Por Uma Clinica Do Social Passos, E.

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Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Programa de Pós-graduação em Psicologia


Faculdade de Psicologia

CURSO DE EXTENSÃO
Ministrante: Dr. Eduardo Passos (UFF)

_________________________________

POR UMA CLÍNICA DO SOCIAL:


RELAÇÕES ENTRE A ESFERA
PÚBLICA E A ESFERA PRIVADA NA
PSICOLOGIA
_________________________________

Realização do Grupo de Pesquisa em Estudos Culturais,


Identidades/Diferenças e Teorias Contemporâneas
21 e 22 de março de 2002.
Coordenação: Professora Drª. Neuza Guareschi
Apresentação

Este texto é fruto de um Curso de Extensão realizado na Pontifícia Universidade


Católica do Rio Grande do Sul nos dias 21 e 22 de março de 2002 ministrado pelo Dr.
Eduardo Passos, professor da Universidade Federal Fluminense do Rio de Janeiro. A
promoção foi da Faculdade de Psicologia - PUCRS e do Departamento de Medicina Social
- PUCRS, sob a coordenação e supervisão da Professora Dr.ª Neuza Guareschi.
Entendemos que os temas abordados pelo Dr. Eduardo Passos são altamente
relevantes para que possamos avançar nas discussões sobre determinadas questões
epistemológicas e teóricas que influenciam diretamente as ações de profissionais da saúde.
Cada vez mais é necessário refletir sobre os principais pontos de interlocução entre clínica e
política, justificando-se pois, um curso de extensão que amplie as relações da Psicologia
Social e saúde comunitária e das novas alianças nos campos da ciência com filosofia, para
que possamos melhor compreender e situar o contemporâneo, sobretudo a partir das
práticas psicológicas que nele se constróem e se realizam. Isto nos força a repensar certos
posicionamentos perante a clínica e abrir espaço para uma problematização dos conceitos e
valores que compunham, até então, o conjunto de regras que determinava e regia as práticas
neste território.
O fato de vivermos em um tempo em que novos usos e novas normas imprimem
ritmos específicos - e que, não obstante, geram sofrimento e miséria - para a humanidade,
como por exemplo, o dito fenômeno da globalização, faz com que sejamos convocados a
discuti-los e situá-los a partir de uma análise que não dispensa a filosofia, a política, a
economia, a autopoiése e, obviamente, a Psicologia enquanto intercessores deste encontro.
É isto que encontraremos no texto a seguir: um debate profundo e altamente crítico sobre
estes termos centrais que permeiam e determinam cursos de existência e práticas
relacionadas com a vida. Boa leitura.

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MÓDULO I: O DESAFIO DE UMA “NOVA ALIANÇA”

O legado positivista e a aposta metodológica naturalista para o estudo do homem.


O artificialismo do modelo computacional e a “quebra da aliança”.
A “nova aliança” no limite entre a ciência e a filosofia.
A flexibilização dos sistemas disciplinares: multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e a aposta
transdisciplinar.

MÓDULO II: O DISPOSITIVO CLÍNICO-POLÍTICO

Os campos da clínica e da política como domínio disciplinares.


A separação entre clínica e política e as oposições entre o público e o privado, indivíduo e sociedade e
interior e exterior.
Um novo problema: a produção da subjetividade nas modulações do capitalismo.

MÓDULO III : AS REDES NO CONTEMPORÂNEO

A noção de rede segundo o modelo da biologia da autopoiése.


As redes quentes e as redes frias.
A noção de biopoder e as redes frias.

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MÓDULO I
O DESAFIO DE UMA “NOVA ALIANÇA”

(...) os domínios distintos e separados, estes domínios estanques que são os domínios das
disciplinas. Eu venho aqui, na verdade, representando muitas idéias que não são idéias que se possa dizer
que são minhas. São idéias nossas... é um coletivo que está pensando e esse coletivo, do ponto de vista
institucional, está relacionado a um programa de Pós-graduação da Universidade Federal Fluminense e
também à pratica de militância no campo da violação dos direitos humanos, mais especificamente, uma
prática de militância no grupo "Tortura Nunca Mais".
Então eu partilhei destas pesquisas que fazemos na Universidade e dessas experimentações clínico-
políticas que fazemos no campo da violação dos direitos humanos, sobretudo a violação realizada por
agentes do Estado, quando o Estado, ele mesmo, é responsável pela violação dos direitos humanos. É
dessa experimentação que vamos propor algumas idéias, algumas discussões nesses nossos três encontros.
Como o próprio título do curso indica, vamos estar fazendo uma discussão que não se pode, senão com
muita dificuldade, enquadrar dentro de um domínio de saber específico. Se eu estou falando de
dispositivo clínico-político, se eu estou falando de clínica, de capitalismo, na verdade eu estou aqui, já
problematizando o que seria esse limite tão preciso e tão endurecido, tão estanque, do que
consideraríamos o campo da clínica. E é exatamente na problematização dessa especificidade do campo
da clínica que vamos tomar uma questão de início.
Vamos começar a discutir o que seria este campo e em que medida acreditamos não ser legítimo
tomá-lo como um campo que se distingue e se separa de outros campos. E de tal forma que, experimentar
esse dispositivo clínico, se lançar nessa aventura, que é a aventura da clínica, necessariamente nos obriga
a uma experimentação marcada por um forte grau de transversalidade... isto é, um forte grau de
hibridização, onde estamos nos misturando com outras coisas, por princípio ditas de natureza não-clínica.
Então, em última instância o que vamos estar problematizando é o relacionamento da clínica com a não-
clínica. Ou por outra, de que forma a experimentação clínica nos obriga a um esforço considerável de
extração do não-clínico do clínico? É poder pensar na clínica, essa dimensão que está fora dela, ver uma
dimensão fora-incluída na clínica; é uma dimensão fora-incluída da clínica que nos interessa então estar
discutindo.
Bom, vamos considerar que isso se definiria como um desafio, um dos desafios do contemporâneo,

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contemporâneo este que se caracteriza por desafios. Falar do contemporâneo... não dá para falar do
contemporâneo. Eu acredito que não tem como pensar o contemporâneo sem que possamos pôr em
análise o que eu chamo de modulações do capitalismo, justamente para pensar o contemporâneo e um
certo destino que a axiomática capitalista experimenta na virada do milênio. Na passagem para o século
XXI, é essa axiomática capitalista que nós vamos ter que discutir: como ela funciona, o que a caracteriza?
Isto tudo, para que possamos pensar esse contemporâneo, para que nesse contemporâneo então, venha a
se definir a nossa intervenção que eu vou dizer assim: necessariamente, uma intervenção híbrida de
clínica e de política.
Essas modulações do capitalismo, vamos logo dizer, que devem ser entendidas como o
funcionamento do capitalismo mundial integrado - CMI. Vamos estar falando de um capital mundial
integrado, que é a versão atual de um capitalismo que também dito neoliberal, também dito globalizado,
que tenha chegado a uma versão paroxística, esta versão última, esta versão que se quer definitiva, de tal
modo que muitos autores crédulos na efetivação desse projeto de capitalismo neoliberal, chegam a
afirmar que acabou a história e, mais do que isso, que acabou o político. É um exercício de resistência a
essa crença ou pressuposição do fim da história e do fim do político que a gente vai tentar armar aqui uma
máquina de guerra, uma máquina de resistência.
Bom, antes de chegarmos a este ponto - que é o ponto central do nosso curso - eu queria fazer
alguns esclarecimentos que chamarei de natureza metodológica e epistemológica. Vamos estar
empreendendo uma reflexão que, a princípio, não segue as regras e os cânones de uma ciência tradicional.
Mas de que ciência então, nós estaremos falando e de que maneira nós vamos estar falando dessa ciência?
Em última instância, designaríamos assim: “ciências da subjetividade” ou, uma ciência que a partir do
séc. XIX se define como a ciência do próprio sujeito que conhece, uma ciência do homem, ciências
humanas, ciências sociais ou, como vou preferir chamar, ciências da subjetividade. Eu queria partir para
uma reflexão acerca do advento desse projeto, mostrar como ele se constitui lá na segunda metade do séc.
XIX, como é que aparece esse projeto de uma ciência da subjetividade e de que maneira isto exige de nós
um esforço de invenção de outras metodologias, de outra abordagem epistemológica, diferente daquela
que se impunha como legítima, importada das ciências físico-naturais. Então, inicialmente iremos fazer
uma discussão de natureza metodológica e epistemológica.
Bom, para entendermos o que se dá na segunda metade do séc. XIX, vamos pensá-lo em duas
metades e desta forma, começar a discutir a primeira encontrando condições de possibilidade para o
advento da segunda, dessas ciências da subjetividade ou ciências humanas e sociais: psicologia,

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antropologia, pedagogia, sociologia e o que a gente vai entender como a clínica, essa clínica que hoje,
embora ganhe muitas designações, encontra aqui na segunda metade do séc. XIX a sua matriz.
O que fazemos hoje em termos de clínica, qualquer que seja a escola, a vertente, ela tem na segunda
metade do séc. XIX uma matriz de base. Vamos entender de que maneira esta matriz se constitui, que tipo
de dispersão ela produz e, para isso, consideraremos o advento destas ciências na segunda metade do séc.
XIX como uma resposta a uma crise que se produz na primeira metade deste mesmo século.
Na primeira metade do séc. XIX o que é que se tem? E vamos estar falando da Europa, sobretudo
porque é lá que estas ciências do homem aparecem: na França, na Alemanha, na Áustria; é lá que estas
primeiras teorias acerca da subjetividade são forjadas e é na Europa, na segunda metade do séc. XIX, que
vamos detectar, verificar, a experiência social da crise, que é uma crise que se vive na primeira metade
daquele século e num estado de tensão social. Um desses cientistas que surgem neste período é Emile
Durkheim, um importante representante dessas ciências do homem. Pai da sociologia, chamará de
anomia... vive-se então na primeira metade do séc. XIX uma situação de anomia, (nomos = regras; lei); (a
= prefixo de negação), ou seja, uma experimentação social onde parece que se suspenderam as regras,
traduzindo: é bagunça. E que confusão é esta? Que bagunça é esta que se estabelece na primeira metade
do séc. XIX, senão uma crise, uma crise do capitalismo, senão uma experimentação social do insucesso,
do fracasso de uma promessa de igualdade social? É naquela época que vamos detectar as primeiras
manifestações de uma crise do liberalismo, desse capitalismo que surge na sua promessa de superação das
desigualdades, de uma sociedade tradicional, de uma sociedade antiga, marcada por um caráter muito
sedentário, sedimentado, onde você nascia conde e morria conde; você nascia servo da gleba, você se
casava com servo da gleba, seus filhos seriam servos da gleba e você nunca vai poderia mudar. Esse
caráter sedimentar, cristalizado e paralisado da sociedade tradicional, da sociedade feudal, foi
desestabilizado por uma promessa dita liberal. E o liberal tem a ver com isso, com uma certa liberdade.
Liberdade de quê? Em última instância, liberdade de mobilização e de movimentação social. A idéia de
que você pode agora transitar nos socius: você nasceu aqui e pode morrer noutro lugar. Essa é a idéia de
transitação livre pelos socius está sedimentada numa outra idéia, outro princípio, que é um princípio de
liberação de todas as formas de circulação. Esta é a maneira como, lá na Revolução Francesa, eu vou
enunciar esse projeto liberal. Traduzindo: seria o deixa rolar... deixa rolar que no fluxo do capital as
coisas vão se organizando; elas vão mais do que se organizando, elas vão se igualando, é uma promessa
de igualdade, de fraternidade, é essa a promessa.
Quando a gente chega na segunda metade do séc. XIX é assim que as coisas estavam: a jornada de

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trabalho era de 15 à 18 horas, uma situação de miséria social enorme e desigualdades produzidas pela
sociedade industrial, desigualdades dramáticas. Em função disso que se cria a suspeita de que aquele
negócio não estava funcionando direito e que aquela promessa não se efetivava. Essa descrença da
promessa, essa colocação em dúvida da promessa liberal gera, na primeira metade daquele século, uma
situação de anomia, ou seja, na hora que você desacredita, na hora que você suspeita que as regras do
liberalismo não são regras confiáveis, obviamente que toda possibilidade de organização social fica
comprometida e toda a sociedade do Ocidente se organiza a partir daquelas regras, pelo menos a
sociedade européia. Então é bagunça mesmo, cria-se uma confusão, ninguém consegue respeitar mais
ninguém, começam a aparecer as primeiras sublevações do operariado, as primeiras experiências de
organizações dos trabalhadores, uma sabotagem dos processos de produção: “eu não vou trabalhar, eu não
estou nessa, não vou ser explorado... eu quero ganhar mais”... começa a aparecer este tipo de coisa. Esse
estado de tensão social gera uma angústia na inteligência européia daquele momento. Essa angústia
provoca duas soluções:
a) quando se está angustiado, corremos atrás para baixar a angústia, certo? E a gente identifica, a
partir deste momento, duas maneiras de baixar a angústia: uma tentativa reformista e uma tentativa
revolucionária. A tentativa revolucionária faz uma afirmação categórica, definitiva: a canoa está furada,
não tem como concertar a canoa, você pula fora, pula fora, sai nadando... inventa outra coisa, essa canoa
vai afundar e não tem saída. Karl Marx representa este pensamento crítico, este criticismo na primeira
metade do séc. XIX, que considera que aquele fracasso do projeto liberal não é um fracasso só de fato, é
um fracasso de direito e ele faz toda uma análise do projeto liberal e do capitalismo e diz: isso aqui não
tem saída, não tem jeito;
b) a outra solução é reformista. Ela vai equacionar de outra maneira o problema: realmente está
difícil, é um estado de confusão, este estado de confusão tem que ser sanado, mas a maneira de saná-lo é
reformando a canoa e reformando a canoa, eu, em última instância, estou legitimando o projeto liberal.
Que raciocínio é esse? Nesse momento, temos que dar mais ênfase para este raciocínio pois é o que,
lamentavelmente, estará na base do advento das Ciências Humanas, na segunda metade do séc. XIX. Este
reformista chama-se Auguste Comte. Auguste Comte é quem vai gerar uma doutrina chamada
Positivismo. Vamos entender o que é o reformismo de Comte e como ele irá montar um esquema
explicativo para aquele estado de anomia da segunda metade do séc. XIX. E é assim que ele explica: vai
dizer que esta confusão é o resultado de uma desavença das ações e que é causada por uma desavença das
idéias. Ele vai manter a tese que ficou conhecida como a tese dos três estados. Como seria esta teoria dos

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três estados? Ele vai dizer: a história das civilizações e a história do pensamento passam, ambas,
paralelamente por três estados que definem uma evolução da civilização e do pensamento. E quais são
estes três estados? O Teológico, Metafísico, Positivo. São eles que passam tanto a civilização quanto o
pensamento.
No estado Teológico temos uma organização social teocrática onde o poder social está na mão
daquele que detêm o poder religioso e o modo de explicar o conhecimento. Eu conheço buscando uma
causa inobservável para esse fenômeno e esta causa inobservável do fenômeno é a alma deste mesmo
fenômeno. Por exemplo: caiu um raio na casa de José. O raio caiu na casa de José porque ele não fez as
oferendas para Zeus e Zeus não titubeia e condena José do modo que ele sabe condenar, ou seja, com o
raio. Então, Zeus manda um raio na casa de José, quer dizer, aquele raio queria atingir o José. Aquele raio
é dotado de volição, ele quer, ele quer acertar, ele tem vontade de acertar, é um fenômeno animista. Eu
doto um fenômeno que eu quero explicar de uma alma, tanto que ele veio acertar o José. Comte, então,
vai dizer que a primeira explicação é animista. Na pressuposição de que há uma alma não só do objeto
que conhece, mas como no objeto a ser conhecido.
Depois ele vai dizer que o pensamento e a civilização evoluem quando vão para um outro tipo de
organização, aquela que aparece na polis grega, a democracia grega. Agora, pensar já não é tão
simplesmente projetar o sujeito sobre o objeto como era no pensamento teológico, animista. Eu já vou ter
um pouco mais de prudência nessa projeção, nessa mistura de sujeito com objeto. Eu vou dizer então: a
planta cresce porque tem uma alma vegetativa, que é diferente da alma sensível do animal, que por sua
vez é diferente da alma racional do homem. Eu já distingo a alma da planta da alma do animal, da alma da
humanidade, do homem. No entanto, o que explica o fenômeno é a pressuposição de uma alma... eu ainda
defini o conhecimento como busca de uma causa inobservável. Conhecer o fenômeno é encontrar esta
causa anímica, essa alma, essa alma do fenômeno, essa alma do objeto. Conhecer é ainda buscar uma
causa inobservável.
Finalmente Comte vai dizer que o pensamento chega na sua versão mais avançada, sofisticada,
quando conhecer não é mais buscar causas inobserváveis, conhecer não é mais especular, pois toda busca
de uma causa inobservável é uma especulação. Então, conhecer não é mais especular, conhecer não é
mais buscar o inobservável mas, descrever a regularidade do fenômeno, ou seja, o conhecimento tem que
se restringir a descrição da observação: eu descrevo a regularidade do fenômeno por mim detectada
enunciado-o na forma de uma lei. Então faço a seguinte verificação: pego a planta e coloco na luz e ela
cresce; e vai encontrar uma regularidade nisso que o sujeito observa, observa com controle, com medida e

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essa observação controlada garante a descrição de regularidades do fenômeno. Esse fenômeno regular
descrito na forma de lei é a versão mais avançada, mais sofisticada do conhecimento. Se conhecimento é
isso, nós estamos dizendo então que há um lugar privilegiado onde o conhecimento é produzido; há um
lugar onde essa maneira de conhecer, calcada no controle da observação, calcada na mensuração, calcada
na descrição de regularidades, é feita, mas, de que lugar? É realizada nos laboratórios das ciências físico-
naturais, nos laboratórios da física, química, da fisiologia. E lá é que esse ideal de conhecimento se
realiza, é lá que ele se concretiza. O conhecimento se dá ali como conhecimento positivo.
Então o que Comte está pensando? Vamos recapitular: ele está angustiado diante de uma situação
de anomia, de confusão social, ele está supondo que essa confusão social é remediável, que há como
reformar a sociedade. Está supondo que a sociedade está do jeito que está... e na época se dizia que o
homem era o lobo do homem porque havia uma desavença das idéias. Então qual o pressuposto dele? É
que a maneira de chegar a confraternização, a maneira de chegar a uma fraternidade da humanidade seria
você ter idéias, seria você ter expressões do pensamento positivo, porque o pensamento positivo, que é a
forma mais evoluída do pensar, seria dotado de uma universalidade. Esse é o pressuposto de Comte.
Aquela forma de conhecer produz consenso, ou seja, uma descrição positiva tem uma força de
argumentação capaz de virar consenso, tendência a universalização. Bom, então é só chegar a esse
indivíduo, é só eu chegar a essas idéias e elas criarão um consenso entre os homens. A criação de um
consenso entre os homens acabaria com essa tensão social. Esse é o projeto reformista dele e toda
discussão, que é um discurso do campo da história das idéias, toda uma discussão que é do campo da
epistemologia, descamba para a religião, e ele funda uma igreja: a igreja positiva. O Brasil republicano foi
totalmente marcado, influenciado pelo pensamento Francês. O séc. XIX no Brasil foi fomentado por uma
inteligência que foi formada na França daquele século, pelo positivismo, pois o que vigorava era o
pensamento positivo. Qual o lema da nossa bandeira: ordem e progresso. Esse é o lema do Comte, é um
lema comteano, nossa cultura é muito marcada pelo positivismo, como de resto, todo pensamento europeu
é muito marcado pelo positivismo.
O que eu estou querendo discutir com vocês é que o advento dessas ciências da subjetividade se faz
sob a égide do positivismo. Então, no séc. XIX, o que a gente tem? Temos uma experiência de crise que
gera duas tentativas de solução: uma solução revolucionária e uma revolução reformista. A solução
revolucionária é alterar o destino acadêmico, o destino político, ou seja, a obra de Karl Marx não gerou
uma escola de pensamento que estará hegemonicamente presente nas universidades; ela vai gerar
experimentações, sobre tudo as experimentações na União Soviética. Vai ter então, uma outra destinação;

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aquele criticismo dele levou a uma inseparabilidade entre teoria e prática. Esta é a primeira tese de
Feuerbach: “já interpretamos muito a realidade, temos agora que agir sobre ela”. E a galera pegou isso aí
e foi à luta. Ninguém ficou na Universidade pensando...
A outra maneira de responder aquela crise vai ter uma natureza tal que permite que ela se infiltre e
se hegemonize na universidade. Ela entra ali pelas suas próprias características, ela vai entrar e tentar
encontrar um solo fecundo para se implantar, se instalar. E se instala com um ideal de inteligibilidade, e
que ideal de inteligibilidade é esse? É um ideal de inteligibilidade cientificista. O pensamento positivo,
doravante, é entendido como esse conhecimento que se produz pelo controle da observação. E quem é
que faz isso bem? Quem faz isso bem são os cientistas das ciências físico-naturais. Então, eu aqui, crio
um ideal de inteligibilidade: esse ideal de inteligibilidade é um cientificismo que é, na verdade, uma
aposta no método das ciências físico-naturais. Junto com ele existe todo um horror da especulação, tem
todo um horror a uma outra dimensão do pensamento que tem que ser rechaçada, que é essa dimensão que
ele identificará com as fases primitivas do pensamento, onde este era mais especulativo, mais criativo e
não estava tão fechado nos protocolos da observação tal como os realizados nos laboratórios das ciências
físico-naturais. Assim, eu tenho, por um lado, um recalque disso que eu chamaria de horror à especulação.
Tem uma pesquisadora francesa muito interessante, Sara Kofman, que escreveu um livro sobre
Comte em que ela discute o devir mulher de Auguste Comte. Ela tem uma tese muito em que mostra que
o Comte tem uma história bastante interessante e possui uma relação muito louca com mulher... ele faz
uma viuvez, uma viuvez em cima de uma paixão platônica que ele tem. E a moça, como tantas do séc.
XIX que morriam muito tísicas, não pegavam sol... essa moça morre e ele faz uma viuvez e, junto com a
viuvez, segundo a Sara Kofman, cria um horror ao feminino. Ele identifica no pensamento uma dimensão
feminina do pensar, é a dimensão mais especulativa, menos metodologicamente controlada.

Intervenção: Mas a sua religião, ele valoriza muito a mulher...

EDUARDO: Ele idealiza e toda forma de idealização é um horror. Esta autora mostra que isso aqui
talvez tenha sido um horror que ele experimenta num devir mulher dele, numa certa possibilidade que ele
teve de experimentar o feminino dele e que não deu conta, não segurou. E na hora que ele não segura,
constrói toda uma epistemologia, toda uma concepção do que seja o conhecimento onde aquilo que é da
ordem do fecundo, da ordem do especulativo, da ordem do criativo, tem que ser rechaçado, e ele vai
dizer: primitivo. Na velha técnica lá do séc. XIX do etnocentrismo, isso aqui é primitivo: é diferente de

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mim, é primitivo. E ele é homem e faz o pensamento masculino, o árido, entendido como masculino, não
criativo, o não fecundo, aquilo que não germina... tem toda dimensão germinativa do pensamento que
doravante será tomado como perigo. Um perigo que ele vivia na angústia de experimentar aquele estado
de anomia que, segundo ele, era resultado da coexistência, porque na teoria dos três estados era esse o
pressuposto. Lamentavelmente, pensava o Comte, que a civilização e o pensamento não evoluem em
bloco, que tudo seria muito fácil se essa mudança se fizesse em bloco, se em bloco se passasse do
animismo para o metafísico, e do metafísico para o positivo... ele vai dizer que os tempos são diferentes.
Ela passa mas eu não passo; ela já está no positivo e eu ainda estou no metafísico, e ele ainda está no
teológico.... ele fala que é exatamente a coexistência no séc. XIX de representantes do teológico, do
metafísico e do positivo que criam esta bagunça. O que ele queria? Vamos homogeneizar, vamos igualar,
vamos equalizar na velha estratégia capitalista. Sobre isto falaremos daqui a pouco.
Mais adiante vamos entender justamente porque ele foi um defensor do princípio do liberalismo,
um defensor do capitalismo. E aqui essa defesa do capitalismo, essa defesa do liberalismo se junta com
um certo horror que ele experiência e que tem do devir mulher, essa experiência que ele tem com o
feminino. Essa é a tese da Sara Kofman: “Aberrações: o devir mulher de Auguste Comte”. Mas o fato é
que essa doutrina forjada assim com todos esses problemas psicossociais nela embutidos, se instala na
academia, se instala na universidade de tal forma a ser, na segunda metade do séc. XIX, o princípio
epistemológico, a doutrina epistemológica, o ideal de conhecimento que vai nortear essas ciências
novatas, essas ciências neológicas que vão aparecer nesse momento. Elas necessariamente nascem sob a
égide do positivismo. E que ciências são essas? São as ciências que nós chamamos de ciências da
subjetividade e é exatamente por isso que haverá um tensionamento neste campo, produzindo nelas uma
marca muito interessante, que é o que a gente vai discutir agora.
Então vamos passar agora para a segunda metade do séc. XIX e vamos entender que efeitos advêm
disso aqui. Sobre esta época vamos pegar um caso exemplar, e a gente poderia fazer isso com outras
ciências, vamos tomar este em específico porque acredito que está mais próximo da maioria das pessoas
aqui. Estas ciências que vamos designar genericamente pelo radical psi - e não vamos muito além do
radical psi porque nenhuma palavra com este prefixo “psicologia, psicanálise ou psiquiatria” poderia dar
conta de toda uma dispersão que nesse momento se instaura. A única maneira de falar delas é usar o
radical psi e, por psi entendemos um monte de coisas que advém dali. Então estamos na segunda metade
do séc. XIX e o advento dessas ciências psi, dessas ciências da subjetividade, se fará através do
intercruzamento de duas linhas genealógicas. Uma delas já podemos supor qual seja... é a que se origina

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exatamente do positivismo, e essa linha, na verdade, se dá na forma de uma aposta metodológica, ou seja,
no advento dessas ciências da subjetividade eu tenho que importar um método de conhecimento, um
método de conhecer das ciências físico-naturais em função daquele ideal de inteligibilidade que havia
sido forjado e imposto na primeira metade do séc. XIX. Então temos aqui uma linha genealógica que é a
importação do método das ciências físico-naturais para tratar de um objeto que advém de um outro lugar e
que não o laboratório das ciências físico-naturais, mas a aplicação daquele método sobre um outro objeto.
E da onde vem o outro objeto? O outro objeto, lamentavelmente - e é esse todo o embaraço que essas
ciências do homem causarão ao séc. XIX - advém da história da filosofia moderna. O que interessa da
história da filosofia moderna? O que interessa é a problematização que a gente verifica ali, a partir do
século XVI.

