Dias Úteis, de Patrícia Portela

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dias úteis

Patrícia
Portela
Dias
úteis

Edição apoiada pela Direção-Geral do Livro,


dos Arquivos e das Bibliotecas / Portugal
Porto Alegre São Paulo 2019
Copyright © 2017 Editorial Caminho e Patrícia Portela

Revisado segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.


Nos casos de dupla grafia, foi mantida a original.

conselho editorial Gustavo Faraon e Rodrigo Rosp


capa e projeto gráfico Luísa Zardo
preparação e revisão Rodrigo Rosp
ilustração da autora Afonso Cruz

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

P843d Portela, Patrícia


Dias úteis / Patrícia Portela — Porto Alegre : Dublinense, 2019.
96 p. ; 19 cm.

ISBN: 978-85-8318-125-5

1. Literatura Portuguesa. 2. Romances Portugueses. I. Título.



CDD 869.39

Catalogação na fonte: Ginamara de Oliveira Lima (CRB 10/1204)

Todos os direitos desta edição reservados à Editora Dublinense Ltda.

editorial comercial
Av. Augusto Meyer, 163 sala 605 (11) 4329-2676
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passeemos juntos
só para nos lembrarmos disto...
ricardo reis
9 prefácio fora de jogo

30 didascália

35 segunda-feira

43 terça-feira

57 quarta-feira

61 quinta-feira

77 sexta-feira

81 porque hoje é sábado

91 epitáfio de domingo
para o dia seguinte
prefácio fora de jogo
... a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
carlos drummond de andrade

Chegou aquela altura do ano, exatamente aquela.


Percebe-se logo pela agitação no ar, pela mudança
na orientação dos ventos.
O Jogo mais esperado de sempre, aquele ao qual nin-
guém quer assistir mas que todos querem saber como
corre, está para breve.
Um Jogo decisivo que ao mesmo tempo não o é; um
Jogo que se repete sempre que necessário ou sempre que
as condições, as circunstâncias, as intempéries e quem
assim o decide, assim o permitem.
Um Jogo com resultados que primam pela arbitra-
riedade, pela aleatoriedade, pela impercetibilidade, pela
irracionalidade e por isso se mantém aberto a variadas
interpretações, a fervorosas críticas e a reformulações ao
longo dos tempos sem que algum regulamento ou recei-
ta venha a ser adiantada. E por isso também, e tão só, se
repete e repete-se, promovendo o mesmo resultado do
Jogo anterior.

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Um Jogo que só se joga quando se tem mesmo, mes-
mo, mas mesmo de jogar, senão não vale a pena.
Um Jogo predestinado a inscrever histórias, a fazer
História!, e que uma vez começado, bem ou mal, vai ter-
minando. E raramente acaba bem.
Sempre que um desafio deste calibre é anunciado, é
sempre um inesperado acaso que o decide.
Sempre que um dérbi destes tem lugar no coração
desta selva que é a cama onde nos deitamos, o ar que com
esforço respiramos, a porqueira que sem mãos a medir
produzimos, o inferno que causamos aos outros quer es-
tejamos ou não a competir, não há preparativos nem pre-
liminares, até porque o campeonato consiste numa única
final, final essa na qual todas as equipas devem e podem
e têm de participar, e tem de acontecer logo ali, assim que
se decide que é agora que vai acontecer. E é para isso que
todos se preparam anos a fio sabendo e não sabendo que é
para isso que se preparam, que é por isso que sobrevivem
— para se dedicar de corpo e alma a cumprir a função
que lhe pode estar destinada quando chega O momento, e
isto para que, acaso O momento chegue assim numa altu-
ra menos própria, ninguém ter de fazer tudo em cima do
joelho, que é como quem diz, a correr, que é como quem
diz, à pressa, que é como quem diz, ao pontapé (mesmo
que dar um ou outro pontapé seja indispensável neste
Jogo!). Ou seja, há que estar à altura da ocasião, seja ela
qual for e como for, e de preferência com roupinha inte-
rior lavadinha, não vá o acidente ou a desventura desmas-
carar-nos no último momento da nossa bafejada sorte.
Não há notícia até hoje de alguém que tenha assis-
tido ou participado num Jogo desta natureza duas ve-

