Tese Tiago
Tese Tiago
Tese Tiago
Tiago Correia
Doutor em Sociologia
Júri:
Doutora Maria Teresa Geraldo Carvalho, Professora Auxiliar,
UNIVERSIDADE DE AVEIRO
Orientadora:
Doutora Graça Carapinheiro, Professora Catedrática,
ISCTE – INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE LISBOA
Co-orientador:
Doutor Alan Stoleroff, Professor Associado,
ISCTE – INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE LISBOA
Maio, 2011
Aos meus pais, por me terem ensinado a querer
ir mais além …
Tiago Correia
Agradecimentos
Embora o caminho que um trabalho desta natureza exige seja solitário, e não obstante a
responsabilidade individual das ideias aqui expressas, a sua concretização dependeu de
imprescindíveis contributos, tanto profissionais, como pessoais. É, por isso, devido o
reconhecimento a todos aqueles cujo apoio permitiu a que se chegasse a este resultado.
Entre as pessoas que me foram acompanhando nos avanços e recuos naturais num
trabalho com estas vicissitudes, destaco alguns nomes. Tal referência, contudo, não ignora
todos aqueles que sabem que estiveram de alguma forma envolvidos neste percurso, e para
os quais todas as palavras de agradecimento não são suficientes. À memória da Dra.
Nazaré Pinheiro, para que fique imortalizado o reconhecimento a uma pessoa que partiu
cedo demais e cujas competências profissionais e humanas fazem-nos falta. À professora
Noémia Lopes, pela estimulante partilha da sua experiência. Aos professores Julia Evetts,
Lilia Blima Schraiber, Ellen Kuhlmann e Pierre Guibentif, pela disponibilidade para uma
interlocução crítica a working papers desta tese.
I
Tiago Correia
Ao professor Carlos Miguel Ferreira, pelo seu modo de ver e ensinar a ciência e por
nunca ter duvidado. Ao Hélder Raposo, Cristina Roldão e restantes colegas que, no âmbito
de conferências e redes de investigação, tiveram a amabilidade de contribuir com opiniões
tão pertinentes. Aos meus colegas e amigos Vanessa de la Blétière, Pedro Jacobetty, Joana
Zózimo, Jorge Silva e Daniela Mourão, pelos momentos de pura evasão científica.
Já num plano pessoal e familiar, também muitos são aqueles cuja presença foi de
uma importância inestimável. À minha avó Francisca, aos meus pais, tios – Natália e
Alfredo – e primos – João e Ricardo –, pela constante preocupação que esta tese também
lhes trouxe e por ter sido um tema excessivamente presente nos nossos momentos de
reunião. Aos meus amigos mais próximos, Paulo, António, Miguel, Francisco e Joaquim,
que entraram na minha vida há tanto tempo quanto este trabalho. Por passeios, jantares e
serões tão revigorantes em momentos de cansaço.
Aos meus prezados amigos João Mesquita e Pereira Né. Igualmente pela constante
presença e genuína preocupação. Pelos momentos de boa disposição e pelas conversas que
em tantos dias me permitiram desligar.
Por último, um reconhecimento especial a ti, Nádia, por seres esse porto de abrigo.
Por todas as ausências físicas e mentais que este trabalho exigiu. Pela partilha nos
momentos de desânimo e cansaço e pela paciência na desorganização da nossa vida.
Obrigado também pelo teu sempre desafiante espírito crítico.
II
Tiago Correia
Resumo
Até agora não se sabia o alcance e limitações destas mudanças, sobretudo tendo em
conta o poder profissional detido pela medicina. No fundo, os hospitais representam
sistemas abertos, cuja realidade não pode destrinçar influências externas e internas. Além
disso, e ao contrário do que se esperaria, profissionalismo e managerialismo são forças não
necessariamente opostas. Esclarece-se, por isso, as condições para a sua articulação. Em
causa está uma nova configuração da burocracia hospitalar não prevista pelas teorias
organizacionais, e que reforça o poder profissional da medicina.
III
Tiago Correia
Abstract
This work focuses on recent changes in the Portuguese hospital sector derived from a
commonly felt situation among those countries where the welfare model was developed:
the difficulty to coadunate the wealth accumulation to its distribution. The solution has
been the „empresarialização‟ [corporatization] of the health providers, applying to the
public organizations once restricted management rules of the private sector.
A further attention on the scope and limits of such changes is required, mainly if
we take into consideration professional power held by medicine. Hospital results as an
open system influenced both by external and internal pressures. Contrary to what could be
expected, professionalism and managerialism are not necessarily opposite forces, being
explained the conditions for such articulation. At stake is a not predicted hospital
bureaucracy's configuration by organizational theories that allows the strengthening of the
medical power under a managerial context.
IV
Tiago Correia
Índice
1. Introdução 1
CAPÍTULO I:
DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DE ESTUDO
CAPÍTULO II:
CONSTRUÇÃO ANALÍTICA DE UM OLHAR SOBRE AS PROFISSÕES DE SAÚDE
CAPÍTULO III:
PROPRIEDADES SISTÉMICAS EM PERSPECTIVA
V
Tiago Correia
CAPÍTULO IV
REFLEXÃO METODOLÓGICA
Anexos I-XXXIII
VI
Tiago Correia
Índice de quadros
VII
Tiago Correia
Índice de figuras
VIII
Tiago Correia
Glossário de Siglas
IX
Tiago Correia
1. INTRODUÇÃO
O rigor favorecido pela distância temporal permite afirmar que o início desta investigação
em 2007 teve, até hoje, um percurso linear quanto ao seu objecto. Tal linearidade,
comprovada desde logo pelo próprio título – o mesmo que suportou esta reflexão ainda
como projecto de investigação –, justifica-se por um interesse científico anterior que se foi
materializando em reflexões prévias.1
A questão de base desta tese, traçada e proposta desde a sua fase mais embrionária
aos seus Orientadores Científicos, foi perceber sob um ponto de vista sociológico as
consequências do processo de empresarialização hospitalar nas relações profissionais entre
médicos e gestores, num quadro político de forte intervenção na saúde e em particular no
sector hospitalar.
1
Referência que se faz tanto a um artigo científico desenvolvido no âmbito de uma cadeira de
licenciatura com o apoio da sua docente, Prof. Doutora Graça Carapinheiro (Correia, 2007), como a
um posterior projecto de investigação financiado pela FCT sob a coordenação do Prof. Doutor Alan
Stoleroff, intitulado: Mudança Organizacional e Relações do Emprego na Administração Pública
em Portugal: o papel dos sindicatos e dos trabalhadores (resumo do projecto consultável no
endereço electrónico: http://www.cies.iscte.pt/projectos/ficha.jsp?pkid=231). Como se verá, alguns
dos seus resultados constituem também elementos de reflexão neste trabalho.
1
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Por isso, afigurou-se como determinante uma reflexão que incidisse no contexto
macrossocial responsável pela alteração dos contextos de trabalho, como também na forma
como os indivíduos reflectem estas mudanças e reflectem sobre si mesmos, procurando
nesse nível a compreensão como as possibilidades de acção são concretizadas
2
A referência que se faz a ideologias liberais não pode ser tida sob um ponto de vista essencialista.
Quer isto dizer que a designação liberalismo, à parte de implicações filosóficas de base que
respeitam a iniciativa e a autonomia individuais (Boudon e Bourricaud, 2004), envolve,
necessariamente, formas específicas de materialização cultural e política. Será, por isso, redutor
considerar um modelo de liberalismo que sirva como tipo-ideal e que permita situar num
continuum diferentes modelos, consoante o seu grau de proximidade ou de afastamento em relação
a esse tipo. Assim sendo, entende-se que o liberalismo aplicado à organização política respeita um
princípio genérico de maior afastamento da intervenção directa do Estado (enquanto representante
de interesses comuns) na condução da vida social nas suas múltiplas vertentes, independentemente
dos seus contornos mais específicos num dado momento e num dado contexto.
2
Tiago Correia
Não é, por isso, fortuita a referência que ainda agora se fez a utilizadores – na
lógica de consumidores – e não a doentes. Isto significa que actualmente a cura passa a
assumir mais uma dimensão pensada sob a lógica da prestação de serviços, o que
necessariamente exige que se equacione aspectos como a qualidade do serviço prestado, a
responsabilização dos profissionais e o pagamento por esse serviço. A saúde além de um
estado biológico, psicológico e social e de um direito instituído é também uma actividade
económica e, nesse sentido, um negócio.
3
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
De acordo com o que foi dito, estas alterações organizacionais decorrem de uma
envolvente política que tem estado em verdadeira mutação. A prestação pública de
cuidados é um dos pilares base da concepção de qualquer Estado-Providência3, porventura
dos mais dispendiosos e que maior visibilidade e preocupação suscita às populações e aos
decisores políticos. Por estar intrinsecamente ligado à esfera político-ideológica, o
exercício de prestação de cuidados de saúde, na figura do seu prestador mais emblemático
– o hospital –, encontra-se exposto aos ciclos e tendências políticas.4 Por conseguinte, uma
análise sobre o hospital obriga a uma reflexão sobre o próprio Estado, não ignorando a
compreensão sobre o modelo instituído de negociação e de decisão políticas.
Elege-se uma abordagem feita nos serviços hospitalares (cf. Carapinheiro, 1993),
mas com uma ancoragem teórica que supera alguns dos seus particularismos empíricos.
Tratando-se de uma interpretação sobre os efeitos da empresarialização hospitalar nas
relações profissionais, há uma convocação central, mas não exclusiva, da sociologia das
profissões, campo que se cruza com a sociologia das organizações e com a sociologia da
saúde, indo buscar igualmente respostas à teoria sociológica. Afinal, o ponto elementar
deste trabalho é teorizar sobre a acção humana organizada (cf. Crozier e Friedberg, 1977).
3
Desde logo, ao se falar em qualquer Estado-Providência pressupõe-se a existência não de um
único modelo, mas de várias concretizações do princípio genérico de universalização de direitos
sociais.
4
Tomar o hospital como o prestador mais emblemático da prestação pública de cuidados relaciona-
se com a particularidade “hospitalocêntrica” do sistema de saúde português (Campos, 1984).
Contudo, apesar de maiores ou menores variações, é possível concluir que o hospital desempenha
transversalmente uma função determinante na configuração de qualquer sistema de saúde. Quer
pela sua dimensão, quer pela especialização dos cuidados diferenciados aí prestados, envolve um
número considerável de profissionais e verbas muito significativas para o seu funcionamento.
4
Tiago Correia
5
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
6
Tiago Correia
social externa e anterior ao indivíduo, mas a multiplicidade de aspectos que podem ser
interiorizados individualmente faz com que se criem diferentes objectividades em função
das dimensões externas retidas. Cada indivíduo representa, então, uma síntese de
construções que se objectivam em comportamentos. São modos não necessariamente
semelhantes de ocupar os mesmos lugares estruturais, dependendo das experiências e
aprendizagens individuais passadas – que incluem influências de natureza cultural, social,
política e económica, bem como experiências de interacções e contextos de aprendizagem
– e de interesses que podem sucessivamente diferenciar o sentido conferido à acção. Trata-
se, portanto, de uma compreensão sobre os contextos de acção por intermédio da produção
discursiva dos seus intervenientes, além de se perceber o sentido da acção que suporta essa
produção discursiva (produção individual de racionalidades reflexivas).
Importa reiterar desde início que o objectivo traçado para esta pesquisa não foi –
nem tinha forma de ser – chegar a um absoluto e inequívoco entendimento sobre a acção. É
com base numa abordagem exclusivamente sociológica que se analisam comportamentos,
sabendo que existem outros domínios relativos aos comportamentos humanos que têm que
ficar de fora deste projecto, claramente delimitado no seu espaço científico. Em todo o
caso, um aspecto foi constantemente ponderado ao longo da construção deste trabalho.
Seguindo a linha de pensamento weberiano, houve o cuidado de que a compreensão dos
sentidos que os indivíduos atribuem aos seus comportamentos têm forma de ser melhor
apreendidos através de estratégias de investigação que privilegiem um contacto mais
aprofundado entre observador e observado. Isto não significa que o objectivo tenha sido
“pormo-nos na pele dos outros” ou “reflectir como os médicos ou os gestores reflectem”.
Tão pouco significa um processo epistemológico baseado na mera interpretação de
comportamentos, ignorando a sua explicação. Uma investigação com esta natureza,
baseada em técnicas de recolha de informação prolongadas no tempo, com contactos
sistemáticos com o objecto em análise num único estudo de caso, facilmente pode ser alvo
de toda uma discussão sobre as condições de replicação do conhecimento produzido, além
dos possíveis desvios causados pela interacção entre sujeito e objecto.
7
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
terem sido determinantes para o fim deste trabalho. Afinal, como Pinto (1984b) reitera, a
base compreensiva do projecto que Weber traça para a sociologia, habitualmente pouco
entendida, revela-se, na verdade, epistemologicamente sistemática e racionalmente
controlável. Isto porque tem na sua base um processo de distanciamento e de
contextualização daquilo que é imediatamente observado. Distanciamento em relação a
evidências imediatas e contextualização das trajectórias sociais e dos espaços de acção
permitidos num qualquer campo social.
Além de tudo isso, qualquer interacção sujeito/objecto, por muito pontual que seja,
introduz sempre desvios e causa ruídos ao que habitualmente acontece. Em nenhum caso a
subjectividade do investigador – além das suas particularidades etárias, morfológicas,
discursivas, etc. –, é passível de ser totalmente anulada. Estando consciente do seu papel e
dos objectivos que pretende alcançar, contactos formais e informais com os diversos
actores representam uma forma de esbater obstáculos e resistências habituais quando
qualquer interacção se baseia no não conhecimento dos seus interlocutores. No fundo, está
presente a forma como se interpreta o objecto de estudo, o que neste caso foi mais como
um “objecto-sujeito” do que propriamente “objecto-objecto”. Houve uma noção das suas
avaliações, opiniões, inseguranças e curiosidades em relação ao investigador. Portanto, à
investigação científica e à sociologia em particular não se vislumbra qualquer benefício
ignorar esta condição activa e interactiva que se estabelece entre o investigador e o seu
objecto de estudo, sendo, pelo contrário, útil mobilizar essa condição dos sujeitos em
análise para o resultado da investigação.
8
Tiago Correia
Finda essa discussão, o ponto 9 retoma o debate sobre a relação entre estrutura e
acção, justificando a presença de diferentes sentidos nos comportamentos responsáveis
pela estruturação de diferentes espaços organizacionais. Analisa-se a reflexividade numa
dupla vertente, enquanto produto e produtor da realidade social, evidenciando o modo
como entre vários tipos-ideiais de orientação dos comportamentos humanos se encontram
diferentes justificações para o modo como se define o profissionalismo médico, se
estabelece a relação inter-profissional com a gestão hospitalar e, consequentemente, os
resultados organizacionais. Afinal, a prova é que procurar “the one best way” não
compreende a complexidade inerente à acção humana.
Deixou-se para último lugar a reflexão metodológica (capítulo IV). Mais do que
uma exposição descritiva de técnicas e procedimentos, o objectivo é dar conta dos
resultados da experiência desta investigação e reflectir sobre as implicações metodológicas
da análise da produção discursiva da reflexividade (ponto 10). Termina-se o trabalho com
as conclusões (ponto 11).
9
Tiago Correia
CAPÍTULO I:
DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DE ESTUDO
11
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
5
Robbins (2007), num trabalho de sistematização da obra de Pierre Bourdieu, considera que fica
expresso desde os seus contributos mais antigos (e.g. Sociologie de l‟Algérie de 1958) que as
ciências sociais não representam realidades objectivas das relações sociais, mas antes
representações de realidades sociais. O que isto significa é que sendo a sociologia uma ciência
reflexiva, a sua actividade fica intimamente marcada por quem a desenvolve. Nessa medida,
respeita formas de objectivação de modos subjectivos cientificamente orientados de interpretação
da realidade social. Contrariamente ao que Leibniz afirma, Bourdieu (1989: 23) considera não ser
possível confiar numa leitura positivista dos automatismos do pensamento, como se a interpretação
humana conseguisse obter uma leitura cega dos símbolos que interpreta. Retenha-se então o seu
argumento: “O habitus científico é uma regra feita homem ou, melhor, um modus operandi
científico (…): espécie de jogo científico que faz com que se faça o que é preciso fazer no momento
próprio, sem ter havido necessidade de tematizar o que havia que fazer, e menos ainda a regra que
permite gerar a conduta adequada. O sociólogo que procura transmitir um habitus científico
parece-se mais com um treinador desportivo de alto nível do que com um professor da Sorbonne.”
6
Utiliza-se o termo de reificação no sentido discutido por Giddens (1984), que na análise dos
fenómenos sociais tende-se a sobrevalorizar as propriedades estruturais com a rigidez própria das
leis da natureza, o que acaba por ignorar o papel da agência humana na mudança do seu curso.
12
Tiago Correia
O que esta ideia traduz é que abordar a realidade social sob uma perspectiva não
anula a existência de um conjunto de outras tantas que não deixam de ter validade apenas
por não serem referenciadas. A complexidade intrínseca à realidade social não permite, por
isso, um qualquer projecto científico que se proponha a conhecê-la em toda a sua
envergadura. A primeira compartimentação é, desde logo, feita ao nível dos campos
disciplinares. Neste caso, trabalha-se no interior do raciocínio sociológico segundo as suas
premissas, procedendo-se às restantes delimitações no interior desse campo científico. É
importante perceber que estas delimitações, primeiro científicas, e depois teóricas, não têm
subjacente uma ideia de redução da realidade social a esse discurso, nem tão pouco podem
ser vistas como desagregações de processos empíricos que são interdependentes. O que
estas escolhas traduzem então é a perspectivação da realidade social.
7
Tradução livre do original em francês.
13
Tiago Correia
Tendo por base o princípio que a definição dos campos científicos resulta de intersecções
conceptuais sobre os objectos reais (Bourdieu, Chamboredon, Passeron, 1983), o objectivo
deste trabalho é apresentar uma abordagem das relações profissionais em contexto
hospitalar – especificamente entre médicos e gestores – numa conceptualização que não se
encerra nesse objecto empírico.
Afinal, esta perspectiva é o resultado de uma reflexão crítica não depreciativa que
procura, na articulação simultânea entre os níveis micro e macro, a compreensão dos
8
Esta distinção entre uma sociologia “nos” e “dos” serviços hospitalares não se baseia nos mesmos
pressupostos da distinção clássica proposta por Straus (1957) entre a sociologia “na” e “da”
medicina. Enquanto essa distinção manifestava a procura de afirmação da sociologia no plano
científico, sobretudo, em relação à medicina enquanto objecto de estudo, a distinção que aqui se
apresenta diz respeito ao enfoque sociológico central escolhido para a orientação da pesquisa
sociológica.
15
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Como se afirmou, esta abordagem teórica não se esgota nos hospitais, embora
nestes contextos organizacionais sejam reveladas especificidades indispensáveis para o
desenvolvimento conceptual que se pretende. A escolha dos hospitais enquanto espaços de
observação ficou a dever-se à preponderância assumida no sistema de saúde português,
traduzido quer pelo número de profissionais envolvidos, quer pelos montantes financeiros
que o seu funcionamento exige.10
Uma das características mais importantes que justifica a escolha dos hospitais diz
respeito à existência de uma profissão (médica), cujo exercício profissional é caracterizado
por uma autonomia técnica de concepção e de execução do seu trabalho. Por outras
palavras, trata-se de uma profissão dotada de capacidade de auto-regulação, mas também
9
A este nível é reveladora a afirmação de Corcuff (2001: 115 apud. Frère, 2004: 96): “(…) every
agent is given a plural mental and corporeal repertory, which makes several modes of engagement
in, and adjustment to, action possible. The components in this repertory are not perceived as
dispositions, in the potentially deterministic sense in which Pierre Bourdieu uses the word, but as
skills and capacities, to be used or not in a given action depending on the encountered situation.”
10
No ponto 7.2.1. são apresentados dados jurídicos e políticos que comprovam o ainda
“hospitalocêntrismo” do sistema de saúde português que Correia de Campos designou em 1984.
Em todo o caso, um olhar para os recursos humanos afectos aos hospitais e centros de saúde
permite desde já ilustrar este argumento. De acordo com a Direcção Geral de Saúde (2007), para o
ano de 2006, enquanto nos centros de saúde estavam 26.971 pessoas ao serviço entre médicos
(7.096), pessoal de enfermagem (7.236), outro pessoal técnico superior (464), pessoal técnico (913)
e outro pessoal (11.262), nos hospitais contabilizavam-se 92.214 pessoas ao serviço, entre médicos
(16.549), pessoal de enfermagem (30.077), outro pessoal técnico superior (2.688), pessoal técnico
(16.693), outro pessoal (26.207). Por outro lado, é de salientar que esta centralidade dos hospitais é
transposta para a pesquisa sociológica, sendo os contextos empíricos preferenciais da investigação
realizada em Portugal (Antunes e Correia, 2009).
16
Tiago Correia
Não sendo certo que o actual momento possa ser interpretado como uma
substituição dos sabres profissionais dos quais os Estado mais dependem, até porque seria
bastante redutor assumir que os saberes-poderes do conhecimento médico são postos em
causa nos hospitais e na sua actividade assistencial, o facto é que mudanças jurídico-
normativas têm vindo a marcar o funcionamento dos hospitais públicos um pouco por toda
a Europa e não só, com uma crescente centralidade dada à área científica da gestão (vd.
Doolin, 2002 para a Nova Zelândia; Jespersen, 2008 para a Dinamarca e Noruega; Cecílio,
1997 para o Brasil; Grech, 2002 para Malta; Kirkpatrick, et al, 2007 para Inglaterra e
Dinamarca; Currie, Finn e Matin, 2009 para Reino Unido; Herreros, 2007 para França;
Boyce, 2008 para a Austrália; Carvalho, 2005 para Portugal).
11
Esta teorização de Goss é baseada no trabalho original de Wilson (1942) sobre as universidades
americanas.
12
Os quais variam entre a universalidade dos serviços nacionais de saúde – modelo de beveridge –
e os sistemas de cuidados de saúde baseados em mecanismos de segurança social privados –
modelo de Bismarck (van der Zee & Kroneman, 2007).
17
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
considerada neste trabalho, mas sim os serviços médicos, dado as lógicas de interacção que
aí ocorrem terem de ser perspectivadas em relação aos níveis organizacional e supra-
organizacional.
Esta delimitação permite então perceber que estando as reformas políticas da saúde
centradas na melhoria do funcionamento das organizações hospitalares, estas têm vindo a
ser impulsionadas por uma crescente diferenciação interna (do nível organizacional),
levando à reconfiguração do nível institucional que caracterizou o sector público no
avançar do século XX. Em todo o caso, e contrariamente à ideia avançada por Herreros
sobre o declínio da instituição hospitalar, a opção aqui é considerar a sua reconfiguração.
Em consonância com uma ideia expressa anteriormente, uma das maiores cautelas
epistemológicas que um trabalho sociológico debruçado sobre fenómenos políticos – e,
nesse sentido, ideológicos – deve ter é não cair numa leitura essencialista desses processos.
O facto de um modelo estar ameaçado nos moldes em que foi historicamente pensado não
significa o seu fim, mas antes a sua reconfiguração sob moldes diferentes. Neste sentido,
está hoje em causa um modelo de intervenção estatal na prestação de cuidados de saúde,
em que de um sector outrora uniformizado passa a existir a possibilidade de diferenciação
interna. Não deixa de ser uma actividade pública, mas baseada em pressupostos distintos
que necessitam de ser discutidos.
18
Tiago Correia
Ter por base uma leitura sistémica e falar da relação dos níveis de interacção mais
baixos com aqueles onde estes se constituem, não pode ser tido como uma simplificação,
nem tão pouco linearidade, em relação aos processos aí existentes. Um dos desígnios
elementares da perspectiva sistémica é a modificação recíproca da natureza ou dos
13
Este argumento será referido em diferentes momentos deste trabalho, pelo que importa reiterar
que falar na perda relativa de poder da medicina não significa, pelo menos linearmente nem por
enquanto, uma quebra do poder social e simbólico do saber médico. Ou seja, hoje em dia é verdade
que, tanto os doentes, como a opinião pública em geral são mais vigilantes, conscientes e críticos
em relação aos procedimentos médicos (e.g. Espanha, 2010), sem que, contudo, se possa falar
noutro tipo de saber que concorra efectivamente pelo monopólio detido pelo saber médico (pense-
se nas chamadas medicinas alternativas que não têm tido forma de se apropriar dos espaços da
medicina, estando, por outro lado, a ser trazidas para a própria regulação biomédica, e.g. Bodeker,
2002). Num trabalho recente sobre a relação da população portuguesa com a sua saúde, demonstra-
se não haver, por enquanto, qualquer fonte de saber, pericial ou leiga, concorrente com o saber
médico nas opções e conselhos que os indivíduos seguem em saúde (Espanha, et al, 2010).
19
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
comportamentos dos seus elementos (Barouch, 1989), isto é, uma influência que se situa,
quer nos níveis superiores em relação aos inferiores, quer nos níveis inferiores em relação
aos superiores. Ora, esta relação de duplo sentido pressupõe que não se considere os níveis
mais baixos de interacção como meras reproduções dos seus níveis mais abrangentes. Já
Carapinheiro (1993) referiu que os hospitais, enquanto componentes de um sistema
influenciado pela esfera política, não podem ser tomados como meros receptáculos dessas
influências. Apresentam modos específicos de interacção decorrentes de determinantes
próprias da organização, o que respeita o princípio discutido por Crozier e Friedberg
(1977) ou Crozier (1989) de que qualquer organização é uma relação entre o vivido e as
ideias, ou seja, uma intrínseca dependência das ideias às estruturas e processos próprios de
um contexto em particular.
Dizer que se parte de uma leitura sistémica não deve, apesar de tudo, abrir o debate
de controvérsia sobre diferentes perspectivas no seu interior, dado que cada uma delas
conduz a implicações epistemológicas distintas. Por sistema entende-se tão só o princípio
de um conjunto de unidades em inter-relações mútuas, ou uma unidade global de inter-
relações organizada entre elementos, acções ou indivíduos.14 Partindo dos contributos de
Bonitzer (apud. Barouch, 1989: 178), a mais-valia da abordagem sistémica reside em se
assumir como um método de interpretação dos fenómenos com base na relação entre o
objecto de conhecimento, as representações desse objecto e o sujeito do conhecimento. O
propósito fundamental é assim contrariar leituras simplistas e/ou reducionistas sobre o
modo como os comportamentos ocorrem, tanto pela sua determinação como pela sua
vacuidade, pelo que a análise sobre as decisões associadas à acção tem que ter em conta o
contexto que rodeia o indivíduo, ou seja, uma realidade objectiva onde se elaboram
complexos processos de interpretação e de avaliação.
Como se verá em seguida, isto não significa que se adopte uma leitura apenas
consciente e activa da acção individual. Considerando o que foi dito por Frère (2004) sobre
14
A primeira definição cabe a Von Bertalanffy enquanto a segunda a Morin (para um debate mais
pormenorizado sobre as controvérsias na interpretação sistémica vd. Barouch, 1989: 176 e ss.).
20
Tiago Correia
15
Barouch (1989: 194) chama a atenção que a utilização do termo estratégia por parte desses
autores conduz recorrentemente à ideia errada de que eles se baseiam num princípio puramente
activo da acção, considerando, por isso, mais seguro o termo lógica do actor. Além disso, reitera
que o modo como Crozier conceptualiza a estratégia inclui uma dimensão não intencional/não
consciente da acção e dá como exemplo que muito raramente os indivíduos têm presente e claro os
seus objectivos, e ainda mais raramente têm projectos coerentes. Em todo o caso, uma leitura atenta
por essa obra permite perceber que os autores não teorizam com a sistematicidade que se considera
necessária os mecanismos orientadores da acção individual, especialmente sabendo que os
indivíduos agem nem sempre em consciência. A este nível, o conceito de reflexividade parece
muito útil para perceber o sentido da acção. Em traços gerais, segundo Archer (2007), a
reflexividade medeia o actor e a estrutura, ou nas palavras de Lash (2000), indivíduos detentores de
conhecimento têm a possibilidade de reflectir sobre si e sobre as suas condições sociais de
existência.
16
Mantendo a definição original dos autores, por sistema de acção concreto entende-se “un
ensemble humain structuré qui coordonne les actions de ses participants par les mécanismes de
jeux relativement stables et qui maintient sa structure, c‟est-à-dire la stabilité de ses jeux et les
rapports entre ceux-ci, par des mécanismes de régulation qui constituent d‟autres jeux” (Crozier e
Friedberg, 1977: 246).
21
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
assim partir das condicionantes específicas dado por um quadro de interacção (i.e. os
mecanismos de regulação vigentes e os recursos de poder possíveis).
Como se disse, tal não anula a existência de mecanismos de natureza mais ampla
que influenciam níveis mais concretos de interacção – até porque esta é uma análise
sistémica. O argumento central é tão só o reconhecimento de que a interpretação da acção
exige uma aproximação ao elemento responsável pela continuidade de qualquer sistema: o
indivíduo. Não é assim possível procurar extrapolar modelos normativos de acção, dado
que a extrapolação é apenas exequível no domínio dos mecanismos de estruturação dos
comportamentos e não no domínio dos comportamentos em si.
17
Aplicou-se o termo panóptico no sentido em que Foucault (1975) o desenvolve.
22
Tiago Correia
Esta é uma interpretação cuja aplicação tanto se refere aos gestores, mandatados
pelo poder político de uma gestão eficaz e eficiente dos hospitais públicos, como aos
médicos, figuras centrais no funcionamento dos hospitais modernos, sendo os responsáveis
pela definição e concretização da prestação de cuidados de saúde, e cuja influência se
estende a determinadas áreas da própria gestão hospitalar (especificamente por via dos
cargos de director de serviço e director clínico).
23
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
desencadeie manifestações mais acentuadas por parte da profissão médica.18 Note-se que
estas medidas visam reconfigurar algumas jurisdições definidas entre a gestão hospitalar e
a medicina, afectando, consequentemente, o sistema dual de autoridade potencialmente
conflituoso que relaciona estas duas profissões.
18
Esta referência ao lugar estrutural da medicina na organização da prestação de cuidados de saúde
limita, consequentemente, o espaço permitido a outras actividades profissionais para exercer as
suas pressões. Por exemplo, a respeito do processo de profissionalização das profissões na área das
tecnologias de saúde em Portugal veja-se Lopes (2006), cujos argumentos são extensíveis à
enfermagem.
24
Tiago Correia
Embora a dimensão das aprendizagens sociais (em sentido lado) seja preponderante
na condução da vida profissional – aliás como em qualquer outra dimensão da vida –,
existem elementos de socialização educacional e, posteriormente, profissional que vão
configurando, de um modo muito complexo, a construção das práticas e representações dos
indivíduos, isto é, os entendimentos que eles edificam sobre o mundo que os rodeia. Por
isso, sem ser possível avançar com um modelo explicativo sobre as causalidades mantidas
de parte a parte, é nesta dupla relação entre a existência individual e as práticas
profissionais que este trabalho se debruça. O interesse é explorar como as influências
sociais externas à profissão influenciam o modo como o profissionalismo é
individualmente interiorizado e activado, como também perceber como as racionalidades
profissionais decorrentes de um profissionalismo institucionalizado, influenciam os modos
de entendimento sobre dinâmicas sociais, em particular questões relativas ao Estado e à
prestação da saúde enquanto bem público.
19
A referência que se faz é à ideia de superioridade e idoneidade que acompanha os titulares da
actividade médica em qualquer contexto social que se encontrem. Pode-se entender como uma
forma de estigmatização positiva, em que se criam expectativas e se inferem qualidades e
perfeições unicamente pela profissão detida (sobre estigma vd. Goffman, 1980).
25
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Não quer isto dizer que apenas nas profissões onde é assegurada uma significativa
discricionariedade profissional, ou seja, onde as decisões individuais revelam ser
preponderantes para a configuração das estruturas e dos processos profissionais, há
relevância em conceptualizar a reflexividade individual. Basta recordar as conclusões que
Goffman (1974a) apresenta sobre as prisões e asilos para perceber a capacidade adaptativa
dos indivíduos nos contextos sociais possivelmente mais restritivos para o exercício da
individualidade. Existe sempre a possibilidade de desvios aos comportamentos esperados
porque, com graus mais ou menos variáveis, a contingencialidade é intrínseca à condição
humana. Ainda assim, um maior espaço para a decisão individual faz com que a
reflexividade assuma uma importância acrescida para as opções do exercício da actividade
profissional. As múltiplas possibilidades de decisão fazem sobressair os modos como os
papéis profissionais são individualmente interiorizados e, consequentemente,
desempenhados. Daí a referência que para os objectivos deste trabalho, a análise
sociológica das profissões deva sair das profissões em si e situar-se nos profissionais.20
A expectativa não é contribuir com uma teoria geral das profissões. A mais-valia
desta abordagem reside tão só na necessidade de conceptualizar os sentidos conferidos à
acção em contexto profissional, dada a existência de uma profissão onde a actividade
quotidiana é caracteriza por elevados níveis de indeterminação e interpretação. Tais
processos decorrem tanto da natureza dos saberes profissionais, em que se exige um
exercício mental de escolha dos procedimentos em função da especificidade da situação
com a qual o profissional se depara, ou seja, de adaptação do abstracto ao concreto, como
também de superioridade e controlo face a outros saberes profissionais. O facto de se
considerar a medicina como uma profissão dominante, isto é, com capacidade de controlo
interno concomitante com um controlo externo (conteúdo do trabalho das restantes
ocupações na saúde, Freidson, 1970, 1985, 1986), torna sem dúvida central a questão da
tomada de decisão.
20
Ideia semelhante é encontrada em Elias (1993), segundo o qual qualquer função social deve ser
compreendida na sua vertente externa (porque existem) como na sua vertente individualizada
(como é desempenhada): “tanto a [função] do director de fábrica ou do mecânico como a de uma
mulher casada sem profissão ou de um estranho e de um pai, todas elas são funções que um ser
humano tem para outros seres humanos, que um indivíduo tem para outros indivíduos. Só que cada
uma destas funções está orientada para outros; é tão dependente do funcionamento desta como
esta dela; (…)” (p.34).
26
Tiago Correia
27
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
profissão, quer por via do controlo externo exercido pela medicina, não deixando um
espaço tão significativo para as marcas da individualidade como é mais flagrante no caso
da profissão médica.
28
Tiago Correia
CAPÍTULO II:
CONSTRUÇÃO ANALÍTICA DE UM OLHAR SOBRE AS PROFISSÕES DE
SAÚDE
21
Partes constituintes deste ponto representam debates que já foram alvo de avaliações inter-pares
(Correia, 2009b, 2009c, 2010a, 2010b).
29
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
imprime às opções de investigação, sendo, por este motivo, redutor considerar uma
homogeneidade na prática da investigação portuguesa em sociologia da saúde.22
A existência desta relativa confluência teórica pode ser tomada como indicativa de
que a sociologia da saúde portuguesa atravessa ainda um processo de consolidação
científica. Se por um lado, permanecem por explorar certos domínios empíricos, por outro,
aqueles que têm sido estudados, pelo reduzido número de investigações, assumem ainda
um estatuto pioneiro.23
Não sendo aqui o lugar para desenvolver esta questão, o que interessa realçar é que
as investigações nacionais no domínio da sociologia da saúde têm atribuído um lugar de
destaque à análise das profissões (e.g. Carapinheiro, 1993; Lopes, 2001a; Serra, 2004;
Carvalho, 2005; Tavares, 2007; Areosa e Carapinheiro, 2008). Nestas, reconhecem-se nos
contributos de Freidson (1970, 1986, 1994, 2001) e de Foucault (1975) uma importante
ancoragem teórica.24 Se no caso de Freidson essa influência é expressa principalmente
através do papel das profissões na divisão do trabalho e nas consequentes relações de
autoridade, nas trajectórias de profissionalização, na constituição de jurisdições
profissionais e nas estratégias existentes na procura de manutenção de monopólios vários
(por exemplo da educação e da formação ou do controlo da prática profissional), por seu
lado, o pensamento de Foucault permite uma leitura do modelo biomédico como forma de
poder e, nestes termos, de sujeição dos comportamentos.25 A forte influência que Freidson
22
“Efeito de escola” que os autores encontram de forma mais demarcada na Faculdade de
Economia da Universidade de Coimbra (FEUC) do que propriamente no Instituto Superior de
Ciência do Trabalho e da Empresa (ISCTE), onde Graça Carapinheiro introduz um efeito particular
em relação à sociologia característica aí desenvolvida.
23
A existência deste pioneirismo nalgumas áreas da saúde leva a considerar, para já, insensato falar
na consolidação de linhas de investigação emergentes, por estarem ainda directamente dependentes
dos seus primeiros intervenientes. É por exemplo o caso das representações e construções sociais,
tanto da medicina como da doença (Antunes e Correia, Ibid.).
24
Ainda que a referência não exaustiva a investigações nacionais sobre profissões respeite o espaço
empírico da saúde, não podem ficar omissos outros contributos no panorama nacional, entre os
quais, Gonçalves (1996) sobre os economistas, Rodrigues (1999) sobre os engenheiros ou Caria
(2005) sobre os veterinários.
25
Em traços gerais, Foucault (1975) utiliza a noção de disciplina numa vertente de estruturação dos
comportamentos dos indivíduos. O poder disciplinar, entendido enquanto conjunto de técnicas
passíveis de serem apropriadas pelos indivíduos, tem uma aplicação directa sobre a
conceptualização das organizações, especificamente aquelas onde a medicina desenvolve o seu
modelo de compreensão dos corpos, das doenças e, consequentemente, dos sujeitos.
30
Tiago Correia
31
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Nestes termos, surge com alguma clareza a ideia de que entre as abordagens
consideradas é atribuído um lugar de destaque às profissões em si. Sem querer por
enquanto aprofundar este argumento, o importante a salientar neste momento é que a
análise das profissões, ora pelas suas características ora pelos seus processos, apresenta
uma centralidade em torno da vertente institucional. Na realidade, um dos traços marcantes
que se irá identificar na sociologia das profissões, e que acaba por levar ao argumento
central neste trabalho, é que a construção deste campo de saber seguiu um processo
tendencial de fechamento sobre si mesmo, isto é, encerrado sobre o seu objecto empírico,
ou seja, nas próprias profissões.
Olhando para a forma como Rodrigues (Ibid.) mapeia o que foi e o que tem sido a
ancoragem teórica da sociologia das profissões percebe-se o porquê desta absoluta
necessidades de pensar as profissões em si mesmas. São, assim, separadas em duas as
tradições teóricas na análise das profissões: uma centrada na estrutura e outra no processo,
32
Tiago Correia
e que acabam por divergir nos temas, nos objectivos, nas problemáticas e nas
metodologias.26
As abordagens centradas no processo, por sua vez, não analisam as profissões como
grupos reais, mas como categorias construídas socialmente suportadas por uma ideologia
de profissionalismo. Constituem, por isso, uma crítica à natureza essencialista que a
existência de um tipo-ideal de profissão pressupõe. Na medida em que valorizam uma
interpretação contextualizada histórica, económica, política e socialmente, assume-se a
divisão do trabalho como um facto social resultante de relações de negociação e de conflito
na obtenção de autonomia funcional. Por autonomia entende-se o exercício do trabalho
sem o controlo de outras profissões e das organizações onde a actividade profissional é
desenvolvida (cf. Freidson, 1970). Cabe dizer ainda que esta orientação pelos processos
inclui formas interligadas, mas não inteiramente coincidentes, de conceptualizar as
profissões, como é o caso das perspectivas de Johnson (1972), Larson (1977) ou Collins
(1990).27
26
Para uma síntese mais completa ver Rodrigues (2002: 131 – 2). Salientar apenas que embora esta
discussão seja construída com base em autores da segunda metade do séc. XX, o pensamento, tanto
funcionalista como interaccionista, tem início anos antes. No caso do interaccionismo são
apontados contributos iniciais da Escola de Chicago, enquanto no funcionalismo autores dos anos
30, como Carr-Saunders (ver Sciulli, 2005 ou Saks, 1983).
27
Isso é explícito, por exemplo, no caso dos vectores explicativos do poder profissional. Johnson
parece centrar-se mais na obtenção de poder por via da relação assimétrica entre o profissional e os
seus clientes, enquanto Larson confere maior atenção à questão do fechamento das profissões
enquanto capacidade de controlo do acesso à actividade e do seu mercado. Collins, por seu lado,
reflecte sobre o modo como as profissões obtêm poder na sua relação com a estrutura capitalista.
33
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Como se disse, o traço característico desta nova fase nas teorias das profissões é a
articulação e complexificação daquilo que outrora se sedimentou como duas escolas de
pensamento distintas – veja-se, por exemplo, a opção de Rodrigues (2002: 4) em designar
esta como “a abordagem sistémica e comparativa ou a procura de modelos complexos”.
Ainda assim, isto não significa que hoje em dia tenham deixado de existir propostas que
assumidamente continuam a salientar as distâncias entre o funcionalismo e o
interaccionismo. Evetts (2003; 2006b) fala de um intenso debate em torno da questão do
profissionalismo, considerando existir uma corrente que procura reequacioná-lo sob o
34
Tiago Correia
ponto de vista do seu valor normativo positivo para a ordem social (e inclui os contributos
mais recentes de Freidson próximos da teoria dos sistemas de Parsons), distinta de outra,
cuja interpretação do profissionalismo continua a ser numa lógica dos efeitos negativos de
uma ideologia de controlo e de fechamento por parte das ocupações. A autora insere-se
nesta última perspectiva, indo buscar aos contributos de Foucault a dimensão da
normalização e do controlo social.
35
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
28
Estes pressupostos teóricos levaram Champy a considerar quatro objectos sociológicos distintos.
O primeiro e que mais interessa nesta discussão refere-se a um conjunto de profissões que, com
base no conceito de prudência de Aristóteles, procedem mais do que outras a um raciocínio de
adaptação à singularidade. É o caso de profissões como a medicina em que a complexidade
inerente às suas funções faz com que a tomada de decisão revele maiores níveis de indeterminação.
De algum modo, a proposta do autor acaba por constituir a base daquilo que Freidson (1994) se
refere como sendo autonomia ou Evetts (2001) por discricionariedade. O poder destas profissões
decorre de demonstrarem socialmente os benefícios que o seu fechamento profissional pressupõe
para a qualidade do serviço prestado. O segundo objecto refere-se a actividades judiciais cujo
fechamento decorre das suas funções de criação dos conteúdos legais, através dos quais um país se
rege. O terceiro objecto dá conta de actividades cujas funções são assumidas pelo Estado como
tendo um carácter de interesse nacional. São actividades que, contrariamente às anteriores, não se
vêm protegidas por algum grau de indeterminação dos seus saberes, mas que são considerados
centrais para o desenvolvimento de um país (o autor pensa no sector dos transportes). O quarto
objecto sociológico diz respeito a todo o resto de actividades que não são consideradas profissão.
36
Tiago Correia
in these ways, the normative value system of professionalism in work, and how to behave,
respond and advise, is reproduced at the micro-level in individual practitioners and in the
workplaces in which they work. Some of the differences in occupational socialization
between occupations have been identified but the general process of shared occupational
identity development via work cultures, training and experience was regarded as similar
across occupations and between societies.
É certo que se pode argumentar que os processos que estão no cerne da leitura
interaccionista contemplam variações internas. Sendo verdade, ver-se-á mais adiante em
que sentido, esta análise processual centrada em dinâmicas institucionais mostra limitações
no nível de explicação que se pretende chegar sobre os motivos da acção dos profissionais.
O recente debate tido por Sciulli (2005) é paradigmático desta configuração das
teorias no interior das profissões. Na esteira de trabalhos prévios, a questão fundamental
que continua a ser equacionada e a centrar parte significativa da atenção dos protagonistas
é a adequação das características invariáveis das profissões, ou seja, o tipo-ideal de
profissão que permita alcançar a “integridade definicional” do conceito. O objectivo do
37
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
autor continua a ser superar aquilo que entende ser as indefinições sobre o profissionalismo
que, na sua opinião, advêm de escolhas epistemológicas menos capazes de se abstrair das
suas manifestações empíricas mais evidentes e particulares. Critica perspectivas que,
segundo o seu ponto de vista, contribuem tanto para um “relativismo tipológico” (e.g.
Siegrist, 1990), como para uma relevância pouco útil conferida à consciência
sociopsicológica que os profissionais têm sobre o desempenho da sua profissão (e.g.
Burrage, Jarausch e Siegrist, 1990).
29
De forma sintética, o autor enumera como dimensões analíticas do processo de
profissionalização: (I) a aquisição do título académico, como forma de legitimação que o exercício
profissional depende da posse de conhecimentos especializados e restringindo o acesso à profissão;
(II) a existência de políticas que estruturam a divisão do trabalho e dos saberes, elevando o
conhecimento profissional especializado em relação ao conhecimento leigo; (III) como meio de
obtenção e consequente manutenção de status económico e social, por via do monopólio sobre as
oportunidades e funções da profissão; (IV) como consciência colectiva e representação partilhada
de interesses e estratégias.
38
Tiago Correia
Importa salientar que o diagnóstico que se apresenta à teorização das profissões não
tem por base uma leitura redutora dos múltiplos contributos existentes, até porque este
campo é marcado por um sólido e frutuoso capital científico acumulado. Aliás, como
Harrison (1999: 50) afirma, não é possível propor uma perspectiva das profissões contrária
àquelas que têm vindo a ser desenvolvidas, na medida em que essas são conceptualizações
amplas e, por isso, passíveis de enquadrar diferentes princípios teórico-epistemológicos.
39
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Noutro contributo, Strauss (et al, 1963) designaram a existência de uma ordem
negociada nos hospitais, para se referirem a complexas, informais e não previsíveis
negociações entre diferentes profissões, e que tal facto se deve a interesses pessoais.
Bucher e Strauss (1961), por seu lado, demonstram que, apesar de objectivos e dinâmicas
explícitas estruturalmente definidas, as interacções profissionais seguem outras direcções
informais. Perrow (1963) alerta para a existência de objectivos operacionais além dos
expectáveis objectivos oficiais. Stelling e Bucher (1972) teorizam a existência de uma
autonomia elástica nas relações inter-profissionais.
