Cronicas João Ubaldo

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PRESERVANDO AS ESPÉCIES

João Ubaldo Ribeiro

Em Itaparica, não existe muita preocupação com esse negócio de privacidade, visto que, desde
o tempo em que a luz era desligada pela prefeitura às dez horas da noite, o sabido saía com a
moça, se esgueirando entre os escurinhos do Jardim do Forte e, no dia seguinte, na quitanda de
Bambano, o fato já tinha alcançado ampla repercussão, com fartura de pormenores. O mesmo
acontecia em todas as outras áreas e diz o povo que, quando meu tio-avô Zé Paulo, tido como
mais rico que dezoito marajás, soltava um pum, sozinho numa sala de seu casarão, os puxa-
sacos já ficavam de plantão no Largo da Quitanda e, no instante em que ele passava, se
manifestavam efusivamente.

– Bom dia, coronel, bufou cheiroso outra vez!

– Muito bem bufado, coronel, quem está preso quer estar solto!

Quanto a câmeras de vigilância e segurança, correntemente na moda, receio que a situação é


semelhante. Manolo quis botar uma no Bar de Espanha, mas desistiu depois que soube que
todo mundo estava planejando pedir para fazer um teste com a Globo. Além disso, não há
muita motivação para a instalação de câmeras, porquanto o que assaltar sempre foi meio
escasso e Romero Contador, que não erra nem conta de raiz quadrada, já mostrou na ponta do
lápis que, se alguém roubar o nosso PIB, vai passar o resto da vida altamente endividado, pois a
verdade, por mais duro que seja reconhecer, é que nossa economia não interessa nem a
deputado estadual e mal sobra o que furtar para os corruptos locais.

Não havia, portanto, razão aparente para o movimento deflagrado por Zecamunista, como
sempre meio de surpresa. Nada indicava que estivesse motivado para nova campanha cívica,
ainda mais envolvendo questões exóticas, como a privacidade. Depois de mais uma vitoriosa
temporada de pôquer por todo o Recôncavo, onde chegou a ganhar dois barcos de pesca – que
rebatizou de Marx e Engels e doou à Cooperativa Comunista Deus É Mais, há muitos anos
fundada por ele, em Valença – voltara à ilha na semana anterior, na discreta companhia de
“duas senhoras de Nazaré das Farinhas, minhas correligionárias”, como ele me disse ao
telefone, sem mais adiantar e muito menos me convidar para conhecer as duas correligionárias.
Desde esse dia, fora visto apenas uma vez, comprando uma garrafinha de catuaba no Mercado
e voltando apressadamente para casa, no passo ligeirinho de clandestino a que a vida de
militante bolchevique o acostumou. E já se pensava que as correligionárias iam ocupá-lo por
mais tempo que o esperado, ouvindo-se também a maledicência de que “Zeca não é mais
aquele”, mas eis que ele, como se nada tivesse acontecido, compareceu ao Bar de Espanha, na
happy hour das nove da manhã, e fez o anúncio inesperado.

– Estou fundando o Movimento de Preservação e Defesa do Corno Nacional – disse ele. – Essa
viagem acabou de me convencer de que o corno está em extinção. Um dos parceiros com quem
eu joguei, não vou dizer onde, contou, quase satisfeito, que foi largado pela mulher, que tinha
confessado ter um amante. Mas não era por isso que largava o marido, era porque estava
sufocada, queria o espaço dela. O espaço dela era na cama do outro, mas todo mundo finge que
acredita e fica tudo por isso mesmo. É a globalização descaracterizando a identidade nacional,
não zelamos pelo nosso patrimônio cultural, encaramos tudo com a mais leviana das
inconsequências e, se não tomarmos providências agora, nossos descendentes nem saberão o
significado da palavra “corno” e toda sua riqueza emocional, artística e histórica!

Com efeito, meus caros senhores, em primeiro lugar, o corno desaparece a olhos vistos,
ninguém mais liga. Isso não é possível, não é sustentável, é um abismo. Já basta não haver mais
mistério quanto à paternidade, por causa da novidade dos exames de DNA. A vida perdeu a
emoção, nunca mais aquelas investigações de paternidade que não chegavam a nenhuma
conclusão, nunca mais confissões arrepiantes no leito de morte. E a espionagem eletrônica,
celulares rastreadores, gravadores secretos, câmeras minúsculas, visão noturna, detectores
disso e daquilo, tudo bisbilhotado e bisbilhotável? Nada mais é sagrado? O sujeito quer ser
corno em paz e não permitem, têm que incomodá-lo com denúncias e provas que ele nunca
pediu, pensem nisso! Até um dos últimos bastiões da liberdade está sendo destruído! Onde
ficará Lupicínio Rodrigues, onde ficará Ataulfo Alves, onde ficará a dúvida cruel, onde ficará a
viagem de negócios, onde ficará a tarde no dentista?