- Troca de fita -

(...) que é um novo personagem teórico, dantes não imaginado, e esse personagem teórico é o sujeito. A
própria idéia de sujeito que é forjada aqui nessas especulações que resultam numa nova maneira de pensar
filosoficamente, que nós chamaremos aqui de moderna, uma maneira moderna de pensar. Para
entendermos isso aqui, que é uma linha genealógica, nós já entendemos essa, certo? Vamos tentar
entender essa aqui agora e, para tal, vamos ter que fazer um processo muito maior, pois teremos que
pensar no advento da modernidade. O advento da modernidade é muito aquém do séc. XIX; nós temos
que ir lá para o séc. XVII. Será aí que uma problemática será forjada, que o personagem teórico vai ser
inventado. Temos então, o alvorecer, a emergência do que nós vamos chamar de modernidade, a episteme
moderna. O que caracteriza essa episteme moderna? É a sua dimensão critica: modernidade significa
criticismo e essa é uma dimensão crítica na dupla concepção da palavra pois, é critica porque é uma
experiência de submissão a crítica do já estabelecido, de toda uma cosmovisão antiga e também porque
essa crítica, essa desestabilização do instituído, dessa cosmovisão estabelecida produz uma experiência de
crise. Desta forma, ela torna-se crítica por essa dupla acepção, eu/argüição, eu arguo o já estabelecido e
tenho uma experiência de desestabilização, uma experiência de crise. Essa dimensão crítica que vou
chamar de criticismo é a marca característica da modernidade. Que criticismo é esse? Que crise e essa?
Bom, essa crise... vamos dizer que e todo o esfacelamento, toda a desmontagem de uma
cosmovisão... e uma cosmovisão que se estabelecia há séculos e que veio desde o séc. III A.C. lá na
fundação do racionalismo do pensamento ocidental, na metafísica grega, Sócrates, Platão, Aristóteles,

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Parmênides, até o final da idade média, ou seja, são muitos séculos de manutenção de se conhecer, de
uma certa maneira de organizar o mundo. Essa maneira de conhecer o mundo, vamos chamar de realismo.
Qual o pressuposto do realismo? Na verdade, o senso comum ainda é realista, ele não é nem moderno
ainda, e nós, enquanto representantes do senso comum, nem modernos somos porque nós somos realistas.
O que é o realismo? É o resultado da pressuposição de que o que funda o conhecimento é a realidade do
objeto. Então eu digo aqui: esse quadro é branco! Esse enunciado é um enunciado que expressa um
conhecimento. O que garante esse conhecimento? Qual é a garantia desse conhecimento? Qual o
fundamento desse conhecimento? Durante séculos se acreditou que o que garantia esse conhecimento era
o fato do quadro ser branco, isso é realismo. Parece completamente óbvio eu enunciar que o quadro é
branco e que se fundamenta no fato do quadro ser branco. É esse pressuposto realista, de que há um
fundamento do conhecimento da realidade do objeto, que é posto em questão... e por que é posto em
questão? É posto em questão porque há uma experiência sociocultural de desmontagem das certezas. Há
uma experiência sociocultural de desestabilização de tudo aquilo que está garantido e, por que há essa
desmontagem? Essa desmontagem se faz em função de muitos eventos de diferentes naturezas.
Imagina o que é uma experiência como essa do séc. XVI, uma experiência impactante, que poder de
perturbação teve para o pensamento europeu o contato com o outro. Durante muito tempo, de certa forma,
não havia o outro: tem o europeu e tem o lixo. Não tem outro, tem lixo. Tanto é que você encontra, você
pega, amarra e bota para trabalhar como se faz com burro, com vaca, não é? Porque aquilo ali não é
gente, é bicho! E eles vivem num mundo sem outros. Só que lá no séc. XVI, em função de uma certa
maneira de realizar um desejo de abertura, um desejo de expansão, eles vão começar a se encontrar com o
outro. Porque se eles podiam duvidar da humanidade, e duvidaram... tanto duvidaram que escravizaram;
duvidaram da humanidade dos negros africanos e duvidaram da humanidade dos brasi-índios; aquilo ali
não era gente. Se eles tiveram essa possibilidade de manter essa visão totalmente etnocêntrica da relação
com a África e as Américas, ficou complicado quando chegaram na Ásia, na China e no Japão; e eles lá
tinham o que ensinar, lá eles ensinaram suas culturas para os europeus, ou mesmo quando chegaram nas
culturas pré-colombianas. Uma coisa eram os nossos Tapajós, Tupinambás... outra coisa são os Maias,
são os Incas. Uma civilização de fato, e não e à toa que quando eles detectam que ali é o outro, não pega
para escravizar não, ele mata, elimina. Os espanhóis são diferentes dos portugueses: mata, porque isso
aqui é uma civilização e se deixar eles aqui, essa terra é deles. Os índios não... pode deixar eles aí, porque
são bichos. Nós somos a civilização, nós estamos aqui.
Então, o que foi o impacto do encontro com o outro e, neste encontro, o impacto que a terra é

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redonda. E no impacto de que a terra é redonda, ser forçado a uma mudança significativa e substancial do
eixo da observação. Por que a terra é redonda? E eu estou deitado olhando para o céu e até então eu
olhava para o céu e descrevia o que imaginariamente via. E o que eu via era o que a gente do senso
comum vê ainda: vê o universo passando e você ali paradinho, centro do universo. Imagine qual foi o
impacto quando Galileu e Copérnico põem em questão essa tese geocêntrica. Porque se acreditava que a
terra estava no centro do universo e que no centro da terra estava a Igreja, que era a representante do
poder divino. Então a terra não estava no centro do universo e os bispos da igreja disseram: "a gente te
queima", e ele dizia "vem olhar"... e eles diziam: "eu te queimo, vai para fogueira!". Como você vai dizer
um negócio desses? Era uma outra racionalidade que estava ali se forjando, só que essa outra
racionalidade só se dá porque aquelas certezas todas estavam sendo abaladas, perturbadas e
desestabilizadas.
Com o efeito da desestabilização dessas certezas aparece um personagem teórico importantíssimo
que vai ser responsável pelo surgimento desse outro personagem teórico que dele deriva, que é o sujeito.
Que personagem teórico é esse que eu estou falando? É a dúvida. Esse quadro é branco? Sei lá, não sei...
eu acho que era, mas eu também acho que estou no centro da terra. Eu achava, cheio de convicção, que eu
estava no centro da terra. Eu estou olhando... e basta qualquer um olhar ingênuo, olhar para o céu e o que
vai ver? Você parado e a lua passando, você parado e o sol passando, o que você conclui? Eu estou
parado no centro do universo e tudo roda em torno de mim. Se isso não está certo, sei lá se o quadro é
branco! Se isso está errado, também pode estar errado o fato do quadro ser branco. Então a pressuposição
de que o conhecimento está fundado na realidade do objeto é perturbada, o realismo não se suporta mais.
Essa dúvida descontrolada, essa dúvida insolúvel, pode gerar aquilo que o pensamento não suporta, e o
pensamento suporta tudo, o pensamento suporta tudo, com a condição de continuar pensando. Ele topa
qualquer parada, contanto que ele possa continuar pensando, e ali parecia ter se chegado a uma sinuca de
bico. Aquela dúvida gera uma paralisia do pensamento na forma do que nos chamamos de perigo cético, o
ceticismo. Não falo nada, não digo mais nada, nada é possível de ser dito. Essa dúvida descontrolada
gerava o perigo do ceticismo, que era o perigo do silenciamento. Então era preciso resolver essa dúvida.
Como é que vai se propor a solução da dúvida? Pelo seu enfrentamento e, enfrentar a dúvida é o que
Descartes chamara de dúvida hiperbólica. Nós vamos convocar aqui esse pensador e o tomaremos então
como um arauto da modernidade: René Descartes. Em especial, o ano de 1630, com Discurso do Método.
Qual é o pressuposto aqui? O cartesiano, onde é preciso sistematizar a dúvida, levar a dúvida às
últimas conseqüências... o cara radicaliza a dúvida, ele duvida de tudo, ele leva a dúvida até as últimas

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conseqüências. E levar a dúvida as últimas conseqüências é dar a ela o que ele chamou de tratamento
geométrico, matemático. Ele matematiza a dúvida, leva-a até o limite. E assim fazendo, numa sistemática
da dúvida, chega a uma intuição, ele tem uma intuição. Essa intuição lhe garante um ponto de alicerce,
um ponto de apoio a partir do qual ele vai poder... o pensamento vai poder erguer o edifício do
conhecimento, e que ponto de alicerce é esse, que ponto de apoio e esse? É quando ele tem a intuição:
duvido de tudo, mas eu não posso duvidar que, em duvidando, eu sou algo que duvida. Havia algo de que
ele não podia duvidar... ele podia duvidar de tudo, mas tinha algo do qual ele não podia duvidar. O que
era isto? Era o fato de que ele era um sujeito.
Se eu penso, independente da veracidade do que eu estou pensando, eu sou algo que pensa, eu sou
resposta, eu sou um sujeito do pensamento. Essa era a intuição dele, intuição do cogito: cogito ergo sum =
penso, logo eu sou, eu existo. E o que é o cogito? O cogito é a primeira conjugação do verbo cogitare, e
ego cogitum, eu penso. Tem um eu ali. Ele colocou essa figura teórica, esse personagem teórico que ele
vai chamar então de cogito: o “eu penso”; disso não tem como duvidar. Nesse momento eu tenho um
outro ponto de fundação do conhecimento, totalmente diferente. E essa garantia do pensamento não é
mais a realidade do objeto, mas a garantia do pensamento: pasmem, é o próprio sujeito que pensa! Olha,
inverteu completamente o eixo da análise. Se o eixo da análise buscava fundamento no objeto, o eixo
agora busca o fundamento no próprio sujeito. Vamos dizer que o realismo e substituído por um
idealismo. E esse idealismo é marcado por um criticismo, porque uma crítica desse realismo até então
vigente, é uma crise do pensamento, geradora da dúvida. E é esse criticismo que vai perpassar toda a
história do pensamento moderno até o século XIX, numa tematização dessa garantia, desse fundamento
do conhecimento que é o próprio sujeito que conhece. Então o que é esse sujeito? É essa a filosofia
moderna, o racionalismo francês de Descartes, depois com o empirismo anglo-saxão, Locke, Hume;
depois com o idealismo alemão, Kant, os românticos, Hegel... toda essa galera vai se dedicar a pensar o
que é esse sujeito. E é essa tematização do sujeito que eu tomo como objeto, agora na segunda metade do
séc. XIX, para com uma investigação de outra natureza, já que realizada com uma aposta metodológica
positivista.
O advento das Ciências Humanas, o advento de uma ciência da subjetividade se faz na forma de
uma estranha hibridização, de um estranho hibridismo que é articular um objeto criado e desenvolvido no
campo da especulação filosófica, no campo da filosofia moderna com um que, doravante, será tratado
com o método das ciências físico-naturais. Quando junta essas duas coisas aparece então, na segunda
metade do séc. XIX, autores que pretenderão fazer ciência do homem. Só que essa pretensão não vai

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poder se dar sem uma tensão, sem um mal estar. Por que esse mal estar? Porque esse caráter híbrido, essa
hibridização, essa mistura que está na emergência do advento dessas ciências vai se tornar como que o
seu estigma, como que a sua marca, e ela nunca conseguirá depurar-se, ela nunca conseguirá realizar-se
de um modo puro, e será sempre hibridizante, sempre misturando... o campo que advém daqui é um
campo de misturas, onde aquele projeto dito moderno, de uma purificação, nunca se alcança;
definitivamente, nunca se alcança.
Como é possível a gente verificar isso? Isso é fácil de verificar pelo próprio acompanhamento de como
esse campo se organiza. Ele se organiza de um modo muito mais “arquipelágico” do que ocidental. Esse
campo aqui não é um continente, ele é um arquipélago. Esse campo que se funda aqui é marcado por uma
dispersão que, a princípio, a gente poderia designar na forma de três linhas evolutivas que vão correr
paralelamente: ciências da subjetividade, que entendem por subjetividade o sujeito do conhecimento, o
sujeito cognoscente. E eu vou fazer uma tentativa de ciência experimental do conhecimento, porque eu
acho que ficou claro para vocês que em função dessa linha genealógica advinda do positivismo, o que eu
produzo no campo dessas ciências é experimentalismo. Não é à toa que esses cursos todos devem ter, pelo
menos, algumas cadeiras de laboratório. Tem que aprender técnicas de laboratório, técnicas
experimentais. E essa psicologia se fará cheia de convicção como uma psicologia experimental. Ela
tomará como objeto o sujeito que conhece, o sujeito que é dotado de faculdades cognitivas capazes de
produzir conhecimento, consequentemente, capaz de garantir uma adaptação, uma melhor adaptação ao
organismo: pensamento, inteligência, memória, linguagem, aprendizagem, atenção... que são faculdades
cognitivas.
Vai haver toda uma linhagem aqui que vai evoluir definindo que sujeito é um conjunto dessas
faculdades. Essa vertente está imbuída desse hibridismo e tomará esta aposta metodológica como a única
garantia de uma ciência da subjetividade. Se ela quer ser ciência da subjetividade, tem que fazer de modo
experimental. Mas ao mesmo tempo, na segunda metade do séc. XIX, vai se colocar em questão a
efetividade, a possibilidade de se fazer uma ciência experimental da subjetividade. Vai ter uma outra
galera, um outro pessoal que vai dizer: "olha, não dá para fazer uma ciência experimental da
subjetividade". Embora não tenham aberto mão do radical psi, eles vão se manter nesse campo que,
consequentemente, se dispersa afirmando que aquele projeto de submissão do tema do sujeito ao método
positivo, ao método experimental, é um projeto inexeqüível, é um projeto que não dá para levar adiante. E
eles vão dizer isso fazendo, ao seu modo, uma ciência da subjetividade, só que entendendo por sujeito,
não mais o sujeito que conhece, mas o sujeito marcado por um desconhecimento fundamental, um

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desconhecimento intransponível, um conhecimento insolúvel. Um sujeito que diremos o “ sujeito do
desejo ”.
Aqui também, segunda metade do séc. XIX.... se por um lado, aqui nós temos Wundt, Titchener,...
por outro, tem Freud. E todos eles não abrem mão do radical: é psi. E o campo já se estilhaça, já diverge,
já se compõe de um modo mais para o arquipélago do que para o continente. Uns dizendo que o sujeito se
define como um sujeito que conhece e outros dizendo que o sujeito se define como o sujeito que não
conhece. Eu chego lá para minha mulher e em vez de chamar Márcia, eu chamo Teresa. Por que eu
chamei Teresa? Eu não sei por que eu chamei o nome da mulher do meu amigo... não foi porque eu
conheço, foi o que eu desconheço, que eu sou. É lá onde eu desconheço que eu sou e não lá onde eu
conheço que eu sou. Aí é uma outra concepção de sujeito que vai se armar aqui. Você vai existir lá onde
você não pensa. É o conceito de inconsciente criado por Freud. E está do lado do conceito de consciência
de Wundt, de James... contemporâneos.
Por último, nós vamos ter então, porque nesses dois casos aqui... olha que interessante, olha como é
incrível se chamar isso tudo pelo mesmo radical, coisas tão distintas a princípio. Aqui você tem uma
teoria, a teoria da subjetividade, pelas as estatísticas feitas. Wundt foi o autor que mais escreveu sobre as
ciências da subjetividade, a obra dele é uma biblioteca. Aqui eu tenho uma teoria e essa teoria não tem a
ela associada uma prática, uma aplicação. A relação que ela tem com a prática é a prática experimental,
que me garante produzir a teoria. Do outro lado eu tenho uma prática, que é a prática clínica e essa prática
clínica produz uma teoria. Então temos uma teoria que decorre da prática e uma prática decorre da teoria.
O próprio Freud disse - e esse é um charme do advento da psicanálise, que é um advento marcado pela
sua condição paradoxal - que: "(...) a única maneira de construção do conhecimento acerca do
inconsciente é a partir da experiência clínica... só dá para conhecer o inconsciente no divã". E é por causa
desse pressuposto que ele nunca articulou o estudo da psicanálise a nenhuma academia... esse outro
acontecia na universidade, era produzido dentro da universidade, havia um lugar que se autorizava a
produzir conhecimento do sujeito do conhecimento: Universidade de Leipizig. Todos esses psicólogos se
ligaram à universidade, que era o lugar onde se produzia conhecimento. Freud vai dizer: “não, o lugar
onde se produz conhecimento não é na universidade, o lugar que se produz conhecimento é na clínica, é
no divã... e se tem uma teorização sobre o inconsciente, ela é resultado da experiência clínica”. Ele vai
afirmar que não há conhecimento sobre o inconsciente sem uma relação transferencial. Todo
conhecimento acerca do sujeito se faz numa situação especial que é aquela da transferência no setting
clínico. Mas aí se cria um embaraço, que é o charme da teoria freudiana, é o charme da emergência da

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psicanálise porque, se isso é verdadeiro, como explicar o conhecimento do Freud? Há um problema nisto:
se a psicanálise só se constitui numa experiência clínica, como explicar o primeiro clínico? Criou-se um
paradoxo.
Existem alguns historiadores da psicanálise, que não são muito bobos, que tentam resolver o
problema pela eliminação do paradoxo, dizendo que Freud era genial, e ele pegou um amigo otário que
ele tinha, que era o Fliess, colocou-o na posição de analista e, por carta, obrigou o Fliess a analisá-lo, para
dizer então que o ovo vem antes da galinha e que o Fliess teria sido o amigo otário que ficou no lugar do
ovo, para que o Freud pudesse se constituir como galinha. Essa é uma explicação no mínimo boba. É mais
interessante pensar que a psicanálise se engendra no ato do paradoxo, e que ela não faz outra coisa se não
apostar na possibilidade de habitação desse paradoxo, ou seja, não há possibilidade de escolher entre o
ovo e a galinha. O fato de ter nascido desse hibridismo vai gerar aqui dentro uma dispersão, que são as
primeiras dispersões que eu estou mostrando... o segmento que vai querer manter o radical psi e dizer:
não é possível realizar uma ciência experimental do conhecimento, uma ciência experimental do sujeito!
Só que na hora que ele diz que não é possível e não aceita... não sei se vocês sabem, mas Freud morreu
tendo recebido um único título, que foi literário, perceberam? Ele nunca recebeu um título científico, ele
nunca recebeu um prêmio científico. Aquilo ali para o séc. XIX era literatura, olha como ele escreve
bem...olha como ele conta, essas coisas histéricas, olha que romance... um romance pornográfico, sem
dúvida mas, um romance. E ele só recebeu título de literatura, título artístico... aquilo ali não era ciência,
aquilo ali era arte... o cara escrevia bem. Mas ele nunca aceitou isso, ele dizia: "ciências da subjetividade
sou eu, vocês estão todos errados", ele poderia ter colocado a viola no saco e dito: tudo bem, vocês são
cientistas e vou aqui ser artista, mas ele não aceita isso e fica ali: "quem está direito aqui sou eu, vocês
não sabem o que é o sujeito". E o outro está dizendo: "não, quem está de direto aqui sou eu, você é
maluco!". Isso é o campo das ciências da subjetividade, aí começa a confusão.
O encontro do Freud com a histérica produz um efeito na psicanálise que talvez tenha sido de
amarra, e que amarra é essa? É a submissão da teoria do inconsciente ao modelo da representação. É a
pressuposição que o inconsciente é um palco de representações... e ele transforma o inconsciente numa
representação, e o esquema da representação é o modelo moderno. Então, se nós vamos discutir, e numa
outra oportunidade faremos isso, a pulsão, na obra freudiana, se monta num modelo de explicação do
sujeito a partir da relação dele com a histérica. Consequentemente esse modelo que ele cria para
subjetividade é um modelo de uma subjetividade desejante, ainda fechada nos limites restritos da
representação. Guattari fará esta crítica dizendo que é insuficiente ainda essa recusa que Freud fez da

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modernidade, que está lá. Há uma recusa. Na hora que ele não se admite pertencente a essa tradição - que
é uma tradição que vamos chamar de naturalismo da psicologia - e não admite poder realizar com tanta
facilidade a importação do método das ciências físico-naturais, de certa maneira, está bloqueando,
impedindo o livre curso dessa modernidade no que diz respeito ao estudo da subjetividade. Mas como ele
fez isso? Ele não pode fazer isso senão se enredando nos encantos histéricos. E esse encantamento
histérico, a histérica cobra um preço, e o preço foi a construção de uma teoria representacional do
inconsciente e não uma teoria produtiva do inconsciente. Digamos que é um modelo neurótico da
subjetividade... o que se monta ali naquele momento é um modelo da subjetividade, que é o modelo
neurótico da subjetividade, é o modelo histérico da subjetividade. E uma incompatibilidade de pensar essa
subjetividade, essa dimensão mais estilizante, essa dimensão que outros autores, como Felix Guattari,
dirão que é mais própria do desejo, e ele que é potência de produção de realidade que o psicótico encarna
e que esse modelo da psicanálise não consegue dar conta. Isso fica como uma outra discussão que fica
para um outro momento.
Na terceira linha, só para fechar, eu tenho uma teoria do sujeito, que é um sujeito consciente,
produtor de conhecimento, é um sujeito cognoscente, e a prática é, na verdade, apenas uma prática de
produção dessa teoria. É uma prática submetida a essa teoria, é uma pratica de geração dessa teoria, que é
a prática experimental. Aqui eu tenho uma teoria da subjetividade, que é a do sujeito do desejo aonde eu
tenho uma prática. Eu parto da prática e a teoria é tributária desta, vai se dar apenas como uma
formalização dessa prática. Mas seja num ou seja noutro, eu tenho as instâncias teórico-práticas. Eu tenho
as duas instâncias: a teoria e a prática. Até que eu vou chegar aqui nas psicotécnicas, que são também
uma terceira linha evolutiva no campo, aonde eu não tenho a teoria, só prática. É só tecnologia da
subjetividade, são técnicas da subjetividade, ligadas às instituições, escolas, indústria, hospital, discutindo
as formas de majorar, de otimizar a relação do sujeito com essas instituições: são as psicotécnicas. E o
que a gente vê? A gente vê que as linhas evolutivas... todas elas se arvorando para realizarem plenamente
uma ciência da subjetividade, portanto, todas se definindo a partir do radical psi; essas três linhas
evolutivas vão se fazendo de modo paralelo e, na evolução que elas realizam, uma outra forma de
dispersão vai aparecendo.
Se eu tenho um primeiro nível da dispersão, que é resultado pela coexistência dessas três definições
do objeto e dessas três maneiras de equacionar teoria e prática, a do sujeito do conhecimento, a do sujeito
do desejo e das psicotécnicas; isso já cria uma dispersão. E se a gente acompanha cada uma dessas linhas
evolutivas, vamos perceber que no interior delas há uma geração de dispersão. Essa geração de dispersão

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é resultado do modo como se dá a evolução na história dessas idéias. O modo como se dá a evolução
aqui, ela se faz de forma não paradigmática... é a idéia, portanto, de paradigma científico, tal como foi
formulada lá por Thomas Khun, é essa idéia de paradigma científico que não opera, não funciona nesse
campo.

Rosane Neves: E ali, nesses três aspectos que levantaste, tu não poderias colocar dentro desse radical psi
a psiquiatria, com a questão que ela vai colocar com o sujeito, esse sujeito da desrazão ou da própria
loucura; porque até então isso não era colocado, isso não era problematizado...

EDUARDO: Isso! Porque nesse momento do séc. XIX há um tensionamento no campo da clínica que faz
com que o advento de uma teoria psi, definida como teoria do sujeito do desejo, produza como que uma
retirada dessas práticas psiquiátricas que, doravante, não serão mais legitimamente pertencentes a esse
campo. Mas no séc. XX ela se introduz, sobretudo no séc. XXI, que é o que a gente vive agora com os
avanços das neurociências. Aqui, ela efetivamente está se impondo como um quarto eixo, um quarto eixo
evolutivo. Agora tem todo o aporte dos investimentos da indústria farmacêutica nas neurociências. A
idéia de que há um tratamento entendido como busca e realização definitivas...

- Troca de fita -

(...) tão definitiva da felicidade a partir de panacéias, basta tomar três pílulas por dia e você vai ser feliz...
isso aqui, talvez, e essa é a questão mais sinistra que eu vou passar no nosso último encontro, é o que tem
mais força hoje em dia... dessas modulações do capitalismo, essa é a clínica hegemônica, a clínica da
panacéia. Se está deprimido, se está impotente, ansioso, se está delirante, não há problema, tem remédio
para tudo! É a idéia de tratamento como supressão definitiva do mal estar, a idéia de tratamento como
eliminação definitiva do sintoma, é a remissão do sintoma, é o alcance do nirvana através do controle dos
neurotransmissores conseguido pelo desenvolvimento e o investimento da indústria farmacêutica nas
neurociências que é, efetivamente, o que tem mais força hoje em dia.
Vamos retomar esta discussão que estamos fazendo numa tentativa de acompanharmos o que
chamamos de uma genealogia... desse campo dito das ciências da subjetividade. Chegamos até essa
afirmação - que este campo é marcado por uma dispersão - e essa dispersão que não é só de fato mas é
também de direito; e é esse estatuto de dispersão que eu queria estar discutindo com vocês...

