, por sua vez,
sentiram-se confortáveis com a abordagem genérica e, mesmo
pouco sabendo sobre o assunto, não viram necessidade de buscar
mais informações. Esses dados sugerem que a maneira de abordar
um tema parece estar sujeita às preferências pessoais, sendo muito
difícil mudar essas preferências.
Língua Estrangeira 235

Pouca mudança também ocorreu em relação aos erros


cometidos, principalmente quando se tratava de erros de
ortografia, vocabulário, sintaxe e pontuação. Qualquer um desses
erros, se cometidos na primeira versão, eram quase que
invariavelmente repetidos nas versões seguintes. Outros erros,
que podemos classificar como de estilo e coerência, foram
corrigidos ou melhorados com maior frequência.
Os erros de ortografia foram os menos frequentes,
certamente porque os alunos puderam consultar dicionários
durante a escrita. Os que surgiram deveram-se provavelmente ao
fato de o aluno achar que sabia escrever corretamente a palavra,
incluindo, neste caso, influência da língua portuguesa (ex.:
eletronic em vez de electronic) ou aplicação de uma regra
inadequada (ex.: lifes em vez de lives).
Os erros de sintaxe foram os mais frequentes, geralmente
permanecendo intactos entre uma versão e outra. Às vezes, no
entanto, o aluno parecia ter consciência do problema e tentava a
correção, mas, via de regra, sem sucesso. Outras vezes acabava
até reescrevendo incorretamente uma frase que estava
originalmente correta. Parece que faltou ao aluno não apenas o
conhecimento declarativo da língua estrangeira mas também o
conhecimento processual de como usar os recursos disponíveis
para resolver os problemas.
236 Vilson J. Leffa

Tabela 3 - Modos de abordagem do tema

Modo Exemplo (sem retoques) Percentual

Experiência pessoal “My ex-boyfriend works 42%


with computers and he tried
to teach me” (Miranda I)

Conhecimento do “Windows 95 was put to 12%


tópico sell in August 95” (Greta II)

Crítica negativa “I’m quite doubtful about 11%


Windows 95’s reliability”
(Nestor III)”

Fatos gerais “New scientific discoveries 10%


make information abound
and technology is in every
sort of appliances”
(Geraldine III)

Ignorância do tópico “Unfortunately I know 7%


nothing about computing”
(Pamela I)

Metacomentário “I never thought I would 6%


have to write about it.
It is really a challenging
task” (Pamela I)

Crítica positiva “I really like the Windows, 4%


and if the new version is better
than the old, it will be a good
thing for me” (Virginia I)

Definição do tópico 3%

Interesse no tópico “The Windows 95 is a program 2%


of computer” (Greta II)

Outros “I would like to learn more 3%


about this topic” (Greta III)

NOTA: O número romano após o nome indica a versão


Fonte: Autor
Língua Estrangeira 237

Essa falta de conhecimento processual parece manifestar-


se mais agudamente nos erros de vocabulário, muitos deles
facilmente resolvidos com uma consulta atenta ao dicionário. A
origem de muitos desses erros parece estar no fato de o aluno
iniciar o enunciado na língua materna, fazendo posteriormente a
transposição para a língua estrangeira ¾ e ignorando nessa
transposição a ambiguidade das palavras, que podem cobrir
acepções diferentes entre uma língua e outra. Essa parece ser a
explicação para um erro como “The throwing of Windows 95”,
em vez de “The launching of Windows 95”. Tanto throwing como
launching correspondem a lançamento em português, mas um
dicionário geralmente dá pistas ao aluno para escolher entre um e
outro termo.
Há também erros de coerência, obrigando o leitor a fazer
grande saltos de inferência para chegar ao sentido pretendido pelo
aluno, como no exemplo abaixo (o número romano após o nome
refere-se à versão)

I didn’t have time to read it because it is very


technical (Celia I)

onde só é possível entender a frase se inferirmos que o


texto técnico é de leitura mais demorada e, por isso, não deu
para lê-lo.
Esse tipo de erro, no entanto, ao contrário dos anteriores,
tem mais possibilidade de ser corrigido entre uma versão e outra.
O sujeito acima, por exemplo, já apresentou para a segunda versão
a seguinte redação, de leitura mais fácil embora ainda com
incorreções gramaticais:

I didn’t read and I don’t think I will because it is a


very technical report(Celia II)

O exemplo abaixo mostra uma frase incoerente na primeira


versão, passando a coerente na segunda e finalmente coerente e
concisa na versão final.
238 Vilson J. Leffa

1. The range of possibilities you have to take


advantages of this multi useful machine is so wide
that many people don’t have access to it (Clara I)
2. The range of possibilities the computer can offer
is so wide that many people can not take everthing
and usually do not know what it is all about (Clara
II)
3. The range of possibilities the computer can offer
is so wide that many people are not able to take
everything (Clara III)

Esse tipo de revisão, que envolve não apenas correção de


incoerências, mas também questões de estilo, foi o que produziu
maiores alterações entre uma versão e outra. Essas alterações
podem envolver troca, supressão e acréscimo de palavras. Os
segmentos abaixo mostram alguns desses mecanismos:

1. someone called Bill Gates (Pauline I)


2. a businessman called Bill Gates(Pauline II)

1. Nowadays everyone is somehow involved in it,


even if without being aware of it (Clara II)
2. Nowadays we are somehow involved in that, even
if we are not aware of it (Clara III)

1. I have heard lately, and the world has too, I guess,


about the computing program called Windows 95
(Nestor I)
2. Lately the world has heard about the computing
program called Windows 95 (Nestor II)

O exemplo abaixo mostra a evolução de um parágrafo que


iniciou na primeira versão com uma frase, agregou novas ideias
na versão II e se reestruturou em termos de sintaxe e léxico na
versão final.
Língua Estrangeira 239

1. Since the end of August a question has been


burning inside me: Should I change to Windows
95? (Emilia I)
2. Windows 95: Should I make a change to it? I
have been thinking about it since the end of
August, and as I do not have answers enough I
am still in doubt. Day after day a new question
appears, and starts burning inside me. (Emilia II)
3. Windows 95: Should I make a change to it? I
have been thinking about it since the software
was made available, at the end of August. This
question seems to be attracting others and nothing
appears to give me the conclusive answer. (Emilia
III)

Nas três versões o parágrafo está sempre expressando uma


dúvida sobre a conveniência ou não de se adotar o novo sistema
operacional. Uma mudança importante entre a primeira e a
segunda versão é o destaque dado ao novo sistema operacional ¾
Windows 95 ¾ que passa para o início, introduzindo o tópico
frasal do parágrafo e deixando para o resto os detalhes dessa
dúvida. Finalmente, na última versão, mantém-se o mesmo tópico
frasal, mas acrescenta-se melhorias na elaboração dos detalhes.
Isso é feito pela escolha de um léxico mais adequado (ex.: “since
the software was made available”) e pela supressão de termos de
proporções exageradas (“burning inside me”).
A média de alterações nos textos em 50% entre a primeira
e a terceira versão mostra que os sujeitos realmente tentaram
mudar seus textos, principalmente em termos de estilo, procurando
frases e locuções mais adequadas para a expressão de seus
pensamentos. A análise dessas alterações mostrou que, de modo
geral, as mudanças introduziram melhorias nos textos, embora,
muitas vezes, a versão final ainda deixasse muito a desejar,
principalmente com os alunos mais fracos.
Houve uma correlação negativa (r = -0,5) entre mudanças
feitas no texto e nível de proficiência, ou seja, quanto menos
240 Vilson J. Leffa

proficiente o aluno mais alterações introduziu no texto. Essa


correlação negativa sugere que os alunos mais fracos tentaram
melhorar seus textos com mais empenho que os alunos mais
adiantados ¾ provavelmente por terem percebido uma distância
maior entre o que tinham produzido e o desejável. Todo esse
esforço, no entanto, nem sempre produziu o efeito desejado.
Parece que, semelhantemente ao que acontece na leitura em língua
estrangeira (CLARKE, 1980), também na escritura, a falta de um
patamar mínimo de proficiência pode provocar um curto circuito
no aluno.

Conclusão

Embora a bibliografia na área sustente que a preocupação


na revisão por parte dos alunos que escrevem seja maior com a
gramática – o que foi confirmado também nesta pesquisa pelo
questionário inicial preenchido pelos sujeitos – este estudo
demonstrou que, na prática, os alunos conseguem trabalhar melhor
com as ideias. Foi na reformulação de suas ideias, dando mais
detalhes sobre o tópico, escolhendo melhor as palavras e
melhorando a coerência, onde eles mais progrediram entre uma
versão e outra. Nos aspectos de gramática, incluindo ortografia,
vocabulário e sintaxe, não houve progresso significativo.
A melhoria na expressão das ideias, ocorrida entre uma
versão e outra, sugere não só que os alunos sabem revisar o que
escrevem mas que são capazes de fazer essa revisão num aspecto
fundamental da escrita, ou seja, na reformulação das próprias
ideias. Isso contradiz estudos anteriores onde se mostram que os
alunos geralmente não fazem a autorrevisão. Faz-se aqui uma
distinção entre não fazer e não saber. Os alunos não fazem a
revisão espontaneamente, mas sabem fazê-la quando criadas as
condições.
Nesta investigação a condição criada foi simplesmente a
obrigação de reescrever o texto. Nestas circunstâncias, os alunos
só não revisaram aquilo que não conheciam, incluindo os aspectos
gramaticais do texto. O que estava dentro dos limites de seu
Língua Estrangeira 241

conhecimento linguístico, do seu mundo conceitual e da sua visão


de texto, foi revisado, incluindo a coerência, um aspecto bem
mais complexo do que a revisão ortográfica ou sintática.
O que faltou foi o uso de instrumentos mais adequados
como dicionário de aluno (learner’s dictionary), gramáticas
práticas com problemas específicos de aprendizes de inglês como
língua estrangeira, ordenados em ordem alfabética para consulta
mais rápida, gabaritos de revisão com listas de itens a serem
checados, listas de palavras problemáticas, listas de falsos
cognatos, roteiros de revisão. Instrumentos de autorrevisão, já
considerados importantes na escritura da língua materna, tornam-
se ainda mais importantes na escritura da língua estrangeira, onde
a competência linguística é geralmente menor. Na medida em
que esses instrumentos estiverem disponíveis e forem
adequadamente usados, o aluno que possuir um nível de
conhecimento pelo menos intermediário da língua estrangeira
deverá estar em condições de resolver autonomamente muitos de
seus problemas de revisão.
242 Vilson J. Leffa
Língua Estrangeira 243

Capítulo 13
Escrevendo para a comunidade científica
O desafio de ser original de acordo com as normas14

Introdução

O objetivo deste capítulo é analisar os problemas


encontrados pelos alunos de mestrado quando escrevem suas
dissertações. Estou interessado aqui no processo de aculturação,
no verdadeiro ritual de iniciação que o aluno de mestrado tem
que passar para ser aceito na comunidade acadêmica. A
dissertação de mestrado é o bilhete de entrada para essa
comunidade.
Em termos de fundamentação teórica estarei usando
basicamente o conceito de comunidade discursiva, como foi
proposto por Swales (1990), ao qual acrescentarei o conceito de
língua como apropriação. Em termos de corpus, estarei usando
exemplos de mestrandos da área da Linguística Aplicada e da
Linguística Computacional. Uma diferença entre esses dois
grupos é que os alunos de Linguística Aplicada vêm da área de
Letras e supostamente devam ser mais proficientes no uso da
língua, tanto em português como em inglês, do que os alunos da
Linguística Computacional, todos da área da Ciência da
Computação. Embora a maioria dos exemplos seja de dissertações
de mestrado, usarei também alguns exemplos de trabalhos
menores escritos pelos alunos, para publicação em anais de
congressos. Na área de Ciência da Computação é muito comum

14
Uma versão anterior, em inglês, deste capítulo foi publicada em: LEFFA,
Vilson J. Writing for the scientific community: The challenge of being
original under constraint. Anais do XIV Encontro Nacional de Professores
Universitários de Língua Inglesa, Belo Horizonte, v. 14, n. 14, p. 337-
344, 1999.
244 Vilson J. Leffa

o aluno produzir um artigo em inglês baseado na sua dissertação


de mestrado, geralmente escrita em Português. Tentarei descrever
brevemente o que caracteriza uma comunidade discursiva
acadêmica, os obstáculos que os alunos precisam vencer para
serem aceitos pela comunidade e, finalmente, sugerir algumas
possíveis soluções que, a meu ver, têm produzido resultados
promissores.

O que é uma comunidade discursiva

Para a descrição de uma comunidade discursiva, usarei o


modelo proposto por Swales em suas duas versões (1990, p. 24-
27; 1992, p. 10-11), ainda que com ênfase na primeira versão, já
que a segunda não chegou a ser muito divulgada (na verdade,
trata-se de um texto xerocado apresentado em um colóquio sobre
gênero na Universidade de Carleton, no Canadá).
Complementarei a descrição com exemplos do corpus selecionado
(dissertações e artigos escritos pelos mestrandos).
De acordo com Swales (1990, p. 24-27 e 1992, p. 10-11),
uma comunidade discursiva tem seis características básicas:

1. Uma comunidade discursiva tem um conjunto de objetivos que


é comum, de conhecimento público e amplamente reconhecido.

De acordo com Swales, o critério básico que pode ser usado


para identificar uma comunidade discursiva não é seu objeto de
estudo mas suas metas. Considerando, por exemplo, um tópico
com a língua, sabemos que ela pode ser abordada de diferentes
perspectivas, cada uma implicando uma comunidade discursiva
diferente. Se nossa meta for descrever a língua em termos de sua
forma, pertencemos a uma comunidade; se quisermos descrevê-
la em termos de suas funções, já pertencemos a outra; e assim
sempre a uma comunidade diferente, de acordo com nossos
interesses: aquisição da primeira língua; fonologia, variação
linguística, aprendizagem da língua, ensino da escrita,
compreensão de leitura etc.
Língua Estrangeira 245

O problema enfrentado pelo aluno aqui é que essas


diferentes metas levam a diferentes regras e convenções, de modo
que aquilo que é aceito em uma comunidade pode ser totalmente
rejeitado em outra. O ecletismo, na medida em que uma
determinada comunidade discursiva pode incorporar metas de
outras, é geralmente rejeitado, às vezes até visto como uma espécie
de obscenidade intelectual.

2. Uma comunidade discursiva tem mecanismos de


intercomunicação entre seus membros.

Pertencer a uma comunidade discursiva envolve interagir


com os outros membros da comunidade através de mecanismos
de intercomunicação, tais como reuniões, correspondência,
boletins e incluindo meios de telecomunicação, tais como e-mails,
listas de discussões e páginas da internet. Em nossa área, esses
mecanismos não estão restritos localmente, mas são globalizados,
e o acesso a esses mecanismos é um pré-requisito básico para o
aluno de mestrado que vai produzir sua dissertação.
Enquanto que a existência do meio eletrônico certamente
facilita o acesso aos textos da comunidade discursiva, isso também
pode representar mais um problema para o aluno. A internet,
mais do que qualquer outro meio de comunicação, tornou
obrigatória a aprendizagem de uma língua estrangeira. Alunos
de mestrado que vêm de uma língua materna não-hegemônica
como o português, nem sempre podem ser considerados como
proficientes no idioma que se tornou a língua franca da rede
mundial dos computadores. Esses alunos, que não têm o domínio
da língua estrangeira, estão em enorme desvantagem em relação
aos outros. Sendo instrumentalmente prejudicados, eles são os
deficientes linguísticos de muitos programas de pós-graduação,
alunos que têm de compensar sua falta de competência na língua
estrangeira através de outros meios, às vezes até pagando
traduções, ou restringido seus projetos a áreas em que o
conhecimento da língua franca não seja crucial.
246 Vilson J. Leffa

3.Uma comunidade discursiva usa seus mecanismos de


participação, principalmente para dar informação e feedback.