– Eles não sabem o que dizem, são uns inocentes – disse Zeca, ao ver que suas palavras haviam
ocasionado um debate de grandes proporções. – As ideias novas sempre provocam reações
negativas, inclusive entre aqueles que vão se beneficiar delas, é a maldição do pioneirismo.

Aqui para nós, seu real objetivo não era bem a preservação de uma espécie. Pretendia mesmo
era montar mais um esquema para beneficiar as classes populares da ilha, ou seja, quase todo
mundo. Esse papo de corno não passava de marketing, destinado a aproveitar e incrementar
um clima já existente. O próximo passo será bolar um serviço para o nosso nicho de mercado.
O nosso nicho não é o corno comum, que esse já perdeu o sentido e ainda não sabe, mas o
corno saudosista, o tradicionalista, o que tem nostalgia dos velhos tempos dourados, o que
ainda acredita. Não duvidava que fosse possível obter incentivos do Ministério da Cultura. E já
podia antecipar os anúncios estampados nos jornais: “Corneie seu ente querido à moda antiga,
venha à nossa ilha”.

– Há outros esquemas, mas eu prefiro esse – disse ele. – Nós vamos fornecer a mão de obra.

RIBEIRO, João Ubaldo. Preservando as espécies. Disponível:<


http://contobrasileiro.com.br/preservando-as-especies-cronica-de-joao-ubaldo-ribeiro/>.
Acesso em 16/02/2018.
MAIS UM DIÁRIO DE MAMÃE

João Ubaldo Ribeiro

Querido Diário,

No tempo do Coelho Neto, não tinha churrascaria, tinha? Claro que não.

Não tinha nem churrascaria nem dia das mães e, portanto, ele não entendia nada de padecer
no paraíso, nessa época era moleza. E este ano, para variar, está prometendo, vai ser mais um
dia das mães inesquecível. Não quanto ao local das homenagens, que é churrascaria de novo.
Como sempre, houve debates acalorados sobre isto. Todo ano alguém diz que é preciso variar e
desta vez não vai ser churrascaria, mas sempre acaba sendo, eu nem presto atenção mais na
discussão. Minha última intervenção foi há vários anos, em legítima defesa, para deixar claro
que considero insultuoso me levarem para comer peixe cru com arroz papa sem sal e que, nesse
caso, prefiro a sopa dos pobres do padre Celso. Não me levando para comer peixe cru, tudo
bem. Eu como qualquer coisa, pizza, pastel, hambúrguer, rabada, mocotó e aquelas comidas
baianas molengas e amarelosas, mas peixe cru não, tudo tem seu limite, tem que haver
respeito.

Mas, como eu já te contei, haverá uma grande novidade, que é a presença de Vó Eulália, que
chegou de Alagoas na quarta. Mandaram buscá-la porque ela está fazendo noventa anos,
embora pareça muito menos. Eu tenho um medozinho, mas gosto dela. O mesmo, com certeza,
não pode ser dito de todo o resto da família. No aeroporto mesmo, aquele lourinho, filho do
outro casamento da Selminha, um chatinho catarrento e esganiçado, cujo nome eu sempre
esqueço, só acho que é Fred, mas sei que não é, esse, vamos dizer, Fred, começou a encher o
saco e Vó Eulália deu-lhe um puxão de orelha caprichado, que ele chegou a ficar roxo. “Se é
para chorar, pelo menos chore com razão”, disse ela, com aquele sorrisinho de cangaceira. A
Selminha não gostou, mas eu, claro, adorei e Vó Eulália não quer nem saber se alguém não
gostou. E o Fred merece. Meu Deus, o nome dele não é Fred. Ted? Eu só lembro que tem um E.
Ernesto?

Isso traz à baila o problema da identidade dos familiares. No começo, eu achei até que podia
estar ficando de Alzheimer, porque dei para esquecer os nomes de uma porção deles, mas
depois percebi que isto está acontecendo com praticamente todo mundo numa situação
parecida com a minha, até porque a família nunca é a mesma, como no meu tempo.
Antigamente, a família se reunia e eram sempre as mesmas caras, os mesmos nomes e as
mesmas histórias, mas agora todo mês alguém anuncia uma alteração, muito mais que a
escalação de um time de futebol. É bem verdade que eu não tinha nada que tirar uma de coelha
e parir seis filhos, eu era uma cretina que achava lindo ter uma família enorme e tinha fantasias
de comandar a hora do almoço com um apito. Diga-se em meu favor, porém, que seis filhos
naquele tempo e no meu caso não queriam dizer oito noras mais ou menos duradouras e um
número indefinido de outras mais passageiras, quatro genros, sendo que um repetido, e doze
netos, entre legítimos e postiços. Isso para não falar nos parentes dos parentes e con-
traparentes, é muito duro de acompanhar. Ninguém consegue se lembrar direito de oito noras
e quatro genros em rodízio permanente. No hora em que a pessoa vai se acostumando, vem
uma troca. Agora que tudo é informatizado, bem que eles podiam botar um chip que acendesse
o nome deles no celular.

