Chance para Uma Esquizofrenica PDF
Chance para Uma Esquizofrenica PDF
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BELO HORIZONTE
1980
FICHA CATALOGRÁFICA
Terapia ocupacional
Impressão: Oficinas Gráficas da Imprensa Oficial de MG
Av. Augusto de Lima, 270 - 30000 - Belo Horizonte
SUMÁRIO
PREFÁCIO ............................................................................................................................................... 7
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................ 9
GENERALIDADES .................................................................................................................................. 10
A PACIENTE .......................................................................................................................................... 19
EVOLUÇÃO ........................................................................................................................................... 40
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................................... 65
AGRADECIMENTOS
Este é meu primeiro livro. É o produto da confiança que nos tem sido depositada por um
grande número de psiquiatras que nos encaminharam pacientes e, desta forma, estimularam-
nos a prosseguir neste difícil trabalho que é a Terapia Ocupacional.
Se fosse citá-los agora, para um agradecimento pessoal, teríamos uma lista demasiado
extensa. Se fosse, também, mencionar todas as pessoas que, direta ou indiretamente,
trabalharam comigo neste livro (lendo, corrigindo, fotografando), teríamos uma outra lista de
grandes proporções, pois é muito difícil escrever sozinho.
A Francisca de Jesus da Mata (Ia), nossa velha ama, pela coragem de nos amar como
a filhos seus.
O livro do Rui versa sobre uma paciente que se submeteu à Terapia Ocupacional durante
algum tempo. Menciona as técnicas que foram utilizadas com a paciente, permitindo uma
visão global de como trabalhar com a Terapia Ocupacional em favor do paciente psiquiátrico.
Nesse livro se obtém uma síntese do potencial terapêutico dos elementos utilizados pela
Terapia Ocupacional e se encontra, expostos de modo claro, os aspectos psicodinâmicos
inerentes ao material utilizado.
O autor apresenta um resultado terapêutico que, pela leitura do livro pode ser considerado
muito satisfatório. Dá um tom apaixonado ao processo utilizado, ao mesmo tempo que se
apaixona pelo evoluir do caso. Conhecendo pessoalmente o autor, sabemos que não poderia
ser diferente. Não creio que o Rui fizesse nada que não fosse por pura paixão. A propósito é
bom lembrar que ele foi o primeiro aluno a se formar como Terapeuta Ocupacional
diretamente ligado à saúde mental numa faculdade ainda não totalmente prevenida para isto.
Fez o leito onde deveria nascer.
Psiquiatra que somos, com formação e a prática analíticas que temos e com não pequena
experiência com pacientes, lendo o livro inicialmente sem nenhum compromisso e depois
como convidado a ser seu prefaciante, nos restou uma enorme indagação: o que realmente
aconteceu? Tratava-se de uma esquizofrênica crônica, de prognóstico firmado como ruim, que
já havia se submetido a todos os processos terapêuticos convencionais e foi encaminhada,
como mera tentativa, à experiência Praxiterápica. Pelo relato do caso podemos concluir que o
resultado foi muito bom, tendo em vista o prognóstico.
Com o conhecimento que temos e com nossa vivência, sabemos que a Terapia Ocupacional
pode ser útil como terapia coadjuvante de um tratamento psicofarmacológico ou biológico em
pacientes internados ou não. Com tal conhecimento e com tal vivência, nossa expectativa foi
abalada frente ao resultado apresentado.
Em que pese a abordagem de um único caso e nosso respeito pelas estatísticas, não nos
incomodamos por apresentar estranheza frente ao bom resultado e nos permitimos pensar
sobre ele.
Sabemos que há um grupo de pacientes, sejam eles de qualquer especialidade médica, que
não são atingidos totalmente pelos métodos terapêuticos usuais e caem na faixa do que se
conhece como paciente crônico. Não acreditamos que a hospitalização cronifique ninguém. A
doença é que é cronificante por si mesma. Sabemos que a percentagem de pacientes crônicos,
hospitalizados ou não, especialmente no terreno da Psiquiatria, depende de uma série de
fatores que invariavelmente vai alterá-la: o enfoque pessoal do psiquiatra, a postura familiar, o
investimento financeiro feito pela família do paciente ou pela instituição pagadora, etc.
Quando pensamos no bom resultado terapêutico e, colocando como fator invariável que o
arsenal terapêutico tenha sido utilizado adequadamente, nos vem à mente que a mudança de
atitude familiar altera sensivelmente o resultado terapêutico, principalmente no campo da
Psiquiatria e, também, que a mudança de terapeuta igualmente altera o resultado do
tratamento.
É do conhecimento de todos que lidam com pacientes que, toda expressão pessoal de
sentimentos e pensamentos, sejam estes comunicados por meio de palavras, gestos,
representação, pintura, escultura, enfim, qualquer veículo de expressão possível de ser
utilizado pelo homem, quando transmitidos a alguém cuja resposta é neutra, incentivadora e
não destrutiva, e feita de maneira frequente, a um mesmo indivíduo ou grupo, gera
modificações importantes na personalidade, em geral, no sentido melhor.
A posse destes elementos ainda nos pareceu insuficiente para concluir o que realmente
aconteceu. Nos vem à mente um outro fator que é do conhecimento daqueles que lidam com
pacientes de todos os matizes diagnósticos: o imponderável. O imponderável influenciando o
resultado terapêutico.
Frente ao caso narrado no livro, em que pese consideramos todos os fatores que poderiam ter
influído nele, fica bailando de modo importante em nossa mente a ideia do imponderável,
como resposta à pergunta que fizemos sobre o que realmente aconteceu.
Este trabalho é a descrição de tratamento de uma esquizofrênica, cuja doença teve sua
instalação há muito tempo e a evolução muito longa.
Ele foi levado a efeito em Belo Horizonte, no SER. TO - Serviço de Terapia Ocupacional.
Por essa época, o SER.TO contava com: um terapeuta ocupacional, responsável pela
orientação do serviço e pelos trabalhos em couro, modelagem e pintura (predominante), com
a seguinte equipe; Francisco José dos Reis Goyatá (médico em formação psiquiátrica),
Teatroterapia: Lígia Severo (assistente social), orientação às famílias e atividades extramuros
com os pacientes; Nívia Schembri (acadêmica de Medicina) Musicoterapia; Yeda Miranda
(Terapeuta Ocupacional) atividades na cozinha; Célia Martins Kassis, atividades do lar.
Não pretendo, com o relato deste caso, escrever uma tese, nem apresentar dados estatísticos.
Não pretendo estar falando a última verdade.
Redigir e publicar este livro, antes de mais nada, significa minha crença em que um ambiente
de trabalho e carinho aliado ao relacionamento com pessoas de boa vontade e treino
adequado, podem salvar o outro da angústia e do desespero, que o levam à loucura.
Tratar MS foi, para nós, motivo de realização e preocupações. Consideramos que nosso
trabalho foi extremamente útil para ela e muito positivo para nós. E, a partir deste ponto,
passei a acreditar que ele poderia ser útil a quem o lesse.
GENERALIDADES
Fazer e saber são coisas que distinguem o homem dos outros animais. O macaco pode usar
uma roupa, andar de bicicleta, mas não construí-los, não só porque lhe falta a oponência do
polegar como também lhe falta o poder de combinar as imagens mentais, a imaginação; falta-
lhe o processo conceitual. Fazer, enquanto, atividade de transformação, é de fato a ação que
deifica o homem.
A forma que nasce de suas mãos é a materialização do seu sentir e pensar. Explorando a forma
no máximo de sua utilidade e chegando com ela à forma em si, o homem evolui de “faber”
para “sapiens” e concomitantemente para “loquens”.
Não é possível mentir quando se fabrica. Os erros, os acertos, os objetos, são sempre obra
intencional, ainda que não-conscientes, pois “embora seja a mente que busca, com muita
frequência é a mão que encontra” (20), e o ato de fazer traz, em seu bojo, necessariamente o
pensar. E o pensar traz consigo a necessidade de comunicar o que pode se dar de forma
explícita, clara, ou de forma implícita, velada. Ninguém faz só por fazer. Faz-se alguma coisa
em busca de outra. E a busca será sempre a do instrumento adequado do discurso e do prazer.
Nessa busca, muitas vezes dificultada por tantas variáveis, se empenham o cliente e o
terapeuta ocupacional.
Fazer antes de ser simplesmente uma ação mecânica, foi a forma que o homem encontrou
para satisfazer sua premência de utilidades. Depois, isto evolui e a forma se transforma e
ultrapassa a utilidade, muda de caráter, novos materiais são usados, e então o homem começa
a simbolizar, e, finalmente, a falar. E cada palavra que foi mágica a princípio, foi também um
objeto que tinha a mesma massa, se assim podemos dizer, que qualquer outro artefato
concreto.
Fabricar, portanto, não só é anterior ao falar, mas também base do pensar. Explorar a forma
natural e fazê-la evoluir até o seu limite máximo de eficiência, até alcançar a forma em si, foi o
caminho percorrido pelo homem desde a idade paleolítica. Fabricar, conceituar para si, e falar
para o outro o que pensou; dentro dessa ideia, a Terapia Ocupacional é um método que usa
instrumentos muito antigos para tratar: usa as mãos. E as mãos são o instrumento que
possuem, naturalmente, toda a eficiência exigida de um instrumento capaz de fabricar outro;
são o instrumento capaz de fazer a “síntese entre as finalidades utilitária e espiritual sem
recorrer a qualquer ferramenta” (20) . Enquanto fabrica “desmaterializa o material e
materializa o imaterial” (20). Esta ação torna possível copiar, fazer, desfazer, inventar e,
portanto, tornar palpável o pensamento, o sentimento, a intenção.
O trabalho produz, por si só, a inserção do homem em pelo menos uma realidade: seu ser
social. A sua falta leva o homem à estranheza e até à psicose, segundo Paul Sivadom, não
importando, em primeira instância, as causas da ausência da oportunidade de trabalhar.
Atuando na realidade externa, modificando-a, o homem modifica sua própria natureza.
“Dotado de consciência, o homem situa-se em face do que é ele mesmo, do que é de um modo
geral, e do que é faz um objeto para si. As coisas da natureza contentam-se em ser, pois são
simples e só uma vez são, ao passo que o homem, enquanto consciência, desdobra-se: é uma
vez só, mas para si. Projeta na sua frente o que é, contempla-se, representa-se a si próprio. É
preciso, portanto, procurar a ciência geral que uma obra de arte provoca no pensamento
humano, porquanto a obra de arte é um meio com o qual o homem exterioriza o que ele
mesmo é” (28).
O trabalho, enquanto fator de equilíbrio, assegura a inserção no real, porque constitui uma
atividade essencialmente mente humana, criativa, educadora, reforçadora e, acima de
gratificante.
Claro está que se o trabalho ganha em coação, perde em criatividade. Mas não é esse o
trabalho de que falamos agora; transcrevemos aqui um parágrafo de Freud, citado por
Georges Friedmann: “Reconhecendo a importância do trabalho, contribui-se, melhor do que
por qualquer outra técnica de vida, para apertar os vínculos entre a realidade e o indivíduo;
este, com efeito, em seu trabalho, está solidamente apegado a uma parte da realidade: a
comunidade humana. O trabalho tem importantes consequências, ao menos enquanto dá (por
si próprio e pelas relações humanas que implica) a oportunidade de uma descarga considerável
aos impulsos fundamentais da libido, narcisistas, agressivos e mesmo eróticos,
tanto quanto proporciona ao indivíduo seus necessários meios de subsistência e justifica sua
existência na sociedade” (25).
A perda do trabalho leva o homem à perda de sua identidade social, produz aumento de
óbitos em trabalhadores aposentados, produz envelhecimento precoce. O sentimento de
inutilidade social é sempre funesto para o homem:.
A Terapia Ocupacional busca prevenir e/ou corrigir os defeitos e “mortes” que o ócio e o
abandono geram para o indivíduo; procura, pelo trabalho criativo, fazer novos hábitos sociais
sociais, criar novos contatos com a realidade, uma nova autoimagem.
Essas colocações nos levam a pensar no processo da relação terapêutica ocupacional. Nós a
entendemos dentro de uma forma piramidal, ou seja: o terapeuta ocupacional, o paciente, o
material a ser transformado e as ferramentas, mo elementos básicos constantes dessa relação;
então, podemos representar a Terapia Ocupacional da seguinte forma:
TERAPIA OCUPACIONAL
FERRAMENTA
MATERIAL
TERAPEUTA
PACIENTE
OCUPACIONAL
DINÂMICA
Quanto à posição dos elementos básicos dentro da pirâmide não existe um lugar fixo para eles.
Sua posição é uma dependência direta de como se está, ou de como se vai dirigir a sessão ou o
processo terapêutico. Dito de outra forma: se se vai enfocar a terapia no reforço do ego, ou na
expansão do pessoal, então é a posse dos objetos que encimará a pirâmide. Por outro lado, se
se pretende abordar a relação terapêutica na pessoa do técnico, enquanto ego ideal, então
dele vai partir o pêndulo. E assim podemos pensar com relação a qualquer um dos elementos
básicos.
Outra aplicação para essa forma de “pensar” a Terapia Ocupacional está relacionada com os
materiais.
Da seguinte forma:
MATERIAIS
NATURAIS MANUFATURADOS
NOVOS REAPROVEITADOS
Aqui também, o item que encimará a pirâmide depende da orientação do que se vai
“trabalhar”. Assim é que, se se pretende que o paciente “trabalhe” velhas relações, o material
deve ser de reaproveitamento e, portanto, ele encimará a pirâmide. Mas, se se pretende que
ele elabore o quanto é merecedor de coisas novas e boas, o trabalho com materiais novos é
que dará origem ao pendulo, e assim por diante.