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No séc. XIX identificamos uma evolução tripartite e nós colocamos aqui a psiquiatria, mas na
verdade estamos dizendo que ela reaparece só lá no século XX. Vamos ficar só com o séc. XIX... ela sai
um pouco de cena, recalcada por esse advento de uma ciência da subjetividade que se propunha como
ciência do sujeito do desejo... cabendo a ela a tarefa de fazer a clínica... a psiquiatria aqui cede o seu
lugar. Então essa evolução tripartite é:
a) uma ciência da subjetividade como teoria do sujeito do conhecimento,
b) uma ciência da subjetividade como teoria do sujeito do desejo e
c) uma psicotécnica... são as psicotécnicas.
As duas primeiras mantendo, cada uma de um modo singular, particular, uma relação entre teoria e
prática. E uma terceira, na verdade, se dando como uma prática a partir de uma teoria, uma prática sem
teoria... e essa evolução tripartite, esses três eixos intensificam esse caráter de arquipélago do campo, em
função do modo como no interior de cada uma dessas linhas evolutivas eu tenho uma experiência da
história das idéias.
Há um modo de se dar a história das idéias no interior de cada eixo desses que faz com que esse
caráter de dispersão do campo, esse caráter que eu falei de arquipélago do campo se agrave, se agudize. O
que eu disse? Porque aqui dentro a história se faz de tal modo que vem a agravar essa dispersão. Eu disse
que a história se faz assim, pela inexistência desse campo, de uma organização paradigmática, a
inexistência de um paradigma organizador desse campo. E como a gente entenderia isso? Pela mesma
maneira como identificamos um representante desse campo. É muito diferente a nossa expectativa, a
nossa atitude diante de um representante das ciências físico-naturais quaisquer... você encontra com
alguém que diz que é físico, um físico. E aí, tudo bem? O que você faz? Eu sou físico. Diante dessa
afirmação você bota a viola no saco e estamos conversados: ele é físico! E por física eu estou entendendo
o quê? Estou entendendo a situação da física na atualidade, estou entendendo a física tal qual ela se
organiza no contemporâneo... e nem caberia, não teria o menor sentido eu perguntar: “vem cá você é um
físico galilaico, um físico newtoneano ou um físico einsteiniano?”. Não! Ele é físico! E por físico se
entende a física de seu tempo. Ora, isso indica o modo de como a história das idéias se faz nesse campo
das ciências físico naturais e através de um modo organizado por uma evolução em bloco.
Como evolução em bloco? Nos momentos de ruptura da ciência, vive-se uma crise que é sanada
pela organização de um novo paradigma científico que cria um ideal de inteligibilidade novo, no qual
toda a ciência se organiza de um modo normal... faz-se como ciência normal. É assim então que o que o
Thomas Khun está definindo o que ele chama de revolução científica: que é preciso... que é uma

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definição válida, extensível, não me parece aplicável a todos setores da ciência ou, pelo menos, não é
aplicável a este setor da ciência que diz como ciência da subjetividade. O que o Khun está dizendo: a
ciência sempre se dá como uma ciência normal e a ciência normal é aquela que realiza um paradigma
científico, seja lá um paradigma galilaico, na física, seja um paradigma newtoniano do século XVIII. E na
passagem do paradigma galilaico para o paradigma newtoniano você tem a experiência de uma revolução.
Essa revolução, ou crise da ciência, que desestabiliza o modo de funcionar e de organizar o pensamento
físico, gera uma instabilidade. Essa desestabilização gera uma crise que pressupõe uma transformação em
bloco do conhecimento que, por sua vez, é entendida como uma evolução.
Então o paradigma newtoniano é uma evolução com relação ao paradigma galilaico, na medida em
que ele dá conta daqueles problemas que o paradigma anterior não explicava. Então eu tenho aqui uma
superação com conservação: eu supero conservando esse estágio anterior da ciência e a ciência em bloco,
ela se transforma. Não há, doravante, a coexistência de físicos galilaicos, físicos newtonianos, porque a
física toda é newtoniana. Bom, se é isso que eu entendo como revolução científica, como evolução da
ciência, como organização do campo das idéias científicas a partir de um paradigma, não será assim que
acontecerá no campo das ciências da subjetividade.
Lá naquele campo, a relação com a história, com o tempo, não se dá seguindo esse funcionamento...
e você quando encontra com alguém e diz: eu sou psicólogo. Psicólogo... psicólogo o quê? Quer dizer, há
uma reticência implícita... é insuficiente você dizer que é psicólogo porque você pode ser perfeitamente
um psicólogo behaviorista, um psicólogo gestaltista... e a relação que você guarda com esses diferentes
momentos da história da psicologia, com as diferentes matrizes teóricas, não é uma relação de superação
com conservação, mas de uma complexificação do campo. Isto quer dizer que na história das idéias, cada
um desses psicólogos, embora malgrado essa pretensão de fazer uma revolução galilaica, uma revolução
paradigmática no campo, malgrado essa intenção, esse campo nunca se organiza. Eu tenho mais um
ponto, mais uma ilha, mais uma matriz teórica que vem complexificar ou diversificar esse arquipélago.
Então terei aqui uma evolução que é geradora de dispersão e a questão é: como experimentamos essa
dispersão? Como é que, entendendo que a evolução se dá no século XIX a partir desses três eixos, e no
interior desses três eixos eu tenho uma matriz multiplicadora da dispersão, que aqui eu vou ter então...
assim como eu vou ter Wundt, eu vou ter os funcionalistas americanos, vou ter o behaviorismo, vou ter,
na Alemanha, os gestaltistas, vou ter na Suíça, Piaget, e todos eles coexistindo... aqui eu vou ter Freud e
toda uma descendência que dele deriva e que com ele não se identifica... então o que você vê é uma
multiplicação dessas ilhas, uma multiplicação dessa situação de dispersão. O que se faz diante disso? Das

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duas uma: ou você considera que essa dispersão é uma dispersão de fato e não é uma dispersão de direito,
e diante desse fato, você lamenta. É uma atitude melancólica. Diante disso, você se entristece... quando
chegará o nosso Galileu? Você tem uma resposta melancólica a essa dispersão, na pressuposição que ela
não é uma dispersão de direito, que de direito pode haver a unificação desse campo. Ou, por outro lado,
você pode chegar a afirmar que essa dispersão não só é uma dispersão de fato, mas é uma dispersão de
direito. Ela é uma dispersão de direito porque o campo se organiza assim em função do seu objeto. Não
haveria como criar uma unificação desse campo senão em detrimento de uma dimensão do objeto que
seria, digamos assim, marcado pela sua incompletude.
É o objeto, que é por definição o não-todo, incompleto, e é essa incompletude do objeto que
Foucault, num texto muito bonito de 1956, da época em que ele se dedicava a psicologia.... geralmente a
gente conhece o que Foucault escrevia da década de 60 para cá, o Foucault arqueólogo ou o Foucault
genealogista da década de 70 ou o Foucault da ética dos anos 80. A gente esquece que tem o Foucault
psicólogo, historiador da psicologia, que é o Foucault da década de 50. Nessa época ele escreve alguns
artigos em que faz a história da psicologia, e um artigo muito interessante - e eu sugiro a leitura dele - que
é “A psicologia de 1850 à 1950”. Ele faz um levantamento, uma avaliação desses 100 anos da psicologia.
Apresenta uma pista para que possamos pensar isso que estou chamando de uma afinidade entre a
dispersão do campo e a natureza do objeto, isso que eu chamei de incompletude do objeto e que Foucault,
neste texto, chamará de contradição, uma contradição interna do objeto. Contradição essa que dotaria o
seu objeto de um enorme poder de sedução, um enorme poder de encantamento que faz com que se
continue a produzir teorias acerca dele, embora nenhuma delas possa ter a satisfação de ter
definitivamente organizado o saber acerca desse sujeito.
O Foucault vai dizer: o que é o homem, senão esse objeto contraditório, marcado por uma negação?
Negação de quê? Ele, dotado da capacidade lingüística, tropeça nas palavras... ele, dotado de uma
capacidade mnêmica, se esquece... ele, dotado de uma capacidade de inteligência, erra... ele, portanto,
dotado de faculdades que o tornariam - no mundo animal - aquele organismo mais eficiente, de maior
capacidade de adaptação, se desadapta... é isso que Foucault chama de uma contradição interna do objeto,
uma contradição dele com ele mesmo, que faz dele algo que - e é dessa maneira que ele termina o texto -
melhor possa ser entendido em sua relação com o tempo. É na relação com o tempo que esse objeto pode
ser entendido na medida em que essa dimensão de incompletude, ou essa dimensão de contradição
interna, não é outra coisa senão a abertura do tempo no homem. E nessa abertura o homem se dá no
processo histórico de fazer-se, ele vai se fazendo, ele vai se transformando...

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- Troca de fita -

(...) pode pensar o que quiser, porque há o reino do conhecimento, há um reino da razão, aquele último
reduto que até então tinha se mantido ainda nas sombras, que era a explicação da vida; doravante, estava
resolvido, e eu explico a vida, agora, a partir da investigação genética e da descrição desse programa, que
um programa computacional que se faz a partir dessa fisiologia do ADN e RNA. Bom, é um outro
mecanicismo que se arma aqui, é um outro programa mecanicista que se arma. temos que entender como
isso acontece, entender o modo pelo qual se arma agora esse mecanicismo. Há uma alteração desse
cenário, de tal maneira que, esse cenário marcado pelo naturalismo - é assim que se chama, marcado pelo
naturalismo - vai se fazer, agora, marcado pelo artificialismo. É um artificialismo que se impõe numa
nova versão do mecanicismo, o neomecanicismo, que é o neomecanicismo computacional.
Existe, no séc. XX, uma alteração desse cenário que é feita pela via de um artificialismo que
garantirá finalmente que aquela ciência, que aquele método de conhecer, que é o método de conhecer da
ciência, possa alcançar segmentos até então alheios, estranhos, distantes do reino da razão. Então, esses
objetos que eram ainda mantidos nas trevas, ou seja, que não eram passíveis de serem explicados pela
racionalidade moderna, doravante, com essa nova imagem de máquina, com esse novo mecanicismo,
passam a ser explicados. Vamos entender então, o que seria esse neomecanicismo e de que maneira ele
vai permitir que eu dê um outro estatuto para a ciência da subjetividade.
Até aqui estávamos vendo que subjetividade, se era conhecida, não era conhecida pela ciência, mas
pela filosofia. A ciência era a ciência da matéria. Tenho então duas metades do ser e, para cada uma, a
correspondência de um modo de conhecer. Quando chego aqui no séc. XIX, o que eu tenho? A
importação desse objeto da história da filosofia. Esse objeto chega como uma das linhas genealógicas que
compõe o campo da psicologia e com ele vem o dualismo e eu terei que resolver esse dualismo. E como é
que eu tento resolvê-lo? Como eu tento aplicar essa estratégia de conhecer, que é da ciência, e que a
estratégia de conhecer dessa ciência é conhecer mecanicamente ou, mecanicisticamente a matéria, como é
que tento aplicar isso ao sujeito? Eu sempre realizo isso com embaraço. A tentativa de realização de uma
ciência mecanicistica do sujeito é uma tentativa malograda, sempre com insucesso, sempre insatisfatória.
E por que ela seria insatisfatória? Porque a ela sempre esteve associado um reducionismo. Eu, para fazer
essa ciência mecanicista do sujeito, tive que reduzir e simplificar excessivamente o meu objeto. O objeto
teve que ser simplificado, por exemplo, como foi a simplificação realizada por uma efetiva ciência

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mecanicista do homem, como o behaviorismo americano, uma vez que ele está ali tentando fazer ciência
segundo os cânones da ciência moderna. Só que para fazer isso tem que dar uma bruta simplificada no
objeto, e o objeto não poder ser outra coisa senão o modo de relacionar a periferia sensória e periferia
motora do comportamento.
Então eu faço sempre um reducionismo, seja pensando o meu objeto só como articulação entre
estímulo e resposta, transformando o meu objeto nessa realidade material, passível de observação,
passível de quantificação, passível de um tratamento laboratorial a semelhança do realizado pela física,
pela química, pela fisiologia, seja então por não fazer esse reducionismo materialista, esse reducionismo
empobrecedor, e não consigo dar uma legitimidade ao conhecimento que produzo acerca do meu objeto.
E por que é que eu não consigo garantir uma legitimação para o meu conhecimento? Porque tem um
pressuposto aqui que é um pressuposto moderno, que tem relação com toda essa estratégia, esse ideal de
inteligibilidade que estamos montando aqui. É que essa realidade, essa realidade que eu conheço
mecanicamente com a estratégia do mecanicismo, é uma realidade que eu faço. Tanto é que eu a levo para
o laboratório e lá, eu a faço. Eu, dentro das condições do laboratório, consigo reproduzir aquele
fenômeno, faço aquele fenômeno lá. É o que Vico vai chamar de princípio do conhecimento científico:
verum et factum convertuntur, o que é verdadeiro e o que é feito se convertem um ao outro, ou, só é
verdade aquilo que eu faço. Traduzindo: seria conhecer fazendo... eu conheço na medida em que eu posso
fazer.
Então, no laboratório você consegue fazer um fenômeno físico? Consigo. No laboratório você
consegue fazer a reação química? Consigo. Você consegue fazer a vida no laboratório? Você consegue
fazer o homem, no laboratório? Aí fica mais complicado. Então disse lá o Vico: bom, ciências do homem,
fica complicado de pensar, se eu não consigo fazer o homem... só Deus faz o homem. Eu consigo fazer o
fenômeno físico, o fenômeno químico, ali eu consigo conhecer fazendo, não é o caso do homem... como
eu vou fazer o homem? Eu não sou Deus. Então não há como ter uma ciência do homem, só há como ter
uma filosofia, uma especulação acerca do homem... uma ciência do homem, não se pode pensar.
Todas as tentativas, a partir do séc. XIX de se fazer uma ciência da subjetividade incorriam sempre
nesse mesmo ponto. Então você diz que pode fazer o homem e Watson diz isso: você me entrega o bebê e
diz para mim o que você quer... porque ele está dizendo isso, ele está respondendo a Vico, quer dizer,
você me entrega o bebê, você diz para mim o que você quer: um pianista, um cientista, ou você quer um
tarado... o que você disser eu faço, apenas controlando aqui a relação com o ambiente, controlando o
reforço, controlando a história da aprendizagem dele, eu faço. Porque ele não é outra coisa senão a

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história de uma aprendizagem, ou seja, uma história da relação com o ambiente. E fora isso que eu
adquiro por uma história da aprendizagem num grau zero, eu não tenho nada; é o princípio da tabula rasa,
o princípio de um zero.
No início é só matéria plástica que você vai modelando, então Watson disse: eu faço ciência. Esta
aqui é a única ciência possível. Ciência não faz fenômeno, eu faço meu objeto e faço o que você quiser,
cientista, pianista. E Watson estava certo, ele quis fazer ciência e fez ciência. Só que, vejam só, parece
que para garantir o estatuto de ciência na história da ciência ele teve que empobrecer o seu objeto, o
objeto ficou ali, muito fajuto. Quer dizer, a esquemática do behaviorismo é totalmente legítima, ninguém
pode dizer que aquilo ali é bobagem. Talvez eles tenham sido os únicos que disseram que eram cientistas
e bancaram isto. Só que para bancar teve que haver uma simplificação redutora do objeto e aquilo que se
dá entre o estímulo e a resposta, aquilo que acontece entre a periferia sensória e a periferia motora, que
para muitos é o que é propriamente subjetivo, é o que está entre o estímulo e a resposta. Ele vai dizer: isso
aqui, você coloca entre parênteses, é uma caixa preta, ninguém fala sobre isso, ciência não se faz disso. Se
não pode falar disso, é especulação, é filosofia. Não se pode fazer especulação na ciência. Então ele teve
que lavar o bebê para o bebê parecer objeto da ciência, só que na hora em que ele joga a água o bebê vai
junto, e vai tudo embora... e o que ficou? Parece que ficou muito pouco.
Esse esforço dele é absolutamente legítimo. Se a gente entende o desafio colocado pela história das
idéias a uma possibilidade de ciências da subjetividade, o desafio é esse. Como fazer uma ciência da
subjetividade que seja ciência tal como a ciências da física, química e da fisiologia, portanto, uma ciência
que conseguiu a estratégia de desmarginalização? E ao conseguir fazer isso, conseguiu fazer o objeto
como quis o Vico: produziu o objeto. Portanto, realizar esse problema da ciência sem cair num
reducionismo... o que acontece? Acontece é uma revolução não paradigmática, embora alguns até possam
acreditar que tenha sido uma revolução paradigmática no campo dos estudos da subjetividade, no campo
dos estudos da cognição. Foi uma revolução que vamos chamar de revolução tecnológica, que é a
revolução computacional. E isso tá acontecendo no séc. XX, isso está acontecendo na década de 40 no
séc. XX, no final da primeira metade deste século.
Nós vamos assistir ao advento de um outro instrumento, que é um instrumento não só tecnológico,
mas teórico. São as máquinas ditas, supostas, inteligentes. Obviamente que o mecanicismo vai ganhar
uma outra expressão agora porque essa máquina que nós temos aqui, que é a máquina do mecanicismo
clássico, que é máquina do mecanicismo do séc. XVII, do séc. XVIII, é uma máquina que simula a
realidade, mas só a realidade física. E besta aquele que com a máquina tentava simular a realidade

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espiritual.
Vejamos, por exemplo, o caso interessante de Pierre Dröss, porque nessa época proliferaram os
grandes engenheiros das máquinas simuladoras e Pierre Dröss, um relojoeiro suíço, fez um máquina que
beirava a perfeição, na imitação de um rapaz que na mesa escrevia com uma pena. A inquisição quase o
matou, ele quase morreu. Por que a inquisição quis queimá-lo, mandá-lo para as masmorras? Porque ele
estava ultrajando, tentado usar a máquina simuladora para simular o que ela não podia simular. A
máquina é para simular o corpo, a máquina é para simular a matéria, a máquina não pode simular o
espírito. Porque o espírito é animus, o espírito é alma, o espírito é vontade, é intelecto, e máquina não tem
nada disso. O que veremos é que no século XX vai aparecer uma máquina que, de direito, se pretende
simuladora do espírito. Aí eu crio outro mecanicismo, eu crio o neomecanicismo. Esse neomecanicismo
vai fazer uma alteração desse cenário e essa ciência da subjetividade, que nasce com o naturalismo, vai
derivar para um artificialismo. O que interessa aqui não é apresentarmos todos os detalhes do advento
dessa máquina, vamos só apresentar a máquina. A máquina aqui é a máquina computacional e, o que é
um computador? Tal como é pensado lá por Alan Turin, na Inglaterra, que foi um dos propulsores e John
Von Neumann nos EUA.
Então, a partir de toda uma história - que é uma história que vem da lógica, que vem da teoria da
informação, que vem da engenharia - que não tem nada a ver com a psicologia, que não tem nada haver
com as ciências da subjetividade eu acabo chegando a uma máquina que se pretende, doravante,
inteligente. Na hora em que ela se pretende como máquina inteligente, ela tem um atributo, que é o
atributo que identifica quem? Até então, não-máquinas. Ela identifica o homem. Nesse momento, há toda
uma desestabilização do modo de como eu penso a subjetividade. Então, o que eu entendo por máquina
aqui, como é essa máquina? Essa máquina, estou entendendo como um funcionamento que descrevo de
duas maneiras: há um nível soft e há um nível hard; software e hardwere. Qual é o nível software dessa
máquina? É a dimensão dela mesma enquanto ela se dá com o processamento, lógica de processamento
da informação. O que é o nível hardwere da máquina? É a dimensão física dela. Software e hardwere,
dimensão lógica, dimensão física. A questão é: são duas coisas, são duas máquinas? São dois pedaços da
máquina? O software e o hardwere são dois pedaços da máquina?
Por exemplo: o Word for Windows é um software, isso é um software ou qualquer processador de
dados, como um editor de texto. Esse software, eu o tenho no meu computador, ele está lá no meu
computador. Antes de colocá-lo lá eu tinha este programa no disquete ou num cd, e antes de ter no cd ou
no disquete, ele estava na cabeça do Bill Gattes. Estava lá no cérebro do Bill Gattes, ou seja, esse

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software, esse programa lógico, sempre está instanciado numa matéria, seja matéria neural, seja matéria
do disquete, seja matéria lá de silício, do meu Hard Disk, do meu computador. Então, não é que ele seja
uma coisa, ele é uma dimensão lógica da coisa, quer dizer, ele sempre está relacionado com a matéria.
Com esse modelo de máquina aqui, o que eu ganhei? O que me foi possível pensar? Que há uma
dimensão de inteligência, há uma dimensão lógica e há uma dimensão de matéria. Há uma dimensão de
espírito e há uma dimensão de corpo, só que espírito e corpo não são duas coisas: espírito e corpo são
duas dimensões, duas formas de descrever uma mesma coisa. Eu descrevo a coisa do ponto de vista soft e
do ponto de vista hard, mas eu nunca tenho soft puro e hard puro. Tenho sempre uma máquina descritível
de um modo soft e um modo hard. Isso fica claro? Dá Para aceitar essa idéia? Tá claro que o soft não é
uma coisa, o software é uma dimensão de descrição da coisa, ou seja, eu não posso pensar o soft sem uma
matéria.
Bom, se é assim, chegamos em uma situação embaraçosa que esses autores lá dos anos 50
chegaram. Se é assim, nada me impede admitir que eu tenho situações nas quais três máquinas que se
definem com hard diferentes: o meu computador na minha casa; o teu computador na tua casa e o
computador dele na casa dele. Três máquinas que são, do ponto de vista físico, diferentes e, o meu
computador, o teu computador e o computador dele, processam dados da mesma maneira. No que diz
respeito a edição de texto, é word for windows, o meu, o dele e o dele outro... eu tenho o mesmo
processamento, a mesma lógica de processamento de informação, em bases materiais distintas. Eu disse
que a lógica de processamento tem que estar numa base, mas eu não disse em que base ela tem que estar,
ela pode estar em uma base qualquer. Pode estar em bases diferentes: a mesma lógica pode estar em bases
diferentes. E assim como eu posso pensar isso, entre o meu micro, o teu micro e o micro dele, nada me
impede de pensar que um desses tempos aqui, o hard não é feito de silício, mas ele é feito de neurônios.
Ele é apreensível pela capacidade de resolução de problema. Aí eu chamo o Kasparov, que é um dos mais
importantes jogadores de xadrez, um jogador russo e eu digo: joga com Deep Blue, com a máquina... e
empata. Como? Empatou? Ou seja, eu vou dizer que a performance de Kasparov é, do ponto de vista
funcional, idêntica a performance do computador. Bom, se é funcionalmente idêntico, o que é
funcionamento, senão lógica de processamento de informação? Eu vou dizer então, do ponto de vista,
pelo menos da capacidade de jogar xadrez que o Deepp Blue e Kasparov são idênticos.
Se eu admito isto, e eles estão admitindo, chama-se isto aqui de inteligência artificial; o nome disso
é inteligência artificial. Eu cheguei a uma situação nova em que aquele imperativo lá, mecanicista, que
estava atrelado a uma maneira de conhecer cientificamente, que era o conhecer fazendo, eu terei que fazer

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o objeto. O que é verdadeiro e o que é feito se convertem um no outro. Eu só conheço verdadeiramente se
sou capaz de fazer. Finalmente se resolve, para aqueles objetos que até então eu não conseguia fazer. Eu,
até então, não conseguia explicar o Kasparov, não conseguia explicar a capacidade do Kasparov de
pensar, porque eu não conseguia fazer o Kasparov. Mas agora eu consigo fazer alguma coisa que é
funcionalmente idêntica ao Kasparov. Então, se sou capaz de fazer aquela máquina que joga exatamente
como ele joga, posso dizer que pela simulação do Kasparov na máquina, eu o conheço. E eles acreditam
que resolveram o problema!
Vamos entender primeiro qual a pretensão, e é essa pretensão, que permite a Françoise Jacob e
Jacques Monet, e dizerem finalmente: quebramos a aliança. Porque é com esse modelo aqui que ele vai
para o núcleo da célula e chamará o mistério da vida de um programa. Ele diz: “isso eu faço, isso eu sei
fazer, esse programa eu faço”. E assim começam todos os estudos de vida artificial... então é desta
maneira que eles dizem que finalmente foi quebrada a aliança, que é possível escolher entre o reino da
razão e o reino das trevas, e você só fica nas trevas se quiser porque há como explicar tudo
mecanicisticamente. Eu posso explicar tudo a partir da estratégia moderna da ciência. O problema não é
que o software não consiga criar outro software, ele consegue. Já existem softwares que criam outros
softwares, eles só não conseguem criar um software de capacidade superior a deles próprios, ou seja, eles
não conseguem se superar. Conseguem criar outro, mas o outro é inferior. Do ponto de vista da
capacidade de processamento de informação, ele é inferior.
O que a gente vem assistindo então, no pensamento contemporâneo... é isso que eu gostaria de
deixar como conclusão desse nosso primeiro encontro para podermos engatar amanhã, dando
continuidade para as nossas discussões, o que vemos como desafio do pensamento contemporâneo: é
poder superar isso que vamos chamar de ideal de inteligibilidade da ciência moderna. E um ideal de
inteligibilidade que estou tentando definir, como sendo a quebra de uma aliança. E o que é a quebra de
uma aliança? Tal como o Monet designou, a quebra de uma aliança é uma distinção e separação entre o
espírito e o objeto. Eu quebrei essa aliança, ou seja, não há mais possibilidade de encontrar num objeto
algo que seria do espírito. E o que é isso que seria do espírito? Não é mais a inteligência, porque a
inteligência eu já consigo pôr na matéria. Então, o que é isso do espírito que não pode ser lançado no
objeto e que de alguma maneira nós vamos entender como sendo próprio da subjetividade? Nós diremos:
é uma certa relação com o tempo, onde, no tempo, eu crio formas superiores, eu me supero... no tempo a
gente não se supera? A experiência nossa com o tempo não é uma experiência de superação? O que eu
não conseguia fazer hoje, eu consigo... e amanhã eu conseguirei fazer coisas que hoje não consigo, quer

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dizer, há na minha relação com o tempo uma experiência de autopoiése, de autocriação, uma experiência
criadora. Há, na minha relação com o tempo, uma experiência de elã, de elã vital, a partir da qual eu me
defino como força criadora.
Parece que é isso que a ciência moderna não pode admitir nunca. Não era a inteligência, porque a
inteligência vimos que já pode ser colocada nesse objeto mecânico. O que não pode ser colocado, pelo
visto, é essa dimensão temporal. Vamos chamar de uma certa experiência com o devir, uma certa
experiência com o tempo, que é uma experiência de criação. O desafio do pensamento contemporâneo é o
de retomada da aliança e que o Prigogine e o Stengers vão chamar de uma nova aliança... fazer uma nova
aliança. E o que significa dizer que é preciso fazer uma nova aliança? Significa dizer que é necessário
enfrentar o desafio de superar esse ideal de inteligibilidade mecanicista para entender a realidade, a
realidade dos objetos materiais, como uma realidade, um processo de criação de si, um processo lançado
num curso temporal, lançado numa deriva natural, e aí vamos estar usando a expressão do Maturana e do
Varela.

Rosane Neves: Eu gostaria de colocar uma questão. Essa idéia que tu colocas em torno da superação, e
que isso tem muito, me parece, de uma questão um pouco hegeliana, não é? Da superação, do progresso,
que isso é o que caracteriza o próprio moderno. É uma assimetria entre o tempo, entre o passado e o
futuro, e isso é só para que possamos perguntar, fazer uma ponte, pois acho que a autopoiése vai colocar
uma outra problemática nesta experimentação do tempo.

EDUARDO: Isso, perfeitamente.

Rosane Neves: (...) que rompe com essa simulação moderna que pressupõe essa superação, assim como
a dicotomia entre o passado e o futuro.

