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442 Maria Paula Prates

GLOWCZEWSKI, Barbara. Devires totêmicos : cosmopolítica do sonho. Tradução:


Jamille Pinheiro e Abrahão de Oliveira Santos. São Paulo: n-1 edições, 2015.
352 p. Edição bilíngue.

Maria Paula Prates*


Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre – Brasil

Políticas em sonhares: devir, agir e transformação entre os warlpiri


Como acessar um modo de existência humana que se esvazia se escrito
unicamente sob a égide da “cultura”? Como transpor em palavras escritas um
mundo que escapa à lógica cartesiana ocidental? O desafio de enredar-se em
espaços e tempos colapsados pelos sonhares aborígenes é feito com muita
desenvoltura por Barbara Glowczewski, uma das poucas antropólogas france-
sas a trabalhar atualmente junto aos coletivos warlpiri da Austrália. O leitor é
facilmente envolvido pela trama de personagens e experiências movidas por
sonhos, devires e transformações, acompanhando a antropóloga em suas rela-
ções e seus trajetos etnográficos. Aliás, entre tantos pontos altos do livro, cabe
ressaltar a forma como a etnografia é realizada: totalmente imersa na vida
de seus interlocutores, Glowczewski não deixa de se situar, não se distancia
de modo a objetificar o que vê, o que analisa, mas tampouco se confunde
com seus interlocutores. Mantém a distância em seu limite de negatividade,
em regime de manutenção daquilo que produz sentido. Ao lermos sua ficção
controlada, para pensarmos com Marilyn Strathern, percebemos a produção
da alteridade pendendo para o lado da antropóloga, uma vez que a ontologia
warlpiri – como bem afirma Glowczewski na página 149 – parece não com-
portar tal noção, nem mesmo no que concerne às diferenças de gênero.
Ademais de o livro não estar estruturado de forma a apresentar uma con-
tinuidade argumentativa, tendo em vista que se trata de uma compilação de

*
Contato: [email protected]

Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 23, n. 47, p. 442-445, jan./abr. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832017000100020
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textos escritos ao longo dos últimos 32 anos, pode-se pensar que o eixo que
conecta aborígenes-antropóloga-escrita e leitores é o da fundição entre nomes
e lugares, de homens e mulheres que têm seus devires e agires traçados em
palavras. Pode-se também intentar um resumo do que se passa em Devires
totêmicos sublinhando que o que por “nós” classificar-se-ia como narrativas
míticas, discursos nativos, tempo passado-presente-futuro, experiências pes-
soais e normas culturais é porta de entrada para sentirmo-nos entre os warlpiri,
já que imbricadas e alinhavadas tais categorias na escrita de Glowczewski.
Escrita esta somente possível de riqueza fecunda se cuidadosa com aquilo que
dificilmente cabe em formato grafado.
No capítulo intitulado “Xamãs”, por exemplo, vemos a antropóloga ser
amparada por seus amigos warlpiri quando afligida por uma dor lancinante,
como ela mesma descreve, nos rins; sobretudo por um ngangkari, um curan-
deiro tradicional. A drenagem do sangue, intervenção para restabelecer o bem-
-estar da pessoa, é levada a cabo: o curandeiro cospe o sangue de má qualidade
que estava alojado nas costas da antropóloga e conclui que uma pedra a havia
acertado, ensejando uma reflexão acerca do caminho que havia sido percor-
rido em sua chegada à Lajamanu (localidade onde viveu entre os warlpiri).
Em várias passagens do livro nota-se a possiblidade de aproximações
entre a etnografia que realiza junto aos coletivos australianos com estudos et-
nográficos que tenham como foco cosmologias ameríndias. Práticas xamâni-
cas de extração de objetos de corpos acometidos por doenças, provocadas por
ações de subjetividades não humanas, mostram que essas áreas etnográficas
possuem confluências significativas no tocante aos modos de socialidades em-
preendidas. Isso será registrado por Glowczewski no último capítulo, quando
em diálogo com o antropólogo Philippe Descola acerca das quatro modali-
dades ontológicas propostas por ele. Mas até chegarmos em “O paradigma
dos aborígenes australianos”, imagino que todos aqueles pesquisadores que
tenham tido a oportunidade de viver entre grupos humanos não modernos te-
nham a impressão de se ver diante de um modo de existência unicamente idios-
sincrático frente à cosmologia ocidental. Como se vê acontecer em um sistema
de pensamento como o ocidental moderno, onde mundos invisíveis são desa-
creditados e a “razão” devém baluarte de superioridade, a exceção não está na
cultura dos Outros. Sublinho também que, já nas primeiras páginas do livro,
Glowczewski dedica um tópico às “Cosmopolíticas ontológicas australianas e
afro-brasileiras”, tecendo uma outra rede de aproximações cosmológicas.