Se continuarmos a “pensar” a Terapia Ocupacional desta forma, veremos que esta pirâmide
pode ser aplicada sempre.
FÁCEIS DIFÍCEIS
SIMPLES COMPLEXAS
Outro exemplo, com relação ao ritmo de trabalho:
RITMO
LENTO MOROSO
NORMAL RÁPIDO
TRABALHO
DIRIGIDO LIVRE
COMPETITIVO PROTEGIDO
POSSE
DOAR VENDER
PACIENTE
EXPRESSIVO SUPRESSIVO
Aqui, mais uma vez, a colocação dos elementos na pirâmide depende dos interesses
Terapêuticos e da decisão dos profissionais envolvidos no tratamento e das necessidades do
paciente.
Como vimos, em todas as pirâmides que pudéssemos desenhar, cinco elementos se fariam
constantes em cada uma delas, cada qual significando níveis e objetivos diferentes de uma
mesma coisa ou situação. E tendo sempre o pêndulo e a circunferência circunscritos,
significando a dinâmica, e o elemento colocado no ápice significando o enfoque da sessão ou
do processo.
Além das variáveis já citadas nas pirâmides, temos que nos preocupar com os crescimentos
horizontal e vertical do trabalho. No crescimento horizontal, buscamos ocupações cada vez
mais complexas, a partir das mais simples. Essa busca se dá numa mesma linha “hierárquica”,
ou seja, nossa preocupação está afeta apenas às funções mais “grosseiras” do fabricar, apenas
às ações mecânicas.
PROJETAR / CRITICAR
A B
FAZER / ASSIMILAR
Partindo do ponto A até alcançar o ponto C podemos traçar uma linha D que dará origem a um
triângulo retângulo:
C
A B
A linha D significa a evolução pretendida para o paciente. Se, a partir do ponto em que ela se
interrompe, traçarmos o segmento CB até encontrar AB, então teremos o nível em que se
encontra o paciente com relação aos crescimentos horizontal e vertical do trabalho. Claro está
que, à medida em que os segmentos AB e AC se distanciam, maior será o horizonte de
possibilidades do paciente. Vamos aplicar esse esquema a uma atividade qualquer, por
exemplo: colagem.
Para se conseguir um bom trabalho com essa técnica que é, por excelência, de agressão e
reconstrução, sendo, ao mesmo tempo, indicada para liberação da agressão e reparação da
culpa, temos que seguir os seguintes passos:
COLAGEM
Vamos transcrever:
5
4
3
2
1
5 4 3 2 1 0
O PASSO 1 é o mais regredido e agressivo de todos. Exige apenas que o paciente rasgue o
papel. Responsabilidade, verbalização, imaginação, habilidades = 0 (zero).
O PASSO 4 exige que o paciente consiga seguir o projeto, reconheça formas e cores, consiga
manter-se dentro do seu planejamento. Este passo é o mais reconstrutor de todos. E, devido
ao fato de o desenho sobre a base ter sido feito de forma livre, sem muitos detalhes, como
também devido ao fato do papel ter sido picado sem uso de tesouras, e portanto, ter
tamanhos diferentes e formas irregulares, oferece ao paciente uma ótima oportunidade de
mudar o próprio projeto e de rejeitar a sua exigência inicial. Nesta etapa, ele já começa a
solicitar maior flexibilidade para mudanças. Responsabilidade, verbalização, imaginação,
habilidade, conhecimento e flexibilidade = 3 (três).
O PASSO 5 é o mais difícil de todos e o mais reforçador. O paciente precisa ter maior
habilidade no uso do pincel, conhecimento dos tons das cores e como produzi-los, precisa
aplicar o guache de forma atenta para que o recorte não fique perdido sob o mesmo.
Responsabilidade, verbalização, imaginação, percepção das três dimensões, senso estético = 4
(quatro).
Como vimos, à medida que o trabalho cresce em horizontalidade, cresce também de forma
simultânea e concomitante em verticalidade e o paciente assimila e projeta.
Então, o fato de se estar em trabalho vai promover, com o aumento das habilidades motoras
um aumento das capacidades de conceituar e criticar.
A partir deste ponto, podemos concluir que a Terapia Ocupacional, antes de ser apenas uma
técnica laborativa, é uma atividade eminentemente crítica do ato de fazer e, portanto, da
postura de ser. E ela não necessita, como condição sine qua non, de uma capacidade de
verbalização ou de crítica ótimas, preexistentes. E isto se explica na medida em que os
extremos são iguais, o princípio é igual ao fim; um sendo como que a sombra do outro. Não
verbalizar é o princípio da verbalização, já que os dois são apenas duas formas de
comunicação, daí a similitude dos opostos.
Sua atuação é sempre no sentido da esquerda para a direita. Acreditamos que qualquer outra
regressão que por acaso ocorra durante o processo terapêutico ocupacional coincidirá com a
sua concomitante evolução, e isto porque, obrigatoriamente, os antípodas são concomitantes
e simultâneos no trabalho. Cabe salientar aqui que as duas figuras geométricas empregadas
por nós são úteis na medida em que precisamos ser didáticos. De fato, elas são apenas uma
forma de representar não sendo, portanto, uma maneira de organizar a conduta terapêutica e
nem de medir níveis ou estágios onde se encontra o paciente, já que organizar e medir são
uma consequência da mobilidade dinâmica da relação homem-trabalho.
HISTÓRIA PREGRESSA: “Sempre foi uma personalidade difícil”, sempre cuidava apenas de seu
pai, não se interessando pela mãe. Suspeita de encefalite e grande mal epilético por época da
sua primeira crise. Entrou para a escola com 8 anos, cursou até o 2º. ano de letras (francês),
quando se transferiu para a Faculdade de Ciências Físicas e Exatas. Queria fazer medicina, mas
não passou no vestibular. Nunca teve ciclos menstruais normais. Tinha namorados, mas não se
dava bem com eles.
Era extravagante no vestir, no falar e não se avaliava adequadamente. Não tinha os dentes,
exceto dois caninos, e dizia ser a moça que “tenho os melhores dentes dessa cidade”. Era
incoerente no falar, não “criticava” os anos que passara internada em um hospital psiquiátrico
(14 anos aproximadamente), dizendo que tinha estado lá para fazer provas às 8:00, 14:00 e
20:00 horas, “porque um tarado tinha lhe enfiado um pau na nuca”.
E com relação a algum tipo de ocupação que pudesse existir naquele hospital, ela dizia “lá tem
um pouco de revista, e elas bordam; eu não”. Sua higiene pessoal era pouca nenhuma. Quando
menstruada não usava absorventes, não cuidava de suas roupas íntimas e nem fazia questão
de usá-las. Porém, negava todos os aspectos grosseiros de seu modo de ser, dizendo-se muito
fina e educada, por ser de “família muito importante”.
Durante a entrevista, não permitiu que a porta fosse fechada e a cada momento procurava
pela sua acompanhante; foi com muito custo e dificuldade que conseguimos colher algumas
poucas informações. Negava tudo e não se dispunha a tratar-se. porque, segundo ela, não
tinha nada.
Dispunha-se menos ainda a tratar-se por um método ocupacional, já que “a única coisa que
meus pais querem para mim é que me deixem quieta, com boa comida, cama macia. E é só. E é
só.”
NOTA:
A história da paciente está simplificada, devido à “censura”1 por parte da família nos trechos
da obra que a identificava. A família autorizou a publicação do livro como ele a agora é
oferecido ao público, mas com os cortes feitos pela irmã-tutora para que não se identificasse
com exatidão a paciente, para proteção sua e da família.
1
A palavra “censura” consta do documento de autorização da família de MS.
ATIVIDADES DESENVOLVIDAS PELA PACIENTE
Durante os 14 meses que MS permaneceu sob nossos cuidados, ela submeteu-se a várias
ocupações: pintura livre sobre papel, pintura sobre cerâmica cozida (biscuit), modelagem,
tapeçaria, artesanato em couro, atividades do lar e da cozinha, teatro, canto coral; participou
ainda de todas as festas realizadas no SER. TO e em casa de outros pacientes.
A indicação abusiva de ocupações, a mudança constante delas sem uma razão dinâmica que
justifique esta conduta, produz um aumento da resistência, facilita e predispõe à manipulação
das situações, aumenta a voracidade, diminui a força empenho, altera a notícia da realidade
pelo aumento da onipotência. É verdade que a ocupação, por si só, é o elemento
de cura, mas a constância do empenho transformador, o ritmo da transformação, a
propriedade da indicação, a identificação com a atividade e os materiais, são elementos que
não se pode esquecer, do contrario a mesma ocupação que cura pode interpors na relação
como instrumento de barragem, pode significar até reforço da conduta doentia, pode
transformar a hospitalização (quando for o caso), ou a doença, em um doce gostoso de comer.
Assim é que, se a intenção for de suprir o cliente de vivências positivas e reforçadoras do seu
ego, as ocupações devem conter elementos suficientes para isto. De outra forma, se a
intenção for de dar ao cliente uma oportunidade de liberação profunda, é preciso cuidar para
que o material e a ocupação tenham também, em si, elementos predisponentes dessa
conduta. Não existe uma ocupação ideal.
Portanto, a análise do material, da ferramenta e da ocupação deve ser feita com muita
preocupação pelo Terapeuta Ocupacional, antes da indicação, já que toda ocupação,
ferramenta e material, trazem em si sua tese e sua antítese.
Da seguinte forma: o instrumento elétrico que facilita o corte da madeira ameaça, pela sua
rapidez, e pelo fato de ser um instrumento de corte. O pincel que facilita a expressão pode
produzir dificuldades por ser um objeto raro na vida do cliente e, da mesma forma, impedir o
contato da mão com a tinta. O papel colorido que agrada pela sua lisura, pelo brilho, frustra
quando da aplicação, já que, sob a ação da água da cola, ele pode enrugar e, assim,
poderíamos citar vários exemplos.
Agora podemos dizer que o importante ao selecionarmos uma ocupação, para indicá-la, é
conhecer bem que características positivas e negativas cada material e ferramenta,
necessários para esta ocupação, têm, e se ela de fato é a indicada para aquele paciente.
Com este pensamento, e preocupado pela longa e agressiva hospitalização a que fora
submetida a cliente, e por lembrarmos que, nessas condições, o paciente perde, logo de início,
os direitos mais comezinhos, tais como ter dinheiro consigo, ter seus objetos de uso pessoal,
seus documentos e, por isso mesmo, tem seu espaço pessoal muito diminuído, sua identidade
e individualidade apagadas e, também por este motivo, tem seu ego muito fragmentado, pois,
sob as condições cronificadoras de toda hospitalização longa, qualquer pessoa acaba por
ajustar-se para, de alguma forma, sobreviver, ainda que ela pague como preço a apatia, o
desinteresse, a perda da capacidade de criar, planejar e executar.
Preocupado com tudo isso e por saber que as palavras não tinham para MS o mesmo sentido
que tinham para mim, e porque acredito que ao construir pequenos objetos, livre da intenção
de fazer belas artes, a paciente descobriria de novo o sentido da vida, descobriria ainda que
ele teria de ser procurado, sem nenhum compromisso com o acerto, pois
se se comprometesse com o resultado ela ficaria mais distante ainda da vitória, e por saber
que ocupando-se a paciente cobriria que não se fabrica um sentido para a vida. E que, ao
tentar construí-lo artificialmente apenas mostraria um “não-senso” ou, mais especificamente,
seu sentimento de “vazio existencial”, que fora reforçado pelo ócio durante a hospitalização.
Se o excesso de tensão é patógeno, também o é a sua inexistência. O homem precisa ter
algum nível de tensão, nascido da relação com alguma coisa concreta, para poder solver suas
necessidades, assim como reconhecer e confirmar suas possibilidades. A busca do sentido da
vida reside na busca mesma e não no resultado. O sentido não é uma dependência da duração
da vida, nem tão pouco de sua qualidade; esta, sim, é dependente direta da existência ou não
do sentido da vida. Quando se procura um sentido para a vida, mais distante fica o prazer,
porque o indivíduo começa a padecer “de uma enfermidade de natureza menos mental que
espiritual, e não raro proveniente da convicção de que nada tem sentido” (27). Acreditamos
que quando o paciente descobre, elo trabalho o sentido da vida, ele fica imunizado contra a
apatia e o conformismo. Com toda essa crença, iniciei a terapia ocupacional de MS pelas
atividades de couro e música, por serem eminentemente reforçadoras do ego e não-verbais.
Além de especificamente com o couro, dar-nos a oportunidade de trabalharmos a quatro
mãos.
COURO: Dentre os muitos materiais que o Terapeuta ocupacional pode escolher para
trabalhar, este é um dos mais agradáveis e bonitos. É um material natural, manufaturado, o
qual, depois de curtido, torna-se flexível e permeável à água. Sobre sua superfície lisa (flor)
pode-se aplicar tintas, fazer baixo relevo, escrever a fogo, etc.
Devido à sua lisura e maciez, exceção feita à sola, o contato com o couro pode sugerir o
contato com a pele humana. Isto fica muito evidente quando se vai trabalhar com peles
delicadas e finas como a pele de porco. Por esta razão, este material pode ser rejeitado. Mas
isto não é tão habitual; em nossa experiência só observamos algumas dificuldades de contato
com ele em alguns casos de fobia e obsessão.