A boa notícia aqui é que as comunidades acadêmicas têm


interesse em disseminar o que fazem, não apenas para seus
membros mas também pessoas do grande público através de
mecanismos que estão abertos a todos como conferências,
boletins, periódicos, páginas da internet. Qualquer pessoa pode
livremente entrar numa biblioteca e consultar qualquer uma dessas
fontes e até participar de uma determinada comunidade desde
que tenha as qualificações necessárias – é típico dos periódicos
acadêmicos, por exemplo, oferecer instruções aos leitores de como
eles podem enviar suas contribuições para a revista. Mesmo
sociedades científicas que eram tradicionalmente reservadas para
a admissão de novos membros, que muitas vezes só poderiam
entrar com a recomendação expressa de antigos sócios, estão
atualmente se abrindo. Com o advento da internet, as metas e os
interesses de uma comunidade científica são divulgados como
nunca foram antes, ficando muito mais fácil para o noviço o
ingresso em uma dessas comunidades. Outra consequência da
internet é que muitas das convenções subjacentes na interação
entre os membros de uma sociedade são muito mais explicitamente
revelados, principalmente nos grupos de discussão. Muitos dos
pressupostos ocultos, que de outro modo não são revelados ao
neófito, acabam sendo expostos nas discussões, embora deva ser
reconhecido que mesmo aqui alguns segredos ainda serão
preservados e ficarão fora do alcance do grande público.
Quando pertencemos a uma determinada comunidade
discursiva não nos damos conta do quanto às vezes negamos
informação aos membros de outras comunidades. Para os que
tentam entrar podemos dar a impressão de que falamos muito
sobre os assuntos que nos interessam, mas não oferecemos a
essência. Deixamos, voluntária ou involuntariamente, lacunas
críticas que nossos interlocutores de outras áreas não conseguem
preencher. Podemos estar fazendo isso por duas razões: (1) ou o
que temos a mostrar não tem realmente qualquer valor, ou (2)
Língua Estrangeira 247

tem um grande valor e não queremos entregá-lo de mão beijada.


Os relatos de muitas descobertas importantes, especialmente
quando levam ao desenvolvimento de produtos comerciais, podem
não ser publicados com a suficiência de detalhes necessária para
uma possível replicação do experimento.

A luta do jovem pesquisador não é trazer para fora o que


está dentro; é executar o ritual que lhe permita entrar em
uma sociedade fechada. Ou como diria Foucault, “o
discurso da luta não se opõe ao que é inconsciente, opõe-
se ao que é secreto” (Bartholomae, 1983, p. 300).
(Tradução minha)

Por outro lado, o que é publicado em um periódico


acadêmico pressupõe um conhecimento compartilhado por parte
do leitor para quem o texto foi escrito, sendo que normalmente o
mestrando não possui esse conhecimento e tem dificuldade em
adquiri-lo. Cria-se uma espécie de círculo vicioso: não se pode
ler na área porque não se tem o conhecimento compartilhado
pressuposto pelo autor do texto, e não se tem o conhecimento
compartilhado porque não se pode ler na área. Obviamente a
solução é usar textos introdutórios, mas como estamos lidando
com áreas específicas de conhecimento, altamente especializadas,
esses textos introdutórios nem sempre estão disponíveis.

4.Uma comunidade discursiva utiliza uma seleção de diferentes


gêneros para comunicar seus objetivos

Diferentes gêneros podem ser usados não só para


disseminar o conhecimento gerado pela comunidade mas também
para recrutar novos membros. O recrutamento, em especial pode
ser feito através de cartazes, folhetos, palestras, sessões de pôsteres
em eventos etc., em que o público é informado das vantagens de
pertencer à sociedade científica em questão. O tipo e a quantidade
de gêneros disponíveis dependem do tamanho da comunidade
envolvida. Uma comunidade discursiva do porte da TESOL
(Teachers of English to Speakers of Other Languages –
248 Vilson J. Leffa

Professores de Inglês para Falantes de Outras Línguas), por


exemplo, tem, entre suas publicações, um periódico acadêmico
(TESOL Quarterly), uma revista de cunho prático (TESOL
Journal), um jornal (TESOL Matters), um boletim eletrônico com
oportunidades de emprego (Placement E-Bulletin), um
informativo eletrônico (TESOL Connections), livros impressos,
de cunho teórico e prático, publicações em CD-ROM, programas
de certificação para professores de inglês, folhetos com diferentes
tipos de informação, calendários, agendas, “buttons”, camisetas,
bonés, além de uma convenção anual, que, por sua vez, apresenta
também outros gêneros (comunicações orais, oficinas, sessões
de pôster, palestras, exposições, “café da manhã” com
especialistas, demonstrações de produtos, entrevistas para
emprego etc.).

5.Além de diferentes gêneros, uma comunidade possui também


um léxico específico

O uso de um léxico específico não apenas caracteriza uma


determinada comunidade mas de certa maneira também a afasta
de outras comunidades, a ponto de dificultar a entrada para aqueles
que desconhecem o jargão da comunidade. De acordo com Swales
(1990, p. 26-27), se alguém de fora assiste a uma reunião de uma
comunidade científica e entende cada palavra, o grupo em questão
provavelmente ainda não formou uma comunidade discursiva.
As pessoas que não pertencem à área do ensino de inglês, por
exemplo, provavelmente não têm a mínima ideia do que significam
siglas como ESP, EAP, EFL. Mesmo dentro da comunidade maior,
alguns membros terão dificuldade de identificar, por exemplo, o
que o subgrupo da área de ensino mediado por computador quer
dizer com CALL, FTP ou NLP.
Língua Estrangeira 249

6. Uma comunidade discursiva pressupõe, para seus membros,


um patamar inicial de domínio do conteúdo e competência
discursiva.

Uma comunidade discursiva é composta de noviços e


especialistas. Para que um noviço seja considerado um membro
da comunidade, ele deve demonstrar que possui um determinado
nível de conhecimento na área; o conhecimento necessário para
escrever uma dissertação de mestrado, por exemplo. O
especialista, por outro lado, deve ser capaz de demonstrar que
tem competência para tarefas como planejar e administrar cursos,
coordenar eventos científicos e orientar alunos a escreverem suas
dissertações.
Podemos definir uma comunidade discursiva acadêmica
como um grupo de produtores e consumidores de texto que
interagem entre si da maneira mais eficaz possível através de um
conjunto de convenções, entre as quais se inclui uma terminologia
acordada. As convenções basicamente definem o que pode ou
não pode ser feito, geralmente levando em consideração a mídia
em que é expressa (as opiniões podem ser mais livremente
expressas no correio eletrônico do que em um periódico
acadêmico, por exemplo) e também os papéis desempenhados
pelos participantes (um noviço não pode falar como um
especialista).

O processo de aculturação

O processo de aculturação para entrar numa comunidade


discursiva não é uma empreitada fácil. Envolve, como vimos,
diferentes tipos de problemas, entre os quais podemos destacar
os seguintes: (1) adquirir competência na língua estrangeira,
geralmente visto como um pré-requisito; (2) familiarizar-se com
a terminologia privilegiada pela comunidade; (3) apropriar-se do
conhecimento compartilhado pressuposto pelos especialistas da
comunidade; (4) adquirir as convenções que determinam o
discurso específico da comunidade em questão; (5) identificar os
250 Vilson J. Leffa

objetivos da comunidade, que podem ter uma orientação mais


teórica ou mais prática.
Gostaria de comentar brevemente sobre esses problemas,
começando com a questão da competência linguística. Um bom
domínio da língua é obviamente um pré-requisito que deve ser
obtido muito antes de iniciar a produção escrita da dissertação.
Essa condição, no entanto, nem sempre pode ser presumida,
principalmente nos programas de pós-graduação não
especificamente dedicados ao estudo da língua, como é o caso,
por exemplo, no departamento de ciências da computação. A
boa notícia é que os problemas linguísticos, aqueles que envolvem
apenas questões de escolha lexical e de construção sintática, são
fáceis de se resolver – desde que não estejam atrelados a outros
problemas mais complexos, envolvendo, por exemplo, questões
de organização textual e de coerência. A frase seguinte, extraída
de uma primeira versão de uma dissertação de mestrado, pode
ser usada como um exemplo de problema puramente linguístico
e extremamente fácil de ser resolvido:

The aim of this study is to analyze the way how lexical


ambiguity is treated in its syntactic and semantic aspects
in the Portuguese [o problema é o uso indevido do artigo
“the” antes da palavra “Portuguese”].

Esses problemas são fáceis de se corrigir porque afetam


apenas a superfície textual do discurso. Introduzem algum ruído
na comunicação, mas o texto pode ser compreendido sem
dificuldade. Descobri que esses problemas linguísticos são muito
frequentes em textos já publicados, principalmente em anais de
congressos. O que segue são apenas alguns exemplos produzidos
por falantes nativos de japonês, escrevendo em inglês [problemas
que de certo modo são intraduzíveis porque afetam apenas a
superfície do texto]:

Word in English is applied as label to identify Universal


Word (UNL, p. 35).
Língua Estrangeira 251

Conventional English-to-Japanese machine translation


(MT) systems which are rule-based approaches, [sic] are
difficult to translate certain types of Associated Press (AP)
wire service news stories [sic], such as economics and
sports, because these topics include many fixed
expressions (such as compound words or collocations)
which are difficult to be processed by conventional
syntactic analysis and/or word selection methods
(KATOH; AIZAVA, 1994, p. 28).

Different language may have more detailed scheme to


express aspectual information of an event (UNL, p. 44).

Parece que os problemas linguísticos são mais facilmente


resolvidos e também mais facilmente tolerados, desde que não
produzam muito ruído na comunicação. Os problemas mais sérios
estão acima do nível linguístico, quando afetam a produção de
sentido, deixando o leitor extremamente frustrado por não
conseguir construir o significado do texto ou por se sentir
ludibriado pelo autor que o forçou a seguir pistas erradas. Isso
pode ser demonstrado no seguinte parágrafo, traduzido do inglês
[agora, sim, traduzível, por afetar a coerência].

É importante salientar que os atributos morfológicos são


terminações de palavras que têm por objetivo indicar
gênero, número e pessoa. Por isso em inglês há os
atributos morfológicos.

Não há espaço aqui para transcrever todo o texto, mas nada


há nele, nem antes nem depois do parágrafo citado, que justifique
a importância dos atributos morfológicos como indicadores de
gênero, número e pessoa. A conclusão de que em inglês deva
haver atributos morfológicos porque eles indicam gênero, número
e pessoa é também algo que confunde o leitor. O problema aqui
não é falta de competência na língua, mas falta de competência
discursiva em geral; mesmo traduzido para uma outra língua, o
parágrafo continua problemático.
252 Vilson J. Leffa

Problemas no nível conceitual são os mais graves de todos


porque revelam falta de domínio do conhecimento fundacional
da disciplina. O que segue é o exemplo de alguém que é incapaz
de distinguir entre uma variável e o valor atribuído à variável –
conceitos básicos em qualquer disciplina:

Quando eu li que José comprou um carro de João, a fim


de compreender a frase, eu tive que ativar o esquema de
transação comercial com pelo menos três variáveis: José,
o carro e João.

Este aluno infelizmente ignora o que são esquemas e o que


são variáveis. José, carro e João não são variáveis – como são
comprador, mercadoria e vendedor – que, por definição variam
em cada instância (ou instanciação) do esquema, mas valores
constantes que não variam, porque constituem o próprio exemplo.
Problemas como falta de competência na língua, domínio do
discurso e conhecimento do conteúdo obviamente não deveriam
existir no estágio em que o aluno começa a escrever sua
dissertação, mas existem e os orientadores não podem ignorá-
los.

A questão das restrições

Há outros problemas ainda mais sérios, que envolvem


especificamente os papéis que os neófitos têm permissão de
desempenhar dentro de uma comunidade discursiva.
A meu ver, os alunos, quando produzem uma dissertação
de mestrado, trabalham sob mais restrições do que os especialistas.
Eles têm que saber muito mais do que têm permissão para escrever,
porque têm que conhecer não apenas o que escrevem mas também
aquilo que não têm permissão para escrever como neófitos. Isso
é um grande desafio para os novatos porque eles leem o que os
especialistas escrevem mas não podem escrever como eles.
Fazendo uma adaptação da terminologia de David Brazil
(1995), gostaria de sugerir que os especialistas podem se reservar
Língua Estrangeira 253

o direito de usar o “proclaiming tone” (“contorno descendente”),


que enfatiza a importância do que eles escrevem como algo que é
novo, certo, e desconhecido do leitor. Já os neófitos são obrigados
a usar o “referring tone” (“contorno ascendente”), enfatizando o
que é hipotético ou conhecido do leitor. O excerto seguinte,
retirado aleatoriamente dos escritos de Chomsky, pode ser usado
como exemplo:

Acho que podemos perceber pelo menos o contorno de


princípios ainda mais gerais, que podemos interpretar
como orientações genéricas, considerando que são
formulados em termos extremamente vagos para que
possam ser chamados de “princípios da GU” (CHOMSKY,
1995, p. 130).

Chomsky, como um especialista da comunidade discursiva,


pode se arrogar o privilégio de introduzir marcadores subjetivos
no seu texto, como “eu acho”, um procedimento que tipicamente
não é permitido a um neófito. Pode-se argumentar que Chomsky
é uma figura de notável saber na comunidade e que os marcadores
subjetivos em seu texto serão interpretados como indício provável
de muita reflexão, baseado numa longa história de estudo e
pesquisa. Na escrita de um novato, o efeito seria o contrário. O
leitor interpretaria o marcador subjetivo como uma confissão de
incompetência ou como presunção descarada. O neófito não tem
o background histórico reconhecido de um especialista para dar
credibilidade ao que ele diz.

A escrita acadêmica é fundamentalmente uma atividade


ritualística. E embora os detalhes deste ritual social
estejam sujeitos a diferentes requisitos em diferentes
disciplinas, na prática, a grande maioria dos jovens
cientistas, se não todos, encontra uma série de dificuldades
para realizar este ritual, e isto acontece porque ainda são
novatos, sócios em treinamento, nem iniciados e nem
mestres da “sociedade fechada” (CRASWELL, xerox,
p.7).
254 Vilson J. Leffa

Aprender as convenções da comunidade discursiva, não


apenas as convenções gerais que se aplicam a todos os membros,
mas também aquelas convenções que se aplicam especificamente
aos neófitos, é a tarefa do aluno que pretende escrever uma
dissertação de mestrado. Essa aprendizagem desce além da
superfície da materialidade linguística, do conhecimento passivo
da terminologia específica da área, até alcançar o nível mais
profundo do discurso e das relações que se estabelecem ativamente
entre neófitos e especialistas, no nível em que o significado é
realmente produzido.
Os alunos discípulos precisam aprender que não basta ter
um conhecimento ocasional das convenções; elas precisam ser
trazidas para sua intimidade e incorporadas na sua estrutura
cognitiva. Não podem ser apenas memorizadas. Elas precisam
ser assimiladas, apropriadas pelo jovem cientista, de modo a
melhor servir seus propósitos. Os estudantes quando escrevem
não podem apenas citar os membros da comunidade discursiva a
qual querem pertencer; deverão ser capazes de parafrasear, com
suas próprias palavras, o que os outros disseram. Não podem
apenas identificar a informação que leem; devem transformá-la,
incorporá-la internamente ao que já sabem, metamorfoseando-a
– mas também sem extrapolar seu papel de neófitos.
Esses são, a meu ver, alguns dos problemas que o mestrando
encontra quando tenta escrever sua dissertação. São, na minha
maneira de ver, problemas de ordem linguística, discursiva e
conceitual. Existe ainda um problema de relacionamento social,
que abordarei na próxima seção.