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zes na vida. Há quem se aventure já só no fim dos seus
dias, outros no auge da juventude, alguns nunca chegam
a assistir, passa-lhes ao lado (mas esses casos são raros,
mesmo se muito publicitados).
Seja como for, quem viu nunca se esquece e quem
joga nunca é esquecido. Ou pelo menos assim parece ser.
A logística do torneio é muito complexa mas ao mes-
mo tempo muito instantânea e muito óbvia. Os organi-
zadores e coordenadores principais são um presidente
da associação, um motorista da associação e uma dati-
lógrafa contratada pela associação com os apoios vários
e que, coitada, escreve, escreve, escreve, agrafa, agrafa,
agrafa, carimba, carimba, carimba, arruma, desarruma,
arruma, desarruma, fotocopia, clipa, clipa, clipa, compra
capinhas de plástico de várias cores, faz chazinhos e até
é ela que lambe os envelopes, um a um, e envia toda a
correspondência, sim, porque e‑mail e computadores é
coisa que nunca funcionou na produção deste Jogo: bu-
racos de eletroestática, buracos de rede e até buracos nas
paredes, quando as há. Muitos buracos, alguns naturais,
outros profundos, muitos propositados, por estas partes
poucos fios se utilizam não vá o fio perder-se à meada, e,
há que confessar, o fetiche de enviar as cartas é mesmo
só por brincadeira. Toda a gente sabe do Jogo antes de
verificar a caixa do correio; na prática, não se fala doutra
coisa, ninguém precisa de anúncios ou explicações.
Para além da mastodôntica mas discreta organiza-
ção deste campeonato de um Jogo só, esta pequena as-
sociação, que tem um presidente, um motorista e uma
datilógrafa, faz questão de organizar eventos culturais,
culinários e científicos paralelos, todos eles muito bem

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ensaiados, engendrados e apresentados pelas próprias
equipas que participam neste Jogo único e sempre len-
dário e é por isso que os jogadores mais desejados são
sempre aqueles que já fizeram algum tipo de workshop
em danças de salão, sapateado, ballet clássico, barra-
-no-chão, free jazz, contacto-improvisação, trampolim,
aeróbica, sabem pintar ou mesmo dar uma penada ou
outra de escrita dita criativa, quiçá até já se atiraram à
fazedura de uma ou outra peça de teatro. São estes joga-
dores ditos transdisciplinares, jogadores ditos atléticos,
ditos musculados, musculáveis, mas que também sabem
declamar, dar uma perninha de samba, cozinhar pratos
tradicionais à moda de sítios onde nunca viveram ou
fermentar uns quantos litros de cerveja no tempo livre,
que têm prioridade na seleção, seleção essa que é feita de
acordo com variadíssimos critérios, com diversíssimos
parâmetros, todos de igualíssima importância, todos
com muita medida e mau feitio.
Este Jogo, que poderia ser um simples Jogo ou um
Jogo simples, não o é, é um Jogo complicado, com regras
extra, com temáticas extra, com estádios e estágios extra
e até com jogadores e equipas extra e com imensas exce-
ções às regras (a todas elas, às simples e às extra). Uma
das normas mais peculiares e, no entanto, fundamen-
tal, consiste em obrigar todos os jogadores a jogar numa
posição que não é a sua: defesas sempre à frente, avan-
çados à defesa, frentes de casa nas laterais, guarda-redes
no banco, armadores como pivôs, arremessadores como
bases, suplentes e lesionados como treinadores, treina-
dores como fiscais de linha, árbitros como massagistas;
dizem os especialistas que é para manter não só um ele-

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vado nível de atenção por parte de quem joga (através
da introdução de um ligeiro desconforto na forma de
agir) como fomenta e promove a colaboração entre os
pares que, nos balneários, durante a noite, nos recreios,
nos intervalos, entre limonadas ou cigarrinhos, trocam
truques, explicam táticas, ensinam técnicas, discutem
estratégias, revelam teorias e passam grandes dicas sobre
cada posição em campo. Mas nem sempre isso acontece.
Outra das regras mais importantes deste Jogo é co-
nhecer muito bem o adversário, esteja ele vestido como
estiver, a jogar como estiver a jogar, disfarçado do que
se disfarçar. Há quem diga que é por causa desta regra
que há quem leve uma vida a estudar os vizinhos, os ir-
mãos, os amigos mais próximos, não vá algum tornar-se
membro da equipa adversária, um dia, mais tarde. Não
se pode confiar em ninguém, acaba por ser o modus vi‑
vendi de alguns porque não se pode a priori fazer ideia
de que equipa se poderá vir a ser, e isto se e quando se
for chamado. É que neste Jogo não há adeptos, nem há
claques, nem há sócios. E sobretudo não há camisolas
de equipas. Não são permitidos uniformes neste Jogo.
Ter amor à camisola, neste contexto, é apenas uma ex-
pressão, e ainda por cima esvaziada de sentido, literal ou
outro, tal como tantas outras expressões que andam por
aí na boca de toda a gente mas que no fundo, no fundo,
se pensarmos bem, ninguém veste nem engole, a não ser
que depois as cuspa na sopa.
Mas veja-se: neste Jogo ninguém veste a camisola
mas todos se põem na pele da sua seleção; ele é lobos
vestidos de cordeiros, baratas vestidas de pavões, sapos
vestidos de dinossauros, raposas vestidas de galinhas, ga-

