Democracia Um Conceito em Disputa
Democracia Um Conceito em Disputa
Democracia Um Conceito em Disputa
No mundo atual, boa parte da batalha das idias que se trava entre as diferentes foras sociais centra-se na tentativa de definir o que democracia, j que essa forma de regime poltico hoje reivindicada por praticamente todas as correntes idelogicas, da direita esquerda. Ora, nem sempre foi assi m. H algumas dcadas atrs, o pensamento explicitamente de direita desde o catolicismo ultramontano at os diferentes fascismos combatia abertamente a democracia; at mesmo o liberalismo, em boa parte de sua histria, apresentou-se explicitamente como alternativa democracia. Esta situao se alterou a partir da segunda metade do sculo XX. Por um lado, o fascismo praticamente desapareceu como fora atuante no cenrio poltico mundial; e, por outro, sobretudo a partir dos anos 1930, o liberalismo assu miu a democracia e passou a defend-la, ainda que no sem antes minimiz -la, empobrecendo suas determinaes, concebendo -a de modo claramente redutivo. Assim, pelo menos nominalmente, hoje todos so democratas. Nesse sentido, devemos ter muita cautela, ho je, quando usamos a palavra democracia. Um brilhante pensador francs do sculo XVII, La Rochefoucauld, tem uma bela definio de hipocrisia: Hipocrisia homenagem que o vcio presta virtude 1 . Ou seja, o fato de que todos hoje se digam democratas no significa que acreditem efetivamente na democracia, mas sim que se generalizou o reconhecimento de que a democracia uma virtude. A hipocrisia consiste em que, com extrema freqncia, essa pala vra ainda que dita com nfase no significa absolutamente o que a histria da humanidade e o pensamento poltico entenderam e entendem por democracia. O liberalismo, como corrente representativa da ascenso histrica da burguesia como nova classe social e de sua consolidao como classe dominante, nem sempre se apresentou como democrtico. Os primeiros pensadores liberais do sculo XVII como John Locke, por exemplo, que pode ser considerado o pai do liberalismo no discutiam a questo democrtica p orque ela ainda no se apresentara na poca histrica em que eles viveram. Ou seja, a tarefa que ento se colocava s foras do progresso era o fim do Estado absolutista, a consolidao de uma ordem burguesa com uma superestrutura poltica de natureza liberal, na qual o poder fosse limitado pelos direitos individuais considerados como direitos naturais. Pode-se assim dizer que, pelo menos at a Revoluo Francesa, o liberalismo se situa esquerda do espectro poltico. Talvez fosse ainda mais correto dizer :
at o surgimento de Jean-Jacques Rousseau, o qual, em meados do sculo XVIII, no s elaborou uma crtica radical da sociedade existente e apontou os limites ideolgicos contidos no liberalismo (como se pode ver no Discurso sobre a desigualdade ), mas tambm formulou a proposta de uma sociedade alternativa, profundamente democrtica e popular (o que ele faz em O contrato social ) 2 . As idias elaboradas por Rousseau orientaram a ao de importantes sujeitos polticos durante a Revoluo Francesa. Refiro-me em particular aos jacobinos, revolucionrios radicais liderados por Robespierre e Saint -Just, expresso poltica e ideolgica do povo mido; mas tais idias encontraram tambm desdobramentos nos primeiros pensadores comunistas, como Grachus Babeuf, que liderou a chamada Conjurao dos Iguais, ocorrida no final do sculo XVIII e que foi duramente reprimida (Babeuf foi condenado morte) por um governo que se dizia liberal. O surgimento do movimento socialista, no tumultuado incio do sculo XIX com a transformao em ator poltico no s do povo em geral, como na poca da Revoluo Francesa, mas agora, em particular, do proletariado , obriga ainda mais o pensamento liberal a confrontar-se com o que poderamos chamar de afirmao da democracia moderna, que se expressa precisamente neste progressivo ingresso das camadas populares na arena poltica. No primeiro momento, fcil perceber que o liberalismo reage criticamente contra a democracia. Recordo um pensador liberal, que combateu o absolutismo na Frana: Benjamin Constant. Ele escreveu, em 1819, um interessante texto 3 , no qual afirma que a liberdade teorizada por Rousseau e praticada pelos jacobinos seria a liberdade do mundo antigo, ou seja, a liberdade de participar na formao do governo, o que impli ca a criao de uma esfera pblica da qual todos participam, onde todos so cidados plenos. Em suma, onde