A interação orientador/orientado

A solução tradicional para ajudar o aluno a adquirir a


competência necessária para escrever a dissertação, com o
objetivo de dominar as normas e convenções da comunidade
discursiva, tem sido através de um orientador – um processo
menos ou mais longo com menos ou mais sessões de
aconselhamento, em que às vezes se consegue expressar o que se
Língua Estrangeira 255

deseja e às vezes não. O exemplo seguinte mostra um mal


entendido entre orientador e orientando que precisou ser corrigido.
Lendo a primeira versão de um trabalho de uma aluna minha eu
tinha marcado a frase abaixo como contraditória:

A informação explícita em um texto é aquela que não está


presente no texto.

Eu não conseguia entender como é que algo que estivesse


explícito no texto, não pudesse estar presente no texto. Quando
falei isso para ela, ficou completamente surpresa e me garantiu
que não era isso que ela queria dizer. É claro que já tenho uma
resposta pronta para essas ocasiões – “Não interessa o que você
quis dizer; interessa o que você disse” – mas nesse caso fiquei
esperando a explicação. Ela me mostrou então que a frase poderia
ter uma segunda leitura, mais ou menos nos seguintes termos: “A
informação explícita é tão óbvia, que não precisa ser escrita; então
não está presente, não é colocada no texto. Se fôssemos escrever
tudo o que é óbvio, o texto ficaria muito longo”.
A aluna tinha produzido um texto que era coerente na sua
perspectiva, mas não de acordo com as expectativas
convencionadas e institucionalizadas da comunidade discursiva
– que exige do escritor produzir um texto que seja condescendente
com o leitor, evitando idiossincrasias e ambiguidades.
Os mal-entendidos podem ocorrer também no outro sentido,
isto é, não apenas do aluno para o orientador mas também do
orientador para o aluno. De acordo com Craswell (xerox), o
orientador não pode pressupor que sua metalinguagem seja
compreendida pelo aluno. Dizer a um aluno que ele deve melhorar
a estrutura do parágrafo, manter a unidade de foco ou sinalizar a
linha de argumentação vai ajudar muito pouco se ele sabe o que o
orientador quer dizer com esses termos.
256 Vilson J. Leffa

Conclusão

Acredito que a melhor maneira para ajudar um aluno a


escrever sua dissertação é inseri-lo numa comunidade discursiva,
onde ele possa socializar o que escreve, ler os trabalhos dos outros,
ter seus próprios trabalhos lidos e comentados, trocar ideias com
colegas. O grande autor visto como um gênio solitário é um mito,
mesmo na área da literatura. Pós-modernistas como Barthes
(1984) já proclamaram a morte do autor, considerando que o autor
existe apenas a custa do leitor. Não existe se o que escreve não
for lido.
As universidades são fundamentalmente gregárias. A
aprendizagem não ocorre apenas através da reflexão individual
mas principalmente através da discussão com os outros. Nos
lugares em que tenho trabalhado foi raro ver um aluno trabalhando
sozinho. Reúnem-se para ler trabalhos, preparar seminários,
analisar dados em um projeto, e mesmo para escrever. O
pressuposto é que o sentido seja construído entre os participantes,
professores e alunos, através da negociação contínua; a verdade
não é uma posse individual, mas uma mercadoria partilhada por
todos no grupo.
Parece-me que a coisa certa a fazer no momento é criar
comunidades solidárias de pesquisadores, onde os alunos possam
apoiar-se uns nos outros. Exemplos dessas comunidades podem
ser programas especiais de treinamento, grupos de pesquisa e
outros projetos coletivos. A principal vantagem da criação dessas
comunidades discursivas é que elas podem ajudar o jovem
cientista a obter o status de sócio da comunidade, desenvolvendo
nele a cultura da escrita e iniciando-o nos segredos da confraria.
A maior de todas as vantagens na formação dessas
comunidades é que nelas o aluno pode aprender não só a lidar
com as restrições da escrita acadêmica, com suas regras e normas,
mas também aprender a reverter o processo e a usar as restrições
em seu próprio benefício.
Língua Estrangeira 257

Capítulo 14
Aspectos externos e internos
da aquisição lexical15

Introdução

Os recursos atuais da informática, incluindo a indexação


total de textos e a consequente facilidade na busca de palavras
em contexto de uso, tornaram o vocabulário um dos aspectos mais
importantes na aprendizagem da língua, tanto em L1 como L2.
Este enfoque contextual - que considera as relações da palavra
dentro do texto, incluindo suas restrições e preferências
colocacionais - nada tem em comum com as abordagens
descontextualizadas de outrora e suas listas de palavras, com
tradução, sinônimos, antônimos, coletivos etc. O aluno tem até a
opção de dispensar o dicionário tradicional, onde a maioria das
palavras registradas não são usadas, e ir diretamente ao acervo
original de textos onde elas são encontradas em seu habitat natural,
vivendo em equilíbrio ecológico com as outras palavras. Os
recursos atuais da informática, pela facilidade com que recolhem
e analisam as palavras, reverteram a hierarquia dos componentes
linguísticos na aprendizagem, subordinando sintaxe, fonologia,
morfologia e pragmática ao léxico.
Este capítulo vai tentar resumir o que tem sido pesquisado
e proposto sobre a aprendizagem do vocabulário, tanto na língua
materna como na língua estrangeira, mostrando como os estudos
evoluíram dialeticamente de uma ênfase externa para uma ênfase
interna, chegando finalmente a uma síntese com a introdução da

15
Uma versão anterior deste capítulo foi publicada em: LEFFA, Vilson J.
Aspectos externos e internos da aquisição lexical. In: LEFFA, Vilson J.
(Org.). As palavras e sua companhia; o léxico na aprendizagem. Pelotas,
2000, v. 1, p. 15-44
258 Vilson J. Leffa

informática. Entende-se aqui por ênfase externa, do ponto de


vista histórico, a ideia de que o sucesso na aprendizagem dependia
da modificação do input oferecido ao aluno: controle do
vocabulário nos textos didáticos, gradação de exercícios por nível
de dificuldade etc. Dentro dos aspectos internos, há também uma
oposição que se criou entre aquisição e aprendizagem. Exemplo
típico de aquisição é o que acontece na língua materna, onde o
desenvolvimento do léxico é mais espontâneo, relacionado à
formação da própria identidade da pessoa e menos dependente
da ação da escola, enquanto que na língua estrangeira o
desenvolvimento é mais refletido, precisando normalmente de
indução para se realizar. Se na língua materna predomina o léxico
das operações concretas da infância, ligado ao afeto e à família,
na língua estrangeira predomina o léxico das operações abstratas
da adolescência e da idade adulta, ligado à escola e às disciplinas
de estudo. A oposição entre aquisição automática do léxico e
aprendizagem intencional também parece ter resultado numa
síntese
O capítulo inicia ressaltando algumas ideias básicas que
têm marcado o estudo do léxico, ora visto como um componente
essencial da linguagem, centro de atenção de estudiosos e curiosos
da língua, ora visto como um componente acessório,
idiossincrático e impossível de ser abordado cientificamente.
Ressalta também a oposição entre o conceito de palavra e de
unidade lexical e procura-se mostrar, dentro desse jogo de
oposições, a tensão que existe entre a palavra e o texto. Mostra
que a palavra não é uma embalagem vazia de significado,
totalmente subordinada às restrições do texto, mas um feixe de
possibilidades, oferecendo ao texto inúmeras opções de
significado, embora impondo também suas normas e restrições
de uso.
Na questão do ensino do vocabulário, tenta-se mostrar como
esse ensino pode estar centrado no input que é oferecido ao aluno,
com ênfase na preparação do texto, ou no próprio aluno, com
ênfase no desenvolvimento das estratégias que ele deve usar para
se apropriar do vocabulário de uma língua. Do lado do texto,
Língua Estrangeira 259

mostra-se principalmente a importância de se conhecer a


distribuição das palavras no texto, de sua frequência relativa, de
suas preferências e restrições colocacionais. Do lado do aluno,
procura-se resumir o que se sabe sobre aquisição incidental e
aprendizagem intencional, com sugestão de estratégias para o
desenvolvimento do vocabulário, partindo da teoria para a prática
e considerando a língua tanto em sentido geral, sem restrição de
input, como a língua de especialidade, onde o input fica restrito a
uma determinada área de conhecimento.

A luta mais vã

Um elemento decisivo na identificação de uma língua é


seu léxico. Normalmente basta uma pequena sequência de
palavras (ex.: los niños, les enfants, the boys), mesmo fora da
ordem canônica (ex.: boys the) para que a língua já possa ser
determinada com facilidade. Em qualquer tarefa onde for
necessária a identificação da língua (ex.: num processador de texto
para determinar o dicionário ortográfico a ser acionado), a maneira
mais rápida, precisa e econômica de descobrir que língua está
sendo usada será pela identificação das palavras. A morfologia
ajudaria muito pouco, a sintaxe menos ainda, e a pragmática
provavelmente nada teria a oferecer. O efeito de sentido para
uma frase como “a polícia está chegando”, pronunciada por um
assaltante dentro de um banco para os seus colegas, seria
certamente o mesmo, independente da língua usada - não servindo,
portanto, para diferenciar uma língua da outra.
Se alguém, ao estudar uma língua estrangeira, fosse
obrigado a optar entre o léxico e a sintaxe, certamente escolheria
o léxico: compreenderia mais um texto identificando seu
vocabulário do que conhecendo sua sintaxe. Da mesma maneira,
se alguém tiver que escolher entre um dicionário e uma gramática
para ler um texto numa língua estrangeira, certamente escolherá
o dicionário. Língua não é só léxico, mas o léxico é o elemento
que melhor a caracteriza e a distingue das outras.
260 Vilson J. Leffa

O senso comum, a tradição e mesmo a literatura têm dado


uma importância muito grande à palavra. O senso comum,
intuitivamente, tende a definir uma língua mais como um conjunto
de palavras do que como um conjunto de frases ou de regras
sintáticas. A tradição, tanto no ensino de línguas estrangeiras
como da língua materna, tem destacado a importância do
vocabulário através de inúmeras atividades pedagógicas, desde
as listas de palavras descontextualizadas a serem decoradas pelos
aprendizes até atividades mais significativas como jogos do tipo
forca, bingo, caça-palavra, memória, palavras cruzadas etc. Na
literatura são também inúmeros os exemplos de poetas e escritores
em que se manifesta a preocupação com o vocabulário, do esforço
que fazem para chegar à palavra que melhor expresse aquilo que
pretendem dizer.
Todos - não só poetas, jornalistas e professores - lutam
com as palavras e têm que aprender a expressão do conceito que
buscam: o mecânico de automóvel quando pede uma peça para
reposição, o vendedor ambulante quando tenta convencer o
freguês das qualidades do produto que vende, o médico quando
tenta explicar ao paciente a natureza da doença revelada no exame
de urina. O poeta quando fala de sua luta com as palavras não
fala apenas por ele; fala por todos os usuários da língua:

Lutar com palavras


é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
(Drummond)

A ilusão dos demais usuários, no entanto, é de que a luta


não seja vã. Nas palavras do autor do dicionário Aurélio:

Uns e outros [poetas e dicionaristas] se empenham na luta


- e sempre com a esperança de que não seja vã. Em nossos
casos particulares - o do poeta e o deste aprendiz de
lexicografia - há uma diferença (deixem passar a
confissão): a luta de Drummond principia “mal rompe a
Língua Estrangeira 261

manhã”, a do aprendiz, ordinariamente, vai até de manhã


(FERREIRA, 1986, p. vii).

No entanto, apesar da importância que o senso comum, a


tradição e a literatura dão à palavra, no uso e na aprendizagem de
uma língua, o ensino do vocabulário tem sido de um modo geral
estigmatizado, tanto em língua materna como em língua
estrangeira. Este capítulo, partindo da suposição de que o estigma
existe por que não se conhece o que foi feito e o que se pode fazer
sobre o ensino do léxico, pretende resumir estudos realizados e
oferecer alternativas de ensino, com ênfase tanto no material a
ser oferecido ao aluno como nas estratégias a serem exploradas.
Constata-se com facilidade que na aprendizagem da língua
estrangeira, a aquisição do vocabulário é um dos aspectos mais
importantes do processo. Por outro lado, na aprendizagem da
língua materna ele é muitas vezes o único aspecto onde, depois
de um certo estágio, o aluno ainda pode progredir. Quando se
domina a fonologia, a sintaxe e a morfologia de uma língua - o
que normalmente se consegue antes de se chegar à adolescência
- o léxico é o único conhecimento que pode ser aumentado,
geralmente para o resto da vida, já que sempre é possível aprender
novas palavras.

O que é uma palavra - A tensão com o texto

Poucas são as definições disponíveis de palavra na literatura


da linguística aplicada e mesmo da linguística, como se o próprio
termo palavra fosse uma espécie de postulado filosófico, fato
reconhecido automaticamente, sem necessidade de ser definido
ou demonstrado. Os especialistas parecem que não querem se
comprometer com uma definição e, quando se sentem coagidos a
fornecer uma, geralmente apelam para a vaguidão. Assim, para
Ducrot (1995), palavra é um feixe de topoi - que Moura, na
entrevista que fez ao autor, traduziu como “um conjunto vago de
crenças e inferências” (MOURA, 1998, p. 169). A relação clara
e unívoca do signo linguístico, estabelecida por Saussure entre
262 Vilson J. Leffa

significante e significado, deixa de existir e a palavra é vista mais


como um leque de encadeamentos possíveis dentro do discurso.
De acordo com Firth, a palavra só existe na companhia de outras
palavras. Sozinha, ela não tem condições de subsistir; será,
quando muito, apenas um feixe de possibilidades, tanto mais vaga
e volátil quanto maior for esse feixe. (Para uma discussão dos
problemas da referencialidade, veja-se, entre outros, Putman
(1975, 1990), Moura (1997))
Na verdade, foge-se do termo palavra quando se quer
discutir a palavra - devido a sua falta de rigor científico. Ainda
que na área da informática a palavra possa ser rigorosamente
definida como uma sequência de letras delimitada em ambas as
extremidades por um espaço, essa definição não serve quando,
além do significante, queremos incluir também a significado. Daí
a inevitável criação de outras expressões como vocábulo, termo,
monema, sintagma, lema, lexema, semantema, lexia, sinapsia ou
paráfrases mais longas como sintagma lexicalizado ou unidade
mínima de significação - sem falar em termos mais raros como
lexes ou lexóides.
Há também tentativas de distinção entre esses termos.
Vejam-se, por exemplo, as diferenças que Dubois et al. (1993)
fazem entre palavra, termo e vocábulo. Assim, opondo palavra a
termo, argumentam que palavra é essencialmente polissêmica,
enquanto que termo possui uma significação única (Ver Krieger,
neste volume). Na língua portuguesa, pedra, teria como palavra,
de acordo com o Aurélio, 24 acepções (Ex.: bloco de pedra, a
pedra do anel, uma pedra de sal, choveu pedra, cantaram a pedra
20, coração de pedra etc.); já como termo médico pedra, terá
apenas uma dessas acepções (Ex.: pedra no sentido de “concreção
que se forma em reservatórios musculomembranosos e nos canais
excretores de glândulas” - FERREIRA, 1986, p. 1292). Por outro
lado, opondo palavra a vocábulo, propõem que palavra não tem
restrição de ocorrência; sempre que aparecer no texto será uma
nova palavra. Vocábulo já tem restrição de ocorrência; será o
mesmo, ainda que repetido. Assim, a frase “Não ficou pedra sobre
pedra” tem cinco palavras, mas apenas quatro vocábulos, já que
Língua Estrangeira 263

a palavra pedra é o mesmo vocábulo que está sendo repetido (Para


uma discussão mais detalhada deste e de outros termos, ver
ALVES, 1999).
Não é fácil, porém, determinar o vocábulo, devido a sua
polissemia: as 24 acepções que o dicionário Aurélio dá para a
palavra pedra, agrupadas em um único verbete, seriam todas
vocábulos diferentes, ou algumas dessas acepções poderiam ser
agrupadas em um vocábulo? Por outro lado, a palavra mangueira,
separada em três verbetes (nos sentidos de tubo, árvore e curral)
poderia ser mais facilmente dividida em três vocábulos, na medida
em que se tem aí não um caso de polissemia mas de homonímia
(LEFFA, 1997). Pode ser um pouco difícil, mas não será
impossível, contar os vocábulos em uma frase como: “A muda
silenciosamente usou a mangueira de plástico para regar a muda
de mangueira que crescia perigosamente junto à da mangueira
das vacas”.
Outros autores fazem também a diferença entre léxico e
vocabulário. Entende-se por léxico “a totalidade das palavras
duma língua, ou, como o saber interiorizado, por parte dos falantes
de uma comunidade linguística.” (VILELA, 1994, p. 10). O
vocabulário é, por sua vez, uma parte do léxico, que representa
uma determinada área de conhecimento. (BARBOSA, 1995, p.
21)
Definir uma palavra como uma unidade mínima de sentido
não é uma tarefa fácil, devido às inúmeras nuances de significado
que uma palavra possui. Usando apenas o que está no dicionário
para a palavra pedra, por exemplo, que não é das palavras mais
polissêmicas, tem-se, como vimos, 24 acepções. Se fossem usados
os conceitos que as pessoas têm de pedra em sua mente,
provavelmente se encontrariam não dezenas mas centenas de
acepções. Finalmente, indo além do dicionário e do que está
armazenado na mente das pessoas, e usando as significações que
uma palavra pode adquirir dentro de um texto - plano do discurso
na terminologia de Quemada (1981) - chega-se provavelmente a
milhares de acepções, como se pode ver nos exemplos abaixo
para a palavra pedra:
264 Vilson J. Leffa

A imprevisibilidade é a pedra nos sapatos dos


linguistas (problema).
O mestre Gereba está numa pedra, acossado por tubarões
(apoio).
Jogou-lhe uma pedra na cabeça (projétil).
O carro parou porque havia uma pedra no meio do
caminho (obstáculo).
Deixou o nome escrito na pedra (suporte textual).
Como tirar leite de pedra? (coisa estéril)
A pedra curou-lhe a loucura (remédio).