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tos vestidos de lebres, faisões vestidos de tigres, cigarras
de formigas, tantas e tão diferentes peles vestidas de tan-
tas outras que é tecnicamente impossível prever a tática
de um e qualquer jogador ou equipa, o que torna tudo
bem mais excitante. E é isso que se quer, não é? Não que
corra bem, não que seja exemplar, não que seja exímio,
não que seja irrepreensível, mas memorável e excitante.
Assim, com ares de Carnaval do Rio, o Jogo sobe logo
dois ou três níveis de dificuldade só por causa da indu-
mentária, nunca se sabe quem de facto tem pernas para
andar, cascos para o galope, patas para as pôr, ou quem
tem asas, quem tem caudas, quem tem ouvidos, quem
tem tromba, tetas, pinças, quem tem cu, tomates, eu sei
lá, caneco, quem é que afinal tem mesmo ganas de ven-
cer assim numa grande final!
Chuteiras, isso sim, todos têm.
E todas da mesma marca.
A marca que patrocina o Jogo, claro está, e que pa-
trocina os médicos assistentes, e quem mantém o relva-
do limpinho, a marca que paga as contas da associação,
e que paga sobretudo as contas da secretária que é quem
tem o orçamento mais complexo, e que subaluga ainda
toda a fatiota de carnaval depois de usada.
São chuteiras lindas, diga-se de passagem, vindas
do estrangeiro, todas feitas à mão, cada par vem já com
o nome do jogador delicadamente bordado à pata por
éguas minhotas muito velhinhas e rematado com um
coraçãozinho de filigrana.
As chuteiras são mesmo lindas, mas camisolas é
que não há mesmo, nem nunca houve, nunca haverá,
suspeita-se. Já se discutiu se faria sentido usar calções,

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mas como nem todos os jogadores se aguentam nas duas
pernas ou sabem como morrer de pé, achou-se uma
medida discriminatória para um Jogo tão universal, que
junta todo o tipo de bicho pelo menos uma vez na vida
no mesmo campeonato.

Está quase.
As equipas selecionadas, que nunca se sabe muito
bem quantas são, preparam-se para a foto de grupo.
Puxa-se o último lustre aos rodapés do coliseu, que
não é bem um coliseu, que não é bem uma praça, que
não é bem um campo e que nem é bem romano, que é
mais um estádio com a forma de uma serra espinhosa,
rodeada de vales imensos, muitas rugosidades, ou seja,
relvados nunca a direito, mas também nada na vida é
suposto ser plano, sobre isso até já correu muita tinta.
Jogar este Jogo implica perceber de golfe, perceber de
ski, ser bom em rappel, em desportos radicais, praticar
montanhismo, conhecer muito bem as inclinações da
geografia ou dar-se muito bem com todas elas, implica
perceber que se pode chutar qualquer coisa para a frente
que pode rolar para trás, que pode ir parar a recantos de
onde pode não conseguir sair, que se pode ser atirado
para o meio da selva ou mesmo aos leões e aí ou se é
comido ou se é salvo, mas parar o Jogo é que não se para,
e é por isso que, apesar de termos todos de jogar pelo
menos uma vez na vida, muitos de nós jogamos como se
fôssemos suplentes, substitutos, alternativos ou contra-
riados, na esperança vã de podermos adiar a partida ou
controlar os resultados.
E depois há o grande alçapão.

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Que nunca para quieto.

Ninguém sabe o que lá está dentro, onde vai dar e,


mais importante ainda, quando e onde vai passar.

O Grande Alçapão.

O único, mas também o magnânimo, o periclitante


alçapão.
O buraco interno, terrestre.
Aliás, deveria escrever-se,
O BURACO DO MUNDO.