todos so, ao mesmo tempo, governantes e governados. Essa forma de liberdade, afirma Constant, no a que caracteriza os tempos modernos. A liberdade moderna, ao contrrio, consistiria em fruir na esfera privada os bens que os indivduos obtm graas a seus mritos pessoais; para tanto, os indviduos livres nomeiam representantes que se ocupam do governo e, desse modo, so tanto mais livres quant o menos participam da esfera pblica. Expressa-se aqui, com toda clareza, a distino no entre a liberdade antiga e a liberdade dos modernos, como queria Constant, mas sim entre a liberdade democrtica e a liberdade liberal: apresentar essa distino como se se tratasse de um fato histrico o habilidoso modo pelo qual o liberal francs evita dizer claramente que contra a democracia: para Constant, a democracia seria um regime do passado (repetindo assim o que j dissera Montesquieu), algo anacrnico e, portanto, no mais vlido na modernidade, no tempo da liberdade privada, da liberdade entendida como direito de usufruir na esfera privada os bens que os indivduos constrem
tambm privadamente. No deixa de ser um modo bastante inteligente de se posicionar contra a atualidade da proposta democrtica, tal como esta se manifestara na obra de Rousseau e na ao dos jacobinos. Ao longo do sculo XIX, h alguns pensadores liberais um deles o francs Alexis de Tocqueville que j demonstram ter compreendido que a democracia algo irreversvel precisamente no mundo moderno . Tocqueville afirma que a igualdade de condies, o fato de que os indivduos sejam equalizados em suas condies materiais de vida e se sintam como iguais, uma tendncia inarrestvel ele fala at em desgnio divino , isto , algo que j no possvel impedir que ocorra 4 . Mas essa tendncia igualitria, diz ainda Tocqueville, leva tambm necessariamente fragmentao social, perda de conscincia cvica e, finalmente, em cons eqncia disso, ao despotismo. Quando todos so equalizados, quando desaparecem os corpos intermedirios e todos se sentem como iguais, cria - se uma tirania da maioria, que esmaga a liberdade individual. Haveria assim uma contradio entre a igualdade e a liberdade. Ou seja: para o liberal Tocqueville, a democracia inevitvel, mas algo em si negativo . Para ele, o modo de impedir a transformao da democracia em despotismo fortalecer as liberdades formais, os direitos privados; tambm desenvolver o associativismo nos moldes em que ele o via na sociedade norte -americana do seu tempo, j que o associativismo impediria a emergncia do poder desptico. No vou me deter aqui na anlise das reflexes de Tocqueville, que certamente um brilhante pensador, apesar de suas posies conservadoras. O que importa observar que ele v a democracia como um fenmeno irreversvel no mundo moderno, mas contra o qual preciso inventar remdios, criando controles que a impeam de se transformar em tirania da maior ia. No hesitaria em dizer: Tocqueville teme a tirania da maioria porque a maioria popular e, conseqentemente, para ele, isso levaria ao despotismo. O fortalecimento do liberalismo visto como um remdio contra os males da democracia. De resto, ao contrrio de Constant, Tocqueville j se confronta com a ala mais radical da democracia, ou seja, com o socialismo que se manifesta, sobretudo no contexto da revoluo francesa de 1848, como uma alternativa real ao poder da burguesia , e o condena duramente enquanto expresso mxima do despotismo implcito na tendncia igualitria da democracia. Na passagem do sculo XIX para o XX, um outro pensador liberal, o elitista italiano Gaetano Mosca, inova em relao a Tocqueville: Mosca j no teme a tirania da maioria, uma vez que, em sua opinio, as maiorias jamais existem como sujeitos polticos. A poltica feita sempre por elites, por minorias, pelo
que ele chama de classes dirigentes. Assim, a idia democrtica de uma soberania popular no passaria pa ra ele de uma frmula poltica; ou seja, traduzindo em linguagem marxista, soberania popular seria apenas uma ideologia que a elite dirigente usa para se legitimar, dizendo agir em nome do povo. Seria algo similar idia do direito divino dos reis, qu e seria a frmula poltica com a qual a monarquia buscava se justificar. Ento, a democracia a soberania popular no passaria, segundo Mosca, de um mito, de uma frmula poltica que as elites modernas usam para se legitimar no poder 5 . Mas cabe lembrar que, apesar do seu elitismo e conseqente conservadorismo, Mosca um pensador