40
Tiago Correia
Dito de outro modo, o que está em causa é a existência de modos de activação dos
processos profissionais por parte dos indivíduos no desempenho das suas profissões, sendo
neste sentido que se argumenta a necessidade de sair da sociologia das profissões para
compreender o domínio das profissões. O âmbito de análise está sobretudo no
entendimento sobre a acção social realizada em contexto profissional, e isso transcende a
construção deste campo sociológico. Enquanto a teoria das profissões não descer o seu
enfoque analítico, a acção dos profissionais irá continuar a ser uma “Caixa de Pandora” por
abrir.
De facto, o que está em causa não deve ser remetido para abordagens designadas
por sociopsicológicas (e.g. Burrage, Jarausch e Siegrist, 1990). Não se está, por isso, a
equacionar a construção do profissionalismo por intermédio das crenças dos profissionais.
Aliás, não é de todo a construção genérica do profissionalismo que interessa neste trabalho,
dado que em termos empíricos a discussão está centrada no caso específico do exercício da
profissão médica em contexto hospitalar. Por este motivo, não importa particularmente
perceber se a evolução da profissionalização ocorre primeiro pela sua institucionalização
externa, ou enquanto ideologia entre profissionais que partilham aspirações e lealdades.
Sabendo que a existência de tais ideologias é inequívoca no espaço médico, sendo uma
41
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Ainda assim, é de referir que não se partilha a crítica de Sciulli (2005) aos
contributos de Burrage, Jarausch e Siegrist (1990), dado que não parece que nessa
abordagem esteja em causa a redução de um modelo de profissionalismo aos processos
cognitivos. Estes apenas são incluídos em relação a dimensões institucionais e políticas, o
que até se reveste de utilidade quando se procede a uma discussão das profissões como
aquela que se propõe fazer neste trabalho. As relações inter-profissionais definem-se em
relação a espaços de acção – jurisdições, utilizando a terminologia de Abbott (1988) –,
pelo que a alteração desses espaços desencadeia necessariamente um conjunto de reacções,
umas mais esperadas que outras.
Considerar aquilo que Burrage e seus colegas designam por ideologia permite
conceptualizar a uniformidade e a consistência de objectivos partilhados entre os
profissionais, bem como o conhecimento privilegiado que os profissionais têm da sua
própria profissão. Uniformidade que é transmitida pela socialização profissional, sem
significar uma redução de práticas individuais. Conhecimento que não respeita apenas o
conhecimento técnico e/ou científico transmitido formalmente, mas também os
conhecimentos informais que caracterizam a vida organizacional e que são impossíveis de
desprezar.
30
Se na medicina a ideologia surge antes da sua institucionalização por parte do Estado, as
restantes ocupações profissionais que se estabeleceram após essa apresentam a dinâmica
precisamente inversa, isto é, a ideologia emerge após a sua institucionalização delimitada pelo
Estado como por outras profissões responsáveis pela divisão social do trabalho (Wilensky, 1964).
42
Tiago Correia
Esta negociação tende a ser tanto mais necessária quanto maior for o grau de
discricionariedade detido.31
Note-se que a opção neste trabalho não é fechar a conceptualização das profissões
aos processos cognitivos, o que implicaria a anulação teórica da vertente estrutural das
profissões pela sua vertente subjectiva, como se vê, por exemplo, em Forbes e Hallier
(2006). Os autores discutem as variações intra-profissionais dos médicos no plano
individual, socorrendo-se da ancoragem psicológica das identidades sociais através de
Tajfel, pouco útil e demasiadamente incompleto para o nível de problematização
sociológica que aqui se pretende, apresentando-se fortemente armadilhada por evidências
empíricas mais imediatas.
31
Evetts (2001) aponta para a necessidade de distinção entre os conceitos autonomia e
discricionariedade referidos por Freidson, considerando que o segundo traduz de um modo mais
completo e complexo o significado da decisão individual no exercício profissional. Deste ponto de
vista, por discricionariedade entende a capacidade individual de tomada de decisão tendo em vista
o respeito por interesses do próprio profissional e dos clientes, tendo por base cálculos e avaliações
de constrangimentos organizacionais, económicos, sociais, políticos e burocráticos.
43
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Num contributo mais inicial de Evetts (1998) sobre o caso dos engenheiros é
possível identificar uma preocupação teórica semelhante à que aqui se apresenta. A autora
considera que a conceptualização da identidade profissional acaba por se centrar sobretudo
na partilha de experiências, entendimentos e saberes especializados, bem como nos modos
de concepção dos problemas e as suas possíveis soluções decorrentes de uma mesma base
educacional e treino profissional. Por conseguinte, perspectivas amplamente difundidas e
aceites como a análise sistémica de Abbott (1988) podem colocar algumas questões. Nessa
abordagem analisa-se como as profissões se influenciam mutuamente, considerando-as
como partes constituintes de um sistema social em relação de disputa pelo domínio de
conhecimentos e dos seus processos de aplicação – jurisdições profissionais. Os elementos
de variação intra-profissional estão contemplados, mas são sobretudo justificados através
de mecanismos de diferenciação na estrutura interna da profissão (por exemplo, o grau de
divisão do trabalho ou a existência de carreiras profissionais).
44
Tiago Correia
Como já se deu conta, procede-se a uma análise sobre os processos relacionais entre
profissões, num contexto de intervenção política sobre os contornos das respectivas
jurisdições profissionais, centrando como ponto analítico fundamental o facto de os
comportamentos dos profissionais derivarem de objectivações individuais interiorizadas da
realidade social. Por esta via, considera-se mais pertinente conceber as profissões enquanto
formações sociais de partilha de características situacionais, onde reside um sentimento
identitário de pertença, de valores e de atitudes comuns, além de disposições que impelem
para um comportamento semelhante (Kocka, 1990), mas sem que isso se traduza num
pendor excessivamente estruturalista sobre a acção. A reprodução como a mudança nos
comportamentos é mediada por processos localizados nos próprios indivíduos.
45
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
2006: 148).32 No entanto, parece redutor continuar a construir a sociologia das profissões
como um campo sociológico que é, ignorando os princípios elementares da sociologia.
Reitera-se que a questão fundamental aqui presente é que não há qualquer vantagem em
dissociar o debate das profissões da influência da estrutura e do papel conferido à acção.
32
Além dos modelos normativos de acção, Carapinheiro refere como outros aspectos analisados as
formas negociadas de acção decorrentes da importância que as relações de comunicação informais
e a estrutura social informal representam para o funcionamento hospitalar.
46
Tiago Correia
corpos (Foucault, 1975) representa um óbvio pendor teórico para o peso da estrutura sobre
a acção.33
33
Ainda que não se pretenda aprofundar este debate, não é consensual o modo como os contributos
de Foucault são interpretados. Autores como Armstrong (1995) ou Williams e Calnan (1996) dão
conta de perspectivas crescentes que rejeitam a noção de corpos dóceis por corpos reflexivos, numa
clara alusão aos problemas conceptuais inerentes ao macro-estruturalismo de Foucault. Noutra
dimensão dos contributos de Foucault, Reed (1993) também considera que o modelo da vigilância
e do controlo modernista desse autor esconde e determina processos intra-organizacionais,
propondo em alternativa uma análise que faça sobressair as relações entre a agência e a estrutura.
Crozier e Friedberg (1977) criticam Foucault por considerarem que o poder terá que ser
conceptualizado não como uma estrutura de autoridade ou como um atributo que se adquire como
qualquer outro meio de produção, mas como o produto de uma relação mantida, mobilizada e
controlada numa estrutura de um determinado jogo. Quer isto dizer que o poder advém do próprio
jogo, onde se definem os espaços de acção permitidos, mas que são mobilizados por diferentes
objectivos por parte dos indivíduos quando desempenham esse jogo. Por outro lado, existem outras
perspectivas (e.g. Tobias, 2005: 66) que dão conta que, embora o pensamento de Foucault esteja
associado aos constrangimentos da acção, principalmente por via dos seus textos mais recentes, o
autor é um filósofo da liberdade. Evetts (2003: 406) também refere que o conceito de disciplina em
Foucault tem mais uma dimensão internalizada e proactiva do que externa e reactiva.
47
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
34
Sobre o papel da socialização escolar no caso dos médicos destaca-se os contributos clássicos de
Merton (1957) ou Becker (et al, 1961), mais tarde repensados por autores como Baszanger (1983)
que se centram na experiência quotidiana da prática médica como principal elemento produtor da
socialização profissional.
48
Tiago Correia
modo como os indivíduos fazem uso dos seus papéis profissionais. Por exemplo, Harrison
(1999) contraria a ideia de formas fixas e previsíveis de apropriação do exercício
profissional da medicina por considerar que estas envolvem espaços de liberdade
intrínsecos. Argumenta que perante ameaças externas percepcionadas é possível encontrar
uma padronização de discursos, mas que esse nível mais imediato não capta que no
quotidiano as demarcações de campos acabam por se relativizar.
Doolin (2002), por seu lado, comprova que os discursos macrossociais em torno
dos benefícios da gestão e dos seus mecanismos de actuação influenciam, em graus
variáveis, a subjectividade dos médicos e a forma como constroem a sua identidade
profissional. Considera, por isso, necessário compreender a influência que a interpretação
individual representa nos resultados da acção, identificando a possibilidade de aceitação,
de resistência ou mesmo de compromisso dos médicos face à introdução de mecanismos de
gestão nos hospitais.
Associado a isso, um texto mais recente de Evetts (2006a) examina o modo como o
profissionalismo tem vindo a assumir diferentes significados na teorização sobre as
35
Em breves traços, Causer e Exworthy apresentam como elementos da sua tipologia, em primeiro
lugar, os profissionais-actuantes, cujas responsabilidades se relacionam com o exercício da
actividade profissional quotidiana. Esta categoria subdivide-se nos actuantes puros, que não detêm
qualquer responsabilidade de supervisão e os actuantes quasi-gestores, que embora não tenham a
designação formal de gestores, incluem nas suas responsabilidades a supervisão de actividades. Em
segundo lugar, os profissionais-gestores, cujas responsabilidades incluem a gestão do trabalho dos
outros profissionais e dos recursos. Esta segunda categoria também se subdivide, neste caso entre
os profissionais-gestores actuantes e os profissionais-gestores não actuantes: os primeiros mantêm
a par com a sua actividade de gestão alguma da sua prática profissional, enquanto os segundos se
dedicam em exclusivo à gestão dos profissionais e dos recursos. A terceira e última categoria é
designada por gestores-gerais, os quais assumem a responsabilidade máxima sobre a gestão dos
empregados profissionais, não se ligando à gestão corrente da actividade. Também esta categoria é
desdobrada entre os gestores-gerais com influência profissional e os gestores-gerais sem influência
profissional, caso os gestores tenham tido ou não um percurso profissional prévio.
49
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
profissões.36 Embora a autora se baseie em Foucault, o que se traduz numa análise sobre o
modo como os discursos se institucionalizam e normativizam os comportamentos,
considera necessário compreender os discursos dos profissionais dado que através deles se
torna possível compreender como, individualmente, a profissão é aceite, incorporada e
instrumentalizada pelo indivíduo no exercício da actividade profissional.
Importa ainda salientar outros dois contributos recentes que, embora não teorizem
as implicações epistemológicas das suas posições com o rigor considerado merecido e
necessário, revestem-se de grande utilidade para a discussão teórica e apreciação empírica
que se apresenta neste trabalho. Timmermans (2008) destaca a necessidade de uma
abordagem sobre as profissões por via da ligação dos níveis micro e macro. A premissa é
que, se por um lado, a posição das profissões no nível macro condiciona o comportamento
dos profissionais, por outro, o comportamento nos contextos de trabalho acaba por
influenciar o posicionamento macro das profissões. A ideia teórica fundamental é que o
conhecimento das relações inter-profissionais exige considerar as posições estruturais que
as profissões ocupam num dado contexto espacial e temporal, que delimitam os espaços de
acção dos profissionais, sem deixar de conferir um dinamismo a essas estruturas,
precisamente por via da acção dos profissionais, os quais, em última análise, podem
reconfigurar as jurisdições profissionais. Timmermans parte da noção de espaço protegido
36
Como se viu, o seu entendimento varia entre o altruísmo para a perspectiva funcionalista,
controlo e fechamento social para autores interaccionistas e uma posição intermédia, em que
representa formas específicas de controlo do trabalho com vantagens e desvantagens para autores
como Freidson.
50
Tiago Correia
no mercado que cada profissão possui – “market shelter” ideia introduzida por Freidson
(1994) – para explicar os comportamentos dos profissionais, sobretudo com outras
profissões que procuram competir sobre as mesmas jurisdições.
The challenge facing the GPSI [General Practioner with Specialist Interest] initiative
however is not only an inter-professional one, but an intra-professional one. As case studies
illustrate, there were different views among GPSI themselves as to how the role should be
developed, and whether expanding their remit through either diversification into a new niche
or substitution resulted in gains or losses for GPs. (Id., Ibid.: 277)
51
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
52
Tiago Correia
53
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
regras associadas ao desempenho desses papéis, por interesses pessoais, por influências
passadas e por percepções que os agentes detêm sobre si, como também têm sobre os
papéis desempenhados e sobre os agentes com quem se relacionam.37
Contudo, ter o poder para incidir sobre a estrutura não significa que se queira fazê-
lo. Por isso, contextos de reprodução social não traduzem a ausência ou erradicação da
individualidade. A reprodução social é compatível com a existência de processos
cognitivos avaliativos em relação às estruturas (“é melhor eu não mudar”), daí o argumento
sobre a necessidade de conhecer os sentidos que são individualmente atribuídos à acção. A
mudança, além de depender dos lugares sociais ocupados, depende de como a agência
interpreta esses lugares e os objectivos associados ao desempenho desses papéis sociais.
Por outras palavras: dota-se o agente de inteligibilidade (Pires, 2000).
37
O debate actual na teoria sociológica sobre a designação actor e agente é muito sensível, por
envolver entendimentos conceptuais distintos. Segundo Pires (2007: 38), a agência respeita “o
indivíduo socialmente constituído, na totalidade das suas determinações”, pelo que “o
desempenho dos papéis é condicionado não só pelos sistemas de regras que os especificam como
também pelas intersecções presentes e passadas (…) de diferentes tipos de papéis, bem como pelas
posições sociais ocupadas pelos agentes, as quais condicionam as possibilidades diferenciais de
exercício daqueles papéis.” A opção pela agência afigura-se determinante para perceber a
reflexividade, sendo este um ponto de diferença em relação à noção de actor veiculada por Crozier
e Friedberg (1977). Tendo em mente o óbvio desfasamento temporal em relação ao contributo
desses autores, a sua importante teorização de conexão macro-micro através da acção estratégica
ocorrida no interior de sistemas de acção concretos faz-se considerando, sobretudo, os mecanismos
presentes que, tanto constrangem, como expandem as possibilidades de acção dos actores. De
facto, e embora se tenha visto logo no início deste trabalho – nota de rodapé 15 – que Crozier e
Frieberg argumentam que a estratégia é compatível com a não consciência, o que permite
considerar uma dimensão passada de aprendizagens que se rotinizam (tornam-se “naturais” ou
“normais” e por isso não conscientes), além das regras presentes, a sua teorização está muito mais
centrada na contingencialidade das relações presentes do que na sua articulação sistemática com a
construção reflexiva do self.
54
Tiago Correia
Um aspecto fundamental nesta ideia é que não está a ser posta em causa a
existência de padrões de comportamento resultantes de pressões estruturais externas, nem
tão pouco se está a remeter a acção individual a uma mera componente individualista.
Como se pode observar na esquematização apresentada, segue-se o princípio do dualismo
da estrutura (Archer, 1995), onde se definem, prévia e externamente, os espaços de acção
permitidos que, por via da comunicação e interacção, se ligam com quem os perpetua.38
Não esquecendo que um dos pressupostos teóricos centrais deste trabalho relaciona-
se com o não fechamento dos campos científicos nos seus objectos empíricos, há no
entanto que considerar um conjunto mais específico de dimensões estruturais que,
conceptualmente, se afiguram como mais pertinentes para a análise da acção profissional.
É sob dois mecanismos que se garante esse não fechamento dos comportamentos em
contexto profissional nas profissões: por um lado, a própria natureza das dimensões
estruturais consideradas que, como se irá discutir, envolvem processos específicos à vida
profissional e outros de natureza política mais alargada; por outro lado, a inclusão das
socializações pessoais (além das profissionais) na base da construção da reflexividade,
dando conta de processos sociais mais amplos, prévios e paralelos às influências próprias
dos processos de trabalho.
Dito isto, o sistema concreto de acção em discussão é definido por três níveis
estruturais distintos: um macrossistema de influência supranacional, onde emergem
ideologias sobre o significado da actividade pública e, consequentemente, sobre a função
da NGP; um nível organizacional onde essa ideologia se materializa em orientações e
regras, dependendo das contingências próprias de cada organização, mas também de outros
sistemas nacionais, como o sistema político e financeiro;39 e, um nível das jurisdições
profissionais, isto é, os espaços de acção e de responsabilidade de cada profissão.40 Autores
38
O princípio do dualismo da estrutura baseia-se na relação causal entre estrutura e acção,
contrariando a ligação recursiva pressuposta pela dualidade da estrutura (Giddens, 1984, 2000a).
Archer analisa as estruturas existentes previamente à acção, delimitando os espaços em que
ocorrem as interacções sociais, de acordo com a perspectiva realista. Nesta, o estatuto ontológico
do mundo social difere do mundo natural, em primeiro lugar, porque as estruturas sociais apenas
existem com as acções que elas estruturam, em segundo lugar, porque as estruturas sociais existem
em função do entendimento que os indivíduos têm sobre elas, e em terceiro lugar porque as
estruturas sociais não são imutáveis (Bhaskar, 1979).
39
Aqui contempla-se, por exemplo, a noção de contexto discutida por Caria (2005).
40
De fora desta delimitação analítica ficaram os lugares ocupados na estrutura interna das
profissões. Não é que se desconsidere a sua relevância nas relações profissionais em contexto
55
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
como Freidson (1994, 2001), ou mais recentemente Champy (2009), referem que estes
espaços detidos pelas profissões podem advir de dois processos: tanto como o resultado de
atribuições sociais externas à profissão, devido à função social que desempenha, como dos
processos corporativos de fechamento e de conquista.41
hospitalar. Aliás, essa dimensão será convocada nos capítulos referentes aos processos empíricos
analisados, sobretudo quando se trata da influência exercida pelos directores de serviço. A sua não
inclusão neste ponto de reflexão prendeu-se com a necessidade de garantir um espaço de abertura
àquilo que habitualmente é tomado como a principal variável explicativa dos comportamentos
individuais. A questão pode ter pertinência para outros contextos que não envolvam a profissão
médica, contudo, o resultado das análises empíricas demonstrou que os lugares da estrutura da
carreira médica (especialista, especialista graduado e chefe de serviço) acabam por não ser a
variável fundamental na estruturação das dinâmicas hospitalar. A entrada na profissão (após
realizado o exame de especialidade de inscrição na Ordem) e a discricionariedade envolvida nesse
acesso garante por si só espaços alargados de autonomia a estes profissionais. Por isso, a questão
não deve ser posta em termos do lugar formal ocupado, pois, sobretudo, na relação com outras
profissões, o estatuto mobilizado é o da profissão e não o da categoria profissional. Neste sentido, e
como argumentado anteriormente, mais do que fazer depender os comportamentos do lugar
ocupado, a explicação das acções reside dos processos apresentados na esquematização.
41
Tema amplamente discutido no ponto 4.
56
Tiago Correia
mais amplos decorrentes dos processos sociais nos quais as profissões ocupam um
determinado espaço e função, cada um com as suas estruturas e regras específicas.42
42
É também neste sentido que se pode compreender o trabalho de Carapinheiro (1993) sobre a
análise da profissão médica em contexto hospitalar. A autora convoca a dimensão do poder médico
decorrente dos saberes socialmente produzidos em contextos específicos de interacção com outros
saberes profissionais e leigos.
57
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
sancionadora (Giddens, 1984; Burns e Flam, 2000), não havendo forma de procurar modos
únicos de agir perante as estruturas organizacionais.43
Aplicando esta mesma base dos sistemas abertos às próprias relações intra-
profissionais, deve-se conceptualizar a possibilidade de divergência e contradição da acção
mesmo no interior de campos profissionais relativamente estáveis e homogéneos. Para
Crozier e Friedberg (1977), o elemento aglutinador capaz de perpetuar um sistema desta
natureza, ou seja, de tendencial estabilidade mesmo sem mecanismos internos de controlo
e de dominação suficientemente formalizados para assegurar a reprodução das regras
definidoras das profissões, é a partilha de uma dimensão ética individualmente
reconhecida. Por outras palavras, trata-se da solidariedade social que Durkheim (1977)
refere existir com a divisão do trabalho.
Posto isto, as profissões podem ser claramente assumidas como instituições (Burns
e Flam, 2000), por respeitarem tais sistemas de regras sociais próprias não necessariamente
extensíveis a outras profissões: por exemplo, aquilo que Freidson (1970) designa por
“mentalidade clínica” como sendo todo um conjunto de regras e racionalidades
específicas à medicina. Em cada um desses sistemas sociais existem relações, regras e
comportamentos esperados, portanto, lógicas que organizam e coordenam as interacções
43
Nas leituras efectuadas de aprofundamento a esta discussão ficou-se com a noção que parte do
pensamento de Giddens, sobretudo em The Constitution of Society (1984), acaba por ser relegada
para um plano algo periférico na reflexão em torno da teoria sociológica em Portugal. Talvez se
possa justificar com a centralidade que o raciocínio de Pierre Bourdieu assume. Em todo o caso,
num ponto mais adiante discute-se as possibilidades de articulação entre as formulações destes dois
autores, sobretudo na ideia que o habitus e a reflexividade não respeitam necessariamente
diferentes entendimentos epistemológicos sobre a acção e estrutura. Deste modo, embora Bourdieu
tenha adquirido uma enorme centralidade nas teorias sociológicas contemporâneas, os contributos
de Giddens sobre os processos constituintes da acção não devem ser menosprezados. Como se pode
observar na perspectiva dos sistemas de regras sociais de Burns e Flam (2000), apesar de os autores
identificarem alguns contrastes com a perspectiva de Giddens, destacam a pertinência de algumas
das suas premissas: “o quadro teórico partilha várias características das contribuições
metateóricas e ontológicas de Giddens (1976, 1984): o conceito de agentes conhecedores, o seu
empenho activo em processos normativos e na reprodução e transformação da estrutura social, a
dualidade da estrutura, a natureza recursiva da actividade humana, as consequências não
pretendidas da actividade humana, entre outras.” (p. 329)
58
Tiago Correia
entre os agentes sociais, mesmo sem uma existência formal e comum entre os membros
pertencentes a esse sistema. 44
Contudo, e como já foi sendo afirmado, não é somente pela componente estrutural
que se analisam as profissões, considerando também a componente da acção. Atendendo às
palavras de Schraiber (2008), o trabalho quotidiano ao inserir-se nas configurações mais
gerais do mundo do trabalho, não deixa de ter uma existência singularizada. Está em causa
um processo que resulta da ligação entre os intervenientes de diferentes estruturas, cada
uma delas apresentando as respectivas regras, e o modo como esses intervenientes
percebem o seu lugar e o lugar dos outros nesses espaços onde as interacções sociais têm
lugar. Daí a ideia de a articulação sistémica entre o sistema e o actor está intrinsecamente
aberta à acção individual (Crozier e Friedberg, 1977). Para os autores, o argumento é que
simplesmente se torna impossível conceptualizar o nível institucional sem se saber como o
“jogo” é individualmente jogado.
44
Importa dizer que, apesar de se seguir problematizações não inteiramente coincidentes,
encontram-se similitudes entre os pressupostos e interrogações do modelo teórico de Burns e Flam
(2000) com alguns dos argumentos que aqui são equacionados para a análise dos comportamentos
profissionais. Por exemplo, enquanto nesta investigação se dá uma especial atenção ao conceito de
reflexividade, nos seus contributos esse conceito surge com uma frequência mais pontual. Isso não
significa que os autores não se refiram à reflexividade, até porque se baseiam nos argumentos de
Margaret Archer, autora incontornável a esse respeito. No entanto, é mais comum ver-se no seu
trabalho a referência a noções como “regras explícitas”, “interesses particulares”, “interpretações”
ou “criação” que, na sua essência, confluem com a delimitação que aqui se procura sobre a
reflexividade.
59
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
quotidiana inter-pares.45 Percebe-se, por isso, em que medida a inclusão daquela dimensão
ética/solidária explica a agregação de indivíduos quando, estruturalmente, existem
condições para que a diferenciação da acção individual possa pôr em causa a ordem social
desse sistema.
Outra forma de entender esta ligação diz respeito à função social desempenhada
pelos sistemas simbólicos (Bourdieu, 1989). A partilha de símbolos actua como
mecanismo de integração, ao sujeitar os indivíduos a um conhecimento comum por
intermédio da comunicação. As ideologias são produzidas, quer por via do grupo
(profissão médica ou um determinado serviço), quer por via de quem (agente) os produz
num determinado campo. Ora, o poder decorrente dos sistemas simbólicos, criados e
definidores de um determinado campo, apenas existe por intermédio da sua mobilização
pelas partes integrantes numa relação não ilusória mas determinada a cada contexto em
particular (Id.; Ibid.)
Olhando para o nível grupal (ou de classe), o sistema simbólico responsável pela
dominação exercida pela medicina – não apenas na organização hospitalar, como nos
diversos espaços sociais – ancora-se no conhecimento (expertise) detido e mantido sob
monopólio. A função social deste fechamento individualmente percepcionado e que
garante a relativa estabilidade da profissão no tempo e espaço é a ética de orientação para o
doente. Argumento semelhante pode-se aplicar à gestão hospitalar. A profissão apresenta
uma reduzida diferenciação interna, em parte, devido ao seu acesso ser apenas feito após a
formação superior, não existindo mecanismos formais internos de controlo e padronização
45
De forma sintética, o internato surge como uma fase intermédia na formação médica. Os
“internos” já não são designados como “alunos” – aqueles que ainda estão na fase educativa das
faculdades –, mas também ainda não assumiram o estatuto de “médico” – denominação utilizada
após o exame de acesso a uma especialidade na Ordem dos Médicos. Revela ser uma fase híbrida,
dado que para outros profissionais (e.g. enfermeiros ou gestores) é comum ouvir-se a designação de
“doutor” para se dirigirem a um interno, estatuto que não se aplica na relação com os membros
mais velhos da profissão. De facto, é uma regularidade que os “médicos”, isto é, os especialistas se
refiram aos internos como “interno do ano X”, e os internos se refiram aos especialistas como
“doutores”. Entre os especialistas, os mais novos continuam habitualmente a referir-se aos seus
antigos “tutores” (especialista responsável pelo interno) por “doutor”, salvo em situações de
amizade ou proximidade pessoal. Entre especialistas com uma relativa proximidade etária foi mais
habitual ser usado o nome próprio (notas do diário de campo).
60
Tiago Correia
46
Inicialmente, através de cursos pós graduados leccionados pela Escola Nacional de Saúde
Pública. Nos anos mais recentes outras instituições de ensino formalizaram mestrados em
administração hospitalar (Entrevista exploratória a Administrador Hospitalar).
47
Tanto no seu trabalho mais recente, como em reflexões anteriores Schraiber (2008) apresenta
uma conceptualização muito semelhante da acção profissional dos médicos. A este nível da relação
entre interiorização da exterioridade e exteriorização da interioridade a autora faz confluir o
pensamento de Bourdieu ao de Sartre. Curiosamente, os contributos de Bourdieu foram
consolidados contra perspectivas como as do segundo autor por, em sua opinião, deixar um espaço
irrealisticamente alargado às possibilidades de acção individual. Como se verá no capítulo seguinte
aprofunda-se a discussão sobre os mecanismos possíveis de acção, deixando já expressa a ideia que
se partilha a necessidade de trazer um carácter mais activo para os comportamentos, sem que isso
contrarie a existência de estruturas cognitivas naturalizadas que condicionam o campo do possível.
61
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
a estrutura e a acção, dado que a influência das estruturas sobre a decisão individual ocorre
mediante um processo avaliativo/reflexivo individual sobre essas condições
condicionantes. Desta definição ressalta o processo contínuo de interrogação do indivíduo
sobre si enquanto sujeito num contexto social objectivo e enquanto objecto em relação a
outros sujeitos. Como Archer (Ibid.: 73) argumenta, “o pensamento reflexivo é um
sinónimo de conversas interiores por não ser apenas uma autoconsciência vaga, mas uma
exploração questionante do sujeito em relação ao objecto, incluindo o sujeito como
objecto, desprovido da necessidade de qualquer resultado prático ou intencional.”48
48
Tradução livre do original em inglês. Na medida em que o entendimento pretendido sobre a
reflexividade está centrado em interpretações, Lynch (2000: 33 – 4) considera incontornável a
referência ao programa etnometodológico de Garfinkel: “The reflexivity of accounts implies
interpretation – expressing, indicating or recognizing meaning – but, more than that, it alludes to
the embodied practices through which persons singly and together, retrospectively and
prospectively, produce account-able states of affairs. According to this view, reflexivity is
ubiquitous and unremarkable”
62
Tiago Correia
Ora, a forma que se encontra para questionar esta impregnação automática dos
acontecimentos profissionais em toda a existência social opera-se por intermédio do
conceito de reflexividade, isto é, considerando os modos distintivos intrínsecos aos agentes
sociais e que se traduz numa leitura da pertença profissional simultaneamente estruturadora
e estruturada pela agência reflexiva.
O autor define uma forma específica de identidade – que lhe chama de reflexiva –
como uma apropriação de um Eu em respeito à pertença a grupos locais e às respectivas
manifestações culturais, bem como a sistemas de regras que condicionam e delimitam o
desempenho dos papéis sociais. Na realidade, as construções narrativas não podem ignorar
os entendimentos (biográficos) que os indivíduos apresentam de si ao longo da sua
experiência de vida (incluindo obviamente as trajectórias sociais). É neste sentido que
Dubar (Ibid.: 147) inclui o conceito de alternation desenvolvido por Berger e Luckmann,
49
Tradução livre do original em francês. Em Portugal, Tavares (2007) apresenta um importante
contributo de conceptualização das identidades profissionais nas profissões de saúde. Na esteira
dos autores referidos, Tavares contribui com um modelo explicativo que se mostra sensível quanto
à heterogeneidade indissociável à construção individual das identidades. As suas principais
conclusões situam-se ao nível da influência escolar e, posteriormente, dos contextos de trabalho, na
produção de referenciais identitários dos técnicos de cardiopneumologia, que se define em três
níveis inter-relacionados: a identificação com o campo da prestação de assistência centrado na
valorização em torno do doente, a identificação com as tecnologias da saúde em sentido lato e, por
último, a identificação com os grupos mais específicos de trabalho.
50
Relembrando a opção pela designação de objectividades individuais, procura-se escudar a
subjectividade do estatuto desestruturado ou impreciso que facilmente lhe é atribuído. A
objectividade é individual porque se constrói através da absorção de elementos parciais da
realidade social externa. A verdade para cada indivíduo depende do que ele filtrou da realidade e
dos processos intra-individuais que dão sentido a essas informações.
51
Pense-se no modo como Goffman (1974b, 1993) discute a noção de contextos.
63
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
64
Tiago Correia
estruturas que os envolvem e os socializam, mas as suas acções – como de qualquer outro
agente – é o resultado do modo como individualmente objectivam a realidade em seu
redor. Um líder não é igual a outro e as medidas políticas devem problematizar essa
individualidade.
Em terceiro lugar, mesmo que não esteja em causa a definição institucional das
jurisdições profissionais, a partir do momento em que se considera que são
individualmente apropriadas pelos profissionais nas suas relações quotidianas, não se pode
ignorar que passam a estar dependentes da acção individual reflexiva. Veja-se o seguinte
exemplo onde se concretiza pela primeira vez a reflexividade na análise das relações
profissionais. De acordo com a configuração das jurisdições profissionais nos hospitais
portugueses, o médico nomeado como director de serviço tem capacidade para poder
decidir aspectos tão estruturais como a especialização do serviço, as regras do seu
funcionamento ou a definição das equipas médicas.53 São decisões circunscritas ao “seu”
52
Este nível analítico centra-se, em larga medida, na discussão de Turner (2001) sobre os papéis
nas organizações. Salienta o peso dos contextos de interacção onde se estruturam papéis de
dominação e de status e onde se legitimam actores responsáveis por essa definição (role definers).
53
Cf. Decreto-lei n.º 188/2003 que regulamenta a Lei da Gestão Hospitalar (Lei n.º27/2202)
actualmente em vigor. Deste ponto de vista, a delimitação que se faz a Portugal decorre
precisamente do princípio que as relações organizacionais, mesmo as formais, não podem ser
simplesmente generalizadas. É a consequência de serem sistemas humanos e não tecnocratas
conforme Crozier e Friedberg (1977) afirmam. Por isso, sem um conhecimento sobre os contornos
das estruturas profissionais e das relações permitidas noutros contextos não se pode avançar com
raciocínios indutivos menos cautelosos.
65
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Administração de soro ou colheita de sangue para fazer análises são o caso típico
daquilo que se entende por trabalho médico delegado, de natureza pouco diferenciada e
predominantemente executória. Em todo o caso, alturas em que essa enfermeira-chefe
estava presente passavam os médicos, tanto os mais velhos como os mais novos – por
delegação dos primeiros – a realizar essa tarefa. O argumento apresentado pela “chefe”
(expressão habitualmente usada pela generalidade dos profissionais para se referirem à
figura de enfermeiro-chefe) é que “isso não é trabalho para os enfermeiros. Se os Srs.
Doutores o quiserem, que façam eles. Isso é trabalhar para os Srs. Doutores!” (notas do
diário de campo).
54
“Meu” ou “seu” serviço são atribuições de posse habitualmente encontradas nos discursos dos
directores de serviço, como na generalidade dos profissionais no contexto hospitalar, sendo a
excepção os gestores hospitalares (notas do diário de campo). Não esquecer que conforme Decreto-
Lei n.º188/2003 é o CA que nomeia esta figura entre os médicos mais graduados na carreira médica
(“chefe de serviço”). Deste ponto de vista, e retomando a teorização de Goss (1963), dado que está
em presença a autoridade racional-legal e a concorrência com a autoridade carismática e formal dos
directores de serviço percebe-se esta não atribuição do serviço aos directores como a sua
propriedade pode ser tomada como indicativa de uma forma de legitimação que os gestores tentar
assegurar num contexto estruturado pela medicina. Para os gestores trata-se de um cargo da sua
responsabilidade directa por tempo definido, contrariamente à noção mais enraizada e habitual,
mesmo com as mudanças jurídicas recentes, de perpetuação das funções dos directores de serviço.
66
Tiago Correia
Dado que esta situação não se verificou com todos os enfermeiros-chefe, além de
que dependia dos médicos em causa e da relação que com eles mantinha, percebe-se que
em causa não está necessariamente o lugar ocupado na estrutura profissional, mas o modo
como os profissionais desempenham reflexivamente os seus papéis profissionais em
contextos de interacção. Até porque noutros serviços são efectivamente os enfermeiros que
efectuam estas tarefas sem que os respectivos enfermeiros-chefe se oponham. O caso
descrito demonstra a necessidade de explorar sociologicamente não apenas as estruturas
sociais externas, mas também o modo como estas são individualmente internalizadas por
cada agente. Afinal, não existem modos de agir unívocos e lineares.
67
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
(II) Por outro lado, importa não fechar este entendimento a processos mais específicos aos
contextos de trabalho, percebendo a base onde se constrói a imagem projectada da
profissão;
(III) O modo como a alteração dos contextos de actuação dos profissionais interfere na
condução da acção rotinizada: desfasamentos e correspondências entre experiências
passadas e expectativas futuras;
(V) Por conseguinte, dá-se visibilidade aos entendimentos que os profissionais manifestam
de si, dos outros e das estruturas sociais que os envolvem, neste caso em concreto
sobre as mudanças no sector da saúde e a presença de gestores dotados de
competências alargadas.
68
Tiago Correia
69
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
sua regularidade, mas também nos seus desvios e aparentes contradições. Afirmar que a
reflexividade entrou na actual agenda sociológica significa o retornar da análise
sociológica ao estudo do indivíduo que vive em sociedade (Hamel, 2007).55
55
Noutras linhas de investigação no campo da saúde estas formulações acabam por ter maior
desenvolvimento do que no caso específico das profissões. Por exemplo, os estudos sobre as
racionalidades leigas convocam o tema da reflexividade recorrendo à perspectiva de Giddens (veja-
se em Portugal o caso de Lopes, 2001b, 2007). Noutro domínio da sociologia, Casanova (2004)
apresenta-se como um dos poucos autores portugueses a ter analisado a reflexividade social,
suportando-se fundamentalmente nos contributos de Lash e de Bourdieu.
56
A perspectiva de Archer apresenta-se como alternativa àquilo que a autora designa por
confluência (entre a estrutura e a acção) das propostas de Giddens e Beck, por um lado, e de
Bourdieu, por outro. Como explicitamente se pode constatar, “while theorists of „reflexive
modernity‟ assign an excessive freedom of subjective identity formation to social subjects today,
the usage of the concept of „habitus‟ under such changed circumstances, assumes an exaggerated
continuity in the socialization of personal identities.” (Archer, 2007: 48)
70
Tiago Correia
57
Cf. Pires (2007). Numa passagem do trabalho de Robbins (2007) sobre a evolução do
pensamento de Bourdieu, encontra-se uma possível justificação sobre o motivo de Bourdieu evitar
envolver-se em respostas a autores seus contemporâneos. Na esteira das limitações apontadas à
etnometodologia, Bourdieu considera que a análise da realidade social envolve processos de
interpretação e subjectivação mesmo por parte dos cientistas no exercício pleno da sua actividade
científica. Neste sentido, a crítica directa a outros autores pressupõe que seja possível elevar-se a
um estatuto de verdade determinados pressupostos ou premissas teóricas: “Bourdieu genuinely
could not understand how someone could spend time in writing a book on someone in order to
expose the shortcomings of that person‟s endeavour. That is to say that Bourdieu assumed that any
engagement with the work of another author was a form of interpersonal engagement, involving an
elective affinity. Responses to texts had to be the responses of persons to persons, and he had little
interest in „critiquing‟ the positions of others by reference to supposed meta-criteria of validity.”
(p. 88)
71
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
58
Apesar da devida distância teórica e de objecto, considera-se útil para o pensamento que aqui se
procura desenvolver alguns argumentos defendidos por Dores (2005). Tecendo uma leitura crítica
acerca dos contributos de António Damásio, naquilo que se interpreta como uma exploração
sociológica sobre a epistemologia, a pertinência da sua discussão para o entendimento que se tem
neste trabalho sobre a reflexividade prende-se com as dúvidas que as abordagens excessivamente
sociocentradas despertam. Nomeadamente, por ignorarem os efeitos introduzidos por “mecanismos
neurobiológicos e também sociais das emoções, dos sentimentos e dos estados de espírito” nos
comportamentos dos indivíduos (Dores, Ibid.: 133). Se por um lado, os mais elementares
compêndios de sociologia instruem as pessoas pouco familiarizadas com o pensamento sociológico
para as implicações decorrentes da divisão cartesiana entre corpo e mente operada pela concepção
biomédica dominante nas sociedades ocidentais actuais (e.g. Giddens, 1997 ao nível da sociologia
da saúde), em Dores lê-se que, por outro lado, a sociologia não pode operar sem o reconhecimento
que o corpo e a mente respeitam uma mesma unidade: “Se a teoria social concebesse cada
indivíduo como um ser que nasce, cresce, se desenvolve e vive diferentes condições de vida e,
portanto, exprime as suas competências inatas e aprendidas de acordo com as suas decisões
próprias e as condições do meio (em vez de o conceber de forma estereotipada como ser adulto,
branco, activo, de boa saúde, com rendimentos satisfatórios e masculino), nesse caso os indivíduos
complexos que somos, também morríamos.” (p. 133)
59
Existem outros tipos de ecologias reivindicadas no pensamento sobre as ciências sociais. Por
exemplo, com base na vertente epistemológica da teoria crítica alemã, Boaventura de Sousa Santos
(1999, 2002) discute sobre uma ciência pós-moderna. Nesse caso, a ecologia não é apenas entre
paradigmas científicos, mas também entre o conhecimento científico e o conhecimento quotidiano.
Trata-se da passagem de um monoculturalismo para um multiculturalismo. Entre as diversas
implicações, autores como Pinto (1984, 1985) argumentam sobre a refutação dos obstáculos
epistemológicos presentes no racionalismo crítico.
72
Tiago Correia
porque teria que se controlar essa relação entre aprendizagem e emoção: as vivências
sociais configuram as emoções, ou as emoções, biologicamente pré-existentes no cérebro
humano, podem condicionar as vivências sociais? Entre vários contributos esta questão
tem sido discutida (e.g. Elias, 1991; Williams, 2001), não se pretendendo entrar neste
debate. Em todo o caso, tem-se como pressuposto o papel das vivências sociais para a
explicação da reflexividade, deixando os outros motivos de ordem biológica e psicológica
em aberto. Ainda assim, este pressuposto é mantido num certo grau de contingencialidade,
valorizando a influência exercida por diferentes contextos de interacção, a existência de
interesses individuais abertos e variáveis, além de outras determinantes de natureza mais
estrutural. Como se irá discutir neste ponto, trazer a epistemologia de Weber irá permitir
perceber como os sentimentos são elementos constituintes dos interesses individuais,
dependentes dos interlocutores e dos contextos de interacção e, por isso, não passíveis de
serem activados de forma inconsciente e uniforme, como os mecanismos de socialização
pressupõem.
73
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
ou se, caso contrário, a alteração das condições estruturais impulsionada pela crescente
especialização flexível dos modelos produtivos conduz à progressiva desvalorização de
uma reflexividade comunitária por uma livre e conhecedora agência (e.g. Lash, 2000). O
objectivo deste trabalho centra-se na análise dos processos cognitivos da reflexividade
individual, portanto, de conhecimento que o indivíduo tem sobre si mesmo e sobre os
restantes indivíduos, isto é, uma auto-reflexividade que respeita a reflexão da agência sobre
si (Lash, 2000; Lynch, 2000).60
Ainda que não se pretenda entrar no debate sobre a reflexividade estrutural, importa
apenas considerar o argumento de Lash (2003) que, contrariamente à linearidade sistémica
de Parsons e à linearidade da agência de Habermas, toma a reflexividade segundo um
princípio de não linearidade decorrente da configuração das instituições modernas. Neste
sentido, a reflexividade, enquanto opção de acção crítica decorrente da atribuição
individual de significados, está diferentemente possibilitada em função de formas culturais
específicas (Alexander, 1996). Também Elias (1993) argumenta que o carácter específico
permitido aos indivíduos não é o resultado de uma auto-criação, mas o produto de
possibilidades estruturalmente permitidas. Nesse sentido, atribui ao processo civilizacional
a explicação para a transferência de elementos de auto-consciência e de interesses para
esferas interiores, individuais e aparentemente autonomizadas.
60
Giddens (1990: 26) em As Consequências da Modernidade refere os termos de análise da
reflexividade no sentido particular que interessa desenvolver neste trabalho: “Há um sentido
fundamental em que a reflexividade é uma característica que define toda a acção humana. Todos
os seres humanos se mantêm em contacto com os fundamentos daquilo que fazem como elemento
essencial de o fazerem. Noutro lugar, designei este processo por controlo reflexivo da acção,
usando esta frase para chamar a atenção para o carácter crónico dos processos envolvidos. A
acção humana não incorpora séries de interacções e de razões agregadas, mas sim um controlo
consistente – e, como sobretudo Erving Goffman nos mostrou, um controlo que nunca afrouxa – do
comportamento e dos seus contextos. Este não é o sentido de reflexividade que está
especificamente relacionado com a modernidade, embora seja a base necessária para ela.”
74
Tiago Correia
75
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Como é salientado por autores como Turner (1988) ou Collins (1988), na vivência
quotidiana os indivíduos têm a capacidade de interpretar o que os seus actos foram em
consequência de actos anteriores e que irão desencadear actos futuros, em si e noutros
indivíduos. Envolve a capacidade intrínseca à cognição humana para os indivíduos se
situarem e situarem os outros na interacção, embora se deva considerar que parte das
acções quotidianas não se reveste de uma consciência reflexiva. Ou seja, o indivíduo
quando actua nem sempre tem consciência que o está a fazer, podendo não ter igualmente
uma consciência de si (self) nem dos outros a quem se destina a sua acção.62
Neste sentido, apenas se pode falar de acções reflexivas quando essas acções são
desencadeadas num estado de consciência, embora a consciência da acção não pressuponha
necessariamente uma reflexividade, enquanto propriedade da cognição humana. Dito de
outra forma, o facto de os indivíduos terem consciência da sua acção (“sei que faço”) não
significa que tenham que saber reconhecer os seus motivos (“porque o faço”), constituindo
esse o domínio da reflexividade. Contudo, a capacidade de identificação dos motivos da
acção apenas ocorre em estados conscientes, portanto em momentos em que os indivíduos
61
Relativamente aos projectos, encontra-se uma similitude com a noção de interesses referida por
Archer (1995).
62
Convocando sinteticamente um debate antigo, por self, entende-se um processo contínuo de auto-
desenvolvimento dos indivíduos em função de aprendizagens de interacções. Representa um
processo de interiorização de comportamentos e expectativas em relação ao que deve ser feito e as
consequências daí decorrentes (vd. Mead, 1934).
76
Tiago Correia
77
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Em todo o caso, também não parece que a forma como Giddens elabora essa ideia
seja a mais adequada para fugir às dificuldades semânticas que esta discussão envolve.