Não há provavelmente nenhum autor que acredite na


identificação de significado que uma palavra tem no dicionário
com o significado que ela adquire quando está na companhia de
outras palavras no texto. Há sempre uma diferença muito grande
entre uma situação e outra, acarretando um desprestígio da palavra
como entidade independente, quando é vista e analisada à parte
das outras. A palavra não pode andar sozinha; como já dizia
Vygotsky (1934, 1998), ela só adquire significado no contexto
em que é usada. “O significado dicionarizado de uma palavra
nada mais é do que uma pedra no edifício do sentido, não passa
de uma potencialidade que se realiza de formas diversas na fala”
(BARBOSA, 2000, p. 1).
A ênfase no contexto pode também dar a ideia errada de
que a palavra é uma embalagem vazia, desprovida de conteúdo,
que assume a forma do contexto em que se encontra, como um
camaleão que se enche de vento e muda de cor. A palavra não vai
vazia ao texto. Pelo contrário, traz uma história de experiências
que recolheu de outros textos em que participou. Quando se diz,
por exemplo, que “Maria tem um coração de pedra”, a palavra
pedra não fica totalmente submetida às coordenadas do texto; ela
traz um conteúdo que é só dela e que de modo algum está
previamente colocado no texto, que é sua dureza e insensibilidade.
O texto muda com a presença da palavra pedra, e seria outro se
em vez de pedra, usássemos, por exemplo, mel. Qualquer falante
da língua portuguesa entenderia que “Maria tem um coração de
Língua Estrangeira 265

pedra” tem um significado oposto ao de “Maria tem um coração


de mel”. No entanto, a única coisa que aconteceu entre um
segmento e outro foi a troca de uma única palavra. Ou seja, a
palavra não só assume o significado imposto pelo texto, mas
também determina seu significado.
É óbvio que também se pode argumentar de modo inverso.
Em duas frases como “Cantaram a pedra 20” e “Escalaram a pedra
grande”, pode-se demonstrar que a mesma palavra pedra significa
número num exemplo e rocha no outro - logo, pode-se argumentar
que é o contexto da frase que determina o significado da palavra.
Na verdade, o que se tem entre o texto e a palavra é um processo
de interação baseado em algumas regras fundamentais, onde o
texto, não necessariamente dá um significado à palavra, mas
privilegia um de seus possíveis traços semânticos. O texto não é
onipotente em relação à palavra a ponto de lhe dar um significado
que ela não pode carregar. O texto só pode exigir da palavra
aquilo que ela estiver disposta a dar; como as palavras em geral
são ricas de significado elas acabam se encaixando em vários
lugares do texto. Não se trata portanto de pobreza mas de riqueza.
Conhecer essa riqueza das palavras faz parte do que significa
conhecer uma língua.
Um outro problema ao se definir uma palavra como unidade
de sentido é que não há uma simetria entre extensão e sentido.
Às vezes atinge-se uma unidade de sentido sem chegar ao fim da
palavra, como é o caso, por exemplo, das palavras “viveram” e
“felizes” em “viveram felizes para sempre”; tanto “viver”, sem a
desinência verbal “am”, como “feliz”, sem o sufixo flexional “es”,
já formam por si mesmos uma unidade de sentido.
Outras vezes acontece o contrário: chega-se ao final da
palavra sem chegar ao final da unidade de sentido. A expressão
“análise de discurso”, por exemplo, é composta de três palavras,
mas, para os especialistas da área forma um sintagma lexicalizado
de um sentido único, graficamente bem delimitado, ao qual só se
chega depois do final da palavra “discurso”, passando pelas duas
anteriores. As palavras que compõem a unidade estão de tal modo
costuradas uma na outra que não há nem mesmo a possibilidade
266 Vilson J. Leffa

de inserção de qualquer outra palavra entre elas, sem romper a


unidade de sentido. Não se pode, por exemplo, falar em “análise
de pouco discurso” como se fala em “homem de sorte” e “homem
de pouca sorte”. As três palavras da expressão “análise de
discurso”, formam, portanto, um bloco relativamente monolítico
e individual, que poderia ser definido como uma unidade lexical,
a exemplo de outras expressões como “pedra de toque”, “pedra
fundamental” ou mesmo “dormir como uma pedra” (Para uma
discussão mais detalhada desta questão e dos testes de substituição
e de inserção que podem ser aplicados para distinguir lexias
complexas de sequências discursivas variáveis, ver BIDERMAN,
1999).
Um outro problema de falta de simetria está nas contrações
e fusões de duas ou mais palavras dentro de um mesmo espaço
grafêmico. O caso mais comum é o das preposições com os
artigos, como em dos (de + os), nos (em + os) etc., onde se tem
um único grafema para duas palavras. Outras vezes, em situações
aparentemente idênticas, pode-se ter uma ou mais palavras. É o
caso, por exemplo, de “embaixo” (uma palavra) e “em cima” (duas
palavras).

O ensino do vocabulário - aspectos externos

O ensino do vocabulário, tanto na aprendizagem da língua


estrangeira, como da língua materna, oscila entre o interno e o
externo. De um lado, temos o ensino com ênfase no material que
deve ser preparado e oferecido ao aluno. São os aspectos externos,
valorizando o input. Nessa área, destacam-se os estudos sobre
frequência, dicionários de aprendizagem, linguística de corpus e
uma tipologia específica de exercícios. Do outro lado, temos o
ensino com ênfase no que o aluno deve fazer para adquirir e
ampliar o vocabulário. São os aspectos internos, valorizando as
estratégias. Destacam-se aí a questão da profundidade de
processamento, a necessidade de respeitar os estilos de
aprendizagem etc.
Língua Estrangeira 267

Em relação aos aspectos externos, um dos mais estudados


tem sido a frequência de ocorrência de determinadas palavras
nos textos orais e escritos, desde as pesquisas de Thorndike, no
início da década de 20, até os estudos mais recentes em linguística
de corpus.
A motivação principal para o estudo da frequência de
ocorrências é a constatação de que a maior parte do vocabulário
de um texto é formada pelas palavras mais comuns da língua. É
óbvio que as palavras existentes em uma língua têm graus
diferentes de popularidade. Algumas são usadas em qualquer
texto com extrema frequência. Outras são rarissimamente usadas,
desconhecidas pela maioria das pessoas, e parecem que existem
apenas para ocupar espaço nos dicionários - já que nos textos
nunca aparecem. Uma diferença, portanto, entre as palavras no
texto e as palavras no dicionário é que no texto a maioria das
palavras é conhecida.
Essa constatação de que algumas palavras são
extremamente mais frequentes do que outras levou vários
especialistas a conduzirem inúmeros levantamentos de frequência.
Estudos clássicos nesta área incluem Thorndike (1921), Thorndike
and Lorge (1944), West (1953), van Ek (1975) e Hindmarsch
(1980).
Thorndike (1921) foi o pioneiro em estudos de frequência,
produzindo inicialmente uma lista das 5.000 palavras mais comuns
da língua inglesa. Duas décadas mais tarde, juntamente com Lorge
(THORNDIKE; LORGE, 1944), apresentou uma lista das 30.000
palavras, o Teacher’s Word Book of 30,000 Words, baseado num
corpus de 18 milhões de palavras de texto escrito. O objetivo
nos dois trabalhos era oferecer aos autores de livros didáticos
dos Estados Unidos subsídios para a produção de livros em língua
materna. A preocupação era apresentar livros adequados para
cada ano de escolarização, e a escolha de um vocabulário
diferenciado, rigorosamente classificado por nível de dificuldade,
era considerado um dos critérios mais importantes.
O General Service List (WEST, 1953), publicado na década
de 50, baseia-se em trabalho realizado na década de 30, quando o
268 Vilson J. Leffa

autor trabalhava na Índia. Preocupado com o ensino de inglês


como Língua Estrangeira ou Segunda (LES), e principalmente
com o ensino da leitura em LES, West compilou uma lista de
2.000 palavras, que foi usada durante muito tempo para a produção
de material para o ensino de inglês. Embora a frequência fosse
um critério básico para a inclusão de uma palavra na lista, aspectos
semânticos também foram considerados.
A Figura 01 mostra um verbete da lista. O número 638
indica que a palavra game ocorre 638 vezes no corpus de 5 milhões
de palavras usado para compilar a lista. Cada palavra, como se
vê, é dividida em acepções. O percentual, após cada acepção,
indica a ocorrência da palavra com aquele significado. Um ponto
de interrogação (?) indica uma sugestão de significado por parte
do autor. Note-se também o uso de exemplos de uso para cada
acepção.

Figura 01 - Exemplo de um verbete do General service list (West,


1953, p. vii)

GAME 638 (1) (amusement, children’s play)


Fun and GamesIt’s not serious;
it’s just a game 9%
(2) (with the idea of competittion, e.g.
cards, football, etc. )A game of football
Indoor games; outdoor games 38%
(3) (a particular contest)We won,
six games to threeI played a poor
gamePlay a losing game (10.5%) 23%
(4) (games = athletic contest)
Olympic games 8%
? [= animals, 11%; game-/, game-birds,
etc., 5%] [= fun, Make game of, 0.5%]

Fonte: Autor
Língua Estrangeira 269

O Threshold level (van EK, 1976), um dos documentos


mais importantes para a abordagem comunicativa, faz também
um inventário do vocabulário básico da língua inglesa, dentro do
nível mínimo das funções linguísticas que o aluno deve dominar
para interagir em inglês. Embora o critério de frequência ainda
seja seguido, outros critérios são também levados em conta,
incluindo a capacidade da palavra em auxiliar na execução de
determinadas funções. O corpus não é mais apenas o da língua
escrita mas também da língua oral e aspectos produtivos e
receptivos do léxico são também incorporados no inventário de
aproximadamente 1.500 palavras.
O Cambridge English Lexicon, compilado por Hindmarsch
(1980), apresenta 4.470 palavras classificadas por níveis de 1 a
5, sendo 1 o nível mais básico (ex.: a palavra “paper”) e 5 o nível
mais elevado (ex.: a palavra “particle”). Hindmarsch tenta resumir
na sua lista tudo o que já tinha sido feito até então, incluindo sua
própria experiência como professor e elaborador de testes de
proficiência em inglês. O objetivo principal foi oferecer um
inventário de palavras que oferecessem uma base para a
compreensão de texto, com ênfase maior, portanto, na recepção
do que na produção.
Atualmente, com o advento da informática e o barateamento
da tecnologia de armazenamento, a importância desses inventários
lexicais pré-fabricados tem diminuído bastante. Editores de
dicionários e mesmo pesquisadores individuais têm dispensado
o uso dessas listas e desenvolvido seus próprios corpora,
geralmente na ordem de dezenas de milhões de palavras. O Projeto
COBUILD, que inicialmente envolveu a Editora Collins e a
Universidade de Birmingham, para citar apenas um exemplo, tem
uma base de dados superior a 100 milhões de palavras.
Críticas aos inventários lexicais naturalmente não faltam.
Em primeiro lugar, argumenta-se que o número de itens nesses
inventários são enganosos e não são tão fáceis de serem adquiridos
por parte do aprendiz como sugerem seus autores. As palavras
mais frequentes são também as mais polissêmicas e
colocacionalmente as mais complexas (NAGY, 1998). As 2.000
270 Vilson J. Leffa

palavras da General Service List, por exemplo, correspondem a


mais de 12.000 acepções. Existe também um problema cultural.
Por necessidade, essas listas têm que ser compiladas a partir de
textos autênticos de falantes nativos, e muitas palavras que são
comuns para esses falantes envolvem conceitos que não são
conhecidos por falantes de outros países (GAIRNS; REDMAN,
1993, p. 59). Ou seja, a lista inicial de 2.000 palavras cresce para
12.000 acepções e muitas dessas acepções não fazem parte do
conhecimento prévio do aluno.