A atividade com couro é voltada para o reforço do ego, a execução de objetos neste material
exige um projeto, uma conduta programada, o que garante baixo nível de frustração. Além
disso, o projeto pode ir pouco a pouco tornando-se mais difícil e complexo. O que vai exigindo,
a cada passo, a lembrança de um número cada vez maior de capacidades esquecidas, ou
mesmo, nunca utilizadas.
As atividades com esse material exigem contato longo com o mesmo, o que leva a paciente,
pelo menos aparentemente, a manipular e “repensar” por mais tempo o mesmo sentimento,
ideia ou lembrança, advindos desse contato. Isso equivale a pedir ao paciente que nos conte
outra vez a mesma história. À força de tanto repetir, muitos pontos esquecidos são lembrados
e novas ligações são feitas.
Além de exigir um projeto e uma ação programada, as atividades com couro têm a
característica de serem liberadoras da agressividade, mas com uma concomitante reparação
da agressão. Da seguinte forma: para fazer um baixo relevo, é preciso que o paciente bata com
martelo um ferro que tenha em sua ponta alguma coisa gravada (fase de agressão), ao
interromper a ação de martelar, o paciente encontra no couro, por exemplo, uma flor gravada
(fase da reparação). Outra característica do couro é que, por ser um material muito resistente
as ações de agressão nunca chegam com facilidade a se transformar em ações destrutivas, o
que, por si, leva a uma diminuição da culpabilidade e a um controle da impulsividade,
e tudo isto sem a menor intervenção verbal.
Esta ocupação e material foram escolhidos para serem os primeiros e mais constantes no início
da terapia de MS, porque acreditei que só poderia fazer uma ação mais profunda depois de ter
feito uma ação de reparação e reforço firme e imediata.
No início de sua terapia, MS não conseguia um contato mais livre com o couro, nem se
permitia um contato mais próximo comigo, nem eu esperava o contrário. Por essa época, ela
mussitava sem parar, e/ou apenas chamava pela sua acompanhante. Era preciso que a
alcançasse, e quanto mais rápido melhor. Então solicitei que, uma vez por semana, a
musicoterapeuta me acompanhasse no seu atendimento. Então cantávamos, enquanto
trabalhávamos com couro. Nas outras sessões, eu continuava cantando baixinho durante o
trabalho, e sempre cantava músicas do folclore francês, aprendidas com a musicoterapeuta.
Quer me parecer que cantar em francês era como permitir a ela falar uma língua estranha, de
delírio.
E o delírio é uma linguagem tão estranha quanto o francês o é para nós, que falamos
português. A repetição das mesmas músicas aliviava a atenção que os conteúdos persecutórios
exigiam, fazia apelo à memória e lhe despertava lembranças mais alegres e sadias. Além disso,
cantar baixinho, de forma monótona, produzia como que uma sonolência, pelo relaxamento
da guarda e fazia-a centrar sua atenção em mim.
Produzia uma aproximação, pela identificação, já que eu estava falando ou cantando numa
língua cuja aprendizagem ela, um dia, iniciara.
A presença da musicoterapeuta aliviava as tensões fortes vividas pela paciente no inicio de seu
contato comigo, porque era como se eu reconhecesse que ela tinha razão e direito de ter
medo e aceitasse também esse sentimento. Não procurava explicar nada. Só tentava, através
dessa “atividade não verbal” (8), levar MS a uma vivência de relaxamento da atenção e a
reviver o “tempo bom” passado na faculdade de línguas. Em suma, procurava suprimir, o mais
rápido possível, aquele círculo terrível que era seu contato com o mundo. E nenhuma
atividade produziria esta supressão tão rapidamente quanto a música. E isto porque “fazer
ritmo organiza e proporciona energia” (8), e, se produzido em grupo, funciona como vínculo de
união, facilita a melhoria do comportamento social pelo rebaixamento do sentimento de
abandono e pelo aumento do sentimento de pertinência grupal, porque produz com
naturalidade uma postura mais positiva em relação a si mesmo e uma descoberta do outro
com mais facilidade. A música torna possível a vivência rápida de êxito, colaboração,
responsabilidade e autoestima. Permite escolher a melhor e menos agressiva resposta ao
grupo.
Quando MS passou a se tratar em grupo ela participava do canto coral. Buscávamos inseri-la
dentro de um contexto social onde sua individualidade fosse reforçada pela diferenciação de
sua voz, O canto coral produz essa inserção de forma rápida com um mínimo de condução
verbal.
Nessa etapa de sua terapia, era habitual o grupo fazer vários jogos rítmicos, tais como compor
músicas com apenas uma palavra, por exemplo, o nome de cada paciente. Essas músicas
consistiam em chamar a pessoa de muitas maneiras e entonações diferentes. Aqui, era
interessante notar o quanto de sentimento se pode transmitir quando se chama o outro pelo
nome com modulações em impostações diferentes.
Em outras sessões, os jogos ficavam mais complexos, e já se tratava de compor músicas com
letra, uma melodia harmoniosa. Essa etapa era mais afeta a uma síntese do que grupo tinha
interiorizado da pessoa-moto da música. É uma etapa sempre reforçadora do ego (ainda que
possa ser um pouco ameaçadora) e da identidade. É muito gratificante pois se permite falar o
que sente sobre o outro, como se gratifica porque ouve o que o outro pensa e dele. Nessa
etapa ocorre a perda da anomia, a reaquisição da identidade pessoal, o reconhecimento social
e o sentimento de pertencer a um grupo, onde, apesar do quanto isso possa ser perigoso, o
indivíduo não se encontra esquecido ou abandonado.
MODELAGEM: A mágica das palavras foi-se perdendo. E hoje, de todos os materiais que o
homem busca para se comunicar, ela é a mais desgastada, e o Terapeuta Ocupacional se volta
para materiais mais antigos e permanentes, como a terra e a argila, entre outros.
A argila é um material natural, muito maleável, cujas partículas deslizam umas sobre as outras,
quando molhada. Quando seca, as partículas não se movem e a argila quebra com facilidade.
No trato com a argila, o homem descobre, sem consciência de esforço, que sua liberdade
cresce à medida que ele aumenta sua capacidade de dar a esse material pesado a leveza de
seu pensamento. E isto é facilitado, não só pela extrema plasticidade e naturalidade do
material, que sempre sugere novas formas, como também, para o Cristão, pela sua origem e
seu fim. Apertões ou torceduras na argila promovem o rápido aparecimento de formas muito
sugestivas e estimulantes. Repetindo Herbert Read no que se refere às artes e à escultura,
ternos “a prática da arte é um dos meios (mais eficaz) que permite reorientar os instintos
agressivos dos homens para canais de reconciliação e pacificação. De todas as artes plásticas,
a escultura talvez seja mais eficaz do que as outras porque envolve o artista num ataque direto
a um material tridimensional sólido. A escultura, adequadamente compreendida e praticada, é
uma aventura total e empenha o corpo inteiro, direta ou indiretamente, numa luta muscular,
numa coordenação de tensões que, em relação ao material, pedra ou argila, são agressivas e,
em relação ao resultado almejado são pacificas e conciliadoras” (20), o que vem reforçar nossa
tese da simultaneidade e concomitância dos opostos na relação ocupacional terapêutica em
qualquer atividade.
Foi nesta atividade que MS demonstrou maior resistência em pegar o material. Os resultados
não foram significativos, e penso que isto foi devido à prematuridade da indicação desse
material, assim como pela inexistência da identificação com o mesmo. Como já disseram
Lowenfeld-Brittain no seu livro “Desenvolvimento da Capacidade Criadora”: “não há expressão
artística possível sem auto-identificação com a experiência revelada, assim como com o
material artístico utilizado para esse fim. Este é um dos fatores básicos qualquer expressão
criadora: é a autêntica expressão do eu. Os materiais artísticos são controlados e manipulados
por indivíduo e o plano completo é seu. É o indivíduo quem usa seus materiais artísticos e sua
forma de expressão de acordo com suas próprias experiências pessoais” (18).
Acredito que a longo prazo MS conseguiria trabalhar esse material tão desmanchado que é a
argila e tão primevo quanto o homem, porque: “Como essas experiências mudam com o
crescimento, a auto-identificação abrange mudanças sociais, intelectuais, emocionais e
psicológicas” (18) no íntimo do paciente, o que promove com naturalidade a necessidade de
experimentar novos materiais, mesmo aqueles altamente ansiogênicos como a argila.
A identificação da argila como matéria de que foi feito o primeiro homem, assim como a
identificação da modelagem com o ato de criar a vida, foram motivo de belíssima citação do
poeta oriental Omar Khayyánn. Para ele, os vasos de cerâmica são os homens e Deus o oleiro.
Mas ocorre que quando se vai modelar de fato, a onipotência divina é transferida para aquele
que modela. “Entre os Vasos sem voz não era singular / Que existissem alguns capazes de
falar? / Fez-se silêncio e após balbuciou o primeiro: / - Dizei qual será o vaso e qual será o
Oleiro?”
Esta profunda relação entre o material e o oleiro é a garantia de que, quando se modela,
modela-se a si mesmo; e isto é muito ansiogênico. A identificação que se faz com a argila, a
plasticidade dessa, que exige uma conduta idêntica do paciente, fazem-no temê-la.
A atividade em argila está voltada para expressão profunda do ego. A resistência que este
material pode produzir é dada exatamente pelas suas grandes vantagens: plasticidade e
tridimensionalidade. Em modelagem, a única forma de se conseguir alguma defesa é não
pegar a argila, pois, nesta técnica, ela fica reduzida a zero e o sentimento de desnudamento
eleva-se a dez. Frente a essa realidade, o ego avalia o perigo e experimenta uma certa
ansiedade.
Em função de evitar a dor, seja qual for sua origem, o ego pode defender-se do contato com a
argila, evitando-a simplesmente.
Essas atividades exigem um equipamento especial, real, e é uma atividade onde não se
encontra nada de “faz de conta”. É inteiramente voltada para as necessidades reais de
alimentação e vestuário. Então, aqui, o objeto produzido tem que ser verdadeiro, real. Escapa,
pois, do nível simbólico.
Ao final do trabalho, todos comem o que alguns produziram, nessa etapa, à função real
acresce-se a função simbólica de estar amamentando o outro.
As dificuldades dessas atividades são propostas pelo longo tempo que demandam, pois são
muitas etapas exigidas por elas, e pelo preço habitualmente caro dos materiais, além dos
preconceitos ocupacionais e dificuldades ligadas à figura materna. Nessas atividades, em
especial a de cozinhar, MS, a princípio, demonstrou muita resistência, pois considerava-a uma
atividade “menor”.
No SER. TO, as atividades de cozinha foram organizadas seguindo 6 (seis) etapas, cujos
objetivos eram complementados na etapa seguinte, de maneira a ir do mais simples ao mais
complexo. Evidentemente, as etapas não são postas de maneira rígida. Elas são apenas uma
forma programar e se destinavam a: recreação, descontração grupal e aproximação -
atividade: comer juntos o lanche que alguns fizeram ou compraram.
A costura se limitava a embainhar roupas ou pequenas toalhas, pregar botões, passar alguma
peça a ferro.
Isso pode parecer pouco, mas é incrível o quanto a falta dessas habilidades aumenta o índice
de dependência do paciente e o quanto leva a um aumento da agressão familiar a ele.
Evidentemente o aprendizado dessas pequenas coisas produz no paciente um sentimento
maior de auto-suficiência. Além disto, costurar corresponde a emendar um pedaço de pano no
outro, fica fácil inferir que costurar corresponde a emendar uma lembrança à outra.
Isso fica muito claro quando se sugere ao paciente fazer alguma atividade a partir do
reaproveitamento de tecidos usados em roupas de seus familiares ou dele próprio. A roupa é
como uma segunda pele para quem a veste e passa a ser, poderíamos dizer, o depositário das
lembranças das situações vividas quando se estava vestido com elas. Daí que reaproveitá-las
equivale a relembrar situações, agradáveis ou não, o que por si só facilita e dirige a
conversação porque estimula a memória.
TAPEÇARIA: Além das atividades desenvolvidas na clínica, outra foi sugerida para ser feita em
casa: tapeçaria.
Essa atividade, devido à repetição (o ponto é sempre o mesmo), poderia ter sua indicação
criticada, se formos considerar apenas o diagnóstico de MS e a necessidade de relações mais
ricas que ele exige. Mas, se esquecermos o diagnóstico com suas exigências e pensarmos em
MS como um todo que, apesar de tudo, ainda tinha algumas coisas a serem salvas, então
começamos a aceitar que atividades repetitivas possam ser indicadas para esquizofrênicos.
Mesmo porque MS não realizou apenas esta; concomitantemente outras atividades, com
outros objetivos, foram realizadas. Se se pode criticar a ação repetitiva, é preciso lembrar que
o contato com lã é, devido à sua maciez aconchegante e às cores, muito estimulante. Como já
dissemos anteriormente, todo material, toda ferramenta, toda atividade, traz em si sua tese e
sua antítese. Nessa atividade, procurávamos fazer grandes desenhos abstratos, com forma
simples, para aumentar o ritmo de trabalho e, desta forma, evitar o cansaço que a monotonia
da repetição poderia levar MS a sentir e, desta forma, também levá-la a abandonar o projeto.
Parecia-nos essencial que ela não abandonasse mais um projeto, fosse qual fosse.