Deste modo, enquanto Giddens considera que a intencionalidade é “[o] traço rotineiro da
conduta humana”, parece mais adequado atribuir essa componente à não consciência da
acção, dado ser esse o mecanismo de maior regularidade no uso dos papéis sociais. Acções
que não envolvem o reconhecimento sobre o “saber”, são reproduzidas automaticamente,
não havendo um “querer” consciente, mas sim um “querer” cristalizado no interior não
consciente do indivíduo. Por outro lado, aquilo que Giddens entende como os “objectivos
conscientemente definidos no decurso das suas actividades” representam o nível de
consciência reflexiva em que os indivíduos sabem identificar “porque fazem” e “para que
fazem”. A este respeito, já Weber (1983: 70) referira que:
A acção real acontece, na maior parte dos casos, com obscura semiconsciência, ou plena
inconsciência, do sentido mencionado. O agente sente mais, de um modo indeterminado, do
que sabe ou tem ideia clara; actua, na maior parte dos casos, por instinto ou hábito.” (…)
Uma acção, efectivamente, com sentido, quer dizer, clara e com absoluta consciência é, na
realidade, um caso limite. Toda a consideração histórica ou sociológica tem que ter em conta
este facto nas suas análises da realidade.
63
É de salientar o papel que Silva e Pinto (2001) atribuem à epistemologia genética Piaget,
sobretudo por permitir um entendimento da inteligência enquanto processo de conhecimento que
desfaz, por definitivo, a desagregação redutora de sujeitos e realidade.
78
Tiago Correia
diacrónica da intencionalidade (o que hoje não é intencional pode já ter sido). Importa,
contudo, considerar que os processos incluídos na reprodução automática não consciente
dos comportamentos não respeitam apenas aprendizagens sociais. A mero título de
exemplo, pense-se em reacções biológicas (e.g. respiração). Ora, sendo este um trabalho
sociológico, a opção é situar todo esse tipo de funções biológicas e características psíquicas
num domínio próprio de intencionalidade biológica à margem do quadro de reflexão que se
apresenta.
Traçada esta demarcação, a forma como aqui se discute a estrutura da acção parte
do binómio fundamental consciência/não consciência da acção, sendo por essa via que se
espera compreender a própria noção de reflexividade. Como se verá de seguida, as
clarificações analíticas que têm de ser mobilizadas para controlar o conceito de
reflexividade envolvem aspectos que transcendem o âmbito do objecto empírico em causa
neste trabalho. No entanto, a sua não referência iria prejudicar o entendimento que se
procura sobre os motivos da aparente indeterminação dos comportamentos dos
profissionais em contexto organizacional.
Por outro lado, é de notar que sendo esta discussão útil no plano teórico não se
espera encontrar no espaço empírico formas puras de acção não conscientes e não
64
Esta teorização acaba por isso por se afastar do pensamento de Luhmann sobre a acção
individual como um sistema psíquico autopoiético, procurando na compatibilização dos esquemas
teóricos de diversos autores, entre os quais Giddens e Bourdieu, o entendimento da estrutura da
acção. Por exemplo, segundo Guibentif (2009), Luhmann reitera que tudo o que é ou não
controlado pelo indivíduo deve ser tomado por consciente, o que contradiz o domínio da não
consciência discutida neste trabalho. Ainda assim, será prudente considerar que além de algumas
diferenças teóricas, muitas vezes poderão estar em causa questões de terminologia, o que não
invalida que em alguns momentos se trace um paralelismo com contributos desse autor.
79
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
reflexivas. A simples presença de uma pessoa externa ao contexto de trabalho, assim como
a interacção verbal como aquela que acontece em entrevista ou em conversas informais,
convoca sempre um estado consciente e um consequente processo de filtragem linguística
ou comportamental da parte dos indivíduos observados. Ainda assim, a auto-reflexão
desencadeada para a produção de um discurso do indivíduo sobre si mesmo reveste-se de
grande utilidade sociológica revelando a forma de captar o sentido do vivido, portanto, os
motivos para os comportamentos desencadeados. Mesmo que no capítulo metodológico se
analise com maior pormenor esta questão, importa ter presente o incontornável efeito
mediador do discurso na compreensão da reflexividade humana. Afinal, a
linguagem/comunicação – principal instrumento de ligação entre as estruturas (ou
sistemas) sociais e o indivíduo – ao ser omitida pelas correntes de pensamento sobre as
profissões, tomam-na como uniforme e desprovida de responsabilidade na estruturação da
acção.
80
Tiago Correia
quando interpelados pelo investigador sobre as suas motivações profissionais, toda essa
componente invisível ganha uma expressão dominante na produção discursiva de todos os
médicos. Este valor ganha mais relevância nos discursos quando interpelação é feita por
um indivíduo não médico e externo ao serviço. Por exemplo, em entrevista a um cirurgião
foi empregue propositadamente a palavra “corpo” em vez de “pessoa” para perceber a sua
reacção:
[habitualmente, na vossa prática quotidiana, sentem que cada corpo que operam é uma nova
oportunidade que eventualmente podem dar?] Nós não chamamos corpo…cada indivíduo,
cada homem… (AA6, Cirurgião)
81
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
82
Tiago Correia
domínios raramente são percepcionados porque se espera que à partida isso não seja posto
em causa nas mais variadas interacções.
83
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
– “é suposto ser assim” – sem que o indivíduo tenha pensado realmente sobre isso. Usando
um outro exemplo mais direccionado para a discussão empírica neste trabalho, imagine-se
a situação em que um médico diz “não são os gestores que sabem as necessidades dos
doentes”. Nestes casos, tanto há uma espontaneidade nos impulsos discursivos (algo
reproduzido instantaneamente através do discurso após um qualquer estímulo), como
discursos que, não sendo necessariamente espontâneos, o médico não sabe identificar o
motivo da acção ou da opinião por estar intrinsecamente preso às suas influências sociais.
Neste nível, a legitimação das acções respeita uma ordem interna que se reproduz,
como uma natureza interior que impele o indivíduo a agir de determinado modo,
independentemente da sua consciência. Neste tipo de situações há uma consciência da
acção a par de um nível de reflexividade (autoconsciência), embora não seja procurada a
possibilidade de desvio a essa forma de comportamento. Note-se que esta delimitação entre
acções de consciência espontânea (B1) e acções de reflexão espontânea (B2) é sobretudo
analítica. Visa salientar que a reprodução automática de comportamentos pode envolver
uma mera consciência com a acção, como também uma consciência do self em relação a
isso.
84
Tiago Correia
Deste modo, retoma-se a ideia prévia de que existe uma relação entre a consciência
da acção e a reflexividade, ainda que estas não se sobreponham linearmente. Esta relação
estabelece-se em dois sentidos. Em primeiro lugar, acções não conscientes estão
desprovidas de reflexividade, ou seja, de autoconsciência, consciência dos outros, dos
contextos sociais e de interesses. Em segundo lugar, acções conscientes e reflexivas podem
tornar-se em acções automaticamente reproduzidas. Esta reprodução tende a situar-se na
consciência espontânea (B1) e na reflexão espontânea (B2), porque o domínio do não
consciente / não reflexivo (A) remete para aspectos mais profundos de influências sociais
e, portanto, mais distantes da consciência reflexiva. Quer isto dizer que acções
anteriormente reflexivas, caso se rotinizem – dado o interesse ou falta de capacidade
(poder) para o indivíduo mudar –, podem constituir-se como estruturas de acção que
reproduzem automaticamente o passado. A intencionalidade associada a este tipo de
processo deixa a instrumentalidade e passa para a espontaneidade que, tanto pode ser
consciente (B1), como reflexiva (B2).
85
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
esses dois processos. A cristalização, por um lado, representa a presença mais profunda de
influências sociais adquiridas em fases iniciais de socialização e sem qualquer
possibilidade de consciência quanto a essas influências. A rotinização, por outro, traduz
acções que antes de serem não reflexivas passaram por avaliações individuais sobre os
objectivos e os resultados pretendidos. Aliás, dado que esse processo envolve decisões, o
indivíduo tem a noção que pode haver uma melhor forma para alcançar determinados
objectivos. Retomando os exemplos dados anteriormente, o facto de um médico agir
instantaneamente para salvar vidas decorre de aprendizagens que antes de serem não
reflexivas, e por isso, reproduzidas automaticamente, fizeram parte do domínio consciente
e reflexivo. A consciência inicial dos objectivos pode advir do medo de sanções, no caso
de incumprimento das regras formal ou informalmente estabelecidas, como por interesses
ou expectativas futuras. A questão fundamental é que essa consciência transita para um
domínio mais intrínseco do indivíduo, reproduzindo-se por essa via. Note-se que as
sanções respeitam não só mecanismos mais directos de controlo (por exemplo, chefias
hierárquicas), mas também formas mais generalizáveis e disseminadas de controlo social
(o caso em que um médico se recusa a ajudar alguém num espaço público está também
sujeito a julgamentos morais).
86
Tiago Correia
aquilo que neste trabalho se assume como reflexividade, a questão é que ter percepção de
si pressupõe uma divisão consciente entre o “eu” e os “outros” e, no fundo, a origem desse
processo é a mesma: uma relação entre indivíduo/sociedade que em momentos se afigura
como dialéctica.65
Como se percebe, não se partilha uma noção dos interesses que os reduz a uma
ordem calculista e/ou egoísta, em que a motivação individual aparece presa à maximização
de benefícios por via de comportamentos eficientes, isto é, obter mais resultados com
menos recursos/esforços empregues. Por interesses entende-se, tal como Boudon (2003),
em sentido lato a existência de objectivos que se concretizam de forma a atingir
determinados propósitos, independentemente da sua natureza. O interesse pode ser
precisamente o inverso da eficiência entre meios e fins, ou seja, não querer atingir
resultados, mesmo que se tenham os recursos à disposição para o fazer, sem que o motivo
seja necessariamente instrumental: “não faço agora porque se o fizer depois terei mais
65
Que em Luhmann se encontra referenciado como o “paradoxo da unidade da diferença”: “a
diferença [entre o indivíduo e os outros] é percepcionada porque se distinguiu o percepcionado
(hetero-referência) da qualificação (auto-referência) e que estes dois elementos foram
relacionados numa operação de comparação” (Guibentif, 2009: 6).
87
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
66
Nesta formulação os autores baseiam-se em contributos de Weber, Schutz, Berger e Luckmann,
Goffman ou Sartre.
88
Tiago Correia
entende a racionalidade. Neste sentido, o autor apresenta dois tipos distintos de acções: o
“modo de conduta simplesmente reactivo”, constituído por impulsos decorrentes de
emoções, como por exemplo, o medo, a cólera, a ambição, a inveja, o ciúme, ou o amor e a
“acção com sentido” (p. 49). Isto traduz-se numa clara desagregação entre emoções e
sentido, considerando que a racionalidade se orienta para um único fim. Sendo um fim
supostamente desprovido de sentimentos, comprova-se aquilo que se argumentou quanto
ao significado restrito que Weber confere à racionalidade, reduzindo-a ao significado
válido no espírito do capitalismo.67 Esta acaba por se revelar como uma contradição
elementar na proposta de Weber, na medida em que não obstante considerar a
possibilidade de co-existência de variações e contradições dos comportamentos, reduz a
racionalidade a um sentido da acção característico de determinados contextos:
Além disso, Weber inclui de forma predominantemente, para não dizer exclusiva,
motivos de ordem psíquica e sentimental na conduta reactiva, ou seja, as emoções são
remetidas para o domínio mais imprevisível da acção humana, desconsiderando o papel de
outros vectores nessas reacções como as aprendizagens ou as influências sociais que se
cristalizam ou rotinizam nos comportamentos não conscientes accionados
instantaneamente.68
67
Aponta-se o trabalho de Williams (2001) um importante contributo de reflexão sobre o papel das
emoções no espaço da racionalidade.
68
Apesar da vertente cultural em que se baseia a construção social das emoções (e.g. Hochschild,
1983 apud. Peterson, 2006), este é um debate ainda por resolver no âmbito da sociologia das
emoções. Por exemplo, Greenwood (1994, apud. Williams, 2001: 49) parte de uma perspectiva
realista, considerando a existência intrínseca das emoções e, neste sentido, independentemente das
designações sociais que adquirem. Não põe em causa a construção discursiva na atribuição de
significado às emoções, mas considera que a sua existência natural convoca atributos universais.
Para uma leitura mais aprofundada sobre esta questão, remete-se para a leitura de Williams (2001).
89
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
caso o indivíduo reconheça ser esse o motivo que orienta a sua acção. Isto significa que se
deve despir a racionalidade do seu significado estritamente eficiente e instrumental para
incluir toda e qualquer acção conscientemente orientada por um sentido. Torna-se racional
– e neste sentido reflexiva – qualquer acção que o indivíduo sabe o objectivo por que age,
independentemente de poder não ser o comportamento socialmente esperado. Afinal, em
consonância com o afirmado anteriormente, concebe-se a dupla existência das
propriedades estruturais: interna e externa aos indivíduos.
69
Tem de ser considerado que no momento em que se toma a decisão de agir, pode-se não ter
consciência de todas as implicações daí decorrentes (aquilo que em Giddens, 1984 é tido por
efeitos não esperados da acção), o que justifica um posterior arrependimento. Arrepender, significa
que após a acção e o conhecimento efectivo das suas consequências, chega-se à conclusão que os
prejuízos não superam os benefícios.
90
Tiago Correia
70
Não sendo o intuito de comparar os projectos de cada um desses autores clássicos para a
sociologia, importa considerar que, decorrente do próprio momento histórico de afirmação desta
ciência, mas também daquilo que era o capital científico acumulado disponível, a análise
sociológica tendia para uma explicação das mudanças assente nas estruturas sociais (e.g.
solidariedade mecânica e orgânica, feudalismo e capitalismo – e comunismo –, sociedade
tradicional e sociedade moderna). Concretamente em relação a Weber, muito pertinentemente
Schnapper (2000), afirmara que “[a pesquisa] tem por sentido e por eficácia inscrever a
compreensão das condutas dos indivíduos numa análise mais ampla e mais histórica das
sociedades, e ajudar a compreender a singularidade das sociedades históricas, em particular a
nossa, objectivo principal da ambição sociológica.”
91
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Por outro lado, existem acções que, obviamente, são orientadas consciente e
reflexivamente para a obtenção de determinados fins mediante o emprego de certos meios.
A interrogação que se coloca neste ponto é em que medida este tipo de acções estão
desprovidas de sentimentos. Isto significa que não chega colocar aspectos de ordem
emocional e a racionalidade como opostos na menor ou maior consciência da acção. A
produção de sentimentos não tem que representar uma ausência de racionalidade, dado que
é também uma fonte de atribuição de sentido sobre a realidade. Afinal, será a razão assim
tão contraditória ou independente dos desígnios do coração?
92
Tiago Correia
Por isso, apresenta-se mais adequada a ideia que os interesses incluem dimensões,
entre as quais, as emoções. Emoções, como aquelas que Weber enumera (e.g. medo,
cólera, ambição, inveja, ciúme, ou amor), são intrínsecas às interacções sociais,
envolvendo a própria definição de fins (interesses). Além disso, a base sentimental que
suporta as emoções em interacção e a sua mobilização nas acções são também resultado de
aprendizagens sociais.71 Tome-se em consideração, por exemplo, a ideia de que as
mulheres tendem a ser mais emotivas que os homens. Este princípio de base cultural e
ideológica é um suporte para a condução de comportamentos, interiorizando que a
presença/ausência de determinados afectos irá facilitar/dificultar a concretização de
determinados interesses consoante o tipo de comportamentos que os indivíduos
manifestem.
71
Este argumento remete para o trabalho não editado de Turner e Molnar (1993, apud. Turner,
1994).
93
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
existência das estruturas sociais, simultaneamente dentro e fora dos indivíduos, e não
apenas considerar que os comportamentos são um produto linear de dinâmicas sociais que
inegavelmente padronizam uma sociedade.
Importa realçar que esta delimitação pela maior ou menor estabilidade não anula o
facto de todas elas serem produtos sociais. Isto é, são as aprendizagens sociais
(socialização em sentido lato) as principais responsáveis pela configuração da(s)
orientação(ões) predominante(s) na condução da acção, podendo haver a possibilidade de
orientações pelos afectos ou pelos fins se apresentarem tão estáveis como as orientações
pela tradição ou pelos valores. Consequentemente, cada uma destas orientações tende a ser
accionada de forma menos consciente quanto maior for o seu enraizamento por processos
de rotinização ou de cristalização.
72
Faz-se uma chamada de atenção para a designação do tipo de acção afectiva. Embora na sua
formulação original, affection remeta de forma mais linear para o termo sentimento (“a socially
constructed pattern of sensations, expressive gestures, and cultural meanings organized around a
relationship to social object, usualy another person”, cf. Gordon, 1981: 566), neste trabalho
explora-se apenas a dimensão afectiva dos sentimentos. Como Strauss (et al, 1985: 132 – 140)
fazem notar, o sentimento no trabalho em saúde pode-se fazer sentir em várias dimensões, tais
como: o trabalho em interacção e as regras morais, o trabalho de confiança, a consciência do
contexto de trabalho e a rectificação do trabalho. Neste sentido, não são estas as dimensões que se
exploram neste trabalho, mas o modo mais restrito como os sentimentos de afectividade (partilha,
proximidade, afastamento, etc.) existente na relação entre os profissionais condicionam as
interacções sociais. Por afectos entende-se o modo como os indivíduos constroem e mantêm as
ligações sentimentais com os restantes indivíduos, portanto, um produto específico da capacidade
de sentir.
94
Tiago Correia
Mais estável
Menos estável
Vendo o lado do vector mais estável, a orientação pela tradição entende-se todo o
tipo de influências sociais passadas que são reproduzidas automaticamente por ter sido
sempre assim. Quanto à orientação pelos valores, pode estar em causa um conjunto
alargado de orientações determinantes para a condução da acção. No caso empírico em
discussão inclui-se valores profissionais, de ligação ao SNS e ao serviço público ou aos
doentes. Tal como Weber propõe, pode-se incluir valores éticos, estéticos ou religiosos,
mas contrariamente à sua ideia, não se considera que tenham sempre que ser conduzidos de
forma consciente no curso da acção (e.g. “não sou eu quem vai desrespeitar o meu superior
hierárquico”). Em termos do vector menos estável, portanto de natureza mais
contingencial, foi anteriormente discutido em que medida se considera que os afectos,
enquanto parte constituinte de sentimentos, são mais do que meras respostas reactivas.
Respeitam a ligação sentimental e a entrega emocional que os indivíduos estabelecem com
quem se relacionam ou mesmo com instituições que os rodeiam. O que importa reter deste
vector é que se torna preponderante na compreensão sobre as variações das interacções
sociais conforme os interlocutores presentes. Por último, a orientação pelos fins, respeita a
ponderação entre meios e fins, portanto, a acepção instrumental que normalmente se vê
associada aos interesses.
95
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Quadro 2.1. – Relação entre orientação dos interesses e estrutura cognitiva da acção
Reprodução automática/
Valores Reprodução automática
Mudança ou reprodução reflexiva
Um aspecto prévio que deve ser tido em conta diz respeito ao facto de não ser
possível procurar no espaço empírico comportamentos puros quanto à sua orientação
fundamental. Aliás, os cruzamentos e influências entre tradições, valores, fins e afectos,
tanto se podem identificar na rotinização para a não consciência, como para o desencadear
de acções de natureza reflexiva. Portanto, uma qualquer acção pode ter na sua base um dos
quatro vectores que constituem os interesses, como combinações variáveis. Ilustrando com
um exemplo aproximado aos processos empíricos em análise neste trabalho, o facto de um
médico agir em conformidade com as regras do serviço pode significar uma reprodução
automática, logo, não consciente/não reflexiva, por intermédio de um dos três vectores dos
interesses (tradição, valores e afectos), como também pode traduzir um interesse
consciente e reflexivo por intermédio de valores (consciência da necessidade de respeito
pela hierarquia profissional), dos fins (pensar nas contrapartidas de cumprir as regras) ou
dos afectos (ter uma relação de natureza sentimental com quem define as regras) em agir
desse modo esperado.
Como se observa na esquematização, os diferentes vectores dos interesses
conduzem a processos de comportamento não necessariamente comuns entre si. Os afectos
existem, quer no domínio consciente e reflexivo, em que o indivíduo sabe justificar para si
os motivos das suas acções, quer numa existência rotinizada ou cristalizada e, por isso, não
consciente. Afectos podem estar latentes nas interacções sociais, como mudar em relação à
mesma pessoa em diferentes momentos ou em função do interlocutor em presença. Os fins,
por seu lado, assumem apenas uma natureza consciente e reflexiva, na medida em que a
96
Tiago Correia
rotinização para o domínio de não consciência não reflexiva não é compatível com uma
orientação dos comportamentos desencadeados por um motivo que é intrinsecamente
consciente: saber que se faz e porque se faz, podendo reproduzir ou mudar reflexivamente
o curso da acção. Quanto à tradição e aos valores, ambos envolvem reproduções
automáticas, mesmo no nível de consciência reflexiva. De algum modo pode parecer
contraditório afirmar a existência de uma reprodução automática no nível da reflexividade,
na medida em que anteriormente foi argumentado que este domínio pressupõe um
conhecimento do self sobre si mesmo. Esta questão é, na verdade, mais fácil de justificar
do que aparenta, acabando por legitimar o que se verá mais adiante sobre o entendimento
de Bourdieu (2001, 2002) quanto à reflexividade. Segundo o autor, a reflexividade não
existe enquanto propriedade desagregada dos processos de habitus, ou seja, aquilo que o
indivíduo pensa sobre si e sobre os outros constitui um reflexo das aprendizagens sociais.
Neste sentido, é correcto afirmar que a consciência é compatível com uma reprodução
automática, contudo apenas no que diz respeito a orientações centradas naquilo que sempre
foi ou naquilo que é normal ser. Haverá, portanto, uma componente do raciocínio
consciente que acaba por responder de forma relativamente linear às influências sociais
marcantes, reproduzindo-as. No entanto, e como se vê, esta é apenas uma das
possibilidades de entender os comportamentos reflexivos, em que as restantes dão
evidência à acção, não apenas enquanto produto social, mas como produtor do social. Em
relação aos valores, concebe-se, em todo o caso, a possibilidade de mudança ou reprodução
reflexiva no domínio da consciência reflexiva. Quer isto dizer que os valores, tanto
respeitam princípios de ordem moral mais estáveis e impregnados nos indivíduos, como se
contempla a possibilidade de haver uma escolha reflexiva sobre os sistemas morais que os
podem enquadrar. Aliás, questão que remete para a diversificação dos papéis sociais
desempenhados em diferentes contextos.
Em suma, o ganho conceptual que esta construção analítica permite baseia-se no
facto de compreender os diferentes motivos que, de forma mais ou menos articulada entre
si, conduzem a uma reprodução ou mudança na acção. Tal como Weber (1983: 84) refere,
existe uma “representação da ordem legítima”, que permite perceber o modo como cada
indivíduo valoriza diferentes sentidos orientadores para a sua acção. Por conseguinte, a
reprodução tanto pode advir de práticas rotinizadas ou cristalizadas, como pode significar o
interesse, ou falta dele (estrategicamente falando) para agir, como também medo ou
insegurança. Do mesmo modo, a mudança, pode advir de motivos que vão desde os
afectos, como ao interesse em beneficiar com essa mudança. Afinal, como Lovell (2003)
97
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
98
Tiago Correia
Tanto o não interesse, como o interesse em não fazer podem ser desencadeados pela
orientação da acção valorizada pela continuidade (tradição e/ou valores) como por afectos
ou mesmo fins. As situações de mudança representam uma relação dialéctica entre os
interesses pessoais (por qualquer um dos quatro vectores) e as regras presentes numa dada
interacção social – contexto (cf. Caria 2002) –, ou seja, uma não adequação do sistema aos
interesses dos agentes que negoceiam esse jogo.
Deste modo, e para concluir, entende-se que o desempenho dos papéis profissionais
respeita, em primeiro lugar, a existência de uma ordem externa que, através de
socializações educacionais e posteriormente profissionais, se vão tornando também ordens
individualmente interiorizadas. Uma menor determinação dos comportamentos individuais
traduz-se em situações em que os recursos de poder detidos pelos agentes permitem um
espaço de acção mais alargado em função de um daqueles quatro vectores de orientação da
acção. Resultam de uma situação dialéctica entre as regras específicas presentes na
interacção e o tipo de orientação da acção mobilizado, consciente ou inconscientemente,
pelos agentes. Por outro lado, uma maior determinação dos comportamentos individuais
traduz-se, na não posse dos recursos de poder necessários para introduzir essas mudanças.
Há, ainda, que considerar o não interesse em mudar, por motivos ético-morais ou
estratégicos. Estes motivos são de natureza alargada, incluindo dimensões mais amplas da
vida social (e.g. respeito pela vida humana), como dimensões específicas à profissão (e.g.
dever de tratar do doente) e ainda dimensões individuais construídas com base nas
trajectórias de vida e nos interesses – instrumentalmente falando – (e.g. não se deve
contrariar as ordens do director de serviço). A maior determinação dos comportamentos
pode ainda ficar a dever-se a influências cristalizadas ou rotinizadas (cf. Figura 2.2.) que se
reproduzem automaticamente, ou seja, de forma inconsciente/não reflexiva.
Como foi já referido, pistas empíricas apontaram para a necessidade de descer o enfoque
analítico da profissão para o centrar nos profissionais. Este pressuposto obriga a que se
rejeite, à partida, a oposição entre médicos e gestores apenas por serem médicos e gestores.
Essa é uma ideia reificada dos grupos profissionais, que faz depender os comportamentos
individuais tão-somente das racionalidades técnico-científicas específicas a cada profissão.
99
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Obviamente que esta procura não põe em causa, nem poderia pôr, a explicação de
factos sociais por outros factos sociais, o que constituiria a anulação de uma das mais
fundamentais bases onde assenta o pensamento sociológico (sobre esta questão vd. Pinto,
1984a). Apenas se afirma que os factos sociais podem ser compreendidos de uma forma
mais complexa, envolvendo não só reproduções automáticas decorrentes de determinantes
sociais, como também o uso das práticas individuais.
73
Bourdieu (1989: 8) afirma que na esteira Kantiana, Durkheim afigura-se como um autor idealista
por considerar que “a objectividade do sentido do mundo define-se pela concordância das
subjectividades estruturantes (senso = consenso)”. Se por um lado, é um dado adquirido o sentido
conferido por Durkheim aos factos sociais como parte integrante da estrutura social supra-
individual, por outro, é importante ter a consciência quanto à abrangência da linha de pensamento
desse autor. Num importante contributo sobre esta questão, Alexander (1986) preocupa-se em
traçar períodos, alguns deles contraditórios, sobre o modo como Durkheim explica a existência da
ordem social. Deste modo, não deve causar surpresa que alguns dos contributos do autor apelem
mais a uma vertente estrutural das causas da ordem social, enquanto outros, a uma dimensão mais
subjectiva. Exemplo do primeiro pendor é encontrado na sua reflexão sobre o Suicídio: “Durkheim
(1951: 299 (1897)) defines suicidogenic currents as composed of a „collective force of a definite
amount of energy‟, they reflect a social substratum which is itself composed of „beliefs and
practices (1951: 170 (1897)) and they form a society which Durkheim (1951: 310 (1897))
describes as, in the last analysis, having a „physical existence.‟” (Alexander, Ibid.: 99) Por outro
lado, o pendor subjectivista do seu pensamento encontra-se em Essai sur l‟origine de l‟idée de doit
(apud. Alexander, Ibid.: 97), em que: “he [Durkheim] writes (1893a: 292), only „completely
interior sentiments‟ that can be relied on, for „it is inside the conscience and not outside, it is in the
sympathetic and altruistic disposition and not in the sentiments of interest that it is necessary to go
look for the solution.‟”
100
Tiago Correia
74
Obviamente que os contributos de Durkheim não podem ser descontextualizados do seu tempo.
Importa salientar que a legitimidade que o autor procurava para a sociologia envolvia cortes
epistemológicos significativos, sobretudo em relação a disciplinas como a física ou a biologia.
101
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
I recommend this limited notion of reflexivity for the simple reason that it avoids the
academic pretentions and fractiousness that can arise from equating reflexivity with a
particular intellectual orientation, cultural condition or political perspective. (p. 27)
Mesmo assim, nas teorias sociológicas não apresenta grande consensualidade a este
nível, tanto por estranhas omissões entre autores contemporâneos (referência a Giddens e a
Bourdieu), como por delimitações algo redutoras em relação a contributos já existentes
75
Segundo Casanova (2004: 19), “falar em “naturalização” parece constituir um modo
apropriado para referenciar o estatuto interiorizado e estruturante das acções sociais (…). A
naturalização é a interiorização de orientações que os agentes passam a considerar como
naturais”.
76
Segundo as suas palavras que transmitem exactamente aquilo que é o objectivo nesta
investigação: “I shall argue that the meaning and epistemic virtues ascribed to reflexivity are
relative to particular conceptions of human nature and social reality” (Id.,Ibid.: 26).
77
Tradução do original em inglês.
102
Tiago Correia
(referência de Archer a Giddens e Bourdieu). Tendo uma vez mais por base a preocupação
quanto a uma não balcanização das teorias sociológicas, considera-se que o entendimento
apresentado sobre a reflexividade, enquanto capacidade de monitorização avaliativa e
interpretativa feita pelos agentes a si mesmos, aos contextos sociais que os envolvem e aos
seus interlocutores, apenas pode ser prosseguido através de uma ampla articulação
conceptual.
Segundo Bourdieu (2002) o “Esboço de uma Teoria da Prática” não deve permitir
uma separação entre o objectivismo e subjectivismo, sob pena de uma visão da realidade
social ancorada tanto em determinações, como em construções individuais e subjectivadas
da realidade social.78 De facto, esta formulação dialéctica entre estruturas objectivas e as
disposições internas aos indivíduos, onde essas estruturas se actualizam e reproduzem
revelou ser um passo conceptual determinante para estabelecer a relação entre
78
Segundo Fowler (1996), o modo como Bourdieu desenvolve esta ideia aproxima-o da
perspectiva realista, já atrás referida sobre Roy Baskar ou Margaret Archer. Não esquecer esta
aproximação não é consensual, pois a própria Archer (2007) apresenta-se como crítica de Giddens
e de Bourdieu.
103
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
79
Partindo dos contributos de Pires (2007), o qual fornece uma interpretação de síntese e de
organização das diferentes correntes de pensamento sociológico, a teoria prática formulada por
Bourdieu cai numa contradição entre a conjugação do campo e do habitus: “Como já argumentei
noutro texto (Pires, 2003: 49-50), o grau e o tipo de sistematicidade das relações entre disposições
deveriam constituir um problema analítico, não um a priori conceptual. Acresce que o carácter
holista do conceito de habitus contribui para solucionar a tensão entre pluralidade e holismo na
definição bourdiana de estrutura externa a favor do pólo holista, enfraquecendo as componentes
mais originais da proposta do conceito de campo. De facto, existe uma tensão irresolúvel entre
uma concepção plural da estrutura externa (que acentua a autonomia relativa dos campos) e a
concepção holista da estrutura internalizada (habitus enquanto sistema de disposições).” (p. 38)
Neste sentido, se Bourdieu é criticado por conferir à sistematicidade das acções individuais uma
inevitabilidade, caindo numa leitura “sub-reflexiva dos actores”, o teorema da “dualidade da
estrutura” de Giddens (1984), por outro lado, cai numa leitura “hiper-reflexiva dos actores” (Pires,
Ibid.: 36; vd. Frère, 2004 a respeito do pendor sub-reflexivo existente na teorização de Bourdieu,
ou Alexander, 1988, 1995, que considera essa teoria como sendo demasiado opaca, generalista e
104
Tiago Correia
Neste sentido, embora Bourdieu refira que o habitus põe “em evidência as
capacidades «criadoras», «activas» [e] «interventivas»” (1989: 61), além de definir a
histerese dos habitus como desfasamento entre ocasiões e disposições, e a considere
condição inerente à reprodução social, o autor toma essas situações, sobretudo, ao nível do
habitus de grupo ou de classe, como “ocasiões falhadas”, “impotência” ou “crises
históricas” (2002: 179). Representam desvios ao que é expectável em cada campo social,
logo, à reprodução e conformidade decorrentes da cumplicidade ontológica entre o habitus,
o habitat e as posições num determinado campo.
Considerando o ponto de vista que aqui interessa, questiona-se que a explicação dos
comportamentos individuais decorra simplesmente de estruturas pré-reflexivas. O facto de
determinista). Não obstante esta interpretação crítica em relação aos contributos de Bourdieu,
noutros trabalhos que claramente se situam na sua esteira consideram que os argumentos de
Bourdieu são facilmente associados a uma simplificação excessiva em torno da reprodução das
práticas sociais (e.g. Casanova, 2004; Fowler, 2006).
80
Se dúvidas restam sobre o pendor para a regularidade da praxis no pensamento de Bourdieu,
atente-se ao seguinte excerto: “Em suma, ninguém pode lucrar com o jogo, nem mesmo os que o
dominam, se se envolver no jogo, sem de deixar levar por ele: significa isto que não haveria jogo
sem a crença no jogo e sem as vontades, as intenções, as aspirações que dão vida aos agentes e
que, sendo produzidas pelo jogo, dependem da sua posição no jogo e, mais exactamente, do seu
poder sobre os títulos objectivados do capital específico” (Bourdieu, 1989: 85 – 6).
105
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
a reflexividade não ser uma condição natural, dado que é influenciada pelas estruturas
sociais que enquadram os indivíduos, não desvirtua a sua conceptualização em termos de
capacidade cognitiva de auto-compreensão, de compreensão dos outros, do espaço social
envolvente e das avaliações e expectativas que os indivíduos formulam. Afinal, os campos
da socialização são insuficientes para perceber a inteligibilidade da acção (Boudon e
Bourricaud, 2004).
O modo que se encontra para fazer face a esta aparente contradição entre as
influências sociais e a reflexividade na acção reside, como Bourdieu propõe, em não situá-
los no mesmo nível conceptual. Quer isto dizer que não se trata de procurar o vector
explicativo dos comportamentos, como se o habitus e a reflexividade respeitassem
mecanismos distintos de acção. A reflexividade emerge contextualizada por percursos
sociais, mas sem que isso se traduza numa desconsideração do seu papel na condução da
acção, tal como a “Teoria da Prática” parece fazê-lo. Defender a compreensão da
reflexividade não invalida a ideia que os contextos de interacção são moldados por
estruturas sociais objectivas para uma dada realidade social, nem que os processos de
interacção decorrem de interiorizações individuais que justificam formas esperadas de
comportamento (“o que é suposto/esperado fazer”).
Como Frère (2004) argumenta, o que está em causa é a excessiva opacidade em que
o habitus se encerra e que acaba por contribuir em muito para a sua deturpação e falta de
entendimento. Frère, em linha de pensamento com autores como Boudon, salienta que o
estatuto de “caixa negra” em que o habitus reside decorre do facto de Bourdieu não lhe ter
conferido substância empírica. Daí a necessidade da sua articulação com outros conceitos
que permitam incluir o funcionamento psicológico (no sentido da individualidade da
agência humana).
106
Tiago Correia
Como é óbvio, o elevado grau de abstracção da “teoria da prática” não pode levar a
pressupor que Bourdieu tenha ignorado ou rejeitado as possibilidades de variação da acção.
Refere, por exemplo, que a interacção social é definida, tanto pela “estrutura objectiva” da
relação entre os grupos correspondentes, como pela “estrutura conjuntural” da relação de
interacção, ou ainda que os interesses resultam da relação entre as disposições e as
situações (Bourdieu, 2002: 177). No entanto, a sua necessidade em apresentar o habitus
como mecanismo gerador de práticas acaba por desvirtuar outros mecanismos de activação
da acção, e isso é incontornável nas suas próprias palavras: “Em suma, produto da
história, o habitus produz práticas, individuais e colectivas, e portanto história, em
conformidade com os esquemas engendrados por essa mesma história” (Id., Ibid.: 178).
Logo, é impossível não interpretar o esquema conceptual Bourdieu numa vertente mais
constrangedora da acção do que capacitadora.81
81
Ao ler-se a teoria da prática fica-se com a ideia de uma visão da acção mais por via dos seus
constrangimentos sociais do que propriamente por via das suas possibilidades. Por exemplo,
quando o autor justifica que as acções quotidianas respeitam princípios inconscientes do ethos,
expressa-o no sentido de reprodução das estruturas sociais: “isso não é para nós” (Bourdieu, 2002:
165). Porque não dizê-lo em termos contrários?, ou seja: “isso é para nós”.
107
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
ímpar que o coloca em posição de actor face às normas familiares”82. Segundo a noção de
reflexividade que aqui se defende, os indivíduos quando nascem são considerados como
uma página em branco (tendo forçosamente que se ignorar o papel de condicionalismos
biológicos, tal como se referiu anteriormente aquando da discussão sobre os contributos de
António Damásio). Como Elias (1993: 17) fez notar, não é então possível dissociar a
existência individual e o seu auto-desenvolvimento da relação com os processos sociais.
É neste sentido que, não obstante os processos de individualização dos indivíduos,
ou seja, todos os elementos que configuram a existência única e irrepetível de um self, é
possível considerar a criança como uma página que vai sendo escrita por todos os
intervenientes nas suas aprendizagens sociais, ao ponto de influenciar o modo como ele se
vê e se relaciona com os outros, portanto, a sua reflexividade. Daí a importância do
pensamento de Bourdieu, pois, como refere, as interacções sociais apenas podem ser
correctamente compreendidas caso se considere que os seus intervenientes possuem dentro
de si formas objectivadas da realidade social decorrentes da sua posição social. A isto
acrescenta-se a existência de interesses ou projectos que introduzem diferenciações na
forma como o mesmo indivíduo pode querer conduzir a sua acção.
Ignorando então o papel de factores biológicos que não têm forma de ser aqui
compreendidos, a reflexividade deve estar inscrita no processo de aprendizagens sociais.
Neste sentido, o I, isto é, a capacidade activa, criativa e recreativa dos indivíduos na forma
como interpretam e interagem com o espaço social envolvente (cf. Mead, 1934), encontra
explicação nas influências sociais exercidas pelas experiências inscritas nas suas
trajectórias sociais, bem como nos lugares estruturais ocupados. Como resultado, a
consciência que o indivíduo tem de si e dos outros, está intimamente interligada com essas
experiências passadas, pelo que a reflexividade não se anula pela existência de influências
sociais, e vice-versa. A socialização influencia aquilo que constitui a reflexividade e esta
permite que os indivíduos interpretem a sua própria socialização.
Neste dualismo entre o peso conferido à estrutura e à acção, emergiu uma linha de
argumentação quanto às implicações da teoria de Bourdieu. Entre os mais diversos
contributos, destaca-se o de Bernard Lahire (2002, 2008) que, não saindo da esteira de
Bourdieu, tem como preocupação o desenvolvimento de uma abordagem que considere,
82
Tradução livre do original em francês. Esta discordância com a afirmação de Breton não invalida
os seus argumentos sobre a influência que vectores educacionais e culturais assumem nas práticas e
representações em relação ao caso concreto da construção social dos significados da dor.
108
Tiago Correia
Posto isto, e aceitando o passo teórico que o habitus dê lugar às disposições, aquilo
que se pretende é incluir na explicação dos comportamentos o domínio da capacidade
reflexiva dos indivíduos. Neste sentido, a reflexividade deve ser considerada como
capacidade absoluta apenas em termos potenciais. Isto, porque a própria definição de
interesses presentes e futuros tem de ser procurada no passado, não sendo possível
conceber que todos os actores tenham ao mesmo tempo a possibilidade de ter os mesmos
interesses. Portanto, a reflexividade, sendo uma característica inata de pensamento, activo
e recreativo, não pode estar teoricamente dissociada das influências sociais, incluindo a
desigual distribuição de recursos. Isto significa que os entendimentos que o actor faz de si,
das suas acções e do mundo, estão balizados. Inclusive, a noção de mudança (“mudar de
109
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Esta atitude, ou falta dela, demonstra em que sentido não é correcto pressupor a
reflexividade como liberdade absoluta de acção e contrária a influências sociais. Neste
sentido em particular, não parece muito útil referir a reflexividade como sinónimo da
“democratização da vida individual” (Kaufmann, 2001). Se por um lado se contesta a mera
estruturação da acção individual, por outro, não se pode legitimar uma capacidade
ilimitada de acção, por muito que se defenda a capacidade de escolha dos actores.
83
Uma e outra não representam diferentes tipos de acção, nem tão pouco representam diferentes
ênfases em diferentes momentos do curso da acção. Devem antes ser conceptualizadas como
coexistindo em simultâneo, pelo que a sua distinção é apenas analítica e não empírica.
110
Tiago Correia
indivíduos e que decorrem das suas experiências passadas. Por este motivo, Alexander
considera-o um processo interaccional e não apenas uma qualidade da consciência
individual. A invenção não envolve, contudo, apenas um processo de tipificação em
relação ao passado, o que corresponderia apenas a uma reprodução estática do passado. É
precisamente neste nível que situa a contingencialidade do presente que, influenciada por
generalizações do passado, apresenta sempre algo de novo, numa lógica de sucessiva
conceptualização da realidade ou, porque não, de criação da realidade: “only because
invention is hidden within phenomenological conformity can culture be so plastic and
individual action proceed in such an extraordinary fluid way” (Ibid.: 314).
111
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
(II) A intencionalidade da acção (“querer”) pode não ser reflexiva nos casos em que, por
via das influências sociais passadas, há interesses espontaneamente reproduzidos por
cristalizações ou rotinizações;
(III) Por isso, os comportamentos actuais tanto envolvem estruturas não conscientes que se
cristalizam nas aprendizagens sociais, como resultam de acções conscientes e
reflexivas accionadas em função de interesses ou projectos pessoais, ou de alteração
dos contextos rotinizados;
(IV) Como Giddens (1984) refere, abordagens sociológicas têm dificuldade em analisar o
inconsciente (o que mesmo assim permite refutar perspectivas freudianas), e fazê-lo
deverá ser por referência ao consciente. Assim, os instrumentos teóricos adquiridos
não permitem ir além desta compreensão da não consciência por referência à
consciência, o que, nestes termos, significa considerar que tanto a rotinização como a
cristalização – no sentido de acções não intencionais/não conscientes – se traduzem
em acções que foram interiorizadas pelos indivíduos ao longo do tempo, ao ponto da
sua utilização se processar sem a necessidade de consciência sobre “como é feita” e
“porque é feita”;
(V) Portanto, esta leitura baseia-se numa interpretação processual e diacrónica da relação
entre estados de consciência e de não consciência;
(VI) Existe uma relação mútua entre a reprodução automática e a reprodução ou mudança
reflexivas, dado que, se por um lado, as influências sociais condicionam a
reflexividade, por outro, acções reflexivas podem rotinizar-se em acções reproduzidas
automaticamente;
112
Tiago Correia
(VIII) Giddens (1984, 2000a), com base nos contributos de Goffman (1993), considera
que existem sempre consequências não intencionais da acção, integrando-as na própria
dinâmica de reprodução social.84 No entanto, contrariamente ao que argumenta, os
efeitos não intencionais da acção podem ser intrínsecos à própria reflexividade. Ou
seja, deve-se equacionar sempre desfasamentos entre o que o indivíduo pensa fazer e
aquilo que acaba por fazer (como se exterioriza a interioridade) e desfasamentos entre
o que o indivíduo faz e o modo como os outros interpretam (como se interioriza a
exterioridade). Por isso, a acção envolve processos avaliativos e interpretativos, pelo
que a contingência é parte intrínseca dos comportamentos sociais.
(IX) Na medida em que a acção reflexiva tem na sua base uma complexa articulação entre
influências passadas e atribuições simbólicas/valorativas, não se pode em causa o
cunho impresso pelas trajectórias e lugares ocupados. Equaciona-se, paralelamente, os
diferentes contextos de interacção, os interlocutores presentes, os vários momentos da
vida e os interesses futuros.
84
De facto, a ideia de que as consequências não intencionais da acção não constituem ameaças às
acções rotinizadas decorre da crítica à perspectiva funcionalista de Merton (1957), que as analisa
sob o ponto de vista da irracionalidade da acção (funções latentes). Então, em alternativa, Giddens
baseia-se no argumento de Goffman (1993) de que no processo comunicacional um indivíduo, de
forma intencional, ou não, produz dois tipos de expressões: aquelas que resultam da comunicação
verbal no sentido restrito do termo (expressão que transmite) e que o emissor melhor controla e os
atributos que os receptores atribuem a essa expressão comunicacional (expressão que emite), a qual
poderá ser não coincidente com a primeira, fugindo ao controlo do emissor. Existe, portanto, um
processo inferencial na interacção social, que, apesar de influenciado pelo emissor, pelo conteúdo
da informação e pela forma como é disponibilizada, produz efeitos que não pode antecipar que é a
interpretação desses elementos.
113
Tiago Correia
CAPÍTULO III:
PROPRIEDADES SISTÉMICAS EM PERSPECTIVA
85
Neste nível da discussão é de todo conveniente deixar uma referência ao caso norte-americano,
por recentemente ter sido aprovado pelo seu senado a universalização do acesso a cuidados de
saúde típica dos princípios presentes nos modelos de SNS entre os países europeus. Deste modo,
não se considera que o exemplo americano possa ser referido para efeitos da NGP, tal como outros
países fora do espaço europeu que apresentam configurações de Estado-Providência. A realidade
do sistema financeiro e de comparticipações sociais, o papel desempenhado pelo sector privado na
actividade da saúde, o âmbito de abrangência desse SNS e mesmo resistências ideológicas
marcantes na história Norte-Americana não podem levar a que se pense, pelo menos por enquanto,
na uniformização com os princípios do modelo europeu. Por outro lado, falar num modelo europeu
não pressupõe que se ignorem as diferenças nas características políticas, financeiras e produtivas
entre países, configurando de um modo muito particular a forma como os princípios ideológicos de
“bem-estar” se concretizam nos respectivos níveis nacionais. A propósito da discussão sobre os
modelos europeus de estado vd. Esping-Andersen (1990) ou Ferrera (2000).
115
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
configurações estruturais muito próprias, sabendo, por outro lado, que essas configurações
estruturais são o produto de uma relação dualista entre estruturas e acções.86
Dizer que as acções são irrepetíveis não significa que sejam imprevisíveis. Deste
modo, não obstante a regularidade em torno da padronização dos comportamentos,
decorrente de aprendizagens passadas e de mecanismos sociais que garantem a sua
tendencial reprodução, os diferentes sentidos conferidos aos interesses individuais podem
fazer divergir o curso das interacções. Daqui decorre que a compreensão sobre as
interacções sociais depende do conhecimento dos recursos de poder existentes num
determinado sistema de acção e do modo como os agentes os mobilizam.