EDUARDO: Acho que sim, que dá perfeitamente para vermos essa questão. Então o que a gente tem
que discutir é qual o estatuto dessa superação que eu estou a realizar? Mas o que eles querem quando
dizem que estão querendo superar? Será que essa superação é no sentido hegeliano? Eu supero
conservando, eu supero... conservando. E consequentemente vou me afastando do passado num processo
evolutivo... num progresso? Parece que não, parece que é outra relação. É uma superação não num eixo
vertical, mas em um eixo horizontal. É uma superação tal como acontece aqui, aonde de alguma maneira

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Wertheimer, Koffka, Köhler superam Watson. Mas a superação dele garante coexistência. Ele supera
coexistindo, ou seja, é um tipo de relação com o tempo que não se faz na forma de revoluções
paradigmáticas. O que eu quero dizer, lembra que eu falei para vocês? Essa dispersão, ela é de direito,
não é só de fato. E ela é de direito porque, hoje, as ciências que outrora diziam que evoluíam em bloco,
estão dizendo agora: olha, não se evolui mais em bloco não. É isso que o Prigogine está dizendo, é isso
que Maturana e Varela estão dizendo... há uma outra relação com o tempo, e essa relação não permite
mais que um esquema epistemológico do tipo de Thomas Khun seja empregado com tanta facilidade.
Então é uma outra epistemologia que é imposta pela ciência contemporânea que faz com que aquilo que
para nós era sempre uma vergonha se torne agora o legítimo.
Se sempre estivemos a reboque das ciências físico-naturais, de direito, agora isso não mais se
repete. A autopoiése se faz, e a gente vai ver essa potência da vida, de auto-organização, e de
autoprodução, que é idéia de autopoiése. Poiéses é o radical grego: criar, criação; é pensarmos a vida
como um sistema que autocria, que cria a sua própria existência. Essa criação da própria existência, essa
possibilidade de uma auto-organização do sistema vivo se faz pelo seguinte modo: no vivo, o sistema se
conecta em redes e o modo como o sistema se conecta em redes pressupõe então que é isso que eles
chamam - Maturana e Varela - de acoplamento estrutural. Eu me constituo no acoplamento com o outro e
esse acoplamento pode ser de diferentes naturezas: pode ser um acoplamento que mantenha as estruturas
e nada mude, onde eu me acoplo com você e continuo do jeito que sou. Pode ser um acoplamento que
desestabiliza minha estrutura e faz com que eu produza uma outra estrutura. Esse acoplamento é um
acoplamento gerador de deriva natural e assim eles pensam o que seria a relação do vivo com o tempo. E
pode ser um acoplamento que destrua a vida, só que eles dizem que neste momento acaba a autopoiése,
que a autopoiése só se mantêm enquanto potência do viver, se há um acoplamento que destrói a vida...
aquele acoplamento não é autopoiético. Ele é um acoplamento destrutivo.
Então, do nosso ponto de vista, não há uma autopoiése da morte. Não há tânatos (thánatos), não há
pulsão de morte. No vivo só há Eros, só há pulsão de vida, e essa pulsão de vida significa o que? Potência
de engendrar-se a partir da conexão em rede, do acoplamento estrutural com o outro, e eu vou me
constituindo... agora neste acoplamento, sem dúvida que eu posso levar uma facada, posso levar um tiro...
o outro pode me matar, mas aquilo ali não é mais autopoiése uma vez que a potência de preservação da
vida é condição sine qua non para garantia, para essa definição desse acoplamento autopoiético.
O que nós vamos discutir então é de que forma eu posso entender, do ponto de vista clínico-político, essa
autopoiése com o princípio da subjetividade? Como é que eu posso entender a subjetividade como uma

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potência de autopoiése, e entender que esse desafio que nós vamos chamar de clínico-político, esse
desafio que está no mundo de modo autopoiético, de modo auto-organizado e modo autogestivo? Quer
dizer, uma certa experiência, que são as redes quentes, é uma maneira de estar na clínica hoje, sintonizado
com o contemporâneo ou, em outros termos, sintonizado com estes problemas que são hoje, não só da
clínica, mas da clínica, da física, da química, da matemática. E se aqui nós tínhamos uma desconcertante
distância, no séc. XIX, em relação ao modo de funcionamento das ciências físico-naturais, que era citado
como revolução paradigmática, era citado pensando o objeto de modo “desimaginado”, de modo
mecânico, se era assim... não é mais assim.
A ciência contemporânea, ou melhor, as ciências físico-naturais contemporâneas estão tratando do
seu objeto de modo muito semelhante como nós, da experiência clínica, tratamos da subjetividade. Eu
estou achando que estamos agora numa situação um pouco mais confortável, na medida que não estamos
mais ameaçados por aquela melancolia, não estamos mais ameaçados por aquela depressão, que é a
depressão que sentíamos pela distância ou pela sensação de nunca conseguirmos realizar esse ideal de
inteligibilidade da ciência. Fica claro isso aqui? Querem levantar alguma questão? Amanhã vamos
retomar essa discussão repensando de que maneira as disciplinas funcionam em relação a esse novo ideal
de conhecimento. Valeu. Obrigado.

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MÓDULO II
O DISPOSITIVO CLÍNICO-POLÍTICO

Nós temos três módulos: o primeiro módulo teve como objetivo colocar um problema e esse
problema poderia ser designado assim como o desafio do pensamento contemporâneo de retomada da
aliança ou, como preferem dizer Prigogine e Stengers, uma nova aliança que de alguma maneira nos
permite reequacionar e redefinir o papel que as ciências da subjetividade desempenham nesse cenário,
que é o cenário do pensamento contemporâneo.
Dissemos então que, se estivemos sempre a reboque das ciências físico-naturais e, estando a
reboque das ciências físico-naturais, nós éramos então forçados a lamentar o que no nosso campo se dava
como uma falta, uma ausência daquela unidade continental, daquela unidade paradigmática, própria da
física, da química, da biologia. Se éramos até então forçados a uma atitude melancólica, parece que hoje,
no contemporâneo, em função mesmo de alterações que detectamos no campo destas ciências físico-
naturais, então a físico-química dos sistemas de equilíbrio de Prigogine, ou a biologia da auto-
organização de Maturana e Varela, a teoria das catástrofes da matemática, a geometria fractal... ou seja,
no campo das ciências físico-naturais eu encontro importantes alterações que fazem com que possamos
agora ressignificar e repensar aquilo que sempre foi próprio de nosso campo e até então tomado como a
marca da negatividade.
Talvez agora isso possa ser pensado de uma outra maneira, pensado como uma positividade... e essa
negatividade era entendida naquele momento como um caráter arquipelágico, de dispersão do campo:
seria uma campo que não teria unidade. Essa falta de unidade talvez fosse uma falta de unidade de direito,
quer dizer, é uma dispersão não só de fato, mas de direito.
Mas, afinal de contas, o que é que queriam dizer com isso? É que essa dispersão do campo que
evolui naqueles três eixos, e cada um dos eixos multiplicando suas matrizes teóricas e essas matrizes
teóricas coexistindo, não havendo o que Foucault chamou de revolução paradigmática, essa natureza
dispersa, essa natureza arquipelágica do campo das ciências da subjetividade talvez nos indicasse algo
acerca da natureza mesma do objeto. Aí nós fomos lá no Foucault, num texto em particular, “A psicologia
de 1850 à 1950” e ali nós aproveitamos o modo como ele descreve o objeto psi, dotando-o do daquilo que
ele chamou de uma contradição interna. Esta contradição interna faz dele um objeto incompleto, que é
uma incompletude do objeto, que por sua vez é dotado de capacidades mnêmicas e ainda assim esquece;

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dotado de faculdade lingüística e ainda assim tropeça nas palavras; dotado de uma capacidade de pensar e
erra, ou seja, um organismo dotado de uma fabulosa capacidade de adaptação e fica desadaptado. Essa
contradição que faria do objeto um objeto não todo, um objeto incompleto, essa incompletude melhor o
relaciona com o tempo; não é à toa que Foucault vai manter o seu interesse por esse objeto e toda sua
obra, nós podemos dizer, é uma discussão acerca da relação entre sujeito e poder. A obra toda do
Foucault, seja na década de 50, quando ele se dedicou a história da Psicologia, seja na década de 60,
quando ele fez uma arqueologia dos discursos das ciências do homem, seja na década de 70 quando ele se
dedicou a uma genealogia do poder, seja na década de 80 quando ele retoma a questão do sujeito com
uma preocupação ética...
Chegamos em um ponto da compreensão da obra de Foucault que nos permite dizer que desde
sempre é uma mesma preocupação que atravessa seu pensamento e sua obra, que talvez pudéssemos
designar com essa fórmula. Esta é a fórmula que ele propõe no título de um artigo da década de 80 que
ele publica no livro do Dreyfus e Rabinow - “Para além da hermenêutica e do estruturalismo” – que é um
livro importante de dois comentadores da obra de Foucault. Na época em que esses dois americanos estão
escrevendo essa obra que discute o pensamento do Foucault, o Foucault oferece então um artigo - que
seria um artigo esclarecedor - acerca do que foi sempre a sua preocupação, ou seja, a relação entre sujeito
e poder. Fomos em Foucault para poder entender isso que seria nosso objeto. Entendendo-o em sintonia
com o campo teórico a ele articulado, que está marcado pela dispersão e é disperso de direito, não é só
disperso só de fato... tem que ser disperso mesmo porque não há como ter uma teoria que dê conta desse
objeto, que dê conta de modo definitivo desse objeto, porque não há um modo definitivo desse objeto
uma vez que ele não se dá enquanto uma realidade definitiva, mas numa certa relação com o tempo, uma
certa relação com isso que nos vamos ver em... saúde... como um processo de produção de si.
Bom, foi isso que nós deixamos... e fizemos um exercício para poder pensar a história da
psicologia, das ciências do homem. Eu vou do naturalismo até o artificialismo. Com o artificialismo do
modelo computacional eu afirmo que definitivamente quebrei a aliança... demos muitas informações... de
fato, talvez tenha sido excessivo, mas importante é esse esquema que precisamos para avançar na aula de
hoje, quando nos aproximaremos do nosso tema ou, do nosso principal interesse, que enunciaremos da
seguinte forma: o dispositivo clínico-político: pensar a clínica. Para pensá-la nessa sua inseparabilidade
da política, temos então que discutir a seguinte questão: pode a clínica ser um campo interdisciplinar? A
clínica é uma disciplina? Eu posso pensar a clínica como um especialismo? Posso usar esse pensamento
do especialismo para dar conta da experiência clínica? Queremos crer que não, que isto não é possível.

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Essa impossibilidade vai exigir de nós um esforço de reflexão para darmos conta dessa afirmação que -
reconheço - é uma afirmação radical, uma afirmação forte, mas da qual não podemos abrir mão. Que
afirmação é essa?

Toda clínica é transdisciplinar

Não há como pensar a clínica senão como um certo exercício em um plano que é o da
transdisciplinaridade. Se vamos fazer esta afirmação, é preciso que esclareçamos os seguintes conceitos: o
conceito de transdisciplinaridade, que é um conceito que, na verdade, é apresentado como uma alternativa
para essa escalada que acompanhamos nos últimos anos, uma escalada de superação do caráter rígido e
limitado das disciplinas. Cada vez mais estamos colocando em questão as possibilidades do pensamento
se conter dentro dessas fronteiras estritas das disciplinas, essa problematização das fronteiras disciplinares
se darem na forma de três desafios: multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade.
Bom, para chegar aqui temos que ver como se faz o percurso e, esse percurso, de alguma forma,
problematiza nessa passagem da multidisciplinaridade para a interdisciplinaridade e para
transdisciplinaridade... o que a gente vê é uma problematização das fronteiras rígidas das disciplinas. O
que é uma multidisciplinaridade? De que maneira se define a aposta multidisciplinar? A aposta
multidisciplinar é resultado de uma maneira de articular diferentes disciplinas na tentativa de dar conta da
complexidade do objeto (que é complexo) e cuja complexidade faria dele como que um sólido de muitas
faces e, para cada face, seria exigida uma perspectiva disciplinar, um diagnóstico.
Digamos que eu tenha esse objeto complexo: a criança repetente. A questão da repetência, por
exemplo: uma repetência que está na eminência de gerar uma evasão. A criança vai sair do colégio, está
dando problemas, não se está conseguindo mantê-la dentro do sistema escolar. Então a professora, a
pedagoga, exatamente por não se sentir capaz de dar conta daquele problema, vai convocar um psicólogo,
um neuropediatra, ela vai convocar uma fonoaudióloga, uma assistente social. Esses diferentes
profissionais, cada um deles, proporão um diagnóstico que, no somatório, faria um geometral do meu
objeto. O que é um geometral? Geometral é quando eu rebato um sólido num plano bidimensional; então
pego um cubo e vou abrindo um cubo assim, o resultado desse rebatimento do sólido, num plano
bidimensional é chamado de geometral. Então a multidisciplinaridade de uma formação das equipes
multidisciplinares não seria outra coisa senão a tentativa de num multiperspectivismo: várias perspectivas,
no somatório destas perspectivas, num somatório de diagnósticos, eu teria como que a capacidade de

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apreensão da complexidade do meu objeto.
Mas o que eu tenho aqui? Eu tenho uma estratégia que pressupõe a incapacidade da disciplina dar
conta do objeto. A disciplina tem que se relacionar com outras disciplinas, no entanto, aqui, essa relação
com outras nesse multiperspectivismo não pressupõe o comprometimento dos limites de cada uma destas
disciplinas, quer dizer, a psicologia, a assistência social, a neuropediatria, a fonoaudiologia - que entraram
naquela junta para a avaliação do problema - saem daquela junta do mesmo jeito que entraram. E eu tenho
aquele multiperspectivismo se definindo a partir do pressuposto da natureza de um objeto que, pela sua
complexidade, me faz evocar diferentes sujeitos. O importante é que a relação entre esses sujeitos... o fato
desses sujeitos estarem compondo uma equipe multidisciplinar, não comprometerá os limites de cada um
desses saberes, nem tampouco comprometerá os limites do objeto. Na multidisciplinaridade há a
manutenção desses limites identitários, os regimes identitários das disciplinas que estão ali articuladas e o
regime identitário do próprio objeto.
E a interdisciplinaridade, como ela se dá? Neste caso eu tenho outra maneira de pôr em relação as
disciplinas e essa maneira provoca um outro efeito, diferente do efeito da multidisciplinaridade. Eu tenho
aqui, em função de um objeto que, digamos, que seja isso: o aluno repetente e que está com dificuldades
de aprendizagem, na eminência de uma evasão. Eu tenho esse objeto e ele convoca duas disciplinas, que
são a psicologia e a pedagogia. E é exatamente por essa convocação que estas disciplinas irão se articular.
Esta articulação vai pressupor a criação de uma zona de intersecção entre a psicologia e a pedagogia. Essa
zona de intercessão tende a se autonomizar, a se tornar independente, progressivamente ela vai se
tornando independente... e essa autonomização dessa zona de intercessão, na verdade, será a matriz
geradora de uma outra, de uma terceira disciplina, que é a psicopedagogia, de onde vai nascer a
psicopedagogia. Uma psicopedagogia para a qual eu terei um objeto e a relação entre sujeito-
conhecimento-objeto será salvaguardada.
O que tenho é uma matriz multiplicadora de sistemas identitários, uma matriz multiplicadora de
identidades mas, que identidades? Identidades do sujeito do conhecimento, criando um novo sujeito do
conhecimento e eu acabo criando para ele um novo objeto, que é o objeto da psicopedagogia. O que nós
verificamos? Que tanto no caso da multidisciplinaridade quanto no caso da interdisciplinaridade o que eu
tenho é um respeito e uma manutenção dos sistemas identitários, uma vez que mantenho os sistemas de
identidade, quer dizer, eu não desestabilizo essas fronteiras e o máximo que eu faço aqui é multiplicá-las.
Bom, algo diferente acontece quando nós entramos no regime da transdisciplinaridade. Neste caso eu vou
ter uma outra maneira de me colocar em relação as disciplinas e essa relação, nós diremos que é uma

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relação de perturbação. Vamos dizer que eu tenho aqui a psicologia, e aqui eu tenho a biologia e aqui eu
tenho a física. A psicologia, na sua relação com a biologia e a física pode extrair o que delas há de
diferença. Essa relação com a diferença acaba produzindo uma desestabilização desses limites
disciplinares. Os limites disciplinares da psicologia nessa relação que chamaremos de intercessão (não
com s, mas com c)... intercessão vem do que? De interceder, de interferir, de perturbar e os elementos que
estão no jogo da interseção, nós chamamos de intercessores, são os intercessores. A biologia é um
intercessor, um conceito importante que Deleuze propõe e que está publicado no “Conversações”.
Esse conceito de intercessor... ou seja, a potência de diferenciação que um outro produz sobre um
determinado regime identitário desestabilizará o que nele havia de identidade. Então essa relação aqui nós
estamos chamando de transdisciplinaridade, e o que a gente vai ter que entender agora será o pensar a
clínica como uma experiência transdisciplinar que, por definição, é um objeto transdisciplinar. Nós
estávamos então partindo dessa pergunta: pode a clínica ser um campo disciplinar? Essa é a pergunta que
nós havíamos feito - e ela uma pergunta disparadora, pois dispara para uma reflexão - dispara um
pensamento que nos leva a afirmação, que é isso que nós defendemos aqui, que o plano da clínica não
pode ser pensado senão na sua inseparabilidade do que não é clínica. Não há como experimentar a clínica
se não sou capaz de extrair o não-clínico da clínica, esse é o truque.
Então, o que é o não-clínico da clínica? O não-clínico da clínica é tudo isso que pode exercer um
efeito de intercessão da clínica, por exemplo: a filosofia, a arte, a política. Extrair o não-clínico da clínica,
para nós aqui, vai ser extrair a política da clínica. Vou pensar a clínica como um dispositivo clínico-
político e privilegiar o político, mas o raciocínio vale para qualquer outro, pode ser dispositivo clínico-
filosófico, dispositivo clínico-estético, dispositivo clínico-ético. Eu vou privilegiar o político porque
estarei hoje à tarde discutindo a relação da clínica com o capitalismo. Então eu tenho que destacar, por
uma preocupação minha, tenho que destacar a questão política... mas hoje eu vou mostrar que a clínica
não pode ser pensada senão na sua inseparabilidade da política, da estética, da ética. Hoje de manhã é o
que eu vou querer fazer isso com vocês.
Quando estamos privilegiando essa interface clínica/política, por que é que nós o fazemos? Por que
partiremos dessa interface entre clínica e política? Porque estaremos entendendo que aí nesse limite
impreciso entre clínica e política é que poderemos entrar em contato com os processos de produção.
Discutir a questão da política é discutir os processos de produção e, neste caso, os processos de produção
de subjetividade. Já temos aqui o esforço de definição do nosso objeto: qual é o nosso objeto ? Doravante
ele não poderá ser entendido como um estado de coisa, não poderá ser entendido como um substantivo,

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como uma estrutura, como uma essência, com uma identidade, porque se fosse uma essência, uma
estrutura, uma identidade, a ele corresponderia a essência, a estrutura e a identidade de uma teoria. É
exatamente porque ele não é uma essência, uma estrutura e uma identidade, que não há para ele
correspondentemente um saber disciplinar que pudesse dele dar conta. Se ele não é, como disse lá
Foucault em 1956, se ele não é completo, se ele não é idêntico a ele mesmo, se ele guarda essa abertura
para o tempo, eu tenho que entender que o meu objeto é, na verdade, um processo. Ele não é uma coisa, é
um processo. Ele não é um sujeito, é uma subjetivação, e isso faz bastante diferença. Esse esclarecimento
é super importante para que possamos não usar a palavra subjetividade em vão.
Atualmente usa-se muito a palavra subjetividade sem se dar conta que há uma distinção conceitual
entre subjetividade e sujeito. Não são conceitos sinônimos. Ou você fala do sujeito ou você fala de
subjetividade. Por quê? Porque por subjetividade eu estou entendendo um processo de subjetivação. Não
estou entendendo a estrutura, não estou entendendo uma essência, não estou entendendo um estado de
coisa, não estou entendendo uma identidade. O que a gente vai querer é pensar esses modos de produção
e quais são os modos de produção das ciências da subjetividade. Esse é o tema das nossas pesquisas e é
isso que a gente está querendo saber: como é que se produz subjetividade? Quais são os modos de
subjetivação no contemporâneo? De que maneira podemos, na clínica, entender que a nossa tarefa é
menos uma tarefa de interpretação (não tem que interpretar coisa nenhuma) do que uma tarefa de
experimentação, de construção desse processo de subjetivação? Como é que nós podemos, na clínica,
acompanhar o que iremos chamar de função autopoiética?
A biologia, por exemplo, foi um importante intercessor para mim... então eu penso o meu objeto a
partir da perturbação gerada pela função intercessora da biologia, a partir lá da teoria da autopoiése de
Maturana e Varela, tentando entender a subjetividade como uma operação autopoiética, uma potência de
criação de si e de criação de mundo. Desta forma, a clínica não pode se definir fora dessa relação com os
processos de produção, dos processos de autopoiése. O que necessariamente nos compromete, nos obriga
a uma experiência crítica dos especialismos, crítica dos regimes identitários, crítica de toda pendência a
formação dessas paróquias teóricas.
É importante fazermos uma experimentação crítico-analítica, ou seja, fazer análise, poder fazer
análise nessa concepção que eu vou estar tentando apresentar para vocês, necessariamente implica num
criticismo. Criticismo porque seremos forçados a submeter a crítica, a argüir criticamente este instituído,
este estabelecido. E o que é esse estabelecido que eu vou argüir? Não vale se só for o instituído e o
estabelecido do sujeito, do meu objeto, tem que ser o instituído e o estabelecido da própria clínica, quer

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dizer, não há como levar a frente o dispositivo clínico-político sem sermos capazes de colocar a clínica
em análise. Tem que botar a própria clínica em análise! Para pensarmos a relação com a política eu disse
que vamos estar pensando esses processos de produção... pensar no político aqui, entendo, é pensar
modos de produção da realidade. O velho Marx já tinha ensinado isso para nós pois, é lá que pegaremos
essa formulação do que seja o político, ou seja, o político é uma problematização crítica dos modos de
produção da realidade.
Pegaremos então um texto especial de 1857 que é a “Introdução Geral à Economia Política do
Marx” quando ele vai, exatamente ali, apontar para a centralidade da categoria de produção. A categoria
de produção ganha uma centralidade e, o que ele tá chamando de produção naquele momento, nesse
escrito histórico, é um dos primeiros sobre o tema da economia... ele vai indicar então a inseparabilidade
entre produção, distribuição e consumo. Essas três instancias são inseparáveis, o que faz com que
possamos pensar... e essa é nossa releitura de Marx: que há uma inseparabilidade - e é isso que nos
interessa destacar - entre processo de produção e produto. Por outro lado, todo produto comporta e traz
em si o seu processo de produção. Essa é a maneira como Deleuze e Guattari no “Anti-Édipo” definiram a
herança marxista. As máquinas desejantes inoculam a produção do produto, é assim que eles dizem lá. E
todo problema do capitalismo advém exatamente de uma separação entre produção e produto. Toda vez
que eu separo produção e produto eu reifico o produto, tirando dele a sua potência de autopoiése, a sua
potência de criação de si.
Bom, vamos lá para Marx tentar ver o que a gente tem lá: ele vai dizer numa posição crítica,
assumindo aquele criticismo moderno, que a produção é sempre uma produção material e, se há alguma
definição abstrata da produção, então ela se dá em condições materiais. Agora, se eu posso falar de
alguma produção em geral, produção abstrata, é nesses termos... - eu estou citando Marx - a produção em
geral é a abstração, porém uma abstração que tem um sentido enquanto põe realmente em relevo o
comum dessa abstração em geral. E o que é esse geral da abstração, quando digo uma produção em
geral? Estou falando de um comum, há uma dimensão comum da produção. Enquanto põe realmente em
relevo o comum e o fixa e remete a uma repetição, isso aqui que é importante... toda produção é material,
e se há uma dimensão abstrata da produção é no que há de produção comum ou de regime de repetição da
produção.
O que Marx está dizendo é que o que se repete aqui é a produção, esse geral, esse comum que está
sempre articulado com condições materiais, mas se há uma dimensão geral, é esta dimensão de repetição
da produção. As máquinas desejantes não param de produzir: essa é a idéia. O que repete é a produção ou,

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em outros termos, o que repete não é o produto, o que se repete é a produção, o que se repete não é o
mesmo do produto, o que se repete é uma potência de diferenciação, o que se repete é a diferença. É uma
idéia louca, não é mesmo? Mas na clínica nós estamos às voltas com as coisas loucas.
Esse trecho do Marx indica a idéia super importante que é a da produção como repetição. Logo, a
produção é esse processo permanente de repetição, só que essa repetição, no que eu repito, eu diferencio,
olha que interessante... repetir a produção aqui é diferir, porque produção, aqui, é produção de diferença.
Não é o objeto que eu repito! Se eu repito o objeto aí é a repetição do mesmo; se eu digo que o que eu
repito é o processo de produção do copo, que produz o copo, ele pode reproduzir outra coisa. O que eu
repito portanto, é um processo de diferenciação: toda repetição é a repetição da diferença, ou melhor,
repetição do diferir. A produção é um processo permanente de repetição e nesse sentido ela é primeira, ela
é a primeira e se mantêm. E queremos dar para ela o estatuto do inconsciente.
Pensar o inconsciente como essa repetição do processo de produção... é isso que não pára, que a
histérica não agüentava. É exatamente porque ela não agüentava isso, temos que dizer no indefinido... não
é à toa que Freud designou no indefinido isso que não pára de repetir. Como é que eu lido com isso que
não pára de repetir? Pode ser que eu não agüente... a histérica era uma que não agüentava, como é que ela
faz? Ela pára a produção, sabotagem... se afirmando numa conversão, se agarra no corpo, ela pára a
produção do inconsciente, ela não agüenta essa dimensão incessante da produção, ela não dá conta disso.
É muito interessante que essas idéias estão acontecendo ao mesmo tempo lá em Marx e em Freud. Eles
estão em absoluta sintonia aqui, os dois falando da mesma coisa. Quando afirmamos que no sujeito a
produção e o produto se dão no mesmo ato, de modo inseparáveis, estamos dizendo então que nele, essa
produção se repete. É essa repetição do processo de produção nele que garante que ele não seja idêntico a
ele, é a contradição que o Foucault fala lá... é isso... é porque nele se repete um processo de produção que
ele não pode ser igualzinho a ele. “A” tem que ser igual a “não-A”; “Eu” tem que ser igual a “não-Eu”, e
aí eu vou embora...
Por isso que eu falei que a idéia de identidade não serve para nós... na clínica, se for com essa idéia
de identidade, ferrou... não vai fazer nada, ela só atrapalha. Bom, se seguirmos as pistas que nos são dadas
por Marx e se pegarmos o modo como entendemos que Deleuze e Guattari relêem Marx... Deleuze
morreu deixando incompleto seu último projeto que era uma releitura da obra de Marx. Este era um livro
que ele estava preparando e que, lamentavelmente, nunca leremos, porque ele não pôde terminar. Se
formos ver o Anti-Édipo, lá no primeiro volume de capitalismo e esquizofrenia - que é o Anti-Édipo - o
segundo volume de capitalismo e esquizofrenia é Mil Platôs, o primeiro é o Anti-édipo; lá no Anti-Édipo,

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logo no início, quando ele vai descrever as máquinas desejantes, dizendo que as máquinas desejantes
inoculam a produção do produto, é o velho Marx, e eles completam: e trabalhar com as máquinas
desejantes é fazer uma psiquiatria materialista, eles dizem... estão explicitando o legado marxista... lógico,
que à maneira deles, uma forma muito especial de ler Marx. Bom, nós estamos querendo pensar a
subjetividade a partir destas contribuições, pensar a subjetividade como um processo de produção.

