Cópia de B - Origens e Predicados - Glauco Campello

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ORIGENS E PREDICADOS

Glauco Campello, in O Brilho da Simplicidade

No final de abril de 1500, quando os marinheiros de Pedro Álvares Cabral e os frades de


frei Henrique de Coimbra, ajudados pelos índios, armaram uma grande cruz com a
madeira da mata local e prepararam o cenário para a Primeira Missa em terra firme,
estavam compondo um ambiente adaptado ao meio natural e organizando um espaço
para o atendimento de funções práticas e simbólicas. Isso não era senão um cenário
arquitetônico improvisado: a configuração de um recinto religioso.
Os frades franciscanos, que no dizer de Gilberto Freyre madrugaram nos trópicos, foram
portanto os mentores desse primeiro cenário montado no Brasil para assinalar um
momento solene, de manifestação do poder terreno e espiritual. E se dispuseram a fazê-
lo com meios simples, ajustando-se às circunstâncias.
Logo a seguir, em vários pontos do litoral brasileiro, começaram as ações isoladas dos
missionários da Ordem dos Frades Menores. Não só frades portugueses, também
espanhóis e italianos. Há notícias desses missionários franciscanos por estas bandas,
desde 1503.
Sabe-se de alguns que foram trucidados pelos índios e são hoje rememorados como
protomártires do Evangelho. Entre eles os que construíram em Porto Seguro, parece que
em 1516, a primeira igreja do Brasil, de taipa de pilão e cobertura de palha. O certo é
que ao chegarem a Salvador, em 1549, na armada de Tomé de Sousa, os jesuítas já
encontraram muito trabalho feito no Brasil pelos incansáveis franciscanos. O padre
Manuel da Nóbrega foi o primeiro a reconhecer isso. Das primeiras construções
improvisadas durante o trabalho pioneiro dos missionários, nada se guardou. E no
entanto aquela primeira igreja de Porto Seguro, já com um campanário de alvenaria e
coberta de telhas, estava sendo usada por volta de 1730; algumas de suas paredes
ainda estavam de pé em 1940, mas dela, hoje, só restam os vestígios de sua fundação.
O primeiro convento fundado pelos frades menores foi o de Nossa Senhora das Neves de
Olinda, em 1585, após a criação, em Pernambuco, de uma custódia submetida à
província de Santo Antônio dos Currais, em Portugal. A partir de então, muitas igrejas e
conventos foram construídos pelos frades seráficos, sobretudo no Nordeste.

Primeira Missa no Brasil (Victor Meirelles – 1861)


Nada restou da feição original dessas primitivas construções. Mas podemos ver algumas
delas, tal como eram na primeira metade do século XVII, nos quadros de Franz Post.
Ninguém dirá que a iconografia criada pelo pintor de Nassau - que produziu muitas de
suas telas já de volta à Holanda com base em anotações cuidadosamente preparadas
durante a sua estada nos trópicos - não seja até enriquecida pela memória e o afeto. O
que faz de suas pinturas uma representação importante não só do ponto de vista
documental, mas também do ponto de vista da figuração sensível de um ambiente
natural e social.
Suas vistas panorâmicas de vilas e pequenos aglomerados embebidos na paisagem do
Nordeste brasileiro, captadas por um europeu de formação renascentista, dizem-nos
alguma coisa mais do que diria um frio documento de época. Assim como a
reconstituição do cenário da Primeira Missa, segundo a visão de Victor Meirelles, um
pintor do romantismo, que construiu a sua composição no final do século XIX de acordo
com modelos da pintura européia, toca o nosso imaginário como uma verdade já
consagrada, uma versão com a qual compactuamos. Somos levados pelo olhar afetuoso
do artista a absorver a cena imaginada como a transcrição de um testemunho real.
Nos quadros de Franz Post, onde o foco da atenção está sempre à distância, as
construções franciscanas não aparecem em primeiro plano. Elas fazem parte, quase
anônimas, dos conjuntos de edificações dispersas na paisagem ou aglomeradas diante
de um longínquo horizonte. Mesmo isoladas, como em alguns casos, elas são parte de
uma composição cujo tema predominante continua a ser a paisagem. Dispostas assim,
ao lado de outras edificações - formando aqueles conjuntos homogêneos, quase
uniformes, das construções brasileiras do começo do século XVII -, elas não são
reconhecidas à primeira vista, e um olhar desatento não as distingue das outras igrejas.
Mas na medida em que ficamos sabendo de suas características peculiares - o bloco
singelo da nave com o frontão triangular, o alpendre, o terreiro frontal e, ao lado da
igreja, o campanário recuado e as alas conventuais em torno do pátio quadrangular -, a
presença desses primeiros conventos salta à vista quando examinamos um quadro do
pintor holandês. As suas imagens são do período posterior à invasão e ao incêndio de
Olinda. e mesmo que algumas dessas construções estejam sendo mostradas ainda
incompletas ou danificadas pelo fogo ateado, as reconhecemos.