Classificando de um outro modo aqueles três níveis sistémicos, está em causa uma
dimensão política, uma dimensão do trabalho e uma dimensão das relações profissionais.
Comum a todos eles está presente a dimensão da contingencialidade da acção, dada a
impossibilidade de tomar as configurações institucionais como autónomas dos agentes
responsáveis pela sua materialização. Aquilo que se está a argumentar é a existência de
uma ligação complexa que toma o nível institucional não apenas como entidade externa,
mas, simultaneamente, como interna aos agentes sociais (cf. princípio do pensamento de
Bourdieu, 2001, 2002). Aliás, aquando da figura 2.1., deu-se conta que a existência
anterior das estruturas/propriedades sistémicas responsável pela delimitação dos
comportamentos individuais foi já o resultado de estruturas/propriedades sistémicas
interiorizadas que, em função de outras prévias a essas, definiram aquilo que num dado
espaço e momento é o sistema de regras sociais vigente. É por isso que estas diferentes
dimensões não são operacionalizadas respectivamente como um nível macro, meso e
micro, dado que uma demarcação desse tipo poderia contribuir mais facilmente para uma
separação hermética que se procura evitar entre objectividade externa e objectivações
individuais.
86
Esta ideia sintetiza a perspectiva sistémica de Crozier e Friedberg (1977) e Barouch (1989), bem
como o princípio realista de autores como Bhaskar (1979) e Archer (1995, 2007).
116
Tiago Correia
profissão nunca tenha abandonado a sua vertente liberal mesmo com o surgimento do SNS
em fins dos anos 70 (cf. Carapinheiro e Pinto, 1987; Carapinheiro, 2006), o facto é que a
evolução da actividade é indissociável da evolução dos próprios hospitais modernos, que
foram passando para a alçada dos Estados à medida que a gestão da saúde e da doença se
foi transformando numa dimensão da vida pública (e.g. Coe, 1984). Neste sentido, embora
a medicina tenha uma capacidade de auto-regulação decorrente da transferência de
competências do Estado para a Ordem dos Médicos, a definição das políticas públicas
revela sempre impactes sobre a configuração do trabalho médico.87
Sabendo então que as relações profissionais entre médicos e gestores têm que estar
enquadradas pelo conhecimento dos processos políticos e laborais que as afectam, neste
capítulo será visto o que significa a NGP, para daí se perceber as implicações decorrentes
sobre a própria concepção do Estado.
É neste contexto que a NGP emerge nos anos 80 no Reino Unido, Austrália e Nova
Zelândia alargando-se depois em diferentes ritmos à generalidade dos países dotados de
modelos públicos de intervenção (e.g. OECD, 1995; Barzelay, 2000, 2001; Gomes, 2001;
87
Sobre o significado, o papel e o alcance do associativismo público, ver Rodrigues (2004).
117
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Ferlie, et al, 1996; Gruening, 2001; Bach e Kessler, 2007; Kirkpatrick, et al, 2007, em
Portugal, vd. OPSS, 2009).
traditionally, the public sector has been characterized by Taylorist management, described as
bureaucratic, inflexible, conformist and principally concerned with control and cost cutting.
88
Carvalho (2005) refere que na literatura portuguesa o termo managerialism tem sido traduzido
como gerencialismo ou como managerialismo. Concorda-se com os argumentos apresentados pela
autora quando opta pelo managerialismo, afirmando que entre os dois termos é “o que melhor
circunscreve a complexa dimensão do conceito, permitindo-nos, simultaneamente, significar a
sobreposição dos critérios de gestão aos critérios políticos de governação e manter a dignidade
académica do termo gestão.” (p. 23)
118
Tiago Correia
Contudo, um olhar mais preciso demonstra que a NGP não representa uma
alternativa ao modelo de “bem-estar”, mas a forma encontrada para adaptar a
universalização de determinados direitos sociais (como a educação e a saúde) que se
constituem como definidores da concepção do Estado-Providência, num momento em que
as condições económicas, financeiras e demográficas dificultam a sua sustentabilidade.
Esta alteração tem sido de tal modo significativa que implicou também uma
redefinição da própria noção dos utilizadores dos serviços públicos, passando a assumir a
designação de consumidores. Nesta óptica, os consumidores, detêm a sua quota-parte de
responsabilidade na escolha e utilização eficiente dos serviços públicos, o que comprova
que as reformas recentes no modelo de “bem-estar” estão orientadas para uma cidadania
activa e para um envolvimento consciente dos utilizadores dos recursos públicos (Lister,
2001).
Dado que esta lógica está imbuída um pouco por todas as esferas sociais e não
apenas em sub-sectores em concreto, torna-se útil a convocação do pensamento de
Foucault (1975) sobre a vigilância e o controlo exercido pelas estruturas sociais. O que
parece estar a acontecer é que, sob a égide da ideologia managerialista, intensifica-se o
processo social de controlo da actividade, esperando prever as práticas profissionais e,
assim, garantir a prossecução de critérios de eficácia e de eficiência. Segundo du Gay
(2000), este processo ilustra o princípio de que o funcionamento da sociedade é pensado à
semelhança do funcionamento empresarial.89
89
Apesar de tudo, este é um controlo que deve ser entendido principalmente como expectativa
política e de determinadas áreas científicas como é o caso da gestão, não significando que o
aumento da normatividade das regras sociais corresponda na medida exacta ao aumento da
estruturação dos comportamentos individuais. Essa correspondência negaria então toda a tese atrás
defendida sobre as capacidades activas e reflexivas dos agentes sociais no interior de sistemas
abertos. Deste ponto de vista, é necessário distinguir o teor normativo das actuais regras que
legitimam processos de estruturação macrossociais do modo como essas regras são interpretadas e
utilizadas por agentes sociais dotados de reflexividade e que ocupam lugares profissionais com
autonomia no seu desempenho profissional.
119
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
90
Cf. Dubar (2006: 87), a expressão “racionalidade instrumental” como base de entendimento
sobre a modernização económica teve origem não em Weber, mas nos filósofos da Escola de
Frankfurt (Adorno, Horkeimer ou Habermas), referindo-se à subordinação de todas as lógicas de
acção à consolidação do sistema tecno-burocrático, à importância do dinheiro e da potência.
91
Este representou o âmbito de discussão em Correia (2009a).
120
Tiago Correia
121
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
92
A referência é feita ao caso das organizações hospitalares, mas o seu princípio genérico tem
aplicação a qualquer sector público sujeito a medidas da NGP.
122
Tiago Correia
93
Mesmo não esquecendo que o autor analisa a situação dos médicos no contexto americano, os
seus argumentos têm uma verdadeira aplicação à situação vivida entre os países europeus. A este
respeito afirma que: “seguindo o princípio de obtenção de lucro das organizações médicas, todas
as burocracias médicas estão actualmente a pressionar a medicina em direcção à maior
calculabilidade. Mesmo as organizações médicas sem fins lucrativos (…) estão a empregar
gestores profissionais e a instituir sofisticados sistemas de contabilidade.” (Ibid.: 74)
123
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
124
Tiago Correia
125
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
126
Tiago Correia
financeira dos anos 70 (e.g. Offe, 1984; Santos, 1987, 1992). As contradições em causa
prendem-se com a necessidade de uma articulação sustentada entre a capacidade do Estado
para garantir a acumulação de riqueza, para que a jusante esta possa ser distribuída
segundo políticas de justiça social.
Importa, por isso, elucidar alguns dos argumentos sobre os princípios definidores
do Estado-Providência. Santos (1987: 15) refere que “o Estado afirma-se portador do
interesse geral, acima e além dos interesses particulares das diferentes classes sociais.”
Note-se que contrariamente à ideia de um interesse geral, o autor opta por falar num
interesse autónomo, em que se conjugam interesses político-partidários com interesses
particulares, onde se pode incluir a ideia da acção corporativa. De modo semelhante,
Mozzicafreddo (2002) considera que por via do modelo eleitoral, directo ou indirecto, os
Estados constituem-se enquanto sistemas de orientação das preferências colectivas.
Porventura, este é o primeiro argumento que permite contrariar a ideia de uma única forma
de Estado-Providência, dado que as ideologias partidárias são universos político-simbólico
variáveis, espacial e temporalmente.
127
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
valorizam, ainda que em graus variáveis, as políticas de feição social tendo em vista a sua
continuidade no poder político.
Acontece que este modelo foi mostrando paulatinamente como o aumento das
exigências do Estado com as suas responsabilidades sociais dificilmente se equilibra em
relação às exigências para assegurar a acumulação necessária a essa distribuição.
Utilizando as palavras de Santos (Ibid.), já há muito tempo que se percebeu que esta não é
uma relação de soma positiva como teoricamente poderia ser pensado, mas uma relação de
soma nula. Mesmo em países onde o modelo providência foi bem consolidado e
aprofundado, e consequentemente, onde esta articulação entre acumulação e distribuição
pode não ser tão problemática, persiste uma desarticulação potencial relacionada como a
maior oscilação da conjuntura económica e financeira quando comparada com a
institucionalização de direitos sociais. Deste modo, a relação de soma nula referida por
Santos não é apenas uma dinâmica característica em países como Portugal, onde a
consolidação do modelo providência foi demasiado rápida e pouco sustentável, sendo uma
contradição implícita à definição teórica do princípio da universalização em que assenta o
modelo de beveridge.94
Esta é a posição veiculada por Harrison (1999). Segundo o autor, enquanto o pós
segunda grande guerra ficou marcado por um compromisso com a autonomia clínica por
parte das instâncias políticas, a partir de 1991, ano de reforma profunda no NHS, assiste-se
94
Recorde-se nota de rodapé n.º 12.
128
Tiago Correia
a uma maior necessidade de controlo e legitimação das suas decisões.95 Turner (2006), de
um modo semelhante, identifica que a “Era Dourada” para a medicina pode ser balizada
entre 1910 e 1973, período em que o seu profissionalismo se ancorou simultaneamente no
poder político e na confiança pública generalizada. Para Turner, tais apoios decorrem tanto
do Estado como da opinião pública.96
Como foi referido anteriormente, não é claro que estas alterações possam ser
interpretadas como um posicionamento anti-profissionalista. Exworthy e Halford (1999)
consideram que estas políticas de intensificação da presença da gestão nos serviços
públicos traduzem a necessidade de, pelo menos, substituir os profissionais não-gestores
responsáveis pela gestão dos serviços perante os problemas de sustentabilidade do
financiamento público. Mais do que uma oposição em relação ao poder profissional, trata-
se de assegurar um maior controlo político sobre o modo como os dinheiros públicos são
utilizados. Aliás, como Harrison (1999) faz notar, a ideologia médica enquanto ideologia
dominante nos serviços de saúde, não é questionada num quadro de maior controlo de
gestores profissionais nos serviços de saúde.
95
Sobre a confiança conferida à profissão médica por parte do poder político, pode ver-se em
alguns documentos legislativos que serviram de base para o SNS inglês “Whatever the
organization, the doctors taking part must remain free to direct their clinical knowledge and
personal skill for the benefit of their patients in the way which they feel to be best” (Ministry oh
Health, 1994: 26 apud. Harrison, 1999: 51)
96
Estas posições têm na sua base o princípio foucauldiano de governamentalidade, segundo o qual
Johnson (1996) considera que o poder médico decorre do seu reconhecimento enquanto saber
especializado por parte do Estado. Neste sentido não é correcto pressupor o antagonismo entre o
Estado e as profissões.
129
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
gestão dos serviços de saúde à área científica da gestão, cuja introdução se faz sentir ao
ponto da adopção da sua linguagem técnica (e.g. budget, case mix, stakeholders).97
Esta discussão, embora associada a dinâmicas recentes nas sociedades, tem vindo a
ser descrita na literatura das profissões. Merton (1982) é um bom exemplo disso,
considerando que a generalizada quebra de confiança nas profissões, em especial nas
profissões de saúde devido à sua actividade se desenvolver directamente em relação ao
bem-estar físico dos indivíduos, decorre de um desfasamento entre aquilo que constitui o
altruísmo institucionalizado e aquilo que constitui a prática profissional efectiva.98 Por
outras palavras, Merton considera que o criticismo crescente nas sociedades modernas em
relação às profissões decorre da não correspondência entre aquilo que são as expectativas
socialmente disseminadas sobre os comportamentos profissionais e aquilo que os
indivíduos experienciam quando contactam directamente com os profissionais.
97
De facto, é significativo o modo como a linguagem técnica da gestão faz parte do quotidiano dos
serviços públicos de saúde. Não só os gestores, como os médicos, enfermeiros e técnicos incluíram
no seu léxico todo o tipo de estrangeirismos característicos do discurso científico da gestão (notas
do diário de campo).
98
Evetts (2006a) analisa a evolução do profissionalismo e da confiança nas profissões, referindo
que essa confiança foi um processo social do século XIX que marcou fortemente a compreensão
sociológica das profissões ao longo do século XX, sobretudo em relação aos advogados, médicos e
sacerdotes que actuariam tendo em vista um altruísmo para a comunidade. Estes são pressupostos
teóricos inequívocos, por exemplo, para a teorização de Parsons.
130
Tiago Correia
99
Segundo dados apresentados por Kuhlmann (2006), entre a generalidade dos países europeus, a
confiança nos médicos apresenta valores mais elevados do que a confiança depositada nos sistemas
de saúde. Estes dados comprovam não ser claro que o crescente cepticismo sobre a prática clínica
se traduza linearmente numa falta de confiança sobre os médicos.
131
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Mechanic, 1991) que rejeitam as perspectivas de perda de poder dos médicos. Esta posição
decorre do facto dos saberes biomédicos não deixarem de se assumir como centrais na
organização e funcionamento dos serviços de saúde. Freidson (1994) considera que o
profissionalismo não é ameaçado nas grandes organizações, pois o que poderia constituir
essa ameaça diz respeito ao controlo dos profissionais. Para Freidson, esse controlo não se
efectiva porque as burocracias não monopolizam a alocação dos recursos, a definição das
obrigações dos profissionais sobre a organização e sobre os clientes, o sistema de avaliação
do trabalho e as formas de supervisionar o trabalho profissional.
Ainda segundo o mesmo autor, as teses que vaticinam a quebra de poder médico
têm tido até agora uma validade limitada, na medida em que os profissionais não deixam
de ser geridos por elementos da sua profissão. Neste sentido, a autonomia profissional não
será perdida, mas antes redistribuída (a respeito das teses sobre a redistribuição de poder
no interior da profissão vd. Causer e Exworthy, 1999; Dent, 2005; Harrison, 1999; Hunter,
1994). Por outro lado, Freidson (2001) considera ainda que o profissionalismo não tem
sido posto em causa desde o início deste processo, pois tanto o Estado como os agentes
económicos privados não pretendem anular as competências profissionais.
132
Tiago Correia
que lhes trariam uma autoridade profissional, fossem altruístas e fechados aos seus
interesses profissionais. Obviamente, o resultado das relações inter-profissionais, com este
quadro de teorização, seria conflituoso.100
100
Nestas perspectivas que consideram haver um entendimento pouco preciso da relação entre
médicos e gestores, caso se valorize a existência de racionalidades profissionais distintas, autores
como Flynn (1999) optam por salientar as contradições entre os valores e práticas entre a gestão e a
profissão. O autor apresenta um modelo tipo-ideal dessas contradições, focando como dimensões:
(I) a fonte de legitimidade, (II) os objectivos, (III) o modo de controlo, (IV) os clientes, (V) o grupo
de referência e, (VI) a regulação. Nestes termos, se por um lado, o managerialismo é caracterizado
por: (I) uma autoridade hierárquica, (II) cujos objectivos são a eficiência e a maximização do lucro,
(III) em que o modo de controlo se exerce por via de regras a que se espera uma sujeição por parte
dos profissionais, (IV) sendo a organização o seu cliente, (V), respondendo a superiores
burocráticos e, (VI) cuja regulação é essencialmente hierárquica. Por outro lado, o profissionalismo
é identificado como: (I) tendo no conhecimento especializado a fonte da sua legitimidade, (II) os
objectivos estão relacionados com a competência técnica, (III) em que o modo de controlo se
exerce por via de confiança e dependência em relação aos seus saberes inacessíveis, (IV) cujos
clientes são essencialmente indivíduos, (V) tendo os colegas como grupo de referência e, (VI)
possuindo uma auto-regulação segundo uma lógica colegial. Não obstante o autor referir a
dificuldade em encontrar organizações burocráticas rígidas, ao ponto de se poder identificar um
desfasamento puro entre estes tipo-ideais, dá conta da sua utilidade para a compreensão que os
objectivos, os valores, os grupos de referência e os modos de controlo da actividade demarcam
duas racionalidades distintas, potencialmente conflituosas.
133
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
134
Tiago Correia
Desta proposta o que importa realçar para a discussão sobre a relativa amplitude de
conclusões sobre as consequências do managerialismo para o profissionalismo, diz respeito
ao facto de tanto existirem estruturas de longa duração, como mudanças histórico-sociais,
que tornam o processo de profissionalização complexo e dinâmico, dependendo de uma
conjugação entre particularismos nacionais e dinâmicas comuns a diversas realidades.102
Situada claramente a conceptualização proposta por este autor, não se põe em causa
a integridade do conceito de profissão, equacionando, em todo o caso, as variações que o
101
Os tipos-ideais são: (I) profissões corporatizadas, características na Europa antes do século XIX,
onde são incluídas profissões como os médicos ou cirurgiões. Tratam-se de corpos profissionais
com poder para regular aspectos como a divisão do trabalho, remunerações ou regulamentos; (II)
profissões estatais, em que um Estado centralizador, como no início da segunda metade do século
XIX na Europa continental, define a divisão do trabalho, o acesso à profissão e o sistema de
educação. Este poder estatal influenciava não apenas profissões cujo principal empregador é o
Estado, mas profissões corporatizadas; (III) profissões autónomas (ou liberais) que emergem num
período de liberalização dos mercados, como aquele que caracterizou a Europa no final do século
XIX. Em traços gerais, nesse tipo-ideal houve como que uma abertura da actividade profissional e
dos seus conhecimentos especializados à esfera leiga. São identificados processos de des-
profissionalização ou, pelo menos, de desregulação; (IV) profissões neo-corporatizadas, que
resultam de um duplo processo de regulação por parte do Estado e por parte das próprias
profissões. Representam as profissões ao longo do século XX na Europa, em que o sistema de
ensino é regulado pelo Estado, ao mesmo tempo que as associações profissionais constituem os
seus monopólios (de acesso e de exercício da actividade profissional). Para esclarecimentos
adicionais vd. Siegrist (1990: 193 e ss.).
102
Além disso, o autor desenvolve uma ideia bastante interessante, mas que foge ao cerne da
discussão que aqui se apresenta. Contrariamente à noção de que os processos de profissionalização
correspondem a sequências unilineares, Siegrist opta pela noção de ciclos, políticos, sociais e
económicos, que condicionam a história das profissões e os seus processos de profissionalização.
Aliás, esta ideia é expressa através dos tipos-ideais de profissões anteriormente referidos, em que as
profissões no decorrer do século XX apresentam uma forma neo-corporatizada, articulando
características de tipos-ideais anteriores, o que por si só é indicativo do princípio de reprodução dos
sistemas sociais em função das suas determinantes passadas.
135
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Como Kirkpatrick (et al, 2007) referem, perante uma variação, por vezes
proeminente, entre o managerialismo e o profissionalismo médico nos vários países
europeus, sobressai a necessidade de uma perspectiva teórica centrada nas estratégias
profissionais. Ou seja, que tenha em conta a agência dos grupos profissionais e a forma
como se diferenciam em cada realidade social.
Está, por isso, em causa uma clivagem entre o modelo continental e o modelo
anglo-americano das profissões (Sciulli, 2005). Por exemplo, Hunter (1994) identifica uma
maior burocratização dos médicos americanos, que se associa ao argumento apresentado
por Turner (2006) de que a comercialização da medicina nos EUA tem ameaçado a sua
coerência e solidariedade enquanto grupo profissional. Isto significa que a primeira grande
distinção deve ser feita entre estes dois modelos governativos, já que correspondem a
processos diferenciados na profissionalização.
136
Tiago Correia
prossecução dos projectos de Estado entre os países europeus, nem tão pouco uma
similitude dos seus percursos.103
Concluindo, na esteira daquilo que Rodrigues (2004) refere, ainda que não se
questione a utilidade da generalização conceptual nas profissões, importa identificar as
manifestações específicas que caracterizam os modelos profissionais, bem como as
ideologias do profissionalismo, sabendo-se da diversidade de modelos de organização, da
heterogeneidade interna, da imprecisão das fronteiras que separam as profissões, bem
como outras especificidades associadas a contextos históricos e geopolíticos.
103
No ponto seguinte em que se analisa a implementação da NGP nos hospitais portugueses, será
visto que apesar de existir uma inequívoca proximidade das políticas nacionais em relação a
princípios supranacionais, persistem configurações muito próprias no sistema de saúde português.
137
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Definidos os contornos gerais da NGP e a sua íntima relação com o sistema político e com
o sistema das profissões, analisa-se agora o modo como se tem processado a sua
implementação nos hospitais públicos portugueses.104
Hoje em dia a NGP revela uma inegável centralidade, tanto em termos empíricos,
como teóricos, tendo conduzido a um debate que se tem disseminado no espaço e nos
protagonistas. Em todo o caso, a discussão internacional continua a evidenciar um
predomínio de exemplos anglo-saxónicos (Barzelay, 2000). Tendo então por base um
contexto político e científico propício a este debate e uma relativa ausência de reflexão
sobre a situação vivida em Portugal, procura-se contribuir para a interpretação do modo
como a NGP tem vindo a ser pensada e implementada no sector da saúde português.
Antes disso, importa apenas referir que o facto desta análise se centrar nos hospitais
não significa que a reforma na saúde em Portugal esteja limitada a esses prestadores. Pelo
contrário, a reestruturação dos serviços de saúde tem sido prosseguida transversalmente
entre as várias dimensões do SNS (e.g. encerramento de serviços de atendimento
permanente – SAP –, maternidades e urgências), motivo que tem provocado uma ampla
contestação social (OPSS, 2009).105 Ainda assim, a preponderância dada ao sector
hospitalar prende-se com dois motivos fundamentais. O primeiro relaciona-se com a
relevância que os hospitais assumem na prestação de cuidados de saúde e que levaram a
que Correia de Campos (1984) tivesse definido o sistema de saúde português como
“hospitalocêntrico”. Decorrente desse, o segundo motivo prende-se com os encargos que
os hospitais representam para as contas públicas, fazendo destas organizações verdadeiros
laboratórios sobre as tendências das mudanças futuras ao nível da prestação de cuidados.
Por conseguinte, este é o sector mais permeável à intervenção política, sobretudo num
104
Tanto este ponto como o seguinte constituíram elementos de reflexão já publicados (Correia,
2009d, 2011).
105
Recorde-se os argumentos de Santos (1987), quando afirma que uma das contradições do
modelo providência é a insatisfação generalizada decorrente de retrocessos das políticas sociais.
Sobre a reforma dos cuidados de saúde primários em Portugal, vd. Teixeira (2011).
138
Tiago Correia
Como foi afirmado anteriormente, uma análise rigorosa sobre a NGP exige ir além
de uma mera descrição de medidas políticas e de alterações mais ou menos sistemáticas no
funcionamento organizacional. Sabendo da diversidade empírica que a concretização da
NGP assume, cada país deve ser visto como uma combinação, por vezes difícil de
destrinçar, entre influências externas e particularismos internos. Por um lado, é inequívoca
a influência de certas orientações políticas que se foram disseminando a partir de contextos
específicos (e.g. pense-se no caso inglês de Thatcher e depois de Major), a par de situações
relativamente comuns de pressão sobre as contas públicas. Por outro, há que considerar
todo um outro conjunto de processos de natureza institucional específicos a cada país que
permitem perceber o conteúdo e a forma da materialização da NGP.
À semelhança da generalidade dos países europeus, a NGP representa em Portugal
uma lógica política de funcionamento assente na compatibilização entre a universalidade e
a tendencial gratuitidade do acesso a cuidados de saúde (princípios gerais que em Portugal
estão inscritos na Constituição da República Portuguesa e no SNS) e a necessidade de
racionalização dos gastos públicos.
À partida, isto significa que a NGP não pode ser meramente associada a um
movimento de privatização do SNS e de consequente ameaça ao suporte ideológico do
Estado-Providência. Paralelamente, é indiscutível um contexto de maior liberalização da
actividade estatal, que atesta a necessidade de uma presença cada vez mais significativa
dos agentes privados na prestação de cuidados de saúde, e que pode trazer uma alteração
106
Para uma compreensão genérica sobre as mudanças na gestão hospitalar portuguesa veja-se Vaz
(2010). Em traços largos, é possível apreender os contornos da gestão hospitalar moderna por
intermédio das dimensões de análise consideradas: produção e performance; acesso; satisfação dos
utilizadores; modalidades de pagamento e formas de contratualização; novos modelos jurídicos;
PPP.
139
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
107
É o caso concreto das designadas PPP (vd. Decreto-Lei n.º 185/2002). As PPP instituem uma
lógica em que a actividade pública é realizada por entidades privadas mediante uma relação
contratual, ou seja, tem como princípio “assegurar o desenvolvimento de uma actividade tendente
à satisfação de uma necessidade colectiva, e em que o financiamento e a responsabilidade pelo
investimento e pela exploração incumbem, no todo ou em parte, ao parceiro privado”
(DL.141/2006: 5350). As PPP realizam-se ao nível da concessão de obras públicas, serviços
públicos, prestação de serviços e gestão de bens e serviços. A lógica subjacente é que a prestação
pública tende a ter melhores resultados se efectuada em conjugação com o sector privado, não
obstante o próprio poder político reconhecer casos em que a solução tem sido mais dispendiosa,
além de considerar que os parceiros privados nem sempre têm cumprido aquilo que está definido
contratualmente. Como mais adiante será discutido, está em causa a adequação entre dois
princípios dificilmente articuláveis (apropriação privada do lucro e o interesse colectivo). Para uma
discussão sobre as implicações e contornos das PPP vd. Pita Barros (2010).
108
Pense-se, por exemplo, na intervenção do Tribunal Constitucional no decorrer dos anos 80 após
a tentativa da Aliança Democrática – governo de coligação entre o PPD, o CDS e o PPM – de
extinção de 47 artigos que regulavam o SNS (ver Carapinheiro e Pinto, 1987).
140
Tiago Correia
109
Este tendencial absentismo quanto a formas de envolvimento cívico mais distantes contrasta
com um significativo envolvimento em formas de associativismo de natureza mais próxima aos
cidadãos. A este respeito, não esquecer um tipo de solidariedade de base comunitária e/ou familiar
característica da sociedade portuguesa, designada por Santos (1987) como uma „sociedade
providência‟.
110
Por exemplo, o Decreto-Lei n.º 413/71, que define a reorganização dos serviços de saúde,
reconhece que a configuração muito específica do sector da saúde em Portugal leva à necessidade
dos hospitais manterem uma estrutura autónoma e central em relação a outros prestadores de
cuidados.
141
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
legislativos da década de 40 (como a Lei n.º 2120 de 1963 que promulga as bases da
política de saúde e assistência e que consagra princípios inscritos na Lei n.º 2011 de 1946
onde se define a organização hospitalar do país com base num sistema regionalizado e
baseado na ordenação técnica das unidades que o compõem: hospitais gerais, regionais e
sub-regionais), encontram-se referências embrionárias quanto à melhor gestão dos
hospitais, sem que isso se materialize numa qualquer ideologia anti-profissional:
ultrapassou-se a ideia de que as técnicas da economia nada tinham que ver com o governo
dos hospitais e que os problemas de financiamento afectavam a nobreza dos objectivos
próprios da actividade médica. Aceita-se, em termos de generalidade, que os processos de
gestão económica constituem garantia indispensável de que aos meios materiais reunidos
pela comunidade será dada a utilidade óptima, o que, no final, quer dizer maior número de
doentes assistidos e melhor assistência prestada. Acrescenta, dizendo que por outro lado,
estipula-se claramente a responsabilidade de todos os serviços, quer médicos, quer
administrativos, bem como dos vários órgãos de administração e direcção técnica, na
realização dos objectivos e nos resultados finais do trabalho comum, competindo a cada um
conseguir a máxima eficiência com o mais económico aproveitamento dos meios de acção
postos ao seu dispor. (Decreto-Lei n.º 48357: 601)
142
Tiago Correia
das suas políticas, incluindo-as no seu SNS (Carapinheiro e Pinto, 1987; Carapinheiro e
Page, 2001).111
111
Um importante indicador do carácter ainda “hospitalocentrico” da prestação de cuidados de
saúde em Portugal prende-se com a preocupação política tardia com a gestão empresarializada dos
cuidados primários. Apenas em 1999, com o Decreto-Lei n.º 157/99, se encontra pela primeira vez
uma atenção clara quanto ao modo como os cuidados de saúde primários são prestados,
procurando a sua articulação com outros níveis de cuidados de saúde: “Nestes termos,
reconhecendo os centros de saúde como primeiras entidades responsáveis pela promoção e
melhoria dos níveis de saúde da população de determinada área geográfica, considera o Governo
ter-se tornado prioritária a reformulação do respectivo quadro legal, dotando-os de
personalidade jurídica e criando um nível de gestão local, com base numa matriz organizacional,
simultaneamente flexível e funcional, no respeito de uma hierarquia técnica efectiva.” (p. 2425).
Desde então, tem havido uma inegável intervenção política nos centros de saúde, com importantes
marcos legislativos nesse sector, como o caso das Unidades de Saúde Familiar. Vd. Decreto-Lei n.º
60/2003; Decreto-Lei n.º 28/2008; Decreto-Lei n.º 102/2009, onde se pode comprovar a influência
contínua e generalizada dos fundamentos da empresarialização dos cuidados de saúde em geral,
não obstante, a sua concretização estar dependente de especificidades decorrentes dos projectos
políticos de cada partido.
112
Dunlop (1958), com base na formulação estruturo-funcionalista de Parsons, entende um sistema
de relações industriais como um modelo autónomo, portanto um subsistema social, com actores e
processos relacionais específicos, não explicáveis pela imposição de outros sistemas sociais, unidos
por uma ideologia definidora das regras e das funções no local de trabalho.
143
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
fundamentais na configuração dos processos que marcam hoje em dia as medidas políticas,
Stoleroff (1988, 1995, 2009) refere a herança politizada e corporativa da estrutura sindical
ainda do período ditatorial, além da própria configuração política do pós 25 de Abril de
1974, como aspectos importantes sobre o modo como em Portugal nunca se atingiu um
verdadeiro sistema de relações industriais. Tratou-se sobretudo de um modelo formalista e
legalista e não qualitativo.
144
Tiago Correia
145
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Descentralização de competências
146
Tiago Correia
113
Programa de Governo consultado a 25/06/2009 em http://www.portugal.gov.pt/pt/GC17/
Governo/ProgramaGoverno/Pages/programa_p011.aspx.
147
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Quadro 3.1. – Comparação entre estatutos jurídicos dos hospitais públicos portugueses
Sector Público Administrativo (SPA) Entidades Públicas Empresariais (EPE) Sociedades Anónimas de capitais públicos (SA)
Centralidade de princípios de racionalidade económica Centralidade de princípios de racionalidade económica Centralidade de princípios de racionalidade económica
Actividade paga pelo Estado através de contratos-programa celebrados Actividade paga pelo Estado, através de contratos- Actividade paga pelo Estado, através de contratos-programa
Principais
com instâncias de regulação meso (ARS) onde se definem metas programa celebrados com o Governo onde se definem celebrados com o Governo onde se definem metas
critérios de
quantitativas e qualitativas, calendarização, investimentos necessários, metas quantitativas e qualitativas, calendarização, quantitativas e qualitativas, calendarização, investimentos
gestão
indicadores de desempenho investimentos necessários, indicadores de desempenho necessários, indicadores de desempenho
Investimentos mediante comprovação das necessidades Investimentos mediante comprovação das necessidades Investimentos mediante comprovação das necessidades
Regulamentos internos e por normas em vigor para os hospitais do Regulamentos internos, normas em vigor para os Regulamentos internos, normas em vigor para os hospitais do
SNS hospitais do SNS compatíveis com a natureza SNS compatíveis com os estatutos das SA e pelo regime
empresarial e pelo regime jurídico aplicável aos EPE jurídico aplicável ao sector empresarial do Estado
Descentralização de responsabilidades dos CA na definição, execução Descentralização de responsabilidades dos CA na Descentralização de responsabilidades dos CA na definição,
e avaliação da gestão hospitalar definição, execução e avaliação da gestão hospitalar execução e avaliação da gestão hospitalar
Regulação
Autonomia administrativa e financeira sem autonomia patrimonial Autonomia administrativa, financeira e patrimonial Autonomia administrativa, financeira e patrimonial
(com aprovação governamental)
Os funcionários mantêm as regras da Administração Pública. A Os funcionários mantêm as regras da Administração Os funcionários mantêm as regras da Administração Pública.
admissão de novos profissionais baseia-se nas normas do contrato Pública. A admissão de novos profissionais baseia-se A admissão de novos profissionais baseia-se nas normas do
individual de trabalho nas normas do contrato individual de trabalho contrato individual de trabalho
MS ou ARS (através da delegação de competências) fiscalizam MS ou ARS (através da delegação de competências) MS ou ARS (através da delegação de competências)
aspectos relacionados com o desempenho, organização, orçamentos, fiscalizam aspectos relacionados com o desempenho, fiscalizam aspectos relacionados com o desempenho,
cessão de actividades organização, orçamentos, cessão de actividades organização, orçamentos, cessão de actividades
148
Tiago Correia
Como se constata, a Lei n.º 27/2002 introduz princípios inequívocos da NGP no sector
hospitalar público português, alterando inclusive a concepção do “tradicional” SPA. Esta
convergência regista-se sobretudo ao nível da descentralização de competências de gestão
para o espaço das organizações. Aos CA cabe a concepção, a implementação e o controlo
da actividade hospitalar, passando a adquirir competências em matérias que anteriormente
eram definidas pelas instâncias de regulação regionais – ARS – ou centrais – MS. Apesar
de no SPA se manter alguma dependência em relação ao papel das ARS, sobretudo na
definição de matérias como a actividade contratualizada, os indicadores de desempenho e
as políticas de recursos humanos para os hospitais da região administrativa, o nível
organizacional ganha maior centralidade na gestão dos hospitais.
114
Sobre a constituição dos departamentos médicos, não existe um modelo único aplicável. Embora
o principal critério de organização dos departamentos seja em função das especialidades médicas, a
sua concretização em cada hospital associa a proximidade científica entre as diferentes valências à
própria organização característica do hospital. De referir ainda que apesar da constituição de cada
departamento pressupor a existência de um director de departamento nomeado pelo CA (cf.
Decreto-Lei n.º 188/2003) entre os directores de serviço dos serviços constituintes dessa unidade
orgânica, a tradicional figura dos directores de serviço não se dilui nas funções e responsabilidades.
Mantém-se em tudo igual àquilo que são as atribuições e autonomia dos directores de serviço num
hospital SPA, até mesmo a própria designação “o meu serviço” referida num ponto prévio desta
discussão. Com a presença de um director de departamento, a única diferença reside na existência
de órgão intermédio de gestão responsável pela centralização dos mais variados aspectos de gestão
corrente desse departamento. Cada director de serviço mantém uma preponderância técnica e de
gestão física, patrimonial e de recursos humanos do serviço que dirige (notas do diário de campo).
Outra alteração que decorre da constituição de departamentos médicos é a existência de um gestor
de área que funciona como um ponto intermédio entre a gestão centralizada do CA e o
funcionamento de cada departamento e serviços integrantes. Embora traga a gestão para a
linguagem médica e se reconheça a sua presença no quotidiano do trabalho médico, a sua função
149
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
150
Tiago Correia
151
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Quadro 3.3. – Contabilização dos prestadores hospitalares em Portugal Continental (2008) 116
Prestadores hospitalares
SPA EPE Total
Hospitais 28 15 43
Hospitais incluídos em Centros Hospitalares 14 45 59
Total de hospitais 42 60 102
Fonte: MS
No seguimento do que foi dito, a actividade hospitalar no quadro da NGP processa-se por
uma dupla contratualização: entre a tutela e o hospital e entre o hospital e os seus serviços
constituintes. A contratualização representa uma relação contratual entre duas partes onde
se estabelece previamente a actividade a prestar (dando alguns exemplos: demora média de
internamento; tempo médio de espera para cirurgia; taxa de re-internamento; número de
consultas; taxa de óbito) prevendo-se, em função disso, os respectivos pagamentos. Trata-
se de uma forma de delegação da actividade, tanto do poder central para o CA de cada
hospital, como dos CA para os serviços/departamentos médicos.
116
Esta análise reporta-se apenas ao território continental devido às especificidades da gestão dos
prestadores hospitalares nas regiões autónomas. Nas ilhas, embora os estatutos jurídicos aplicados
sejam os mesmos vigora um documento legislativo de âmbito regional que define os estatutos dos
Serviços Regionais de Saúde da Madeira e dos Açores, criando especificidades na prestação,
regulação e financiamento dos cuidados (vd. Decreto Legislativo Regional n.º4/2003/M para a
região autónoma da Madeira e Decreto Legislativo Regional n.º 2/2007/A para a região autónoma
dos Açores).
152
Tiago Correia
transparência associada à NGP (por exemplo, nos sites dos hospitais é possível encontrar
orçamentos e alguns indicadores de desempenho para consulta pública) os processos de
nomeação – dos CA e das chefias intermédias – não permitem um escrutínio público
rigoroso quanto aos seus pressupostos e argumentos, sendo uma esfera sobrepolitizada e
infrasocializada.
0
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
Fonte: MF, 2001, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2008
153
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Administração Central dando conta de uma aparente diminuição de gastos por intermédio
das mudanças analisadas.
Figura 3.2. – Evolução dos gastos orçamentados para o SNS (2002-2009): valores em milhões de Euros
9000
8000
7000
6000
5000 SA/EPE/PPP
4000 SPA
3000
2000
1000
0
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
Fonte: MF, 2001, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2008
Posto isto, é com alguma clareza que se comprova o argumento de maiores custos
do sector da saúde no contexto das mudanças associadas ao processo de empresarialização,
embora inscritas em rubricas que saem das contas directas do SNS. Isto, apesar da
expectativa contrária com estas alterações e de não terem sido tornados público casos de
uma responsabilização efectiva dos gestores.
154
Tiago Correia
salvo casos grosseiros de negligência. Outras formas de controlo, como por exemplo o
controlo biométrico (assiduidade) foram genericamente boicotadas por todo o país sem que
os gestores tenham apresentado formas de repressão a esses comportamentos dos
profissionais. O locus de influência profissional continua a ser, como no passado, a figura
do director de serviço. Existe, contudo, uma forma de responsabilização dos médicos por
via da sua consciencialização. Ou seja, através da introdução de instrumentos
informatizados, é hoje possível ao médico ir vendo o custo dos mais variados
procedimentos e escolhas: desde os medicamentos até às análises clínicas. A expectativa
por parte dos gestores é criar, assim, uma maior consciencialização do valor que cada acto
médico representa para o SNS.
Racionalização de gastos
155
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
156
Tiago Correia
157
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
apenas em complementaridade com o Estado, nas zonas em que este se demite ou deixa em
aberto (pense-se novamente no caso dos meios complementares de diagnóstico e
terapêutica), mas em concorrência directa com o próprio SNS. Concorrência que acaba por
ter manifestações mais significativas na captação de recursos humanos. Ponto três: a
distinção entre privatização e empresarialização, sendo o segundo termo o mais adequado
para caracterizar a tendência de fundo que se tem assistido na saúde em Portugal até
recentemente, e que significa tornar o bem público gerível como se de um bem privado se
tratasse.
117
Dada a inexistência de estatísticas oficiais sobre a natureza dos vínculos dos trabalhadores
afectos ao Ministério da Saúde (após consulta do site http://www.recursoshumanos.min-saude.pt/
acedido a 25 de Outubro de 2008), veja-se os dados apresentados por Santos (2003), o qual refere
que de 2000 a 2002 houve um aumento global de 88% nos contratos a termo certo e de 52% nos
contratos de prestação de serviços, sobretudo por acréscimos significativos no Ministério da Saúde,
na Administração Central e Local. Embora estes dados não dêem conta da especificidade do sector
da saúde, nem da representatividade destes aumentos na globalidade de trabalhadores, além de
correrem o risco de não reflectirem a realidade actual, permitem confirmar a tendência generalizada
de reconfiguração dos vínculos para a administração pública.
158
Tiago Correia
Esta é uma situação que, embora com implicações distintas, se tem apresentado
tanto para médicos, como para enfermeiros e para técnicos nas áreas das tecnologias de
saúde. Os mesmos autores dão conta em que medida a atomização das relações laborais
envolve maiores níveis de incerteza, tanto para os profissionais, como para o sindicalismo
e para o próprio SNS. A incerteza para os profissionais é facilmente reconhecível, dado
que os saberes detidos passam a funcionar como um dos principais recursos de poder –
senão o principal – na relação entre oferta e procura do mercado de trabalho. No caso dos
médicos, a escassez de profissionais em relação às necessidades do mercado de trabalho
tem significado que os vínculos laborais individualizados acabam por se revelar
potencialmente mais vantajosos no plano individual, do que as condições propiciadas pela
carreira profissional. Este não é, contudo, um aspecto uniforme entre a profissão, havendo
especialidades que registam maiores carências de profissionais do que outras (como é o
caso de médicos anestesistas). Mais flagrante é a situação vivida entre as restantes
profissões que, mesmo com uma forte oposição sindical – e da Ordem no caso dos
enfermeiros –, com mobilizações significativas em greves gerais e manifestações, o
excesso de profissionais em relação à procura tem-se traduzido em contratos individuais de
trabalho com condições menos vantajosas do que as regras vigentes para as carreiras
profissionais. Situações como a remuneração mais baixa, a prevalência de vínculos de
curta duração (e.g. de 3 meses a 1 ano), o trabalho em regime de prestação de serviços,
além de outros problemas decorrentes da não atribuição de tempo para formação
profissional são alguns dos exemplos daquilo que hoje em dia representa uma tendência
cada vez mais representativa nas modalidades de contratação para o sector público.
Uma das implicações fundamentais desta abertura da gestão dos serviços públicos ao
domínio científico da gestão situa-se ao nível da exposição dos serviços públicos às regras
concorrenciais do sector privado. A ideologia de base é que a prestação de serviços
públicos tende a ser mais eficiente e racional com a concorrência entre prestadores
159
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
públicos e entre prestadores públicos e privados (Ferlie, et al, 1996). Convocando uma vez
mais a reflexão de Santos (1987: 24 – 5), estas mudanças na intervenção pública estão
associadas à discussão das racionalidades desenvolvida por Max Weber. Nesta óptica,
enquanto a acção dos Estados nas sociedades capitalistas modernas seguiu princípios da
racionalidade burocrática, traduzindo-se num maior enfoque sobre o controlo normativo
das actividades, os actuais processos de mudança em causa dão conta que essa
racionalidade se articula cada vez mais com os resultados (outputs) outrora circunscritos à
racionalidade capitalista do sector empresarial.
A mais directa consequência que esta realidade representa para o SNS prende-se
com o argumento já referido de maior incerteza. Abre-se, assim, a possibilidade para uma
diferenciação interna num sector construído com base em princípios de uniformização dos
cuidados prestados. Sendo variável a capacidade negocial de um hospital pela captação de
recursos humanos (em função por exemplo do orçamento disponível), há a possibilidade de
se esvaziar em qualidade alguns prestadores públicos para outros prestadores públicos mais
competitivos e mesmo para o sector privado. O paradoxo é bem evidente: como pode um
hospital público já com uma dotação sub-orçamentada competir por manter um
profissional cobiçado pelo sector privado? Deixá-lo sair pode traduzir-se a prazo num
esvaziamento dos níveis de qualidade técnica e científica que caracterizou a construção do
SNS; consegui-lo manter pode prejudicar toda a uma gestão pensada em dar resposta à
totalidade do hospital e não apenas canalizada para a gestão de talentos e para a imagem de
excelência.
160
Tiago Correia
Foi referido que a empresarialização deve ser compreendida enquanto processo de sentido
amplo, em que os princípios da descentralização de competências, da alteração do
financiamento e do modelo de responsabilização dos profissionais, da racionalização dos
gastos, da desregulação do mercado de trabalho e da tendencial diferenciação interna ao
sector público têm uniformizado a actividade pública pelo direito privado (vd. por
exemplo, os Decretos-Lei n.º 135/96; 284/99; 374/99; 558/99; 39/2002).
118
A medicina popular emergindo, tal como a medicina privada, da sociedade civil não adquire o
mesmo grau de reconhecimento pela medicina estatal. Santos (Ibid.: 66) define-a como uma
medicina “que, não sendo estatal, é total ou parcialmente desmercadorizada ou que, sendo
privada e produzida na sociedade civil, é de produção livre ou artesanal”, não se inserindo nas
lógicas concorrenciais do mercado.
161
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Em primeiro lugar, contudo, é necessário ter em conta que o facto de se dizer que a
actuação pública se processa em torno da salvaguarda de interesses comuns não define o
que se entende por interesse comum. Trata-se de um princípio orientador da acção política
envolto numa elevada indefinição e variabilidade em função das representações partidárias.
A questão fundamental é que colocar agentes privados (exceptuando o sector social e
voluntário) a desempenharem funções públicas ou actividades de interesse público tem por
162
Tiago Correia
Perante isto, e sabendo que a definição dos modos de produção de saúde serve para
enquadrar a deambulação teórica sobre a prestação de cuidados de saúde, está em causa
saber se o contexto político que esteve na base da conceptualização de Boaventura de
Sousa Santos sofreu alterações substantivas de tal ordem que atingiu o nível de abstracção
onde os modos de produção de saúde se situam.