liberal, na medida em que defende uma Constituio (um sistema de defesas jurdicas) e a presena de um parlamento. Contudo, no se deve tambm esquecer que, para ele, a defesa jurdica apenas um modo de proteger as elites umas contra as outras; e que o Parlamento visto como algo positivo no porque seja expresso da soberania popular, mas por ser o local onde as elites dirigentes podem se renovar atravs da cooptao de novos membros. Embora adversrio resoluto do sufrgio universal, Mosca tambm no aderiu ao fascismo. Ento, at certo momento, o princpio da hipocrisia de La Rochefoucauld no era aplicado pelos liberais: eles no hesitavam em se afirmar contrrios democracia. Pelo menos at Mosca, o liberalismo negava abertamente os postulados democrticos bsicos, tais como a soberania popular, o sufrgio universal, etc.; apresentava-se no como um complemento, mas como uma alternativa democracia. E, na realida de dos fatos, os primeiros regimes liberais, por serem regimes de participao restrita, eram efetivamente regimes oligrquicos, elitistas. Com a chamada Gloriosa Revoluo de 1688, instaura se na Gr-Bretanha uma monarquia constitucional, o primeiro regi me liberal a se implantar no mundo. Tal regime logo se tornou, ao longo dos sculos XVIII e XIX, um paradigma para o pensamento e a prtica liberais em todo o mundo. Na monarquia constitucional inglesa, o poder se assentava num parlamento eleito, mas o d ireito ao sufrgio era extremamente restrito; votava um nmero muito pequeno de pessoas, ou seja, somente os vares que dispunham de propriedades ou pagavam um determinado montante de impostos. Este modelo de sufrgio restrito vigorou em todos os regimes liberais at o incio do sculo XX. A limitao do direito ao voto no tinha lugar apenas na prtica: era tambm um momento importante da teoria liberal. Benjamin Constant, por exemplo, j nosso conhecido, dizia muito claramente: s deve votar e ser vota do o proprietrio, j que, sendo ele dono de uma parte da nao, seria o nico a se interessar efetivamente pelo seu bem -estar. Quem mora de aluguel sabe que
no pode ir reunio de condomnio e nela votar; s pode ir o proprietrio, o qual, segundo as regras do condomnio, quem tem interesse na manuteno do imvel. O filsofo alemo Immanuel Kant, brilhante pensador liberal, tambm dizia algo do gnero: para ele, s deve ter direito de voto quem tem independncia de juzo 6 . Ora, as mulheres no tm esta independncia porque dependem ou dos maridos ou dos pais; tampouco a tm os trabalhadores assalariados, porque dependem do patro. Ento, Kant exclua do direito a votar e ser votado algo em torno de 90% da humanidade. O sufrgio universal hoje um instituto que todos consideram condio bsica de qualquer regime democrtico; dificilmente algum teria ainda a coragem de defender, pelo menos publicamente, que as mulheres e os trabalhadores assalariados no devem votar. Mas cabe lembrar que o sufrgio universal uma conquista da classe trabalhadora. O primeiro movimento operrio de massa, o movimento cartista, que surgiu na Inglaterra na primeira metade do sculo XIX, tinha duas palavras de ordem. A primeira delas era a limitao legal da jornada de trabalho. Naquele tempo, trabalhava-se nos limites impostos pela resistncia biolgica o quanto o patro quisesse. A luta por essa limitao foi longa, mas finalmente promulgou -se uma lei na Inglaterra, nos anos 60 do sculo XIX, que fixou limites para a jornada de trabalho; leis semelhantes se generalizaram nos demais pases, at que, j no sculo XX, os trabalhadores conquistaram a jornada de oito horas. A segunda palavra de ordem do cartismo era o sufrgio universal que, curiosamente, demorou mais tempo para ser obtido. O sufrgio plenamente universal foi conquistado na Inglaterra, simultaneamente para todos os vares e para as mulheres, somente em 1918. Para sermos justos, cabe tambm lembrar que o direito das mulheres ao voto uma conquista no s dos trabalhadores (e sobretudo das trabalhadoras!), mas particularmente do movimento feminista, das chamadas sufragetes. Poderia dar outros exemplos de direitos polticos e sociais que foram tambm negados, durante muito tempo, pelos regimes liberais , em nome da liberdade de mercado. Recordemos, por exemplo, os direitos de organizao sindical e de greve. Logo aps a Revoluo Francesa, em nome do combate s velhas corporaes medievais de artes e ofcios, foi promulgada uma lei, conhecida como lei Le Chapelier, que proibia que os trabalhadores em geral se organizassem; se isto extinguia as anacrnicas corporaes artesanais, que impediam a liberdade profissional, tambm significava na prtica a interdio dos sindicatos dos trabalhadores assalariados . O argumento era que a organizao dos trabalhadores, ao permitir a negociao coletiva do preo da fora de trabalho, entraria em choque com as famigeradas leis do mercado, o que no deixa de ser verdade: se cada assalariado negociasse individualmente