PINTURA SOBRE CERÂMICA COZIDA (BISCUIT): Dissemos acima que intervir na realidade
exterior modificando-a, modifica o artesão em suas realidades interiores. Pois bem: uma peça
de cerâmica, depois de cozida, é uma peça acabada, completa, pronta para o uso a que se
destina. O simpIes cozimento faz o acabamento da peça, dispensa qualquer outro, a menos
que se queira fazer alguma pintura sobre sua superfície. Mas se não o fizermos, a cerâmica
permanece bonita e útil da mesma forma. Frente ao objeto pronto, a ideia que se tem é de
que nada mais pode ser feito e, se tentado, corre-se o perigo de estragá-lo definitivamente,
mas, por lado, a observação intensiva de um objeto desperta o desejo de fazer com ele alguma
coisa. Fazer qualquer coisa ele intensifica, por sua vez, a observação do mesmo. Essa interação
mútua estabelece um contato mais forte com objeto da atenção do paciente.
Prover o cliente de uma oportunidade onde ele possa, pela pintura a frio (pintura que não vai
ao forno de oleiro) mudar o aspecto do objeto sem perder a utilidade, sempre me pareceu
extremamente importante, porque equivale a experimentar uma nova conduta frente a uma
situação velha, já conhecida, cristalizada. Esta técnica exige uma observação mais acurada do
objeto, um projeto de pintura que combine com sua forma e textura. Exige atenção, cuidado,
controle dos impulsos, senso estético, habilidade motora desenvolvida o bastante para se
pintar uma superfície côncava, convexa e às vezes áspera, irregular (cerâmicas mais rústicas).
É uma atividade complexa, com vários e diferentes níveis de dificuldades e estímulos, que, no
seu final, deixa para o cliente o sentimento positivo de ter podido intervir sem violentar, de ter
coparticipado da criação do objeto.
Portanto, ser capaz é partícipe; a loucura dá um sentimento exatamente oposto a este. Como
vemos, é atividade eminentemente voltada para o reforço do ego, com apelos projetivos no
momento em que se escolhem as cores e cognitivos quando se faz o projeto.
Nessa atividade, MS agia de forma intuitiva pura e simplesmente. Pegava um lápis, sobre a
cerâmica fazia o contorno do que queria, aplicava a tinta. Trabalhava de forma vagarosa e
atenta, depois olhava longamente para o seu trabalho. Quando a tinta estava seca,
comunicava-me que levaria a peça para casa. E assim fazendo, ia pouco a pouco preenchendo
seu mundo. Talvez essa acumulação se desse numa forma que lembra a ação de uma criança
que coloca a sua volta todos os objetos que estão ao alcance de suas mãos sem fazer nenhuma
ligação entre eles.
Mas, de qualquer forma que se desse esta posse, sua importância reside no fato de que ela
estava sensivelmente reconstruindo-se e concretamente acumulando experiências,
lembranças, aumentando seu espaço pessoal.
Pouco a pouco, foi perdendo essa necessidade, porque se tornara mais rica pela posse de suas
“artesanias” mais preenchida pelo acúmulo de suas experiências e, por isto mesmo menos
vulnerável.
Quando ela alcançou este estágio, já não solicitávamos que ela trouxesse seu tapete a cada
sessão, pois ela já era capaz de manter a relação conosco sem aquele artifício.
PINTURA SOBRE PAPEL; “Abstrair-se das realidades exteriores e voltar-se para as realidades
interiores é uma constante da condição humana” (23), diz Carlos Cavalcanti. Pintar livremente
atua de forma direta, tanto na organização individual como sobre a organização social. Ao
pintar, o sujeito busca representar seu ideal, expressar a sua visão do mundo, das coisas e das
pessoas, mesmo quando ele afirma que vai desenhar o que está objetivamente vendo na
realidade exterior. Mas ao entrar em contato com os materiais dessa técnica, ele perde o
controle sobre suas “pulsões” e pinta suas reações emocionais com seu próprio mundo e com
o mundo que o cerca. Pinta as coisas que o agradam e desagradam, sem se preocupar com a
representação formal identificável; sem levar em conta perspectiva e proporções, já que estas
existem em função da mudança da percepção e do acúmulo de conhecimento e, além disso,
ele não está preocupado em fazer um quadro de arte, mas sim em dizer o que pensa, como vê
e o que sente.
Neste instante, a pintura passa a ter um caráter determinista, já que ela é dinâmica e
unificadora, promovendo por isso mesmo, uma diminuição do controle pela volição.
A pintura promove, pelo contato com as cores, um enriquecimento das relações afetivas,
estimula o contato com o material, “aquece” a relação homem-trabalho. Como cada cor
sugere um sentimento, a simples aplicação da mesma sobre o papel traz uma mensagem
inteira da situação, interesse e conhecimento da vida e das coisas que o paciente tem naquele
instante. E nesses termos não existe o certo e o errado, o completo e o incompleto. Exigir que
o paciente crie alguma forma compreensível se seu momento for o borrão, torna a relação
estéril e a pintura inútil.
Aliás, a preocupação em corrigir e ensinar ao paciente, intervir em sua pintura, tem sido a
causa do esvaziamento dessa técnica. Já que esta conduta só faz inibir a capacidade criadora
do paciente, aumentando-lhe as dificuldades, porque pode dar-lhe somente a sensação de que
ele não é capaz de criar sozinho. Permitindo-se que o paciente pinte livremente, ele de fato vai
acumulando conhecimento (sem que isso signifique mera aprendizagem), que lhe possibilitará
uma reforma nos seus conceitos.
Isto se dará porque, ao pintar, ele reúne vários elementos isolados que formarão um novo
todo.
Pintar funciona como instrumento de evocação e pela repetição do tema (maneira do paciente
de assegurar seu domínio sobre ele) o paciente começa a usar a imaginação e a força.
E porque a cada passo o novo todo cria mais densidade, porque novas formas lhe são
agregadas, o paciente começa a melhorar a qualidade de seu pensamento e sua capacidade
crítica. À medida em que isso ocorre, o paciente busca instintivamente um novo ritmo para a
vida, uma nova forma as relações, porque já experimentou, pelo desenho e pintura, um
contato mais afetivo e eficaz na relação com suas coisas, sentimentos, lembranças, porque
teve “liberdade para explorar e experimentar, e liberdade para envolver-se, emocionalmente
na criação” (18).
A postura da paciente nesta atividade será abordada no capítulo “Material Pictórico”, para
facilitar a compreensão quanto do leitor quanto ao modus facendi da mesma.
O “se” funciona como “uma alavanca que nos ajuda a sair do mundo dos fatos, erguendo-nos
ao reino da imaginação” (13). Podemos inferir agora a vantagem e o perigo do teatro feito
com pacientes psiquiátricos gravemente enfermos.
Se considerarmos a pobreza das experiências que uma longa hospitalização pode deixar no
sujeito, diminuindo-lhe a capacidade imaginativa, então temos aí a grande vantagem de apelar
para o teatro enquanto maneira de aumentar, entre outras coisas, a imaginação. Se, por outro
lado, lembrarmos que esta mesma carência pode trazer consigo a necessidade de se apegar
fortemente às situações idealizadas, imaginadas, produzindo, por isso mesmo, um apego
maior à fantasia como única solução, então temos aí o grande perigo da mesma ação teatral.
Volto a insistir em que toda ocupação tem, ao mesmo tempo, suas vantagens e desvantagens.
Lembro-me de uma experiência por que passou uma de nossas clientes. Trabalhávamos em
um grande hospital, cujos pacientes eram egressos do meio rural e, ao realizarmos festa
junina, fizemos, como parte da mesma, um casamento na roça. Escolhemos como noiva uma
paciente que nos parecia dócil e com alguma capacidade de acompanhar a situação teatral
que o casamento era. Ela se saiu melhor do que esperávamos. Após a festa, ela teve uma forte
crise de agitação. Gritava que queria dormir com seu “marido”, porque ela tinha se casado.
Isso se deu à noite e eu já não me encontrava no hospital, por isso foi preciso chamar o médico
de plantão. A crise foi tão grande que não houve outra coisa senão sedá-la. Soube-o pela
enfermeira no dia seguinte. Como disse, saiu-se melhor do que eu esperava. De fato o erro foi
meu. Eu sabia de sua epilepsia e não me lembrei de sua deficiência de inteligência. Ela era
capaz de repetir com acerto coisas simples, como qualquer oligofrênico treinado o é. Isso lhe
deu facilidade para decorar as falas e as ações, mas não lhe dá condição para discernir entre
uma ação teatral da qual participe e a realidade de sua vida. Esse fato nos deixou, entre outras
coisas, uma lembrança muito precisa: é preciso ter muito cuidado quando se vai fazer teatro
com o paciente gravemente enfermo, especialmente na fase aguda de sua patologia.
A distância entre o real e o imaginário é tão tênue quanto a distância entre o normal e o
doentio. É tudo uma questão de volume e não de qualidade. Mas teatro não é só isso. Outras
vantagens, evidentemente com suas ameaças para o paciente, aparecem no teatro, quando
lembramos que, muito antes da representação propriamente dita, uma série de exercícios são
aplicados como “aquecimento” , o que por si só se constitui em atividade teatral.
Augusto Boal e Constantin Stanislavsky apresentam uma série de exercícios voltados para o
despertar da criatividade, memória, atenção, muitos com vistas à postura do corpo,
movimento, uso do espaço, do tempo, do ritmo, e todos têm um grau maior ou menor de
aproximação do paciente e, às vezes, de seu corpo. É preciso lembrar que existem duas
situações diferentes, simultâneas e concomitantes, na relação terapêutica. Uma, é a intenção
do terapeuta. A segunda, a intenção e o uso que faz o paciente da oportunidade que possamos
oferecer-lhe.
De fato, o perigo pode estar no jogo teatral, propriamente dito. Em “200 jogos e exercícios”, de
Boal, temos um exemplo muito claro disso, quando, no exercício “Estímulo às partes
adormecidas de cada um”, ele nos relata a “preocupação” com que certo ator ficou ao fazer o
papel de um torturador. O ator tinha percebido que “durante o exercício sentiu prazer real em
torturar” (14), e isso o angustiava. Se transferirmos essa situação para uma situação onde o
ator é o paciente psiquiátrico, temos claro que o Terapeuta Ocupacional precisa estar muito
cônscio de suas possibilidades e das possibilidades do paciente, objetivo da ação, duração e
condições do tratamento. Isto além de saber o que o exercício, como fato, pode induzir o
paciente a viver.
Das ocupações passíveis de serem usadas em Terapia Ocupacional, talvez o teatro seja a que
melhor treinamento exija do Terapeuta e mais atenção ao indicá-la.
Posto isso, como é que se passa uma ação de teatroterapia, dentro da terapia ocupacional?
O terapeuta propõe um tema que será o motor para o texto a ser elaborado e modificado pelo
grupo. A função do terapeuta, nessa situação, é, além de detectar as necessidades que
justifiquem o tema proposto, também de integrar, coordenar e dirigir os esforços do grupo
para que o texto tenha roteiro compreensível, lógico e uma unidade dramática. Ademais, cabe
ao terapeuta ocupacional observar se as soluções propostas são verossimilhantes, adequadas
e reais.
Nem sempre é o grupo que escreve seus textos; valemo-nos também de textos pré-escritos, na
forma de leitura dramática ou jogral, quando pretendemos uma atividade menos ameaçadora,
mais integradora ou quando o grupo não consegue produzir seus próprios textos ou mesmo
como preparação para atividade mais criativa e livre. Nesse caso, o texto pré-escrito funciona
como exercício de experimentação.
Segundo nossa experiência, além de quanto acima exposto com relação ao texto pré-escrito,
preferimos que a situação de estar-em-grupo de atividade teatral seja explorada
de tal forma que induza e condense os estados emocionais.
Uma vez obtido o texto, passamos à fase de ensaios que, na verdade, é uma continuação do
processo de elaboração.
Usamos para este fim todo o espaço de que dispomos, todo o material, pessoal técnico e
clientes para que a situação contida no texto tome realmente forma teatral.
Nesta etapa usamos técnicas de facilitação como mímica, jogral, máscaras, fantoches, dança,
etc. E utilizamos todo espaço disponível, áreas cobertas e a céu aberto e aproveitamos
também a estrutura normal da casa onde funcionava o SER.TO (cozinha, sala de estar, varanda,
etc.) como cenários reais onde recriamos a situação original em problemática surgiu. Quanto à
atuação nesse cenário, sempre estimulamos o cliente no sentido de que ele o modifique e
transforme conforme o que vai experimentar.
Finalmente, temos um produto que teve seu início com a proposta de terapeuta, seu meio
com o desenvolvimento da proposta e seu fim com o desenlace definitivo proposto pelo
grupo. Isso feito, podemos parar a ação, com relação a este tema, ou, então, apresentá-lo em
forma de espetáculo, se o grupo assim o desejar.
De toda maneira, o cliente “vivenciou” uma situação que foi terapêutica enquanto
oportunidade de recriar e reformular pela imitação da vida (conceituação clássica de teatro) a
realidade implícita na proposta do terapeuta, mas vivida e modificada por ele.
MÍMICA: Usamos a mímica, durante os ensaios, na forma de pequenos jogos; por exemplo o
jogo da estátua ou a representação de animais, objetos, etc., quando queremos
colocar o acento expressivo no corpo, ou então quando procuramos o equilíbrio entre a
linguagem verbal e a “gestual”. Temos observado, em muitos pacientes, uma inadequação
muito grande nesse sentido. A mímica além de profundamente catártica e expressiva, é
também rica como instrumento reeducador e recreativo. Ela é, por si só, uma atividade dotada
de princípio, meio e fim.