163
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
princípios da NGP, tem-se operado por via da actuação do sector público com base nas
regras concorrenciais de mercado, tal como as empresas privadas:
as tendências de fundo neste domínio afirmam uma sujeição da generalidade das empresas
públicas às normas de concorrência e a necessidade de afastar quaisquer distorções da
concorrência especialmente emergentes do conteúdo e forma das relações entre o Estado e
outros entes públicos e as empresas públicas que controlam. (Decreto-Lei n.º 558/99: 9013)
164
Tiago Correia
165
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
de saúde capitalista não se pressupõe que a actividade de prestação de saúde envolva esses
princípios, ainda que não estejam necessariamente excluídos. Em termos conceptuais estas
distâncias não são negligenciáveis, representando diferentes concepções dos objectivos que
estão por detrás da produção de cuidados. A discussão deve, por isso, centrar-se em saber
quais serão as implicações da conjugação da mercadorização da saúde pública com o
interesse público.
Com efeito, estas alterações revelam que o actual panorama da prestação pública de
cuidados em Portugal, apesar de bem mais recente do que na generalidade dos países
europeus, difere em relação àquele em que Boaventura de Sousa Santos se baseou quando
em 1987 avançou com uma delimitação dos modos de produção de saúde. Segundo a sua
proposta, o modo de produção de saúde estatal seria assegurado por prestadores públicos,
segundo uma actividade total ou parcialmente liberta da mercadorização. A partir da
análise efectuada no plano legal foi possível constatar que tanto nos hospitais EPE como
nos hospitais do SPA (dado que actualmente não existem hospitais SA) coexistem lógicas
de outros modos de produção de saúde que não o estatal. Assim, embora este tipo ideal
contemple uma desmercadorização parcial da produção de cuidados, o argumento aqui
defendido é a crescente e significativa mercadorização de toda a actividade hospitalar
pública. Trata-se de uma mercadorização transversal a todos os modelos jurídicos e não
característica de um ou outro modelo. Por isso, e perante o que tem sido a experiência do
processo de empresarialização em Portugal, por modo de produção de saúde estatal
166
Tiago Correia
167
Tiago Correia
“sem eles (…) não há empresarialização que nos valha” dá conta dos perigos
associados aos desvios organizacionais e da importância conferida à actuação convergente
dos profissionais de saúde. Por outro lado, o significado implícito nesta ideia é que mais do
que o modelo, o resultado das alterações jurídicas e organizacionais dos hospitais depende
da aceitação e envolvimento dos profissionais.
169
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Friedberg, 1977).119 Sistema que por estruturar a acção do mesmo modo que por ela é
estruturado coloca a exigência de uma abordagem capaz de analisar em relação dois níveis
analiticamente autónomos: a organização e o indivíduo. Se o primeiro sem o segundo não
permite a conceptualização da contingência nos resultados organizacionais, sabendo-se que
as dinâmicas dos hospitais não são necessariamente transponíveis entre si, o segundo sem o
primeiro deixa em aberto espaços de acção que devem ser contextualizados nos seus
limites e possibilidades.120
119
É relativamente abrangente a teorização das organizações dedicadas, tanto a noções sistémicas
(e.g. Katz e Kahn, 1966, ou o próprio Parsons, 1956, para quem as organizações constituindo
subsistemas da sociedade apresentam as mesmas propriedades dos sistemas sociais) como
contingenciais (e.g. Burns e Stalker, 1961; Lawrence e Lorsch, 1967). Neste sentido a referência
explícita e circunscrita a Crozier e Friedberg (1977) justifica-se por se apresentar como um modelo
de teoria social não necessariamente preso aos processos organizacionais. Mais do que uma
sociologia das organizações, os autores referem que a sua proposta é sobre a acção organizada.
120
Perspectiva que, indirectamente, acaba por resolver o debate na teoria organizacional sobre as
múltiplas vertentes dos conceitos de clima e de cultura organizacional (para uma síntese ver
Neves, 2001).
170
Tiago Correia
Constrangimentos externos
Influência política directa Influência política indirecta
• Nomeação ministerial do presidente do CA do • Políticas económicas e fiscais (e.g. idade da
hospital reforma, orçamento para o SNS)
• Aprovação ministerial anual da actividade hospitalar • Competição entre o sector público e entre o
e orçamento (quanto é feito e quanto custa) sector público e o sector privado
121
Vd. Anexo A sobre as principais categorias classificatórias dos hospitais públicos portugueses.
Em rigor, não significa que todos os hospitais pertencentes à mesma categoria classificatória
apresentem as mesmas valências, dado que a sua existência depende de outros factores como a
dimensão geográfica da área de cobertura dos hospitais e a proximidade de outros hospitais.
171
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
como se pode observar no excerto abaixo transcrito, é clara a função detida, o que mais
tarde irá justificar o conjunto de processos aí identificados:
O [hospital] sempre teve essa história: foi o hospital dos tuberculosos, foi o hospital da sida,
pronto, agora é o hospital dos transplantes (…) (Internista, AB1)
(…) os hospitais não evoluíram muito em termos de autonomia. Mesmo os EPE hoje têm
uma série de limitações que lhes são impostas pelo poder político na sua gestão corrente, e
isso diminui-nos muito o nosso espaço de manobra. (Gestor, membro do CA – AG2)
A centralidade política faz-se sentir, desde logo, pela indicação ministerial dos
presidentes dos CA dos hospitais. Por se tratar de cargos ocupados por nomeação, a relação
entre o poder político – na figura do ministro da saúde – e as equipas de gestão baseia-se
principalmente em critérios individualizados, de acordo com o perfil pretendido do
presidente e os objectivos traçados politicamente para cada hospital:
O motivo porque entrei [neste hospital foi] um convite do ministro de então que evocava
uma certa instabilidade neste hospital e uma certa dificuldade em definir o seu futuro, para
além dos problemas internos que havia. E achava que eu era a pessoa adequada para, dizia
ele: “pacificar o hospital, tranquilizar e definir-lhe um rumo...” Foi por isso que ele me
convidou e foi também foi por isso que eu aceitei. (…) tenho que lhe agradecer, ele achava
que não me devia pôr na rua com uma mão à frente e outra atrás, derrotado... portanto, ele
achou que me devia convidar para uma outra coisa (Gestor, membro do CA – AG2).
122
É importante reiterar que a convocação deste raciocínio de Henry Mintzberg tem de ter em conta
que os seus contributos foram pensados para dinâmicas específicas do funcionamento intra-
organizacional, enquanto aqui estão a ser referidos processos entre a organização e a sua
envolvente.
172
Tiago Correia
quando um presidente do CA é convidado para um lugar desses deveria vir com uma carta de
missão, ou seja, devia vir a saber o que é que se perspectiva para este hospital: “eu quero que
tu vás para lá para preparares o hospital para ser EPE”, ou “eu quero que vás para lá para
preparares o hospital para ele ser integrado num centro hospitalar” ou “eu quero que vás para
lá para preparares o encerramento do hospital daqui a 3 dias ou daqui a 3 anos” ou “eu quero
que tu vás para lá para converteres o hospital num hospital de cidade. (…)” Agora, isso não é
feito, muitas pessoas vêm para cá para gerir o hospital, para fazer, para tratar doentes, para o
pôr mais eficiente. Mas tem de se saber qual é o futuro, e obviamente que esta navegação à
vista e estas perturbações depois dos rumores, do diz que disse, do vem hoje um a dizer que
é centro hospitalar, o outro que vocês vão sair e vão fechar, o outro que quer hospital de
cidade... Se for para o hospital continuar é uma questão, se for para o hospital fechar é outra
e portanto o CA deveria saber exactamente qual é a missão, que não sabe... portanto, isso
logo à partida condiciona muito tudo aquilo que se pudesse fazer, porque estamos sempre
nos “ses” e no “if” e no “talvez” (…). (Gestor, membro do CA – AG1)
Portanto, mais do que estar em causa aquilo que Mintzberg (1992) identifica como
a “descentralização selectiva” – uma descentralização de tipo formal da matéria de decisão
a ser delegada em níveis hierárquicos mais baixos –, ganha evidência outros processos.
Existe uma selectividade no conteúdo da autonomia delegada aos hospitais, o que, como se
viu, prende-se com matérias relativas à gestão financeira patrimonial e de recursos
humanos. Contudo, os condicionalismos decorrentes da presença política, a par de outros
que serão discutidos, afectam de uma forma substancial os resultados organizacionais.
Assim sendo, dado que por descentralização se entende a delegação da capacidade de
decisão, conclui-se que esta não é verificada em toda sua plenitude, principalmente por o
hospital ter que responder às matérias exigidas por um regulador: (1) é o Estado quem
aprova o orçamento do hospital (em contrato-programa) e; (2) qualquer gasto suplementar
por parte do prestador tem que ser comunicado ao regulador.
173
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
todas as decisões que tomámos foram remendos que introduziram mais racionalidade no
hospital, diminuição de camas, encerramento de enfermarias que estavam com condições
muito degradadas para os doentes….tudo isso é positivo, não é? (Gestor, membro do CA –
AG2).
durante muito tempo toda a contratualização que era feita era sempre com aumentar,
aumentar, aumentar a actividade. Tudo! Em todas as linhas de actividade e, na minha
perspectiva – e já há uns anos que eu digo isso – não se pode continuar a aumentar a
actividade com os ritmos de crescimento que se preconizavam no antigamente porque o
ponto de partida já não tem nada a ver... e mais, os recursos são cada vez mais escassos e
portanto fazer mais com menos é possível enquanto há muito desperdício mas depois quando
se atinge uma determinada, um determinado nível, começa a não ser possível... portanto,
quando a ARS quer contratualizar connosco mais consultas numa área onde eu tive três
174
Tiago Correia
médicos reformados num ano e mais um exonerado que foi para o privado, é logo evidente
que eu não vou conseguir. É evidente que a tutela tem de conseguir entender isto (…)
(Gestor, membro do CA – AG1).
Sem que seja possível aceder a esta informação de forma sistemática, o que exigiria
um conhecimento descriminado dos orçamentos anuais de todos os hospitais públicos, as
notícias que vão dando conta que os hospitais empresa (EPE) apresentam gastos
orçamentais significativos ilustram precisamente o problema apresentado no excerto
anterior.123 Aliás, recordando conclusões da análise à figura 3.2., desde 2005 que se regista
um acréscimo significativo da despesa absoluta do MS, com uma maior componente de
gastos para os hospitais incluídos em novos modelos de gestão (SA, EPE, PPP) que não
entram para os gastos directos do orçamento do MS.
123
Por exemplo, na edição de 16 de Agosto de 2010 da Agência Financeira, é dado conta do
aumento significativo da dívida geral dos hospitais ao sector farmacêutico.
175
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
transponível para todos os hospitais EPE. Como se percebe, sendo a gestão hospitalar de
hoje mais descentralizada do que no passado, é possível assistir a diferenças significativas
no modo como os hospitais públicos são geridos e, consequentemente, nos resultados de
gestão financeira e de recursos humanos alcançados. A questão deve, por isso, ser vista em
termos dos desafios que a gestão hospitalar de hoje tem que lidar. Uma preocupação
política constante sobre a actividade hospitalar, associada a uma crescente atenção pública
e mediática – o que por si só denota traços do carácter hospitalocêntrico do sistema de
saúde português –, num contexto restritivo sobre o financiamento estatal do sector da saúde
e onde se confere um aumento das responsabilidades aos órgãos de gestão, coloca o
hospital sob a influência de diferentes interesses e objectivos, alguns deles difíceis de
compatibilizar.
A área de recursos humanos em termos de sector público e administrativo puro e duro está
completamente fechada a tudo o que é a regulamentação (...). Na administração pública há
uma regra de há uns anos a esta parte que diz: saem dois só entra um, nos hospitais na minha
perspectiva isso não é possível, não pode, porque os hospitais são as pessoas, por muitas
máquinas que se ponham cá, por muito que se aumente a produção, não dá. (…) e, lá está,
com as restrições que temos legais não dá para, para fazer muito. (…) Se eu estou a aumentar
a minha actividade como é que eu posso dizer que sai um médico mas eu só preciso de
meio?, não posso… (Gestor, membro do CA – AG1).
Ora, com os novos modelos de gestão os gastos com recursos humanos tendem a
assumir partes importantes dos respectivos orçamentos, acabando por agravar uma situação
orçamental que, por si só, já colocava grandes desafios à gestão hospitalar. São vários os
motivos que estão na base dos referidos gastos com recursos humanos. Em primeiro lugar,
outras influências políticas gerais à administração pública, além daquelas de natureza mais
directa sobre os CA. É o caso da alteração das regras de reforma que, de forma transversal
ao sector público, tem originado uma procura de reformas antecipadas. Também a este
nível a medicina revela contornos paradigmáticos. Uma conhecida escassez de
profissionais em relação à procura necessária, a par de uma idade média envelhecida entre
estes profissionais, tem originado situações de efectiva pressão sobre as unidades de saúde.
176
Tiago Correia
Há muita gente a sair por envelhecimento dos profissionais, pelas novas normas de reforma,
pelas penalizações que as pessoas têm se ficarem mais um ano, as pessoas preferem ir, “ah,
eu prefiro ir já este ano porque só levo 4% de penalização, se eu não for este ano para o ano
tenho de ficar cá mais 5 e não sei se vou levar os 4% da penalização porque mais 5 anos, está
tudo a mudar, eu não sei, portanto eu prefiro ir agora”. Portanto, isto tudo causa uma enorme
entropia nas dinâmicas organizacionais (Gestor, membro do CA – AG1).
124
Na edição de 18 de Setembro de 2010 do semanário Expresso, refere-se que a média anual de
reformas dos médicos (cerca de 300) já foi ultrapassada só nos 10 primeiros meses de 2010 (416).
Além disso, é um dado significativo da reportagem que em consulta ao Diário da República, se
tenha chegado à conclusão que a maioria de pedidos de reforma acontece da parte de médicos de
especialidades hospitalares e não de médicos de clínica geral da rede de cuidados de saúde
primários.
177
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
mas vou... ou vou para a concorrência porque me oferecem mais €2000... e, portanto, aqui
vocês o que é que me podem oferecer?” e eu digo “nada Sr. Dr., aquilo que lhe ofereço
sempre, as condições de trabalho que tem, o ordenado que tem, não posso oferecer-lhe mais,
não tenho como” (Gestor, membro do CA – AG1)
É importante ter em conta que esta situação não tem sido residual no sector
hospitalar público português. Nessa investigação referida, chegou-se à conclusão que além
dos novos profissionais serem contratados por contratos individuais de trabalho, está
instituído um princípio de diferenciação de remuneração, em função da entidade
empregadora e das necessidades de mercado desses conhecimentos técnico-científicos. Foi
nesse sentido que os autores defenderam a ideia de mercadorização dos expertises, dado os
saberes detidos constituírem o principal elemento de diferenciação na capacidade de
negociação contratual. Veja-se outro excerto onde estas dinâmicas ganham mais
clarividência:
125
É o caso concreto da proposta de projecto-lei do Ministério da Saúde sobre as carreiras especiais
de enfermagem e medicina, onde, em todo o caso, não é especificado as regras para a definição
salarial (Anexo B).
178
Tiago Correia
É histórica a relação próxima que em Portugal foi existindo entre a esfera pública e
a esfera privada na prestação de cuidados de saúde (e.g. Ferreira, 1990; Carapinheiro e
Page, 2001). É o caso das Misericórdias e, mais recentemente, com a institucionalização do
SNS, o duplo estatuto profissional permitido aos médicos, acumulando ao seu vínculo
público as respectivas actividades liberais.127 Além disso, há que destacar o papel de
sectores de actividade específicos, como os meios complementares de diagnóstico e
terapêutica, que sempre pertenceram a prestadores privados e cuja actividade contribuiu
significativamente para a melhoria dos resultados da saúde pública (Carapinheiro e Pinto,
1987; Campos, 2008).
126
Cf. Lei n.º 12-A/2008 os vínculos possíveis para a administração pública podem ser por
nomeação, definitiva ou transitória e por contratos, por tempo indeterminado, por termo resolutivo
certo ou incerto e contratos de prestação de serviços.
127
Como Ferreira (1990) salienta, o surgimento das Misericórdias em Portugal segue uma base
semelhante à encontrada em Itália. Tratam-se de instituições cívicas de base cristã, embora de
carácter laico decorrentes de um contexto social e militar adverso, agravado por uma degradação
acentuada e generalizada das condições de vida e de saúde da população. Fortemente apoiadas pelo
poder régio de então (D. João II e D. Leonor), as misericórdias continham um conjunto de deveres
sociais financiados por doações, rendas, ofertas e subsídios régios. O papel social e caritativo das
misericórdias acaba por se enraizar também nas colónias do Império Português de então, influência
que ainda hoje se faz sentir na concepção dos cuidados de saúde (Vd. Sanglard, 2007 para o caso
brasileiro).
179
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
o SNS por definição tem que dar cobertura total aos cuidados de saúde, isso está estabelecido
em termos da legislação desde a Constituição da República, à Lei de bases da saúde, ao
estatuto SNS, está sempre na vertente da cobertura universal, não só da população, mas dos
cuidados de saúde. O privado não faz isso, o privado no fundo começou por se posicionar
180
Tiago Correia
onde havia mais fragilidades no público, foi aí que eles começaram a actuar, que tinha
essencialmente a ver com cirurgias, com áreas cirúrgicas, com as especialidades cirúrgicas.
Depois foram naturalmente evoluindo mais numa componente ambulatório quando havia
também muitas listas de espera para consultas de especialidade e, portanto, acho que de facto
neste momento como a concorrência é maior, os próprios hospitais privados estão a criar, a
ter que criar dinâmicas diferentes, não é? Porque já não basta estarem posicionados aonde
havia essas falhas de mercado…mercado entre aspas… (Gestor, membro do CA – AG1).
Um aparte deve ser aqui feito para destacar a própria linguagem utilizada por este
gestor na referência que faz à prestação de cuidados. Primeiro considera que em causa
estão mercados de actuação, corrigindo-se em seguida dizendo: “mercado entre aspas”.
Ora, o que isto denota é que não obstante os condicionalismos ideológicos próprios à
actividade pública que atrás se referiram, fazendo-se cumprir direitos inscritos na
Constituição da República Portuguesa, a actividade hospitalar moderna assemelha-se a
qualquer outro tipo de actividade de tipo empresarial. Aquando da discussão sobre a
evolução da legislação nacional no sector da saúde, foi a isto que se referiu como sendo a
convergência das regras do sector público ao direito privado. Aliás, importa não esquecer
que a gestão hospitalar não está fechada a profissionais formados nessa área profissional,
dado que apenas é referido que a nomeação do presidente do CA ocorre por nomeação do
ministro da saúde (Cf. Decreto-lei n.º 188/2003). Por exemplo, ao interrogar um director de
serviço sobre a sua experiência com gestores de outros hospitais, afirma peremptoriamente:
Como lhe digo, o melhor gestor que eu tive veio da CP (…) foi o melhor homem, o homem
com mais visão sobre a saúde em Portugal dos que eu conheci. (Cirurgião, AA13)
A evidência que este excerto transmite é que, mesmo com especificidades inerentes
à actividade prestada, a gestão hospitalar moderna pode ser compatível com a gestão de
outros sectores de actividade. Além disso, e como se verá no capítulo seguinte, o próprio
percurso profissional dos gestores hospitalares tende a ser marcado por diversos vaivéns
entre o sector público e privado.
Estas dinâmicas apontam, então, para a ideia que à gestão hospitalar não é
necessariamente exigida a posse de um conjunto específico de conhecimentos técnicos
adaptado à realidade hospitalar, nem ao sector público em particular. Por um lado, o acesso
aos lugares do CA dos hospitais não está vedado a profissionais não gestores hospitalares.
Por outro, volta-se a salientar a tendencial proximidade da gestão pública a princípios
outrora circunscritos ao sector privado. A questão de fundo que hoje em dia se coloca é
que a complexidade organizacional que pauta as relações sociais no hospital, além da
181
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Numa anterior experiência de administração hospitalar, esta equipa entrou em funções num
hospital com um défice orçamental insustentável. Sendo um hospital SA de capitais públicos,
como tendiam a ser os hospitais públicos dessa altura, a justificação dada para essa situação foi a
presença de uma equipa de gestores vinda de outros sectores que não o hospitalar, sem qualquer
experiência para lidar com as suas especificidades. Como um gestor entrevistado refere: “o CA
teve o atrevimento de dizer para os botões deles <vamos crescer este hospital, vamos pôr aqui
um hospital mais evoluído>, sem perceber que a lógica dos hospitais não é uma lógica de
crescer com autonomia. Um hospital cresce em função das necessidades da sua população, não
é? Ou em função de serviços que já existam na comunidade e para onde nós devemos
referenciar os nossos doentes, não é?”(Gestor, membro do CA – AG2). Procedeu-se, assim, à
escolha de um conjunto de especialidades médicas sob critérios puramente empresariais que não
atendiam à particularidade da actividade hospitalar e à consequente contratação de profissionais
de referência para preencher essas áreas. O resultado foi um derrape financeiro, segundo o
entrevistado, causado por um crescimento em quantidade e nas área de diferenciação de forma
não articulada com o conhecimento e tradição do hospital, nem com os restantes prestadores
com quem os hospitais mantêm articulações necessárias na definição das suas actividades.
andei ali uns anos muito bem sem saber o que é que havia de fazer à minha vida porque, se
por um lado tinha vontade de me dedicar só ao transplante renal ... estava a deitar fora anos
em que também me dediquei à parte cirúrgica do transplante hepático. Depois quando o
[director de serviço] veio para cá eu acho que ele é que ajudou a finalmente ter coragem...
ele quase que me empurrou para ficar só com a renal, e isso foi um alívio enorme. Eu acho
que o nosso director [anterior] nunca me... cada vez que eu chegava para ir tomar, ele dizia:
“ah, não faças isso, é um disparate!” ... e mesmo os meus colegas: “não faças isso que depois
afunilas muito a tua área, a tua área cirúrgica...” O que é verdade. Se eu quiser sair daqui e ir
trabalhar para outro sítio, claro que posso ir trabalhar como cirurgião geral que é a minha
área de formação de base, não é?, mas a minha mais-valia é na área da transplantação renal e
182
Tiago Correia
dos processos vasculares e o trabalho que faço com os insuficientes renais. Há meia dúzia de
pessoas com este perfil, e há meia dúzia de cargos em Portugal, portanto, não tenho muita
facilidade em me mobilizar daqui para outro sítio qualquer. A minha área não é muito
competitiva em termos do mercado... eu costumo dizer na brincadeira – não tem muita graça
–, mas quando perguntam assim: “ah, mas porque é que tu não sei o quê... não vais trabalhar
para a privada? Só se for contratado por um cartel de colombianos para fazer transplantes
com dadores vivos aí numa esquina qualquer (riso)” De resto não é assim uma actividade
muito… comercialmente, muito viável, não é? (Cirurgião, AA7)
Um outro dado contido neste excerto diz respeito ao que se disse anteriormente
como sendo a presença da actividade privada no sector público. Mesmo com uma re-
introdução de carreiras profissionais, a presença de prestadores privados implica
necessariamente um contexto de competição por recursos. Neste caso a situação era
precisamente a inversa por o transplante renal não representar até agora um “mercado” de
interesse para os prestadores privados, o que deixava o entrevistado numa situação de
poucas alternativas de emprego fora deste serviço.
183
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Portanto, eu podia propor aos meus colaboradores ordenados diferentes que os atraíssem e
que não me fizessem perder pessoas... eu agora perdi, eu já perdi três cirurgiões (pausa)
formados por mim para o transplante...
Está inscrito no programa do governo a criação de centros de referência no SNS e é a única
maneira que eu vejo do SNS competir com os privados…não conseguem competir com os
privados nas instalações, no luxo, na tecnologia…Consegue competir com áreas de
diferenciação, em áreas que inclusivamente não interessam muito aos privados ou que por lei
não podem estar nos privados. O transplante não pode ser privado, é um sector público por
excelência e a cirurgia do fígado e a do pâncreas é muito cara. (Cirurgião, AA13)
Um último vector externo de pressão sobre a actividade dos CA dos hospitais diz
respeito ao associativismo profissional. Já Stoleroff e Correia (2008a, 2008b)
diagnosticaram que a descentralização de competências para o nível organizacional tinha
como principal consequência um maior enfoque da actividade sindical a esse nível, sem
que isso fosse à custa do tradicional locus de acção centralizado para a cúpula
governamental.
Você poderá dizer “ah mas por que é que os sindicatos de enfermagem, dos médicos não se
metem com o grupo Mello? Com o grupo da Luz?” Porque isso são peanuts. Vai para lá
quem quer, eles até têm ódio a quem vai para lá, os sindicatos, então não é? Ou então se não
têm ódio estão-se marimbando se é meia dúzia de casos... agora eles trabalham e actuam
forte e feio e em termos reivindicativos junto do grosso onde estão empregues os seus
sindicalizados que é no sector público, e portanto esta pressão brutal das ordens e dos
sindicatos sobre a gestão, ou melhor, sobre as políticas que os hospitais podem ter para a
gestão dos seus recursos humanos são fatais para um bom desempenho, e para a autonomia e
para a capacidade de desenvolvermos a nossa imaginação criativa em matéria de gestão, de
recursos humanos... (Gestor, membro do CA – AG2).
184
Tiago Correia
A questão não tem forma de ser respondida, nem tão pouco é esse o objectivo deste
trabalho, mas importa reflectir sobre as implicações destas determinantes externas ao
hospital para a própria prestação de cuidados de saúde. Como se verá mais adiante é
preciso pensar a relação medicina/gestão de uma forma bem mais complexa do que apenas
sob o ponto de vista do seu antagonismo. Além disso, não é certo que o profissionalismo
médico tenha sido ameaçado, pelo menos, no decorrer das alterações dos anos recentes.
Contudo, existem diferenças inequívocas sobre o modo como os cuidados de saúde estão a
ser prestados num contexto de pressões múltiplas. Essas pressões afectam de um modo
diferenciado as partes envolvidas: os gestores com pressões de ordem financeira e política
tendem a constranger a actuação dos profissionais, sobrecarregados com problemas
decorrentes da organização do trabalho e da falta de profissionais.128 O excerto que abaixo
se transcreve acaba por sintetizar as implicações destes factores no modo como a
actividade médica é desempenhada:
Actualmente, pronto, isso eu também percebo…nós temos metas a cumprir, temos objectivos
a cumprir, cada vez nos exigem mais os números…trabalha-se com números, pronto, nós
andamos…a primeira coisa que nós perguntamos a um doente é <com quem vive?>, porque
nós pensamos logo na alta. Temos que fazer cumprir aquelas médias de internamento.
Pronto, e porque há outros doentes à espera para entrar. (…) temos a noção que estão lá
doentes em baixo [na urgência] e às vezes dois e três dias numa maca à espera de ter cama
128
No decorrer da permanência no hospital várias conversas informais com diversos profissionais
convergem na ideia de falta de recursos humanos, sobretudo de enfermagem e de médicos nas
equipas de urgência. Este dado acabou por ser corroborado ao perceber a diminuição do rácio de
profissionais por doentes.
185
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
[no serviço]. (…) isto cria logo uma relação um bocado artificial com o doente (AB5,
Internista)
Posto isto, tendo-se comprovado que pelo lado das determinantes externas à
organização é confirmada a hipótese que as alterações no funcionamento dos hospitais
conduzem a uma diferenciação interna do sistema, não sendo possível transpor objectivos
uniformes entre as organizações e, consequentemente, esperar os mesmos resultados
organizacionais entre os prestadores públicos, analisam-se agora as determinantes internas
ao hospital. O objectivo é contribuir para um quadro interpretativo sobre a efectividade da
actuação da gestão hospitalar, agora por intermédio da sua relação com dinâmicas
intrínsecas ao próprio hospital.
186
Tiago Correia
Perceber o papel da medicina nos hospitais exige ter presente a evolução dos
hospitais modernos, e o modo como esta respondeu à profissionalização dessa profissão
(Cf. Coe, 1984). De acordo com as actuais condicionantes externas aos hospitais públicos,
parece estar em causa uma tentativa de redefinir as jurisdições profissionais, deixando que
os gestores hospitalares assumam toda a vertente de gestão não clínica. Como se viu, em
rigor, esta tendência de reforço das competências de gestão para os gestores hospitalares é
passível de ser identificada antes mesmo da intensificação da intervenção política no sector
da saúde situada a partir de 2002 com os marcos legislativos dos anos 80 que, por sua vez,
seguiram princípios de décadas anteriores. Contudo, é importante compreender que o papel
assumido pela gestão hospitalar nunca foi verdadeiramente de concorrência com o
profissionalismo médico. É ao actual contexto de financiamento do sector que se pode
apontar uma gestão hospitalar mais preocupada e restritiva, pelo que o reforço de
competências dos gestores hospitalares, mais do que um ataque ao profissionalismo
médico deve ser lido como a necessidade de reduzir a despesa pública.
Nós tentámos fazer com que as regras organizacionais sejam cumpridas. As regras
organizacionais que bebem muito da legislação, não é? Agora, às vezes é difícil serem
cumpridas por todos da mesma maneira (risos). (…) Acho que isso tem muito mais a ver
com o indivíduo, na sua decisão pessoal de ser ou não ser cumpridor, de fazer ou não, de
entender a regra e de se responsabilizar pela sua aplicação e obviamente que uma liderança
mais ou menos forte em termos de direcção de serviço que zele por esse cumprimento ao
nível dos profissionais que estão na sua alçada tem muito mais a ver com isso. (Gestor,
membro do CA – AG1)
187
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
A minha luta neste momento é dar dimensão ao hospital, fazê-lo integrar num centro
hospitalar. Eu já pensei que o melhor seria [ir] para os (…), depois pensei que era [para o
outro hospital] que nos fez uma proposta fantástica de colaboração no grupo hospitalar.
Houve dentro da administração sempre uma grande resistência sobretudo um dos directores
que lá esteve que queria manter o hospital isolado e pequenino e fazer um bocadinho de tudo
como nós fazemos. A saída dele foi benéfica, mas esta actual administração também está
com grandes dificuldades em vencer as resistências no [hospital]. Sou a única pessoa que
quer integrar o hospital num grupo hospitalar (Cirurgião, AA13)
(IV) A figura do director de serviço, naquilo que são os seus objectivos profissionais e a
posse dos capitais que lhe permite (ou não) a concretização desses objectivos.
129
O capítulo 9 será dedicado à questão das objectividades individuais presentes nas construções
simbólicas sobre a profissão e sobre os entendimentos que os profissionais têm de si no
desempenho desses papéis.
188
Tiago Correia
experiência os tinha prosseguido sempre nas organizações por onde passara, responde que
a sua missão é independente do hospital onde trabalha.
[N]este hospital? Aqui temos claramente menos disponibilidade dos médicos para as
questões de gestão. Diria até que nem entendem muitas vezes a importância de alguns
indicadores e a importância de uma intervenção clínica ligada à clinical governance.
Desvaloriza-se muito essa componente aqui. Eu diria que é como do dia para a noite
comparar a disponibilidade dos médicos, o conhecimento e a apetência pelas questões de
gestão com o comparar com o Hospital daquele lado [onde anteriormente exerceu o mesmo
cargo]. Cá? confesso-lhe que nunca tive sessões de trabalho desse tipo, apesar de fazermos
reuniões. Isso era feito em sessões duras mas em que as pessoas se disponibilizavam e
estavam presentes (…), isto é, as pessoas não se punham no papel de desdenhar, percebe?
(…) (Gestor, membro do CA – AG2)
Uma outra conclusão que se retira deste excerto é que a autoridade profissional da
medicina, decorrente da discricionariedade dos seus saberes, apresenta uma configuração
variável. Esta é uma ideia já inscrita no capital teórico acumulado sobre as dinâmicas
hospitalares, onde a clivagem é estabelecida sobretudo em termos da prática de ensino
universitário (Cf. Carapinheiro, 1993).130 Considerando, contudo, que os dois hospitais a
130
Numa reflexão retrospectiva sobre os percursos dos hospitais portugueses, Carapinheiro salienta
os processos divergentes que estiveram na base da constituição dos hospitais universitários e dos
hospitais gerais. Não obstante os segundos terem evoluído no sentido da aquisição de ensino
prático e teórico da medicina, permanece como traço distintivo marcante em relação aos hospitais
universitários a não existência de uma estrutura de ensino inserida na própria estrutura hospitalar
(para um aprofundamento desta evolução, vd. Ferreira, 1990).
189
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
que o gestor se refere inserem-se na tipologia apresentada por Carapinheiro como hospitais
gerais, as diferenças realçadas entre o profissionalismo médico e a concretização da gestão
hospitalar sugerem a existência de uma outra dimensão que ultrapassa a própria vocação
do hospital entre a assistência e o ensino. Neste caso, a explicação encontrada decorre
também de configurações históricas de cada organização e, por isso, intransponíveis entre
si. Onde este gestor diz ter encontrado um contexto mais propício da parte do saber médico
à concretização dos seus projectos de gestão refere-se a um hospital muito próximo, em
termos geográficos e institucionais, à unidade de ensino e de investigação porventura
dotada de maior reconhecimento nacional ao nível da gestão hospitalar. Aliás, conversas
informais mantidas não só com esse gestor, mas com os restantes membros do CA dão
conta de uma certa regularidade discursiva ao nível do cruzamento entre o ensino da gestão
hospitalar e sua aplicação naquele hospital, visto como um verdadeiro laboratório para os
trabalhos académicos desenvolvidos nessa Escola (in notas do diário de campo).
(…) 4000 Horas de enfermagem por pagar. Não representavam promessas, mas trabalho
executado e que não estava pago. Tivemos que começar o pagamento dessas horas e
contratámos 30 ou 40 enfermeiros para aliviar a falha de enfermeiros que era grande. É claro,
nós fizemos as contas, porque meter enfermeiros era mais barato do que estar a pagar as
horas extraordinárias…mas agora, isto foi um custo para a nossa administração (Gestor,
membro do CA – AG2).
190
Tiago Correia
Para concluir este ponto abre-se um pequeno parêntese para dar conta dos
resultados de gestão pretendidos e alcançados por esta equipa de gestão para este hospital
em concreto. Tendo-se comprovado a contingencialidade interna e externa à actuação da
gestão hospitalar, o objectivo com esta súmula é tão-somente dar conta dos contornos
possíveis do âmbito de actuação da moderna gestão hospitalar. O leitor teve já contacto
com as determinantes gerais que influenciam as dinâmicas da gestão hospitalar. Com a
informação abaixo apresentada obtém agora uma interpretação da gestão hospitalar num
contexto específico e, por isso, não generalizável. o propósito é evidenciar como aquelas
determinantes se reflectem no estudo de caso em análise.
191
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
192
Tiago Correia
A hipótese que se pretende testar neste ponto diz respeito à crescente diferenciação
interna da profissão médica decorrente dos imperativos associados à NGP. Não sendo um
dado novo falar na diferenciação médica (e.g. Freidson, 1970, 1986), a pertinência desta
discussão reside no facto de serem factores externos à profissão os principais responsáveis
por estes processos sem que, contudo, esteja em causa um ataque ao profissionalismo
médico. Recordando em traços gerais, por profissionalismo entende-se a capacidade para
as profissões controlarem os termos, os conteúdos e as condições do seu trabalho sem a
interferência de outras actividades (Cf. Johnson, 1972). Neste sentido, mais do que se falar
da diminuição do profissionalismo médico em determinadas especialidades – por
intermédio da gestão hospitalar –, o que se vai comprovar é a existência de processos não
transversais à profissão médica responsáveis pelo reforço do seu profissionalismo em
determinadas áreas.
193
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
131
Mantendo a terminologia original do autor.
194
Tiago Correia
de uma estrutura descentralizada, quer vertical (vários níveis hierárquicos de decisão), quer
horizontal (especialização em várias áreas de conhecimento), sendo que o fluxo decisional
tende a ser de sentido ascendente, portanto, do centro operacional até ao topo estratégico.
Quer isto dizer que, dada a presença do profissionalismo, tende a haver nas burocracias
profissionais uma delegação formal de competências para os níveis mais baixos da
organização, a par de processos informais de delegação entre os mesmos níveis da
estrutura hierárquica (o caso de dois médicos de dois serviços médicos distintos). Por
último, em termos do seu ambiente de actuação, Mintzberg faz uma distinção no caso
específico dos hospitais, referindo que, em função da investigação científica realizada,
podem assumir características das adhocracias, com ambientes complexos e dinâmicos. No
caso das actividades médicas de natureza rotinizada e de baixo grau de diferenciação, os
ambientes de actuação tendem a ser os complexos e estáveis.132
Quadro 3.5. – Traços característicos dos hospitais enquanto burocracias profissionais divisionalizadas
Burocracia Profissional Burocracia profissional Estrutura
divisionalizada Divisionalizada
(Hospital empresarializado)
Principal mecanismo
Estandardização das Estandardização das Estandardização
de coordenação da
qualificações qualificações e dos resultados dos resultados
actividade
Componente-chave Linha hierárquica (controlado
Centro operacional Linha hierárquica
da organização pelo centro operacional)
Planeamento e
Reduzido Elevado Elevado
controlo
Descendente mas Descendente mas
Fluxo decisional Ascendente
autonomizado autonomizado
Forma de
Horizontal e vertical Vertical e limitada Vertical e limitado
descentralização
Estável, com
De complexo e estável a Dinâmico e complexo e com
Ambiente mercados
complexo e dinâmico mercados diversificados
diversificados
Pressão Profissionalismo Profissionalismo balcanizado Balcanização
Elementos de
Funcional e por mercado Funcional e por mercado Mercado
organização
Adaptado de Mintzberg (1979, 1992)
132
Para uma discussão mais aprofundada sobre estas dimensões, remete-se para o trabalho de
Mintzberg (1979, 1992).
195
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
quanto à introdução de características típicas daquilo que Mintzberg (1979, 1992) definiu
por estruturas divisionalizadas. Como se pode observar no mesmo quadro, as diferenças
entre as estruturas divisionalizadas (coluna à directa) e as burocracias profissionais (coluna
à esquerda) são bastante evidentes. Para o autor, as estruturas divisionalizadas são
estruturas características do sector privado no âmbito das sociedades industriais. Traduzem
grupos funcionais autónomos entre si criados na linha hierárquica da organização, em que
o fluxo decisional ocorre de cima para baixo, ou seja, em que o topo estratégico delega a
esses níveis intermédios as responsabilidades necessárias para uma gestão relativamente
individualizada de cada uma dessas partes (daí ser um fluxo decisional descendente e
limitado). Na medida em que as estruturas divisionalizadas surgem da necessidade das
burocracias mecânicas adaptarem-se a outros contextos e mercados, através de uma
orientação da actividade para indicadores de natureza económica – estandardização dos
resultados –, esta delegação de competências está em relação directa com os resultados
alcançados por cada uma das divisões criadas. Isto é, há um elevado grau de planeamento e
controlo no sentido de garantir que a balcanização não desestruture o funcionamento global
da organização.
Posto isto, e analisados os principais traços distintivos entre estes dois tipos de
estruturas organizacionais, em que sentido o hospital sob a NGP pode ser considerado
como uma outra estrutura organizacional, que compatibiliza elementos tomados por não
compatíveis por Mintzberg?133
133
É inequívoca a distância entre estas duas formas de organizações na reflexão de Mintzberg
decorrente das suas pressões dominantes. Se por um lado, as estruturas divisionalizadas necessitam
196
Tiago Correia
197
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Esta questão volta a trazer para debate o argumento de que o sector público, sob o
processo de empresarialização, apresenta dinâmicas distintas em relação àquilo que foi a
sua construção no quadro do desenvolvimento das sociedades industriais. Um dos
exemplos que mais facilmente comprova esta afirmação decorre do facto de Mintzberg
considerar a estrutura divisionalizada como uma forma de organização típica do sector
privado, argumentado que o traço potenciador das divisões seria impensável de assistir
numa lógica verdadeiramente uniformizada de sector público:
198
Tiago Correia
their selection, their discipline, and if necessary their transfer or dismissal. The federal civil
service system, however, places restrictions on such freedom (Worthy, 1959: 113, op. cit.,
Mintzberg, 1992: 251).
O CRI representa uma autonomia financeira e administrativa que, para nós, seria o ideal, não
é? Porque nós tínhamos de contratualizar com o hospital determinadas metas, facturávamos
para o hospital o que nós fizéssemos e depois no fim pagaríamos os nossos ordenados. No
fim dos lucros que déssemos ao hospital uma parte era-nos distribuída para investimentos e
para as pessoas. (…) Agora, com esse dinheiro posso contratar anestesistas próprios, posso
contratar especialidades que me fazem falta, posso contratar as pessoas que complementem o
meu grupo multidisciplinar que ainda me fazem falta. (…) Eu com o dinheiro dos
transplantes consigo pagar um psiquiatra, um psicólogo, secretárias clínicas. (Cirurgião,
AA133)
Das ideias presentes, três conclusões são possíveis de retirar. Em primeiro lugar, a
escolha dos profissionais necessários a essas estruturas ocorre em áreas de elevada
diferenciação médica, sendo preponderante que o perfil profissional corresponda ao
projecto científico pensado pelo médico responsável por essa estrutura autónoma e
divisionalizada. Esta questão coloca novamente o problema da capacidade orçamental dos
hospitais, e neste caso destas unidades intermédias terem uma dotação orçamental
suficiente que lhes permita concorrer no mercado pelos recursos humanos mais adequados.
Em segundo lugar, é inequívoco que o profissionalismo médico fica reforçado com a
135
Eis um outro exemplo de como estas dinâmicas hospitalares compatibilizam o único arranjo
organizacional não considerado por Mintzberg (burocracia profissional e estrutura divisionalizada).
Se por um lado, são criadas as tais unidades intermédias a quem são delegadas responsabilidades de
gestão, como a estrutura divisionalizada pressupõe, por outro lado, tal como é típico entre as
burocracias profissionais, a tecnoestrutura destes espaços (funções de organização dos métodos de
trabalho, planeamento e controlo e de formação) é praticamente inexistente, dado que essas são
áreas sob o controlo da jurisdição profissional.
199
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
136
Isto não significa que todos os hospitais assumam este tipo de configuração. Estes são princípios
genéricos cuja concretização pode assumir contornos amplos e variáveis. Por outro lado, e dado
que este tipo específico de configuração organizacional decorre de medidas directamente
associadas à NGP, é necessário compreender que os seus resultados, além de se irem revelando a
diferentes ritmos, podem não ser generalizados a todos os prestadores devido a imposições
governamentais.
200
Tiago Correia
137
Assunto em discussão no ponto 8.3.
138
Não será por acaso que Mintzeberg considerou as formas divisionalizadas como estruturas
típicas do sector privado. É mais um dos exemplos que demonstra que a actividade pública de hoje
revela dinâmicas recentes que outrora eram próprias do sector privado.
201
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
garantidas. Volta a estar em causa particularismos dos hospitais que fazem deles estruturas
realmente únicas. A aposta na divisão e autonomização das estruturas intermédias, no
hospital em estudo (mas como dinâmica geral do sector), tem sido a forma encontrada para
garantir a continuidade organizacional. Trata-se do desfecho oposto ao considerado por
Mintzberg, segundo o qual estas organizações “puras” caminham para uma desintegração
decorrente de um gradual descontrolo da cúpula estratégica em relação às suas partes
constituintes tendencialmente mais balcanizadas. É aqui que entra o profissionalismo como
elemento explicativo para que as estruturas divisionalizadas estejam a ser altamente
funcionais para a actividade hospitalar moderna. Se por um lado, é inequívoca uma maior
regularidade de conflito entre cada unidade nos hospitais onde existem estruturas desta
natureza, por outro, quanto mais reforçada estiver pelo menos uma dessas unidades, mais
condições a organização hospitalar tem para continuar a existir. Além disso, é típico das
burocracias profissionais a existência de formas autonomizadas de poder entre os
profissionais, daí o não controlo externo e muitas vezes interno à actuação médica.
Esta situação é explicada por um contexto que importa não esquecer, em que a
racionalização da actividade estatal dita que a decisão de continuidade ou não de um
serviço público esteja sobretudo dependente de critérios de natureza quantitativa.139
Indicadores como os resultados financeiros, a produtividade anual ou a abrangência de
mercado são aspectos preponderantes para a garantia de continuidade desse serviço dotado
de uma estrutura divisionalizada. Ora, no caso da actividade médica, as formas
divisionalizadas são implementadas a unidades (geralmente serviços) que, pela
diferenciação da actividade aí prestada, mas também pelas formas de financiamento (já se
chamou a atenção para os GDH), exigem um “renascimento do profissionalismo” como
forma de prosseguir uma gestão mais adaptada a todo o tipo de exigências sistémicas
analisadas anteriormente.140
139
De forma a evitar uma interpretação demasiado restritiva desta afirmação, o leitor deve perceber
que o peso da quantificação não anula outros argumentos na legitimação da decisão política sobre a
actividade estatal. No entanto, é inequívoco que hoje em dia qualquer decisão a estes níveis não
ignora a ponderação de critérios de natureza quantitativa.
140
Expressão que remete para o título da obra de Freidson (1994).