Um exemplo de frequência na língua portuguesa

O exemplo a seguir mostra um pequeno estudo feito com


textos escritos em português, usando uma área restrita de
conhecimento e um corpus de um pouco mais de um milhão de
palavras. O estudo é resumido aqui para mostrar, diretamente, a
importância do estudo de frequência lexical no ensino de línguas
e, indiretamente, a importância da terminologia na delimitação
das áreas de conhecimento. Parece que o léxico é um fator
essencial não só para a identificação de uma língua mas também
para a determinação das diferentes ciências.
A língua portuguesa, segundo o Michaelis (1998), possui
em torno de 200.000 palavras. Isso significa que se essas 200.000
palavras fossem igualmente distribuídas pelos textos da língua,
um estrangeiro que soubesse apenas 100 palavras da língua
portuguesa e fosse ler um texto de exatamente 100 palavras, não
chegaria a entender uma única palavra desse texto.
Estatisticamente entenderia apenas um vigésimo de palavra, ou
seja, para entender uma única palavra num texto de 100, teria
que conhecer pelo menos 2000 palavras da língua portuguesa.
Língua Estrangeira 271

Figura 02 - Lista de 100 palavras em ordem alfabética


(MICHAELIS, 1998, p. 1218-1219)

lacina, lacínia, laciniado, lacinofoliado, lacinifloro, laciniforme,


lacínio, lacínula, lacinulado, Lacistema, Lacistemáceas, laço,
lacobricense, lacobrigense, laço-de-amor, lacol, lacólito,
lacomancia, lacomante, lacomântico, lácon, lacondé, lacônico,
lacônio, laconismo, laconizar, lacopaco, lacrador, lacraia,
lacrainha, lacranar, lacrar, lacrau, lacre, lacreada, lacrear,
lacrecanha, lacrimação, lacrimal, lacrimante, lacrimar,
lacrimatório, lacrimável, lacrimejamento, lacrimejante,
lacrimejar, lacrimejo, lacrimiforme, lacrimo-christi,
lacrimogêneo, lacrimonasal, lacrimopalpebral, lacrimoso,
lacrimotomia, lacrimotômico, lacrimótomo, lactação,
lactacidemia, lactado, lactagol, lactalase, lactálase,
lactalbumina, lactama, lactamida, lactância, lactante, lactar,
lactário, lactase, lactato, láctea, Láctea-via, lacteína, lactenina,
lactente, lácteo, lacteolina, lactescência, lactescente, Láctica,
lacticemia, lacticêmico, lacticínio, lacticinoso, láctico,
lacticolor, lacticultor, lacticultura, láctide, lactífago,
lactifermentação, lactifermentador, lactífero, lactífico,
lactifobia, lactífobo, lactiforme, lactífugo, lactígeno

Fonte: Autor
272 Vilson J. Leffa

Figura 03 - Segmento de texto, escolhido aleatoriamente, com


100 palavras de extensão

Mais interessante do que falar em tendências atuais em Análise


de Discurso é mostrar que essas tendências já são um fato da
própria constituição de seu território e tem a ver com a posição
da Linguística (dominante). Esta, como sabemos, se constitui
na relação contraditória entre unidade e diversidade,
contradição esta inscrita em seu próprio objeto já que não há
como negar o fato de que há Língua e há Línguas, ou seja, há
uma relação necessária entre o formalismo do sistema e a
diversidade concreta. A Linguística é pois afetada em sua
constituição por essa contradição que se inscreve na sua própria
história e na história das alianças que ela vai promovendo com
diferentes campos do

Fonte: Autor

Uma experiência bem simples pode demonstrar essa


realidade. Abra-se o Michaelis (1998) na página 1218 e, a partir
daí, liste-se as 100 palavras que aparecem em sequência. A Figura
02 mostra essas palavras. Agora compare-se essas palavras a um
segmento autêntico de texto (Figura 03). O que se observa é que
nenhuma das palavras listadas pelo dicionário aparece no
segmento.
Felizmente, na língua portuguesa, como em qualquer outra
língua, há palavras que são muito mais usadas do que outras, e
quando um texto é de uma determinada área de conhecimento, as
palavras daquela área predominam sobre as palavras de outras
áreas.
Isso pode ser demonstrado num levantamento feito das
palavras mais frequentes dos anais da ABRALIN de 1997. A
Tabela 01 mostra, por ordem de frequência, as 100 palavras mais
usadas nesses textos.
Língua Estrangeira 273

O primeiro aspecto que chama atenção, examinando a lista,


é a presença bem maior das palavras do chamado sistema fechado
da língua (artigos, pronomes, preposições, conjunções), com uma
presença bem menor do sistema aberto (substantivos, verbos,
adjetivos). Não surpreendentemente, tratando-se de textos da
área da linguística, a palavra mais frequente do sistema aberto
que aparece na lista é o substantivo língua, seguida de outras da
mesma área de conhecimento, como discurso, sujeito, linguagem,
análise, português. O aparecimento de duas palavras da língua
inglesa (the e of) - coincidentemente as duas palavras mais comuns
dessa língua e provavelmente oriundas de citações bibliográficas
- mostra, juntamente com a presença de palavras da área da
linguística, que a amostra não pode ser vista como representativa
da língua portuguesa, como um todo. Apesar disso, ou justamente
por isso, os resultados podem ser extremamente interessantes,
como se espera demonstrar abaixo.
Compare-se agora esta lista com o segmento textual da
Figura 02, que mostra um recorte extraído aleatoriamente do
corpus de um milhão de palavras. O primeiro aspecto que se
pode observar, em termos de frequência, é que algumas palavras
já estão sendo repetidas dentro do próprio segmento. Assim, a
preposição de aparece 3 vezes (sem contar as fusões: do, da etc.);
a preposição em, 4 vezes; o artigo o, 2 vezes; a conjunção e, 5
vezes; etc. As palavras da língua, portanto, não estão igualmente
distribuídas neste pequeno segmento.
274 Vilson J. Leffa

Tabela 01 - As 100 palavras mais comuns da língua portuguesa


em textos acadêmicos, por ordem de frequência (Anais da
ABRALIN)

de dos Forma trabalho processos


a ou pela aos terminologia
é das relação história texto
que língua sobre questão esse
o são seu diferentes of
do ao interpretação termo outros
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por também materiais isto sentidos
na português tratamento lugar não
com Brasil memória the só

Fonte: Autor

O aspecto mais interessante, no entanto, é o percentual das


palavras da lista de 100 que aparece no segmento, e que estão
sublinhadas. Contando-se as palavras uma a uma, o que se
descobre é que, das 100 palavras que compõem o texto, 71 estão
entre as mais frequentes de todo o corpus. Isso significa que
estatisticamente, comparando este resultado com o do dicionário,
há um salto extremamente significativo no reconhecimento de
palavras, com um aumento superior a 1.000%.
O que uma comparação entre a lista das 100 palavras da
Figura 01, extraídas do dicionário, e o segmento da Figura 02,
extraído de um texto autêntico, demonstra é insofismável:
Língua Estrangeira 275

enquanto que no dicionário predominam as palavras mais raras,


no texto predominam as mais frequentes. Poucos falantes da língua
portuguesa reconhecerão palavras como lacina ou lacrecanha. É
provável que mais da metade das 100 palavras listadas no
dicionário jamais sejam usadas pela maioria dos falantes.
Ainda que a amostra não seja representativa da língua como
um todo, os resultados não deixam de ser interessantes. Mostram
a importância da frequência lexical na composição de um texto
de especialidade e consequentemente na sua compreensão, com
sérias implicações para o ensino de línguas estrangeiras.

O ensino do vocabulário – aspectos internos

Para um ensino adequado do vocabulário dois aspectos


precisam ser inicialmente analisados. Primeiro, é preciso saber
o que significa conhecer uma palavra. Em segundo lugar, é
também importante saber como evolui esse conhecimento.
Quando falamos uma língua somos capazes de determinar
se uma sequência de sons ou letras, forma ou não uma palavra
dessa língua, se não do léxico, que nunca teremos condições de
conhecer em sua totalidade, pelo menos do vocabulário que
conhecemos dessa língua. Pode-se afirmar com relativa segurança
que todos os falantes do português brasileiro sabem que pedra é
uma palavra dessa língua. Quem fala português sabe também,
mesmo fora de contexto, que pedra

1. é uma palavra comum na língua portuguesa com grande


probabilidade de ocorrência, tanto na fala como na escrita,
ao contrário, por exemplo, da palavra jaspe, que ele sabe
que tem uma frequência menor;
2. tem alta colocabilidade com a palavra dura, por exemplo,
e também forma compostos como pedra de toque, pedra
de amolar etc.;
3. tem limitações de registro em algumas de suas acepções
(num texto acadêmico não se descreveria um aluno como
uma pedra);
276 Vilson J. Leffa

4. tem derivações e flexões como pedrada, pedregoso,


pedreira etc.;
5. é um substantivo feminino e não um verbo (um falante de
língua portuguesa nunca dirá “o pedra é dura”);
6. tem relações paradigmáticas com diamante, rubi, opala,
safira, esmeralda etc.;
7. tem, além do valor denotativo, baseado em suas
propriedades físicas de dureza e solidez, diversos valores
conotativos (coração de pedra etc.). (Para maiores
detalhes ver SCARAMUCCI, 1997; NATION, 1984;
READ, 1987; RICHARDS, 1976; WALLACE, 1982).

Dar esse tipo de conhecimento ao aluno é o que se pretende


quando se fala em aprendizagem ou aquisição lexical.
A questão da coocorrência, incluindo aí os conceitos de
colocação ou colocabilidade. Saber exatamente que palavras
podem acompanhar outras palavras é um dos aspectos mais
difíceis na aquisição do vocabulário de uma língua, principalmente
quando envolve os aspectos produtivos (escrita e fala). Em
português, por exemplo, não se diz “Fazer um serviço à causa da
ecologia” mas “prestar um serviço” - como também não se diz
embora, com o uso, muitas expressões inicialmente estranhas
acabam se estabelecendo (Ex.: “serviço de inteligência” em
substituição a “serviço de informações”).
Henriksen (1999) propõe que o desenvolvimento lexical
dá-se através de três dimensões: (1) do conhecimento parcial das
palavras ao conhecimento preciso; (2) do conhecimento
superficial ao conhecimento profundo; (3) do conhecimento
receptivo ao conhecimento produtivo.
Adaptando a concepção de Henriksen, propomos analisar
o processo do desenvolvimento lexical através de três dimensões
simplificadas, que definimos como quantidade, profundidade e
produtividade.
A dimensão da quantidade considera o desenvolvimento
lexical apenas ao longo de um continuum de palavras conhecidas
pelo aprendiz. A competência lexical de um falante é medida
pelo número de palavras que ele conhece. Esse número será
Língua Estrangeira 277

pequeno no início da aprendizagem, mas irá aumentando


gradativamente, com patamares significativos em alguns números,
com 1.000 palavras para o primeiro limiar de competência
comunicativa e 5.000 para a leitura de textos irrestritos na língua.
A dimensão da profundidade considera a evolução que vai
de um conhecimento superficial a um conhecimento profundo da
palavra. Inicialmente o aprendiz é apenas capaz de reconhecer,
por exemplo, se determinada sequência de letras pode ou não ser
reconhecida como uma palavra da língua. À medida que sua
competência lexical se desenvolve, ele se torna capaz de
estabelecer as relações paradigmáticas (sinônimos, antônimos etc.)
e sintagmáticas (que palavras podem acompanhar determinadas
palavras). Aprenderá que as palavras “preciosa” e “fundamental”
podem ocorrer frequentemente com “pedra”, formando expressões
como “pedra preciosa” e “pedra fundamental”, mas que apenas
“fundamental” ocorrerá frequentemente com “ensino” (“ensino
fundamental”), sendo rara a expressão “ensino precioso”.
Finalmente, a dimensão da produtividade considerará a
oposição entre conhecimento receptivo e conhecimento produtivo
do léxico. De modo geral, somos capazes de reconhecer um
número muito maior de palavras quando ouvimos ou lemos um
texto do que somos capazes de produzir quando falamos ou
escrevemos.
Essas dimensões também interagem entre si, alimentando-
se mutuamente. Assim, à medida que cresce o número de palavras
conhecidas, aquelas que já eram conhecidas, tornam-se mais
profundamente conhecidas e o vocabulário receptivo, com o uso
constante, pode também se tornar produtivo.

Incidental versus intencional

O desenvolvimento da competência lexical é também uma


área onde se percebe com clareza a distinção entre aprendizagem
incidental - definida como aquisição natural, não planejada - e
aprendizagem intencional - definida como desenvolvimento
formal e planejado. Essa diferença fica ainda maior quando se
278 Vilson J. Leffa

compara o que acontece no desenvolvimento do léxico na língua


materna com o que acontece no desenvolvimento lexical na L2.
Assim, na língua materna, o processo de desenvolvimento
lexical inicia-se pela aprendizagem incidental com predomínio
do input oral, altamente contextualizado. O aprendiz da língua
não está preocupado em aprender palavras novas, mas em
construir um significado do que ouve. É só mais tarde, com a
escolarização, que se inicia o processo formal de aprendizagem
intencional do léxico, com o esforço deliberado e consciente em
aprender palavras novas.
Já na L2, acontece o contrário. O desenvolvimento do
vocabulário inicia-se normalmente pela aprendizagem intencional,
onde as primeiras palavras são explicitadas pelo professor. É só
mais tarde, quando o aluno já possui um vocabulário de cerca de
3.000 a 5.000 palavras, que o processo de aprendizagem incidental
tem início. O léxico, então, se desenvolve de modo não planejado,
principalmente através da leitura, pelo processo de inferenciação
(LAUFER, 1997; COADY et al, 1993; HIRSCH; NATION, 1992).
Um levantamento das investigações realizadas sobre
aprendizagem incidental e intencional do léxico, tanto em L1 como
em L2, parece indicar que há um contínuo entre os dois, sem uma
fronteira precisa onde começa um e termina o outro. A
aprendizagem incidental, por definição, deveria ocorrer de modo
automático, abaixo do nível da consciência, mas normalmente
não é assim. Para haver aprendizagem é necessário um esforço
de atenção, não só para o significado da palavra mas também
para a sua forma. A abundância de informação existente no texto,
já por si normalmente redundante, pode levar o leitor a inferir o
significado de uma palavra com tanta facilidade que acaba
guardando apenas o conceito, esquecendo a forma linguística em
que o conceito é expresso (NATION; COADY, 1988). A hipótese
do input, defendida por Krashen (1985, 1989), de que o
desenvolvimento do léxico só ocorre quando o aprendiz enfoca
sua atenção no significado, ignorando a forma, é rejeitada por
muitos pesquisadores, que defendem a necessidade de atenção
Língua Estrangeira 279

aos dois aspectos (ELLIS, 1995; ROBINSON, 1995; ELLIS, 1994;


SCHMIDT, 1993).
A aprendizagem incidental do léxico tem despertado o
interesse dos pesquisadores devido à crença de que ela possui
várias vantagens sobre o ensino direto do vocabulário, entre as
quais se destacam as seguintes:

(a) é contextualizada, fornecendo ao aprendiz toda a riqueza


que envolve o sentido e o uso da palavra;
(b) é pedagogicamente eficaz na medida em que possibilita a
ocorrência simultânea de duas atividades: compreensão
do léxico e compreensão de leitura;
(c) é mais individualizada porque o léxico que está sendo
adquirido vem de textos selecionados pelo próprio aluno
(HUCKIN; COADY, 1999).