- Troca de fita -

(...) é uma operação infinitiva, um gerúndio, é um sendo, um se fazendo... essa operação infinitiva faz da
subjetividade um plano de subjetivação, um processo de subjetivação, que é um plano de constituição e
de engendramento de si, aonde o si é um efeito desse plano. Esse plano não é um plano de um si, mas o si
advém como efeito desse plano. Portanto, essa produção é uma criação sem agente criador. É o que nós
chamamos então, para aqui usar a expressão de uma amiga minha - Virginia Kastrup - de criacionismo
ateu: é preciso matar Deus, que já foi morto no séc. XIX e, morrendo, sou obrigado a pensar o
criacionismo sem agente criador, onde todo si é efeito da criação, criação de ninguém, criação que não é
fundada em nenhum si, nenhum agente.
Bom, se estou definindo assim a matéria com a qual trabalho, se na clínica nós trabalhamos com
uma coisa assim... necessariamente, a clínica - enquanto campo identitário - se desestabiliza e é essa a
idéia... por isso que eu disse que ela tem que ser transdisciplinar, por uma exigência do objeto. A clínica
se desestabiliza e a desestabilização deste campo faz aparecer o seu processo de produção. Há um
processo de produção da clínica e esse é o truque do clínico, o truque do analista. É você sempre... e vou
usar uma expressão do Foucault, você racha as palavras e as coisas e o Foucault no nietzscheanismo dele,
pegava o martelinho do Nietzsche e batia as palavras e as coisas no que elas têm de identidade para fazer
aparecer o plano de produção das palavras e das coisas. É o que ele chamou do plano das visibilidades.
Então você racha, e já nós vamos pensar isso como o ato analítico, isso é o ato analítico, é dar uma
paulada no objeto para fazer aparecer o processo de produção dele. O que me interessa é poder pensar o
processo de produção e esse processo de produção é um processo de produção não só do sujeito, mas da
própria clínica.
Bom, vamos então chegar e dizer agora - e eu acho que já podemos entender essa afirmação - que
há uma imanência da produção no produto, ou seja, a relação entre produção e produto é uma relação de
imanência e não mais uma relação de transcendência. Quando estou no criacionismo religioso, estou

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pensando uma criação que é transcendente... há um agente criador que é externo àquilo que ele cria e de
lá desse exterior ele cria. No nosso esquema agora não cabe mais essa exterioridade. Vamos dizer que a
relação entre produto e produção é uma relação de imanência, a produção é imanente ao produto. O que
eu tenho é essa processualidade, essa operação infinitiva e, revelar esse plano de produção, revelar essa
imanência da produção no produto, é revelar um plano de forças ou, como dirá Foucault, um plano de
poder, de relação de poder: são as relações de poder, de força, relações afetivas. Força aqui entendida
como afeto, afeto ativo e afeto passivo. Afeto ativo: poder de afetar. Afeto passivo: poder de ser afetado.
É a relação entre esses afetos e estas forças que caracteriza esse plano de produção.
Eu vou dizer que entrar em contato com esse plano de produção é entrar em contato com esse plano das
relações de força, das relações de poder e é estar fazendo micropolítica. Isso aí é que é o plano da
micropolítica. Não há como fazer clínica sem que possamos estar comprometidos com esse nível da
micropolítica. Bom, se é assim, somos convocados a intervir ou, por outra, define-se como demanda de
análise toda separação da produção e do produto. Isso que caracteriza uma demanda de análise, quando o
produto e a produção se separam, quando não tenho mais a imanência da produção no produto que, de
direito, tem que ter, tem que saber o que aconteceu ali naquele sistema para que essa potência de
repetição criadora tenha sido obliterada de tal forma a ficar uma repetição do mesmo, aí fica o sintoma:
“minha mãe não sei o quê... minha mãe não sei o quê...”, eu estou entendendo que a demanda de análise,
o que caracteriza essa convocação nossa enquanto analista, nós analistas somos convocados em que
situação: não há análise sem demanda, não há análise compulsória... só há análise com demanda de
análise. O que caracteriza uma demanda de análise? Agora chegamos a uma das definições possíveis do
que seria uma demanda de análise e, como vimos anteriormente, demanda de análise é uma separação
entre produção e produto. E o que significa isso? Se eu separei a produção do produto, de alguma
maneira, impedi que no produto pulse - e é a palavra pulsão mesmo - esse processo de produção que
repete para diferir, duas coisas se repetem, tem a repetição do mesmo. Repetição do mesmo é igual a
sintoma e, para que haja repetição do mesmo no sintoma, é preciso que a repetição diferenciadora tenha
sido comprometida.
Eu disse que isso é que o caracteriza a demanda de análise, é quando a repetição diferenciadora... o
que é repetição diferenciadora? É a imanência da produção no produto. Por alguma razão isso foi
obliterado e, no lugar da repetição diferenciadora, tenho a repetição do produto, tenho a repetição do
mesmo, tenho o sintoma. Toda repetição do mesmo pressupõe uma contenção, uma blocagem do processo
de produção. Quando você bloca o processo de produção, produz angústia. Esse processo de produção é

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pulsional, ele fica lá pulsando, se você segura isso, se você empata isso, não tem erro, produz angústia. É
exatamente porque repete o mesmo e não repete a diferença que produz angústia.
Bom, vamos chegar a uma outra afirmação aqui: que a experiência clínica é uma devolução do
sujeito ao plano de subjetivação. Enquanto ele não conseguir fazer isso, você manda ele voltar. Esse
processo de devolução do sujeito ao seu processo de subjetivação... eu estou querendo pensar com vocês
como sendo uma devolução ao plano do coletivo. É preciso que entendamos que esse plano de produção
não é um plano de um si, não é um plano de um mesmo, não é um plano de alguém, é o plano de muitos,
o plano da multidão, é o plano do coletivo. Por isso que nós entendemos que a clínica nunca é entre dois.
A clínica se dá num plano do múltiplo, somos muitos na clínica, por isso, e só por isso, que apostamos no
dispositivo grupal como estratégia de intervenção, fazer grupo terapêutico. Não porque no grupo
terapêutico eu possa ter o múltiplo, não é porque no grupo terapêutico eu atiço essa dimensão de coletivo
em mim, ou seja, isso que é imanente ao sujeito, que é seu processo de produção... vamos dizer que isso
que é imanente ao sujeito é um coletivo, é toda uma multidão, e por multidão entenderemos um plano de
forças, de afetos ativos e passivos.
Estamos entendendo todo um conjunto heterogêneo de vetores de existencialização. Então, nesse
plano aí, tem papai e mamãe, ou seja, tem a cena edípica, mas tem também a mídia, tem também a
violência, tem também a experiência com a droga, tem muita coisa, quer dizer, esse plano é múltiplo e
múltiplos vetores de existencialização concorrem para produção de um efeito subjetividade, essa é a idéia.
A clínica é uma devolução do sujeito a esse plano do coletivo no qual, imerso nesse plano, ele poderá
diferir, ele poderá virar outra coisa. Não podemos entender esse coletivo como um conjunto de
indivíduos, um somatório de indivíduos. Coletivo não é isso, coletivo não é um contrato entre indivíduos:
o coletivo diz respeito a esse plano de produção e ao que nesse plano de produção coexiste, enquanto
esses vetores de subjetivação, esses vetores de existencialização. Esse plano do coletivo é o plano da
diferenciação, é o plano da heterogênese. Esse coletivo é o plano heterogenético, essa é a idéia.

Anita Bernardes: É uma dúvida que eu tenho. Quando se faz dobras, tu estás conseguindo se lançar
nesse plano de produção de produção de subjetivação, ou se também tu entras nessas estratificações ?

EDUARDO: As duas coisas. Esse plano é plano mesmo, e esse plano então em sua absoluta
horizontalidade é povoado por estes vetores de existencialização que produzem nele tensões, e esse
tensionamento do plano pode ir gerando invaginações, dobras. Esse processo de dobrar é o processo de

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diferir, esse é um processo de subjetivar, mas ele também será um processo de assujeitar porque é nele, no
laço que ele faz, que eu me capturo como sujeito. Na verdade, esse pensamento, o pensamento da clínica
a partir do Foucault, do Deleuze e do Guattari, não promete nenhuma liberdade definitiva, não há
liberdade definitiva, não há Xangrilá, sobretudo por isso, porque todo processo de subjetivar é um
processo de assujeitar, tem um livro muito interessante do John Ashmann, sobre o Foucault, que ele vai
dizer que em Foucault há uma ética da liberdade. Só que essa ética da liberdade é o nominalismo, pois
toda liberdade alcançada, no ato de alcançá-la, passa a ser apenas um nome da liberdade e não mais a
liberdade ela mesma. Então é uma ética da libertação: você está constantemente se livrando... e se
livrando de quê, em última instância? De si mesmo. É nisso que nós vamos chegar ao final da aula hoje
para pensar a ética. Bom, clínico-política, não é? Agora clínico-estética, quer dizer, queremos pensar os
intercessores da clínica, de que maneira a política é um intercessor e faz com que eu reveja a minha
concepção de clínica? Agora, tem que pensar a estética como um intercessor e pensá-la assim é, talvez,
nos permitir chegar mais próximo desse sentido de autopoiése.
Eu tenho aqui a idéia de que o vivo se constitui como um ato de criação de si, uma poiéses de si: o
vivo é um poema, só que um poema que comporta poiéses. É um poema que vai se poetizando, é uma
autopoiése, vai dizer o Maturana. O Maturana chega de Harvard, volta para o Chile e vai dar aula na
Universidade de Medicina do Chile e chega com o pedestal da autoridade que Harvard dá ao pesquisador
e, da altura daquele pedestal, ele toma o maior tombo na singela questão que um aluno do segundo
semestre faz para ele. Ele está discutindo teorias sobre a origem da vida e apresentando as diferentes
hipóteses explicativas para a origem da vida. No final da aula um aluno levanta o dedo e faz um questão:
“professor, entendi perfeitamente as diferentes hipóteses acerca da origem da vida, mas eu tenho um
problema anterior, eu queria que o senhor me definisse a vida!”. Ele fica totalmente embaraçado, pede um
ano para o aluno, para ficar pensando e dar uma resposta e, durante esse ano, ele experimenta um
intercessor, um intercessor muito poderoso, que é uma amiga que está chegando do doutorado em
literatura em que ele fez um estudo de Cervantes, Dom Quixote. Ela falou que Dom Quixote fez da vida
uma poiése, ali veio a intuição... pensando D. Quixote como alguém que poetiza a própria existência, ele
inventa o próprio existir, ele fala : “bom é isso aqui, isso é a vida!”. D. Quixote é emblemático da vida,
ele nos ensina a entender o que é o viver! O viver é uma autopoiése, o viver é uma potência de criar para
si poemas existenciais. Desenvolve então toda uma teoria muito bonita, que é a teoria da autopoiése. Seu
livro de divulgação é de fácil acesso, de fácil leitura, é “A árvore do conhecimento”, do Humberto
Maturana e Francisco Varela.

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O que a gente está tentando entender é a vida como autopoiése, entender a subjetividade como
autopoiése e, para entendê-la desta forma, teremos que evocar a estética, evocar a arte. Tentar entender a
matéria com que trabalhamos, que é a subjetividade, e entender o modo como trabalhamos, que é a
clínica, a partir do intercessor arte. Usarei para isso um pintor, um pintor francês chamado Christian
Bonefeur. Esse autor é entrevistado por uma psicanalista para uma revista importante ligada a Paris VIII,
portanto ligada a esse grupo do Deleuze e Guattari. Então se a gente lê este artigo, essa entrevista do
Christian Bonefeur, talvez possamos melhor entender o que seria a operação analítica, o que seria a
análise a partir de dois operadores: o operador analítico e o operador articulacional. O operador analítico,
nós vamos entender aqui a partir das contribuições do Christian Bonefeur e, o operador articulacional,
vamos utilizar o pensamento do Guattari. O que é o operador analítico ou de que maneira eu posso
entender a clínica como uma produção de análise?
O Bonefeur está pensando em termos de artes plásticas, como pintor... e ele vai dizer que o modo
mais geral de ocupação da superfície é a divisão. A idéia é essa: para que o pintor crie é preciso o gesto
inaugural, que tira a superfície desse plano abstrato a partir de uma operação de divisão. Consideremos
aqui uma superfície abstrata, uma superfície infinita e essa superfície infinita sendo concretizada,
particularizada a partir de uma divisão. Como é que eu faço essa divisão? Essa superfície então se
particulariza. E vai dizer, o Bonefeur, que a particularização da divisão, da divisão do espaço, gerador de
uma superfície particular está na base da criação das formas, ou seja, o que é a forma? É um divisor
multiplicado. Cortei, dividi, dividi, dividi... a divisão seria o modo a partir do qual as formas emergem e,
desse espaço abstrato, desse espaço indiferenciado, advém um espaço particularizado, um espaço
singularizado, um espaço, digamos, invaginado, uma operação de divisão.
A questão que Bonefeur coloca é essa: o que acontece quando eu rebato um divisor sobre ele
mesmo? O que acontece quando, sobre esse espaço, eu rebato o divisor? Esse divisor produziu uma
delimitação de espaço. Quando esse divisor é sobre ele mesmo rebatido, então eu vou dividir o divisor.
Ele vai dizer que esta operação é uma operação de alterização da superfície... eu produzo na superfície o
seu outro, o outro da superfície advém dela. Qual é o outro da superfície? A profundidade. Vocês
percebem? Quando eu divido o divisor, eu produzo na superfície, que é uma superfície bidimensional, eu
produzo nela o seu outro. Que outro da superfície é esse? É a profundidade. É o outro da superfície na
superfície. O rebatimento do divisor sobre ele mesmo é, na verdade, a operação de alterização da
realidade, da realidade pictural. E essa alterização da realidade pictural é a inclusão na superfície do que
está fora dela. Por essa operação eu consigo, na superfície, produzir o seu fora ou, o seu fora na superfície

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é incluído. Há uma inclusão do fora na superfície.
Então, qual é o fora da superfície? É a profundidade. Conseguem acompanhar o raciocínio
imaginário. Pensem no quadro da Monalisa, onde eu tenho a figura da moça no primeiro plano e lá no
fundo eu tenho o burgo, a cidadezinha, a árvore. Esse quadro produziu por uma operação do artista, duma
mestria do artista, de rebatimento do divisor sobre ele mesmo, ele conseguiu produzir no quadro aquilo
que está fora do quadro. E o que está fora do quadro, o quadro entendido como superfície bidimensional?
O que está fora do quadro é a profundidade. Então vamos dizer que por essa operação a gênese, a geração
é a geração de uma fora inclusão. Vou ler o que diz o Bonefeur: “o que acontece quando divido esse
limite, divido o divisor... essa operação agora abre a superfície à sua alteridade, a profundidade. A
superfície não é mais concebida como seqüência de espaço em geral, mas como isso que, sobre a
determinação da intensidade e da profundidade, lhe confere temporariamente sua extensão. Eis onde eu
situo picturalmente a noção de alteridade, que pertence de início a filosofia”.
Esta noção ele reconhece que é um tema da filosofia, ele picturalmente situa nessa operação de
criação de um fora da superfície, na superfície pelo rebatimento do divisor sobre ele mesmo. Essa
profundidade está na superfície de tal maneira que sou forçado a superar uma dialética entre superfície e a
profundidade e pensar a profundidade como o outro da superfície na superfície. Essa profundidade vai
manter com a superfície uma estranha relação, que é de um outro incluído, é de um fora incluído. Bom, o
que isso nos interessa? Primeira idéia importante: essa operação aqui, que é uma operação pictural
moderna, nasce na renascença, que cria uma maneira de representar picturalmente a partir da
profundidade. Nós sabemos que antes da renascença tínhamos a superfície do quadro como uma
superfície de inscrição, tal como uma folha de papel aonde você escreve. O pintor, na realidade, era um
escriba. Ficava tudo chapado ali, porque ele estava escrevendo, ele não estava reproduzindo no quadro
essa experiência imaginária do homem que veio com a profundidade. Ele usava o quadro para escrever
uma mensagem e, a mensagem, tal como lá nos gregos, nos egípcios, um do lado do outro, não tem
profundidade nenhuma, aquilo ali é como fossem hieróglifos, é como fossem escritas. Agora o quadro
não é um quadro de inscrição, agora o quadro é um quadro que mimetiza a vida, ele é uma mímeses da
vida, ele é uma mímeses do olhar. E, exatamente porque ele é uma mímeses do olhar, eu vejo no quadro
tal como eu vejo fora do quadro, eu vejo o mundo, vejo as coisas em perspectiva. Isso é uma novidade da
modernidade.
De fato, essa mímeses do quadro é uma maracutaia porque, ali, esse fora não está no exterior do
quadro mas, no interior dele. É um fora incluído no quadro. Aqui, quando eu olho vocês e vejo que lá

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atrás tem uma pessoa, que aqui na frente tem outra, essa pessoa no fundo da sala está no exterior do plano
dessa pessoa aqui, ela está, de fato, no exterior do plano, no quadro não.
Vamos entender a clínica no exercício do operador analítico, de alguma maneira, repetindo isso aqui.
Como que repete isso aqui? O que é a intervenção clínica? A intervenção clínica é iniciada com o uso do
operador analítico e, o que é o operador analítico? Vamos entender agora o operador analítico como o
rebatimento do divisor sobre ele mesmo. O que significa isso? Em toda a minha experiência clínica com o
cliente, em todos limites que este cliente apresenta dele, os limites dele, ou seja, os lugares onde ele se
contorna, se delimita, ele aparece com uma identidade. É ali naquele limite que eu bato. Eu rebato o
divisor sobre ele mesmo. Nos limites do sujeito, lá onde o sujeito se quer se identificando, nos limites do
sujeito... é ali no limite, que eu... pá! Dou minha martelada, ou seja, rebatendo o divisor sobre ele mesmo,
pegaram a idéia? Só que nós sabemos que quando rebatemos o divisor sobre ele mesmo, produz que
efeito? Produz o efeito de surgimento de um outro plano. Para nós, homens modernos, esse outro plano
aparece como um plano mais profundo. O clínico ingênuo fica achando que está chegando mais no
fundo... bobagem, não tem profundidade nenhuma! Não há profundidade. Isso é um efeito
fenomenológico do homem moderno. Quando ele rebate o divisor sobre ele mesmo aparecem outros
planos e esses planos se compõem num perspectivismo, porque o homem moderno é assim, não é? Cada
novo plano que se apresenta, ele vai indo para trás; produzindo a sensação ou a crença de que eu estaria
chegando mais no fundo, o que seria o núcleo patógeno, do que seria a estrutura do sujeito... e se eu for
nessa, a análise é interminável.
Então, o que nós estamos entendendo? Primeiro, que esse é o operador da clínica, o operador
analítico e que o operador analítico é o rebatimento do divisor sobre ele mesmo. Segundo, o resultado do
rebatimento do divisor sobre ele mesmo é o aparecimento de outro plano. Esse outro plano aparece
fenomenologicamente como mais profundo. Terceiro: o procedimento é: ou você acredita que, de fato
você está se aprofundando... e aí você entra numa roubada, isso aí é um equívoco clínico, achar que está
chegando lá no fundo, está chegando lá no fundo coisa nenhuma! O que você está fazendo?! Você está
forçando, pelo exercício do operador analítico, o processo de produção do sujeito, e aí ele fica produzindo
planos... aí bateu ali, e ele diz: “ah! é... o meu tio...ah é, tinha fazenda...”. E você acha que ele está lá na
fazenda... não! Ele está produzindo coordenadas existenciais para ele. Aquilo ali é efeito de um ato de
produção de planos existenciais, resultado dessa operação analítica de rebatimento do divisor sobre ele
mesmo. Bom, se eu não entro no engodo fenomenológico, se eu não acredito que esses planos se
aprofundam, o que eu faço? Eu os coloco lado a lado. Essa é a estratégia. Ele vai batendo e, a medida que

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vai batendo, vão aparecendo planos... e ele não está revelando nada no sentido de desvelar a verdade do
sujeito, ele está produzindo narrativa, vai batendo, vai produzindo narrativa e esses planos vão
aparecendo. Você vai colocar esses planos que não serão tomados como plano mais verdadeiro, você vai
colocar esses planos um ao lado do outro e não um atrás do outro. Colocamos, portando, um do lado do
outro, vencendo essa tendência ao perspectivismo. Você fica com uma multiplicidade de sistemas de
referência. Aí tem a tia lá, aí tem a fazenda, aí tem os bichos, cavalo, andar a cavalo... e andar a cavalo
tem haver com encontrar com a prenda... vão aparecendo coisas... e a partir desse sistema de referência
que estão sendo produzidos, não estão sendo desvelados, ou seja, você está atiçando a produção imanente
ao produto, sacou? Sacou o que você está fazendo? É isso que você está fazendo, está atiçando o processo
de produção.

- Toca de fita -

(...) aí entra o outro operador que não é mais o operador analítico, mas é o operador articulacional. Esse
sistema de referência, você começa a propor - e isso não é sugestão, isso não é ortopedia - a partir da
certeza que lhe compete a experiência clínica. Dito de outra forma, sejam os sistemas de referência que
estão aparecendo ali... você vai propor a articulação, outras articulações entre esses planos, de tal maneira
que coordenadas existenciais outras possam advir; e aquele que chegou “ui, ui, ui, ai, ai, ai,” dentro de
uma mesma coordenada existencial, ganha a possibilidade, agora, de construção de outras coordenadas
existenciais pela articulação desses sistemas de referências que foram produzidos e multiplicados por
efeito do rebatimento do divisor sobre ele mesmo, por efeito do operador analítico. Em última instância,
para concluir, o que nós temos? O que nós temos é esse operador analítico, multiplicador do sistema de
referência, gerador de um fora incluído. Na verdade o que ele faz é incluir no plano, que é sempre
espacial, o seu outro radical. E qual é o outro radical do plano espacial? É o tempo. Na verdade, que
experiência é essa? É a experiência dele compor tempo... pela dimensão de abertura... porque,
exatamente, o que ele não podia tomar para si, a cada abertura temporal, por isso cria. É poder contatar
esse outro radical do plano, do plano espacial. Qual é o plano espacial? Eu, Eduardo, doutor em
psicologia, professor da UFF, pai de José Miguel e do Chico, olha quanta delimitação espacial... com a
carteira de identidade x... isso é pura delimitação espacial. E é nos limites dessa delimitação espacial que
eu vou batendo, e bater ali é, em última instancia, permitir que esse sistema de referência espacial
experimente o seu fora, e o que há de mais radicalmente fora dele é o tempo. Ele experimenta o tempo

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como tempo do processo de produção de si. Deu para pegar? Vamos lá, por partes.
Vocês entenderam que o Christian Bonefeur está dizendo que, quando ele rebate o operador da
divisão sobre ele mesmo, cria-se na superfície o fora na superfície? Qual é o fora da superfície? É a
profundidade. Então eu crio na superfície o seu outro. Vamos considerar que pela repetição desse
operador você multiplicou essas superfícies e a multiplicação da superfície é acompanhada de uma
capacidade sua de não se deixar levar por essa crença de que aquilo vai se aprofundando. Você bota tudo
do lado. Se você colocou tudo de lado, o que você tem? Você tem ali, não a verdade do sujeito, você não
desvelou a verdade do sujeito, você não encontrou finalmente o núcleo patógeno dele mas, você atiçou
nele a capacidade dele mesmo produzir sistemas de referência. E o que é a capacidade de produzir
sistemas de referência, senão a capacidade de um sistema espacial experimentar esse outro radical do
espaço, que é o tempo. E o que é o tempo senão a experiência do processo de produção? Você não pode
produzir, está no processo de produção se não tiver o tempo. É no tempo, é na experiência do tempo que
você se transforma. É porque temos uma relação com o tempo que experimentamos o devir, que
experimentamos um processo de autopoiése. É porque há em nós uma abertura temporal que eu posso não
ser idêntico a mim mesmo, eu posso me superar. Então estou dizendo, em última instância, que pela
repetição do operador analítico eu permito que, naquele sistema espacial, entremos em contato com o que
há de mais radicalmente outro, de mais radicalmente fora desse sistema espacial. Inicialmente, esse fora
era a profundidade, mas agora não é a profundidade, é o tempo. É o tempo a partir do qual a experiência
com a qual eu posso lidar com o processo de produção, e vou embora... e o tempo não tem profundidade,
tem só abertura, só estende o plano, o plano vai se estendendo. Para Deleuze essa é a grande experiência
do ser, o ser é o tempo. E na clínica, em última instância, o que acolhemos é um padecimento do ser, ou
seja, alguém que de alguma maneira se afastou do ser, ou se afastou dessa dimensão temporal do ser.
Deleuze já dizia: ontologicamente é muito mais importante o cinema que a fotografia; a nossa existência,
quem chega no consultório, é um álbum de fotografia, aí ele fica lá: “mamãe...mamãe...”, ele não tem a
imagem em movimento que permite que ele saia da imagem da mãe e vá para uma outra imagem. Ele não
tem uma experiência cinematográfica de si, ele tem uma experiência fotográfica de si, ele está fechado
naqueles limites. Ficou claro?
Então agora o terceiro ponto: Clínica e ética. É para fechar agora: o operador analítico faz
multiplicar o sistema de referência. Aí você tem um monte de sistemas de referência... aí chega uma hora
que você, com o teu cliente, vai começar a propor, articular esse, com aquele... você começa a articular
certos sistemas de referência para ver se cria outras coordenadas existenciais. Eu estou pegando isso do

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Guattari, é o Guattari que chama de articulacional. Nós vamos usar na clínica propondo articulações entre
aqueles sistemas de referência que foram produzidos, perceberam? Vamos agora ver a relação entre
clínica e ética.
Bom, nós estamos entendendo a matéria com o que trabalhamos, estamos entendendo essa matéria
como um processo de produção de subjetividade, um processo de subjetivação. Nós estamos entendendo
que esse processo de produção necessariamente desestabiliza o que no produto se quer como identidade.
O que é então, a fórmula lógica da identidade?