com o patro, receberia certamente ainda menos do que recebe se estiver organizado num sindicato. Na Frana, por exemplo, o direito de organizao e de greve s foi reconhecido aos trabalhadores nos anos 70 do sculo XIX, pouco depois o que no absolutamente casual! da Comuna de Paris. Portanto, foram sendo progressivamente impostos aos regimes liberais ou, mais precisamente, classe burguesa determinados direitos de cidadania, sobretudo de cidadania poltica, que no faziam parte do iderio libe ral at incios do sculo XX, mas que tal iderio foi sendo progressivamente forado a assimilar. Tais direitos, ao contrrio, so parte integrante do iderio democrtico, o qual tem como pressuposto e meta a socializao da participao poltica, ou seja, em ltima instncia, a plena soberania popular 7 . Como resultado dessa assimilao de novos direitos, imposta pela luta dos subalternos, boa parte dos Estados existentes no mundo de hoje assumiu a forma de regimes liberal-democrticos , na medida em que incorporaram alguns direitos como o sufrgio universal, a livre organizao no s sindical mas partidria, etc. , que resultam de demandas no originariamente liberais, mas de natureza democrtica. Com isso, o liberalismo viu -se diante de uma tarefa no s terica como prtica, que consistia no seguinte: como controlar esse avano democrtico e submet-lo lgica da reproduo capitalista? Chamo a ateno para o fato de que, na viso do filsofo marxista Georg Lukcs, a democracia deve ser entendida no como algo esttico, mas como um processo 8 . Por isso, ele julga ser sempre mais adequado falar em democratizao. Publiquei em 1979 um ensaio, muito discutido na poca, chamado A democracia como valor universal . Este ttulo reproduz uma expresso de Enrico Berlinguer, ento secretrio-geral do Partido Comunista Italiano, expresso que usei naquele momento de simultneo combate contra a ditadura e contra o dogmatismo marxista - leninista como bandeira de luta. No teria nada a modificar hoje no que es t dito naquele velho ensaio, escrito h mais de vinte anos atrs: mas certamente poria um outro ttulo, ou seja, A democratizao como valor universal , j que o que tem valor universal no so as formas concretas que a democracia adquire em determinados contextos histricos formas essas sempre modificveis, sempre renovveis, sempre passveis de aprofundamento , mas o que tem valor universal esse processo de democratizao, que se expressa essencialmente numa crescente socializao da participao poltica 9 . A partir do ltimo tero do sculo XIX e, sobretudo, ao longo do sculo XX, pode-se notar que um nmero crescente de pessoas passa a participar da vida poltica. Nos regimes liberais de sufrgio restrito, com sindicatos e partidos de oposio ao sistema postos fora da lei, ocorre uma baixa participao poltica. Temos, de um lado, a classe dominante organizada no
Estado o qual, na poca, Marx e Engels chamaram de comit que administra os negcios comuns da classe burguesa 1 0 , e, de outro, pequenos grupos clandestinos ou semiclandestinos, clubes revolucionrios de inspirao jacobina, que expressavam a posio das classes trabalhadoras em oposio frontal ao Estado 1 1 . Enquanto isso, a grande massa da populao no tinha nenhuma participao poltica, nem mesmo eleitoral. por isso que surge entre os socialistas deste perodo como, por exemplo, no revolucionrio francs Auguste Blanqui a idia de que a revoluo proletria deve ser feita por uma minoria revolucionria que age em nome do povo . Em contraposio e esta situao claramente oligrquica, o processo de democratizao a que me referi se caracteriza por uma ampliao crescente da participao popular, ou, como os marxistas italianos a chamam, pela crescente socializao da poltica . Mas esse processo de progressiva democratizao, de socializao da poltica, choca-se com a apropriao privada dos mecanismos de poder. Temos aqui uma contradio: o fato de que haja um nmero cada vez maior de pessoas participando politicamente de modo organizado, constituindo-se como