Paisagem brasileira (Franz Post – 1664)


Não é quase nada o que distingue essas construções franciscanas de todas as demais,
sobretudo das outras igrejas dos jesuítas e carmelitas, que também aparecem nessas
pinturas, com seus frontões triangulares e suas portadas maneiristas, abrindo
diretamente para a rua. Mas na obra pictórica de Franz Post, sobretudo naquela
produzida após o seu retorno à Holanda, a partir de anotações e amparadas por uma
memória afetiva, essas construções tipicamente franciscanas aparecem até em lugares
onde não é possível comprovar a sua existência.
Numa de suas telas vê-se a igreja de um convento franciscano não-identificado com
alpendre mais alto, de elegantes colunas toscanas, cuja fachada é idêntica à de uma
capela ao lado da casa-grande de engenho, representada em outra obra, sendo aí as
colunas do pórtico ainda mais cuidadosamente elaboradas, em contraste com a
construção quase rústica da casa senhorial.
Sabemos que o alpendre frontal era freqüente nas capelas rurais e nas igrejas daquele
período, e sabemos também que as capelas anexas às casas-grandes de engenho eram
muitas vezes fervorosamente cuidadas com um tratamento arquitetônico especial.
Contudo é irresistível imaginar que na rememoração de certas tipologias a que se
afeiçoara, o pintor holandês repetisse mais freqüentemente, ou em situações especiais,
as características peculiares das construções franciscanas.
Na verdade, essas características estavam presentes em grande parte das construções
daqueles conjuntos homogêneos dos princípios do século XVII. Sua unidade visual
decorria justamente da repetição de um mesmo vocabulário singelo: as paredes quase
cegas, com janelas retangulares pequenas e espaçadas; o corpo mais alto das igrejas
com seu frontão triangular e seus portais de pedra; o alpendre ou copiar; o telhado de
duas ou quatro águas com grandes beirais. Esses poucos elementos davam àquelas
construções portuguesas nos trópicos, de arraigada tradição popular, salvo esta ou
aquela igreja jesuítica ou carmelita, ou até franciscana - com seus cunhais e cimalhas de
arenito e suas portadas entalhadas um aspecto quase uniforme de simplicidade terrena,
expressividade direta e afinidade com o ambiente natural. Mas os conventos
franciscanos reuniam essas características em conjuntos harmoniosos e integrados à
paisagem de forma mais orgânica. Ao acolher, explicitamente, aquele vocabulário de
extração popular, trazido do Reino ou aqui hibridamente implementado, suas edificações
impregnavam-se de atributos poéticos cujo mistério era uma afinidade mais espontânea
com a terra e a gente da terra.
Tais atributos vistos aí em seu estado bruto, inicial, tinham portanto a sua raiz histórica
na tradição portuguesa - na sua arquitetura popular aderente ao ambiente natural e aos
condicionamentos locais, na economia de meios e na simplicidade pragmática de suas
construções, mesmo aquelas de extração erudita, aferradas à permanência do gosto e
modos de fazer. A adequação desses predicados ao desenvolvimento das construções na
Colônia devia-se não somente à inevitável continuidade daquela tradição, mas também
à maleabilidade com que elas adaptaram-se a um novo meio e a novas influências,
numa acomodação espontânea, sem artificialidades. Em sua evolução, e também em
sua constância, esses predicados vieram a se constituir numa característica inerente a
boa parte da arquitetura realizada no período colonial, que ao adaptar-se às condições
climáticas e acolher influências étnicas e culturais híbridas não perdeu aquelas
qualidades de simplicidade, de concisão e de expressividade terrena, chã, de sentido
ecológico. Isso veio a se configurar como uma vertente, ou como um valor subjacente,
de algum modo presente em toda a arquitetura luso-brasileira e mesmo, a seguir, na
arquitetura exclusivamente brasileira.
Como sabemos, o grande impulso dado à arquitetura feita no Brasil, nos primeiros
séculos, deveu-se aos programas de construções das ordens religiosas. Entre elas, foi a
Ordem franciscana a que mais se manteve próxima dessa vertente, transformando
aqueles atributos em virtudes singelas, de sentido poético, que eram também inerentes
à sua visão de mundo e até às próprias regras da ordem.
Até meados do século XVII o programa de construções dos franciscanos já se estendia
por todo o litoral. Sua maior concentração era na região Nordeste, com destaque para
os conventos de Salvador, Recife, Paraíba, Igaraçu, Ipojuca e Olinda, o primeiro a ser
construído. Mas fora dessa área já se haviam instalado, entre outros, os conventos do