Aliás, grande bênção, o celular, pelo menos na churrascaria do dia das mães, porque agora a
juventude fica em silêncio, enquanto manda mensagens para lá e para cá, ou seja, o tempo
todo. Desconfio que alguns deles ainda não aprenderam a falar direito e o único órgão deles
capaz de comunicação verbal é o polegar, ali teclando kd vc rsrsrs bjs e outras informações
cruciais, que eles ficam mostrando uns aos outros, em vez de conversar. Me lembra cachorros
cheirando uns aos outros, não sei por quê. O Marcelo, o gordinho de cabelo cacheado, também
filho da Selminha, só que com o Haroldo, com certeza não sabe conversar, porque o universo
dele são os joguinhos dos computadores e, quando alguém fala com ele, ele responde bzzz-
strrp-vjjj-tueen, com os olhos esgazeados. E tem as fotos também, para as quais eles só olham
uma vez e nunca mais, antes de distribuí-las às redes sociais do mundo todo, a gente com cara
de besta e deficiente mental em todas elas.

De resto, não há razão para imaginar grandes surpresas. O meu novo genro por parte da Bia –
que já não é mais tão novo assim, já vai fazer cinco anos que estão juntos, embora até hoje eu
não saiba por que e o que foi que eles viram um no outro -, o Gilberto, o nosso Betão, vai
encher a cara de chope, vai ficar com os olhos marejados e vai fazer um discursinho em que vai
me chamar de bimãe outra vez. Bi, como em bicampeonato. Bimãe porque eu sou avó, mãe
duas vezes, sacou? Ele é um gênio. Espero que não fique muito entusiasmado e não chame Vó
Eulália de trimãe, porque não vai resultar bem, até porque ninguém sabe tantos palavrões e
tem tanta disposição para mostrar isso do que Vó Eulália.

Mas, querido, eu fico falando assim e parece que não gosto da família, que sou uma
desnaturada insensível, que não dou valor às coisas mais importantes desta vida. Mas nada
pode estar mais longe da verdade. Eu adoro a família, adoro ser mãe e avó, sério mesmo. Esses
senões acontecem a todos, de uma forma ou de outra e devemos pôr as mãos para o céu,
porque não temos nenhum problema grave, como tantos outros. É só que de vez em quando dá
vontade de ter uma folguinha de tanto padecimento paradisíaco. E, sim, bimãe não sou eu.
Betão e Vó Eulália sabem quem é.

RIBEIRO, João Ubaldo. Mais um diário de mamãe. Disponível:<


http://contobrasileiro.com.br/mais-um-diario-de-mamae-cronica-de-joao-ubaldo-ribeiro/ >.
Acesso em 16/02/2018.
O CORRETO USO DO PAPEL HIGIÊNICO

João Ubaldo Ribeiro

O título acima é meio enganoso, porque não posso considerar-me uma autoridade no uso de
papel higiênico, nem o leitor encontrará aqui alguma dica imperdível sobre o assunto. Mas é
que estive pensando nos tempos que vivemos e me ocorreu que, dentro em breve, por iniciativa
do Executivo ou de algum legislador, podemos esperar que sejam baixadas normas para, em
banheiros públicos ou domésticos, ter certeza de que estamos levando em conta não só o que é
melhor para nós como para a coletividade e o ambiente.

Por exemplo, imagino que a escolha da posição do rolo do papel higiênico pode ser
regulamentada, depois que um estudo científico comprovar que, se a saída do papel for pelo
lado de cima, haverá um desperdício geral de 3,28%, com a consequência de que mais lixo será
gerado e mais árvores serão derrubadas para fazer mais papel. E a maneira certa de passar o
papel higiênico também precisa ter suas regras, notadamente no caso das damas, segundo
aprendi outro dia, num programa de TV.

Tudo simples, como em todas as medidas que agora vivem tomando, para nos proteger dos
muitos perigos que nos rondam, inclusive nossos próprios hábitos e preferências pessoais. Nos
banheiros públicos, como os de aeroportos e rodoviárias, instalarão câmeras de
monitoramento, com aplicação de multas imediatas aos infratores.

Nos banheiros domésticos, enquanto não passa no Congresso um projeto obrigando todo
mundo a instalar uma câmera por banheiro, as recém-criadas Brigadas Sanitárias (milhares de
novos empregos em todo o Brasil) farão uma fiscalização por escolha aleatória.