sujeitos coletivos, choca-se com a permanncia de um Estado apropriado restritamente por um pequeno grupo de pessoas, ou seja, apenas pelos membros da classe economicamente dominante ou por seus representantes. Essa contradio s pode ser superada superao que precisamente o processo de democratizao na medida em que a socializao da participao poltica se expresse numa crescente socializao do poder , o que significa que a plena realizao da democracia implica a superao da ordem social capitalista , da apropriao privada do Estado, e a conseqente construo de uma nova ordem social, de uma ordem social socialista. Ou seja: de uma ordem onde no haja apenas a socializao dos meios de produo, como os clssi cos do marxismo insistiram, mas tambm a socializao do poder. Dizendo isso, volto um pouco atrs, chamando a ateno para o seguinte: esse processo de democratizao, que Tocqueville viu como algo irrefrevel, choca -se com a lgica do capital. No se trata de um choque que ocorra num momento concreto, num dia-D e numa hora-H, mas de algo tendencial: o processo de ampliao de democracia implica choques permanentes com a lgica privatista do capital. Coloca-se assim uma questo: como o capital e seus rep resentantes enfrentaram esse processo objetivo de democratizao, que um processo, digamos, espontaneamente subversivo? Com muita freqncia, como se sabe, simplesmente recorrendo ditadura aberta. No se pode explicar o fascismo na Itlia, o nazismo na Alemanha, a srie de ditaduras militares que conhecemos na Amrica Latina nos anos 1970 e 1980, se tais regimes no forem entendidos como reao da classe burguesa (que abandona nesse momento qualquer
veleidade liberal) a essa crescente democratizao, tendencialmente anticapitalista. Mas h algumas outras respostas mais sutis, uma das quais , precisamente, a tentativa de assimilar elementos isolados da democracia e p los a servio da perpetuao da ordem capitalista. Neste sentido, chamo a ateno para uma tendncia muito marcada, que se inicia j em meados do sculo XIX e atravessa todo o sculo XX, ou seja, para a crescente tendncia do Estado burgus no sentido de se converter num Estado bonapartista . O bonapartismo no se manifesta necessariament e por meio de um Estado abertamente ditatorial; o que o caracteriza a presena de formas personalizadas de poder, expressas na figura de um lder carismtico que diz representar os interesses do povo e/ou que se apresenta como um rbitro entre as classes sociais. Ocorre que, depois da conquista do sufrgio universal, por meio deste instituto de origem democrtica que o lder carismtico busca sua legitimao. Trata-se de um processo muito bem analisado pelo filsofo italiano Domenico Losurdo 1 2 . Por meio desta tendncia bonapartista, o sufrgio universal deixa de ser uma arma potencial de emancipao da classe trabalhadora e se converte num instrumento de legitimao de chefes carismticos que, dizendo falar em nome do povo, na verdade representam os interesses de quem pretende conservar a ordem capitalista. Losurdo caracteriza essa utilizao bonapartista do sufrgio universal como um processo de des - emancipao. E aqui recordo que um notvel socilogo burgus moderadamente liberal, Max Weber, props em 1919 no momento em que a Alemanha, derrotada na Primeira Guerra Mundial, buscava se reconstruir como repblica atravs de uma Constituinte um dispositivo constitucional pelo qual o Presidente da Repblica, mesmo num regime parlamentarista, dever ia ser eleito por sufrgio universal e direto. Na concepo de Weber, isso possibilitaria o que ele chamou de democracia cesarista, na qual um chefe carismtico, com poderes autoritrios, supostamente capaz de se situar acima dos conflitos de classe e de se apresentar como representante de toda a nao, inclusive frente ao Parlamento, obteria sua legitimao precisamente atravs do sufrgio universal, do voto popular 1 3 . Embora Weber a designasse como democracia cesarista, parece -me mais correto cham-l a de ditadura legitimada pelo sufrgio universal. No difcil perceber que este tipo ideal weberiano tornou- se a realidade efetiva de muitas das democracias ocidentais do sculo XX; basta lembrar, por exemplo, o emblemtico caso de Charles De Gaull e na Frana. Esta modalidade de bonapartismo que Losurdo chamou de bonapartismo soft , para distingui -lo do autoritarismo aberto um dos modos prticos pelos quais a burguesia tenta esvaziar o potencial revolucionrio do sufrgio universal.