Um buraco que se move por toda a crosta terrestre


de maneira invisível, por dentro, como uma placa tec-
tónica sem placa e sem tónica que desliza, manhoso, às
escondidas, pelos campos dos campeonatos e, a certa al-
tura, abre-se.
Ninguém sabe quando, nem com que dimensão,
nem com que estragos.
Se acaso um jogador passa por perto e cai, são me-
nos dois pontos para a sua equipa; se acaso um jogador
passa por perto e atira outro lá para dentro (situação
que, infelizmente, tem lugar com alguma regularidade)
a equipa perde logo dez pontos (o que é uma maçada
pois pode acabar o Jogo com pontos negativos e para re-
cuperar é uma chatice!); se a bola, ou o disco, ou o sti-
que, ou a raqueta, ou o pau, ou o taco ou seja lá o que for
cair no buraco, perde-se, o que é outra grande chatice
porque se tem de continuar a jogar na mesma.

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Sim, joga-se até ao fim mesmo depois de alguns fins,
porque a maior das especificidades deste Jogo é que uma
vez começado, joga-se até à morte, a nossa e a dos outros.
É como viver, para quem ainda não tenha percebido
do que se trata.
E mesmo para aqueles para quem a vida parece de-
correr sem sobressaltos, sem altos nem baixos, sem clí-
maxes nem momentos mortos, parece ser para momen-
tos como este que se vive.
E um bom jogador nestes jogos é aquele que aceita
o seu destino e que ao mesmo tempo o tenta contrariar,
é aquele que, envolto nesta luta impossível de ganhar
perdendo-se ou sentindo-se cada vez mais perdido, ain-
da assim se mostra versátil, bem-disposto, criativo, im-
previsível e até com alguma graça; é aquele que também
percebe de agricultura, de economia, de política, mas
também de ecologia, de relações públicas, interpessoais
e de desporto (já agora!), e que se aplica com elegância e
carisma, agressividade e estilo, sem nunca estragar o rel-
vado nem desmanchar o penteado, dominando as regras
e a vindima, percebendo de plantas, e de árvores, e de
micro-organismos, utilizando as suas estratégias mais
subtis simultaneamente respeitando a natureza de cada
um, a ordem de cada estação, o pôr de cada sol, sele-
cionando e remisturando toda a informação que recebe,
sabendo o que deve e não deve aproveitar, como e para
o quê e em que medida, ou seja, o verdadeiro jogador é
aquele que a todo e qualquer segundo faz o passe certo,
o toque certo, na direção certa, e é, em suma, perfeito, e
logo, não existe!, e por ser perfeito está sempre prepara-
do para ser humilhado, insultado, maltratado, aceitando

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com calma e até orgulho qualquer corte no salário ou
nos direitos adquiridos, não faz greve, não se queixa, e
não falha um sorriso às autoridades nem um esgar aos
que não estão à altura da sua sorte. O jogador ideal é
aquele que é ideal mesmo, se é que me faço entender,
e que por isso continuará sempre a jogar. Com afinco,
com persistência, com ignorância, com devoção total
e sem fazer perguntas enquanto o Jogo que joga deci-
de todas as hierarquias, toda a ordem natural as coisas,
das intempéries, dos polos, das florestas, amazónicas ou
outras, dos desertos, africanos, siberianos ou pessoais, e
todas as reformas em atraso, todas as mudanças climaté-
ricas, todos os PIBs, todos os VIPs e todos os NIBs. Pelo
menos uma vez.
Antes de darem início à partida, todos os jogadores
dão as mãos.
As equipas fazem uma filinha, colocam os dedos, os
cascos, as patas, as manápulas, as pinças, os cotos, o que
for preciso, sobre o ombro, o dorso, o costado ou o que es-
tiver mais a jeito do parceiro do lado e entoam um cantar
alentejano muito antigo com todo o sentimento. Um can-
tar daqueles que passa de geração em geração, um cantar
que ensaiaram durante um ano (ou mais) para que se ou-
visse na Terra inteira como se fosse um uivar discreto mas
sentido, enquanto dois júris compostos por personalida-
des de alto gabarito ouvem com muita atenção — o pri-
meiro repara apenas na qualidade geral do coro, senta-se
no local mais elevado e mais longínquo do planeta e ouve;
o outro dedica-se a ouvir voz a voz, cola o ouvido à boca
de cada jogador, passeia-se no relvado em passo quase
doble (um passo que envolve esticar ligeiramente mais

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