A aprendizagem incidental oferece também algumas


limitações. No caso da L2, há muitos aspectos que não se
desenvolvem espontaneamente, como parece ser o caso das
expressões idiomáticas e das coligações. Diferentes investigações
(ex.: BAHNS; ELDAW, 1993; ARNAUD; SAVIGNON, 1997),
têm demonstrado que falantes não-nativos de inglês, mesmo
possuindo um excelente domínio da língua inglesa, deixam a
desejar no que se refere às expressões idiomáticas. O
desenvolvimento pleno das expressões próprias de uma língua
parece estar vinculado ao ensino explícito e direto.
A aprendizagem incidental não é inteiramente “incidental”
e, para ser bem sucedida, depende de vários fatores, nem sempre
presentes nas tarefas executadas pelos aprendizes, incluindo o
uso da atenção, um domínio básico lexical de alguns milhares de
palavras, uso adequado de estratégias de aprendizagem,
capacidade de inferenciação.
280 Vilson J. Leffa

Profundidade de processamento: O fator crucial

Tanto na aprendizagem incidental como na intencional, uma


variável importante é a profundidade de processamento que ocorre
em relação à palavra que está sendo adquirida. O processamento
é tão mais profundo quanto maior for o número de experiências
vividas pelo sujeito envolvendo a palavra em questão, incluindo
diferentes tipos de elaboração mental: repetição, escrita e reescrita,
tradução, uso do contexto, paráfrase etc. Uma palavra que é lida
ou ouvida apenas uma vez, sem grande envolvimento por parte
do leitor, pode ser facilmente esquecida, mas uma palavra que
retorna e é afetiva e cognitivamente remexida, processada e
manipulada terá uma probabilidade maior de se integrar numa
rede lexical mais ampla e permanecer na memória de longa
duração (SCHMITT; SCHMITT, 1995; CRAIK; LOCKHART,
1972; CRAIK; TULVING, 1975; LAWSON; HOGBEN, 1996).
Uma palavra que é exposta mais vezes terá mais probabilidade
de ser adquirida (SARAGI, NATION; MEISTER, 1978; NAGY,
HERMAN; ANDERSON, 1985; HERMAN et al., 1987;
NATION, 1990), mas outros fatores também são importantes,
como a saliência da palavra num determinado texto (BROWN,
1993), a morfologia da palavra, o interesse do aprendiz, a
semelhança com outras palavras, a disponibilidade e afluência
de pistas contextuais (HUCKIN; COADY, 1999).
Em termos de aprendizagem intencional, o princípio de
que quanto mais profundo o processamento maior a retenção
também é mantido. Inúmeras têm sido as estratégias propostas
para ampliar o investimento cognitivo, e mesmo afetivo do aluno
para a aprendizagem intencional do vocabulário. Entre essas
estratégias destacam-se as seguintes:

Usar o contexto

Partindo do princípio de que a simples instrução específica


do vocabulário não garante a compreensão de leitura, o aluno
deve aprender as palavras novas dentro de um contexto
Língua Estrangeira 281

significativo, que pode ser dado por relações intratextuais, onde


o significado da palavra desconhecida pode ser inferenciado
dentro do próprio texto, e por relações intertextuais, considerando
aí as disciplinas do currículo escolar. Os exemplos abaixo -
imaginando-se uma situação de ensino de português como língua
estrangeira - mostram como dados do próprio texto podem
contribuir para a inferenciação, através de processos como
generalização, definição, sinonímia, antonímia etc. (As palavras
sublinhadas seriam desconhecidas pelos alunos)

A multidão reuniu-se nos portões da cidade às dez horas


e iniciou a invasão. Chegando à igreja, meia hora mais
tarde, a caterva irrompeu aos gritos pela nave central,
clamando pela presença dos sacerdotes. (Sinonímia)
Pela manhã o mar parecia calmo, mas os marinheiros mais
experientes sabiam, pela presença das nuvens escuras no
horizonte, que em breve ele estaria encapelado.
(Antonímia)
O inquérito da Aeronáutica concluiu que o pylon do CD-
10, a estrutura que liga o motor às asas, estava
fundamentalmente bem montado. (Explicação)
As espingardas, os cartuchos, a pólvora, o chumbo, todos
os apetrechos para a caça estavam sobre a mesa.
(Generalização)

Considerando as relações intertextuais, as disciplinas do


currículo do aluno podem representar o contexto ideal para o
desenvolvimento do léxico, tornando a aprendizagem mais
autêntica e comunicativa. Muitos especialistas da área de ensino
de línguas defendem a ideia de que a tarefa de aprendizagem do
vocabulário não é responsabilidade exclusiva do professor de
línguas estrangeiras:

O professor de línguas deve manter contato permanente


com colegas de outras disciplinas como ciências e biologia
para poder dar aos alunos o necessário suporte lexical
demandado por essas disciplinas (BABST, 1984, p. 53).
282 Vilson J. Leffa

Cada disciplina do currículo escolar tem sua terminologia


própria e por isso fala uma língua própria ... é um equívoco
imaginar que o ensino do vocabulário na sala de aula seja
de obrigação exclusiva do professor de línguas
(RAMTACHAL, 1989, p. 23).
... o ensino de matemática deve enfocar, de modo mais
amplo do que tem sido feito até agora, a aprendizagem da
linguagem específica e técnica da matemática (MAREE,
1994, p. 115, apud VORSTER, 2000).

O encontro com a palavra desconhecida dentro de um texto


onde se pode perceber suas relações com outro segmento serve
para contextualizar e tornar significativa a aprendizagem,
mostrando matizes, restrições e preferências entre as palavras em
uso - o que não seria percebido num estudo descontextualizado,
com simples listas de palavras. O uso de outras disciplinas serve
também para tornar a aprendizagem do léxico não apenas
autêntica, mas também útil para o aluno. Essa combinação de
contextos intra- e intertextuais, pelo envolvimento cognitivo
proporcionado ao aluno, deve levar a uma profundidade maior
de processamento.

Menos é mais

A profundidade de processamento está também ligada a


um ensino mais vertical (conhecer bem poucas palavras) do que
horizontal (conhecer superficialmente um grande número de
palavras). Há sempre palavras que são mais importantes do que
outras e essas devem ser selecionadas para uma aprendizagem
mais profunda. Os critérios para essa seleção envolvem
centralidade temática, conceitos críticos e frequência.
A centralidade temática parte do princípio de que o aluno
não está aprendendo a língua num vácuo, mas dentro de
determinadas áreas de conhecimento (a divisão da célula, a lógica
booliana, a psicologia social, a ciência da linguagem etc.). Cada
uma dessas áreas envolve uma terminologia específica (Como as
palavras “língua”, “discurso”, “sujeito”, “linguagem”,
Língua Estrangeira 283

“interpretação”, “processo” em textos de linguística, como se viu


acima) - sem a qual o aluno teria dificuldade em compreender os
respectivos textos. Esses vocábulos seriam selecionados
prioritariamente.
Há palavras que envolvem conceitos críticos dentro de uma
disciplina. Os termos “discurso” e “sujeito” na área da linguagem,
por exemplo, podem ser considerados conceitos chave e devem
ser trabalhados com mais profundidade.
Finalmente, há os termos que são mais frequentes e outros
que o aluno raramente encontrará em outros textos. Considerando
a facilidade com que os termos mais frequentes podem ser
identificados pelo professor, usando os recursos atuais da
informática, esses devem também receber prioridade de
tratamento.
O descarte dos termos que não possuem centralidade
temática, que não envolvem conceitos críticos e que não são
frequentes permite uma concentração maior num número menor
de vocábulos, possibilitando, assim, uma profundidade maior de
processamento.

Estratégias de fixação

São tantas as estratégias sugeridas para a fixação de uma


palavra nova na memória de longa duração, que um simples
apanhado do que é proposto na literatura da área produziria uma
lista quase inútil pela quantidade de atividades. De modo geral,
as sugestões propostas envolvem um esforço consciente para reter
tanto a forma como o conteúdo da palavra. O que se expõe,
portanto, é um resumo das estratégias sugeridas, tentando agrupar
por afinidade o que está muitas vezes espalhado em diferentes
abordagens.
Preste atenção no início, fim e extensão da palavra.
Considerando que as palavras são normalmente recuperadas da
memória através do som inicial, som final e número de sílabas
(BROWN; MCNEILL, 1966), faça um esforço consciente para
fixar esses três elementos de uma palavra que precisa ser
aprendida.
284 Vilson J. Leffa

Vá além e aquém da palavra. Decomponha a palavra em


seus elementos menores (“petrografia” só pode ser “a descrição
das pedras” – “petro” + “grafia”), mas lembre-se também que
muitas palavras são compostas de várias palavras e formam
expressões idiomáticas (como “lá vai pedra” em “tem 50 anos e
lá vai pedra”).
Faça uma imagem mental do significado da palavra.
Conscientemente crie uma representação da palavra, unindo forma
ao significado, imaginando às vezes até uma história, para lembrar
com mais facilidade. (“Pirita é uma pedra amarelada, com brilho
falso, parecida com ouro. Um alemão loiro, que chama birita de
pirita, tomou umas biritas e foi enganado, comprando pirita por
ouro”).
Brinque com a palavra. Crie exemplos com a palavra nova,
faça paráfrases, humor etc. (“Eu cantaria de felicidade se morasse
numa casa de cantaria lavrada lá na beira do mar, mas não cantaria
se tivesse que carregar nas costas as pedras de cantaria”)
Faça vínculos com a palavra. Estabeleça todos os vínculos
que você puder fazer com a palavra, dentro e fora do texto, usando,
inclusive, sua experiência de mundo (“A calçada da rua onde eu
brincava na minha infância era pavimentada de pedra-ferro e eu
não sabia”, “Pedra-ferro é sinônimo de basalto, abundante na Serra
Gaúcha”, “As igrejas de Gramado e Canela são feitas de pedra-
ferro”)
Apaixone-se pela palavra. Crie todas as oportunidades
possíveis para reencontrar a palavra que você precisa aprender,
indo a um bom dicionário de aprendizagem, ouvindo-a se possível,
procurando-a em textos autênticos acessíveis pela internet ou em
CD-ROM (para ver a companhia em que elas andam), catando
exemplos de uso e possivelmente incorporando-a ao seu banco
pessoal de palavras.
Essas são, resumidamente, algumas das estratégias que se
pode usar para induzir a profundidade de processamento na
aprendizagem do vocabulário. O domínio do léxico de uma língua
exige recursos, não só cognitivos e afetivos, mas também de
tempo. Se parecer um investimento alto demais, a resposta dos
Língua Estrangeira 285

especialistas da área é de que o retorno será provavelmente mais


alto ainda.

Conclusão

Três aspectos precisam ser selecionados para que o


desenvolvimento do léxico em uma língua ocorra de modo
adequado e suficiente: (1) seleção do vocabulário a ser aprendido;
(2) seleção dos textos a serem usados; e (3) seleção das estratégias
a serem empregadas. Vocabulário e texto andam sempre juntos,
atrelados a uma determinada área de conhecimento; um texto sobre
química não vai usar o vocabulário das ciências sociais. Fazem
parte dos aspectos externos da aquisição lexical. Já as estratégias
são mais universais e podem ser aplicadas com pouca ou nenhuma
alteração a qualquer área de conhecimento; o que se faz para
adquirir o vocabulário da geologia não é muito diferente do que
deve ser feito para aprender o vocabulário da matemática. As
estratégias compõem a parte interna da aquisição lexical.
A seleção do vocabulário é uma necessidade pelo grande
número de palavras que precisam ser descartadas na aprendizagem
de uma língua. Das 200.000 palavras arroladas pelo Michaelis,
190.000 não precisam ser conhecidas para se ler um texto em
qualquer área de conhecimento. Mesmo a afirmação de que um
biólogo precisaria conhecer 10.000 palavras da língua portuguesa
para ler um texto de biologia nessa língua já parece um exagero -
provavelmente precise saber apenas a metade, ou talvez até menos.
Por isso é importante saber selecionar.
A seleção dos textos, por outro lado, é importante porque
as pessoas têm interesses específicos e conhecem o mundo através
desses interesses. Esse conhecimento de mundo pode dizer qual
é o significado da palavra desconhecida quando ela ocorre
significativamente dentro de um texto, levando à aquisição se a
palavra retornar mais vezes e ao descarte se a aparição for única
- para benefício do aluno que aprenderá a selecionar o que é mais
importante.
286 Vilson J. Leffa

Como tudo que nos cerca é sempre apresentado em


quantidade muito superior ao que podemos processar, também
em relação às estratégias, precisamos ser seletivos. No mínimo,
devemos adequar as estratégias a vários aspectos que podem afetar
a sua escolha, tais como o nível de adiantamento na língua (o uso
da inferência na leitura para acessar o significado de uma palavra
pode não ser a melhor opção para o aluno de nível básico), o grau
de semelhança entre a língua materna e a língua estrangeira (o
que funciona para um falante do português lendo um texto em
espanhol, poderá não funcionar lendo um texto em alemão), o
objetivo que se pretende com a aprendizagem do vocabulário
(aprender uma palavra para ler um texto pode exigir uma estratégia
diferente de aprender uma palavra para usá-la na conversação).
Enfatizar o ensino específico do vocabulário não oferece o
perigo de se hipertrofiar este aspecto da aprendizagem de uma
língua em relação a outros aspectos, como a sintaxe, a fonologia,
a morfologia e mesmo a pragmática. Conhecer uma palavra não
é apenas estabelecer a conexão rígida entre forma e conteúdo,
como se fossem dois monolitos que se encaixassem um no outro,
impossíveis de serem analisados. Conhecer uma palavra é despi-
la de sua embalagem, descobrir as partes que a compõem e ver
como cada uma dessas partes tem repercussões lá fora, com
elementos internos de outras palavras - só permitindo a criação
de textos onde os equilíbrios interno e externo, em seus inúmeros
aspectos, possam ser mantidos. Uma frase simples como “O
presidente vetou três artigos da lei” só é possível na medida em
que cada uma das palavras dessa frase compartilhe inúmeros traços
com as outras palavras, obedecendo a fronteiras sintagmáticas,
oracionais, fonológicas, morfológicas etc. - inviabilizando
segmentos como “*o presidentes”, “*O presidente vetaram”, “*O
riacho vetou três artigos da lei”, ou mesmo “*A mulher do
presidente vetou três artigos da lei” (em situações onde só o
presidente pode vetar artigos de lei). A ênfase no léxico é a
maneira mais eficiente de se aprender uma língua porque todos
os outros aspectos - da fonologia à pragmática - decorrem
naturalmente de componentes que estão dentro das palavras.
Língua Estrangeira 287

Capítulo 15
A autonomia na aprendizagem de línguas16

Eu nunca deixei a escola interferir na minha educação.


(Mark Twain)

Estou sempre disposto a aprender, mas nem sempre a ser


ensinado. (Winston Churchill)

Nada pode ser menos provocativo do que iniciar um texto


dando, já de início, uma definição do tópico a ser abordado; mata
toda a expectativa. Pior do que isso, só fazendo uma coisa que
todo mundo pode fazer, com esforço mínimo, que é pegar o
dicionário para achar a definição. O dicionário representa o senso
comum, a conformidade de ideias. O que pode ser menos
provocativo do que o consensual? Mas é exatamente por aí que
eu gostaria de começar; por uma submissão ao senso comum. O
que o senso comum diz sobre autonomia? Vamos ver o que está
no Aurélio. Lá diz o seguinte:

autonomia
[Do gr. autonomía.]
S. f.
1. Faculdade de se governar por si mesmo.
2. Direito ou faculdade de se reger (uma nação) por leis
próprias.
3. Liberdade ou independência moral ou intelectual.

16
Uma versão anterior deste capítulo foi publicada em: LEFFA, V. J. . Quando
menos é mais: a autonomia na aprendizagem de línguas. In: Christine
Nicolaides; Isabella Mozzillo; Lia Pachalski; Maristela Machado; Vera
Fernandes. (Orgs.). O desenvolvimento da autonomia no ambiente de
aprendizagem de línguas estrangeiras. Pelotas: UFPEL, 2003, v., p. 33-49
288 Vilson J. Leffa

4. Distância máxima que um veículo, um avião ou um


navio pode percorrer sem se reabastecer de combustível.
5. Et [Ética]. Condição pela qual o homem pretende
poder escolher as leis que regem sua conduta [Cf., nesta
acepç., autodeterminação (2), heteronomia (2) e liberdade
(11)] .