Outro pensador liberal que buscou responder teoricamente a esse desafio da democracia foi o austro-americano Joseph A. Schumpeter, conhecido sobretudo pelos seus trabalhos econmicos. Schumpeter foi um dos primeiros pensadores liberai s a valorizar positivamente a expresso democracia, mas tentando p la por meio de uma sua definio minimalista a servio da conservao da ordem existente. Assim como Mosca, Schumpeter diz que no se formam maiorias, que a poltica feita por elit es; o povo, para ele, no consegue juntar razo e interesse, ou seja, incapaz de definir racionalmente o seu real interesse e, por isto, seu voto sempre manipulado pelas prprias elites 1 4 . Em outras palavras: o povo no sabe votar, no sabe escolher bem os seus representantes, no sabe traduzir os seus interesses em proposies racionais. Mas pouco importa se o voto popular racional ou no: para Scumpeter, se diferentes elites se submeterem a eleies peridicas e competitivas, estaremos numa democ racia. Essa reduo drstica do significado de democracia inicia -se com Schumpeter, mas prossegue com Giovanni Sartori, Robert Dahl, Norberto Bobbio e muitos outros pensadores liberais contemporneos, conservadores ou progressistas. Democracia passa a ser, assim, o cumprimento de alguns procedimentos formais as famosas regras do jogo , sendo o principal deles a existncia de eleies peridicas, nas quais o povo (de resto, segundo estes liberais, sem muita conscincia do que est fazendo) escolhe ent re elites. No casual que se tenha chegado mesmo a uma chamada teoria econmica da democracia, segundo a qual a disputa poltica segue as mesmas leis do mercado. Quando leio Schumpeter e seus epgonos, sempre me vem memria a ironia que Rousseau, em O Contrato social , publicado em 1762, dirigia contra os ingleses: os ingleses pensam que so livres, dizia ele, mas so livres apenas um dia a cada quatro ou cinco anos, ou seja, no dia em que votam para o Parlamento. E por que Rousseau diz isso? Porque ele tinha uma concepo de democracia radicalmente diversa daquela predominante no pensamento liberal contemporneo. Para o autor de O contrato social , democracia significa participao de todos na formao do poder. S legtima uma lei quando aprovada pela assemblia popular; o povo soberano no delega sua soberania a representantes, mas apenas comissiona, ou seja, nomeia funcionrios que executam sua vontade. O governo, segundo o pensador genebrino, no tem nenhuma soberania, mas formado precisamente por comissrios do povo, sendo este o verdadeiro e nico soberano. Jean -Jacques, portanto, no aceita o instituto da representao (caracteristicamente liberal), mas defende uma democracia direta, com plena participao popular. A definio schumpeteriana da democracia como escolha peridica de elites por meio do voto seria tratada
por Rousseau com a mesma ironia com que tratou o regime liberal ingls do seu tempo. Alm disso, essa nova verso minimalista ou procedimental da democracia despoja-a completamente de qualquer dimenso econmica e social. Estaramos diante de um regime democrtico sempre que certos procedimentos fossem observados: eleies peridicas disputadas por mais de uma elite, um parlamento funcionando (ainda que com escassos poderes d iante da ditadura cesarista do Executivo), etc. evidente que Rousseau tambm no aceitaria essa definio puramente formal. Para ele, a igualdade no se limita ao direito formal de participar do tal mercado poltico; a igualdade tem uma base material, sem a qual o cidado no poder participar igualitariamente da construo do que ele chama de vontade geral, motor da soberania popular 1 5 . Rousseau dizia que, numa sociedade legtima, ningum pode ser to pobre que seja obrigado a se vender: ele esta va assim claramente condenando o trabalho assalariado, ou seja, dizendo que a democracia que ele pregava era incompatvel com o principal instituto do modo de produo capitalista. No pensador genebrino, portanto, democracia incompatvel com capitalismo. verdade que Rousseau anticapitalista do ponto de vista de uma economia de artesos e de pequenos proprietrios rurais, isto , de um modo de produo mercantil simples, que o capitalismo de seu tempo estava inexoravelmente destruindo. Jean-Jacques no socialista; seu anticapitalismo romntico e passadista, mas certamente ele est nos indicando aqui alguma coisa de extrema atualidade, a saber, que no h democracia efetiva onde existe excessiva desigualdade material entre os cidados . Ademais, essa desigualdade material impede que haja at mesmo uma democracia poltica efetiva. Dou alguns exemplos. Todos sabemos que numa eleio, do ponto de vista formal, cada um de ns tem um voto e o dono de uma rede de televiso tambm tem um voto. Sabemos que o voto, por exemplo, de um Roberto Marinho, depositado na urna, vale tanto quanto o nosso. Mas ele tem o poder de conquistar milhes de votos atravs da manipulao feita pelos meios de comunicao que domina como proprietrio privado. Isso transforma a suposta igualdade formal entre ns apenas numa aparncia. Outro exemplo: todos temos formalmente o direito de ir e vir. Sem dvida, se tirarmos o passaporte na Polcia Federal e comprarmos uma passagem na Varig ou na Air France, poderemos ir a Paris e voltar. Todos temos este direito formal, mas sabemos muito bem que nem todos podem exerc -lo. H os que no podem ir nem do Mier Gvea porque no tm dinheiro para pagar o nibus. Com isso, estou querendo dizer que a democracia se a entendermos no sentido forte da palavra, isto , no sentido da igualdade material, da participao coletiva de todos na apropriao dos bens coletivamente criados, etc. tem tambm uma dimenso social e econmica. No h efetiva
igualdade poltica se no h igualdade substantiva, uma igualdade que passa necessariamente pela esfera econmica. E no preciso ser marxista ou socialista para dizer isso: Rousseau j o dizia em pleno sculo XVIII 1 6 . Portanto, a disputa ideolgica hodierna no tem tanto como objeto a oposio explcita entre democracia e antidemocracia, como ocorria at meados do sculo XX, mas sim a oposio entre diferentes conceitos de democracia . Com efeito, como j observei antes, nenhum ator poltico significativo se posiciona hoje abertamente, nem no Brasil nem no mundo salvo, talvez, em alguns regimes fundamentalistas islmicos , contra a democracia. Por conseguinte, quando nos dispomos hoje a examinar uma situao concreta para avali -la como democrtica ou no, temos de saber previamente qual conceito de democracia estamos utilizando. No podemos nos limitar, para fazer tal avaliao, apenas ao nvel dos procedimentos formais. Se nos mantivermos neste nvel, quase todos os Estados hoje existentes so Estados de direito e, portanto, segund o os procedimentalistas, democrticos. Stalin, por exemplo, fez promulgar na ex-Unio Sovitica, em 1934, uma Constituio formalmente democrtica (ele at dizia se tratar da Constituio mais democrtica do mundo!), que assegurava aos cidados sovitico s os direitos de opinio, de voto, de ir e vir, etc. e ns sabemos o que ocorria na realidade, ou seja, o terrorismo brutal de uma ditadura desptica. Portanto, no basta estatuir regras do jogo. Temos aqui, certamente, uma condio necessria, mas que est longe de ser suficiente para que exista efetivamente uma democracia. Para isso, preciso, por um lado, que tais regras sejam efetivamente democrticas, ou seja, que contemplem a presena no s de formas de representao, mas tambm de institutos de democracia direta, participativa; e, por outro, que existam tambm as condies jurdicas e econmico-sociais para que tais regras sejam efetivamente cumpridas. Temos ento que a definio minimalista de democracia uma mera ideologia, cujo objetivo principal esvaziar a democracia do carter subversivo e anticapitalista que, tanto terica como praticamente, caracterizou-a desde sua origem. Notas: 1 La Rochefoucauld, Mximas e reflexes , Rio de Janeiro, Imago, 1994, p. 48. 2 Tratei mais amplamente do pensamento poltico do filsofo genebrino em meu ensaio Crtica e utopia em Rousseau, em Lua Nova , So Paulo, Cedec, n 38, 1996, p. 5-30. H vrias edies brasileiras do Discurso sobre a desigualdade e de O contrato social , as principais obras polticas de Rousseau.