A é igual a A e A é diferente de não-A

Isso aqui vai ser o enunciado inaugural da racionalidade ocidental, lá no séc. III A.C. com a
metafísica grega. Naquele momento há o golpe, e esse golpe é o que a gente pode chamar de o golpe da
identidade ou, o princípio do pertencer excluído. Outra forma de dizer, como afirmou Parmênides, “o ser
é; o não-ser, não é”. Portanto, não pode haver o ser não sendo. Ou bem o ser é, ou bem o ser não é. Isso
que é o princípio da identidade. E esse princípio da identidade que está lá associado a Parmênides foi o
que chamamos de um golpe e que foi aplicado sobre toda uma tradição que doravante entenderei como
uma tradição pré, antes de todas... esse golpe é divisor de águas, criando identidades e como todo divisor,
cria identidades. antes e depois do golpe.
Antes do golpe eu tenho o racionalismo pré-socrático e depois do golpe eu tenho a racionalidade
metafísica. Esta racionalidade metafísica é a racionalidade do pensamento que não desrespeita o princípio
da identidade: o ser é, o não-ser não é. E o ser é diferente do não-ser. Essa idéia aqui foi uma idéia que
veio refutar, recalcar o que havia de pensamento filosófico antes, e um representante desse pensamento
anterior - Heráclito - dizia: “o homem não pode se banhar duas vezes no mesmo rio porque não há duas
vezes o mesmo rio, assim como não há duas vezes o mesmo homem.” Homem é tal como o rio, o homem
é fluxo. E se tal como o rio o homem é fluxo, se ele não pode se banhar duas vezes no mesmo rio
significa dizer que, para nele algo fluir, tem que ser idêntico a não-ele. É exatamente porque ele comporta
essa dimensão de não ser no ser que o ser detêm.
O homem não pode se banhar duas vezes no mesmo rio porque não há duas vezes o mesmo rio. O
que isto significa? É que rio não é igual a rio, porque se o rio é igualzinho ao rio, há duas vezes o mesmo
rio. Não há! E o homem não pode se banhar duas vezes no mesmo rio porque também não há duas vezes
o mesmo homem. Essa é a maneira de pensar sem o princípio da identidade e isto pressupõe

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necessariamente uma abertura temporal do ser. O ser é esse fluxo, é essa abertura temporal. Se é assim e,
se estamos entendendo a subjetividade como essa abertura temporal, temos que pensar qual é a ética da
clínica e qual é a nossa posição frente a essa experiência de subjetivação. Se a subjetividade é um
processo de produção não fechado nos limites de um princípio da identidade, não fechado nos limites de
uma identidade, tenho que supor que este processo está constantemente numa atitude de distinção com
relação a ele mesmo. E é isso que Foucault vai chamar de ethos: ética. O que é ética para Foucault? Ética
para Foucault é ethos, quer dizer, atitude. Qual é a atitude frente ao ser? Qual é a atitude, no caso, frente a
subjetividade, frente ao homem? Um texto imprescindível chama-se : “O que são as luzes”, de 1983, que
é um comentário de Foucault do texto do Kant. Foucault retoma o texto Kantiano, comenta-o e, no
comentário, irá definir o que é o ethos filosófico. E ele vai dizer que o ethos filosófico, ou seja, fazer
filosofia, é atiçar as potências críticas da modernidade. Foucault é um desses autores refratários a idéia de
uma pós-modernidade. A questão para ele não é localizar o limite da modernidade mas, sim, localizar as
forças contra-modernas, que são as forças reacionárias.
Então a modernidade é criticismo, e esse criticismo é uma atitude, e essa atitude ele chamará de
ethos filosófico e esse ethos filosófico ele definirá: é uma ontologia histórica de nós mesmos. É linda a
idéia dele. O que é que ele fez a vida dele inteira? Uma ontologia histórica de nós mesmos. E fazer uma
ontologia histórica de nós mesmos é, podendo de alguma maneira nessa experiência crítica, desestabilizar
o que somos para podermos pensar, sentir e fazer diferente. Fazer uma ontologia histórica de nós mesmos
é ser capaz de criticar o que somos para que, do que somos, nos distanciarmos... ou seja, de sermos
capazes de entrar em contato com essa dimensão que em nós é de não-ser, entrar em contato com esse
fora em mim incluído. Foucault vai dizer que essa experiência é sempre uma experiência crítica naquela
dupla acepção lá... é com ele que aprenderemos esse duplo sentido da crítica: argüir o que somos, pôr em
questão o que somos, pôr em análise o que somos e consequentemente agüentarmos o tranco da crise. E
se é assim, fazemos então o que Foucault chamará de atitude experimental. O ethos filosófico é uma
atitude experimental. É aquela atitude a qual você é convocado quando as suas garantias, ou aquilo que
você tinha como você mesmo, já se desestabilizou, só restando experimentar... e o que estamos dizendo é
que a clínica é sempre experimental e estamos sempre às voltas com esse sistema que vai se bifurcando e
que, consequentemente, vai se desestabilizando e tornando possível outro mundo. Agora, esse outro
mundo dele, não há qualquer garantia. Consequentemente só me resta, frente à ele, uma aventura
experimental. Esse experimentalismo da clínica, essa maneira de estar lançado na clínica, é uma maneira
de estar vivendo no limite. Naquele sentido lá do Bonefeur, é no limite que a gente vai... e lá no limite

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você não só vai, como você bate.
Então, neste texto de Foucault ele vai dizer que o ethos filosófico pressupõe duas atitudes: uma
atitude limite e uma atitude experimental. Isto quer dizer que é preciso ser capaz de habitar o limite, ser
capaz de forçar o limite, ser capaz de quebrar o limite... analisar o limite e, ali, inevitavelmente, ser
forçado a experimentar. Então ele vai dizer que o ethos filosófico é a atitude limite e a atitude
experimental. Se é assim então, o que é a clínica? A clínica, para nós, é uma operação complexa, e uma
operação complexa que talvez possamos entender a partir de uma rápida etimologia da palavra. “Clínica”
vem de Klinicós e esta é uma palavra que deriva de duas palavras gregas: Klíne e Klíno. Klíne = leito;
Klíno = debruçar-se. Klinikós = movimento de debruçar-se sobre o leito do doente.
Neste sentido então, há um primeiro sentido na clínica, que é a clínica enquanto acolhimento de
uma demanda de análise, de um sofrimento, um debruçar-se sobre o leito do doente... me debruço sobre o
leito de quem demanda tratamento. Mas a clínica não pode se conter com essa atividade; clínica não pode
ser acolhimento, clínica não pode ser tão somente acolhimento, embora não possa haver clínica sem
acolhimento. Ela tem que acolher, mas ela não pode só acolher, se ela só acolher, não é clínica. Então a
gente está entendendo que desse verbo aqui, Klíno, deriva uma outra palavra grega que nos interessa para
pensar clínica, a palavra é Klinamen. Esta palavra é que vai aparecer na filosofia atomista, os gregos em
especial, Epicuro, e depois um descendente latino dele, que é Lucrécio, cria uma cosmogonia, uma teoria
da origem do cosmos, uma teoria da origem do universo. É nessa teoria cosmogônica que Epicuro propõe
o sentido da palavra Klinamen, indispensável aqui para fecharmos o sentido da palavra clínica.
Qual é a tese de Epicuro? Qual é a tese cosmogônica de Epicuro? O cosmos ele nasce do Caos,
Guattari gosta disso, pegando uma palavra valise do Joyce, caosmos. O importante da clínica é a gente
poder entrar em contato com os processos caógicos. O que são processos caógicos? Quando com a
experiência com o caos se gera novos cosmos... e Epicuro dá uma explicação do caosmos, ele diz: na
origem, são os átomos. O que são os átomos? São unidades indivisas, são as unidades últimas, primitivas,
dotadas de massa e essas unidades indivisas, primitivas, dotadas de massa, se precipitam porque dotadas
de massa, se precipitam no vazio; então eu tenho átomo e vazio. No vazio, esses átomos se precipitam
porque possuem uma massa. Mas dirá Epicuro, se é assim, eu não explico o cosmos, eu só explico o caos
porque essa precipitação dos átomos no vazio é uma precipitação caótica... eles caem todos
paralelamente, ali não advém a ordem, eu tenho vários caos caindo, vários átomos caindo. Como eu posso
explicar a geração da ordem? E ele fala: é preciso supor além da massa algo mais no átomo... o átomo
possui massa e possui uma tendência a inclinação. Talvez seja isso que Freud quis explicar como conceito

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de pulsão: tendência a inclinar-se e, essa tendência a inclinar-se, ele chamou de Klinamen. O inclinar-se
sobre o leito do doente virou uma tendência a se inclinar do ser. O ser tende a se inclinar e, no que ele se
inclina, no exercício dessa tendência a inclinação... os átomos se agenciam, os átomos se encontram. No
encontro dos átomos, no agenciamento dos átomos, fornam-se os coletivos, fornam-se as multiplicidades,
que elas são as geradoras do cosmos.
A tese do Epicuro está pressupondo no ser uma tendência clinâmica, ou seja, uma tendência ao
desvio. O átomo tende a se desviar da sua queda livre, ele tem uma tendência nele de se desviar e, no que
ele desvia, se encontra com o outro... quando ele se encontra no outro, ele se agencia e na hora que ele se
agencia, ele forma a ordem. O cosmos se forma. Entendendo isso vamos dizer que a clinica é Klíne e
Klíno; clínica é leito e o inclinar-se sobre o leito que demanda pelo tratamento. Mas a clínica tem que ser
também Klinamen, a clínica tem que ser também um atiçamento dessas forças a inclinação do ser. Para
que ele possa se desviar do que ele é, para vir a ser outra coisa. É como Klinamen, é o sentido clinâmico
da clínica que nos interessa ressaltar nessa articulação entre clínica e ética. E é exatamente porque a
clínica se alia com essas forças clinâmicas da subjetividade... o ethos dela, a atitude dela é uma atitude
limite, vivendo o limite, porque é lá no limite que você encontra as potências de inclinação. É a atitude
limite e a atitude experimental, porque no exercício desta inclinação vai dar no quê? Não sei, não sei no
que vai dar. Portanto, só nos resta cartografar esses territórios existenciais que vão se compondo a partir
da devolução do sujeito ao seu processo de produção ou, a devolução do sujeito a essa dimensão do
coletivo, onde esses átomos ou essas forças que nele habitam, estão ali em atividade clínica, umas se
cruzando com as outras para possibilitar prometer, outros mundos possíveis. Ta bom, não é? Depois nos
continuamos...
Alcançar isso que prometíamos lá desde o início, o título do nosso encontro: o dispositivo clínico-
político e as modulações do capitalismo - as redes do contemporâneo. Para fazer este percurso fomos
obrigados a fazer alguns esclarecimentos iniciais de natureza epistemológica e ali colocamos então o
impasse que o pensamento contemporâneo experimenta no projeto de uma retomada da aliança ou na
possibilidade de criticar ou de pôr em questão aquilo que durante vários séculos na modernidade se
definiu como condição de possibilidade para o conhecimento científico, a saber, a quebra da aliança.
Nós começamos a colocar esta questão no nosso primeiro módulo, uma questão de natureza
epistemológica, colocamos ali o advento das ciências da subjetividade e o modo como essa ciência esteve
atrelada a um ideal de inteligibilidade, e esse ideal fazia dela um projeto sempre inconcluso, um projeto
sempre inacabado. Esse inacabamento do projeto então, e foi esse o nosso objetivo no primeiro encontro,

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foi afirmado. Tentamos montar uma estratégia de afirmação desse inacabamento de tal maneira que
aquela condição arquipelágica do campo, aquela dispersão do campo, antes de ser um demérito é o seu
próprio mérito. Tentamos justificar que essa dispersão do campo é de direito, não só de fato, em função
da natureza mesma de seu objeto. Foi então assim que a gente se sentiu à vontade para passar para o
segundo módulo, quando fomos discutir mais detalhadamente o sentido que dávamos para esse objeto,
entendido doravante como um plano de subjetivação. E entendemos esse nosso objeto não como uma
essência, não como uma estrutura, não como uma identidade, não como um estado de coisa, mas como
uma processualidade, e precisamos lançar mão da noção de produção que vamos buscar em Marx para
pensarmos o que é próprio dessas maquinas desejantes, que tem a produção inoculada imanente no
produto. Foi isso que nós fizemos, discutimos o estatuto da subjetividade e, conseqüentemente, a partir
desta tentativa de definição do estatuto da subjetividade, num esforço de distinguir estes conceitos que só
por um equívoco são tomados como equivalentes: os conceitos de sujeito e o conceito de subjetividade.
Depois desse esforço podemos discutir um outro estatuto a ele relacionado, que é o estatuto da
clínica. E pensamos a clínica por definição, marcada também por essa incompletude, por essa abertura
constituinte e propusemos a distinção entre multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e
transdisciplinaridade, a tal ponto que chegamos a afirmar num enunciado categórico que toda clínica é
transdisciplinar, de direito, toda clínica é transdisciplinar. Tentamos mostrar como esta afirmação
pressupunha uma definição da experiência clínica entendida como experiência crítica e tentamos entendê-
la como um criticismo. Para pensá-la desta forma, chegamos a afirmar que a experiência clínica não pode
se efetivar sem que possamos submeter a própria clínica à análise. Essa experiência transdisciplinar ou é
essa desestabilização dos territórios identitário que nós estamos chamando de experiência crítica, ou
atitude crítica. Nesse criticismo fomos levados a pensar a inevitável, inapelável relação da clínica com a
não-clínica ou, por outro lado, entender que o ato clínico não pode ser pensado sem que possamos, da
clínica, extrair o não-clínico.
Foi essa relação entre clínica e não-clínica que discutimos hoje pela manhã; por não-clínica
privilegiamos três domínios: o da política, o da estética e o da ética. Na política fomos discutir a clínica
como um plano de produção, um plano de produção da subjetividade, um plano de produção ou um modo
de produção da existência onde concorrem diferentes vetores de existencialização, um plano de produção
que é ele sem um agente produtor, é um plano de produção no seu anonimato e é um plano de produção
onde concorrem forças, afetos, ativos e passivos. Poder de ser afetado: afetos passivos e poder de afetar:
afetos ativos. E é essa multiplicidade de afetos que coexistem no plano de produção da existência que nós

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então entendemos como sendo a dimensão micropolítica da clínica. É micropolítico na medida em que a
clínica não se faz senão a partir de uma devolução do sujeito ao seu processo de subjetivação ou
devolução do produto ao seu processo de produção ou poder extrair a produção do produto. Ao pensar
assim, nós necessariamente temos que legitimar uma certa indiscernibilidade, indeterminação do campo
da clínica ou uma certa relação intercessora entre a clínica e a não-clínica.

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MÓDULO III
AS REDES NO CONTEMPORÂNEO

Falamos, portanto, da política como esse processo de produção. Depois, da estética como esse
processo de criação, um processo de criação que entendemos como um processo de poiéses, de
autopoiéses. Lançamos mão de Maturana e Varela, lançamos mão da descrição do artista acerca do ato de
criação e falamos também dos dois operadores da clínica: operador analítico e operador articulacional.
Para finalmente chegarmos então a relação entre clínica e ética, pensando ética como ethos, pensando
ética como atitude e uma atitude que se dá - na expressão do Foucault - como uma antologia histórica de
nós mesmos. Dito de outra forma, uma certa experiência no limite, no limite de nós mesmos, uma atitude
limite, como ele dirá, para ali podermos pensar, sentir e fazer diferentemente. O ethos filosófico, como
diz Foucault, se realizando numa dupla atitude: uma atitude limite e uma atitude experimental. Dissemos
que o dispositivo clínico-político não pode se fazer senão a partir dessa atitude, dessa maneira de se
posicionar frente à realidade de modo crítico. Longe então, de afirmarmos uma pós-modernidade: o que
nós temos é o compromisso de combatermos as forças contra modernas, entendendo por moderno,
exatamente este criticismo. Foi isso que nós fizemos hoje de manhã.
O que nós vamos fazer agora é o último passo da nossa argumentação que, sem dúvida, peca pelo
seu excessivo esquematismo. O que nós vamos fazer agora é pensar essa experimentação clínica no
contemporâneo, pensar a relação dessa experimentação clínica no contemporâneo e, pensar o
contemporâneo, é pensar as modulações do capitalismo. Bom, em última instância, o que estamos
afirmando e defendendo é que a clínica, o dispositivo clínico grupal, é sempre uma experiência no
contemporâneo e do contemporâneo. É nesse contemporâneo, enquanto experiência de desestabilização,
de desequilibração, que vivemos entre o passado e o futuro e esse momento é o momento da criação. O
contemporâneo, portanto, é pôr o locus da clínica, um estranho topos da clínica, porque o contemporâneo
não persiste, o contemporâneo é pura passagem. Diremos que aí a gente encontra a utopia da clínica, o u-
topos da clínica. A clínica se dá sempre como a experiência do u-topos, do não-lugar, é a possibilidade de
habitação desse não lugar. E pela experiência com esse não-lugar, pela experiência com esse u-topos, que
novos mundos possíveis podem ser realizados e produzidos.
Bom, para pensarmos esse contemporâneo na sua utopia, para pensarmos as utopias do
contemporâneo, é preciso que entendamos qual é o seu cenário ou, frente ao que o contemporâneo

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apresenta na sua potência crítica, na sua força de resistência... e o contemporâneo vive o embate com as
modulações do capitalismo ou o modo como esse capitalismo se modula na atualidade. A questão toda
portanto é como resistir, nesse exercício ético de uma ontologia histórica de nós mesmos, como resistir ao
capitalismo neoliberal? Entender que isso é uma atitude clínica, não há como pensar a clínica sem
pensarmos essas formas de resistência. Para isso vamos ter que discutir um pouco o que seria este
capitalismo atual, nesta sua versão neoliberal, que é uma versão paroxística, e chegaremos então ao
momento da história do ocidente, o momento da modernidade, quando o projeto liberal parece ter
alcançado a sua versão última e definitiva. Essa versão se dá na forma de uma planetarização do princípio
do capital. O interessante é podermos sintonizar as formas de resistência a esse projeto de planetarização
do capital e encontramos muitas formas de resistência: em Seatle, em 1999, contra a organização mundial
do comercio; em São Paulo, em Washington, contra o FMI e a ALCA; em Gênova, contra o G8 e aquelas
cenas dramáticas que foram expostas aqui no Fórum Social Mundial, as cenas dramáticas do assassinato
de Carlo Giulliane e também, como não poderia deixar de ser, Porto Alegre.
Porto Alegre se coloca como uma importante experiência de utopia e contra-poder planetária, e é
isso que eu queria tomar para que possamos avançar na nossa discussão, porque há aqui, e nós lemos lá
no estatuto do Fórum Social Mundial, esse fórum que se cria aqui em Porto Alegre em janeiro de 2001,
com uma defasagem de 30 anos com relação a um outro fórum, que é o Fórum Econômico Mundial, em
Davos, na Suíça, onde são decididas e orquestradas as políticas neoliberais. Há aqui, e é necessário que
isto possa ser discutido, uma intrigante e desconcertante sintonia entre o poder e o contra-poder, uma vez
que ambos se querem como planetários. Essa planetarização do poder e do contra-poder se faz na forma
de um projeto de internacionalização, que é um projeto que se dá a partir da estratégia das redes. Não há
como pensar tal projeto, seja ele na sua versão de poder neoliberal, seja ele sua versão de contra poder de
um Fórum Social Mundial, senão pela via das redes. Mas o que nos intriga e nos desconcerta é essa
sintonia entre coisas que, a rigor, deveriam ser radicalmente distintas. Esse desconcerto, de maneira
nenhuma nos coloca em dúvida frente a evidência de que entre o Fórum Econômico Mundial e o Fórum
Social Mundial há uma diferença. A questão é entendermos qual a diferença. Entendermos qual diferença
que se dá aí implica podermos entender como funcionam essas redes que poderíamos chamar de sistemas
reticulares. Mas qual a diferença entre esses sistemas reticulares?
Nós vamos partir da intuição do poeta que nos permitirá disparar nossa reflexão e o avançar da
nossa reflexão acerca desse problema, que eu estou chamando de intrigante e desconcertante. Isso vai
estar numa matéria do Luís Fernando Veríssimo, e ele escreve comentando um outro artigo do Le Monde

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Diplomatique, que apresenta o Fórum Social Mundial. O Luís Fernando Veríssimo diz: Porto Alegre é
uma Davos quente ou, o Fórum Social Mundial é uma globalização de baixo para cima. Ele só diz isso. O
compromisso dele é só com a intuição, o nosso é com a demonstração. Ele nos ajuda a partir, a dar a
partida da nossa expedição. Portanto, vamos equacionar assim o problema: qual a diferença entre uma
rede fria e uma rede quente? Ou, qual a diferença entre uma planetarização que se faz de cima para baixo
ou de baixo para cima? Para responder a estas questões podemos lançar mão de muitas contribuições do
pensamento contemporâneo que se dedica, em diferentes setores, ao tema das redes. Seja lá na biologia,
onde eu estudei isso, nas pesquisas em neurofisiologia e imunologia, o estudo das redes linfocitárias, seja
na física, no estudo dessas redes que organizam na forma de sistemas longe de equilíbrio, seja na
informática, com as redes de comunicação e de informação. Particularmente, eu fiz um percurso que é no
estudo da cognição, é um pouco aquilo que na primeira aula falei de forma muito condensada e que me
levou quatro anos para pesquisar e eu falei aquilo em dez minutos. Peço desculpas pelo excesso.
O que eu estudei foi o modo como, no campo dos estudos da cognição, o modelo artificial
apresenta. Ele se quer como um novo modelo para pensar a cognição e a subjetividade, que é um modelo
artificial, o modelo computacional, esse modelo computacional peca por ainda ter uma definição
seqüencial e centralizada do processamento da informação. Ali nos nossos computadores, nos nossos
micros, a incapacidade deles em simular efetivamente as nossas capacidades cognitivas se dá pelo fato de
que lá, o esquema de processamento da informação é arborescente, é um algoritmo que pressupõe passos
a serem dados numa seqüência linear. O que os estudos atuais das neurociências mostram, sejam do
sistema nervoso, seja do sistema imunológico, é que isto não se confirma no funcionamento desses
sistemas, que é paralelo, distribuído e acentrado. Isso é o que nós chamamos de rede. Rede, portanto, é
um processamento da informação, é uma maneira de organização da realidade num sistema, que é um
sistema distribuído, paralelo e, sobretudo, um acentrado. Esse caráter acentrado faz com que cada nó do
sistema, cada ponto, aja como um conector para a emergência de um efeito de realidade, que não pode ser
explicado na sua relação com nenhum desses pontos. Isto significa que a realidade emerge pela
concatenação, pela cooperação, pela articulação desses pontos. Neurônio não pensa; o cérebro pensa.
Nenhum neurônio pensa, mas na concatenação dos neurônios produz-se efeito de pensamento. É um
modo de articular aquela assembléia de células, que é o modo reticular, que é o modo em rede, que
produz o efeito cognitivo, ainda que cada termo da rede não seja ele, em si, cognitivo. Cada termo da rede
é pré-simbólico, é pré-individual, é não-cognitivo, mas o efeito geral é cognitivo. Num sistema reticular
então, funciona assim: distribuído, paralelo e sem centro. Agora, o fato dele não ter centro não quer dizer

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que nesse sistema, em alguns pontos desse sistema... o sistema se nodula, o sistema se adensa, diremos
que ele se concentra, que pode se concentrar em alguns pontos dessa rede. Essa concentração da rede em
alguns pontos produz, naqueles pontos, diferentes efeitos.
Vamos denominar que existam efeitos frios e efeitos quentes. Portanto, existem concentrados da
rede fria e existem concentrados da rede quente. O World Trade Center e o Pentágono são dois
concentrados da rede fria do capitalismo mundial integrado. O que significa dizer que são dois
concentrados? Vamos pensar no evento de 11 de setembro, o que aqueles aviões de carreira americanos,
aqueles Boeings americanos de uma companhia americana, levando passageiros americanos, o que eles
apontaram quando entraram em rota de colisão com o WTC e o Pentágono? A princípio, eu poderia supor
que eles entram em rota de colisão com um centro, inclusive porque é essa a pretensão que aquelas torres
tinham... é muito interessante que toda a genialidade ficcional de um Spielberg não foi capaz de evitar
essa crença megalomaníaca, de que eles estão no centro do planeta. E no filme Inteligência Artificial,
depois do derretimento da calota polar, quando toda a superfície da terra é redesenhada pelo aumento do
volume da água, Nova Iorque é inundada, mas ficam de fora as duas torres. Por que há uma pretensão de
serem o centro? Quando vemos os efeitos gerados pelo ataque a este centro, entendemos que, na verdade,
era menos um centro e mais um concentrado da rede do capitalismo mundial integrado que era acertado.
Tanto é assim que a resposta beligerante não foi uma proposta beligerante no confronto entre estados: não
foi o estado americano em confronto com o estado afegão; foi a convocação de uma polícia internacional,
que é a OTAN, uma convocação de toda uma humanidade, e eles vão chamar de guerra humanitária...
exatamente no pressuposto do “estar comigo ou estar contra mim”. E estar contra mim é estar contra o
quê? Não é estar contra o estado americano, é estar contra a humanidade. Então, o levante é um levante
da humanidade, e é a humanidade que tem que invadir o Afeganistão. O que foi acertado não foi um
centro, mas um concentrado da rede, de tal maneira que a rede como um todo, a rede do capitalismo
mundial integrado se levanta, querendo para si a identidade da humanidade.

Pedrinho Guareschi: Eu assisti diretamente a queda das torres, então... eles tiveram que recorrer a
alguém para dar uma explicação, para legitimar, porque estava todo mundo sem saber o que fazer... então
o primeiro comentarista que eles chamaram disse exatamente isso: é uma questão da humanidade, é uma
agressão à humanidade.