Acho que com essa definição já dá para começar a ser


provocativo. Depois de afirmar que autonomia é liberdade,
independência e capacidade de se reger por leis próprias, o
dicionário afirma na acepção 5 que autonomia é a “condição pela
qual o homem pretende poder escolher as leis que regem sua
conduta”. A provocação já começa no próprio verbete; depois
de oferecer várias definições de cunho genérico, oferece uma única
que é específica de uma determinada área de conhecimento, no
caso, a Ética; e essa única definição contrapõe-se a todas as outras,
dizendo, que autonomia é pretensão. A pergunta que cabe aqui é
a seguinte: será que existe autonomia? Desde quando o homem é
capaz de se governar por si mesmo? Desde quando tem liberdade,
independência e autodeterminação? Será que a autonomia não é
uma ilusão? Será que a história não mostra que a evolução do
homem é a consciência cada vez maior da perda da autonomia?
Vamos dar uma olhada bem rápida na história dessa
evolução, lembrando que tudo que nasce, morre; tudo que sobe
cai, incluindo ideias e impérios. Já tivemos “Ascensão e Queda
do Império Romano”, “Ascensão e Queda do III Reich”. Para
alguns, já tivemos “Ascensão e Queda do Comunismo”; para
outros “Ascensão e Queda do Capitalismo”. Onde isso não
acontece é na autonomia: não existe uma ascensão e queda da
autonomia do homem. O que existe é uma queda, e queda da
autonomia; algo que cai sem nunca ter subido.
Há um consenso de que o homem está ficando cada vez
menos autônomo, menos independente - e cada vez mais regido,
mais subjugado. Se antes nossa dependência era apenas local ou
familiar, agora temos uma dependência planetária. Se antes, numa
época pré-freudiana, o filho ao crescer poderia pelo menos ter a
pretensão de se libertar da dependência materna, hoje ele não só
Língua Estrangeira 289

ficará dependendo da mãe para o resto da vida, mas é ainda


subjugado por forças globais sobre as quais não tem o mínimo
controle. Uma empresa em algum país apresenta um erro no
balancete e as consequências respingam lá no mendigo de uma
cidadezinha do outro lado do mundo, que talvez não encontre
mais a pilha de jornais velhos que usava para dormir.
Vejamos então rapidamente três grandes recaídas do
homem, alguns dos abalos que ele sofreu na sua autoestima, com
reflexos na sua pretensão de autonomia. O que se afirma aqui
não são ideias próprias, já foram ditas várias vezes, por várias
pessoas em vários outros lugares - o que é apenas mais uma
submissão, mais um abalo na pretensão de autonomia. Essas ideias
fazem parte do imaginário acadêmico.
Houve uma época em que o homem se acreditava no centro
do universo e que tudo girava ao redor dele, incluindo o sol e as
estrelas. Já tinha sido expulso do paraíso, já tinha aprendido a
sofrer, já tinha pago o preço do pouco conhecimento que tinha
sobre as coisas do mundo, mas ainda se acreditava no centro desse
mundo. Mas aí vem Copérnico e mostra que não é o sol que gira
ao redor da terra, mas que é a terra que gira ao redor do sol,
transferindo o homem do centro para a periferia do universo. É o
primeiro grande golpe que a ciência desfecha contra o homem,
afetando diretamente sua autoestima. Não podemos ter a pretensão
de achar que as coisas são de um jeito quando elas são de outro.
Podemos mentir para nós mesmos, podemos nos enganar por
algum tempo, tentando ignorar a realidade que nos cerca, olhar
para o próprio umbigo e criar uma consciência mágica que filtra
a realidade de acordo com nossas pretensões, mas um dia o mundo
vem abaixo. À medida que o homem evolui da consciência mágica
para a consciência crítica, ele vai diminuindo de tamanho, virando
um filme de ficção científica.
O golpe seguinte foi dado por Darwin. Antes de Darwin, o
homem era a quinta-essência da criação. Já se tinha conformado
que a Terra não era mais o centro do universo, mas quando olhava
ao redor de si e via os animais sentia que havia uma diferença
muito grande entre ele e os animais. Era uma diferença de sentido.
Os animais vinham de baixo, da terra. O homem, não. O homem
290 Vilson J. Leffa

vinha de cima, de um quinto elemento, que não era nem terra,


nem água, nem ar e nem fogo. O homem vinha de uma luz. Mas
Darwin deu uma outra direção à caminhada do homem; o homem
não viria de cima mas de baixo, da terra, como os outros animais.
E Darwin rebaixou o homem de um reino superior para o reino
animal.
O terceiro golpe, e este tem a ver diretamente com a
autonomia, vem de Freud. Antes a gente podia se amparar em
Pascal: “O homem não é senão um caniço, o mais fraco da
natureza, mas é um caniço pensante”. O caniço, na frase de Pascal
e no sentido comum da Botânica, é uma planta de caule delgado
e flexível que se dobra com a ação do vento, mas não se quebra.
Quando o vento para, ele está novamente de pé. Faz lembrar
também uma frase de Hemingway em O velho e o mar: “O homem
pode ser destruído mas não vencido”. O homem tropeça, cai,
machuca-se - mas sempre se levanta.
Por ter a capacidade de pensar, o homem, ao contrário de
todos os outros animais, consegue separar-se do mundo imediato
que o cerca e refletir sobre ele. “Vá lá”, pode-se dizer “Tudo
bem, o homem é um animal, mas é um animal consciente”. É aí
que entra Freud e dá o golpe de misericórdia: o consciente é
dominado pelo inconsciente.
Isso é só o começo. Se eu me voltar para as áreas da
linguagem e do ensino, a situação não é muito diferente. De um
lado, as ideias de Chomsky e da mente computacional. O ser
humano adquire uma língua porque nasce com um dispositivo de
aquisição da língua (Language Acquisition Device), uma espécie
de robô que entra automaticamente em funcionamento quando as
pessoas ao redor da criança começarem a falar. Se falarem russo,
a criança falará russo; se falarem inglês, a criança falará inglês;
se falarem javanês, a criança falará javanês, e assim por diante.
Tudo automaticamente, sem nenhuma intencionalidade
pedagógica do meio ambiente. O professor nada tem a ver com
a aquisição de uma língua, seja ela a materna, ou uma língua
estrangeira. Tudo isso, segundo a teoria de Chomsky, é transposto
para o ensino de línguas estrangeiras, principalmente através das
Língua Estrangeira 291

ideias de Krashen (hipótese de input, a questão do filtro afetivo


etc.).
Do outro lado, oposto a Chomsky, temos as ideias de
Vygotsky, da mente social. O ser humano adquire uma língua
porque interage, em sociedade, com os outros seres humanos.
Todo conhecimento, incluindo a língua, é construído socialmente
através da interação. Em termos de autonomia, não é muito
diferente das ideias de Chomsky, pelo determinismo pressuposto
- o indivíduo só aprende se puder interagir com outros indivíduos
- mas Vygotsky, ao contrário de Chomsky, a meu ver, evita o
automatismo; não basta que o aluno esteja exposto ao input
linguístico. É necessário também que haja intencionalidade
pedagógica no meio ambiente. Isso é importante para nós
professores porque abre um espaço para o ensino formal e
planejado, acelerando a aprendizagem através da atuação na zona
de desenvolvimento proximal do aluno.
Um outro conceito importante de Vygotsky para a
autonomia é o conceito de mediação. A aprendizagem para ocorrer
não precisa necessariamente da presença do professor; pode dar-
se através da mediação de um artefato cultural, socialmente
situado. Eu gostaria de esclarecer essa ideia através da citação
de um trecho da Professora Marta Kohl de Oliveira, uma das
principais divulgadoras das ideias de Vygotsky no Brasil, e que
diz o seguinte:

[A] idéia de um processo que envolve, ao mesmo tempo,


quem ensina e quem aprende não se refere
necessariamente a situações em que haja um educador
fisicamente presente. A presença do outro social pode se
manifestar por meio dos objetos, da organização do
ambiente, dos significados que impregnam os elementos
do mundo cultural que rodeia o indivíduo. Dessa forma,
a idéia de alguém que ensina pode estar concretizada em
objetos, eventos, situações, modos de organização do real
e na própria linguagem, elemento fundamental nesse
processo. (OLIVEIRA, 1995, p. 57).
292 Vilson J. Leffa

Na minha percepção, Vygotsky, com sua ênfase na


necessidade da intencionalidade pedagógica e no uso dos artefatos
culturais como mediação, representa uma trégua quando se fala
de autonomia. Ainda que o desempenho do aluno tenha que ser
assistido durante um certo período, há pelo menos a previsão de
que no futuro o aluno será capaz de executar a tarefa por conta
própria; a autonomia é um estágio a que se chega.
Outras teorias não só inviabilizam a autonomia como tiram
a voz do professor. Vejamos apenas dois exemplos, coletados de
maneira aleatória:

Todo discurso é constitutivamente atravessado por “outros


discursos” e pelo “discurso do Outro” (AUTHIER-
REVUZ, 1982, p. 141, apud BENITES, 2002).

[T]odo discurso é heterogêneo porque o sujeito do


discurso é heterogêneo, na medida em que, através de sua
boca, falam diversas vozes (BENITES, 2002, p. 3)

Isso significa o seguinte: eu não tenho autonomia para falar


sobre autonomia. Em primeiro lugar eu não tenho voz própria.
Eu tenho que me submeter a outros discursos, ao que outras
pessoas já escreveram sobre o tópico que eu vou falar. Em segundo
lugar, eu tenho que me submeter ao meu interlocutor. Produzir
um texto, para ser falado ou para ser lido, mas principalmente
para ser falado, é uma aprendizagem sobre a arte de se submeter.
Quando envio um artigo para publicação, eu submeto o artigo. O
termo não poderia ser mais adequado. Quando eu falo de viva
voz, como numa palestra, a submissão é ainda maior. Eu tenho
um interlocutor física e socialmente constituído na minha frente
e tenho a obrigação de saber com quem estou falando. Eu tenho
que respeitar o auditório. No momento em que eu deixar de me
submeter, fico falando sozinho, não para o auditório, mas para as
paredes ou para o microfone.
Isso não é nem bom nem ruim; é assim. Faz parte do desafio
da comunicação. Conhecer o nosso ouvinte ou o nosso leitor é
tão ou mais importante do que conhecer o tópico sobre o qual
Língua Estrangeira 293

falamos. Essa submissão do escritor ao leitor ou do locutor ao


ouvinte pode ser muito bem ilustrada numa crônica de Luís
Fernando Veríssimo, que eu gostaria de reproduzir aqui.

CONSELHOS

Ninguém me pediu conselhos sobre a arte da comunicação


mas eu já tenho algumas parábolas prontas para o caso de
pedirem.

Oráculo bem-sucedido é oráculo prevenido.

Para começar, a parábola dos dois pianistas.

O primeiro pianista entra no palco. Senta-se no banco do


piano. Levanta-se. Ajusta o banco. Senta-se de novo.
Exercita os dedos. Pousa os dedos sobre o teclado. Fecha
os olhos. Respira fundo.

Começa a tocar. Toca maravilhosamente bem. Seus dedos


ágeis correm pelas teclas em grande velocidade. Seus
graves são precisos. Seus agudos são límpidos. A melodia
alça vôo. Os arpejos arpejam, os trinados trinam. Quase
não se enxergam os dedos do pianista perseguindo-se pelo
teclado, para cima e para baixo, para cima e para baixo,
como crianças alegres. Nenhuma nota em falso. Nenhum
erro.

No fim da apresentação, ouvem-se palmas educadas.


Alguns risos abafados. Um evidente mal-estar coletivo
acompanha o primeiro pianista na sua saída do palco.

Entra o segundo pianista. Senta-se rapidamente no banco


e bate numa tecla. Bate na mesma tecla de novo. E de
novo. Depois levanta-se e sai do palco sob uma ovação
da platéia.

Na saída do recital, todos elogiam o segundo pianista.


Comentam: como é bom ver alguém que sabe exatamente
294 Vilson J. Leffa

o que quer e como consegui-lo. Não foi como o outro


que passou o tempo inteiro procurando, freneticamente,
a nota certa, e não a encontrou. Quer dizer,
importantíssimo conhecer o seu público. (Luís Fernando
Veríssimo, Zero Hora, 02-05-91)

É claro que há neste texto outros sentidos além da simples


ideia de submissão que estou tentando demonstrar. Há também a
ironia provocativa de Luís Fernando Veríssimo, que consegue
fazer humor, digamos assim, de sua própria desgraça, de sua
condição de subordinação ao leitor, rebelando-se pelo recurso da
ironia.
A ideia geral é de que a ciência, à medida que avança, vai
mostrando um homem cada vez mais submisso e menos autônomo.
Isso é percebido não só nas ciências, de um modo geral, mas
também nas ciências da linguagem, de modo particular, desde o
inatismo de Chomsky até as ideias de aniquilamento do sujeito
na Análise do Discurso. Teoricamente parece que a autonomia
do sujeito é apenas uma ilusão.
Além dos questionamentos teóricos, a autonomia parece
também enfrentar algumas restrições de ordem prática. Entre
essas, gostaria de destacar as seguintes:

· Restrições relacionadas ao aluno


· Restrições relacionadas ao professor
· Restrições relacionadas à escola

Comecemos pelas restrições relacionadas ao aluno. Um


levantamento da literatura na área aponta entre outros os seguintes
problemas.
Falta de interesse no estudo da língua estrangeira.
Aprender uma língua estrangeira não é fácil. Há um período inicial
de entusiasmo, uma espécie de “lua de mel” com a língua
estrangeira quando o aluno começa a estudar, nas primeiras aulas.
Passado esse período de lua de mel, o interesse normalmente cai.
Língua Estrangeira 295

Existe aqui uma má e uma boa notícia. A má notícia é que


a grande maioria dos alunos descobre que aprender uma língua
estrangeira requer muito mais esforço, muito mais persistência
do que estão dispostos a dar. Em situações onde a língua
estrangeira só é falada dentro da sala de aula, apenas alguns
pouquíssimos alunos vão adquirir um conhecimento funcional
da língua: talvez dar alguma orientação ao turista estrangeiro com
algumas frases decoradas, talvez ler algum texto na sua área de
interesse. Normalmente, a preocupação do aluno será apenas de
estudar para conseguir uma nota de aprovação no fim do ano;
qualquer tarefa solicitada pelo professor só será executada pelo
aluno se houver a garantia, ou a ameaça, de uma nota.
A boa notícia, para a autonomia, é que os pouquíssimos
alunos que conheci pessoalmente e que foram capazes de adquirir
um conhecimento funcional da língua estrangeira, foram alunos
autônomos, alunos que por conta própria foram muito além do
que lhes foi exigido na sala de aula. Isso me leva a pensar que,
excetuados os casos de imersão, só é possível aprender uma língua
estrangeira se o aluno for autônomo. Se não for assim, ele vai
ficar apenas no que é dado na sala de aula, e isso não basta para
adquirir o domínio de uma língua.
Em relação ao aluno pode haver também problemas de
estilo de aprendizagem. Aprender uma língua estrangeira requer
algumas aptidões que alguns alunos não têm, incluindo, por
exemplo, tolerância à ambiguidade, que é uma espécie de
capacidade de conviver com a insegurança. O aluno pode por
exemplo preferir a certeza da gramática em vez da incerteza do
texto ou do diálogo, onde nem sempre é possível estabelecer com
precisão o que é certo e o que é errado. O aluno, principalmente
o adolescente, pode também não possuir o que poderíamos chamar
de tolerância à crítica; falar uma língua estrangeira é expor-se, às
vezes, até ao ridículo.
Todas essas restrições por parte do aluno, que já são
prejudiciais para o ensino da língua estrangeira, de um modo geral,
são mortais quando se referem à autonomia. Na sala de aula
tradicional, centrada no professor, a falta total de aprendizagem
296 Vilson J. Leffa

pode ser escamoteada de inúmeras maneiras. Pode-se argumentar,


por exemplo, que foi feito o que é possível; o aluno não aprendeu
a língua, mas aprendeu outras coisas que são mais importantes
como a solidariedade, a capacidade de trabalhar em grupo e talvez
tenha até desenvolvido o senso crítico de sua condição de
mentalmente colonizado pela propaganda dos países centrais. O
filtro afetivo, que é normalmente visto como algo indesejável,
acaba sendo visto como um benefício; o aluno criticamente optou
por não aprender a língua estrangeira.
Essa facilidade de camuflar a falta de empenho em aprender
na aula tradicional não existe, a meu ver, quando se trata da
aprendizagem autônoma. Aí o empenho, o desejo de aprender é
fundamental. Se ele não existe não dá para disfarçar. Como na
sala de aula tradicional as coisas são muitas vezes impostas, há
necessidade de justificar a não-consecução dos objetivos, tapando
o sol com a peneira. Na aprendizagem autônoma, a
responsabilidade está no aluno. Se ele aprendeu, o mérito é dele.
Vejamos algumas restrições relacionadas ao professor.
Para que haja autonomia, tem que haver também empenho
do professor e, pelo que se vê na literatura sobre autonomia, esse
empenho não está de maneira nenhuma garantido. Há uma
estrutura de poder bem definida na sala de aula tradicional onde
o controle normalmente é exercido pelo professor. É o professor
que estabelece os objetivos a serem atingidos, que escolhe as
atividades a serem desenvolvidas, que decide quem vai ser
promovido ou não no fim do ano, dentro de limitações maiores
ou menores, é claro; o professor, por sua vez, também está inserido
dentro de uma estrutura de poder, da qual ele absolutamente não
é o topo. Em relação à sala de aula, no entanto, pode-se dizer que
as decisões são normalmente tomadas pelo professor. Durante
os anos de sua formação ele foi preparado justamente para tomar
essas decisões, para assumir o controle da sala de aula e não está
disposto a abrir mão desse controle.
Em primeiro lugar, ao ser solicitado a implementar um
programa de autonomia, o professor sente-se ameaçado em sua
autoridade. A palavra autoridade tem dois significados
Língua Estrangeira 297