B. Constant, Da liberdade dos antigos comparada dos modernos, in Filosofia poltica , n 2, Porto Alegre, L&PM, 1985, p. 9 -25. 4 Para uma til antologia dos escritos do pensador francs, cf. A. de Tocqueville, Igualdade social e liberdade poltica , So Paulo, Nerman, 1988. 5 Um resumo das idias polticas do autor italiano est em G. Mosca, Histria das doutrinas polticas , Rio de Janeiro, Zahar, 1975, p. 306 -317. 6 I. Kant, Doutrina do direito , So Paulo, cone, 1993, p. 144. 7 Tratei mais amplamente desta conquista progressiva da cidadania em meu ensaio Notas sobre cidadania e modernidade, em C. N. Coutinho, Contra a corrente. Ensaios sobre democracia e socialismo , So Paulo, Cortez, 2000, p. 49-69. 8 G. Lukcs, Luomo e la democrazia , Roma, Lucarini, 1987, p. 25. 9 Cf. C. N. Coutinho, A democracia como valor universal e outros escritos [1979], Rio de Janeiro, Salamandra, 1984, p. 17 -48; e Id., Contra a corrente , So Paulo, Cortez, 2000, p. 125 -150. 10 K. Marx e F. Engels, Manifesto do Partido Comunista , in Vrios Autores, O Manifesto Comunista 150 anos depois, Rio de Janeiro-So Paulo, ContrapontoPerseu Abramo, 1998, p. 10.
3 11
precisamente o caso da Liga dos Comunistas, para a qual Marx e Engels escreveram o seu famoso Manifesto .
12
D. Losurdo, Democracia ou bonapartismo. Triunfo e decadncia do sufrgio universal , Rio de Janeiro-So Paulo, Editora UFRJ-Editora Unesp, 2004. 13 Cf. David Beetham, Max Weber y la teora poltica moderna , Madri, Centro de Estudios Constitucionales, 1979, p. 360-385.
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J. A. Schumpeter, Capitalismo, socialismo e democracia , Rio de Janeiro, Zahar, 1984, p. 313-375. 15 Recentemente, num programa de televiso, um importante cientista poltico brasileiro politicamente progressista, mas vinculado teoricamente s concepes procedimentais de democracia afirmou que nosso pas vive hoje num regime plenamente democrtico. E, diante da observao da entrevistadora de que continuavam a existir entre ns fortes desigualdades econm icas e sociais, o cientista no vacilou em sua resposta: Mas o problema da igualdade real nada tem a ver com a democracia! 16 No trato aqui da posio dos marxistas em face da democracia por j t -lo feito, ainda que muito sumariamente, em C. N. Coutin ho, Os marxistas e a questo democrtica, in Id., Marxismo e poltica , So Paulo, Cortez, 1996, p. 71-89. Quanto aos fundadores, recomendo com nfase o livro de Jacques
Texier, Revoluo e democracia em Marx e Engels , Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2005. * Este texto retoma, com alteraes de estilo, a primeira parte de Democracia na batalha das idias e nas lutas polticas do Brasil de hoje, publicado em Osmar Fvero e Giovanni Semeraro (orgs.), Democracia e construo do pblico no pensamento educacional brasileiro , Petrpolis, Vozes, 2002, p. 1139. Trata-se da transcrio da conferncia de abertura por mim pronunciada no seminrio homnimo realizado de 14 a 17 de maio de 2001, em Niteri, na Faculdade de Educao da Universidade Federal Fluminens e. Nesta nova forma, reapresentei o texto no colquio Justia, virtude e democracia, coordenado por Daniel Tourinho Peres e promovido pelo Mestrado de Filosofia da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 9 -11 de novembro de 2005. Carlos Nelson Coutinho nasceu na Bahia em 1943. professor titular da Escola de Servio Social da UFRJ, na qual ensina Teoria Poltica e Formao Social do Brasil. Dirige atualmente a Editora UFRJ. Publicou vrios livros, entre os quais Intervenes. O marxismo na batalha das idias (So Paulo: Cortez, 2006), Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento poltico (3. e. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007) e Marxismo e poltica. A dualidade de poderes e outros ensaios (3. e. So Paulo: Cortez, 2008). tambm editor das Obras de Antonio Gramsci (Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 10 vols., 1999-2005). Foi um dos fundadores do PSOL e do Diretrio Nacional do partido.