202
Tiago Correia
prova desta diferenciação interna da medicina, com importantes consequências quer sobre
os projectos profissionais, quer sobre a posição detida pela profissão nos hospitais e ainda
sobre a própria construção social da sua imagem, fica patente nos dois excertos que abaixo
se transcrevem de um director de serviço, ao legitimar a necessidade de uma vocação do
hospital para a unidade divisionalizada que pretende instituir no hospital sob a forma de
um Centro de Responsabilidade Integrado:
O hospital tem valências que não fazem qualquer sentido. Faz-me falta outras que fazem
sentido para o centro [de responsabilidade] e as especialidades que há são especialidades que
foram herdadas de há 100 anos. (…) Eu preciso de uma gestão que compreenda que o
hospital isolado [o seu interesse é a integração do hospital num grupo hospitalar] só serve
interesses de paróquia, interesses mesquinhos (…) os serviços como estão organizados em
Portugal não estão adaptados à realidade…são quintas, há uma quinta de cirurgia, uma
quinta de medicina, uma quinta de urologia…
Depois do hospital ter saído [de um conjunto de hospitais historicamente próximos] (…)
ficámos orgulhosamente sós, ora orgulhosamente sós vamos ser um hospital distrital. Se nós
caminharmos para ganhar dimensão e para podermos…temos que deixar de ter umas coisas
para poder ter outras (Cirurgião, AA13)
Esta evidência volta a reforçar a hipótese que tem vindo a ser colocada ao longo
desta discussão, segundo a qual os processos característicos do sector público convergem
com processos outrora característicos do sector privado. Do ponto de vista da gestão
hospitalar, esta diferenciação médica, mais do que prejudicial aos projectos profissionais
dos gestores, tende a ser entendida como uma mais-valia. A justificação está na forma de
financiamento dessas actividades que, como se viu num excerto anterior, permitem
transferências suplementares pagas pelo SNS, tanto aos profissionais como ao próprio
hospital. Além disso, o reconhecimento da diferenciação do hospital no conjunto dos
prestadores públicos é algo valorizado pelos gestores, daí a maior protecção a essas áreas
de actuação:
203
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
grande capacidade de atracção de doentes fora da área de […], isto é, é um hospital central
mas que tem uma grande apetência para atrair doentes de fora da chamada área de influência
directa (…). Portanto, é um hospital que tem qualidades de funcionamento elevadas e
qualidades técnicas muito boas. (…) Na área cirúrgica temos áreas de grande qualidade
técnica e outras menos: temos uma cirurgia hepato-bilio-pancreática forte e poderosa e com
prestígio nacional e internacional (…). A transplantação ganhou camas e ganhou conforto
(…) em prejuízo de outro serviço que foi prejudicado. (…) Portanto, como vê as decisões
não foram todas no mesmo sentido em termos de dar a uns tudo igual, não!!! (Gestor,
membro do CA – AG2)
Obviamente que o peso dos transplantes tem muito impacto, e porquê? Porque contribui
muitíssimo para o índice de case mix do hospital o que depois se vai reflectir em termos da
valorização económica da produção (Gestor, membro do CA – AG1)
Estes excertos demonstram que, apesar dos hospitais públicos deterem funções
muito específicas relacionadas com o assegurar de um interesse comum, o raciocínio na
sua gestão é assumida em torno de critérios de competitividade, quer pela eficiência dos
recursos, mas também – ou principalmente –, pela diferenciação dos cuidados aí prestados.
Contudo, desta afirmação não se pode concluir que o profissionalismo médico dos
especialistas de medicina interna esteja ameaçado pela gestão hospitalar. Na realidade, os
pressupostos que permitem à medicina a sua posição dominante nas estruturas hospitalares
não são afectados. A discricionariedade do saber médico não é posta em causa, nem tão
pouco se verificou um aumento do controlo managerialista na estruturação do trabalho
assistencial, ou qualquer interferência da gestão nas relações assimétricas de poder entre a
medicina e os restantes saberes profissionais em presença.
204
Tiago Correia
Entra-se e o cheiro é diferente. Cheira a corpo, mas um cheiro a corpo diferente. Não é um
cheiro sujo, apenas um cheiro a corpo, como se corpos e corpos estivessem amontoados. Não
estão. Tirando a constante presença de algumas macas com idosos que ocupam espaços de
passagem à espera que outros se vão, o espaço comporta os corpos existentes. Mas há um
cheiro…e que cheiro! Não sei ao que cheira, cheira simplesmente a corpo. No entanto, pior
que o cheiro são os gemidos. Uns rompem de forma aleatória, mas a repetitividade de outros
transporta-me para um contexto asilar. Incomoda-me o som e incomoda-me ver os
profissionais já indiferentes. Indiferença que traduz um ritmo de trabalho que não permite
paragens constantes para atender sempre que os gemidos emergem e que me dá a certeza que
aquele não é o local para estas pessoas. São velhos os que gemem. São caras que vão ficando
ao longo das minhas visitas. Quando estou incomodado com o cheiro e com o som subo.
Vou até à enfermaria de cirurgia. Não há cheiros e som ambiente vem de colunas instaladas
ao longo dos corredores. Aqui a música é outra. (in notas do diário de campo)
141
Argumentos que convergem com as conclusões apresentadas por Costa (2005), segundo o qual a
gravidade das doenças e o risco médico são dos principais factores que influenciam a justificação
do consumo de recursos hospitalares.
205
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
serviços mais necessários à moderna gestão hospitalar, como se viu, para dimensões
centrais como a captação de financiamento para o hospital e o reconhecimento científico
da qualidade da prestação de cuidados de saúde diferenciados:
O dinheiro que entra no hospital…entra mais dinheiro através da cirurgia do que dos actos
médicos, a medicina só serve para gastar dinheiro. É evidente que eles depois quando estão
em apuros chamam-nos a nós (…). Enquanto trabalhei com doentes transplantados nós é que
ficávamos com os doentes transplantados hepáticos nas primeiras horas, e nunca…as equipas
recebiam incentivos e nós, as pessoas que trabalhavam na UCI [Unidade de Cuidados
Intensivos], pelo menos era assim, não tínhamos incentivos nenhuns. (Internista, AB2)
A parte mais difícil nos serviços de medicina é a motivação do pessoal médico. Ou vai
buscar motivação ao prazer de ser útil e exercer a sua profissão ou então se cai numa rotina
acaba [por não ter] motivação para que faça um bocadinho mais ou que se esforce.
(Internista, AB8)
142
Aliás, este impulso para a publicação e disseminação científica não é específico à área médica,
sendo uma determinante relativamente transversal entre os domínios científicos.
143
Recorde-se o excerto apresentado na página 203 do entrevistado AA13.
206
Tiago Correia
Ainda por cima é uma figura de peso dentro do hospital [director de serviço de cirurgia].
Acaba por haver um choque de autoridade ou alguma perda de autoridade do CA, e depois,
lá está, voltamos ao exemplo dentro do próprio hospital porque depois é sempre para ele, é
sempre com ele, é sempre para a área dele, o que causa alguns frisson (…) (Gestor, membro
do CA – AG1)
Percebi no começo dos anos 80 que ia ser inevitável que um serviço moderno de hepatologia
que tratasse as doenças do fígado ir ter que oferecer no futuro o transplante. E em 1983
apareceu a ciclosporina de aplicação clínica. Foi uma nova era do transplante. (…) Aquilo
era uma área que ia ter desenvolvimento e que o aparecimento da Hepatite C, a verdadeira
epidemia, que o cancro do fígado ia aumentar e que as cirroses hepáticas iam ter com certeza
no futuro que ser transplantadas como já eram esporadicamente na Europa (Cirurgião,
AA13)
Se isto levar uma volta e se algum dia…não é? Se deixar de haver o regime de incentivos ao
transplante eu estou arrumado, não é? Tenho 61 anos, não tenho 40 ou 35. Portanto, ou me
144
É o caso concreto do Programa para o Desenvolvimento da Transplantação, regulado em 1996 e
o Programa Nacional de luta contra a Obesidade, ainda em elaboração (Cf. Direcção-Geral da
Saúde, 2004).
207
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
deixam andar para a frente com isto ou provavelmente tenho que voltar à privada.
(Cirurgião, AA13)
A área da obesidade é uma área que interessa a várias entidades que funcione no melhor
sentido possível. (…) neste momento é muito mais interessante ainda, vai ser financiada de
maneira diferente daquela que era. Portanto, há um financiamento próprio para a cirurgia da
obesidade (Cirurgião, AA2)
Nós estamos muito condicionados pela posição da direcção do serviço. (…) A área da
cirurgia geral, neste momento, está prejudicada porque não se consegue progredir em área
nenhuma porque há sempre uma oposição do director. (…) Esta área é do interesse do
hospital, [há] outros serviços interessados, e o próprio ministério tem interesse que essa
patologia [obesidade] se trate. Agora, estamos um bocado limitados (…) (Cirurgião, AA2)
208
Tiago Correia
Em termos da gestão de, depois de…(pausa)… não sei muito bem como é que está a
funcionar…neste momento não faço ideia do que é que vai acontecer, do que é que nos tem
acontecido, e quero ficar um bocadinho longe disso (risos) (Internista, AB4).
209
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
O que eu mais gosto é efectivamente o contacto com o doente (…) portanto, é o diagnóstico,
gosto de fazer investigação de diagnóstico. De fazer um bocadinho como o Sherlock Holmes
da medicina, procurar os pormenores para ver se me ajuda no diagnóstico. Ver o doente
como um todo e depois ver as pequenas partes. É, no fundo, um jogo, um quebra-cabeças. É
um jogo em que nós vamos encaixar as peças (Internista, AB2)
210
Tiago Correia
Falar no poder colegial ou corporativo das profissões tem por base a relação de
confiança criada entre o Estado e estas formas de organização de indivíduos em sociedade.
O problema associado à confiança nas profissões, segundo Calnan and Rowe (2008),
decorre de abusos e de uma falta de controlo, que são tanto mais possíveis quanto mais
elevados forem os níveis de incerteza e de risco – pelos procedimentos estarem
directamente dependentes das competências de quem os concretiza –, como também
quanto maior for a dependência leiga face a formas assimétricas de conhecimento
profissional. Ora, estas são precisamente as dimensões que suportaram a confiança médica
até às mudanças introduzidas pela NGP, ancorada, sobretudo, na reputação e altruísmo
destes profissionais. Foi o chamado contexto da medicina paternalista (Ibid., Id.: 72).
Interessa, por isso, interpretar até que ponto a defesa da NGP tem por base uma
quebra de confiança profissional, para perceber a relação mantida com o poder profissional
211
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
212
Tiago Correia
Cirurgia
Medicina interna (com elevada
especialização técnica
e científica)
Normatividades e espaços de acção
Grau de normatividade da direcção de serviço Reduzido Elevado
Natureza do trabalho
Tendencialmente Tendencialmente
Grau de rotatividade dos doentes
reduzida elevada
145
De salientar que a escolha pela designação conservadora para a definição do primeiro serviço
não tem por base qualquer tipo de conotação ideológica ou pejorativa, servindo apenas para melhor
classificar os processos aí ocorridos.
213
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
serviços acabam por coincidir de forma quase linear com as delimitações analíticas do
modelo.146
Tinha saído um concurso de promoção, o director antigo saiu e parecia-me lógico que fosse
eu por ser mais velho e mais classificado em medicina interna. (…) Projecto de gestão? É um
projecto de continuidade como é normal (…) é difícil fazer uma gestão a médio, longo prazo.
É uma gestão diária (Internista, AB8).
Jamais trairia o meu director porque independentemente daquilo que penso é uma pessoa por
quem eu tenho não é que defender, porque não defendo nenhuma instituição (…). Tenho um
respeito institucional, respeito-o independentemente daquilo que penso. Eu estou aqui nesta
hierarquia, aceitei as regras do jogo, tomei posse e obedeço às normas. (…) Agora dizer que
respeito a instituição ou os cargos…ou seja, respeito os cargos mas não respeito as pessoas
que lá estão, por si, [mas] pelo cargo. (Internista, AB3).
[O] meu director de serviço é uma pessoa que está ausente apesar de termos contacto
semanal na visita que ele tenta agora … mas é há relativamente pouco tempo que ele faz a
visita. (…) Medidas de gestão que tenham sido passadas nós não temos muito conhecimento.
146
A escolha destas duas dimensões respeitou os processos dominantes responsáveis pela
estruturação do trabalho e dos comportamentos dos profissionais. Esta delimitação não significa
que todos os serviços de medicina interna e todos os serviços de especialidades cirúrgicas
apresentem esta configuração, dado que se tem por referência dinâmicas do caso empírico em
observação. Ainda assim seria com alguma surpresa encontrar um serviço de medicina interna
capaz de ser categorizado como um típico serviço médico empresarializado. Por outro lado, e dado
que nem todos os serviços de cirurgia geral têm na sua jurisdição unidades de transplantação
podem existir diferenças significativas em relação às particularidades do serviço de cirurgia em
análise.
147
“Chefe” é uma expressão que os especialistas habitualmente empregam para se referir aos
respectivos chefes de tira (in notas do diário de campo).
214
Tiago Correia
[Será] através do director de serviço. (…) Eu e o meu chefe [de tira] temos uma relação mais
próxima no dia-a-dia. (Internista, AB4).
Nós estamos habituados a trabalhar de uma determinada forma, e aliás é isso que eu tenho
notado mesmo quando fui para [um hospital empresarializado]. Os serviços
funcionam…quer dizer, as coisas são muito feitas daquela maneira. Nós temos muita
autonomia nessa perspectiva, somos muito autónomos. A direcção [de serviço] interfere
148
Como foi referido anteriormente, não obstante o hospital em análise pertencer à categoria
“hospital geral” por não conter nenhuma estrutura universitária, todos os médicos especialistas do
serviço estão ligados ao ensino superior da medicina por intermédio de protocolos estabelecidos
com uma Universidade portuguesa.
215
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
pouco, o CA interfere muito pouco naquilo que nós achamos que deve ser feito. Não estamos
muito dependentes nem de mãos muito atadas em relação a isso e, portanto, a impressão que
fica sempre é que se deixasse de haver director e deixasse de haver CA as coisas
funcionavam na mesma (Internista, AB6)
A minha autonomia profissional é receber o doente, fazer a minha listagem para os observar,
pedir as hipóteses de diagnóstico, pedir os exames que eu bem entendo, fazer a terapêutica
que eu bem entendo (…) eu, neste momento acho que tenho autonomia (Internista, AB2)
A mim? A mim ninguém me controla. Só duas pessoas me podem controlar, são os meus
superiores hierárquicos, o director de serviço e a directora clínica (Cirurgião, AA4)
Esta ideia irá constituir a base de discussão que se apresenta no capítulo seguinte.
Aí será analisado como os espaços permitidos à acção individual são responsáveis por
diferentes mecanismos de estruturação desses contextos de trabalho, dando visibilidade às
formas individuais de objectivação dos comportamentos. Ou seja, na ausência de um
controlo normativo a maior possibilidade de desvio dos comportamentos leva à
necessidade de captar o sentido que os médicos conferem às suas acções e os motivos que
estão na sua base.
O hospital a mim nunca me deu nada, para além das instalações e ter dado condições na
vertente da instalação e de equipamento. Nunca foi responsável pela minha formação em
nada específico, pelo menos que me lembre. Eu devo, ou, é assim, as pessoas humanas que
aqui trabalham…devo muito a muitas pessoas, mas ao hospital em si…O que mais aprecio
[no director de serviço] acho que já enalteci as qualidades dele como pessoa, como homem,
216
Tiago Correia
como homem de ciência, como médico, como pessoa com capacidade para lutar, para levar
este projecto do princípio até ao fim (Cirurgião, AA6).
Num hospital de gestão pública como aquele para onde eu fui, para já não pude escolher as
pessoas, as pessoas já lá estavam. Ainda tentei que algumas saíssem e infelizmente para mim
ninguém saiu, portanto, tive que me adaptar às pessoas que estavam. (…) No futuro têm que
perceber que os directores de serviço têm que poder escolher os seus colaboradores:
concursos, critérios de perfil…o que quiser de critérios, não é? Mas têm que poder escolher
os seus colaboradores e eu tive que herdar. E os constrangimentos que eu tive no [hospital]
foi que [os médicos] já estavam lá (Cirurgião, AA13).
Já anteriormente foi analisado em que sentido o facto de haver uma relação mais
próxima entre as esferas profissional e gestionária não põe em causa o profissionalismo
149
Em conversas informais mantidas com alguns médicos foi atribuída uma carga valorativa
negativa o facto de um interno não querer continuar no serviço como médico especialista. Aliás, é
perceptível que parte da segurança no emprego médico também se deve a esta transição estável,
que apenas pode ser abalada por acção da direcção de serviço.
217
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
médico. Reforça-se agora este argumento, considerando que este tende a ser aumentado
graças a um acréscimo das competências de gestão por parte do director de serviço. Nestes
casos, e como se comprova no excerto abaixo apresentado de um gestor hospitalar, a
gestão serve sobretudo para dar apoio a áreas médicas de elevada rentabilidade em função
do modo como as políticas governamentais definem o financiamento da saúde. Na
realidade, embora à primeira vista este contexto pudesse revelar uma maior pressão e
controlo sobre a actividade médica, o que se verifica é um aumento do profissionalismo
médico por intermédio da incorporação de responsabilidades, outrora pertencentes a outras
jurisdições profissionais. Simplesmente, a base do poder médico permanece inalterada: 150
150
Revejam-se as citações das páginas 199 e 203 respeitantes à criação de um Centro de
Responsabilidade Integrado (CRI) para a área da transplantação.
218
Tiago Correia
nós não precisamos de muito, só precisamos dos nossos conhecimentos, dos nossos
instrumentos, que não vão muito mais além daqui do [que há neste serviço] e da medicação
(AB4, Internista)
151
É importante salientar cautelas quanto à ideia habitualmente existente que toma a natureza da
doença como o principal elemento diferenciador da actividade médica da actividade cirúrgica,
sobretudo por referência à imagem dos serviços de internamento de medicina interna preenchidos
com problemas típicos da população idosa. Na realidade, tanto em cirurgia como em medicina são
encontradas doenças crónicas e agudas. Aliás, parte significativa da decisão de transplantação
ocorre em doentes hepáticos crónicos (caso da cirrose ou da paramiloidose, vulgarmente conhecida
por “doença dos pezinhos”) e parte significativa do internamento em medicina ocorre por
problemas agudos, como os respiratórios (pneumonias, infecções respiratórias, etc.) (in notas do
diário de campo).
152
Importa convocar o modelo de medicina baseada na evidência como um suporte fundamental no
raciocínio médico actual e que este exemplo dá conta. Segundo Raposo (2009: 758), a medicina
baseada na evidência apresenta uma reconfiguração, ou mesmo um novo perfil científico, marcado
por uma tendência para centrar a medicina no colectivo e na quantificação estatística, perdendo o
papel da intuição e da experiência prática na decisão clínica.
219
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Ainda que residual, esta evidência deixa a descoberto dinâmicas que necessitam de
investigações científicas especificamente dedicadas a este assunto. A gestão autonomizada
de cada prestador, no quadro da empresarialização do sector público, aponta para uma
maior desconexão entre os prestadores do SNS. Perante dotações sub-orçamentadas, os
gestores hospitalares não têm interesse em utilizar recursos do hospital com utentes da
responsabilidade de outros hospitais. Disse-se anteriormente que no contexto das actuais
mudanças na saúde os “doentes” têm vindo cada vez mais a tornar-se “consumidores” (Cf.
Lister, 2001), o que ganha uma clara evidência à luz dos processos descritos.
Retomando a análise dos contextos médicos, a conclusão que se retira é que mesmo
em serviços médicos onde a falta de um expertise estratégico poderia levar a pensar que os
médicos estariam mais expostos à pressão gestionária, tornou-se evidente que estas
mudanças deixam relativamente intocável a base do poder médico: o monopólio do seu
saber. O excerto que abaixo se transcreve é particularmente ilustrativo do modo como os
médicos de medicina interna se podem posicionar relativamente a uma maior pressão para
um controlo e alteração das suas práticas profissionais:
O facto de precisamente serem pessoas que não são médicas tira-lhes um pouco a
perspectiva real (…) e isso empobrece-os. Por muito que tenham apoios de um director
clínico médico, de um director de enfermagem…obviamente esses apoios são muito
importantes, mas não chegam. (…) Na prática se [medidas de gestão mais intensas]
alterar[am] a minha maneira de trabalhar? Não alter[aram]. Porque o médico apesar de tudo
é uma pessoa que tem muita força, e mesmo aqueles que nos querem pressionar directamente
e que nos ameaçam entre aspas têm medo das consequências: um médico pode dizer „aquele
doente morreu porque a administração conduziu a uma situação em que aquele doente
morreu‟. Isto é infernal e pode levar a uma situação em tribunal. Portanto, os médicos têm
muita força. Têm muito poder e às vezes esquecem-se disso. E, portanto, mais uma razão
para eu dizer que no meu dia-a-dia profissional não tenho medo de nada nem de ninguém,
nem de ser pressionado nem daqui, nem dacoli, nem dacolá. (Internista, AB1)
220
Tiago Correia
tradicional concepção altruísta e de respeito pelo interesse geral que caracterizou a base do
seu poder. Aliás, o exemplo referido de que os gestores podem não autorizar a
administração de terapêuticas deixa em aberto novas formas de envolvimento entre a
medicina e os doentes, na medida em que a acção dos gestores pode dar visibilidade a uma
orientação não coincidente com as necessidades percepcionadas pelos doentes.
221
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
médicos estão envolvidos com uma actividade não rotinizada, cientificamente motivante e
bem remunerada, a gestão hospitalar apresenta um importante cartão-de-visita,
fundamental para a captação de financiamento para o hospital e para a legitimação da sua
existência na rede de cuidados de saúde.
Dado que estes contextos médicos são benéficos, tanto para médicos como para
gestores, regras administrativas mais intensas são geralmente consideradas pelos próprios
médicos como normais e mesmo necessárias como forma de manter a excelência da
actividade realizada. Em todo o caso, a aceitação de mecanismos administrativos e
managerialistas de controlo da actividade médica é primeiramente aceite e exercida pela
direcção de serviço, atenta a critérios que possam suportar de um modo sustentável a sua
actividade. Nesta perspectiva, as situações de conflito com o CA ocorrem por situações
contingenciais, não necessariamente repetidas, cujos resultados são essencialmente
processos em aberto.
222
Tiago Correia
Ainda assim, há que apontar para uma não inteira correspondência entre a produção
discursiva dos gestores e a sua prática. Se por um lado, os discursos habitualmente dão
conta da necessidade de constrição das liberdades profissionais, por outro, os processos
efectivamente concretizados revelam uma dependência dos saberes médicos. Deste ponto
de vista, o conflito inter-profissional entre médicos e gestores tende a ser tanto mais
evidente quanto maior for a discrepância entre os modos de objectivação individual da
profissão e os processos estruturais em presença. Esta discussão será aprofundada no
capítulo seguinte como uma situação dialéctica entre as expectativas dos profissionais e as
experiências de interacção, isto é, um desfasamento entre o esperado e o vivido.
223
Tiago Correia
Em termos empíricos, o ganho reside em dar relevância a processos até então pouco
evidentes nas organizações hospitalares. Argumentou-se anteriormente que à gestão,
enquanto conhecimento científico, é atribuída uma superioridade na procura de definir a
melhor e única forma de gestão dos hospitais. Isto ilustra a preponderância que a
quantificação representa para a necessidade de previsibilidade em sociedades amplamente
marcadas pela incerteza e pelo risco (Gabe, 2004). Ora, aquilo que se discute neste ponto é
a impossibilidade de anular diferentes formas de acção desenvolvidas por parte dos
indivíduos, sob um pretenso quadro normativo restritivo. Põe-se em evidência um conjunto
diversificado de motivos que suportam o curso dos comportamentos dos profissionais,
como também dos gestores, contrariando a leitura dominante centrada na estrita
225
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Posto isto, tendo por base os diferentes vectores orientadores dos interesses (cf.
figura 2.3.), procurou-se perceber o seu papel na estruturação e configuração dos dois
serviços médicos em análise.
Quadro 3.7. – Impactes dos interesses da acção na estruturação dos contextos de interacção
226
Tiago Correia
Olhando agora para o serviço médico de base empresarial, são bem visíveis as
diferenças relativamente ao contexto anterior. Aqui, os processos mais estruturadores e
mais comuns entre os médicos continuam a centrar-se na orientação pelos fins, o que,
como se irá discutir não coincide com a motivação dos fins característicos no serviço de
base conservadora. Em relação ao serviço anterior, a orientação pelos afectos assume uma
preponderância na estruturação deste espaço, ao influenciar a posição dos médicos neste
contexto. Simplesmente, as oportunidades não são distribuídas uniformemente entre os
médicos, dado que uma ligação pessoal e emocional com o director de serviço conduz a
uma relação de confiança determinante para a posição detida no interior do serviço. Com
poucas consequências sobre a estruturação deste espaço e restrito a alguns médicos situou-
se a orientação tanto pelos valores, como pela tradição. Veja-se de um modo mais
aprofundado os processos característicos destes contextos.153
153
Anteriormente foi já afirmado que a desagregação da orientação da acção por estes quatro
vectores respeita apenas uma forma de conceptualização dos comportamentos humanos. Não visa
uma simplificação excessiva dos mecanismos da acção, nem tão pouco indica formas puras na sua
orientação. Reitera-se agora que a esquematização apresentada não pode ser lida como se em cada
um dos contextos médicos em análise só se tivessem verificado aquelas orientações da acção, sob
pena de se remeter a complexidade humana a uma ordem simplificada. Estas conclusões devem ser
227
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Relembrando o que foi discutido em torno do quadro 3.6., um dos traços característicos do
serviço médico de base conservadora é uma relativa ausência do exercício da autoridade
profissional exercido pela figura do director de serviço. Por conseguinte, encontram-se
espaços relativamente alargados e autónomos de acção entre os médicos, com impactes
acrescidos na organização do serviço, por haver pouca diferenciação entre a maioria dos
médicos na carreira profissional. Como se viu, há uma coordenação e gestão relativamente
individualizadas das respectivas “tiras”:
A prova mais evidente da natureza deste serviço – e que o define segundo uma base
conservadora – encontra-se, desde logo, pelo papel estrutural da orientação da acção pela
tradição em conjugação com a orientação pelos fins individuais dos profissionais. A
tradição não se refere apenas à organização do trabalho médico por “tiras”, ou a uma
autoridade profissional pouco interventiva. Refere-se também aos discursos, tanto do
director de serviço como dos médicos, ao nível da construção do profissionalismo médico,
do lugar da medicina no hospital e da interferência de outros saberes como o caso da
gestão, que ainda bebem muito dos discursos típicos da “Era Dourada” da medicina situada
até meados dos anos 70 (cf. Turner, 2006).
228
Tiago Correia
eu sempre tive a noção de que aquilo que eu poderia fazer dependia da estrutura onde eu
estava inserida. (…) Entretanto, quando estagiei no serviço de cirurgia percebi que a
estrutura não dava para mim. Quando vi pessoas com 50 anos a pedinchar para <ah, senhor
director, deixe-me lá fazer isto, deixe-me operar isto> e eu disse <não, não me vou meter
aqui assim (…), ao menos vou para o sítio onde tenha o mínimo de independência, onde
possa trabalhar de uma forma mais independente>. (…) A minha autonomia profissional, no
fundo, é eu não ter a interferência de terceiros nos meus actos médicos, pronto. Não médicos
e médicos, falo de todos. O termo de responsabilidade é meu, não gosto de
interferências…não me importo de discutir, mas ordens directas não gosto. (AB3, Internista)
Contudo, e em rigor, este serviço não pode ser interpretado como um espaço
desestruturado. Os processos ocorridos dão conta de uma complexidade associada à
dualidade entre esta significativa autonomia na acção dos médicos e o respeito e
229
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Em tempos, este serviço foi alvo de uma separação que deu origem a um serviço
autónomo de infecciologia. Até então, os internistas deste hospital tinham uma forte
componente nessa sub-especialização, quer pela vocação histórica do hospital, quer pela
própria orientação científica do director de serviço. Nessa cisão, os internistas tiveram que
escolher em que serviço se iriam posicionar. Todos os entrevistados, sem excepção,
ficaram com o mesmo director, mesmo à custa de abandonarem a área de infecciologia,
tida pela grande maioria como uma área de especial interesse científico e pessoal. Esta
situação ilustra o peso notório do respeito pela autoridade formal, mesmo em detrimento de
interesses individuais divergentes. A relevância desta ideia prende-se com o facto de ser
analisado que no serviço médico de base empresarial há um peso significativo quanto aos
interesses individuais. Age-se em conformidade com a direcção do serviço, não apenas por
um respeito pela sua figura, mas por haver interesse em fazê-lo:
é assim, se fosse por minha vontade única e exclusiva eu teria deixado a consulta de
hepatites e ficaria com a de infecto, por gosto. (…) mas não havia a possibilidade do ponto
de vista da organização dos serviços para que isso acontecesse. Tem a ver com a lealdade
que nós devemos aos nossos directores. Pelo menos é assim que me revejo, devo lealdade ao
meu director e tinha que deixar uma consulta que não era do meu director. Pronto! (AB2,
Internista)
Embora não seja objecto deste trabalho aprofundar as relações da medicina com
outras áreas profissionais além da gestão hospitalar, abre-se um pequeno parênteses apenas
para notar que esta orientação de tipo tradicional também se faz sentir na defesa da
230
Tiago Correia
eu não gosto deste sistema de gestão hospitalar, acho que isto não tem o menor cabimento. O
poder tripartido dentro de um serviço…quer dizer, ninguém dirige este serviço. Existe uma
direcção de enfermagem que dirige as auxiliares, uma direcção dos administrativos e um
director de serviço que dirige os médicos. Como o director de serviço não tem poder sobre a
chefe de enfermagem, não dirige o serviço…nem sobre os chefes administrativos, [que]
depois lá em cima [CA] é que dirigem. Portanto, aqui não há director. (…) O que me parece
é que há outras profissões que estão a pretender ocupar os lugares de médicos (…) sem
quererem a responsabilidade correspondente.” (AB3, Internista).
231
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
A questão é que não é possível assegurar que todos os médicos pautem as suas
decisões com base no interesse do hospital (como representante do SNS) ou com base no
compromisso com os doentes. Obviamente que a ideologia médica está centrada na ética,
responsabilidade e sabedoria transmitida pelo juramento de Hipócrates, o que, apesar de
tudo, não anula um relativo grau de arbitrariedade e de individualização no respeito desses
preceitos. Tal não significa que a grande maioria dos médicos estejam desprovidos destes
valores, o que aliás, é muito fácil de revelar nos discursos produzidos, sobretudo na
presença de um elemento não médico e estranho ao serviço. Por isso, foi anteriormente
acautelado que dar relevância a um ou outro tipo de orientação da acção não anula a
coexistência simultânea de motivações dos comportamentos.
232
Tiago Correia
[Ao questionar o entrevistado sobre o facto de trabalhar mais um sábado por mês sem
receber qualquer remuneração acrescida por isso responde]: foi um compromisso (…) tenho
interesse em seguir os doentes e houve alturas que tinha mais do que um sábado por mês e
fazia-o na mesma. Os doentes estarem dois dias sem serem avaliados acho que não é o mais
correcto.
Deixei de pôr o dedo [controlo biométrico implementado no hospital para todos os
profissionais à excepção dos médicos que o rejeitaram]. Em termos de horários posso-lhe
dizer que chego muito cedo e que saio sempre depois da minha hora. Acaba por ser um
compromisso que tenho todos os dias. Até poderia chegar tarde, mas tenho que chegar, ver
os doentes, tenho que fazer a minha actividade. Os doentes têm que estar estáveis e quando
estão estáveis, que eu sinto que estão bem é que posso ir…acho que os médicos e os
enfermeiros estarem a picar um ponto… (AB4, Internista)
233
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Analisando agora os ideais tipo da orientação das acções responsáveis pela estruturação do
serviço médico de base empresarial, algumas configurações são manifestamente distintas.
Como se observou no quadro 3.7., a orientação da acção dos médicos pelos seus fins volta
a apresentar-se como a base mais importante para os processos aqui característicos.
Contudo, neste caso, os fins não coincidem linearmente com aqueles identificados no
serviço médico de base conservadora que, como se viu, podem prejudicar as necessidades
do serviço e dos próprios doentes.
Convidaram-me para fazer cirurgia geral noutros sítios, em que eventualmente até poderia
fazer isto [transplantes] mas a um nível muito menos frequente, de uma forma mais
esporádica, [e] portanto, acho eu que com menos qualidade. Teria provavelmente um
bocadinho mais de autonomia. (…) eu tenho um projecto aqui, tal como o director, eu
gostava de ver o nosso centro…eu não estou a dizer especificamente este centro neste sítio
físico específico, mas esta ideia, isto é uma ideia... É um projecto que também faz parte do
meu projecto de vida. (AA14, Cirurgião)
234
Tiago Correia
Eu nos últimos três anos não tenho produzido absolutamente nada, não estou interessado em
produzir absolutamente nada enquanto este serviço e este ambiente continuar assim como
está. Produzi muita coisa até há quatro, cinco anos, muitos trabalhos publicados, muitos
trabalhos apresentados em congressos, em reuniões clínicas. (…) neste momento, da maneira
como o serviço está, esta mistura com hepato-biliar e cirurgia geral, não é um terreno
propício para este tipo de coisas. (…) Não há condições anímicas, condições de força e de
vontade para fazer um trabalho destes, não é? (Cirurgião, AA4)
[sobre o facto de estar numa situação precária no serviço, cuja continuidade depende da
aprovação do director de serviço:] perguntei-lhe como é que era a minha situação e a
situação das outras pessoas que estão na minha situação e ele disse, entre aspas, que se eu me
portasse bem, não fizesse abaixo-assinados e se não pusesse obstáculos à forma como ele
está a pensar, a orientar o serviço, que daria o aval para que se mantivesse aqui a minha
vaga. (…) Mas eu prefiro, mesmo que tenha que sair daqui, dizer aquilo que acho. Em vez de
alinhar só à espera do tal dividendo. Não, eu prefiro continuar a abrir a boca e ficar aqui
porque sou preciso do ponto de vista profissional. Eu quero que me dêem valor é do ponto de
vista profissional, não quero que me dêem valor porque eu digo que sim a tudo aquilo que os
meus superiores hierárquicos dizem, mesmo quando não têm razão, não é? (Cirurgião, AA5)
235
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Houve aqui várias fases, depende de quando você tem poder ou não. Eu já tive muito poder
aqui no hospital. (…). Os mais novos, os outros médicos olham para mim como uma pessoa
que sabe, enfim, que sabe muito e que lhes ensina. Eu, isso tenho a sensação que eles
percepcionam. Mas tenho a impressão que alguns olharão para mim como uma pessoa que se
calhar cristalizou agora um bocado no tempo…eu tenho essa sensação. É evidente que se isto
mudasse e se o serviço de cirurgia se separasse do outro, isto mudava um bocado, porque eu
neste momento, o que me interessava não é eu progredir, quer dizer, eu não vou aprender
mais coisas daqui para a frente do que já aprendi. (AA4, Cirurgião)
Um serviço médico como este, marcado por fortes imposições dos interesses
médicos, permite um reduzido espaço para as regras de gestão provenientes do CA.
Argumentou-se que o contacto entre profissionalismo e managerialismo tende a ser mais
intenso e em sentido convergente do que no serviço médico de base conservadora, sem que
isso traduza um reforço do managerialismo nem tão pouco uma quebra do poder
profissional. A direcção do serviço assume um papel preponderante naquilo que é o
154
Recordando que envolve os procedimentos mais caros pagos pelo SNS (cf. GDH).
236
Tiago Correia
[É um cumpridor de regras?] Não! Acho que sou um péssimo cumpridor das regras gerais do
hospital. Por exemplo, quando tínhamos aquele sistema de pôr o dedo à entrada e não sei o
quê, nunca cumpri isso. Acho que não somos operários para aceitar esse tipo de tratamento.
(…) Acho que em Portugal, o nosso centro na nossa especialidade é um sítio onde…acho
que nunca houve em Portugal nenhum centro com a qualidade que nós tentamos dar às
coisas. Não estou a dizer que conseguimos, mas, por exemplo, sei lá…eu o ano passado
publiquei cinco artigos em revistas internacionais como co-autor ou autor. Nenhum serviço
faz isto nem nunca nenhum serviço fez. Temos estagiários de fora de outros países,
contribuímos para o estabelecimento de um programa de transplante hepático noutro país.
Nunca tivemos em Portugal um serviço de cirurgia geral onde fosse possível fazer isto.
(AA14, Cirurgião)
237
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
escolhas profissionais. Um médico especialista que fez o internato com este director
afirma:
(…) se me oferecessem um lugar igual noutro centro com condições para isto eu teria um
problema de lealdade em relação ao meu director, de quem sou muito amigo e tive sempre
envolvido neste projecto desde cedo e, portanto, teria alguma dificuldade em dar esse salto.
Não sei o que é que eu faria se fosse confrontado com isso no futuro, mas acho que ia ter
algum problema de consciência com isso (AA14, Cirurgião)
Eu comecei a minha formação cirúrgica e o [director] apareceu talvez no meu segundo ano.
Ele caiu numa equipa onde nunca tinha trabalhado e, portanto, para ele era uma situação
nova e eu estava lá…e eu identifiquei-me muito mais com ele e comecei a trabalhar com ele,
mais do que com os outros. Portanto, fomos cimentando essa relação mútua…cirurgião
ajudante, ajudei-o muito. (…) Fomos [para outro hospital] abrir o serviço de cirurgia, ele e
eu, os dois. Estive lá dois anos e depois eu vim-me embora. Digamos que aí há talvez uma
ruptura mas eu vim-me embora sabendo que o projecto para onde eu vinha era o projecto
dele. Portanto, digamos que saí momentaneamente de ao pé dele nessa altura, mas sabia que
o projecto era dele, era para o projecto dele que eu vinha. De tal maneira que depois veio a
verificar-se que ele depois veio mais tarde para aqui outra vez. (AA11, Cirurgião).
238
Tiago Correia
O lugar onde se colocou a tradição e os valores não significa uma ausência destas
orientações na acção dos médicos, mas implicações reduzidas na estruturação deste
serviço. Aliás, é um dado significativo que a natureza da actividade médica desenvolvida
está muito mais orientada para a dimensão de investigação científica do que propriamente
para a orientação assistencial de cura. É assim que se justifica uma organização dos
cuidados que tende a responder principalmente às necessidades colocadas por técnicas e
procedimentos cirúrgicos de ponta e à motivação em fazê-lo:
155
“Entrados” designa a realização do historial clínico dos doentes entrados no serviço.
239
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Quando nós somos jovens, estas situações de transplante e tudo deixa-nos…é algo de
fabuloso, é algo de misterioso, é algo que a gente vê quase como dar vida, dar esperança.
(…) não esquecer que a vertente da cirurgia hepato-bilio-pancreática tem muito uma vertente
de tumor. Muito da vertente são casos perdidos, não digo que os casos estariam
abandonados, mas seriam casos rotuláveis como não tratáveis que iriam falecer… quando a
gente opera uma hérnia a um indivíduo é um bocado diferente, não é? (AA6, Cirurgião)
[o que é que o transplante não lhe dá?] É só técnica cirúrgica. Quem faz o diagnóstico antes
são outros, quem toma conta dos doentes depois são outros. Não há um todo. [comigo], todos
os doentes que entram é-lhes explicado que tipo de cirurgia vão fazer, têm conhecimento das
instalações, têm conhecimento de quais são as preparações pré-operatórias para a cirurgia,
quais são os cuidados no pós-operatório, tudo isso é explicado. (…) neste momento acho que
estamos a ter uma expectativa demasiado de fábrica (…) (AA9, Cirurgião)
Posto isto, tornam-se agora mais evidentes os motivos que estão por detrás do
conflito entre profissionalismo e managerialismo neste contexto médico. Se no caso do
serviço médico de base conservadora, o profissionalismo médico está fundamentalmente
ancorado na tradição e nos fins dos médicos enquanto sinónimo de autonomia individual,
240
Tiago Correia
neste caso, o profissionalismo está enraizado em torno dos fins do director de serviço e da
grande maioria dos médicos enquanto sinónimo de projecto profissional. Associado a uma
autoridade profissional centralizada e interventiva no quotidiano deste serviço, encontrou-
se igualmente um papel importante das relações de carácter pessoal entre alguns médicos e
o director. Como se percebe, a mais directa consequência disto é uma ligação mais intensa
entre os profissionais, o que constitui um forte desafio à autoridade proveniente do CA.
Formas concorrenciais de poder internas a este serviço, embora evidentes, acabaram por se
mostrar dependentes de uma intervenção managerialista que autonomize estas duas áreas
científicas em dois serviços médicos distintos. Neste sentido, e dado que a orientação dos
comportamentos, quer por valores, quer pela tradição, foram especificamente encontrados
nesse grupo específico de cirurgiões, não é de estranhar o peso pouco expressivo que
revelam na estruturação do serviço.
241
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
conservadora, por um lado, e de base empresarial, por outro. O que isto traduz é que os
interesses individuais não são necessariamente comuns, partilhados e arbitrários, estando
dependentes de contextos específicos de acção. De facto, é seguro afirmar que diferentes
contextos criam diferentes possibilidades de comportamentos, não havendo outro modo
para justificar essa regularidade senão por intermédio da definição estrutural dos limites
para a acção individual. Daí que a grande maioria dos médicos no primeiro serviço
apresentasse uma orientação dos seus comportamentos predominantemente centrada pela
tradição e pelas respectivas autonomias individuais, enquanto para a maioria dos médicos
do segundo serviço a regularidade foi uma orientação consciente quanto ao fim de fazer
parte do projecto científico do director de serviço.
242
Tiago Correia
Eu continuo a achar que as coisas são complicadas porque as pessoas são complicadas. As
coisas às vezes são complicadas mas na maioria das vezes as pessoas é que complicam
aquilo que é fácil. Portanto, podem chamar a isso de EPE, SA, função pública, podem pôr as
siglas que quiserem. Se as pessoas que cá estão são todas complicadas, não interessa o que é
que isto é, vai ser sempre difícil. [em relação a outro hospital onde trabalhou] tenho a noção
que lá era tudo mais fácil. Eu conheço as pessoas que estão lá e que fazem ensaios clínicos,
as coisas são mais fáceis, é mais prático, não é tão complicado. (AB6, Internista)
Neste excerto torna-se claro, pela experiência do médico, que no outro serviço onde
trabalhou a realidade vivida é diferente, não devido à posição da especialidade, mas de
acordo como as regras são mobilizadas. Não deixa de ser um serviço de medicina interna,
não deixa de ser uma actividade assistencial pouco diferenciada ao nível do uso de
tecnologia, não deixa de representar o repositório de doentes de outras especialidades.
Portanto, além da existência de condições estruturais para a acção torna-se necessário
salientar os motivos, ora para a reprodução, ora para a mudança de comportamentos.
Além do exemplo fornecido pela medicina interna, a prova que a acção individual
dos profissionais acaba por estar intrinsecamente dependente dos seus intervenientes ao
ponto de configurar as condições estruturais dos outros profissionais, é também
identificável para a gestão hospitalar.156 Por um lado, deu-se conta de todo um conjunto de
constrangimentos internos e externos específicos a cada organização para justificar a
existência de condicionalismos efectivos ao modo como o mesmo gestor nem sempre
consegue os mesmos resultados com o mesmo projecto e estratégias. Por outro lado, é
156
Embora o reduzido número de gestores presentes no estudo de caso impossibilite qualquer
desenvolvimento analítico sobre a acção dos gestores hospitalares, optou-se por não deixar de
mencioná-los como forma de provar que a liberdade de acção nos contextos hospitalares não é uma
condição exclusiva da discricionariedade médica.
243
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Eu acho que os poderes [legalmente atribuídos ao CA] são manifestamente suficientes para o
que podemos fazer e para o que estamos a fazer. O problema está muitas vezes em saber se
os poderes são exercidos, quer em termos de extensão de poderes quer em termos de bom
senso, e aqui não sei (…) (AG2, Gestor, Membro do CA)
[até que ponto é que para o seu projecto de gestão é importante o controlo da actividade
médica?] Eu acho que é decisivo. A actividade médica é o coração do hospital, é ela que
determina tudo no hospital, quanto gasta, quanto consome, quantas refeições produz. Tudo
isso depende da actividade clínica e da decisão médica. (…) o controlo sobre o médico
executante de tarefas operacionais concretas passa muito pelo controlo e pela capacidade de
influência da gestão junto dos seus directores e dos seus responsáveis intermédios, criando e
inculcando uma cultura diferente junto dos directores e dos responsáveis intermédios
(Gestor, Membro do CA, AG2)
Há sempre uma hierarquização decorrente dos lugares. Um presidente pode ser gestor como
ser médico, mas um presidente que seja gestor tem que ter alguma visão ampla de toda
actividade clínica e tentar aqui uma relação de parceria e um trabalho de equipa. Eu acho que
arranjar aqui uma forma hierarquizada de funcionamento e dizer <os médicos têm que estar
244
Tiago Correia
acima ou os gestores têm que estar acima…>, as coisas não funcionam assim. O que tem que
existir é de facto no perfil de um presidente do hospital é uma grande gestão de bom senso,
bom senso. (Gestor, Membro do CA, AG3)
Estão em presença modos não inteiramente coincidentes na forma como estes dois
gestores se posicionam relativamente à autoridade médica. O primeiro evidencia uma
preocupação e mesmo necessidade de controlo sobre a actividade dos médicos, por
intermédio de uma gestão legitimada hierarquicamente e dotada de poder formal para gerir
o hospital. Gerir acaba por se assumir enquanto sinónimo de um controlo de tipo
administrativo-burocrático, onde se espera um cumprimento uniforme das regras definidas.
Não surpreende, por isso, que durante o período de observação este gestor tenha estado
envolvido em alguns conflitos profissionais com a medicina. Parte do desempenho
profissional passa pela tentativa de um efectivo constrangimento das autonomias
profissionais, tendo em conta a preocupação do respeito pelos desígnios do hospital.