Nos casos de reincidência em delitos como esfregada ilegal, colocação imprópria do rolo e usos
não autorizados, tais como assoar o nariz ou enrolar um pedacinho para limpar o ouvido, os
culpados serão encaminhados para um curso de educação sanitária. Nova reincidência, aí,
paciência, só cadeia mesmo.

Agora me contam que, não sei se em algum estado ou no país todo, estão planejando proibir
que os fabricantes de gulodices para crianças ofereçam brinquedinhos de brinde, porque isso
estimula o consumo de várias substâncias pouco sadias e pode levar a obesidade, diabetes e
muitos outros males. Justíssimo, mas vejo um defeito.

Por que os brasileiros adultos ficam excluídos dessa proteção? O certo será, para quem,
insensata e desorientadamente, quiser comprar e consumir alimentos industrializados,
apresentar atestado médico do SUS, comprovando que não se trata de diabético ou hipertenso
e não tem taxas de colesterol altas.
O mesmo aconteceria com restaurantes, botecos e similares. Depois de algum debate, em que
alguns radicais terão proposto o Cardápio Único Nacional, a lei estabelecerá que, em todos os
menus, constem, em letras vermelhas e destacadas, as necessárias advertências quanto a
possíveis efeitos deletérios dos ingredientes, bem como fotos coloridas de gente passando mal,
depois de exagerar em comidas excessivamente calóricas ou bebidas indigestas. O que nós
fazemos nesse terreno é um absurdo e, se o Estado não nos tomar providências, não sei onde
vamos parar.

Ainda é cedo para avaliar a chamada lei da palmada, mas tenho certeza de que, protegendo as
nossas crianças, ela se tornará um exemplo para o mundo. Pelo que eu sei, se o pai der umas
palmadas no filho, pode ser denunciado à polícia e até preso. Mas, antes disso, é intimado a
fazer uma consulta ou tratamento psicológico.

Se, ainda assim, persistir em seu comportamento delituoso, não só vai preso mesmo, como a
criança é entregue aos cuidados de uma instituição que cuidará dela exemplarmente, livre de
um pai cruel e de uma mãe cúmplice. Pai na cadeia e mãe proibida de vê-la, educada por
profissionais especializados e dedicados, a criança crescerá para tornar-se um cidadão modelo.
E a lei certamente se aperfeiçoará com a prática, tornando-se mais abrangente.

Para citar uma circunstância em que o aperfeiçoamento é indispensável, lembremos que a


tortura física, seja lá em que hedionda forma — chinelada, cascudo, beliscão, puxão de orelha,
quiçá um piparote —, muitas vezes não é tão séria quanto a tortura psicológica.

Que terríveis sensações não terá a criança, ao ver o pai de cara amarrada ou irritado? E os pais
discutindo e até brigando? O egoísmo dos pais, prejudicando a criança dessa maneira
desumana, tem que ser coibido, nada de aborrecimentos ou brigas em casa, a criança não tem
nada a ver com os problemas dos adultos, polícia neles.

Sei que esta descrição do funcionamento da lei da palmada é exagerada, e o que inventei aí não
deve ocorrer na prática. Mas é seu resultado lógico e faz parte do espírito desmiolado,
arrogante, pretensioso, inconsequente, desrespeitoso, irresponsável e ignorante com que esse
tipo de coisa vem prosperando entre nós, com gente estabelecendo regras para o que nos
permitem ver nos balcões das farmácias, policiando o que dizemos em voz alta ou publicamos
e podendo punir até uma risada que alguém considere hostil ou desrespeitosa para com alguma
categoria social.

Não parece estar longe o dia em que a maioria das piadas será clandestina e quem contar
piadas vai virar uma espécie de conspirador, reunido com amigos pelos cantos e suspeitando de
estranhos. Temos que ser protegidos até da leitura desavisada de livros.

Cada livro será acompanhado de um texto especial, uma espécie de bula, que dirá do que
devemos gostar e do que devemos discordar e como o livro deverá ser comentado na
perspectiva adequada, para não mencionar as ocasiões em que precisará ser reescrito, a fim de
garantir o indispensável acesso de pessoas de vocabulário neandertaloide.

Por enquanto, não baixaram normas para os relacionamentos sexuais, mas é prudente verificar
se o que vocês andam aprontando está correto e não resultará na cassação de seus direitos de
cama, precatem-se.

RIBEIRO, João Ubaldo. O correto uso do papel higiênico. Disponível:<


https://jornalggn.com.br/memoria/a-ultima-cronica-de-joao-ubaldo-ribeiro/>. Acesso em
16/02/2018.

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