JOGRAL: O jogral é feito a partir de textos previamente escritos, escolhidos pelo grupo ou
indicados pelo terapeuta, que, neste caso, os submete à aprovação do grupo. O jogral é uma
leitura rítmica e dramática que empregamos quando queremos fazer exercícios de voz, ou
quando queremos modificar ou reforçar a idéia do autor. O jogral, assim como a mímica, é
uma atividade teatral completa em si, sendo também bastante agregador e estimulante.
MÁSCARAS E FANTOCHES: Máscaras e Fantoches são atividades muito ricas, porque implicam
em várias outras atividades intermediárias, a saber: projeto, corte, recorte, colagem, costura,
pintura, modelagem, tudo isso como meio para que o plano se torne factual. Usamos esses
instrumentos quando existe dificuldade na representação de uma “personagem” na medida
em que isso ameace o cliente, principalmente no caso de clientes regredidos. A proteção
contida na máscara e nos fantoches está em que a identificação do indivíduo com o
personagem não é direta, por ter como catalisador a máscara ou o fantoche. Quando o
indivíduo tira sua máscara (lato sensu) ele deixa nela a personagem que projetou.
DANÇA: Usamos a dança sempre no início das sessões, com o objetivo de produzir
relaxamento, descontração no grupo e, principalmente, maior integração inicial entre os
elementos, buscando com isso uma facilitação para o trabalho proposto. Assim, a dança é
livre, normalmente com músicas populares e folclóricas. A condução do grupo pelo terapeuta
se faz de maneira muito simples, sem intervenções, participando ele também da atividade.
Citamos e descrevemos de maneira sintética algumas das ações teatrais usadas em sessões de
teatroterapia.
Cabe ainda lembrar que cada sessão é diferente da outra e que as ações usadas em uma
podem ou não ser repetidas na outra.
Isso se dá conforme a evolução alcançada pelo grupo no trabalho teatral. Além disso, as
atividades que estamos descrevendo são completas em si mesmas. Podem como qualquer
outra atividade terapêutica. Não tem, necessariamente, de ser utilizadas como meio para
atingir uma finalidade geral como a confecção de uma peça teatral escrita pelo grupo. Isto é,
não têm que resultar necessariamente na realização de uma peça ou texto. E, é claro, podem
também ser usadas individualmente, segundo a conveniência da situação, disponibilidade de
pessoal, materiais, capacidade do terapeuta em teatro, etc.” (29)
Apesar de todos os cuidados que o teatro exige, não se pode reduzir o espaço ocupacional pela
sua retirada do arsenal terapêutico. Porque a atividade humana ultrapassa o mero ato de fazer
e evolui, numa segunda etapa, para o pensar e comunicar verbal e corporalmente o seu ser-e-
estar no mundo.
De todas as atividades, esta é a que contém maior índice de comunicação verbal e não verbal,
funcionando, ainda, como excelente instrumento de correção quando houver uma grande
defasagem entre o gesto e a intenção, entre o fundo e a forma.
Os jogos teatrais, no caso de MS, tinham por objetivo aproximar-nos dela de um jeito
brincalhão, menos ameaçador, mais mímico, próximo de seu estado regressivo.
O material passa a ser o objeto das agressões ou carinhos do cliente, numa época em que a
projeção do amor ou do ódio sobre seu verdadeiro objeto, só produziria um mento da
angústia. O contato com o material, com o objetivo expresso de com ele fazer alguma coisa,
torna a expressão dos sentimentos menos perigosa, mais viável, portanto, quando então a
experiência dos sentimentos não oferece o perigo enorme da perda definitiva.
Outra função da ocupação é a de servir de ponte entre os elementos do grupo, porque lhes dá
um instrumento comum a todos e, por isso, o sentimento de identidade grupal facilita o
aparecimento do sentimento de pertinência que, por sua vez, impede ou corrige a falta de
coesão. Em grupos gravemente enfermos, a ocupação tem que ser, necessariamente, o
instrumento, a essência. Mas, da mesma forma que a fala pode ser usada apenas para
conversar, a ocupação também pode ser usada para impedir a aproximação.
Na tentativa de alcançar o cliente, o profissional pode, a qualquer preço, buscar contato com
ele. E, caso não consiga, poderá sentir-se culpado, incapaz, sem lembrar-se de que o próprio
paciente pode não estar querendo contato. E, nesta busca do paciente, o terapeuta pode dar-
lhe tudo que estiver ao seu alcance. Esta conduta pode conferir ao Terapeuta Ocupacional o
papel de fonte inesgotável de amor, bondade, paciência, habilidades e, com isso, só reforçar a
figura idealizada de si mesmo, que ele e o paciente possam ter feito. Desta forma, tal conduta
impede que o paciente desvende a figura do profissional, trazendo-o para um plano mais
concreto, mais humano, mais real, e ele próprio ascenda a um plano mais maduro. Penso
ainda que a indicação abusiva de ocupações pode muito bem significar um enorme mecanismo
de defesa dos sentimentos de culpa e/ou de fracasso que o Terapeuta Ocupacional pode ter,
caso ele sinta que não alcançou o paciente.
A indicação oportuna da ocupação é uma dependência direta da clareza com que o terapeuta
se percebe e ao seu paciente, assim como a relação dos dois e dos objetivos da mesma.
O TRABALHO INDIVIDUAL, GRUPAL E A CARGA HORÁRIA
A paciente vinha à clínica três vezes por semana, para atividades individuais de 1 (uma) hora
cada, quando, então, trabalhava com atividades orientadas em couro e pintura livre. Seu
aspecto era tão grosseiro e frágil, que não tínhamos nenhum grupo onde pudéssemos colocá-
la.
Além disso, seu ego estava muitíssimo fragmentado e sem nenhuma capacidade de elaborar
suas tendências destrutivas, nem de suportar nenhuma agressão que o grupo pudesse exercer
sobre ela. Procuramos, então, trabalhar inicialmente a partir do reforço das relações
transferenciais positivas, até que pudéssemos senti-la mais capaz para qualquer elaboração,
ainda que não houvesse verbalização quanto ao elaborado. Aliás, nossa intenção não era tanto
esperar o aparecimento da capacidade elaborativa para indicarmos o grupo. Queríamos
apenas agregar de forma mais rápida seu ego, para torná-lo capaz de suportar a angústia que o
desconhecido, no caso o grupo, desperta. Preferimos centrar a ação terapêutica em nós
próprios, como modelo de ideal. Foi quando percebi que ela podia suportar que lhe “tirassem”
algo sem que isso lhe produzisse maiores danos. E que, em relação ao grupo, este também não
se sentiria tão ameaçado ou roubado pela sua entrada. Ameaçado porque o aspecto de MS era
o caricato da louca, e roubado porque novos elementos em grupo já formado exigem sempre
nova divisão de papéis e ligações, às vezes tão dificilmente conseguidos em grupos
gravemente enfermos; então, introduzi-a em um grupo, da seguinte forma: como as
dificuldades acima referidas foram sendo superadas e o aspecto da paciente foi melhorando,
após três ou quatro meses de terapia individual, começamos a sentir a necessidade e a
possibilidade de colocá-la no grupo. Então, solicitamos que ela chegasse mais cedo à clínica,
para ver e ser vista pelos elementos que, àquela hora, terminavam uma sessão grupal, junto
dos quais pretendíamos colocá-la. Apesar de alguns autores não concordarem em dar
informações prévias sobre o grupo, ou mesmo atender individualmente pacientes destinados à
terapia grupal, porque isso sedaria as angústias e poderia promover um aumento de
resistência, pessoalmente preferi correr o risco em busca de um alívio imediato para a angústia
brutal em que ela vivia. Durante esse tempo, eu respondia a toda e qualquer pergunta que
ambas as partes dirigiam a mim quanto a si mesmas.
Logo depois, inverti o processo, comecei a formar um grupo em torno dela, da seguinte
maneira: aproveitei que uma cliente queria aprender a tocar acordeão e solicitei que a
musicoterapeuta a atendesse após o horário, enquanto que, na sala ao lado, eu assistia MS.
O som do instrumento atraía sua atenção e ela gostava. Desde a segunda sessão, a presença
da musicoterapeuta se fez necessária como forma de sedar o terrível medo que a paciente
sentia por mim e de estar sozinha comigo na oficina. Este medo era tamanho, que impediria a
continuidade da terapia, caso não fosse sanado de imediato. Nestas sessões enquanto
trabalhávamos com couro, cantávamos músicas em francês e folclóricas brasileiras. Pouco a
pouco, o medo foi diminuindo, a paciente já não procurava tanto pela sua acompanhante. Já
aceitava ficar sozinha comigo e até com a porta da oficina fechada; então, pude introduzir um
novo elemento na relação: a garota que estudava acordeão.
MS
Esta situação continuou por pouco tempo, porque logo depois MS nos pergunta: “— Doutor,
quando vou ter essa ruma de amigos?”, ao ver o grupo saindo de uma das oficinas.
A partir desse pedido, ela foi sendo introduzida nesse grupo de forma gradual. Participava, às
sextas-feiras, algum tempo o canto coral e algum tempo de atividade individual comigo. E isto
sempre por sua solicitação. Quando ela começou a dar mostras de que preferia o grupo à
atividade individual, encaminhei-a à sessão de teatroterapia, também uma vez por semana.
Fui, desta forma, ampliando seu espaço de relações, à medida que ela solicitava mais contato.
Quando ela e o grupo já eram capazes de “darem” ou “tirarem” algo de si e para si, dela e para
ela de forma pouco danosa, suspendemos a relação individual e ela continuou freqüentando
apenas as sessões grupais. O que se dava também 3 (três) vezes por semana, mas com uma
carga horária por sessão de 2 (duas) horas.
Agora a pirâmide toma o aspecto que lhe é próprio quando quero esquematizar a relação
grupal de terapia ocupacional.
GRUPO
FERRAMENTAS MATERIAIS
Acredito que atividades grupais precocemente indicadas podem ser tão danosas quanto o ócio
a que MS fora submetida durante sua internação. A entrada ou saída de elementos de um
grupo obedece a determinadas motivações do próprio grupo. Da mesma forma que o sujeito
pode procurar um grupo que lhe satisfaça as necessidades, pode querer abandoná-lo porque
se sente frustrado em seus intentos, ou porque ele e o grupo não se harmonizam. Da mesma
forma, o grupo pode excluir um dos elementos. Nisto reside um dos “perigos” do grupo, e eu
não queria expor MS a mais uma situação onde pudesse ser rejeitada. Se, por um lado, o
homem é um ser gregário, por outro, há momentos em que o mundo social é tão ameaçador
que a loucura, como oportunidade de isolar-se, é de fato o melhor modus vivendi.
Além destas razões, este grupo e seus participantes eram especiais, todos tinham algum
comprometimento mais ou menos grave na área afetiva, do humor, da percepção do mundo e
de si mesmos.
No contato com MS, nunca nada foi interpretado para ela, o máximo que fazíamos era refletir
seu sentimento e às vezes repetir o que ela nos dizia. Por outro lado, não aceitávamos seu
comportamento bizarro e destrutivo.
Procurávamos provê-la de atividades onde ela pudesse não só manifestar isto, bem como
corrigi-lo pela experimentação de uma nova conduta.
Acreditamos que nosso trabalho com ela dispensava realmente intervenções verbais, devido
ao fato de seu estado de demolição ser tão grave, que precisávamos reorganizá-la como quem
dá a uma criança a oportunidade de se organizar.
Esta permissividade e esta não intromissão, neste caso tão necessários, foram a garantia da
rapidez do processo de terapia de MS. Todo o seu tratamento teve a seguinte carga horária.
ATIVIDADES INDIVIDUAIS:
De maio a agosto de 1977
3 vezes por semana - sessões de 1 (uma) hora
Horas contratadas - 46 horas
Participou - 44 horas
Faltou a - 2 horas
ATIVIDADES GRUPAIS
De setembro de 1977 a julho de 1978
Horas contratadas - 150 horas
Participou - 134 horas
Faltou a - 16 horas
É uma carga horária pequena e nunca os estímulos sensitivos, táteis, coloridos e sonoros foram
tão empregados como o foram com ela. E foram eles que a salvaram, tenho absoluta
convicção disso. Era preciso permitir a MS experimentar um novo desejo de viver, era
dispensável falar-lhe disto. A Terapia Ocupacional é, de fato, o método que garante esta
rapidez, porque tudo que é comunicado, acontece de forma simultânea e concomitante em
dois níveis, às vezes antagônicos, outras vezes reforçadores de si mesmos; e ainda, de outra
forma, como arquivo concreto, plástico, de um sentimento, desejo ou fantasia que se
pretende comunicar mas não se quer elaborar no momento. Tivemos oportunidade de viver a
seguinte experiência: um de nossos pacientes, enquanto nos falava o quanto era livre de
preconceitos e medo, modelava um tatu. Enquanto, a nosso pedido, ele nos falava do tatu, ia
trabalhando e no final tinha modelado um pássaro de asas abertas. Desta forma, ficou muito
natural para o paciente ver o quanto ele se idealizava. Pôde ver com facilidade, com o mínimo
de condução verbal (o que é um tatu para você?), a diferença entre o real e o ideal, ou se
preferirem, entre a depressão a mania. Não importa que interpretação se possa dar para o
pássaro e o tatu, O importante é que a diferença entre eles é vivida de forma, poderíamos
dizer, visceral, pelo paciente.