Paralelamente, manifesta uma nítida consciência quanto ao poder diferenciadamente detido
entre várias especialidades médicas e a necessidade de manter intocáveis certos espaços de
autonomia médica. Ou seja, a sua intervenção sobre o funcionamento hospitalar não tem
por base um reconhecimento homogéneo sobre as várias actividades médicas, dado que
equaciona de uma forma completamente individualizada critérios de diferenciação
definidos por si. Além disso, a sua intervenção sobre a autonomia médica tende a acontecer
apenas em situações que se apresentem como contrárias em relação ao modo como
projecta a sua concepção da gestão hospitalar. Foi por isso que anteriormente se
comprovou o reforço do profissionalismo médico no serviço de cirurgia. Apesar dos
espaços de autonomia verificados nesse serviço serem motivos de conflito potencial com
os objectivos do CA e do próprio hospital, a opção é deixar intocáveis alguns desses
espaços de autonomia. Dada a orientação manifestada por este gestor percebe-se que o
motivo fundamental disso é o facto de o serviço responder aos critérios de produtividade
pretendidos:
repare, o serviço tem crescido, tem mostrado mais serviço, tem feito mais transplantes, tem
uma produção cirúrgica aumentada, portanto, nós temos facilitado tudo o que o serviço
precisa para produzir e para se expandir e ele tem respondido. Podia ser melhor? Podia ser
mais económico? Com certeza que podia. O modelo de incentivos podia ser mais
transparente e ser diferente, mas isso não tem sido objecto das nossas preocupações (Gestor,
Membro do CA, AG2)
Pelo relato de experiências anteriores, percebe-se que caso a orientação do serviço
fosse contrária aos interesses e projectos deste gestor haveria condições para fortes
245
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
e eu disse <tem que fazer isto. É uma obrigação que eu lhe incumbi. O Sr. não pode dizer
que não. O CA está a dizer para o Sr. fazer, é uma obrigação. Faz parte dos seus deveres de
funcionário do hospital. O Sr. tem que fazer> (Gestor, Membro do CA, AG2)
o director clínico da altura, a forma de ser dele muito desconfiado e sobretudo muito
paralisado incapaz de fazer coisas, nós fomos aguentando aquilo mas a situação tornou-se
insustentável e houve um dia em que eu lhe disse <ou o Sr. se demite ou eu proponho a sua
demissão, porque o Sr. não dá andamento às coisas, tem medo de tomar decisões, é contra as
decisões de gestão>, e o Sr. lá saiu (Gestor, Membro do CA, AG2)
Por outro lado, o excerto apresentado em relação ao segundo gestor respeita uma
coerência com a prática observada ao longo da pesquisa, sendo notório o modo como este
entendimento da gestão e de medicina orientava a sua prática profissional quotidiana. Não
houve registo de nenhuma situação em que os médicos se tenham referido a este gestor no
sentido da existência de conflitos profissionais. Neste caso, a gestão é percepcionada no
sentido de apoio à decisão médica sem entrar numa lógica de concorrência pelo poder no
hospital. As diferenças relativamente ao entendimento do primeiro gestor são, por isso,
visíveis. Enquanto nesse caso o entendimento da medicina é que, como qualquer outra
actividade no hospital, responde à autoridade da gestão, por seu lado, o segundo gestor
acaba por evidenciar um entendimento da gestão não em sentido concorrente, e por isso
conflituoso com o profissionalismo médico, mas mais num sentido de apoio à decisão
médica. Quando questionado sobre a sua percepção da aceitação dos seus projectos por
parte dos médicos e se isso tinha causado algum tipo de conflito, a sua resposta é
esclarecedora:
Não, não. Podia aqui haver alguns constrangimentos nesse sentido, mas não tive nenhuma
barreira até à data. Nenhuma. (Gestor, Membro do CA, AG3)
Em sua opinião, este resultado está associado ao exercício das funções de gestão
hospitalar mais em sentido de cooperação relativamente aos pedidos dos médicos, os quais,
segundo ele, o vêem como um auxílio à concretização dos seus interesses profissionais.
246
Tiago Correia
Aliás, esta percepção é tida pelo gestor com grande valor e importância para a qualidade do
trabalho desenvolvido.
Sem que estas evidências empíricas sejam suficientes para chegar a qualquer
definição analítica capaz de mapear a prática da gestão hospitalar, torna-se visível o
argumento teórico que a construção reflexiva da acção desempenha um papel activo na
configuração das relações inter-profissionais. Além disso e, porventura, mais importante
fica provada a ideia que as regras organizacionais, enquanto propriedades estruturais,
dependem directamente dos indivíduos por elas responsáveis. O desempenho da gestão
hospitalar deve, por isso, ser analisado nesta vertente mais complexa, variável e
contingente, do que transparece na objectividade dos seus instrumentos quantitativos.
Tal como foi argumentado já neste ponto, uma das provas mais evidentes do papel
da acção na configuração das estruturas é encontrada na forma como os directores de
serviço configuram de um modo único cada serviço médico. Houve a oportunidade de pôr
em evidência a motivação dos directores, quer do serviço médico de base conservadora,
quer do serviço médico de base empresarial, para a concretização dos respectivos projectos
profissionais. O primeiro, fortemente influenciado por uma orientação quanto à tradição,
reproduz de forma, ora consciente ora não consciente, lógicas de autonomia médica como
de resistência às mudanças prosseguidas por uma moderna gestão hospitalar co-existentes
com um forte sentido de lealdade para o exterior. O segundo, por seu lado, apresenta uma
forte influência por uma orientação quanto aos fins, principalmente quanto à concretização
de um projecto científico de relevância política e científica, quer nacional, quer
internacional (Cf. ptos.8.2. e 8.3.).
Sabendo da existência destes dois espaços de acção marcados por processos tão
distintos, o aspecto que se pretende pôr em destaque é a sua influência na produção das
orientações da acção dos médicos aí socializados. Como se percebe, esta discussão
247
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
248
Tiago Correia
249
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
inequívoco o papel que a socialização directa exercida pelos pais ou por familiares directos
foi determinante para a maioria dos médicos entrevistados:
[Porque motivo veio para esta especialidade?] Oh, isso é quase genético. Porque as coisas
foram acontecendo, mas acho que estavam predestinadas. O meu pai é cirurgião (…) e por
isso foi uma coisa na qual cresci. Depois quando era adolescente achava graça para aprender
a comportar-me num bloco e a respeitar as regras da sepsia e isso tudo…comecei a ir aos
transplantes – nessa altura ainda só se faziam os transplantes [hepáticos] experimentais em
animais (…). Depois também ia aos transplantes pancreáticos quando estava na faculdade e
depois começaram os transplantes renais em humanos. (…) quando acabei o curso comecei a
ajudar e depois vim para cirurgia e comecei a fazer. (…) portanto, foi muito cedo. Não me
consigo imaginar a fazer outra coisa (AA7, Cirurgião)
Por outro lado, importa desmistificar um peso excessivo que uma análise centrada
da socialização familiar pode significar na escolha de se ser médico. Não foi assim tão
fortuita a influência de dimensões mais amplas de socialização presas a referenciais éticos
e morais sobre o papel da medicina na cura e ajuda. De facto, os médicos, sem a presença
de outros médicos em fases iniciais de socialização directa, evocaram uma construção ética
e moral da profissão como justificativo da sua escolha. O valor social da vida e o lugar
exclusivo que a medicina ocupa na sua salvaguarda acaba por implicar outros benefícios
alargados que podem ser de natureza social, económica ou política:
Quando entrei na faculdade não sabia o que queria ser e a medicina permitiu-me adiar um
bocadinho essa decisão, porque, apesar de tudo, o curso de medicina ainda abre muitas
portas (quer dizer), ser dizer: ser médico permite muitas coisas. (…) Não vamos ser
hipócritas, também tem a ver com um certa segurança profissional. (…) Mas acho que tenho
jeito para as pessoas e falar com elas (…) pareceu-me a melhor maneira de conciliar as duas
coisas, percebes? (AA1, Cirurgião)
250
Tiago Correia
[como pensou em ser cirurgião pela primeira vez?] desde pequenino, acho eu. Porque estive
dois anos internado num hospital com um problema de saúde complicado e nessa altura
disse: <ok! Quero ser médico>. Ser cirurgião era a única coisa que eu podia escolher (…),
essencialmente era poder fazer com que as pessoas não passassem por muita coisa que eu
passei e que pudesse abreviar esse sofrimento. (…) A cirurgia tinha esse caminho. (AA12,
Cirurgião)
157
O psicoterapeuta e psicanalista oriundo da escola psicológica de C. G. Jung dá conta que o
objectivo desse autor foi trazer acontecimentos considerados irracionais, ocultos e misteriosos para
um domínio de racionalidade científica. A relativa marginalidade do pensamento Jungiano na
psicologia cognitiva – europeia e americana – é justificada por Hopcke pela estrutura de raciocínio
causa-efeito dominante nas sociedades da revolução industrial influenciadas pelo Iluminismo,
dificilmente permeáveis à noção de incerteza e de contingencialidade nas trajectórias e opções de
vida. A referência que se faz ao conceito não anula, contudo, uma interpretação crítica sobre as
suas limitações quando analisado sob premissas de carácter sociológico.
251
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Relembrando que o objectivo deste ponto está centrado na discussão das acções
individuais como produto e produtor da realidade social e após se ter comprovado as
implicações da primeira parte desta relação, estão criadas as condições para explorar o
modo como a reflexividade pode fugir às aprendizagens sociais, evidenciando o papel
activo do indivíduo não só como um produto social, mas também como produtor dessa
realidade.
[Ao questionar um cirurgião sobre a área de especialização em que ele se revia, dada a
divisão interna entre quem faz cirurgia geral e cirurgia hepática e biliar a sua resposta foi:]
Em qual das duas é que me encaixo? Bem, eu estou forçosamente mais ligado à cirurgia
hepato-biliar. Tenho feito muito pouca cirurgia geral, apesar de gostar e pensar em mim
como um cirurgião geral. Eu vejo-me como um cirurgião geral. (…) Eu sempre gostei de ter
uma visão mais geral das coisas e gosto de pensar em mim como um cirurgião geral (…) e
tenho pena, quer dizer, se tivesse que escolher hoje, para trabalhar naquele serviço, se eu
tivesse que escolher entre estar no grupo da hepato-biliar ou no grupo da geral, continuaria a
estar na hepato-biliar. (AA1, Cirurgião)
O que esta ideia permite equacionar é uma não linearidade na coerência dos
comportamentos. Além de poderem estar dependentes de contingências, como é o caso de
acontecimentos que despertam um significado nos indivíduos, existe a possibilidade de
avaliações constantes entre aquilo que se tem e o que se espera ter.
252
Tiago Correia
Neste sentido, pode-se assumir a acção numa componente estratégica além da mera
reprodução de influências passadas. Esta estratégia não é apenas um produto de
aprendizagens, dado que pode opor-se a processos determinantes na socialização dos
indivíduos e dos seus níveis de referenciação mais importantes. Comportamentos tanto
reproduzem como podem alterar processos enraizados, principalmente porque os contextos
de interacção e os recursos detidos pelos indivíduos também assumem uma natureza
mutável. Foi com esta base que na reflexão teórica sobre a estrutura cognitiva da acção se
afirmou que a alteração das práticas rotinizadas e os interesses são dois mecanismos
explicativos para considerar os desvios da acção como não contradições nem
indeterminações.
Dizer que não há uma linearidade na coerência dos comportamentos não significa
que não exista uma estrutura responsável por essa ordenação. Pelo contrário, afirma-se que
os comportamentos são tendencialmente coerentes sempre que respeitem motivos,
conscientes ou não.158 A questão é que os motivos nos quais os comportamentos se
suportam são diversos e podem co-existir no interior de cada indivíduo, sendo
fundamentalmente aí que se baseia a existência das aparentes contradições e indefinições
do curso das acções.
158
Obviamente esta afirmação não se refere a comportamentos reactivos ou impulsivos. Em todo o
caso, é possível pressupor que algumas influências sociais cristalizadas podem constituir parte
destes comportamentos. São de tal modo profundas na existência individual que definem a essência
do indivíduo.
253
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Já entrei na escada, não sei se quero subir até ao cimo dela, estás a perceber? O facto de nós
gostarmos de correr não quer dizer que nós depois queremos ser todos Carl Lewis, não
é?...gosto de correr. (…) (AA1, Cirurgião)
Certamente outros campos científicos que não o sociológico trariam outros vectores
explicativos sobre a diversidade do curso dos comportamentos e a sua aparente
contradição. Neste trabalho, pelos menos estas três dimensões explicativas da acção foram
identificadas como essenciais para a compreensão dos contextos de trabalho, a sua
configuração e dinâmicas: (I) os efeitos nítidos dos processos de socialização pessoal e
profissional; (II) um sentido diversificado dos interesses presentes e futuros não
decorrentes apenas das trajectórias passadas mas de uma avaliação reflexiva, e neste
sentido crítica, daquilo que os indivíduos esperam vir a concretizar, e que resulta de uma
avaliação entre expectativas e experiências; (III) a atribuição de significados a situações
percepcionadas como dignas de valor e, por isso, entendidas como determinantes nas
opções tomadas e no sentido dos comportamentos. Estas dimensões permitem perceber a
base alargada onde se suportam as opções da acção, segundo numa matriz que articula
254
Tiago Correia
Este último ponto de reflexão visa fornecer elementos que permitam sistematizar alguns
dos processos atrás descritos. Porque o nível analítico está centrado no plano individual, é
imprescindível um conhecimento mais aprofundado sobre os intervenientes em presença.
Concretizando um dos pressupostos teóricos defendidos neste trabalho, as conclusões
apresentadas aplicam-se apenas aos contextos empíricos observados, não sendo possível
extrapolar as suas dinâmicas para outras realidades hospitalares. Afinal, o sistema de acção
é específico (Cf. Crozier e Friedberg, 1977), o que implica que qualquer análise desta
natureza não prescinde de um conhecimento aprofundado sobre os mecanismos próprios
desse contexto de interacção e dos indivíduos que o constituem.
159
Para uma compreensão dos elementos conceptuais que suportam esta discussão vd. ponto 6.1.
255
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
160
Cf. apresentado na figura 2.2. como os níveis (B) e (C).
256
Tiago Correia
constroem a sua posição no serviço, como se relacionam com as suas chefias e com a
gestão hospitalar e como projectam a sua actividade profissional. O resultado é um quadro
multifacetado sobre a forma como a profissão médica é exercida em função dos sentidos
individualmente atribuídos à acção.
257
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
258
Tiago Correia
9.3.2. “Levei sempre muito a peito o facto de fazer bem”: o peso dos valores
259
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
quando diz “ninguém vê nada, ninguém faz nada”, exemplifica o modo como as questões
relativas ao funcionamento do hospital e do serviço, embora afectem a sua motivação, são
colocadas como competências externas às suas responsabilidades enquanto médico. Não
manifesta qualquer interesse em relação à alteração do estatuto jurídico do hospital e às
mudanças daí decorrentes: “qual é a expectativa? Não sei responder. [Não tem
nenhuma?] Não tenho. Não sei, não faço ideia”.
Deste ponto de vista, a oposição relativa à maior intervenção dos gestores hospitalares no
seu trabalho quotidiano tende a sobressair em medidas que interfiram no modo como se
relaciona com os doentes, naquilo que define como pressão para uma “relação artificial”.
Obviamente que isto não exclui todo um outro conjunto de críticas de natureza mais
ampla relativas à interferência em domínios como a prescrição de medicamentos ou
controlo da sua produtividade. Aliás, refere que a sua preocupação é os doentes e por isso
faz o que tem a fazer por eles e não pela existência de mecanismos de controlo.
9.3.3. “Não tendo ninguém, quem está lá sou eu”: a confiança nos afectos
260
Tiago Correia
261
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
9.3.4. “tenho cada vez mais cuidado na forma como o abordo”: a reinvenção
pelos fins
Cirurgião, 50 anos, assistente graduado. Ocupa uma posição no serviço afastada das
grandes actividades aí realizadas: se por um lado, não quer estar ligado à cirurgia geral,
por outro, não consegue aceder ao espaço da vertente hepato-bilio-pancreática: “num
lado porque ainda não fui totalmente aceite e no outro porque não concordo com a
filosofia das pessoas, embora as respeite…aliás, são pessoas que estiveram ligadas à
minha formação (…).” Na realidade, a sua posição está associada a uma particularidade
pouco vista. Quer pela geração, quer pelas equipas por onde passou neste serviço, quer
por ser filho de um anterior director do serviço, sobre ele recai todo um peso simbólico
de uma medicina antiga e de uma prática clínica não compatível com o projecto
pretendido pela actual direcção. A questão é que não obstante processos claros de
socialização familiar e profissional, este médico acaba por revelar de um modo reflexivo
uma posição tendencialmente crítica quanto ao modelo médico dominante e típico que
esteve na sua base de sua formação: “estou totalmente de acordo com a filosofia do
[director] e totalmente, pronto, em desacordo com a filosofia de outras pessoas do
serviço. São filosofias conservadoras…estou 100% de acordo com o [director].”
De facto, por um lado, o seu percurso profissional reproduziu efeitos exercidos pelo seu
pai, através da especialidade médica escolhida, do serviço onde se formou e deu
continuidade à sua trajectória profissional, das equipas onde esteve incluído e,
consequentemente, do tipo de prática médica que foi habituado a fazer. Por outro, a sua
posição tende a ser consentânea com o projecto científico do director, além de convergir
em relação ao entendimento da medicina numa perspectiva mais especializada e
domínios restritos. Exemplo disso é mostrar uma clara disponibilidade e interesse para
ser englobado na área científica dominante do serviço: “a minha atitude em relação ao
[director] e à actividade de cirurgia hepato-biliar é a colaboração quando ele me vai
solicitando…se pudesse, se me pudesse incluir mais nesse tipo trabalho, é a minha via.”
Entre os médicos mais afastados nas suas formações desta área e que acabaram por se
constituir num grupo contra o projecto científico e o modelo de autoridade exercido pelo
director, este foi o único médico a manifestar um claro interesse em mudar a sua área.
Embora quando confrontado com essa posição tenha mobilizado a tendência para a
especialização médica, o seu discurso vai deixando transparecer uma consciência quanto
ao futuro do serviço em torno do projecto da transplantação, a que se associam as
vantagens financeiras dessa área e a indefinição quanto ao grupo de médicos não
incluídos nessa vertente: “[perante a divisão cirurgia geral de um lado e cirurgia
hepato-biliar do outro, o doutor tenderia para qual destes lados?] Para a cirurgia
hepato-biliar. Nomeadamente a área dos transplantes (…) também temos o direito de
levar mais para nós e para as nossas famílias em termos de honorários e, portanto, eu
penso que é o que tem mais [além da vertente técnica e humana] de interesse”.
Esta situação comprova a existência de situações dialécticas entre influências passadas e
objectivos futuros, em que o curso da acção pode ser tendencialmente pressionado para
orientações distintas às esperadas dentro de um determinado quadro de referenciação,
neste caso, social e profissional. Obviamente que isto é acompanhado por uma
consciência reflexiva quanto às suas estratégias, sobretudo em relação ao director: “é
uma pessoa importante para minha vida profissional. Portanto, tenho que ter cuidado,
obviamente, e tenho cada vez mais cuidado na forma como o abordo. (…) a minha
maneira de ser é um corredor de fundo e por isso acho que vou perseguir esta via
262
Tiago Correia
enquanto achar que é a correcta e acho que vou ter dividendos disso.”
263
Tiago Correia
CAPÍTULO IV:
REFLEXÃO METODOLÓGICA
265
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
efeitos pressupõe uma atenção analítica prévia para as possibilidades do inesperado, o que
não invalida nem contraria o primado da função de comando da teoria. (vd. também Pinto,
1984b)
Tal como o próprio nome indica, a análise desenvolvida num estudo de caso
pressupõe a excepcionalidade desse caso comparativamente a outros contextos passíveis de
ser observados (Vennesson, 2008). No entanto, e embora específico nas suas características
– e que fazem dele um caso digno de estudo –, a análise desse caso permite compreender
não apenas essa unidade, como outros contextos tomando esse caso por referência. Neste
sentido, a pertinência associada a um bom caso parte, em primeiro lugar, de uma escolha
266
Tiago Correia
teoricamente orientada. Quanto melhor o caso, mais condições existem para que as
generalizações feitas a partir daí tenham maior relevância teórica e empírica. Isto não
traduz um raciocínio inferencial em que se extrapolem conclusões e vaticinem resultados.
Apenas considera que, por intermédio da compreensão aprofundada de um contexto
relevante, é possível perceber o funcionamento de um conjunto mais vasto de realidades.
Assim, as conclusões a que trabalho chega têm condições de ser genericamente
encontradas entre os restantes prestadores hospitalares públicos portugueses. Importa não
esquecer que foram escolhidas as especialidades médicas que melhor traduzem os tipos-
ideais de uma actividade médica de base conservadora e de base empresarial, nos contextos
empíricos onde estes se apresentam na sua formulação mais pura.
É certo que as variações e especificidades próprias de cada contexto não podem ser
ignoradas nem anuladas, sob pena de um esvaziamento da diversidade processual própria
das organizações hospitalares. Aliás, uma das conclusões deste trabalho é a crítica à
existência de modelos normativos generalizáveis a toda a realidade hospitalar portuguesa,
sobretudo sem um conhecimento sobre as especificidades sistémicas de cada organização.
É decorrente da discricionariedade profissional detida pelos intervenientes destes contextos
– médicos e gestores – que se confere legitimidade a este modo de olhar a realidade
empírica.
Dito isto, o principal motivo que suportou a escolha deste caso foi a existência de
uma unidade de transplantação hepática que, como se viu, constituía na altura a área
médica mais dispendiosa do SNS. Cumulativamente, o hospital em causa não tinha ainda
sido empresarializado, pelo que havia condições irrepetíveis de se estar presente num
contexto que se foi reconfigurando ao ritmo das subsequentes alterações jurídicas tendo em
vista a sua empresarialização.
São apontados dois motivos para esta opção metodológica. O primeiro relaciona-se
com o capital científico acumulado pelas investigações feitas em Portugal a respeito de
várias dimensões da profissão médica em contexto hospitalar (e.g. Carapinheiro, 1993;
Lopes, 2001a; Serra, 2004). Postura epistémica e metodológica oriunda da Escola de
Chicago e com marcos ainda hoje considerados fundamentais na análise sociológica em
saúde (e.g. Goffman, 1974a; Becker, et al, 1961), é consensual a ideia que as
especificidades da profissão médica, nomeadamente a sua inacessibilidade, beneficiam de
uma análise de carácter intensivo e prolongado. Como se verá mais adiante, esta ideia
acabou por ser corroborada também neste trabalho.
267
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Olhando para trás, a ideia com que se fica é que uma estratégia metodológica
distinta desta não teria sido suficiente para captar as dimensões que foram aqui
desenvolvidas. Não é que se defenda a existência de problematizações sociológicas
vedadas a algumas metodologias, contudo, a inacessibilidade da profissão médica, além do
carácter exploratório com que se traçou este olhar sobre as relações profissionais por
intermédio da agência actuante dificilmente se coadunaria com instrumentos de natureza
extensiva e padronizada.
268
Tiago Correia
269
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
sua realização teve lugar no próprio hospital. Apesar de esse não ser um local neutro nos
papéis assumidos, dado que os indivíduos eram levados a falar enquanto profissionais
sobre aspectos relacionados com o seu local de trabalho com um elemento externo, esta foi
a solução possível para compatibilizar disponibilidades difíceis de encontrar e garantir a
realização imediata de entrevistas. Todas elas decorreram sem a presença de outras
pessoas, tendo sido realizadas em espaços privados (gabinetes médicos e gabinetes dos
enfermeiros-chefe) e outros espaços públicos do serviço (salas de reunião).
O investigador é assim levado a assumir uma posição nem sempre fácil de conciliar
entre a necessidade de transparência que um trabalho científico desta natureza pressupõe e
a protecção da identidade dos seus intervenientes. Esse equilíbrio apenas pode ser
conseguido através de uma ponderação consciente de todos os excertos utilizados e as
informações que se deixam transparecer ou obscurecer. Além disso, os dados recolhidos
são da propriedade científica do investigador e a ele se reserva o direito de utilização dessa
informação.
De referir ainda que a abertura manifestada por alguns dos profissionais ficou a
dever-se, em parte, à experiência de um outro estudo sociológico realizado anos antes em
alguns dos mesmos contextos observados. Foram várias as referências ao investigador que
lá esteve e ao modo como essa experiência foi sentida como benéfica. Os investigadores
270
Tiago Correia
devem, por isso, ter noção do papel que desempenham em contactos desta natureza, não só
para o sucesso das suas pesquisas, como para a realização de outros trabalhos. Ficará
presente na memória destes profissionais a experiência vivida, e o relacionamento com os
investigadores será extrapolada para contactos futuros. Portanto, além do respeito ético e
das regras deontológicas que devem orientar a prática da investigação, o modo como o
investigador se relaciona com o campo empírico tem implicações que ultrapassam essa
relação.
271
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
posição mais interventiva no decorrer das entrevistas. O intuito era não deixar que os
entrevistados conseguissem controlar aquele contexto. As perguntas foram afinadas no
sentido da sua precisão, com referências a casos concretos, pessoas concretas e
experiências concretas. Se mesmo assim as respostas permanecessem a um nível de
generalização que não satisfizesse os objectivos teóricos traçados, a estratégia foi
interpelar, reformular a pergunta, dar outros exemplos.
A investigação acabou por se concretizar num único estudo de caso, embora essa não tenha
sido a opção inicial. Primeiramente, pensou-se numa análise comparativa entre um hospital
pertencente ao “tradicional” sector público (SPA) e um hospital empresarializado (EPE).161
O objectivo era captar as proximidades e distâncias entre esses dois modelos jurídicos por
comparação directa de dois estudos de caso.
A incursão no terreno teve início no hospital que depois acabou por ser o único
estudado. Foi enviada uma carta ao CA a explicitar os objectivos do estudo e o seu
enquadramento institucional. Seguiu-se uma reunião com o Presidente do CA onde se teve
a oportunidade de voltar a explicitar os objectivos do estudo. Olhando para trás, torna-se
hoje claro que o progressivo acesso a espaços inicialmente vedados foi um dos resultados
mais importantes conseguidos pela metodologia de investigação escolhida. De facto, tanto
161
Colocar entre aspas a designação tradicional procura salientar um modelo de sector público hoje
em dia não existente: uniformizado e distinto das regras e características outrora associadas ao
sector privado.
272
Tiago Correia
Eu não sei como é que você vai utilizar estas entrevistas…já lhe disse uma vez que isto para
mim era um grande risco, mas também acho que o conheço o suficiente para saber que você
não está aqui para fazer nenhuma patifaria. [Doutor, isto é para uma tese de doutoramento e
não tem que se preocupar com…] Mas ouça: eu aceito desafios. Não lhe pus restrição
nenhuma…podia ter dito: <o Tiago vem cá, faz isto e tal, mas quando chegar a altura, as
pessoas que você vai ouvir são estas…ou aceita ou não aceita>. (…) Portanto, quando você
apareceu eu nem percebi muito bem o interesse da observação para a conclusão do trabalho.
É um sociólogo que vai aqui ver as relações pessoais, vai ver como é que se trabalha, como é
que se gere esta área (…) (AA13, Cirurgião.)
273
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
162
De salientar que dos interlocutores mais importantes deste trabalho foram 2 enfermeiros-chefe.
Embora soubessem genericamente que o estudo estava focalizado nos médicos e na gestão
hospitalar, muitas das informações e pistas foram obtidas por intermédio de uma relação mais
próxima que se conseguiu com estes informantes privilegiados. Além disso, foi de extrema
importância ter aquelas presenças com quem se ia fumar um cigarro ou beber um café em
momentos difíceis em que acessos eram negados ou em que os médicos estavam em lugares
inacessíveis.
274
Tiago Correia
vedavam, mas porque também havia uma genuína afinidade que se construiu com esses
interlocutores. Por isso, o equilíbrio que se procurou garantir foi ir colocando algumas
barreiras a contactos pessoais extra-hospital que nessa fase poderiam pôr em causa a
imagem dos restantes médicos sobre o investigador e, consequentemente, prejudicar o
sentimento de relativa confiança que havia sido consolidado.
[Sentiu que alteravam o modo de comportamento, aquilo que diziam na minha presença?]
Não, acho que não. Por acaso isso é curioso, acho que não. Acho que você conseguiu ver
naquelas reuniões e nos sítios onde esteve …mas não vi nenhum constrangimento na forma
como as pessoas se comportavam, digamos assim, nem o [director]. Não sei, se calhar
também tem a ver com o facto de você sentar-se lá atrás, nós muitas vezes apercebíamo-nos
que você estava lá ao fim da reunião, percebe? Quer dizer, não participava muito, passava
despercebido e isso de alguma forma facilitou a nossa normal gestão das coisas. (AA8,
Cirurgião)
163
Caria (1999: 30) apresenta uma tipologia sobre as atitudes dos indivíduos observados face ao
processo de investigação, considerando em quatro quadrantes: uma “atitude de identificação”, uma
“atitude expectante e implicante”, uma “atitude de submissão e auto-exclusão” e uma “atitude
defensiva e formal”. Será, pois, de relevância o investigador reflectir sobre as implicações destas
diferentes respostas para a condução da pesquisa de terreno e, tendo consciência desses efeitos, o
modo como pode tentar alterar atitudes desfavoráveis à prossecução dos seus objectivos.
275
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
De facto, embora se tenha partido para o terreno com elevadas reservas quanto à
informação a ceder, o processo de ambientação ao espaço foi revelando os benefícios
crescentes do contacto e partilha quotidiana com os profissionais estudados.
Tenho ideia que você queria ter uma atitude observacional, ver coisas e assistir a coisas e eu
achei que isso era um bocadinho exagerado (…) eu tive uma atitude de receio inicial: “eh pá,
este tipo vem para aqui, vai assistir a reuniões, a conversas que são às vezes melindrosas e
assuntos muito particulares, muito sigilosos,…não me parece bem”. Mas reconheço,
primeiro que você é uma pessoa que trabalha com seriedade e com total honestidade e
repare, esta questão é muito importante, porque sem esta questão garantida não é fácil
abrirmos as portas para o que antes lhe disse. Não é fácil deixá-lo assistir a reuniões de
conselho [de administração] e você aperceber-se dos conflitos que temos aqui, para este ou
para aquele, se não houver uma fortíssima relação de confiança. (AG2, Gestor, Membro do
CA)
276
Tiago Correia
um jogo. Como tal, o processo científico iniciado pela ruptura (vd. Silva 2001), ao
envolver esta dimensão interactiva intrínseca à pesquisa de terreno, é indissociável de
trocas simbólicas e outras dimensões processuais que configuram o produto científico a
que se chega.
Dado que esta metodologia científica é o produto de relações sociais das quais
fazem parte estereótipos e outras opiniões apriorísticas, importa não ignorar a influência de
dimensões como o género, a idade, a postura física ou o modo de expressão oral. Mesmo
assim, e em consonância com o que foi dito anteriormente, a íntima dependência criada no
curso da pesquisa com investigador não pode ser interpretada como um obstáculo à sua
cientificidade. O que se exige da parte do investigador é uma consciência quanto à
influência destes factores no desempenho desse papel, interpretando o que pode estar a
prejudicar ou beneficiar o curso das interacções. É a rotinização das observações que vai
ensinando as melhores estratégias de interacção verbal e física para o sucesso da recolha de
informação.
277
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
não deixavam de se referir na 3ª pessoa do singular e sempre por “dr”, num claro
reconhecimento da sua posição no campo científico.
Você não me foi formalmente apresentado. Eu, a primeira vez que o vi, foi naquela manhã
de reanimação daquele doente (…). Entrei no quarto do doente, já em processo…, e você
não me foi formalmente apresentado…eu olhei para si e pensei: “quem será esta pessoa que
está aqui?” Você estava com um ar estupefacto…tinha ficado a um cantinho encostado à
parede e claro, a minha posição foi de estranheza. (…) depois perguntei: “quem é o fulano
que está ali?” Eu acho que percebi que era um sociólogo estava a fazer um trabalho qualquer
sobre saúde. (…) nós somos pessoas…eu não vi…agora, a primeira vez que o vi foi numa
situação de grande stress (…), quer dizer, senti-me um bocado…vejo uma pessoa que não
era do serviço…fiquei um bocado estranho, não é? Foi estranheza mesmo, mas a culpa não
foi sua. Se calhar tinha sido formalmente apresentado 20 minutos antes e eu não estava lá
(Internista, AB2)
Acontece que esta situação teve lugar meses após o começo da observação e de
presença no serviço, embora o entrevistado tenha dito: “se calhar tinha sido formalmente
apresentado 20 minutos antes (…)”. O trabalho realizado de uma forma autónoma e
relativamente individualizada faz com que as pessoas externas à equipa e à profissão sejam
mantidas numa posição invisível, desde que não transponham espaços físicos exclusivos.
Percebendo isso, uma das estratégias utilizadas para quebrar esses silêncios e indiferença
da parte dos médicos foi precisamente entrar nessas zonas restritas com o intuito de
suscitar a curiosidade dos profissionais e, consequentemente, abordarem o investigador.
278
Tiago Correia
investigador, num sentido em que, mais do que pejorativo, mantém vivo o seu estatuto de
outsider, e que demonstra um constante sentimento de vigilância da parte dos profissionais.
Foi um longo processo até conseguir aceder às reuniões do CA, mas como em todo
o processo de pesquisa de terreno, a insistência e rotinização da presença do investigador
foi conseguindo abrir esse círculo inicialmente intransponível.
164
Recordando que o desenho original da pesquisa incluía a comparação entre um hospital SPA e
outro EPE.
279
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
para que este aguardasse uma reunião no CA. Foi-se insistindo nessa marcação que, por
variadas vezes, foi cancelada. A última instrução dada ao investigador foi para que
aguardasse nova disponibilidade do CA, o que até ainda hoje se está à espera. Em todo este
processo foi determinante a presença de barreiras físicas no acesso ao CA que impediam
qualquer outra estratégia para desbloquear esse impasse. Por conseguinte, e como não se
conseguiu manter a dimensão organizacional desse hospital, todo o investimento prévio de
observação teve que ser formalmente posto de parte.
Reformulou-se então o desenho inicial da pesquisa para o centrar num único estudo
de caso. Ao mesmo tempo, o primeiro hospital onde já se estava a desenvolver a pesquisa
vê alterado o seu estatuto jurídico para EPE. A opção foi prolongar a estadia nesse
contexto e aprofundar a reflexão sobre a experiência de empresarialização de um hospital
público português.
280
Tiago Correia
Parecem critérios pouco científicos deixar o curso de uma investigação como esta
dependente dos capitais que o investigador tem condições de mobilizar ou da sua
perseverança em lidar com situações adversas criadas pelo facto de responder
individualmente pelo seu trabalho noutros contextos institucionais. Novamente o problema
torna-se mais sensível em caso de existência de uma entidade que patrocina a sua
concretização, podendo o seu desenvolvimento ficar seriamente comprometido pela
inexistência de estruturas profissionais que, além de enquadrar o investigador, estabeleçam
a relação com as instituições que o investigador pretende analisar, atestando perante elas o
reconhecimento do projecto e responsabilizando-se pela sua concretização.
Elias (1993) chama a atenção que a existência da realidade não pode estar
dissociada das percepções que os indivíduos têm sobre ela. Tanto é uma imagem o modo
como os indivíduos se posicionam no espaço social e relacional, como acaba por ser uma
imagem o trabalho científico sobre a compreensão da realidade empírica. Claro está que
estes dois domínios de percepções não podem ser colocados num mesmo nível, dado o
trabalho científico pressupor uma constante vigilância crítica do investigador em
interacção com os indivíduos que estuda, além de uma vigilância crítica sobre a
conceptualização que faz dos processos que aspira entender. Então, afirmar que o trabalho
científico corresponde a uma imagem significa que, dentro dos controlos necessários em
ciência, a captação do real não pode ser dissociada de quem a desenvolve. Onde se
pretende chegar é à noção que o produto científico está duplamente suportado nos limites
das racionalidades individuais: racionalidade do objecto de estudo e racionalidade do
281
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Uma das estratégias que mais se utilizou para lidar com estas discrepâncias é
referida por Venesson (2008) por hipóteses contrafactuais. São hipóteses que visam
282
Tiago Correia
assegurar um conhecimento mais rigoroso das hipóteses que efectivamente estão a ser
testadas, e cuja existência permite ir descartando possibilidades que podem estar a
confundir as relações em presença. Por exemplo, um procedimento habitual aplicado nas
entrevistas e nas conversas informais foi perguntar, não só o porquê de alguma coisa
acontecer, mas também o porquê disso não acontecer. O raciocínio pela negação muitas
vezes obriga a um exercício mental que rompe com o esperado e inculcado.
Claro que, além desta dimensão, existe todo um domínio de influências inculcadas
que se reproduzem de forma automática e não consciente. Contudo, foi no domínio daquilo
que os indivíduos sabem o que fazem e porque fazem que este trabalho procurou perceber
os resultados das relações inter-profissionais. Porventura, uma das limitações mais
significativas desta análise prende-se com a dificuldade na racionalização discursiva.
“Olhe, tenho muita dificuldade em responder”, “não percebo a pergunta”, “não sei, logo
283
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
se vê” são elementos das entrevistas que traduzem essa dificuldade. Foram encontradas
dificuldades na produção discursiva em todas as dimensões cobertas neste estudo: na
percepção do contexto político/empresarialização; na percepção do hospital, do serviço
onde trabalha e da gestão hospitalar; na percepção de si. Fundamentalmente, isto traduz
dois aspectos que uma análise desta natureza não pode ignorar. Por um lado, a força da
impregnação do social, levando a que parte dos comportamentos sejam desempenhados
sem consciência disso e, muitas vezes, sem consciência dos contextos sociais que os
envolvem. Como foi considerado na discussão teórica, a alteração das práticas rotinizadas
(responsável por uma dialéctica entre as expectativas e as experiências), além da
possibilidade de mutação dos interesses individuais (motivações) possibilita estados de
maior consciência e de vigilância reflexiva. Por outro lado, evidencia a componente
variável da consciência, em que a elevada produção reflexiva de alguns indivíduos
contrastou com uma total ausência reflexiva de outros. Ficou em aberto a explicação para
esta quase arbitrariedade na co-existência entre acções reflexivas e acções reproduzidas
sem consciência, sobretudo considerando que a análise respeita dois grupos de indivíduos
(médicos e gestores) relativamente homogéneo nos seus níveis educacionais, na
racionalidade construída e na sua cultura profissional e em algumas das trajectórias de
vida.
284
Tiago Correia
11. CONCLUSÃO
Embora se tenha chegado ao momento do fim, em boa verdade, trata-se de um fim que
deixa em aberto algumas questões impossíveis de serem aqui respondidas. Umas, impostas
por fronteiras científicas que tiveram de ser respeitadas, sendo este um trabalho claramente
delimitado nas suas premissas teóricas; outras, decorrentes de um tempo útil em que este
trabalho tinha que chegar a este ponto; por último, talvez a maior das impossibilidades, o
facto da complexidade inerente ao comportamento humano não permitir um fim que se
esgote numa única incursão sobre o tema. O desafio para a sua compreensão desenvolveu-
se já no decorrer da investigação, acompanhou parte significativa da sua concretização e
não termina neste fim. É daquelas presenças que após tomar-se consciência da sua
existência torna-se impossível de ignorar.
Porventura, uma das respostas mais interessantes sobre a reflexividade que ficou
por perceber foi o facto de alguns indivíduos apresentarem de uma forma mais
proeminente e esclarecida uma consciência reflexiva do que outros. Embora inerente à
condição humana foi notório o grau variável, e nem sempre representativo, com que os
indivíduos manifestam uma consciência sobre si, sobre os outros, sobre os motivos de
algumas das acções mais importantes das suas vidas, neste caso relacionadas com a sua
vida profissional. É certo que a resposta mais elementar para esta constatação é o que
autores contemporâneos como Pierre Bourdieu (2001, 2002) referem sobre a impregnação
do social na vivência individual, considerando que as influências externas aos indivíduos
vivem no seu interior e são accionadas de forma não consciente. Basicamente a ideia é que
285
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Ainda que esta forma de estruturação das opções individuais tenha sido a de mais
fácil identificação e mais representativa entre os profissionais observados, essa é apenas
uma parte da equação sobre a compreensão do curso da acção individual. Com efeito,
foram identificados processos que apontam para a capacidade humana de superar certas
formas de condicionamento estrutural como as que foram atrás referidas. Trata-se do
dualismo inerente à reflexividade que, de produto de aprendizagens e de contextos, assume
um papel activo nessa produção, ao ponto de configurar novos espaços de possibilidades
para os comportamentos futuros dos indivíduos. A questão é que a sociologia não pode
procurar a explicação dos comportamentos apenas por intermédio dos lugares sociais
ocupados e pela posse de determinados recursos, embora estas sejam duas condições
determinantes para a maior ou menor possibilidade de desvios dos comportamentos. É
neste sentido que se compreende como os sistemas humanos, tanto se perpetuam, como se
modificam, tendo por base processos cognitivos que vão desde a reprodução automática à
286
Tiago Correia
Foi por este argumento que o nível da estrutura foi situado, não só numa fase
precedente e externa à agência, delimitando os seus espaços de acção, como também se
incorporou a reflexividade individual na produção dessa realidade. A construção e
disseminação das estruturas sociais decorrem, assim, de objectivações individuais
(Boudon, 2003), considerando que os comportamentos, enquanto manifestação de
exteriorizações individuais de interioridades, dependem de um processo prévio de
internalização da exterioridade.
Como se percebe, isto não quer dizer que as opções da acção individual possam
estar desprendidas de influências externas. No entanto, os indivíduos deambulam por entre
um conjunto diversificado de influências sociais, que complexifica o entendimento dos
campos sociais tomados per si. Por exemplo, a compreensão do campo da profissão
médica não é suficiente para captar os sentidos possíveis dos comportamentos dos
médicos. Em primeiro lugar, porque ignora outros vectores de influência prévios e
paralelos que, associados a esse, complexificam o campo das possibilidades individuais.
Em segundo lugar, porque os indivíduos nessa complexidade têm condições para fazer
valer em determinados contextos certas determinações ou disposições mais enraizadas do
que outras (Lahire, 2005, 2008).
Uma das coisas que se comprovou é que a presença de uma dada disposição, mais
do que uma mera inculcação externa, pode ser sujeita a atribuições de sentido por parte dos
indivíduos, não valendo apenas por si. Isto significa que as influências podem nem sempre
despertar o mesmo grau de consciência e de valorização simbólica nos indivíduos, sendo
esse um domínio intrínseco à sua inteligibilidade. Neste sentido, compreende-se que o
indivíduo tem a capacidade de poder escolher em diferentes circunstâncias – entenda-se
diferentes contextos de interacção e diferentes interlocutores – certas disposições que, por
algum motivo, lhe suscitam algum tipo de interesse ou valorização nesse momento.
Influências, preferência, opções vêm e vão em função desta capacidade, variando em
função de dimensões, tais como os afectos, os interesses económicos ou científicos, as
lealdades, etc.
287
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Faz-se aqui um à parte sobre a utilização dos quatro vectores para a compreensão
do sentido da acção (tradição, valores, fins e afectos, cf. modelo conceptual da
racionalidade de Weber, 1983). Quando se reflecte sobre o comportamento humano tem
que se ter uma clara noção quanto à sua complexidade e multi-dimensionalidade. Daí se ter
afirmado que a captação da acção em toda a sua plenitude não pode decorrer de um único
trabalho ou de uma só perspectiva disciplinar. Tendo, então, uma clara consciência quanto
ao pequeno passo que este trabalho permitiu para essa compreensão, a adopção desses
quatro sentidos orientadores da acção procuraram filtrar alguma dessa complexidade tendo
em vista uma conceptualização dos comportamentos. Não significa que se possam
encontrar comportamentos puros quanto ao seu sentido, nem tão pouco assegurar que estes
quatro vectores cubram toda a orientação que os comportamentos podem assumir.
165
Embora a tradição e os valores sejam os sentidos da acção potencialmente mais estáveis, contempla-se a
possibilidade de fins e afectos poderem também assumir uma base duradoura, embora mais dependente dos
contextos e interlocutores em interacção.
288
Tiago Correia
Estas expressões retiradas dos discursos dos profissionais demonstram até que
ponto há pertinência em explorar a dimensão individual das relações profissionais, dado
que o nível institucional não tem forma de antever os processos de objectivação individual
intrínsecos à existência humana. Demonstram também o papel activo que a atribuição
reflexiva de sentido por parte dos indivíduos a si mesmos, aos outros, às suas expectativas
e interesses condicionam o curso da acção. Deste ponto de vista, alterações nos
comportamentos individuais não ocorrem apenas por intermédio desse tal princípio
dialéctico entre ocasiões e as disposições internas, sendo necessário equacionar a forma
como a essas disposições é atribuído um sentido significante.
Estas ideias traduzem um outro fim que este trabalho alcança. Refere-se ao modo
como a reflexividade complexifica os entendimentos sobre os contextos sociais. A
sociologia estuda factos sociais, mas, como se viu, tem condições conceptuais para estudar
o modo como os agentes podem fazer usos diversificados das condições estruturais
existentes. Já se percebeu que introduzir mudanças nas estruturas sociais, ou alterar o curso
dos comportamentos depende, em primeiro lugar, da posse dos recursos necessários para o
fazer, o que, por sua vez, está dependente da posição ocupada no espaço social relacional.
No entanto, a acção individual é mais do que isso, respeitando uma ordem interna que,
nuns momentos reproduz o conhecido e, noutros, tem interesse em fazer algo (tanto mudar
como reproduzir).
289
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Voltando a destacar a questão fundamental que ficou por perceber neste trabalho,
não se conseguiu explicar quais os mecanismos associados a uma maior ou menor presença
da reflexividade nas decisões profissionais. Sabendo que a alteração dos contextos
166
Neste sentido, se por um lado, um tipo de comportamento pode ser menos coerente do ponto de
vista das estruturas (habitus ou disposições) que o enquadram, por outro, adquire uma coerência
sempre que a agência actuante lhe atribui um sentido significante.
290
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Pôr a tónica nestes processos representou um desafio constante de não deixar fugir
os controlos conceptuais imprescindíveis para esse entendimento. Além disso, exigiu uma
preocupação no modo de exposição dos argumentos, procurando protegê-los de
interpretações menos prudentes. Elias (1993: 115) expõe de uma forma muito clara o
interesse perigoso de explorar a questão das individualidades nos processos sociais:
a ideia que se tem de si mesmo e dos outros seres humanos é uma das condições mais
elementares para que nos possamos orientar entre seres humanos (…) quando isto é posto em
questão, então a própria segurança está em perigo. O que era tido como certo torna-se
incerto. (…) Mas sem nos aventurarmos por uns tempos ao mar das incertezas não somos
capazes de escapar às contradições e insuficiências de uma certeza enganadora.