importantes, que precisam ser destacados aqui. Em primeiro lugar,


autoridade, em sua acepção mais generalizada, significa controle,
o poder de se fazer obedecer, de dar ordens, de tomar decisões
etc. Mas a palavra autoridade tem também um outro significado,
menos generalizado, mas que é importante no contexto da sala de
aula; refere-se aqui não ao sentido abstrato de controle, mas ao
indivíduo que tem um conhecimento específico de um
determinado assunto; o professor, por exemplo, pode ter a
pretensão de ser uma autoridade na disciplina que ensina: uma
autoridade em gramática da língua inglesa, uma autoridade em
literatura espanhola etc. O professor pode sentir-se ameaçado
em termos de controle e de conhecimento, quando se fala em
autonomia.
Muitos professores sentem-se inseguros em abrir mão do
controle da sala de aula. A literatura da área está cheia de
depoimentos de professores apavorados quando começam a dar
os primeiros passos na direção da aprendizagem autônoma na
sala de aula. Quando se passa o controle da aprendizagem para o
aluno, está-se dando a ele a liberdade de escolher. Essa escolha
envolve, por exemplo, o direito do aluno em escolher como deseja
usar o material didático disponível, de estabelecer seus próprios
objetivos, de progredir no seu próprio ritmo, de escolher o tema
de casa, de se auto-avaliar etc. Os alunos não vão mais todos
juntos aprender o mesmo conteúdo do mesmo jeito. Cada aluno
poderá ter até seu próprio projeto de vida, com o direito de saber
das consequências de suas decisões, incluindo a decisão de não
aprender uma língua estrangeira. Tudo isso reconhecidamente
assusta o professor.
Na aula autônoma, o professor precisa aprender que ele
deixa de ser a autoridade máxima, tanto em termos de controle
com em termos de conhecimento. Não é mais o dono do saber,
que tipicamente só faz as perguntas que ele mesmo sabe responder.
Na aula autônoma qualquer pergunta pode aparecer e o professor
obviamente não tem a obrigação de saber todas as respostas. Seu
papel é realmente o de facilitador da aprendizagem, ajudando o
aluno a desenvolver sua autoconfiança, a se tornar ainda mais
autônomo e ficar menos dependente dele, professor.
298 Vilson J. Leffa

Muitos professores têm também um medo muito grande


da opinião dos colegas, o que pode ser um fator extremamente
restritivo para a implementação da autonomia. Esses professores
podem ficar abalados com comentários do tipo: “a aula dele é
uma bagunça, não tem controle de classe, os alunos fazem o que
querem”. Pode-se argumentar, no entanto, que a aprendizagem é
basicamente uma atividade do aprendiz, e os alunos falarão o
máximo possível durante essa atividade. Língua é fala e aprende-
se a falar uma língua falando, interagindo, movimentando-se e
naturalmente produzindo ruído.
Finalmente, para concluir essa parte dos fatores restritivos
da autonomia, vejamos como a escola, como instituição, é também
um agente muito mais propenso a tolher a autonomia do que a
desenvolvê-la. A escola representa a tradição, a obrigação, o dever,
com seu currículo já pronto. Pode-se afirmar que a escolha do
aluno amplia-se um pouco à medida que ele avança em seus
estudos. Enquanto que no ensino fundamental e no ensino médio
todos os alunos de uma determinada escola normalmente passam
pelo mesmo currículo, já no ensino universitário o aluno tem a
possibilidade de escolher pelo menos parte do currículo. Mesmo
assim não deixa de ser um percurso numa direção pré-estabelecida,
que permite alguns pequenos desvios para o aluno, mas que o
obriga a voltar logo ao percurso principal.
A ideia geral é de que se aprende mais fora do que dentro
da escola, apesar dos recursos didáticos que a escola pode oferecer
como bibliotecas, laboratórios etc. A esse respeito eu gostaria de
apresentar duas citações, uma de um pensador argentino do início
do século, pouco conhecido atualmente, e outra citação de um
especialista na área do ensino de inglês como língua estrangeira,
bem mais conhecido.
A citação do pensador argentino, tirada de um livro
publicado em Madrid em 1913 é a seguinte [no momento o autor
está falando de dois grandes personagens da história argentina]:

Como aconteceu a Sarmiento, Ameghino chegou em seu


clima e em sua hora. Por singular coincidência, ambos
Língua Estrangeira 299

foram mestres-escolas, autodidatas, sem títulos


universitários, formados fora da cidade metropolitana, em
mãos livres, a cabeça livre, o coração livre, as asas livres.
Dir-se-ia que o gênio floresce melhor nas regiões solitárias,
acariciado pelas tormentas, que são a sua atmosfera
própria; definha-se nas invernadas do estado, em suas
universidades, em seus laboratórios, em suas academias
fósseis e em seu funcionalismo hierárquico. Faltava-lhe,
ali, o ar livre e a plena luz que somente a natureza pode
dar: a cevadura precoce vai fazendo com que o mofo
germine nas entranhas da imaginação criadora, e embote
as melhores originalidades. O gênio nunca foi instituição
oficial (INGENIEROS, 1913, p. 257).

A outra citação é de David Nunan, conhecido especialista


da área de ensino de inglês como língua estrangeira, numa palestra
que fez no ano de 2000, onde resume as ideias de um outro
pensador sobre as cinco características comuns de pessoas famosas
que se tornaram proeminentes em sua área de especialidade sem
passar pela instrução formal. Essas pessoas tinham as seguintes
características:

1. Possuíam competências, normalmente não encontradas


na instrução formal;
2. tinham conhecimentos específicos que vinham de
atividades extracurriculares, para o qual a escola tinha
contribuído minimamente ou até desempenhado um
papel negativo;
3. aprofundavam-se em sua área de especialidade ao
invés de desenvolver conhecimentos gerais de várias
áreas;
4. adotavam uma abordagem ativa de aprendizagem
prática baseada na experiência vivida;
5. perseguiam sua aprendizagem apesar de todos as
dificuldades, fracassos e falta de apoio dos outros
(NUNAN, 2000).

Todos nós conhecemos pessoas famosas que tem


pouca ou nenhuma escolaridade. Entre essas, a título de ilustração,
300 Vilson J. Leffa

gostaria de citar as seguintes: Burle Marx, famoso paisagista;


Machado de Assis, considerado por muitos o maior escritor
brasileiro de todos os tempos; Pablo Picasso, provavelmente o
artista mais conhecido do século XX; Walt Disney, o mago do
desenho animado; Alexandre Volta, o inventor da pilha elétrica;
William Shakespeare, o maior dramaturgo da literatura inglesa;
Bill Gates, que abandonou a universidade antes de terminar a
graduação, Luís Inácio Lula da Silva, que frequentou apenas a
escola fundamental.
Gostaria de concluir esta parte sobre as restrições da escola
no ensino da autonomia, e incluindo aí o professor, citando um
trecho colhido ao acaso de uma pessoa que não possui o título de
mestre, mas que consegue expor com muita perspicácia a questão
da aprendizagem autônoma:

Feche os olhos. (...) Quem seria seu melhor professor?

Em algum lugar ele existe. Vamos construir seu perfil,


que isso facilitará a tarefa de encontrá-lo. Como seria
ele?

1. Alguém que soubesse exatamente o que você quer


aprender;
2. alguém que entendesse seu jeito de ser;
3. alguém que entendesse seu ritmo de aprendizado e o
aceitasse;
4. alguém que seja capaz o suficiente;
5. alguém que não o pressione além de seus limites;
6. alguém que não pare de lhe ensinar simplesmente
porque acabou o período das aulas;
7. alguém que esteja sempre disponível no horário de
que você dispõe;
8. alguém que se interesse pelo tema tanto quanto você.

E por aí você pode prosseguir com suas próprias


exigências. Feche os olhos novamente e pense um pouco.
Onde encontrar tal mestre? Quem poderia ser essa pessoa?
Língua Estrangeira 301

Sem lhe conhecer pessoalmente, eu já tenho a resposta.


Provavelmente você também já tenha. Você mesmo.
(SILVA, 2001, p. 4-5)

Todos esses são exemplos de aprendizagem autônoma, o


que implica, a meu ver, que não existe ensino autônomo. Pode-
se talvez ensinar a autonomia, ou seja, ensinar alguém a ser
autônomo, mas não ensinar autonomamente. O máximo que a
escola pode fazer é dar condições de aprendizagem. Se houver
necessidade de muito incentivo, motivação, súplica, implorar com
lágrimas para que o aluno estude, acho que a aprendizagem ficará
comprometida.
Por outro lado, mesmo que o aluno aprendesse tudo que a
escola ensina, nos três níveis, fundamental, médio e universitário,
mesmo que tirasse nota máxima em tudo, mesmo assim, se ficasse
só no conhecimento recebido da escola, esse aluno ao se formar
lá no fim da universidade, não estaria de modo algum preparado
para exercer uma profissão. O ensino formal não tem condições
de ensinar tudo que o aluno precisa saber. É possível que na
idade da pedra lascada bastasse ao aprendiz saber usar a pedra
lascada e esse conhecimento serviria para o resto da vida. No
século XXI não é mais assim. O conhecimento que se adquire, às
vezes com tanto sacrifício, logo se torna obsoleto. Por esse
motivo, criamos uma expressão que não existia antigamente:
educação continuada. Hoje aprendemos a vida inteira porque o
conhecimento que adquirimos é logo ultrapassado. Acho que
muito em breve os diplomas vão ter um carimbo de validade; por
exemplo: “válido por cinco anos”. Passado esse período, o
diploma terá que ser renovado. Em algumas áreas, como a ciência
da computação, a validade provavelmente será menor.
Como a escola nos três níveis de ensino não tem condições
de ensinar ao aluno tudo o que ele precisa saber, a solução me
parece é que a escola passe a fazer menos, idealmente, que não
faça nada. Deixe o aluno aprender sozinho. Coloque um recurso
aqui, outro recurso lá, disponibilize alguns professores, mas que
não atrapalhe a aprendizagem do aluno. Veja-se a este respeito o
302 Vilson J. Leffa

resultado de um trabalho de autonomia sobre produção textual


feito com alunos considerados “de risco”, prestes a abandonar a
escola que frequentavam num bairro pobre de Nova York, devido
a deficiências de ordem emocional, problemas de família, pobreza
e total falta de interesse. A conclusão do trabalho é a seguinte:

O que mais me surpreendeu na experiência não foi o que


nós, professores, fizemos, mas o que não fizemos.

· Não tivemos que motivar os alunos


· Não sugerimos sobre o que deveriam escrever.
· Não os instruímos a como usar as máquinas.
· Não corrigimos o que eles escreveram nem explicamos
os erros, a não ser quando eles mesmos pediam ajuda
sobre uma determinada palavra ou frase.
· Não oferecemos qualquer orientação sobre como se
escreve.
· Não comentamos sobre o conteúdo do que eles tinham
escrito.
· Não dissemos para eles que se preocupassem com a
correção ou apresentação gráfica do texto.
· Não tivemos que manter a sala em silêncio.
· Não comparamos os trabalhos uns com os outros.
· Não avaliamos nenhum dos textos produzidos.
· Não dissemos aos alunos como eles eram
maravilhosos.

Era difícil conseguir um feedback oral dos alunos sobre o


que eles estavam achando do curso; na opinião deles, eles
não estavam na escola e por isso não tinham que responder
a perguntas. Mas voltavam sempre, dia após dia, às vezes
com uma ou duas horas de antecedência, esperando
pacientemente até que as portas se abrissem
(BERNHARDT, 2001).

A aprendizagem que realmente interessa, aquela que não é


apenas reprodução do que já existe, mas criação de algo novo, de
progresso e avanço, só é possível com autonomia. Meus alunos
têm que saber mais do que eu. Uma geração tem a obrigação de
Língua Estrangeira 303

ir além da geração anterior. Caso contrário não haverá evolução.


E se não houver evolução, não haverá civilização, não haverá o
ser humano, porque a essência do ser humano é a capacidade de
evoluir.
Para que se chegue ao equilíbrio entre o individual e o
coletivo, pressupõem-se, do lado individual, a existência do desejo
de aprender e, do lado coletivo, a oferta de opções. De um lado,
podemos afirmar que não é só pela razão que o homem aprende e
cresce; é também pelo desejo, pela inquietação e até pela angústia.
Do outro lado, a falta de opções é um dos grandes problemas da
educação tradicional; todos têm que aprender a mesma coisa do
mesmo jeito. Na melhor das hipóteses ficaríamos na situação já
criticada por Fulton Sheen, no década de 50: “quando todos sabem
a mesma coisa ninguém sabe nada”. A educação tem que ser
diversificada, de alguma maneira, para que se mantenha o
equilíbrio entre o coletivo e o individual.
Gostaria de terminar este texto sobre autonomia com uma
citação de Maturana e Rezepka:

Pensamos que a tarefa de formação humana é o


fundamento de todo o processo educativo, já que só se
esta se completar é que a criança poderá viver como um
ser socialmente responsável e livre, capaz de refletir sobre
sua atividade e seu refletir, capaz de ver e corrigir erros,
capaz de cooperar e de possuir um comportamento ético,
porque não desaparece em suas relações com os outros
(...) porque não dependerá da opinião dos outros não
buscando sua identidade nas coisas fora de si.
(MATURANA; REZEPKA, 2000, p. 11-12).

Termino como comecei, falando pela voz dos outros, e


indo mais uma vez ao dicionário do Aurélio. A palavra autonomia
tem um antônimo interessante, heteromia. O que é heteromia?
Vamos ao dicionário.
304 Vilson J. Leffa

heteronomia
[De heter(o)- + -nom(o)- + -ia1.]
S. f. Ét.
1.Condição de pessoa ou de grupo que receba de um
elemento que lhe é exterior, ou de um princípio estranho
à razão, a lei a que se deve submeter.

O que vamos querer? Autonomia ou heteronomia? Tudo é


submissão. Mas há uma diferença importante. Na heteronomia,
submetemo-nos à lei dos outros. Na autonomia podemos pelo
menos ter a pretensão de nos submeter às nossas próprias leis. Na
área da educação isso significa o seguinte: ou nos submetemos
ao que os outros querem nos ensinar ou escolhemos o que
queremos aprender. Para fazer essa opção temos que querer.
Os grandes exemplos da história parecem sugerir que as
pessoas que mais se destacaram em seus respectivos domínios de
conhecimento foram aquelas que não se deixaram submeter ao
que os outros quiseram lhes ensinar, mas que conseguiram, de
alguma maneira, escolher o que elas próprias queriam aprender.
Isso pode parecer uma apologia inadequada do individual sobre
o coletivo, mas, na realidade, é o contrário; é quando as pessoas
divergem, aprendendo coisas diferentes, que a sociedade se
diversifica e se enriquece. O conflito entre aprender e ensinar
tem que ser resolvido a favor do aluno. O professor precisa
aprender a ensinar menos para que o aluno possa aprender mais.
Língua Estrangeira 305

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