E viscerais são todas as experiências vividas pelo paciente em qualquer atividade, porque o
trabalho é, voltamos a insistir, uma atividade eminentemente humana, agregadora, corretora,
reforçadora e absolutamente natural.
EVOLUÇÃO
14-04-77 - Ouvindo vozes, com medo de mim. Não permitiu que eu fechasse a porta da oficina.
Pintou “a moça mais bonita da cidade” (Quadro 1). A cada momento, chamava sua
acompanhante.
15-04-77 - No início da sessão, muito excitada, medrosa. Acompanhando a atividade com
couro, cantávamos com ela. Afinada, bom senso rítmico. Saiu da sessão mais calma.
29-04-77 - Junto da atividade com couro, fizemos canto livre com acordeão. Não se preocupou
tanto se a acompanhante estava presente ou não.
03-05-77 - Entrevista com a tutora: Paciente melhorando, mais independente, aceita vir ao
SER.TO com espontaneidade, mais vaidosa, “até dormindo sem medicação”. Sua
higiene sempre melhorando - sabe a hora de se lavar e como fazê-lo. Olha-se no
espelho “coisa que não fazia há muito tempo”.
06-05-77 - Chegou elegantemente vestida. Aceitou permanecer na oficina sozinha comigo.
Descontraída, ideia - movimentos díspares.
13-05-77 - Aceitou ter outras pessoas na oficina. Pediu músicas novas e dança.
01-06-77 - Entrevista com a tutora: “Está melhorando consideravelmente, estou maravilhada,
não esperava realmente tanta melhora. Já dá alguma ajuda em casa, mas pouca.
Ainda é reivindicante. Os irmãos não assumiram completamente o pagamento do
tratamento: eles acham que eu estou exagerando quando falo de sua melhora, mas
é porque não estão convivendo com ela”.
04-06-77 - Desenha “o cinema” - um casal na tela e uma plateia.
08-06-77 - Podemos pensar em passá-la para o grupo. Tranqüila, mantém os solilóquios, grave
defeito. Autismo.
20-06-77 - Desenha “um quadro de família pobre” (o homem em trabalho). A paciente mostra-
se interessada em trabalhar com o grupo. “Doutor, quando vou ter essa ruma de
amigos, como essas mocinhas aí?”.
22-06-77 - Desenhou “Iracema” (Quadro II). Já não ouve tantas vozes, nem mussita durante o
trabalho.
01-07-77 - Continua em atividade individual comigo. Chegando mais cedo para ir conhecendo
e sendo conhecida pelo grupo, para ir se adaptando a ele. Hoje mussitando um
pouco, perguntei sobre o que e com quem falava: “Estou pensando em voltar para
a Faculdade o ano que vem”.
15 a 25-7-77 - Recessos -11 dias corridos.
29-07-77 - Mais atenta, mantém ritmo e afinação adequados. Vaidosa. Mais sociável.
06-08-77 - Mais afetiva na sessão. Sugere especificamente músicas que quer cantar. Vamos
fazer uma tentativa de colocá-la no grupo da tarde.
07-08-77 - Faz comparação entre o hospital onde esteve internada e o SER.TO: “Lá é só tomar
remédio e ler revista e dormir o dia inteiro. Havia uma aula de costura para elas”. E
aqui? “Aqui é mais alegre, as aulas são para o raciocínio. E lá é só tomar remédio e
fazer provas às 8, 14 e 20 horas”. Perguntei sobre a futura participação no grupo e
ela disse: “Mais alegre com os rapazes todos juntos”.
13-08-77 - No grupo de musicoterapia. Houve aceitação por parte do grupo, sem “festas”, mas
sem ignorá-la.
16-08-77 - Atividade de mímica, higiene corporal feita pela manhã. Cabelos pintados, aspecto
melhor. Tenta comunicar-se com o grupo, que ainda está resistente a ela. Recado
da tutora: “O que quero lhe falar é que desta vez ela não pediu mesmo o “Modess”,
mas pediu o papel ou algodão para usar. E eu aproveitei então e lhe expliquei como
usar o Modess. Assim, ela o usou”.
22-08-77 - Desenha busto de mulher - outra representação de “Iracema” (Quadro III). Seu
aspecto físico é outro. Cabelos pintados, mais gordinha e mais remoçada. No
trabalho tem se mostrado mais independente, e se insisto em ajudá-la, irrita-se
comigo.
Entrevista com a tutora: “Às vezes é agressiva com a acompanhante, tem estado
rebelde. Desde criança ela tem um gênio terrível, mandona, e de uma certa forma
impunha medo à família.”
28-08-77 - Entrevista com a tutora: “Tem ajudado em casa, alegre, e às vezes se dispõe a fazer
os chamados trabalhos menores. Os irmãos continuam abandonando-a. Eles nem
percebem o abandono em que a colocaram. Mas ela está tão mudada que acho um
milagre”.
29-08-77 - No grupo de artesanato e pintura. Tem sido aceita pelo grupo e aceita a todos.
Alegre. Viva. Seu desenho é criativo, nunca se repete e já está flagrante sua
organização tema-espaço. Desenha a “Arca de Noé” e “O que acha do ano 2.000”
(salvação).
23-09-77 - Todo este mês só no grupo. Tudo tranqüilo. Introjetou a casa e o grupo como
elementos bons.
24-09-77 - Muito limpa, asseada, vaidosa, aspecto mais sadio. Vê a clínica como escola, gosta
de vir e diz que é bom porque tem muitos amigos.
05-10-77 - Entrevista com a tutora: “Em casa tão bem como nunca esteve. Já discute e se
defende a nível normal, guardados os limites”. Com relação à participação no
grupo: “Isto mudou tudo em casa. Já não se deita tanto, ajuda os sobrinhos, já não
dá tanto trabalho, quer aprender coisas”.
23-11-77 - Iniciando atividades na cozinha, demonstrou aparentemente muita resistência.
07-12-77 - Sua participação hoje me pareceu mais espontânea. Chegou até a criticar o trabalho
que vinha fazendo.
09-12-77 - Paciente mais independente no trabalho. Discreta, calma nos contatos. Quando da
uma resposta discrepante, o grupo “goza-a”, porém ela continua a atividade.
12-12-77 - Desenha com lápis preto e pinta “O professor com seus alunos - a escola”.
14-12-77 - Participação mais espontânea, fazendo perguntas e objeções. Continua dizendo que
não gosta de cozinha.
21-12-77 a 09-01-78 - Recesso - 20 dias.
11-01-78 - Hoje ela esteve mais presente. Acompanhou de perto a elaboração do programa de
atividades para este ano. Suas opiniões me pareceram mais coerentes com o
assunto que se discutia. Distribuiu doces entre os amigos.
20-01-78 - Pinta rosto de mulher (Quadro IV).
23-01-78 - Desenha e colore “A primavera” (amor).
25-01-78 - Aparentemente, aceita a atividade (cozinhar), com um comportamento mais
cooperativo, atende às solicitações e aceita sugestões.
15-02-78 - Mais falante durante a sessão. Mostra-se mais cooperativa e ativa. Participava da
pintura e do artesanato antes de ir para a cozinha. Alegre.
27-02-78 - Conheci a mãe de MS hoje. Ficará em Belo Horizonte algum tempo. MS pinta a série
(Quadro V).
01-03-78 - Mostra-se interessada em aprender a fazer almofadas. Fácil aprendizagem, ritmo
rápido, produtividade boa. Sempre pergunta se está certo.
23-03-78 - Paciente mais independente. Já não pergunta tanto se está certo.
12-04-73 - Trabalhando com máquina de costura. Aprendeu rápido.
10-05-78 - Hoje ela me pareceu com os pés na terra. Sua conversa só se referia ao que estava
fazendo. Boa participação verbal, conseguia acompanhar o que era dito pelo grupo.
17-05-78 - Mais habilidosa na cozinha, seus modos me pareceram mais femininos. Aceitou
todas as atividades de cozinha que lhe foram propostas.
24-05-78 - Chegou bastante atrasada. Mas me pareceu disponível para as atividades.
31-05-78 - Mais disponível para fazer contatos. Deu sugestões, teve uma participação mais
ativa. Fez perguntas.
14-06-78 - Suas contribuições para as atividades têm sido mais significativas.
21-06-78 - Ensaio geral para a festa junina, a qual compareceu.
02-07-78 - Não compareceu.
04-07-78 - Não compareceu.
16-07-78 - Não compareceu.
MATERIAL PICTÓRIO
A pintura foi a atividade na qual MS mais se empenhou. E o fazia de forma calma, longa e
relaxadamente. Às vezes ela desenhava com lápis, depois coloria ou pintava, outras vezes
pintava direto sobre o papel. Não fazíamos nenhuma intervenção, porque acreditamos ser
extremamente difícil traduzir em palavras os sentimentos expressos de forma plástica.
Aqui, repetimos Goethe, citado por Herbert Read “Falamos demais; deveríamos falar menos e
desenhar mais. Ao desenhar a alma reconta parte de seu ser essencial, e são precisamente os
segredos mais profundos da criação, os que se apoiam basicamente no desenho e na escultura,
que a alma assim revela” (20).
A paciente usava quanto material estivesse à sua frente. Esses quadros pintados com guache,
desenhados com lápis de cor, canetas hidrocor, etc., falam, com seu colorido e forma, da cor e
da vida readquiridos por ela de uma maneira tão eloqüente, que justificaram e animaram-me a
escrever este livro.
Muitos de seus quadros têm apenas datas, outros só sua assinatura (à qual ela passou a apor o
título de “doutora”), apesar de sempre solicitarmos a ela que, ao final da sessão, colocasse o
seu nome, data e ordem em que foram pintados. Mas nem sempre isto ocorria.
Procurei selecionar apenas os quadros completamente identificados por ela ou por mim, e
abandonei os outros para não cair no risco de forjar uma seqüência artificial e falsa de sua
evolução. Procurei, também, por medida de economia, selecionar aqueles absolutamente
significativos.
O texto que acompanha cada desenho é uma interpretação livre de minha parte. Procurei
deixar as palavras fluírem na busca - muito difícil por sinal - de uma descrição, tão espontânea
quanto possível, dos sentimentos que cada pintura me sugeria. Sei que dessa forma eu
observo muito mais minhas particularidades subjetivas, mas procurei colocar-me frente a cada
quadro de MS, como um “especialista” que conhece o histórico, o material, a técnica
empregada, assim como o momento da paciente. Dessa forma, procurei não apenas observar
o belo, mas fazer uma reflexão sobre o todo, já que toda obra suscita e desperta sentimentos
no outro e, mesmo porque no trabalho o homem “exterioriza-se, desdobra-se, oferece-se à
contemplação própria e alheia” (28).
À medida em que achei indispensável, acresci à minha fala conceitos do teste “Pirâmides
Coloridas de Pfister”.
Mas, por mais que eu tente, nenhuma palavra será tão eloquente quanto os quadros de MS.
O material usado para pinturas e desenhos era sempre papel Chamex 100 formato 220 x 330,
tinta guache Hering, lápis de cor Fritz Johansen, ref. 1724-P.
Isto não impedia que ela usasse, quando assim o desejasse, outro material tal como caneta
hidrocor, outro tipo de papel em outro formato. Assim é que se ela via pedaços de cartolina
sobre a mesa, desenhava sobre eles, parecia-nos que este era o papel que ela mais gostava,
mas como nunca verbalizou sua preferência, não mudamos o material. Acredito que a médio
prazo ela acabaria por mudar de papel, caso o indicado não a satisfizesse de fato.
Dividi suas pinturas em dois conjuntos, a saber: a figura humana e outros temas; o cinema, o
homem em trabalho, a salvação, o futuro, a clínica, o amor. A fim de tornar possível a
reprodução gráfica dos desenhos de MS, vimo-nos obrigados a decalcar os quadros de
números II, III, partes do V, partes do VII e partes do IX, devido ao fato deles terem sido feitos
de forma muito tênue.
A FIGURA HUMANA
QUADRO 1 - 14/ABRIL/77
Pintado na primeira sessão de Terapia Ocupacional. Sessão individual. A paciente pinta uma
figura humana que é composta só de cabeça, da qual, à guisa de “braços”, saem lágrimas. A
limitação a estes elementos apenas e tal como está organizada é própria de estados
regressivos profundos, e denota uma dificuldade com o corpo, mostra uma tendência à
intelectualização e dificuldades no plano afetivo. Ë um quadro monocromático, está pintado
em preto, apesar de à sua frente terem sido colocados vários vidros, com várias cores e tons.
Aqui, a cor escolhida é sintomática de “perturbação na esfera emocional” (12), negação dos
estímulos cromáticos colocados à sua disposição, “sombreamento, fechamento” (12).
Na sessão seguinte, recebemos da tutora o seguinte recado: “. . . que MS teve uma crise de
choro. . . E hoje, antes de ir, custou a acalmar-se...”
A este quadro, ela deu o nome de “A moça mais bonita desta cidade”.
Foi pintado com a porta da oficina aberta; nesta sessão, MS chamava a cada instante sua
acompanhante, temia ser abandonada por ela. Chorava, queria ir embora, foi com muito custo
que consegui levar a sessão até o fim, mesmo assim só o consegui depois que chamei sua
acompanhante para ficar conosco na sala. Esta senhora era também egressa de um hospital
psiquiátrico e MS tomava-a por cunhada de sua irmã. Mais tarde, quando soube qual era a
ligação real desta pessoa com a família, passou a ter um relacionamento muito difícil com a
mesma. Algum tempo depois, esta ligação foi interrompida e MS passou a ser levada ao
SER.TO por seus sobrinhos.