291
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
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A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Por outro lado, num serviço médico de base empresarial a natureza da actividade
está voltada para uma elevada rotatividade de doentes, por intermédio de uma prática
294
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As medidas que têm vindo a ser prosseguidas não são recentes, nem tão pouco
inovadoras. Respondem a directrizes partilhadas entre os países dotados de modelos de
providência, e são encontradas em Portugal desde os anos 80, em convergência com
295
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
296
Tiago Correia
No entanto, contrariamente à ideia que leituras menos prudentes podem dar conta,
não parece estar em causa o fim de um serviço público de saúde. Contudo, parece
inequívoca a tendência para acentuar a diferenciação interna na prestação pública de
cuidados e um maior espaço de acção conferida a prestadores privados. Isto, tanto pode
acontecer pela concessão da exploração de hospitais públicos a entidades privadas, como
pela actividade privada em concorrência com a pública, em que vão ocupando espaços
mais alargados no campo da medicina e da prestação de cuidados. Não se trata linearmente
de uma privatização, embora lógicas de privatização ganhem maiores possibilidades de vir
a ser implementadas.
167
Na altura da redacção deste texto ainda não se tinham realizado as eleições legislativas de Junho
de 2011.
297
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Para terminar, colocam-se duas questões: em que sentido o investimento feito neste
trabalho pode ser utilizado para a melhoria dos contextos observados? Fundamentalmente,
que retorno a sociologia pode dar sobre os conhecimentos que produz? Hoje em dia restam
poucas dúvidas sobre a necessidade da produção científica estar também voltada para
resultados que tenham uma relevância em domínios mais próximos da vida quotidiana.
Aliás, o reconhecimento social das ciências passa pela demonstração da sua utilidade e
sentimento de dependência para a vida em sociedade.
Tendo por base esta preocupação, o que este trabalho permite concluir é sobre a
existência de complexos processos relacionais impossíveis de anular, principalmente
quando os lugares ocupados envolvem um elevado grau de discricionariedade: liberdade na
tomada de decisão. De facto, os hospitais são dos lugares na sociedade onde isto mais se
faz sentir pela exclusividade e, consequente, insubstituibilidade do saber profissional aí
aplicado. A questão é que não se pode esperar que modelos normativos tenham o alcance
suficiente para conseguir a padronização de comportamentos que se espera, tendo em vista
a previsibilidade da actividade médica e dos seus gastos. A questão torna-se ainda mais
sensível caso se considere que essa discricionariedade detida pelos médicos é
acompanhada por um elevado poder, passível de se sobrepor às regras burocráticas do
hospital.
298
Tiago Correia
prossecução das medidas exigidas pela tutela, além de nem sempre eficaz, conduz, na
maior parte dos casos, a efeitos perversos e a um consequente antagonismo inter-
profissional sem resultados práticos, por ignorar a posição detida pela medicina.
299
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
300
Tiago Correia
12. FONTES
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Regional n.º 4/2003/M”, in Diário da República, 82, Série I-A, pp. 2273 – 77.
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Suplemento, Série I, pp. 1414(26) – 1414(29).
Ministério da Saúde (2007), “Decreto-Lei n.º 326/2007”, in Diário da República, n.º 188, Série I,
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Ministério da Saúde (2008), “Decreto-Lei n.º 180/2008”, in Diário da República, n.º 164, Série I,
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pp. 7255 – 57.
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316
Tiago Correia
ANEXOS
ANEXO A – PRINCIPAIS CATEGORIAS CLASSIFICATÓRIAS DOS HOSPITAIS PÚBLICOS
PORTUGUESES
168
Não se conseguiu apurar junto dos organismos responsáveis o significado de valências
intermédias e valências diferenciadas.
I
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Num passado recente, através da Lei n.º 27/2002, de 8 de Novembro, iniciou-se um processo de
reforma da gestão hospitalar mediante o aprofundamento das formas de natureza empresarial e de
gestão de recursos humanos.
Esta reforma, encetada com a alteração da natureza jurídica dos hospitais para sociedades anónimas
de capitais exclusivamente públicos, determinou, posteriormente, em finais de 2005, a
transformação das unidades de saúde em entidades públicas empresariais.
No que concerne aos recursos humanos, tem revelado ser linha condutora dos regimes do sector
empresarial do Estado, sucessivamente aprovados em 1999 e 2007, fazer aplicar aos respectivos
trabalhadores o Código de Trabalho, enquanto sede legal do respectivo estatuto de pessoal.
Na presente legislatura, iniciou-se a reforma da Administração Pública, estabelecendo a Lei n.º 12-
A/2008, de 27 de Fevereiro, novos regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos
trabalhadores que exercem funções públicas, prevendo, em particular, a revisão dos regimes dos
corpos ou carreiras especiais.
No âmbito da reformulação do regime de carreiras da Administração Pública, criou-se um patamar
de referência para as carreiras dos profissionais de saúde nos EPE‟s do SNS, pelo que adquire,
neste contexto, particular importância a intenção de se replicar o modelo no sector empresarial do
Estado.
Efectivamente, a padronização e identidade de critérios de organização e valorização de recursos
humanos, contribui para a circularidade do sistema e sustenta o reconhecimento mútuo de
qualificação e categorização, independentemente do local de trabalho e da natureza jurídica da
relação de emprego.
Para alcançar este desiderato, torna-se imperativo alterar, em conformidade, o regime de pessoal
dos hospitais EPE no domínio do SNS para todos os profissionais de saúde. Esta alteração não
condiciona a aplicação do Código do Trabalho, nem a liberdade de negociação reconhecida às
partes no âmbito da contratação colectiva.
Em síntese, através do presente decreto-lei, o Governo pretende garantir que os trabalhadores das
unidades de saúde no âmbito do Serviço Nacional de Saúde exercem a respectiva actividade
integrados em carreiras, sem subverter a autonomia de gestão do sector empresarial do Estado.
Foram observados os procedimentos decorrentes dos artigos 469º e seguintes do Código do
Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009 de 12 de Fevereiro.169 Foram ouvidos os órgãos de governo
próprio das Regiões Autónomas.
Assim:
Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, o Governo decreta o seguinte:
169
Entende-se por legislação do trabalho a que regula os direitos e obrigações dos trabalhadores e
empregadores, enquanto tais, e as suas organizações. Qualquer projecto de decreto-lei relativo a
legislação do trabalho só pode ser discutido e votado pelo Governo depois de as associações
sindicais se terem podido pronunciar sobre ele. Para o efeito, o projecto deverá ser publicado em
separata do Boletim do Trabalho e Emprego, contendo, obrigatoriamente, o texto integral, a
designação sintética da matéria e o prazo para apreciação pública, o qual não pode ser inferior a 30
dias. O resultado da apreciação pública deve constar do preâmbulo do decreto-lei.
II
Tiago Correia
Artigo 1.º
Objecto
1 – São alterados os artigos 14.º, 18º e 19º Decreto-Lei n.º 233/2005, de 29 de Dezembro, os artigos
12º, 16º e 17º do Decreto-Lei n.º 50-B/2007, de 28 de Fevereiro, e os artigos 12º, 16º e 17º do
Decreto-Lei n.º 183/2008, de 4 de Setembro
2 – São aditados os artigos 14º-A, 14º-B, 14º-C, 14º-D, 14º-E, 14º-F, 14º-G do Decreto-Lei n.º
233/2005, de 29 de Dezembro, os artigos 12º-A, 12º-B, 12º-C, 12º-D, 12º-E, 12º-F, 12º-G do
Decreto-Lei n.º 50-B/2007, de 28 de Fevereiro, e os artigos 12º-A, 12º-B, 12º-C, 12º-D, 12º-E,
12º-F, 12º-G do Decreto-Lei n.º 183/2008, de 4 de Setembro.
3 – É revogado o artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 233/2005, de 29 de Dezembro, o artigo 15º
Decreto-Lei n.º 50-B/2007, de 28 de Fevereiro, o artigo 15º do Decreto-Lei n.º 183/2008, de 4
de Setembro.
Artigo 2º
Os artigos 14.º, 18º e 19º do Decreto-Lei n.º 233/2005 de 29 de Dezembro passam a ter a seguinte
redacção:
“Artigo 14.º
[…]
1 – Os trabalhadores dos hospitais E.P.E. exercem a respectiva actividade integrados em carreiras e
estão sujeitos ao regime do contrato de trabalho, de acordo com as disposições relativas a
carreiras do presente decreto-lei, o Código do Trabalho, demais legislação laboral, normas
imperativas sobre títulos profissionais, instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho
e regulamentos internos.
2 – […]
3 – […]
4 – […]
5 – As condições de admissão para a carreira médica são as seguintes:
a ) Para a admissão à categoria de médico especialista, é exigido o grau de especialista, tendo
terminado com aproveitamento o internato da especialidade;
b) Para a admissão à categoria de especialista graduado, é exigido o grau de médico
especialista graduado;
c) Para a admissão à categoria de especialista principal, é exigida a duração mínima de 5 anos
de exercício efectivo com o grau de médico especialista graduado.
6 - As condições de admissão para a carreira de enfermagem são as seguintes:
a) Para admissão à categoria de enfermeiro é preciso a titulação de cédula definitiva da
Ordem dos Enfermeiros;
b) Para admissão à categoria de enfermeiro principal é exigido cumulativamente o título de
enfermeiro especialista atribuído pela Ordem dos Enfermeiros e um mínimo de 10 anos de
experiência efectiva no exercício da profissão, contado a partir da data do correspondente
início.
Artigo 18.º
[…]
Aplica-se aos hospitais E.P.E. o regime de cedência de interesse público previsto no artigo 17º do
Decreto-Lei nº. 558/99, de 17 de Dezembro.
Artigo 19.º
[…]
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 15º do presente decreto-lei, o regime de protecção social dos
trabalhadores dos hospitais E.P.E. é o regime geral de segurança social.
2 – Relativamente aos trabalhadores da Administração Pública que não optem pelo regime de
contrato de trabalho, nos termos do artigo 16.º, aplica-se o regime estabelecido no artigo 19º da
Lei 59/2008 de 1 de Setembro.
III
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
3 – […]
Artigo 3º
Os artigos 12º, 16º e 17º do Decreto-Lei nº. 50-B/2007, de 28 de Fevereiro, passam a ter a seguinte
redacção:
“ Artigo 12.º
[…]
1 – Os trabalhadores da ULSNA, E.P.E., exercem a respectiva actividade integrados em carreiras e
estão sujeitos ao regime do contrato de trabalho, de acordo com as disposições relativas a
carreiras do presente decreto-lei, o Código do Trabalho, demais legislação laboral, normas
imperativas sobre títulos profissionais, instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho
e regulamentos internos.
2 – […]
3 – […]
4 – […]
5 – As condições de admissão para a carreira médica são as seguintes:
a ) Para a admissão à categoria de médico especialista, é exigido o grau de especialista, tendo
terminado com aproveitamento o internato da especialidade;
b) Para a admissão à categoria de especialista graduado, é exigido o grau de médico
especialista graduado;
c) Para a admissão à categoria de especialista principal, é exigida a duração mínima de 5 anos
de exercício efectivo com o grau de médico especialista graduado.
6 - As condições de admissão para a carreira de enfermagem são as seguintes:
a) Para admissão à categoria de enfermeiro é preciso a titulação de cédula definitiva da
Ordem dos Enfermeiros;
b) Para admissão à categoria de enfermeiro principal é exigido cumulativamente o título de
enfermeiro especialista atribuído pela Ordem dos Enfermeiros e um mínimo de 10 anos de
experiência efectiva no exercício da profissão, contado a partir da data do correspondente
início.
Artigo 16.º
[…]
Aplica-se à ULSNA, E.P.E. o regime de cedência de interesse público previsto no artigo 17º do
Decreto-Lei nº. 558/99, de 17 de Dezembro.
Artigo 17.º
[…]
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 13º do presente decreto-lei, o regime de protecção social dos
trabalhadores da ULSNA, E.P.E. é o regime geral de segurança social.
2 – Relativamente aos trabalhadores da Administração Pública que não optem pelo regime de
contrato de trabalho, nos termos do artigo 14.º, aplica-se o regime estabelecido no artigo 19º da
Lei 59/2008 de 1 de Setembro.
3 – […]”
Artigo 4.º
Os artigos 12.º, 16º e 17º do Decreto-Lei n.º 183/2008 de 4 de Setembro passam a ter a seguinte
redacção:
“ Artigo 12.º
[…]
1 – Os trabalhadores das ULS, E.P.E. exercem a respectiva actividade integrados em carreiras e
estão sujeitos ao regime do contrato de trabalho, de acordo com as disposições relativas a
carreiras do presente decreto-lei, o Código do Trabalho, demais legislação laboral, normas
IV
Tiago Correia
Artigo 16º
[…]
Aplica-se às ULS, E.P.E. o regime de cedência de interesse público previsto no artigo 17º do
Decreto-Lei nº. 558/99, de 17 de Dezembro.
Artigo 17.º
[…]
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 13º do presente decreto-lei, o regime de protecção social dos
trabalhadores das ULS, E.P.E. é o regime geral de segurança social.
2 – Relativamente aos trabalhadores da Administração Pública que não optem pelo regime de
contrato de trabalho, nos termos do artigo 14.º, aplica-se o regime estabelecido no artigo 19º da
Lei 59/2008 de 1 de Setembro.
3 – […]”
Artigo 5.º
Aditamento dos artigos 14º-A, 14º-B, 14º-C, 14º-D, 14º-E, 14º-F, 14º-G ao Decreto-Lei n.º
233/2005, de 29 de Dezembro. São aditados os artigos 14º-A, 14º-B, 14º-C, 14º-D, 14º-E, 14º-F,
14º-G ao Decreto-Lei n.º233/2005, de 29 de Dezembro, com a seguinte redacção:
“Artigo 14º-A
Qualificação dos profissionais de saúde
1 - A qualificação e a categorização instituída nos regimes especiais aplicáveis às carreiras dos
profissionais de saúde com relação jurídica de emprego em funções públicas são
automaticamente reconhecidas para elegibilidade nos processos de recrutamento previstos no nº
4 do artigo 14º.170 3
2 – No exercício e publicitação da sua actividade profissional, desenvolvida no Serviço Nacional
de Saúde, os profissionais de saúde devem sempre fazer referência ao grau ou título detido.
Artigo 14º-B
Qualificação médica
170
Existe proposta de diploma autónomo para qualificação aplicável a todos os médicos
independentemente do local de prestação de trabalho e da relação jurídica de emprego ou de
exercício de actividade em regime de trabalho independente.
V
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Artigo 14º-C
Qualificação de enfermagem
O exercício de funções no âmbito da carreira de enfermagem depende da obtenção do título
profissional atribuído pela Ordem dos Enfermeiros.171
Artigo 14º-D
Categorias da carreira médica
1 - A carreira médica é pluricategorial e estrutura-se nas seguintes categorias:
a) Médico Especialista;
b) Médico Especialista Graduado;
c) Médico Especialista Principal.
2 – O médico exerce a sua actividade com plena responsabilidade profissional e autonomia técnico-
científica.
Artigo 14º-E
Conteúdos funcionais das categorias da carreira médica
171
O Estatuto da Ordem dos Enfermeiros contém os requisitos de atribuição de título de enfermeiro
e de enfermeiro especialista.
VI
Tiago Correia
Artigo 14º-F
Categorias da carreira de enfermagem
1 – A carreira de enfermagem é pluricategorial e estrutura-se nas seguintes categorias:
a) Enfermeiro;
b) Enfermeiro Principal.
2 – O enfermeiro exerce a sua actividade com plena responsabilidade profissional e autonomia
técnico-científica.
Artigo 14º- G
Conteúdos funcionais das categorias da carreira de enfermagem
1 – O conteúdo funcional da categoria de enfermeiro é inerente às respectivas competências em
enfermagem, compreendendo plena autonomia técnico-científica, nomeadamente:
a) Prestar cuidados de enfermagem aos doentes, utentes ou grupos populacionais sob a sua
responsabilidade directa ou sob a responsabilidade da equipa na qual estejam integrados,
incluindo os processos de administração de terapêutica;
b) Realizar intervenções de enfermagem requeridas pelo indivíduo, família e comunidade, no
âmbito da promoção da saúde, da prevenção da doença, do tratamento, da reabilitação e da
adaptação funcional;
c) Recolher, registar e efectuar tratamento e análise de informação relativa ao exercício das
suas funções, incluindo aquela que seja relevante para os sistemas de informação institucionais
e nacionais na área da saúde;
d) Assessorar as instituições, serviços e unidades onde prestem serviço, nos termos da
respectiva organização interna;
VII
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
VIII
Tiago Correia
Artigo 6.º
Aditamento dos artigos 12º-A, 12º-B, 12º-C, 12º-D, 12º-E, 12º-F, 12º-G ao Decreto-Lei n. 50-
B/2007, de 28 de Fevereiro. São aditados os artigos 12º-A, 12º-B, 12º-C, 12º-D, 12º-E, 12º-F, 12º-
G ao Decreto-Lei n.º 50-B/2007, de 28 de Fevereiro, com a seguinte redacção:
“Artigo 12º-A
Qualificação dos profissionais de saúde
1 – A qualificação e a categorização instituída nos regimes especiais aplicáveis às carreiras dos
profissionais de saúde com relação jurídica de emprego em funções públicas são
automaticamente reconhecidas para elegibilidade nos processos de recrutamento previstos no
nº 4 do artigo 12º.
2 – No exercício e publicitação da sua actividade profissional, desenvolvida no Serviço Nacional
de Saúde, os profissionais de saúde devem sempre fazer referência ao grau ou título detido.
Artigo 12º-B
Qualificação médica
1 – A qualificação médica tem por base a obtenção de capacidades técnicas e de conhecimentos
técnico-científicos adquiridos ao longo da formação profissional e estrutura-se em graus,
enquanto títulos de habilitação profissional atribuídos pelo Ministério da Saúde e reconhecidos
pela Ordem dos Médicos, em função da obtenção de níveis de competência diferenciados e de
aproveitamento em concurso de provas públicas.
2 – O grau de médico especialista adquire-se com a obtenção do título de especialista, após
conclusão com aproveitamento do internato da respectiva especialidade.
3 – O grau de médico especialista graduado adquire-se após habilitação efectuada por
procedimento concursal, regulado por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas
áreas da Administração Pública e da saúde, ouvida a Ordem dos Médicos, que tenha por base,
cumulativamente:
a) Avaliação curricular;
b) Prova de verificação de aprofundamento de competências;
c) Duração de oito anos de exercício efectivo com o grau de médico especialista;
Artigo 12º-C
Qualificação de enfermagem
O exercício de funções no âmbito da carreira especial de enfermagem depende da obtenção
do título profissional atribuído pela Ordem dos Enfermeiros.
Artigo 12º- D
Categorias da carreira médica
1 – A carreira médica é pluricategorial e estrutura-se nas seguintes categorias:
IX
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
a) Médico Especialista;
b) Médico Especialista Graduado;
c) Médico Especialista Principal.
2 – O médico exerce a sua actividade com plena responsabilidade profissional e autonomia técnico-
científica.
Artigo 12º-E
Conteúdos funcionais das categorias da carreira médica
1 - O conteúdo funcional da categoria de médico especialista compreende funções médicas
enquadradas em directivas gerais bem definidas, organizadas em equipa, com observância pela
autonomia e características técnico-científicas inerentes a cada especialidade médica tipificadas
em diploma próprio, nomeadamente:
a) Prestar cuidados de saúde aos doentes, utentes ou grupos populacionais sob a sua
responsabilidade directa ou sob responsabilidade da equipa na qual o médico esteja integrado;
b) Recolher, registar, e efectuar tratamento e análise da informação relativa ao exercício das
suas funções, incluindo aquela que seja relevante para os sistemas de informação institucionais
e nacionais na área da saúde, designadamente os referentes à vigilância de fenómenos de saúde
e de doença;
c) Participar nas actividades de planeamento e programação do trabalho a executar pela
unidade ou serviço;
d) Participar em programas e projectos de investigação ou de intervenção, quer institucionais
quer multicêntricos, nacionais ou internacionais, seja na sua área de especialização ou em área
conexa;
e) Colaborar na formação de médicos em processo de especialização, de médicos em formação
básica e de alunos das licenciaturas em medicina ou de outras áreas da saúde;
f) Participar em júris de concurso ou noutras actividades de avaliação dentro da sua área de
especialização ou competência;
g) Substituir, quando designado, o médico especialista graduado na sua ausência e
impedimentos.
2 – Para além das funções inerentes à categoria de médico especialista, são ainda funções exigíveis
ao médico com a categoria de especialista graduado, nomeadamente:
a) Planeamento e programação do trabalho a executar pela unidade ou serviço;
b) Participação em júris de concurso para o grau de especialista graduado ou como presidente
para a categoria de especialista;
c) Desenvolver atitudes e práticas de liderança técnico-científica e de autoaperfeiçoamento, que
constituem modelo de referência para os médicos e outros profissionais da unidade ou serviço
em que o médico esteja integrado;
d) Exercer, quando designado, funções consultivas de natureza técnico-científica;
e) Manter e promover actividades regulares de investigação e apresentar anualmente aos
profissionais da unidade ou serviço em que esteja integrado relatório da actividade realizada;
f) Substituição, quando designado, do médico especialista principal, nas suas ausências e
impedimentos.
3 – Para além das funções inerentes à categoria de médico especialista graduado, são ainda funções
exigíveis ao médico especialista principal, nomeadamente:
a) Planeamento, programação e avaliação do trabalho da respectiva unidade, serviço ou
departamento;
b) Responsabilidade pelas funções e actividades de formação e de desenvolvimento
profissional contínuo dos médicos da sua unidade, serviço ou departamento ou das actividades
de formação médica da instituição, quando designado;
c) Participação como membro ou presidente do júri de concursos em todos os graus e
categorias da carreira médica;
d) Responsabilidade pela informação que caracteriza o nível de produção, actividade ou
qualidade da sua unidade, serviço ou departamento;
X
Tiago Correia
Artigo 12º-F
Categorias da carreira de enfermagem
1 – A carreira de enfermagem é pluricategorial e estrutura-se nas seguintes categorias:
a) Enfermeiro;
b) Enfermeiro Principal.
2 – O enfermeiro exerce a sua actividade com plena responsabilidade profissional e autonomia
técnico-científica.
Artigo 12º- G
Conteúdos funcionais das categorias da carreira de enfermagem
1 – O conteúdo funcional da categoria de enfermeiro é inerente às respectivas competências em
enfermagem, compreendendo plena autonomia técnico-científica, nomeadamente:
a) Prestar cuidados de enfermagem aos doentes, utentes ou grupos populacionais sob a sua
responsabilidade directa ou sob a responsabilidade da equipa na qual estejam integrados,
incluindo os processos de administração de terapêutica;
b) Realizar intervenções de enfermagem requeridas pelo indivíduo, família e comunidade, no
âmbito da promoção da saúde, da prevenção da doença, do tratamento, da reabilitação e da
adaptação funcional;
c) Recolher, registar e efectuar tratamento e análise de informação relativa ao exercício das
suas funções, incluindo aquela que seja relevante para os sistemas de informação institucionais
e nacionais na área da saúde;
d) Assessorar as instituições, serviços e unidades onde prestem serviço, nos termos da
respectiva organização interna;
e) Promover, programas e projectos de investigação em enfermagem, nacionais ou
internacionais, e bem como participar ou orientar as correspondentes equipas;
f) Colaborar no processo de desenvolvimento de competências de alunos da licenciatura em
enfermagem, bem como de enfermeiros em contexto académico ou profissional;
g) Integrar júris de concursos ou noutras actividades de avaliação dentro da sua área de
competência.
h) Identificar, planear e avaliar os cuidados de enfermagem e efectuar os respectivos registos,
bem como participar nas actividades de planeamento e programação do trabalho de equipa a
executar pela unidade ou serviço;
i) Participar nas acções que visem articular os diferentes níveis de cuidados de saúde,
promovendo a qualidade e a circulação de informação útil, bem como métodos de trabalho com
vista à melhor utilização dos meios disponíveis;
j) Realizar intervenções de enfermagem no apoio ao funcionamento da unidade ou serviço;
k) Identificar as necessidades logísticas e de bens de equipamento, bem como promover a
melhor utilização económica dos recursos com controlo de consumos, cabendo-lhe a
responsabilidade de promover a sua adequação aos cuidados de enfermagem a prestar;
l) Colaborar na formação realizada nas unidades de cuidados e orientar as actividades de
formação de alunos da licenciatura em enfermagem, bem como de enfermeiros em contexto
académico ou profissional;
m) Orientar os enfermeiros, nomeadamente nas equipas multiprofissionais, no que concerne à
definição e utilização de indicadores que permitam avaliar, de forma sistemática as mudanças
verificadas no nível de saúde do utente, do grupo e da comunidade;
n) Planear e organizar o trabalho a executar pela equipa, com vista a uma maior eficiência dos
recursos;
o) Assegurar a formação em serviço dos trabalhadores de enfermagem e outro pessoal de apoio
da unidade de cuidados;
XI
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Artigo 7º
Aditamento dos artigos 12º-A, 12º-B, 12º-C, 12º-D, 12º-E, 12º-F, 12º-G ao Decreto-Lei
n.º183/2008, de 4 de Setembro. São aditados os artigos 12º-A, 12º-B, 12º-C, 12º-D, 12º-E, 12º-F,
12º-G ao Decreto-Lei n.º183/2008, de 4 de Setembro, com a seguinte redacção:
“Artigo 12º-A
Qualificação dos profissionais de saúde
1 - A qualificação e a categorização instituída nos regimes especiais aplicáveis às carreiras dos
profissionais de saúde com relação jurídica de emprego em funções públicas são
automaticamente reconhecidas para elegibilidade nos processos de recrutamento previstos no
nº 4 do artigo 12º.
XII
Tiago Correia
Artigo 12º-B
Qualificação médica
1 - A qualificação médica tem por base a obtenção de capacidades técnicas e de conhecimentos
técnico-científicos adquiridos ao longo da formação profissional e estrutura-se em graus,
enquanto títulos de habilitação profissional atribuídos pelo Ministério da Saúde e
reconhecidos pela Ordem dos Médicos, em função da obtenção de níveis de competência
diferenciados e de aproveitamento em concurso de provas públicas.
2 - O grau de médico especialista adquire-se com a obtenção do título de especialista, após
conclusão com aproveitamento do internato da respectiva especialidade.
3 - O grau de médico especialista graduado adquire-se após habilitação efectuada por procedimento
concursal, regulado por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da
Administração Pública e da saúde, ouvida a Ordem dos Médicos, que tenha por base,
cumulativamente:
a) Avaliação curricular;
b) Prova de verificação de aprofundamento de competências;
c) Duração de oito anos de exercício efectivo com o grau de médico especialista;
Artigo 12º-C
Qualificação de enfermagem
O exercício de funções no âmbito da carreira de enfermagem depende da obtenção do título
profissional atribuído pela Ordem dos Enfermeiros.
Artigo 12º- D
Categorias da carreira médica
1 – A carreira médica é pluricategorial e estrutura-se nas seguintes categorias:
a) Médico Especialista;
b) Médico Especialista Graduado;
c) Médico Especialista Principal.
2 – O médico exerce a sua actividade com plena responsabilidade profissional e autonomia técnico-
científica.
Artigo 12º-E
Conteúdos funcionais das categorias da carreira médica
1 - O conteúdo funcional da categoria de médico especialista compreende funções médicas
enquadradas em directivas gerais bem definidas, organizadas em equipa, com observância pela
autonomia e características técnico-científicas inerentes a cada especialidade médica tipificadas
em diploma próprio, nomeadamente:
a) Prestar cuidados de saúde aos doentes, utentes ou grupos populacionais sob a sua
responsabilidade directa ou sob responsabilidade da equipa na qual o médico esteja integrado;
b) Recolher, registar, e efectuar tratamento e análise da informação relativa ao exercício das
suas funções, incluindo aquela que seja relevante para os sistemas de informação institucionais
e nacionais na área da saúde, designadamente os referentes à vigilância de fenómenos de saúde
e de doença;
c) Participar nas actividades de planeamento e programação do trabalho a executar pela
unidade ou serviço;
d) Participar em programas e projectos de investigação ou de intervenção, quer institucionais
quer multicêntricos, nacionais ou internacionais, seja na sua área de especialização ou em área
conexa;
e) Colaborar na formação de médicos em processo de especialização, de médicos em formação
básica e de alunos das licenciaturas em medicina ou de outras áreas da saúde;
f) Participar em júris de concurso ou noutras actividades de avaliação dentro da sua área de
especialização ou competência;
XIII
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Artigo 12º-F
Categorias da carreira de enfermagem
1 – A carreira de enfermagem é pluricategorial e estrutura-se nas seguintes categorias:
a) Enfermeiro;
b) Enfermeiro Principal.
2 – O enfermeiro exerce a sua actividade com plena responsabilidade profissional e autonomia
técnico-científica.
Artigo 12º- G
Conteúdos funcionais das categorias da carreira de enfermagem
1 – O conteúdo funcional da categoria de enfermeiro é inerente às respectiva competências em
enfermagem, compreendendo plena autonomia técnico-científica, nomeadamente:
a) Prestar cuidados de enfermagem aos doentes, utentes ou grupos populacionais sob a sua
responsabilidade directa ou sob a responsabilidade da equipa na qual estejam integrados,
incluindo os processos de administração de terapêutica;
b) Realizar intervenções de enfermagem requeridas pelo indivíduo, família e comunidade, no
âmbito da promoção da saúde, da prevenção da doença, do tratamento, da reabilitação e da
adaptação funcional;
c) Recolher, registar e efectuar tratamento e análise de informação relativa ao exercício das
suas funções, incluindo aquela que seja relevante para os sistemas de informação institucionais
e nacionais na área da saúde;
d) Assessorar as instituições, serviços e unidades onde prestem serviço, nos termos da
respectiva organização interna;
XIV
Tiago Correia
XV
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Artigo 8º
Entrada em vigor
O presente decreto-lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
XVI
Tiago Correia
ANEXO C – EXEMPLO DE ALGUNS PROCEDIMENTOS MÉDICO-CIRÚRGICOS CONFORME TABELA NACIONAL DE GDH – 2009
GCD
(Pré-Grandes Categorias Diagnósticas)
0
103 Transplante cardíaco C 22,2552 53.329,02 € 0,0000 - € 2.041,74 € 39.036,84 € 7 120 44,8
302 Transplante renal C 11,6575 27.934,28 € 0,0000 - € 1.871,60 € 20.447,90 € 4 70 17,1
480 Transplante hepático C 43,0269 103.103,21 € 0,0000 - € 4.605,28 € 75.471,55 € 6 84 22,3
XVII
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
XVIII
Tiago Correia
208 Perturbações das vias biliares, sem CC M 0,5485 1.314,34 € 0,1857 444,98 € 434,68 € - 1 26 6,0
XIX
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
XX
Tiago Correia
XXI
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Interesses extra-profissionais
Escolha da profissão
Trajectórias profissionais Percursos profissionais
Entrada no hospital
Percepção de si
Percepção de si em interacção
Dificuldade na
Percepção do
Produção discursiva racionalização
hospital/serviços/gestão
discursiva
Percepção contexto
político/empresarialização
Percepção do investigador
Relação com o Imagem do investigador
investigador Alteração de comportamentos
XXII
Tiago Correia
XXIII
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Recordo-lhe que a realização desta entrevista destina-se à recolha de dados para a realização da
minha tese de doutoramento em sociologia pelo ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. Neste
sentido, a entrevista será gravada apenas como meio de trabalhar futuramente a informação
recolhida. Fica formalmente assegurado que, a coberto do código deontológico em vigor para a
prática da investigação científica em sociologia, os dados serão tratados apenas pelo investigador,
não revelando em qualquer momento nem a ninguém elementos que possam comprometer o
anonimato do interveniente nesta entrevista.
Não existem respostas boas nem más, correctas ou incorrectas. Pretendo apenas que seja o mais
sincero possível.
Bloco 1
1 - Idade
5 – Categoria Profissional
7 – Percurso profissional (serviços antes deste desde internato). Motivo de escolha desses serviços
Bloco 2
1 – Para si, o que é ser internista/cirurgião? Profissionalmente, o que procura? O que gosta mais e
menos no trabalho.
2 – Como é que acha que os outros médicos do serviço o vêem? E o director de serviço?
(reconhecimento dos outros)
4 – Quem ou o quê mais influenciou nessa escolha? Porque não escolheu outra especialidade?
5 – Na altura, como idealizava a medicina interna/cirurgia?
XXIV
Tiago Correia
Bloco 3
2 – Pensando na sua experiência profissional, considera que para os gestores os diversos serviços
médicos têm a mesma importância? Sendo internista/cirurgião como se sente em relação a
isso?
3 – Que medidas de gestão tem conhecimento que foram implementadas neste serviço?
3.1. Qual a sua opinião sobre elas?
3.2. Até que ponto alteraram o seu trabalho?
3.3. Têm sido cumpridas uniformemente no seu serviço?
3.4. Se não, o que é que justifica?
3.5. Que tipo de regras são geralmente do desagrado dos médicos deste serviço?
3.5.1. Como reagem os médicos? (não cumprimento)
5 – Para si é diferente trabalhar num hospital SPA, EPE ou SA? (Experiência ou expectativa)
Bloco 4
1 – Quais são as suas aspirações profissionais? O que é que falta fazer enquanto internista/cirurgião
e não consegue?
1.1. A que se deve essa impossibilidade?
3 – Para conseguir os seus objectivos, o que é que à partida sabe que não pode fazer com gestores,
outros médicos, director de serviço?
3.1. Porque adopta essa estratégia? (alguma coisa aconteceu?)
6 – Da sua experiência, o que mais e menos aprecia nos gestores deste hospital?
7 – Da sua experiência o que mais e menos aprecia nos médicos deste serviço?
8 – Como vê o seu director de serviço? (Da sua experiência o que mais e menos aprecia no director
deste serviço?)
8.1 – Como vê o seu chefe de equipa?
9 – Existe algum tipo de regras que considere não ter que cumprir? Quais? Porquê? O que faz
nessas situações?
9.1. Da sua experiência acontece o mesmo em relação aos seus colegas neste serviço?
XXV
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Bloco 5
1 – Recordando o tempo em que estive a fazer observação, o que inicialmente sentiu quando fui
apresentado à equipa? Foi, de algum modo, alterando esse sentimento em relação à minha
presença?
XXVI
Tiago Correia
Recordo-lhe que a realização desta entrevista destina-se à recolha de dados para a realização da
minha tese de doutoramento em sociologia pelo ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. Neste
sentido, a entrevista será gravada apenas como meio de trabalhar futuramente a informação
recolhida. Fica formalmente assegurado que, a coberto do código deontológico em vigor para a
prática da investigação científica em sociologia, os dados serão tratados apenas pelo investigador,
não revelando em qualquer momento nem a ninguém elementos que possam comprometer o
anonimato do interveniente nesta entrevista.
Não existem respostas boas nem más, correctas ou incorrectas. Pretendo apenas que seja o mais
sincero possível.
Bloco 1
1 - Idade
2 - Habilitações Académicas
5 – Categoria Profissional
Bloco 2
1 – Para si, o que é ser gestor hospitalar? Profissionalmente, o que procura? Objectivos
profissionais por concretizar.
4 – Quem ou o quê mais influenciou nessa escolha? Porque não escolheu outra profissão?
Bloco 3
1 – Pensando na sua experiência, o que é que a gestão hospitalar de hoje difere do passado?
XXVII
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
2 – Quais são os principais factores que lhe parecem estar associados a estas mudanças?
4 – Existem limites à prossecução de uma política de equilíbrio financeiro dos hospitais? (espaço à
preocupação com os doentes)
8 – Da sua experiência noutros hospitais, tem seguido sempre as mesmas orientações no seu
projecto de gestão? (gestão muda com os gestores e/ou com os hospitais)
9 – Para si é diferente trabalhar num hospital SPA, EPE ou SA? (Experiência ou expectativa)
Bloco 4
1 – Quais são as suas aspirações profissionais? O que é que falta fazer enquanto gestor e não
consegue? (projecto profissional)
1.1. A que se deve essa impossibilidade?
1.2. O que mais e menos aprecia na relação com médicos?
1.3. e com os outros gestores?
3 – Para conseguir os seus objectivos, o que é que à partida sabe que não pode fazer com médicos e
directores de serviço?
3.1. Porque adopta essa estratégia? (alguma coisa aconteceu?)
7 – Para si, o que é controlar o trabalho médico? Que importância representa para o modo como
concebe o seu projecto de gestão?
8 – Existe algum tipo de regras que considere serem menos cumpridas por parte dos médicos
(medicina interna e cirurgia)? Quais? Porquê? O que faz nessas situações?
XXVIII
Tiago Correia
Bloco 5
1 – Recordando o tempo em que estive a fazer observação, o que inicialmente sentiu quando iniciei
a observação? Foi, de algum modo, alterando esse sentimento em relação à minha presença?
XXIX
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Recordo-lhe que a realização desta entrevista destina-se à recolha de dados para a realização da
minha tese de doutoramento em sociologia pelo ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. Neste
sentido, a entrevista será gravada apenas como meio de trabalhar futuramente a informação
recolhida. Fica formalmente assegurado que, a coberto do código deontológico em vigor para a
prática da investigação científica em sociologia, os dados serão tratados apenas pelo investigador,
não revelando em qualquer momento nem a ninguém elementos que possam comprometer o
anonimato do interveniente nesta entrevista.
Não existem respostas boas nem más, correctas ou incorrectas. Pretendo apenas que seja o mais
sincero possível.
Bloco 1
1 - Idade
6 – Categoria Profissional
Bloco 2
1 – Para si, o que é ser internista/cirurgião? Profissionalmente, o que procura? O que mais e menos
gosta no seu trabalho?
2 – Como é que acha que os médicos o vêem? E os gestores? (reconhecimento dos outros)
3 – Quando pensou em ser internista/cirurgião pela primeira vez?
4 – Quem ou o quê mais influenciou nessa escolha? Porque não escolheu outra especialidade?
XXX
Tiago Correia
Bloco 3
2 – Pensando na sua experiência profissional, considera que para os gestores os diversos serviços
médicos têm a mesma importância? Sendo director de serviço como se sente em relação a
isso?
6 – Para si é diferente trabalhar num hospital SPA, EPE ou SA? (Experiência ou expectativa)
Bloco 4
1 – Quais são as suas aspirações profissionais? O que é que falta fazer enquanto director de serviço
e não consegue? (projecto profissional para o serviço. As mudanças que introduziu e porquê)
1.1. A que se deve essa impossibilidade?
1.2. O que mais e menos aprecia na relação com gestores e com os seus médicos?
6 – Existe algum tipo de regras que considere não ter que cumprir? Quais? Porquê? O que faz
nessas situações?
XXXI
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
7– Na sua experiência, quais são as situações que geram maior conflitualidade com os gestores
hospitalares?
7.1. E com a direcção clínica?
Bloco 5
1 – Recordando o tempo em que estive a fazer observação, o que inicialmente sentiu iniciei esse
processo? Foi, de algum modo, alterando esse sentimento em relação à minha presença?
2 – Em que medida sentiu que a minha presença alterava o modo como os médicos se
comportavam?
XXXII
Tiago Correia
Recordo-lhe que a realização desta entrevista destina-se à recolha de dados para a realização da
minha tese de doutoramento em sociologia pelo ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. Neste
sentido, a entrevista será gravada apenas como meio de trabalhar futuramente a informação
recolhida. Fica formalmente assegurado que, a coberto do código deontológico em vigor para a
prática da investigação científica em sociologia, os dados serão tratados apenas pelo investigador,
não revelando em qualquer momento nem a ninguém elementos que possam comprometer o
anonimato do interveniente nesta entrevista.
Não existem respostas boas nem más, correctas ou incorrectas. Pretendo apenas que seja o mais
sincero possível.
Bloco 1
1- Idade
Bloco 2
XXXIII
Tiago Correia
CURRICULUM VITAE
1. PERSONAL INFORMATION
Complete Name Tiago João Correia Fonseca da Conceição
Quoting Name Correia, Tiago
Institutional Address CIES/ISCTE-IUL
Edifício ISCTE, Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisbon
Institutional telephone +351 217 903 077 or +351 217 941 404
Institutional fax +351 217 940 074
Personal telephone +351 916 885 912
E-mail [email protected] (institutional)
[email protected] (personal)
Nationality Portuguese
Birth place and day Lisbon, 03-09-1984
2. EDUCATION
XXXV
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Date 2007
Company/Department/University DINAMIA-IUL
Position Research Assistant
Detailed Information Research Project “Albufeira‟s Council Plan for Education,
Professional Formation and Employment”
Date 2008
Company/Department/University Freelancer
Position External Consultant
Detailed Information Member of the team in charge for several market studies (related
with consumption) for several enterprises
XXXVI
Tiago Correia
Date 2007
Company/Department/University City Council of Torres Vedras, Portugal
Position Member of the team in charge for the participative methodologies
sessions of the City‟s Health Plan
Detailed Information Coordination of the brainstorming sessions involving the city‟s
public and private stakeholders
XXXVII
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Correia, Tiago (2010) "Managing the uncertainties of managerial certainty: towards a systemic
approach to individual action in the study of medical professionalism", Post-graduate
Research Student Training School of COST ACTION IS0903: ENHANCING THE ROLE
OF MEDICINE IN MANAGEMENT, IFROSS: Lyon, (23-24 November)
Correia, Tiago (2010), “Rethinking professions: a conceptual framework of analysis by reflexive
agency”, 6th Interim Meeting of the European Sociological Association Research Network
19 'Sociology of Professions„, EHESS: Paris (22 – 24 April) (the conference was cancelled
due to the volcanic ash over Europe)
Correia, Tiago (2009), “The new meanings of the public healthcare provision in Portugal”, 10th
Portuguese-African-Brazilian Congress of Social Sciences, University of Minho: Braga (4 –
7 February) (in portuguese)
Correia, Tiago (2009), "The structure/Action‟s reflection and application to the sociology of
professions: theoretical arguments”, CIES research Workshop, ISCTE - IUL, Lisbon (30
September) (in portuguese)
Correia, Tiago (2009), "Different ways of Being: a theoretical discussion of professions through the
reflexive agency ", 4th Congress of the Portuguese Association of Anthropology, Lisbon:
ICS-UL/ISCTE-IUL (9-11 September) (in portuguese)
Stoleroff, Alan; Correia, Tiago (2009), "The Specific Professional Conflicts of Teachers and
Doctors within the Portuguese Reform of the Public Administration and Civil Service", 9th
European Sociological Association Conference , ISCTE - IUL, Lisbon (2-5 September)
Correia, Tiago (2008), “(Dis)pleasure and contracts: the impacts of employment on the individual
perceptions – a statistical exploration”, 6th Congress of the Portuguese Association of
Sociology, FCSH: Lisbon (25 – 29 June) (in portuguese)
Stoleroff, Alan; Correia, Tiago (2008), “Unionisms within the portuguese reform context of the
public services: the hospital sector, 6th Congress of the Portuguese Association of
Sociology, FCSH: Lisbon (25 – 29 June) (in portuguese)
Stoleroff, Alan; Correia, Tiago (2007), “Impacts of professional life in the health state perception:
the case of airline cabin aircrews”, 12th National Encounter of SIOT, Gulbenkian
Foundation: Lisbon (in portuguese)
Stoleroff, Alan; Correia, Tiago; Pereira, Irina (2008), Employment Relations and Organizational
Changes within the Portuguese Public Administration Reforms: the role of unions and
workers, Final Report, Lisbon: CIES-ISCTE-IUL (in portuguese)
Correia, Tiago, et al (2008), “Health problems and work conditions”, in Stoleroff, Alan (coord.), An
inquire to the airline cabin crew about work conditions, personal and familiar life and labour
relations, Final Report, Lisbon: CIES-ISCTE/SNPVAC (in portuguese)
XXXVIII
Tiago Correia
Suleman, Fátima (coord.); Ana Saint-Maurice; Ricardo Mamede; Tiago Correia; Sofia Santos;
Alexandra Figueiredo (2008), Final report of the Albufeira‟s Council Plan for Education,
Professional Formation and Employment, Lisbon: DINÂMIA-ISCTE-IUL (in portuguese)
Correia, Tiago (2007), Strengths and constraints in the definition of the labour relations in Portugal,
Degree dissertation, Lisbon: ISCTE-IUL (in portuguese)
Correia, Tiago (2011), “The portuguese NHS under the rules and processes of private sector”, Le
Monde Diplomatique, 51 – January (Portuguese edition)
Correia, Tiago (2008), “What public hospital care in Portugal?”, Revista Autor, VIII (8) (available
at http://revistaautor.com/index.php?option=com_ content&task=view&id=232&Itemid=1)
(in Portuguese)
Correia, Tiago (2008), “(Un)certainties in public hospitals”, in Journal Meia Hora, ed. 18/2/2008
(in portuguese)
Stoleroff, Alan; Correia, Tiago (2006), “Um inquérito sindical sobre condições de trabalho dos
tripulantes da aviação civil em Portugal”, Journal of the Portuguese Union of airline cabin
crew. (in portuguese)
5. R&D NETWORKS
2009-2013: COST Action IS0903 Enhancing the role of medicine in the management of European
health systems - implications for control, innovation and user voice
Date 2011
Responsible Entity European Sociological Association
Detailed Information Grant for the participation in the ESA‟s PhD workshop, Geneva (will
be held in September 2011)
Date 2010
Responsible Entity European Science Foundation
Detailed Information Grant for the participation in the 1st Post-graduate Research Student
Training School of COST ACTION IS0903: ENHANCING THE ROLE
OF MEDICINE IN MANAGEMENT, Lyon
XXXIX
A gestão das incertezas nas certezas da gestão
Date 2007
Responsible Entity Presidency of ISCTE – IUL
Detailed Information Academic merit prize for the ISCTE‟s department of sociology best
student of the year
Date 2007
Responsible Entity Portuguese Ministry of Science, Technology and Higher Education
Detailed Information Grant for academic merit as the best student of the ISCTE‟s degree in
sociology and planning
Date 2006
Responsible Entity Presidency of ISCTE – IUL
Detailed Information Academic merit prize for the ISCTE‟s department of sociology best
student of the year
Date 2006
Responsible Entity Portuguese Ministry of Science, Technology and Higher Education
Detailed Information Grant for academic merit as the best student of the ISCTE‟s degree in
sociology and planning
7. ADDITIONAL INFORMATION
Languages spoken and written (Portuguese and English). Languages read (French and Spanish)
Former Rugby Player
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