Facas. Valério Romão.

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A Companhia das Ilhas apresenta

Facas
Valrio Romo

Apresentao

Facas um livro que assume uma centralidade temtica contrastante


com a liberdade formal com a qual exprime, em mutaes de forma
e de tom ao longo dos contos que o compem, as diversas declinaes
do objecto que empresta o ttulo ao livro, ora sublimando-as num
realismo to mgico como grotesco, ora tornando-as as mscaras mais
visveis de uma natureza humana caleidoscpica, ora desafiando livro,
leitor e lgica, desapossando-os pouco a pouco da clareza e segurana
de uma definio, como quem estando na praia no saber dizer se a
praia a areia ou o mar.
Ficha tcnica

Excerto

Envelheo. Morro, em cada dia definho um pouco


mais. Metido entre estas paredes de gritos, rebusco
um passado que no percebo, que no domino, um
passado que me escapa por entre os dedos, anos e
anos de hiatos, ser que vivi, ser que algum dia me
senti vivo ao ponto de querer bater com a porta no
ontem e de olh-lo de soslaio e com desprezo? As
muletas pesam cada vez mais, as muletas que me
rebocam generosamente de uma tristeza a outra,
eu, o homem das quatro pernas, o aleijado que afia
os cornos na ombreira da porta do quarto onde a

tua me se escarrapacha com os pretos, eu a olhar


pela fechadura, agarrado s muletas, por vezes
tropeo e bato com a cabea na porta, a tua me
ri e grita mais alto e o preto entusiasma-se, mete a
quinta no vaivm frentico e eu lembro-me de que
no sou homem, de que sou um bicho assexuado e
no consigo deixar de espreitar, a tua me a rugir e
eu com o olho cravado na fechadura, o mesmo olho
que v e que no v, o mesmo olho de que jorram
gales de gua do mar com que desesperadamente
tento lavar os remorsos.

Gnero: Fico
Ano: 2013
Coleco: azulcobalto
Nmero de edio: 28
ISBN: 978-989-8592-36-1
Dimenses: 11x15 cm
N de pginas: 100
PVP: 12,00

Valrio Romo

Frana, 1974.
Foi trs vezes seleccionado no concurso nacional
Jovens criadores (2000, 2001, 2002), duas em prosa,
uma em poesia. Foi o representante portugus da
rea de literatura na Bienal de Jovens Criadores da
Europa e do Mediterrneo, em 2001, na Bsnia-Herzegovina.
Na Faculdade cursou Filosofia, rea em que se
licenciou. Tem escrito contos (o relojoeiro contorcionista, revista

Magma; Facas na Cidade, revista Construes


Porturias), peas de teatro (Octlogo, TUP;
Posse, Trindade; A Mala, CCB/Boxnova),
feito tradues (V. Woolf, S. Becket) e tem colaborado com diversos artistas nacionais na definio
de ncleos de sentido em peas multidisciplinares
(moments of being; Beatriz Cantinho e Ricardo Jacinto; Pea Veloz Corpo Voltil; Beatriz Cantinho).
Fico (publicada na abysmo): Autismo, O da Joana
(romances), e Da famlia (contos).

Rua Manuel Paulino de Azevedo e Castro, 3


9930149 Lajes do Pico, Aores, Portugal

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Leituras, notas crticas

O singular universo literrio de valrio romo. histrias


de uma crueza desapiedada que vm mostrar o singular
universo literrio de Valrio Romo
Dividido em trs partes, o mais recente livro de Valrio Romo
(n. 1974), junta histrias perturbantes sob um denominador comum: facas. Usando diferentes registos narrativos, o autor explora, de maneira assertiva, as entranhas secretas do que se esconde
por detrs de vidas aparentemente normais. ()
A histria que abre o livro, Facas na Solido, o exemplo
perfeito deste mecanismo de dissecao que deixa tudo mostra.
() O estilo (sobretudo o ritmo narrativo) e o cenrio deste primeiro conto, convocam de imediato a escrita de Lobo Antunes.
() As restantes histrias, sobretudo o conjunto da segunda parte
do livro, Sete pequenos canivetes, no fogem deste registo cru e
sem piedade em que as personagens parecem querer mostrar-se
escrevendo-se com o seu prprio sangue.
( ) Presumimos que Facas foi escrito antes dos dois recentes
romances de Valrio Romo, Autismo e O da Joana (ambos publicados pela abysmo em 2012 e 2013, respectivamente),
pois estas histrias, apesar de terem um tema e um universo em
comum, parecem ter funcionado como exerccios (sem qualquer
sentido depreciativo) para o autor, como um fazer a mo maneira dos cirurgies: a primeira, claramente loboantuniana, at
outras em que as vrgulas so substitudas por pargrafos (criando
uma mancha de texto que no se afasta muito das pginas de
Lobo Antunes), passando por aquelas que deixam j entrever o
estilo dos romances que publicou.

autor constri para ele, sem nunca perder o passo, sem qualquer
melodramatismo.
O narrador de Sete Pequenos Canivetes, por seu lado, comea
por ser uma entidade neutra, de voz suave, que se anula para
dizer, mas, com o correr da narrao, esse estado esvai-se, e surge
um ser bravio, contraditrio, em sucessivas metamorfoses pode
ofender-me at oitava gerao que eu no ligo porque felizmente sou superior a tudo isso eu tirei um curso de letras e no
um bacharelato em desvio de fundos pblicos. (p.42). Nada diz
melhor do poder desta escrita do que o ltimo destes contos. a
prpria escrita que interpela, que dirige as hostilidades pessoa
do leitor essa, sim, cada vez mais abstracta, medida que se
avana.
Um dos poucos lugares em que esta fico falha a cedncia
tentao de fazer da escrita um actor da narrativa. O comeo do
conto Facas Seiseiseis repete-se: j no como escrita, mas como
consequncia da aco, como se a escrita se tornasse verdade. Se
essa sugesto apenas se esboasse, nada se perderia.
(Hugo Pinto Santos, jornal Pblico)

[Jos Rio Direitinho, Sexta-Feira 6 de Dezembro de 2013, suplemento


psilon do jornal Pblico]

Com trs facadas, Valrio Romo arrasa a sua vtima, a fico encasacada. Os trs contos de Facas desferem golpes bem
assestados, de uma dureza implacvel. Romo comanda a lngua
como poucos, narra como quase nenhum, molda a forma com
uma autoridade muito sua.
Valrio d predomnio faca, verdadeiro esqueleto destes contos
( ftil compar-los ao corte da lmina), esquinados por facetas
que desgovernam, inquietam, abalam. Cria interlocutores fludos
e mutveis, que correm, sem descansar sombra das realizaes
da escrita. o caso de Faca Seiseiseis, em que o prprio livro
toma conta da voz da narrao Tu dizes que podes fechar
o livro quando quiseres. essa efmera sensao de poder que
quero que sintas. (p.65)
Facas na Solido , no mais terrvel sentido, o relato de um
morto talvez seja isso que precise para morrer, que algum me
declare morto (p.30) -, mas da forma menos entediante. A sua
morte cosida pela teia narrativa, s escondidas, com ficha invisvel; de tal forma, que o leitor a sente rente a si. Uma personagem
pontapeada pelo stress ps-traumtico, um farrapo cujo filho
abusa sexualmente do filho, desce uma escada de torpeza que o

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