QUADRO II - 22/JUNHO/77
Pintado 2 meses após o início da Terapia Ocupacional. MS fez com lápis preto (grafite) uma
figura humana completa. A figura esta desenhada com traços leves, tem dedos pontiagudos, é
transparente. Esta figura é significativa ainda quanto a seu estado de regressão e fragilidade.
Mas o aparecimento do corpo inteiro denota maior contato com o ambiente, ainda que com
defesas; permanecem os grandes olhos e o conjunto sugere uma figura com raiva.
A esta figura completa e inteligível, indicativa de maior organização interior, a paciente deu o
nome de “IRACEMA”. Entendo esse trabalho como sendo a busca da identificação com a figura
feminina idealizada - Iracema é a personagem do romance de José de Alencar - “a virgem dos
lábios de mel”. Penso que este quadro pode ser visto como um projeto para o vir-a-ser.
QUADRO III - 22/agosto/77
Desenhado 4 meses após o inicio da Terapia Ocupacional. A paciente desenha com lápis preto
(grafite) o busto de uma mulher e colore a blusa, lábios, maçãs do rosto e a fita no cabelo de
vermelho. Esta cor, isoladamente, pode ser significativa de “estados afetivos indiferenciados”
(12); MS aplica a cor de forma tênue, o que denota, neste caso, o aparecimento da afetividade,
timidamente, mas que já se esboça. Os braços parecem abraçar, mas abraçam o vazio. O que
denota falta de objeto externo, embora o ego já se mostre mais integrado. Ainda podemos
ver, apesar das melhoras, aspectos paranóides e defensivos dos contatos, tanto pelos grandes
olhos, quanto pelos dedos pontiagudos. Neste quadro, a hemiface esquerda sugere uma
expressão de depressão e a direita um olhar mais franco. O conjunto perde a expressão de
raiva e passa a sugerir alguma calma e discreta depressão.
A timidez se observa na leveza de seu traço e a vaidade, no laço de fita na cabeça. A tenuidade
do vermelho e a leveza do traço podem também estar ligados a um rebaixamento grave da
agressividade vital de MS.
QUADRO IV - 20/janeiro/78
A paciente pinta com guache em tons vermelho, rosa salmão, amarelo-ouro e reserva o preto
para o contorno dos olhos, uma linda figura feminina que traz sobre sua cabeça um “chapéu
de palha” e no rosto uma expressão coquete.
Pintura esteticamente bela, mostrando narcisismo; a pessoa que se sente amada, desejada e
que começa a amar e desejar.
Figura muito integrada, significativa da integração interior vivida pela paciente. Neste quadro,
ela mantém os grandes olhos, mas os tem fechados. Já não se observam os aspectos
paranóides, mas podemos ver discreta depressão. Neste quadro, o amarelo, cabelos que
ladeiam o rosto em vermelho, se contrapõe à segunda cor, como que limitando-a. O vermelho
significativo de uma carga maior de impulsos (“compulsividade”) (12) na extroversão, vê esta
característica socializada pelo amarelo.
E, como que para reforçar esta socialização, o vermelho se vê diluído pelo branco e tornado
rosa, que o limita entre o tronco e o chapéu.
A diluição de uma cor pelo branco promove o esmaecimento da cor mais forte, neste caso o
rosa sugere uma diminuição dos elementos compulsivos do comportamento de MS.
Este quadro foi pintado sobre um pedaço de cartolina branca de 27x30 cm e a ele não foi dado
nenhum nome. Parece-me que dar nomes aos quadros era uma forma de reforçar o que ela
buscava comunicar e sentia não ter conseguido.
Dar nome às garatujas tem grande significado com crianças pequenas, corresponde à saída do
“pensamento cinestésico” (18) (ação pela ação) e à transferência para o “pensamento
imaginativo” (18) (a criança começa a fazer imagens mentais). Com MS, acredito que este
pensamento se ajusta perfeitamente aos primeiros quadros. Mas, com relação a este, não dar
nome algum é indicativo de que ela conseguiu com muita expressividade e força, retratar suas
vivências.
De fato, a expressividade desta pintura é tanta que dispensou MS de dar-lhe um nome; nele,
mais que nos outros, ela conseguiu fazer valer in totum sua intenção de produzir algo que
retratasse o seu estado atual.
QUADRO V - 27/fevereiro/78 (3 quadros)
Pintado 10 meses após o início da Terapia Ocupacional.
A mãe de MS morava fora de Belo Horizonte e por essa época veio ver a filha. MS pinta com
guache em tons: verde-petróleo, azul-cinza, amarelo-ouro e marrom-escuro, paisagens e
figuras humanas.
A somatória do preto a qualquer outra cor tem significado diferente da somatória com o
branco.
Com o segundo significa uma diluição, uma perda de força, enquanto que a mistura com o
primeiro é sugestivo da negação. Equivale a como se os sentimentos readquiridos por MS
começassem a ser negados quando do seu novo e difícil contato com sua mãe. Após a chegada
da mãe a Belo Horizonte, MS começa a ser acompanhada por ela à clínica. A mãe ficava na sala
de espera com um terço na mão até dormir. Uma vez interrompeu uma sessão de MS para
chamar-lhe a atenção (ela estava se negando a ficar na oficina); expliquei-lhe a função da
oficina, solicitei que ela não entrasse mais ali enquanto MS estivesse lá dentro. O fato não se
repetiu.
QUADRO VI - 04/junho/77
O CINEMA
Esta cor está ligada à introversão, é a cor da “adaptação afetiva” (12), sua ação poderia ser
vista como a de elaboração dos estímulos. Seu uso em excesso pode significar forte controle
nas relações, e desligamento do indivíduo.
É interessante notar que a paciente preferiu esta cor para representar um grupo de pessoas
que assistem a um filme e, na tela, “um casal de namorados”. Aqui se esboça com mais
intensidade a cena amorosa, edípica. Entendo este quadro também como uma diminuição dos
elementos persecutórios. Acho-o extremamente positivo, na medida em que ele possa
significar a coragem de se expor. Exposição ainda sob controle, que nos é sugerido pela cor
usada, mas de qualquer forma consentida; sugestão que o grupo de assistentes, pela sua
postura, nos dá. Precisamos salientar que poucos dias depois MS manifestou desejos de
participar do grupo. A este quadro ela deu o nome de “O CINEMA”.
QUADRO VII - 20/junho/77
O HOMEM EM TRABALHO – “UM QUADRO DE FAMÍLIA POBRE”
Este quadro esta desenhado em grafite e marrom (segunda linha do solo) e é dividido em dois
planos. Ele representa o universo da lavadeira. No plano superior, a lavadeira vai “à casa rica”
buscar a roupa suja para lavar; no segundo a mesma lavadeira chegando em “sua casa pobre e
os tanques no fundo do terreno”. Este quadro é significativo da capacidade readquirida por MS
de fazer relações entre os objetos do mundo externo, ligando-os entre si numa relação
adequada. É também significativo da relação afetiva com o trabalho, foi a forma que ela
encontrou para nos relatar os hábitos de sua família, além de nos mostrar como o trabalho é
integrador. No mínimo, neste caso, ele integrou os dois mundos de MS. O mundo rico da
saúde e o pobre da doença, além de mostrar a cicloidia ainda presente em sua estabilidade
psíquica.
A 2º linha do solo, pelo fato de ter sido a única colorida e ainda assim de marrom, parece-nos
reforçar nossa interpretação de que o segundo plano refere à sua patologia. Isto é confirmado
pelo fato de que “o marrom não é uma cor habitualmente usada indivíduos normais” (12).
Não importa em que percentuais as cores se distribuem nesse quadro, e se estão ou não
esmaecidas, pois concretamente a paciente as usou sendo isto reforçado pelo fato de que seu
uso se deu para expressar um sentimento de fé. Evidentemente, o fato de sua aplicação ter
sido feita de forma tênue, como o foi, significa ainda uma inibição dos sentimentos que nela
agora reaparecem. Por outro lado, a importância deste quadro reside também no fato dele ser
a representação da salvação, apesar de quanto o ambiente possa estar agressivo ou
ameaçador. A este quadro ela deu o nome “ARCA DE NOE”.
QUADRO IX - 29/agosto/77
O FUTURO – “O QUE ACHA DO ANO 2000”
A paciente desenha com grafite e colore de vermelho prédios, carros e pessoas. Escreve no
quadro as seguintes frases: “O que acha do ano 2000” e “os carros do ano 2000 em diante sem
precisar quem os guie”.
Entendo este quadro como a manifestação da crença que ela experimenta de um dia
“melhorar de tudo”, ter alta e “voltar para a faculdade”. É também significativo de que neste
instante a paciente já não nega a existência de suas dificuldades, pelo contrário, percebe-as
assim como percebe a necessidade de tratar-se, como também a possibilidade de salvar-se e
retomar sua vida. Denota ainda, pela base afunilada do prédio central, sua instabilidade.
E pelo fato das pessoas estarem separadas entre si pelos prédios, podemos ver seu temor
ainda existente de aproximar-se dos outros. A identificação com o automóvel sugere-nos
desejos de autoguiar-se. A pequena faixa azul na parte superior do quadro, céu, pode ser vista
como uma tentativa de controlar a impulsividade expressa pelo vermelho, assim como uma
dificuldade de visualizar o seu espaço futuro. Mas, de qualquer forma, é também significativo
de: “estou aqui embaixo e o céu lá em cima”. Isto me parece bom porque, de fato, é uma
representação bem próxima do real, já que representar em perspectiva exige não só muito
conhecimento como também segurança quanto aos sentimentos. E aqui, ela fala francamente
do futuro, ela o deseja bom, mas não tem certeza disto. Já no quadro anterior — “Arca de
Noé” — o céu ocupa todo o espaço entre o mar e arca, pois esta é uma situação que ela já
conhece. O céu, portanto, é uma coisa boa a se alcançar, mas é difícil chegar até lá.
QUADRO X - 12/dezembro/77
A CLÍNICA - “O PROFESSOR COM SEUS ALUNOS”
Este quadro foi pintado uns dias antes de nossas férias, e representa nossa clínica. MS procura
representar a clínica, tal como ela agora a vê e observa concretamente, pinta as pedras que
revestem sua fachada, as árvores, desenha-me assentado na mesa, como eu às vezes ficava.
Desenha um sol no canto superior direito. Em nossa cultura, escrevemos da esquerda para a
direita, onde se dá o fim da frase. De fato, este canto no teste da árvore significa “chegada,
zona de atividade, espaço do ator na vida, fim, alvo” (11), segundo a simbologia do espaço, de
Grunwald Kock. Além disso, o sol está pintado em amarelo-ouro, que é uma cor significativa de
“extroversão mais socializada, mais adaptada” (12), com melhores relações com o ambiente. O
que é reforçado pelo fato dela ter objetivamente observado a clínica, as pessoas com seus
hábitos (assim como os quadros VI, VII). Posso entender este quadro como indicativo de uma
diminuição da idealização que acaso possa MS ter feito com relação a nós.
Outra observação refere-se à estrada negra frente à clínica; pode ser a representação objetiva
do asfalto, mas pode significar seu temor pelas férias do Terapeuta, o que significaria, para ela,
ser lançada no mundo que tanto a atemoriza. Mas todo o conjunto é sugestivo do quanto a
clínica passou a ser objeto bom para MS e, por isto mesmo, o medo de sua perda. A este
quadro ela dá o nome de “o professor com seus alunos”.
QUADRO XI - 23/janeiro/78
O AMOR – “A PRIMAVERA”
Desenhado após as férias. Neste quadro, desenhado e colorido com lápis nas cores amarela,
vermelha, azul e verde, MS faz árvores (a da extrema esquerda sem colorir), um homem
montado a cavalo, sol, lua e, no centro do papel, um coração vermelho com um casal. É um
quadro sugestivo da alegria da volta, do reencontro. Como MS disse, “primavera” de
sentimentos sutis, novos, nascimento de emoções ternas, mostrando toda a afetividade se
abrindo. É um quadro lírico, cuja beleza retrata o nascimento do amor numa psicótica. Aqui é
preciso salientar que este quadro, pelas cores usadas, reforça a interpretação daquele que leva
o nome “Arca de Noé”. O amor torna o mundo bom e sua existência salva o homem do
naufrágio, acalma os ânimos, domina a violência, (o homem montado a cavalo) dirige os
instintos. A este quadro MS deu o nome de “A primavera”.
Como vimos, pintura e desenho foram as técnicas com as quais MS mais se identificou e em
que, portanto, mais se empenhou. As outras atividades foram decisivas no seu tratamento,
mas estas duas foram a tônica do mesmo.
A motivação para a pintura era em MS uma necessidade visceral e ela buscava em si mesma
seus temas. Ela não procurava representar o que via, mas sim o que sentia. Com sua entrada
para grupo, MS continuou pintando o que sentia, mas já representando também o que via e
como o via.
Só se pinta ou esculpe aquilo que é verdadeiramente uma necessidade vital para o indivíduo
no momento. Intervir no processo criativo é matar no nascedouro a inspiração, a coragem de
liberar-se, e só induz o paciente a cifrar ainda mais suas figuras, porque a intervenção,
conforme a maneira que for feita, é vista como instrumento de limitação, de invasão da
intimidade (vide evolução datada de 28-08-77), o que pode levar o paciente a se irritar, rejeitar
a atividade ou até mesmo abandonar a terapia.