EDUARDO: E a humanidade então, que a gente agora entende que, na verdade, por humanidade, se

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designa o capitalismo mundial integrado... essa humanidade se nodula ou se concentra economicamente
no WTC e militarmente no Pentágono. São pontos de nodulação, são pontos de concentração dessa rede
fria. E o que caracteriza o concentrado na rede fria? O que caracteriza o concentrado na rede fria é como
que um agravamento, uma agudização do princípio da rede fria. E qual é o principio da rede fria? O
principio da rede fria é o principio da equivalência universal. Essa rede fria é uma rede do capitalismo
mundial integrado e esse capitalismo mundial integrado se define como um projeto de equalização dos
socius. Ocorre um projeto de alisamento dos socius na busca de uma efetiva realização do principio do
capital. E o que é o principio do capital? O principio do capital é o princípio da equivalência universal. Se
ele é um principio da equivalência universal, o bom funcionamento, o definitivo funcionamento... o
funcionamento paroxístico do capital pressupõe um absoluto alisamento dos socius, de tal maneira que,
nesse alisamento, por uma equalização da realidade, por uma equalização da existência, a lógica do
mercado encontra como que as condições ideais para o “deixa rolar”.... só que a condição para que tudo
role bem é a homogeneização; para que tudo role bem é preciso aparar as estrias, não é só no corpo das
mulheres que se faz isso, é no corpo do planeta. Não pode haver nenhuma irregularidade. É como se fosse
uma lipoaspiração do planeta; é um alisamento do planeta... e os homens agora tirando os pêlos, todos de
pêlo liso, é um alisamento do socius, um alisamento da existência. A cena é esta: estou eu “zapeando” na
TV e passa por um programa daquela moça, Galisteu, aí havia uma dupla caipira, que agora não é mais
uma dupla caipira, é uma figura híbrida, é uma figura country, de identidade muito imprecisa... enquanto
aquela dupla cantava, ela discutia acerca dessa nova moda e perguntava se na platéia havia algum rapaz
que gostaria de se depilar. E um rapaz foi. Então, em cena aberta, o rapaz deitado numa maca depilando o
peito enquanto a dupla caipira cantava... e aquela moça Galisteu passava de lado para outro. Uma cena
absolutamente grotesca.
Bom, a idéia, portanto, é essa: o modo de funcionamento da rede fria é um modo de funcionamento
expansionista, extencionista. É um funcionamento por internacionalização. Esta internacionalização é de
que tipo? É uma internacionalização por equalização, pois é a realização do socius numa subfunção real
do socius, é uma realização definitiva do princípio de equivalência universal. Consequentemente, essa
rede funciona produzindo um efeito de homogeneização do socius, um efeito de equalização da realidade:
a idéia de que eu poderei ter uma grande aldeia global e um planeta todo alisado, sem nenhuma estria, de
tal maneira que o capital e a informação possam deslizar nele sem encontrar nenhum obstáculo.
Nesse tipo de funcionamento da rede fria os concentrados são concentrados que tem a pretensão de
centro. Eles possuem todo um autoritarismo que é próprio de quem se acredita ocupando o centro, e esse

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autoritarismo, essa pretensão de ocupação do centro se faz na forma de uma atividade sobrecodificadora
da existência, ou seja, esses centros mantêm com os outros nós da rede uma relação sobrecodificadora.
Isto ocorre de tal maneira que o resultado disso é uma surpreendente atividade em rede heterônoma. Cria-
se, portanto uma heteronomia.
Os concentrados aqui produzem efeitos de heteronomia, entendendo heteronomia como uma gestão
a partir do outro, uma lei, uma regra imposta a partir do outro. Significa dizer que a rede tem, em alguns
nós, onde ela se adensa e se concentra, um efeito de heteronomia. Na química chamamos isto de
concentrado: todo sistema puro que se produz a partir da separação de minérios, isso é um concentrado.
Por exemplo, eu posso ter um concentrado do ouro a partir de uma utilização do mercúrio que me ajuda a
separá-lo daquilo que não é ouro, ou seja, o concentrado é uma versão pura de um minério. Vamos dizer
então que os concentrados das redes frias são concentrados que se querem como se extraindo, se
destacando da rede. É como se eles tivessem horror da mistura, horror da conexão, é como se eles
estivessem na rede mas, com a pretensão de serem transcendentes à ela, não suportando o que é próprio
da rede, que é justamente esse sistema de hiperconectividade ou, esse sistema de misturas. Então, o
concentrado na rede fria é um concentrado fundamentalista. Ele busca uma versão pura da rede, tentando
eliminar tudo o que nela há de impuro. Parece-me que no evento de 11 de setembro foram
fundamentalismos que se mereciam: concentrados da rede fria do terror e da rede fria do capital mundial
integrado que entravam em rota de colisão.
O que seria, então, o funcionamento de uma rede quente, como funciona uma rede quente? Uma
rede quente funciona igualmente por um sistema distribuído, um sistema paralelo e sem centro mas,
existem pontos que são concentrados da rede, uma vez que ela se nodula em alguns pontos. Agora, qual é
a função desse concentrado? A função desse concentrado numa rede quente não é uma função
sobrecodificadora, a função desse concentrado numa rede quente é o que garantiria para ela mesma a sua
autonomia. É essa concepção de rede que foi formulada na década de 70, na Universidade do Chile, por
Maturana e Varela. Quando eles propõem a idéia de rede autopoiética, essa rede autopoiética, eles
definem como um sistema reticular, um sistema sem centro, um sistema sem gestor, onde toda a realidade
dela advém, o si e o mundo advém dessa rede, de tal forma que no seu funcionamento não há um agente
controlador, não tem efetivamente um centro. E o funcionamento dessa rede então, é um funcionamento
gerador de autocriação, de auto-organização. E o que é essa auto-organização? É a capacidade de
produção das próprias condições de produção do sistema. O sistema produz as suas próprias condições de
produção e a produção das próprias condições de produção do sistema necessariamente confere a esse

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sistema autopoiético uma autonomia: é um sistema autônomo. O que estou querendo destacar é que
podemos pensar a partir do modelo da autopoiése, da teoria da autopoiése.
Primeiro: pensarmos em uma alternativa teórica que nos permite dar conta da criação, pensar a
criação.
Segundo: definindo o vivo, definindo a existência como um sistema criativo, um sistema
autopoiético, eu vou pensar o vivo, pensar a existência necessariamente como uma máquina do tempo.
Tenho que pensar a existência, necessariamente, como que atravessada pelo tempo, atravessada por essa
abertura temporal, por onde o sistema cria a si mesmo. Para criar a si mesmo ele tem que poder extrair
dele o não-ser; ele tem que se superar enquanto sistema identitário. Lembrando o que tínhamos visto
acerca da formulação de Heráclito: o homem não pode se banhar duas vezes no mesmo rio porque não há
duas vezes o mesmo rio assim como não há duas vezes o mesmo homem. Tal como rio, o homem é
fluxo... e ser fluxo significa dizer que A é igual a não-A . Porque se A for igual a A, fechado no esquema
da identidade, eu não posso pensar a criação... senão uma criação na transcendência, senão a criação a
partir de um agente criador, ele mesmo incriável. Toda aposta do pensamento contemporâneo é pensar
uma criação radical. Para tal, é preciso pensar em uma criação sem agente criador, que é um ato de
poiéses puro, de tal maneira que todo agente dele advém, não sendo ele, esse ato, ato de um agente.
Dizemos que a melhor maneira de pensarmos esse sistema é como uma máquina do tempo, uma
experiência do tempo, uma experiência de pura poiése. Então fazemos a distinção entre repetição da
produção e reprodução do produto, ou seja, repetição da diferença e repetição do mesmo. A autopoiése
significa a possibilidade de uma repetição da diferença. O que eu repito é a diferenciação.
Terceiro: essa descrição da máquina autopoiética ou da maquina do tempo, se faz com uma
definição rizomática da vida; essa máquina do tempo funciona como uma rede, o efeito de autopoiése é
produzido por um sistema hiperconectivo, ou seja, o sistema autopoiético é um sistema coletivo. Toda
produção é a produção de um coletivo, toda experiência no tempo necessariamente é uma experiência
com o coletivo. Então, o terceiro ponto aqui enumerado é afirmar que essa máquina autopoiética é,
necessariamente, um funcionamento por rede, rizomático, um funcionamento reticular.
Quarto: essas redes autopoiéticas, que são redes auto-organizadas e sistemas circulares... enquanto
sistemas circulares são sistemas paradoxais. A quarta característica me impõe dizer que a habitação do
tempo, estar no tempo ou estar nessa criação radical é estar no paradoxo, é poder habitar a utopia, é estar
no não-lugar. Vamos pensar isso mais concretamente num exemplo da biologia, vamos pensar na situação
da célula... para Maturana e Varela a célula é a primeira unidade autopoiética, por isso que eles se opõem

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a geração de 50, Jacob e Monet, que ganharam o prêmio Nobel em genética, porque supunham que a
vida finalmente se explicaria a partir desse programa que se daria, que eles descobrem lá do
funcionamento físico-quimico do núcleo da célula. Essa biologia dos anos 70 é uma biologia contraria
esse pressuposto da quebra da aliança, como disse o Monet, lá no “Acaso e necessidade”, em 1970. Eles
estão dizendo que, ao contrário, esse sistema vivo é um sistema criador, é um sistema poiético e
paradoxal.
Vamos pegar então a primeira unidade viva, que é a unidade célula, a unidade celular: a célula. O
que é a célula? A célula é um conjunto de componentes que estão dissolvidos num citoplasma e que se
segrega a partir de uma membrana citoplasmática. É a membrana citoplasmática que distingue a célula da
não-célula, a célula do outro, do ambiente. E dentro dela, no interior dessa membrana citoplasmática que
a célula tem o seu metabolismo que, por sua vez, gera energia, e essa energia produz suas próprias
condições de produção. Dentre as produções que ela realiza, dentre os produtos dessa produção -
pasmem! - é produzida a membrana citoplasmática. Temos aqui um paradoxo: a célula produz a sua
membrana citoplasmática sem a qual a célula não é célula. Isso é um paradoxo! Como é que eu posso
dizer que a célula produz a sua membrana se, sem a membrana, a célula não é célula? O que eles vão
mostrar então, é que o ato de criação é um ato paradoxal. Pensar uma criação radical, pensar uma criação
na imanência, pensar a criação sem transcendência, pensar a criação sem agente criador, necessariamente,
é poder habitar a utopia ou, poder habitar o paradoxo e ficar nesse não-lugar que o Varela designa a partir
do dilema do ovo ou da galinha? Esse não-lugar é o lugar da produção da realidade, de si e do mundo.
Bom, todo sentido, não sei qual é a questão que vocês estão levantando, mas eu diria que todo sentido
advém desse ato de criação. O sentido pressupõe esta distinção entre a célula e a não-célula e essa
distinção é resultado desse ato paradoxal, desse ato puro de criação. Então podemos chegar e dizer que as
redes autopoiéticas, enquanto redes auto-organizadas, são sistemas circulares - de tal maneira que eu não
posso resolver o que veio primeiro, se é o ovo ou se é a galinha - que são os sistemas circulares e que
possuem um funcionamento paradoxal. E o que significa dizer tudo isto? Significa dizer que a rede, a rede
do vivo e o próprio vivo, é efeito dessa rede. Nesse sentido, podemos pensar que as redes não estão
apoiadas, não possuem apoio, que essas redes são sistemas sem fundamento. A maneira do Varela pensar
isso é no zen-budismo: ele vai lá para... no zen-budismo, que ele vai achar que nas filosofias orientais, há
condições para a gente pensar com mais presteza esse pensamento sem fundamento, ou seja, poder pensar
uma criação sem agente criador, sem fundamento.
Olha só esse esquema aqui: o pensamento de Maturana e Varela é tributário da segunda cibernética.

63
Na verdade, o Maturana foi um importante colaborador de Hein Von Foster, que foi um importante
ciberneticista da segunda geração da cibernética, aquela revolução computacional que eu estava falando
para vocês na primeira aula. Dentre os seus importantes propulsores da revolução computacional está o
Winner, Norbert Winner que, em 1943, vai propor uma ciência neológica, uma ciência novata, que ele
chamará de cibernética. Então, a ciência neológica, que ele pensa com essa palavra derivada do grego,
tibericus, que é timão... então, a ciência da orientação do comportamento, da orientação da ação ou, uma
ciência dos comportamentos propositivos.
Como explicar os comportamentos propositivos? Ele propõe um esquema que será revolucionário,
que é o esquema do feedback. O que é um esquema feedback? É um sistema que recebe energia de
entrada, informação, recebe energia de entrada que Winner vai chamar de input, que é processado na
máquina de tal maneira que vem a articular essa energia do input, como uma meta, como um gol. A partir
do processamento desse input na pressuposição de uma meta, há uma modificação da relação do sistema
com o ambiente, que ele chama de output. Dirá então que os sistemas cibernéticos são dotados de
causalidade circular e denominará isto de anel de feedback ou servo mecanismo. A energia do output
volta como energia do input. Ele chamou isso aqui de feedback ou, retroalimentação. Então, quando ele
chega a essa definição de sistema propositivo, e esse era o nome do artigo de 1943, “Behavior Proposities
and Teleology” (Comportamento, Proposições e Teleologia), ele queria propor um esquema operacional
que desse conta dos comportamentos propositivos.
O que foi mais impactante é que esse sistema operacional, essa definição operacional que ele dava para
sistemas propositivos, era passível de ser aplicada a sistemas orgânicos e sistemas inorgânicos. Eles
começam a criar, a partir desse esquema aqui, máquinas propositivas: o radar, o míssil... em 1943, vocês
podem imaginar quem está financiando isso tudo aqui? É o exercito americano. E são vultuosos
investimentos feitos na cibernética pelo impacto que ela irá causar enquanto tecnologia de guerra. Os
radares, mísseis, etc. vão ser todos desenvolvidos a partir disso aqui. Com esse esquema, essa é a primeira
geração da cibernética, eu pensei a subjetividade, a cognição, os sistemas propositivos, como sistemas
input, processamento de informação... imaginem o impacto disso nos EUA: eu abri a caixa preta!
Finalmente o behaviorismo caiu, eu abri a caixa preta e mostrei qual é lógica e ainda dei uma definição
operacional para aquilo que Watson disse, não tem chance... a única maneira de se mexer na caixa preta é
especulando. Fazendo especulação, não há como dar definição operacional daquilo que ocorre entre o
estímulo e a resposta. Ele chegou e deu a definição operacional do processamento mental que se dá entre
o estímulo, que ele vai chamar de input, e a resposta, que ele vai chamar de output. Então é o golpe de

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misericórdia em Watson e Skinner. E isso vai ganhar muita força e ter um valor heurístico enorme. Só
que a primeira geração dos ciberneticistas, é como se essa minha geração não tivesse dado conta da
radicalidade da tese de Winner, da radicalidade da intuição de Winner, e eles ficam pesando o sistema
cognitivo, essa subjetividade máquina. Doravante, isso aqui é o artificialismo, não tem mais como pensar
uma distinção entre natureza e artifício: é o artificialismo, somos - todos - artifício.

- Troca de fita -

(...) eles esqueceram disso aqui, é como se tivessem esquecido o mais importante da intuição de Winner,
que é a idéia de causalidade circular. Essa idéia que Von Foster vai dizer: “pessoal, vocês não entenderam
nada, o sistema não é representacional, não há representação nenhuma nesse sistema!”. Essa é a novidade
de Von Foster, é o fim da idéia de representação, acaba com a idéia de representação. Ele dirá: o sistema
não é representacional porque no lugar da abertura o que você recebe é a energia do output que volta.
Com a idéia de causalidade circular há uma definitiva ruptura com essa idéia, que é antiquíssima, de que
conhecer é representar, que conhecer é processar uma realidade que está fora do sujeito. Não! Conhecer é
o que resulta de uma causalidade circular. É o que Maturana e Varela vão chamar de clausura
operacional: o sistema é circular, e se o sistema é circular ele é iformacionalmente fechado, não há
representação nele. Eles acabam com essa noção de representação. O que Von Foster vai fazer é agravar,
intensificar a idéia de Winner de causalidade circular.
Deu para vocês entenderem isso aqui? Isso aqui obviamente é uma coisa que os estudos da cognição
e os estudos da representação... mas o que é importante aqui? É preciso entrar nessa discussão que talvez
fuja um pouco ao nosso interesse aqui. O que é interessante aqui de pensar? É que esses sistemas, a partir
de Von Foster, o sistema vivo, o sistema subjetivo, é um sistema marcado por fechamento operacional,
marcado por clausura operacional, marcado por uma causalidade circular. Para eles então, esse
fechamento informacional do sistema, o caráter circular do sistema, confere ao sistema uma autonomia,
ele é autônomo. Então o que se dá no sistema, o que acontece nele, não pode ser explicado a partir de
alguma coisa que não é o sistema, essa é a idéia. No modelo tradicional da representação você tem
estados internos e esses estados internos são tributários de estados externos.

Júlio Hoenisch: Tudo bem, só tem uma coisa que complica um pouco... quando eu tento transpor isso
para a linguagem, por exemplo, e procuro compreender um organismo que abandone completamente a

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representação... como é que pode haver linguagem sem representação?

EDUARDO: É linguagem poética, é poiéses. Olha só Júlio, é só você pegar os estudos da pragmática... é
pegar a linguagem como ato de fala, pegar linguagem como locutório, pegar a linguagem como produção
de realidade... quando o juiz diz: a sessão está aberta! Ele está representando o quê? Ele está pondo
realidade, ele não está representando coisa nenhuma. Quando o padre diz: vocês agora são marido e
mulher. Eles eram marido e mulher antes?
A partir desse esquema aqui, a linguagem é sempre pragmática. É o pragmatismo da linguagem, são os
nossos aliados. Para pensarmos na linguagem... porque a linguagem sempre foi o campo de defesa da
representação. Não, de jeito nenhum...

Júlio Hoenisch: Acho que sim, podemos pensar em termos de pragmática, e acho que existem elementos
que são assignificantes, sem dúvida nenhuma. Agora, pelo menos para mim, em termos cognitivos, ainda
não consegui entender como é que um sistema pode desprezar completamente a representação?

EDUARDO: É difícil mesmo. Agora, Júlio, isso é uma crença... é porque você acredita nisso. Assim
como pode ser minha também... não é também descartar completamente a representação, mas é não tomá-
la como modelo de explicação da subjetividade e da cognição.

Pedrinho Guareschi: Mas é que o contrário também é crença.

EDUARDO: Sem dúvida.

Pedrinho Guareschi: É o que nos provoca é exatamente esse não conhecido... para poder ir agarrando...
tudo é provisório...

EDUARDO: É por isso que a gente pensa, não pára de pensar; e vamos debatendo. Vamos lá! Bom,
vamos voltar então... é um texto bem pequeno, quer dizer, são as conferências que ele dá lá na Itália e que
foram traduzidas na edição 70 como “A competência ética”. Ali ele faz essa articulação da teoria da
autopoiése, da noção de autonomia com o zen-budismo. É um livro pequeno, que você pode entrar em
contato com essas digressões que o Varela faz com o zen-budismo. Ele era muito simpatizante do zen-

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budismo.
É esse sentido então, de rede autopoiética, ou, de rede de auto-organização: um processo de
organização que nos permite ir até o contemporâneo, voltar para o contemporâneo e entender as
possibilidades de resistência. Eu acho que já podemos compreender que a noção de rede é uma noção que
comporta esperança e perigo. É essa rede que planetariza, que internacionaliza pela homogeneização, que
planetariza, que homogeneiza pela sobrecodificação, produzindo esse efeito de alisamento dos socius. E é
essa rede também que diremos, na sua versão quente, que intensifica os processos de heterogênese, que
intensifica os processos de autopoiése... então a noção de rede é esperança e é perigo. Por isso é
importante que possamos fazer a distinção entre rede quente e rede fria para fazermos nossas apostas. Não
basta ser rede, de jeito nenhum, não basta ser rede.
Então, como funcionam os concentrados da rede e que efeitos de existência decorrem dessas redes?
Essas são as duas atenções, concentrados sobrecodificadores ou não, efeitos de homogeneização ou de
efeitos de heterogênese. Eu tenho que saber como funciona a rede. Então, o problema... a gente retorna ao
problema. Qual é o problema? Bom, se a vida... e esse é o problema que Foucault nos deixa, produzindo
um enorme mal estar e pessimismo para muitos, embora Foucault tenha insistido em dizer que nele o
pessimismo era produtivo. Mas no contemporâneo detectamos muito freqüentemente versões
improdutivas do pessimismo. E que pessimismo é esse gerado pelo pensamento Foucaultiano?
Bom, se nós estamos entendendo a vida, o vivo, como esse funcionamento rizomático, como essas
redes de heterogênese, de autopoiése, redes criadoras... e se o capitalismo mundial integrado se faz por
uma vampirização, por uma capacidade de anexação dessas redes, uma capacidade de captura dessas
redes, diremos que, no contemporâneo, assistimos a uma preocupante mímeses da vida pelo capital. É o
que Foucault chamou de biopoder, é a idéia de biopoder: o capitalismo mimetizando a vida, o capitalismo
se dando na imanência da produção. O que vamos acompanhar... as discussões genealógicas de Foucault a
partir de 1976: “Vigiar e Punir”, “Em defesa da sociedade”, que são os seminários que ele dá no College
de France e os textos da história da sexualidade. Vamos entender que há uma modulação que ele insinua,
mas que serão os pós-foucaultianos que intensificarão essa afirmação. Dentre eles, o próprio Deleuze, nos
dois pequenos textos que ele comenta aquilo que ele chamou de sociedade de controle... estão lá naquela
parte de política do “Conversações”.
Qual é a idéia então? Foucault está fazendo uma genealogia dos exercícios de poder, uma analítica
do poder... ele está fazendo um estudo das tecnologias do poder e identifica na modernidade a formação
de uma tecnologia do poder que ele chama disciplinar. Essa tecnologia do poder se daria em dois eixos:

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um, pouco mais antigo, nascente na segunda metade do século XVII, e que ele chama anatomopolítica
dos corpos; uma política sobre os corpos, uma política de docilização dos corpos, de esquadrinhamento
do espaço e do tempo na formação de existências disciplinares. Ele detecta também, no início do século
XVIII, o aparecimento de uma outra expressão dessa tecnologia moderna do poder que ele chama de
biopolítica das populações. A anatomopolítica dos corpos e a biopolítica das populações, é assim que ele
expressa, sobretudo na última aula do seminário de 1976 em defesa da sociedade, já está traduzido aqui
para o português. Nesse texto então, Foucault vai mostrar que a disciplina se dá por procedimentos
distintos e na anatomopolítica dos corpos, realizada pelas instituições disciplinares. O que é
anatomopolítica dos corpos? É o que ele vai chamar de ortopedia da moral. E o que é essa ortopedia da
moral? É um trabalho que o Deleuze designará como um trabalho de modelagem: eu docilizo os corpos
modelando-os. E essa modelagem dos corpos se faz através das instituições disciplinares. A escola, a
família, o hospital, a caserna, a prisão... nessas instituições disciplinares, o que você têm? Você tem uma
relação de transcendência entre o foco de emanação do poder e o ponto de incidência dele, ou seja, há
uma distinção e uma separação entre o lugar de onde emana e o lugar onde esse poder incide, por
exemplo, o corpo da criança e a instituição escolar. E na instituição escolar, que dela emana, que é o
poder de educar, um poder de docilizar corpos infantis, exercendo um poder que ele vai dizer: um efeito
transcendente.
Bom, o que acontece com as modulações do capitalismo? Sobretudo com a leitura que vão fazer os
pós-foulcaultianos, em especial os italianos. É importante Toni Negri, é importante Lazaratto ... são os
autores que estão repensando esse legado foulcoaultiano. O que acontece então com as modulações do
capitalismo seria uma outra relação entre fonte de poder e ponto de incidência do poder. Essa relação não
é mais de transcendência, mas sim, de imanência. O que significa dizer isso? Significa dizer que o poder
disciplinar emana das instituições disciplinares sobre corpos que chegam à estas instituições já modelados
por outras instituições. Então, chega na escola um corpo formatado pela família, assim como chega na
prisão um corpo formatado na caserna... assim, chega no hospital um corpo formatado pela prisão, pela
caserna, pela família, pela escola, ou seja, nessas instituições disciplinares o poder incide nessa sua força
de modelagem sobre um corpo já formatado. Por isso que a operação é uma operação de ortopedia. Só
pode haver ortopedia sobre corpos já formatados.
O que nós verificamos nas modulações do capitalismo? Nós verificamos um desmoronamento das
barreiras e dos muros das instituições disciplinares. Sai o asilo, sai a escola, esgaça-se a família, quer
dizer, as instituições disciplinares vão perdendo suas fronteiras, vão perdendo seus limites. Esta perda

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desses limites das fronteiras disciplinares tem como correlato um outro tipo de operação do poder, um
outro tipo de exercício do poder, uma outra tecnologia do poder que esses autores contemporâneos
chamarão de poder de controle e não mais poder disciplinar.

Júlio Hoenisch: Na medida em que temos estes mesmos instrumentos de poder, digamos, da forma, isso
não quer dizer que não hajam relações de violência e de tortura tão grandes no contemporâneo... esse
conhecimento, digamos, do foco das sociedades de controle e das instituições tradicionais, embora a
visão desta situação não transforme a sociedade em um lugar menos violento e nem transforme estes
lugares em lugares mais aprazíveis de se estar ou em situações menos violentas.

EDUARDO: É... esses lugares tendem a desaparecer. Com reforma psiquiátrica, no caso, tende a
desaparecer asilo.

Júlio Hoenisch: É, mas no caso das prisões eu não sei se nós podemos ser tão otimistas...

Rosane Neves: É que a lógica de controle, a lógica disciplinar, permanece...

Júlio Hoenisch: A lógica sai dos muros da prisão ...