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São ao todo 11 textos, sendo um deles a transcrição de uma conversa en-


tre Barbara Glowczewski e Félix Guattari sobre sonho, sobre o que denomina
“método do sonhar” entre coletivos australianos. A influência do psicanalista
no trabalho de Glowczewski é evidente a partir do que se lê em “Espaços
dos sonhares warlpiri”, texto no qual território, itinerário e sonho formatam
relações de transformação entre tempo mítico, heróis viajantes e totem. O pri-
meiro e o último capítulo fazem bem o papel de introdução e de fechamento.
Textos enxutos, ricos em categorias nativas, ganham força em “Agir e
Devir”. Jukurrpa, entendido como “uma memória em devir”, busca dar conta
das relações entre tempos a partir de um modo de pensá-las como processos
de retroalimentação entre passado, presente, futuro e matéria. Outro conceito
warlpiri importante é o de maralypi, que é traduzido como uma expressão
concentrada de kuruwarri. Nas palavras de Glowczewski: “Maralypi, ainda
mais do que uma expressão concentrada de kuruwarri, é o motor mesmo do
desdobramento de todas as formas que os kuruwarri podem assumir (totens,
pessoas, lugares). Nesse sentido, maralypi é o segredo da vida, um assunto
restrito aos homens” (p. 122). Nesse capítulo vemos as diferenças entre ho-
mens e mulheres warlpiri não serem essencializadas em gêneros masculino e
feminino, respectivamente. Trata-se de “duas faces” de uma mesma força, que
tanto estão presentes em humanos quanto em animais e vegetais. A oposição,
aparentemente, se dá em categorias como abaixo/acima e é evocada em ter-
mos rituais ao longo da vida por homens e mulheres. Em “Agir e Devir” temos
um capítulo que condensa o que a antropóloga chama de sistemas reticulares
de pensamento warlpiri, dando passagem para o que o último texto do livro
discutirá em termos de teoria antropológica.
E é na última frase de “Agir e Devir” que vemos Glowczewski delinear
seu objetivo. Propõe-se a “encontrar uma figura topológica cujas proprieda-
des permitam buscar uma lógica comum subjacente aos diferentes aspectos
das sociedades australianas” (p. 133). Linhas de uma errância estruturalista?
O que se pode aferir é que o livro Devires totêmicos não cabe em escolas an-
tropológicas clássicas, mas delineia trocas. Diverge com elegância e firmeza
de Philippe Descola ao afirmar que discorda do modelo de ontologia totêmico
advogado por este aos aborígenes. Segundo Descola, imbuído da definição de
totemismo lévi-straussiana, essa seria uma ontologia caracterizada pela conti-
nuidade entre natureza e cultura: “as semelhanças interiores correspondem à
identidade das almas-essências e à conformidade dos membros de uma classe

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com um tipo, enquanto que as semelhanças físicas se fundam na identidade


da matéria e do comportamento dos humanos e das espécies totêmicas que
lhe dão nome” (p. 144). Glowczewski afirma, amparada em sua etnografia,
ter observado que práticas individuais e coletivas de mitos e ritos aborígenes
prolongam-se a partir das polaridades propostas por Descola, porém não lhe
parece que isso aconteça “meramente pelas semelhanças físicas e interiores”
(p. 145). Existiria uma “fronteira turva” entre totemismo e naturalismo, tote-
mismo e animismo, totemismo e analogismo, segundo a antropóloga, vista a
partir de uma perspectiva aborígene. O sistema de pensamento dos aborígenes
da Austrália foi estudado por ela tanto em termos de estruturas quanto em
termos de discursos sobre eles próprios (p. 147), abordagem que defende dar
conta de uma cosmologia onde não há centro explicativo que se propague. São
muitos centros reverberados a partir de lugares-sujeitos.
Os sonhares são totens, diz Glowczewski. E a leitura de Devires totêmi-
cos convida a adentrar em um sistema conexionista, no qual traços visuais são
interpretados por saberes e agires warlpiri. Desdobramentos epistemológicos
podem ser sentidos em uma antropologia contemporânea reversa: quem sabe a
oxigenação da criatividade permita destituirmo-nos cada vez mais de anseios
purificadores, calcados em longos séculos de investimento na separação entre
natureza e cultura.

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