A conduta do Terapeuta Ocupacional frente a quem pinta ou esculpe deve ser discreta, afetiva.
E, caso seja necessária qualquer intervenção, seja para orientar quanto à técnica de soldagem
da argila, por exemplo, seja para fazer qualquer intervenção verbal, o comportamento deve
ser oportuno, franco, comedido. Deve-se construir frases que não sugiram ambigüidade, deve-
se fazer exatamente a pergunta ou afirmativa que se quer de forma franca e aberta: o que é
isso? O que foi que você pintou? Este quadro, o que significa? Ele está completo? Você pode
fazer melhor. Tente de novo.
Vejam, se afirmo que o quadro está incompleto dizendo — complete-o — estarei exigindo do
paciente o que ele não pode ou não quer nos dar. Se confirmo inadvertidamente que um
quadro é uma seqüência de um anteriormente pintado, posso inibir esta forma de associação
livre de idéias e o paciente interromper sua seqüência. Se, em lugar do - que é isto? - eu de
início afirmo isto é ... posso acertar porque o paciente de fato fez algo compreensível; o que
lhe agradará. Como posso, não acertando, apenas deixar claro que ele não conseguiu
comunicar o que pretendia, no nível em que eu podia compreender, o que o frustrará, porque,
de fato, o paciente pode estar interessado em pintar apenas para seu foro íntimo, mas sempre
tem o desejo de se fazer compreender. Então, ele poderá, mais uma vez, ver-se frustrado.
Evidentemente, não cabe ao Terapeuta Ocupacional tomar uma postura superprotetora para
com o paciente, pelo contrário, deve comunicar-lhe que não entendeu e que ele deve tentar
mais uma vez.
Mas isto é diferente de apenas deixar para o cliente a percepção de que o boi que ele pintou
mais parece uma minhoca. Isto é desagradável e dispensável porque não leva a nada a não ser,
outra vez, ao sentimento de fracasso, ou de não aceitação, porque de fato o paciente sempre
pinta, em primeira instância, o que sente e não o que vê. Porque a “obra de arte não é a
representação de uma coisa, mas a representação das experiências que temos com esta coisa”
(19), e como as experiências mudam, muda também a forma de representá-las, daí a
necessidade do Terapeuta ser paciente, permitindo ao cliente usar e freqüentar o seu ritmo
pessoal, ser atencioso e principalmente afetivo porque sua importância neste instante é a de
criar uma atmosfera que conduza à inventividade, à exploração e à realização.
As atividades e seu plano de execução são pessoais e intransferíveis para cada paciente e nas
técnicas de pintura, desenho e modelagem, isto, mais que nunca, é o verdadeiro.
As intervenções do Terapeuta Ocupacional nestas técnicas devem se limitar à busca das razões
e dimensão de cada cliente, procurando dar a ele a oportunidade de, com seus próprios meios,
sair do pensamento cinestésico puro e simples para entrar no plano das imagens mentais
concretizadas, quando então ele poderá, no ato de criar algo concreto, refazer sua história -
função primeira da Terapia Ocupacional.
Em nossa conduta com MS procurávamos apenas refletir o que ela falava como forma de
reforçá-la e como maneira de dizer se a tínhamos ou não entendido. E, na medida em que
havia indicação, solicitávamos que ela nos dissesse o que pretendia fazer, como e por que.
Acreditamos que a evolução humana vai da ação mecânica pura, até a percepção do todo, a
partir da parte até a explicação verbal da mesma.
Outra razão para nossa conduta, quanto à cobrança da explicação verbal, quando ela nos dava
oportunidade para tanto, era o fato de que queríamos que ela “ouvisse” o seu desenho.
Enquanto o cliente pinta, ele de fato está manipulando elementos suficientemente
satisfatórios para conotar e simbolizar. Nestes termos, a solicitação da verbalização após a
pintura ou modelagem é como uma oportunidade que se dá ao paciente de ser o autor e o
crítico do que fizer. E assim agimos com MS.
PALAVRAS FINAIS
No início de sua terapia, MS pedia para ir embora, demonstrava muito medo de estar comigo,
muita angústia. A cada instante procurava por sua acompanhante, temendo ser por ela
abandonada. O trabalho com porta fechada era impossível, porque estar comigo sozinha
evocava o “tarado” que lhe agredira e que ela não conseguia entender. Durante muito tempo
a porta da oficina permaneceu aberta e, às vezes, era preciso chamar a acompanhante para
que ficasse lá também, conosco.
Este quadro mudou, MS evoluiu, cresceu, ganhou confiança, solicitou amigos, saiu da situação
de trabalho individual para o grupal, passou a esperar, ao final do trabalho, por quem viesse
buscá-la.
Em fevereiro de 1978, sua mãe chega a Belo Horizonte e permanece com MS até a data da
interrupção da Terapia Ocupacional, o que se deu a 30 de junho do mesmo ano.
“... o fato é que achei que mamãe havia lhe falado, pois a decisão foi de MS e dela. MS quis
voltar para casa com ela e ela vai levá-la na próxima semana. Eu não posso forçá-la a ficar
comigo. Realmente ando muito preocupada e receosa do que poderá acontecer, mas não posso
fazer nada ... minha mãe está em fase de arteriosclerose e é muito difícil fazê-la compreender
as coisas. MS não quer mesmo ir comigo (a tutora estava se mudando de cidade). Desde que
mamãe chegou, ela pede para ir para casa. Assim, nada pude fazer.”
Fui então procurado, pela primeira vez, por outro irmão de MS. Estava também preocupado,
não sabia o que fazer e, como a tutora, ele começou a temer pela sorte de MS caso voltasse
para casa.
E no dia 21 de julho de 1978, por minha solicitação, vi MS pela última vez e fiz a seguinte
anotação em seu prontuário: “Hoje vi MS pela última vez. Estava acompanhada pela mãe e se
apresentava vestida de maneira inadequada, exatamente como na primeira entrevista. Roupa
mambembe; decote caído pelos ombros, a anágua aparecendo por debaixo da saia. Cara muito
doente, muito excitada. Comportamento muito alterado, estava igual ao 1º dia.”
Sabemos que, apesar de experimentar um retorno a um estado ruim, a melhora de MS foi
enorme. Resta-nos esperar que essa melhora, passado o susto inicial do reencontro, lhe dê
condições de conviver mais adequadamente, como aqui aprendeu a fazer. Mas lamentamos
muito quando lembramos que o ambiente para o qual ela volta possa continuar desfavorável,
e que o cimento do alicerce possa não estar seco ou ter sido insuficiente.
Mas, apesar de tudo, e considerando que a fala foi um instrumento de comunicação criado
pelo homem, senão posteriormente, pelo menos concomitantemente ao fazer; e como a
regressão a estágios anteriores da evolução é o melhor que indivíduo pode dar ao outro,
quando o ambiente externo lhe é extremamente adverso; já que trabalhar é uma atividade
eminentemente humana e o trabalho é o instrumento de inserção do indivíduo na sociedade e
dentro de si mesmo; e porque a mágica das palavras foi esvaziada deste sentido nos tempos
atuais, e mais, o falar e fazer-se entender não é tão fácil quanto se imagina, muito menos para
uma pessoa gravemente enferma psiquicamente, e, ainda: o instrumento de comunicação da
Terapia Ocupacional é, antes de tudo, não verbal e absolutamente natural, já que seu método
de tratar é o de transformar a realidade interior pela concretização dos sentimentos e desejos
de quem fabrica; considerando, também, que fazer, conceituar para si, falar para o outro o
que pensou, são atos concomitantes e interdependentes, acreditamos que em quadros muito
graves e defeituosos de esquizofrenia, como o de MS, a Terapia Ocupacional deva ser o
tratamento escolhido.
Entendo que a loucura é o melhor que o indivíduo pode dar quando tudo lhe parece mal, e que
a cura, se não estou sendo ingênuo, é uma conseqüência direta da mudança do meio em que
vive o paciente, e de seu desejo, ainda que mínimo, de viver. Mas sei que uma coisa é
idealizar, outra é realizar. São dois níveis muito diferentes de uma mesma realidade. Mas o
relato desse caso é uma tentativa de mostrar que é sempre possível fazer algo pelo outro,
desde que tenhamos coragem de sair do nosso marasmo e nossa descrença, de nossos
parâmetros cristalizados.
Não importa o quanto possam ter sido transitórios os resultados alcançados por MS, tenho
certeza de que ela voltou a viver, só não sei se ainda esta viva, pois nunca mais tive notícias
dela.
O livro já estava terminado aqui, mas, alertado para a necessidade de se ter autorização da
tutora para publicá-lo, voltamos a lhe telefonar no dia 15 de abril de 1980 e a informamos
sobre nossa necessidade. A 22 de maio do mesmo ano, a tutora fez a leitura dos originais e a
15 de julho, junto com a autorização para a publicação, nos encaminhou o seguinte
relatório acerca do estado atual de MS.
“ASPECTO FÍSICO: Apenas um pouco mais gorda, pelo fato de minha mãe não conseguir dela o
que eu consigo quando estou presente - que faça controle alimentar, além de ginástica,
massagem e fisioterapia em geral. Os cuidados pessoais, continuam os mesmos que lhe ensinei
e que exijo sejam praticados: banho diário, depilação semanal, tintura nos cabelos, manicure,
pedicure, maquilagem simples. Só as sobrancelhas ela não permite que sejam acertadas. O
vestuário é de acordo com o que nós compramos, atualizado, cores discretas, modelos
apropriados ao seu tipo físico e idade. A higiene pessoal é controlada e feita de modo certo.
ASPECTO SOCIAL: Tem participado da vida familiar, aniversários dos sobrinhos, churrascos na
fazenda, alguns casamentos e outros passeios quando é convidada e sente vontade.
Cumprimenta as pessoas, despede-se, conversa algumas coisas, quando lhe perguntam. Sendo
que algumas vezes fala coisas desconexas, o que nos parece normal, tendo em vista o seu caso
médico.
ASPECTO DE SAÚDE: Não está melhor pelo fato de estar em companhia de minha mãe. Se
estivesse na nossa, estamos certos de que já estaria saindo sozinha e gerindo o seu próprio
dinheiro. Pois chegamos a conseguir dela um início de tal independência; o que prejudicou
muito nosso trabalho foi a nossa mudança de residência para X; e ainda o fato de nossa mãe a
tratar como “pessoa doente” * dando a entender que não confia nela.
Mas, de um modo geral, considerando-se o fato de que ela há 20 anos permanecia sem
condições de viver com a família, tendo-se transformado num “animal”, podemos afirmar que
o seu caso representa um verdadeiro milagre no campo da psiquiatria atual. Pois até mesmo a
Grifo da Tutora.
sua médica, que a acompanhava há muitos anos, não acreditava que ela chegasse ao ponto
em que está.”
Mas é preciso deixar claro que a crença, a fé da irmã-tutora quanto a uma melhora maior do
que MS conseguiu, nos parece uma perigosa expectativa. As dores de sua tutelada são tão
profundas, deixaram tantas marcas, que possivelmente elas já se tornaram indeléveis.
Mas, de toda esta luta, fica a certeza de que a Terapia Ocupacional é um processo que atua
tanto sobre a psicologia individual, quanto sobre a organização social. E de que, na busca da
representação de como o homem poderia ser, de fato, o paciente acaba por se refazer, e assim
o fez MS.
BIBLIOGRAFIA
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10. TRATADO DE MUSICOTERAPIA. Clotilde Espinila Leining. SETA — Sobral Editora Técnica
Artes Gráficas Ltda. São Paulo, 1977.
11. O TESTE DA ÁRVORE. Emano Ducceschi. Editora La Salle. Porto Alegre, 1966.
12. PIRÂMIDES COLORIDAS DE PFISTER. Fernando de Villemor Amaral. Edições Cepa. Rio
de Janeiro, 1966.
14. 200 EXERCÍCIOS E JOGOS PARA O ATOR E O NÃO ATOR COM VONTADE DE DIZER ALGO
ATRAVÉS DO TEATRO. Augusto Boal. 2ª Edição. Coleção Teatro Hoje. Vol. 30. Editora
Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1979.
15. STOP: C’EST MAGIQUE!. Augusto Boal. Coleção Teatro Hoje. Vol. 34. Editora Civilização
Brasileira. Rio de Janeiro, 1980.
16. TEATRO E CRIATIVIDADE. Luiza Barreto Leite. MEC. Serviço Nacional de Teatro. Rio de
Janeiro, 1975.
19. A CRIANÇA E SUA ARTE. Viktor Lowenfeld. Editora Mestre Jou. São Paulo, 1977.
20. AS ORIGENS DA FORMA NA ARTE. Herbert Read. Zahar Editores. Rio de Janeiro, 1967.
21. ARTE E ALIENAÇÃO. Herbert Read. Zabar Editores. Rio de Janeiro, 1968.
22. EDUCACIÓN POR EL ARTE. Herbert Read. Editorial Paidós. Biblioteca de Psicologia
Educacional. Vol. 1. Buenos Aires.
28. ESTÉTICA: A IDÉIA E O IDEAL. Hegel, W. Friedrich. Coleção “Os Pensadores”. Abril
Cultural. 1980.
29. O TEATRO COMO OCUPAÇÃO TERAPÊUTICA — Uma experiência. Rui Chamone Jorge;
Francisco José dos Reis Goiatá. Trabalho apresentado na JI Semana de Estudos de
Terapia Ocupacional. Belo Horizonte, 1978.