EDUARDO: Mas aí a gente tem que entender também o que significa sair dos muros da prisão... sair dos
muros da prisão significa dizer que esta lógica de controle incide agora sobre uma matéria não formatada.
É o que Deleuze chamará de modulação... não é mais modelagem, é modulação... então o que acontece
aqui? Qual é a distinção de Zoé e Biós? Zoé, em grego, é vida nua, é o viver. Biós é a vida qualificada.
Então o guerreiro, ele tem o Biós, que é diferente do Biós do filósofo, que é diferente do Biós do político e
assim por diante... porque neles, a vida se qualificou como vida de guerreiro, vida de filósofo e vida de
político. Mas no guerreiro, no filósofo e no político há uma dimensão de puro viver, que é o que
Agambem chama de vida nua. O que a gente assistiria no mundo contemporâneo a partir das indicações
que nos são dadas por Foucault e desenvolvidas pelos pós-foulcaultianos era um certo exercício de poder,
uma certa tecnologia do poder que se caracteriza por se dar na imanência do Zoé. Se esse poder se dá
agora como um biopoder, se esse poder se dá agora imanente ao próprio viver, isso parece nos levar a um
pessimismo paralisante. Se a clínica se define como uma devolução dos sujeitos ao seu processo de

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subjetivação, uma devolução do sujeito ao plano do coletivo, uma devolução do sujeito a rede
autopoiética, rede autopoiética que se confunde ao próprio viver e, se esse viver está dominado, não há
clínica possível. Esse é o impasse. A questão é como entendermos as possibilidades de resistência, daí
esse ter se tornado o tema do contemporâneo: como resistir?
Processos geradores de diferença, como resistir? Nós temos que entender que a única maneira de
podermos traçar a nossa resistência, de definirmos a nossa resistência, é a partir da nossa capacidade de
analisar e entender o modo como o capitalismo mundial integrado mimetiza a vida ou o modo como esse
capitalismo mundial integrado se faz como rede, e uma rede que parece imitar a vida. Assim, entendendo
o modo como ele se dá como rede fria, poder produzir efeitos de aquecimento da rede para ele resistir. O
capitalismo, nessa sua versão neoliberal, nessa sua versão contemporânea, é um capitalismo que se
volatiliza. O que significa isso? Significa a suspensão de todas essas barreiras, de todas essas
territorialidades, de todos esses topos, de todos esses lugares... assim como eu posso abrir mão do
hospital, posso abrir mão da escola, posso abrir mão da prisão... então a idéia é: de que maneira, diante
desse capitalismo que se volatiliza, e a gente tem que entender como é essa volatilização do capital,
poderemos traçar esquemas de resistência e pensar estas formas de resistência?
Bom, estamos agora nessa última etapa tentando pensar qual é o modo de experimentarmos o
contemporâneo e aí, nessa experiência do contemporâneo, poder definir as nossas formas de resistência.
Dissemos que a clínica se define como uma devolução do sujeito ao seu processo de subjetivação: ela não
pode se fazer senão na sua capacidade de extração do não-clínico da clínica. Poder extrair o não-clínico
da clínica é, na verdade, poder experimentar a clínica nessa relação intercessora com a política, com a
estética, com a ética. E também é interessante pensarmos a clínica como essa experimentação, como
plano de produção, inclusive o plano de produção da clínica... não só o plano de produção do objeto da
clínica, mas o plano de produção da própria clínica. Se assim for, não poderemos pensar uma atitude
clínica que não seja também pela via de colocação em análise a própria instituição da clínica, pensando
esta clínica necessariamente relacionada com processos críticos, que são processos geradores de
diferenciação.
A clínica está relacionada com o contemporâneo no que o contemporâneo tem de instabilidade, no
que o contemporâneo tem de força disruptiva do instituído, do estabelecido na geração de mundos
possíveis. Se é assim, chegaremos a um ponto de entender no contemporâneo um funcionamento em rede
que, a um só tempo, comporta esperança e comporta perigo. Comporta perigo uma vez que essas redes
frias do capitalismo mundial integrado são produtoras de uma repetição do mesmo, de uma

70
homogeneização dos socius, que são redes produtoras de uma equalização da existência. Se é assim
mesmo, não há como pensarmos os processos de produção da subjetividade sem que sejamos capazes de
pôr em análise o modo hegemônico de como o sujeito moderno se constitui e ali se captura como uma
figura sintomática, forçada a repetir a si mesmo. Estou querendo dizer que, no contemporâneo, nós
encontramos um funcionamento em rede, temos essa situação constrangedora de duas formas de
planetarização, duas formas de funcionamento em rede que se igualam pela estratégia que usam para a
sua expansão, estratégia reticular, mas que se distinguem pelo modo como funcionam e pelos efeitos que
delas advém, redes quentes e redes frias.
Dissemos que a clínica é uma devolução do sujeito ao seu processo de produção. Se ela é uma
forma de articulação ou de potencialização dessa dimensão autopoiética da subjetividade, temos que
entender que é também uma forma de resistência a esses mecanismos de “standartização”, a estes
mecanismos de padronização, de homogeneização da existência. Como é que se dá atualmente esse
processo de “standartização”: ele se dá de uma maneira sinistra, porque se faz pela via de uma tecnologia
do poder dita do capitalismo mundial integrado que se realiza por uma vampirização, por uma mímese do
próprio viver... é como se o capitalismo pudesse ter chegado ao poder de homogeneização, o poder de
“standartização” pudesse ter alcançado essa dimensão nua do viver... e é esse o sentido que Foucault teria
dado para o conceito de biopoder. Se o poder é um poder que agora se faz na imanência dos corpos, se o
poder agora é um poder que se apropria exatamente desse plano de invaginação, se o poder está se dando
no próprio movimento de criação da diferença, de subjetivação, temos que entender que há uma sinistra
sintonia entre a subjetivação e o assujeitamento. Se for assim então, como resistir? A idéia do Foucault é
que as formas de resistência não podem se realizar sem que, por uma atitude ética, estética e política, eu
tome para mim a responsabilidade da criação da minha própria vida. Através das práticas de si, fazer da
vida uma obra de arte, numa estética da existência, fazer da vida uma obra de arte e, ao invés de
experimentar essas forcas de assujeitamento, tomá-las como forças de diferenciação. Diferenciação de
quê? Diferenciação de mim e, poder viver naquela atitude limite, onde experimento coisas até então para
mim desconhecidas... a atitude experimental seria uma dimensão absolutamente indispensável para o
funcionamento do dispositivo clínico-político. Tomar a vida como obra de arte, agir sobre essas práticas
de si, apostar numa estética da existência, que seria, em ultima análise, uma aposta clínico-política.
Agora, a questão é como realizar, como poder efetivar essa resistência?
Nós estamos entendendo que essa resistência no contemporâneo não pode deixar de se fazer senão
por uma maneira de experimentar as redes de planetarização, uma maneira de estar se conectando no

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planeta. É a idéia que essa hiperconectividade possa se fazer de uma maneira quente, de tal forma que um
efeito de heterogênese daí decorra. A idéia de uma devolução do sujeito ao seu plano de produção seria
traduzido agora em outros termos, seria uma devolução do sujeito a esse plano onde as redes quentes
estão disponíveis. E essa estética de si, essas práticas de si, antes de serem práticas de mim sobre mim
mesmo, serão praticas forjadoras de mim mesmo a partir da conexão em rede que eu experimento. A idéia
é que possamos esquentar as redes, fazer conexões, produzir agenciamentos e, nesses agenciamentos,
nessas conexões em rede, eu poder produzir efeitos de autopoiése, efeitos de geração de si mesmo numa
estética da existência.
Ao propor isso nós estaríamos então, resistindo ao que no contemporâneo se apresentaria na forma
disso que o Toni Negri e o Michael Hardt chamaram de império: a forma como esses dois autores
designaram na atualidade o capitalismo mundial integrado. O capitalismo mundial integrado se dá na
forma de um império. E qual é a tese desses autores? É que no contemporâneo nós assistimos um declínio
dos estados nacionais, assistimos a uma miniaturização do Estado, uma minimalização do Estado... é um
projeto do estado minimal. Esse declínio dos estados nacionais não significou um declínio da soberania,
mas uma modulação da soberania, ou melhor, uma reformatação da soberania é um outro modo de se dar
a soberania. Nós vivemos agora num mundo globalizado, planetarizado, onde uma nova forma de
soberania se impõe enquanto uma lógica única, enquanto uma lógica soberana, uma lógica imperiosa de
um governo que não se dá a partir de estados nacionais, mas se dá a partir de organizações
supranacionais... é o que Chomsky chamou de senado virtual. São instâncias virtuais que não se
confundem com nenhum território concreto e a partir das quais um gerenciamento da realidade se faz:
FMI, OMC, BID, OTAN, ALCA... ou seja, são formas de gerenciamento da realidade as quais não
corresponde nenhum território concreto. Esse senado virtual garantiria a realização máxima do projeto
liberal. Por quê? Porque a realização máxima do projeto liberal pressupõe a superação de todas as
fronteiras e a superação de todas as fronteiras pressupõe a superação dos estados nacionais. O alisamento
do socius, no lugar de criar uma igualdade, que é a forma como se prometia o engodo libera, se criava
uma equalização. Essa equalização pressupõe, necessariamente, uma virtualização das agências
soberanas. Essas agências soberanas não podem estar mais coincidindo com nenhum território porque a
coincidência delas com os territórios criaria, necessariamente, um estreitamento dos socius, um confronto,
como houve até a queda do muro de Berlim, um confronto entre os dois lados do muro, a cortina de ferro.
É exatamente pela superação dessas estrias, a superação dessas barreiras, a superação desses muros, que
eu crio, portanto, um alisamento dos socius numa rede fria cujo gerenciamento se dá por instancias

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virtuais: é o que eu chamei de volatilização do capitalismo. Isso se torna uma máquina totalmente virtual.
O que temos que pensar é como resistir a isso? A resistência a isso pressupõe uma ação, sempre local,
uma aposta na ação local, uma aposta no território.
Essa aposta no local se faz, não em detrimento das redes, mas a favor de um aquecimento dessas
redes, dessas redes locais, e eu vou dizer: o Fórum aqui é mais embaixo. É o que os cartunistas disseram,
ou seja, tem uma rede aqui que é diferente. Eu localizo a rede, essa é a estratégia: é você localizar as
redes, é você não aceitar essa dimensão indiferenciada da rede e você criar sistemas reticulares que são
singularizantes, particularizantes, heterogenéticos e, consequentemente, são geradores de territorialidades
locais, territorialidades singulares, territorialidades particulares. Na perspectiva que estamos montando,
há um império, e deve-se pensar um contra-império, como aparece lá na página do Fórum Social
Mundial, para o poder pensarmos um contra-poder. Esse contra-poder estaria ligado a um certo ethos, a
uma atitude que assumiríamos e que nós queremos dizer, uma atitude de natureza clínico-política. Ela tem
para nós, nesse nosso campo de interesse, um aspecto clínico-político. Assim, chegaríamos às cinco
proposições finais: são as cinco teses que eu espero ter podido minimamente ter construído com vocês.

PRIMEIRA TESE: toda a clínica é transdisciplinar e se dá necessariamente numa


inseparabilidade, numa distinção com o não-clínico, com o político, com a estética e com a ética.

SEGUNDA TESE: toda a clínica, em sendo uma política e estando comprometida com o plano de
forças, é o plano de múltiplas forças engendradoras da realidade.
Temos que aceitar que toda a clínica é pública, que toda a clínica é uma forma de crítica ao privativo, é
uma maneira de colocar em análise as tendências privatizantes da existência. Toda clínica tem que
colocar em análise toda a propriedade, principalmente a propriedade de si, e isto, de alguma maneira, é
colocar em análise esse laço que faz a subjetivação um assujeitamento. Então, ao afirmarmos que toda
clínica é pública é dizer que toda a clínica se faz numa experiência do coletivo.

TERCEIRA TESE: a experiência clínica (coletiva, clínico-política, que se dá no plano público) é um


processo de autopoiése, sendo a clínica, portanto, autopoiética.
Ela é a experimentação de um plano de auto-organização ou de criação de si e de criação de mundo. A
clínica, portanto, é uma experimentação desse plano impessoal, desse plano de imanência, onde as forças
coexistem para geração de uma realidade, plano impessoal, que é um plano de ninguém, que chamaremos

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de plano de autopoiése, já que, por autopoiése, estamos entendendo um criacionismo ateu, um
criacionismo sem agente criador. Essa então é a terceira tese: que toda a clínica é autopoiética.

QUARTA TESE: a clínica autopoiética é necessariamente uma clínica no contemporâneo.


Entenderemos isto tudo ao situarmos a clínica enquanto experiência dessa impessoalidade, desse Isso,
como disse lá o Freud, como experiência dessa impessoalidade, dessa inespecificidade. Ela é, pois, uma
clínica do contemporâneo, no contemporâneo, uma vez que o contemporâneo é entendido exatamente
como experiência utópica, como esse não-lugar entre o passado e o futuro no qual a realidade se
engendra; repetindo: toda clínica, portanto, é uma clínica do contemporâneo no contemporâneo.

QUINTA TESE: a clínica é uma resistência.


Essa clínica, assim, como experimentação, na utopia do contemporâneo, ela é necessariamente uma
resistência. É uma forma de resistir, e resistir ao quê? A esse esfriamento “standardizante”, a esse
esfriamento homogeneizante, a esse esfriamento gerado pela pretensão definitiva de realização do
princípio do capital, o princípio de equivalência universal. Chegaremos então a esse momento
paroxístico, quando muitos acreditam que acabou a história, que acabou o político. O capital teria
conseguido fazer uma subfunção real, seria efetivamente submetida toda realidade ao princípio da
equivalência universal contra essa sinistra pretensão a “standartização” da existência, da realidade. É
importante pensarmos a clínica como transdisciplinar, como pública, como autopoiética, como
contemporânea, para afirmá-la como forma de existência, para uma forma de luta, uma forma de analítica
do presente ou, uma ontologia histórica do presente de nós mesmos para, assim, podermos pensar, sentir e
fazer diferentemente.

Bom, essas são as cinco teses que eu queria estar apresentando para vocês. Agora poderíamos
discutir um pouco, ainda nos resta um tempinho... eu sei que foram muitas informações, foi um
sobrecarga, porque o tempo era curto, mas eu espero que isso não tenha produzido um efeito de paralisia
e que possamos conversar.
O que é um enunciado analítico? Nós temos dois tipos de enunciados: enunciados sintéticos e
enunciados analítico. Em função da diferença entre um e outro eu vou distinguir as ciências: as ciências
fatuais, que trabalham com os enunciados sintéticos; e as ciências formais, que trabalham com os
enunciados analíticos. Aqui eu tenho um exemplo de enunciado sintético: a água ferve a 100º C. E aqui eu

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tenho um outro que é : a raiz quadrada de 9 = 3, ou melhor, 2 + 2 = 4.
Qual é a diferença, aqui, entre enunciado sintético e enunciado analítico? A maneira de pensar a diferença
é a maneira de pensar sujeito e predicado num, e sujeito e predicado noutro. No enunciado sintético, qual
a relação entre sujeito e predicado? Eu digo que aqui a água ferve a100º C; o sujeito é “a água”, e o
predicado é “ferve a 100º C”. Nessa outra, no enunciado analítico, eu digo que sujeito é “2 + 2” e o
predicado é “= 4”. Neste caso aqui, que é o enunciado analítico, você tem uma estranha relação entre
sujeito e predicado, que é uma relação de fechamento circular, ou seja, o predicado não faz outra coisa
senão repetir o sujeito. Quando eu digo 4, eu estou dizendo 2 + 2. Se eu digo 2 + 2, eu estou dizendo 4, ou
seja, o predicado não acrescenta nenhuma informação, isso aqui é uma tautologia, é o enunciado circular,
o enunciado tautológico... o enunciado analítico é um enunciado que se fecha sobre ele mesmo para não
produzir novos sentidos. Não é assim a autopoiése.

Rosane Neves: É... e eu acho importante marcar bem isto.

EDUARDO: A autopoiése, o que ela tem de comum com a tautologia? É o fechamento. Mas que
fechamento é esse? Esse fechamento é um fechamento informacional, fechamento da causalidade
circular. O fechamento aqui é o que Maturana e Varela definem com o conceito de clausura operacional.
O que eles estão dizendo? O que acontece no sistema não se explica por nenhum estado de coisa fora do
sistema. Tudo aquilo que se produz no sistema se explica pelo modo como o sistema funciona e não pelo
modo como ele é informado, por algo de fora dele. Eles estão dizendo, portanto, que um sistema dotado
de clausura operacional é um sistema autônomo - e não heterônomo - porque nada de fora o determina.
Mas por que esse sistema autônomo, dotado de clausura operacional, não é uma tautologia? Essa é a
questão que eu estou levantando. Porque, diferentemente, esse sistema é um sistema de engendramento de
diferenças; porque a clausura aqui, é só um fechamento informacional. Esse fechamento informacional é
a condição para a abertura temporal... e eu possa criar... esse é o truque.
Para que eu possa ser um sistema criador tenho que ser um sistema autônomo; e para que eu possa
ser um sistema autônomo tenho que ser um sistema operacionalmente fechado. Você não me determina,
eu tenho que ser autogestivo, eu tenho que ser auto-organizador... só que a potência de autogestão e
autocriação é a potência que me garante ser diferente do que sou... e eu vou mudando... então esse
fechamento informacional é igual a abertura temporal, criação de diferença, e autopoiése é
heterogênese.... quando eu digo 4, eu estou dizendo 2+2 e vice-versa, aqui não tem produção de diferença

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nenhuma... e eu fico ali indo e voltando, quer dizer, um sistema autopoiético é um sistema que faz
sínteses. A diferença é que essas sínteses não são a partir de informações provenientes do ambiente, são
internas, são sínteses enquanto experiências do tempo. O Maturana e o Varela dão um exemplo
interessante que é: o tempo é variação. O Beck vai dizer que o tempo é criação... ou ele é criação ou ele
não é nada, não é coisa nenhuma... essa é a maneira de Beck definir o tempo.
O Maturana e Varela criam uma imagem interessante, que é a imagem do submarino: aí chega o
submarino, aporta e sai de dentro dele o marinheiro e todos dizem: “mas que beleza as manobras que você
fez para aportar, desviando do arrecife, não batendo no navio, na ponte!”. Aí o homem vira e diz: “ponte,
arrecife, navio?! Não... eu só tinha ali os sinais do meu sistema de sonar!”. Ponte, navio e arrecife são
objetos fora do sistema no olhar do observador. Para o observador, o marinheiro está desviando do
arrecife; para o marinheiro, é um outro referencial... na experiência do submarino eu tenho ali uma
clausura operacional e o submarino se orienta por dados internos a sua estrutura. E o que me garantem
que esses dados internos da minha estrutura (por exemplo, imagem, perspectiva a essa imagem
preceptiva) correspondam a um estado de coisa fora de mim? Quem me garante? É só uma crença.

Rosane Neves: É interessante, Eduardo, que nesse exemplo, que esses dados internos, eles absolutamente
existem enquanto variação a partir desse fora, que é um dentro... que é um dentro que varia... que é um
sistema.

EDUARDO: Isso. O que é o fora? O fora é uma instabilidade do sistema, o fora está incluído no sistema,
é uma dimensão de instabilidade do sistema. Nós somos seres em que o sistema é nervoso... tem um autor
interessante, um neurofisiólogo, que se chama Walter Friedmann, ele faz estudos do bulbo perceptivo, o
bulbo da percepção olfativa do coelho. Olha o que ele faz, que loucura o experimento desse cara: ele pega
um coelho, e ele primeiro submete o coelho a um treinamento e esse treinamento é um treinamento
discriminatório. Ele ensina o coelho a discriminar banana e serragem pelo olfato. Ele condiciona o coelho
a, toda vez que sentir cheiro de banana, sei lá, não lembro... mas vamos dizer que ele levanta a orelha... e
quando sente cheiro de serragem ele mexe o pé... de tal maneira que, depois de uma seqüência de
repetições, ele pode afirmar, pode acreditar que o animal adquiriu aquele padrão discriminatório, ele
consegue discriminar entre o cheiro de banana e serragem. Aí ele pega esse animal que ele condicionou e
coloca eletrodos no bulbo olfativo do animal. E esses eletrodos no bulbo olfativo do animal vão produzir
um mapa eletroencefalograma do bulbo do animal, dando a imagem do que se passa ali na experiência

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discriminatória de banana e serragem. Aí o que ele faz: em Tempo 1 ele apresenta a banana, os eletrodos
captam a condução elétrica e formam um mapa, ele faz com toda uma tecnologia, um mapa. Esse mapa é
do Tempo 1: banana. Aí, no Tempo 2, ele apresenta serragem, quando ele apresenta serragem, qual não é
a surpresa dele quando ele obtém o mapa cognitivo lá do bulbo olfativo do coelho: o mapa cognitivo da
serragem é o mapa cognitivo da banana transformado! É esse mapa aqui transformado. E ele já acha
estranho. Aí ele vai para o Tempo 3. No Tempo 3 ele volta para a banana. Ele apresenta de novo a
banana para o animal, e aí a surpresa definitiva dele: o que ele tem com o mapa cognitivo do bulbo
olfativo do coelho ao cheirar a banana: ele tem uma transformação do mapa do Tempo 2 que em nada se
assemelha ao mapa do Tempo 1. Aí ferrou...
O que ele conclui? Essa relação entre a experiência do coelho, da banana e uma suposta banana é variante
... é só para você que está olhando de fora... agora, se nunca é a mesma banana, como ele identifica a
banana? Não é essa a questão? Porque ele nunca é o mesmo coelho e a banana é a mesma banana... é
sempre um outro coelho... é sempre uma outra banana: a realidade é criação e os mapas vão mudando.

Júlio Hoenisch: Tu falaste em um momento sobre o sistema imune, tu poderias explicar um pouco
melhor para nós?

EDUARDO: O sistema imune é um sistema interessante. O sistema imune é formado de células que são
os linfócitos D e T e essas células se conectam numa rede, que é uma rede que se altera numa velocidade
vertiginosa. No timo e na medula óssea é que se produzem essas células; elas são lançadas, milhões por
dia, ou seja, entre dois dias eu nunca tenho o mesmo conjunto de células formando o sistema imune. Se
eu tento colocar um fígado de outra pessoa em mim, eu rejeito. Eu estou constantemente variando e, no
entanto, uma de idéia de si se produz; e se eu tento colocar alguma coisa que o organismo não detecta
como si, ele rejeita. Todo esforço então, é entender como funciona esse sistema imune, e eu não posso
acreditar que haja uma explicação da identidade, da capacidade de identificação do si, que é uma das
principais características do sistema imune. Na hora que entra o antígeno, que é o outro, ele mete porrada,
porque não é o si... ele bate, aí entra o vírus, você tem febre e ele dá porrada no vírus, que é um sistema
de defesa, um sistema de preservação do organismo. A questão é: como entender esse funcionamento?
Para isso, é interessante compreendermos o mau funcionamento dele. E o mau funcionamento dele se dá
na forma de doenças terríveis, são as doenças autoimunes, que é quando o sistema resolve dar porrada
nele mesmo, não há uma terapêutica, não há um protocolo já estabelecido para o tratamento das doenças

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auto imunes. Os pesquisadores têm desenvolvido uma técnica: é um elemento do próprio sistema que
você joga nele para produzir um efeito de perturbação. Na aposta de que, nessa perturbação, se possa criar
uma outra regra de si, que não seja mais de natureza autodestrutiva; então, com a idéia de que se você
destrói ou você se cuida... são maneiras de você estar organizando uma rede e que essa rede se organiza,
segundo regras que são produzidas pelo próprio sistema.
A questão é: como fazer que o sistema mude suas próprias regras? Então você vai fazer que o
sistema mude suas próprias regras produzindo no sistema um efeito de intersecção: você produz um
intercessor nele, dá uma porrada nele, que é absolutamente equivalente a experiência de um paciente meu,
usuário de cocaína; um garoto que fica cheirando o tempo todo... até que ele extrapola e faz uma
internação e ele fica uma semana internado. A partir desse efeito intercessor que a própria experiência
com a droga produziu nele, ele começa a produzir novas regras de existência, começa a redimensionar a
própria experiência dele com a vida, a própria experiência dele com a droga... a partir da perturbação da
relação dele com ele mesmo, pelo impacto que foi ele ficar chapado, totalmente chapado, doidão e
levaram ele para o hospital onde ficou uma semana sendo tratado como uma pessoa muito doente, um
drogadito em situação de risco. A idéia é essa: você produz a ação, e você cartografa os efeitos dela. Você
não sabe quais, são! Você não sabe quais são os efeitos dela... então, a questão é com você poder pensar a
clínica como uma experiência de perturbação, de acompanhamento das experiências de perturbação... e a
partir dessas perturbações, você acompanha o processo de produção de novas regras, já que aquele
sistema é autônomo, então se advirem novas regras, elas deverão advir a partir dessa potência
heterogenética de um sistema que é operacionalmente fechado. A única coisa que você pode fazer é
apostar na perturbação. Não é possível sugestão, não é possível orientação, não é possível interpretação.
Nada disso é possível! Só é possível a perturbação. As tentativas de perturbação com esse meu paciente
foram absolutamente inglórias... a perturbação foi a perturbação de uma overdose de cocaína... que eu vou
lá e aproveito, eu pego aquilo e começo a trabalhar com ele... mas o analisador foi outro. O analisador foi
a experiência dele lá no hospital, e os pais, a irmã visitando ele, chorando... foi uma experiência
impactante. Até então, a experiência dele com a cocaína era uma experiência de morte... aquela
perturbação permite agora que ele comece a reequacionar a própria existência. E não fui eu que fiz esta
perturbação... eu, enquanto analista, aproveito essa perturbação.

Intervenção: Mas a interpretação também pode ser uma perturbação!

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EDUARDO: É mas daí ela deixa de ser interpretação e passa a ser perturbação... porque, veja bem, o que
é interpretar? Interpretar pressupõe desvelar o sentido e, desvelar o sentido pressupõe o quê? Buscar a
verdade do sujeito num outro plano. O que nós estamos dizendo? Que não há planos mais profundos! O
que você faz enquanto ato analítico é rebater o indivíduo sobre ele mesmo na condição de novos sistemas
de referência, é perturbação. Pode ser que, malgrado a intenção de fazer uma interpretação, você consiga
produzir um efeito de perturbação.
É isso então pessoal... bom, foi um enorme prazer.

Bibliografia sugerida:
PRIGOGINE, I. & STENGERS, I. (1986) Preface. Em: La nouvelle alliance. Paris: Gallimard,
pp. 7-27.

PASSOS, E & BENEVIDES DE BARROS, R. (2000) A construção do plano da clínica e


conceito de transdisciplinaridade. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 16.1, 071-079.

DELEUZE, G. (1992a / 1990) Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: Conversações.


Rio de Janeiro: 34, pp. 219-226.

DELEUZE, G. (1992 b / 1990) Controle e devir. In: Conversações. Rio de Janeiro: 34, pp.209-
218.

FOUCAULT, M. (1993 / 1984) Qu'est-ce que les lumières? Magazine Littèraire, 309, avril, pp.
61-74.

HARDT, M. & NEGRI, A. (2000 / 2001) Pós-Modernização, ou a informação da produção. Em:


Império. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, pp. 301-324.

PASSOS, E. (1997) As noções de identidade e tempo, entre a biologia e a psicologia. Em: Saúde
e Loucura 6 - Subjetividade: questões contemporâneas. São Paulo: Hucitec.

Observação:
Se este texto for utilizado como bibliografia deverá ser citado da seguinte maneira:
PASSOS, E. Por uma clínica do social : relações entre a esfera pública e a esfera privada na
psicologia. Curso de Extensão ministrado no Programa de Pós-graduação em Psicologia –
Faculdade de Psicologia – PUCRS, Porto Alegre, 21 e 22 de março de 2002, 79 p.

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