Rio de Janeiro, de São Paulo e, numa implantação tipicamente medieval tipicamente
franciscana, o convento da Penha, no Espírito Santo, encastelado no alto de um
rochedo. Em todas essas construções, os predicados da simplicidade e da afinidade com
o meio ambiente estavam presentes e foram depois se adaptando e desenvolvendo-se
de acordo com novas solicitações novas circunstâncias históricas e novos estilos, sem
contudo se afastarem do apego à beleza terrena, específica de cada lugar, que os
franciscanos cultivavam.
Esse programa arrefeceu em muitos pontos no período de recessão correspondente ao
domínio espanhol e, no Nordeste, chegou a parar completamente, sendo alguns
conventos abandonados com a invasão dos holandeses. Mas a partir de 1665, após a
Restauração e a expulsão dos flamengos, um áureo período de obras desenvolveu-se,
até o final do século XVIII.
Nessa fase, marcada pela descoberta do ouro que provocou grande mobilidade da
população, efervescência social, prosperidade econômica e uma "explosão do barroco",
os franciscanos desenvolveram, no Nordeste, longe das áreas de mineração e fora da
influência mais direta da Metrópole, um programa de reconstruções e novas construções
que surpreende pela originalidade.
Essa originalidade decorria de muitos fatores. Entre eles, o desejo de criar uma imagem
nova para os conventos, justificada pela conquista recente da independência da
província de Santo Antônio, em Portugal, com a criação de uma custódia no Brasil, com
sede no Recife. Mas, certamente, a fidelidade àqueles predicados desde sempre
cultivados pelos frades seráficos de cultura hispânica, a sua atitude maleável diante de
novas circunstâncias, a sua doce inclinação a assimilar influências étnicas e culturais, de
extração erudita e popular, o seu gosto pela experimentação, mantendo oficinas de
artífices para execução das obras, tiveram um peso ainda maior na configuração dessas
obras.
Elas assinalaram o desenvolvimento de uma tipologia inconfundível e de uma morfologia
aderente ao ambiente natural e, em todos os sentidos, fruto também do meio social em
que foram realizadas. Eram por isso inéditas no mundo luso-tropical daquela época.
Entre essas obras realizadas pelos franciscanos no Nordeste, a igreja de São Francisco
do convento de Salvador é uma exceção, por fugir um tanto a essa tipologia. A razão
principal dessa excepcionalidade foi a sua localização na cidade que era um importante
centro da Colônia, em contato direto e permanente com a Metrópole. A igreja de São
Francisco é do mesmo período em que surgiram as igrejas monumentais da Bahia. É
uma igreja com nave ampla, provida de capelas laterais com duas torres na fachada e
um pequeno frontão ladeado por belas volutas. Situada a uma certa distância, mas vis-
à-vis com a igreja do Colégio Jesuítico, no mesmo espaço urbano por elas definido, com
esta, inevitavelmente, rivalizava. Por todos esses motivos, seu interior é inteiramente
recoberto por deslumbrante talha dourada e pinturas, cuja inspiração é a igreja de São
Francisco, no Porto.
Mas as igrejas de outros conventos franciscanos erigidos no Nordeste, fora do centro
dominante da Colônia, guardam integralmente os predicados dessa simplicidade poética
peculiar às construções da ordem quanto a uma grande parte da arquitetura feita no
Brasil, independentemente dos programas monumentais, do desejo de criar uma
cenografia barroca em correspondência aos anseios daquela sociedade e até da evolução
dos estilos. E por outro lado, a atitude dos frades seráficos, fundamentada em sua
tradição religiosa e filosófica, de místico respeito à natureza e às manifestações vivas da
natureza, na forma de louvar a Deus através do amor pelos objetos de sua criação - que
se manifestava na assimilação de novos meios e de novas influências étnicas - levou à
construção de conjuntos organicamente articulados e naturalmente integrados ao
ambiente, onde a complexidade e, em muitos casos, as fases diferentes da obra não
afetavam o seu caráter unitário. Isso permitiu além do mais que nesses conjuntos se
fosse definindo uma tipologia original, específica e inconfundível, sob o predomínio
desses predicados.
Os dois exemplos mais expressivos dessa tipologia são os conventos do Paraguaçu, na
Bahia, realizado no século XVII, e o convento de João Pessoa, na Paraíba, cuja fundação
é de 1189 e cuja reconstrução, já na fase de pleno desenvolvimento dessa tipologia,
começou a partir de 1701, sendo a sua fachada concluída quando predominava a
influência do rococó.

Convento de Santo Antônio (Igaraçu – 1588)

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