Sabedoria e Poesia Hebraica
Sabedoria e Poesia Hebraica
Sabedoria e Poesia Hebraica
e sapiencial da
Bíblia Hebraica
Literatura poética e
sapiencial da
Bíblia Hebraica
Capa:
LA TOUR, Georges de
Jó sendo injuriado por sua mulher
1630s
Óleo sobre tela, 145 x 97 cm
Musée Départemental des Vosges, Épinal
Fev/2016
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SEMINÁRIO TEOLÓGICO BATISTA CARIOCA – ANTIGO TESTAMENTO III
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Prof. Jones F. Mendonça
1. INTRODUÇÃO:
1. Jó ........................................................................................ 42 capítulos
2. Provérbios............................................................................. 31 capítulos
3. Eclesiastes ou Qohelet .........................................................12 capítulos
4. Sabedoria de Salomão .......................................................... 19 capítulos
5. Eclesiástico ou Sirácida ......................................................... 51 capítulos
Todos os livros listados acima se encontram na terceira parte da Bíblia hebraica, chamada
de “Escrituras” (hebr. ketuvim). Neste bloco, depois dos três grandes livros: Salmos, Jó e
Provérbios, aparece uma coleção de cinco escritos menores: Rute, Cantares, Eclesiastes,
Lamentações e Ester, reunidos sob a denominação “Megilloth” = rolos, pois representam
rolos de festas que eram lidos por ocasião das cinco principais festas judaicas: Rute, por
ocasião da festa das semanas (colheita)1; Cantares, por ocasião da Páscoa judaica2;
Eclesiastes, por ocasião da festa dos Tabernáculos; Lamentações, por ocasião do jejum
observado em memória à destruição de Jerusalém, e o livro de Ester, por ocasião da festa
do Purim.
1A tradição judaica apresenta seis razões para a leitura de Rute na Festa das Semanas: 1. Rute se desenrola no
tempo da colheita, 2. Davi, bisneto de Rute, faleceu na Festa das Semanas (Midrash Rute Rabah), 3. A
conversão de Rute é apropriada para esta festa que celebra a dádiva da Torá, 4. A fidelidade de Rute simboliza
a fidelidade de Israel para com a Torá, 5. O verdadeiro cumprimento da Torá reside na prática do amor ao
próximo: é exatamente disso que fala o livro de Rute, 6. De acordo com Lv 23,19-22 a Festa das Semanas e
para com os socialmente fracos estão interligados da maneira mais estreita.
2 A leitura de Cantares na Páscoa - pois o Sabá é “noiva esplêndida e resplandecente” (Isidore Epstein) - é
atestada a partir do século V, cf. Mishnáh Taanit, 4:8 apud CAVALCANTI, Geraldo Holanda. O Cântico dos
Cânticos: um ensaio de interpretação através de suas traduções, 2005, p. 39.
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2. A LITERATURA SAPIENCIAL
Além dos livros tradicionalmente classificados como CÂNON JUDAICO CÂNON CRISTÃO
sapienciais, há outros, em forma de novelas, que tem
Lei Pentateuco
origem no mesmo ambiente de sabedoria. São eles: (Torá)
Judite, Ester, Rute (“novelas de resistência”), Jonas (a Gênesis Gênesis
história de um israelita egoísta), Tobias e Suzana (Dn Êxodo Êxodo
13, apresentada como mulher ideal cf. Pv 31,10-31). Levítico Levítico
Números Números
A literatura sapiencial não acentua um ideal religioso Deuteronômio Deuteronômio
baseado do cumprimento da lei ou na obediência aos Profetas Livros Históricos
profetas, mas nas virtudes que considera valiosas na (Neviim) Josué
formação do homem íntegro, instruído no saber Josué Juízes
Anteriores
prático. Não descreve sacrifícios ou ritos (como Juízes Rute
Levítico), e deve ser distinguida da literatura profética Samuel (I, II) Samuel (I, II)
(como Isaías) e da apocalíptica (como boa parte de Reis (I, II) Reis (I, II)
Crônicas (I, II)
Daniel).
Isaías Esdras
Jeremias Neemias
Além dos chamados “livros sapienciais” (Jó, Pv, Ecl, Ezequiel Ester
Sb, Eclo) e daqueles nascidos no ambiente sapiencial Oséias
(Jt, Est, Rt, Jn, Tb, Dn 1-6 e a história de Suzana), Joel Livros Poéticos
textos de sabedoria deixaram marcas em outros livros. Amós Jó
Posteriores
Is 5,21; Am 6,12 e Jr 8,7 são claros exemplos da Obadias Salmos
Jonas Provérbios
influência sapiencial (com elevado valor poético) nos
Miquéias Cantares
textos proféticos. 1Sm 24,13, livro classificado como Naum Eclesiastes
Histórico, cita um antigo provérbio popular em Israel: Habacuque
“Dos ímpios procede a impiedade, mas a minha mão Sofonias Livros Proféticos
não te tocará”. Ageu Isaías
Zacarias Jeremias
Alguns livros bíblicos são de difícil classificação, como Malaquias Lamentações
Ezequiel
Daniel, que retoma tradições proféticas como em
Escritos Daniel
narrativas, visões e audições (9,3; 10,2), carrega (Ketuvim) Oséias
elementos da literatura apocalíptica (7-12) e Salmos Joel
sapiencial (Dn 1-6)3. A tradição sapiencial aparece, por Jó Amós
exemplo, no trecho em que o rei babilônico traz à sua Provérbios Obadias
presença alguns jovens judeus a fim de que estudem Rute Jonas
sabedoria: Cantares Miquéias
Eclesiastes Naum
Lamentações Habacuque
moços em quem não houvesse nenhum defeito,
Ester Sofonias
belos de se ver, instruídos em toda a sabedoria, Daniel Ageu
peritos de saber, compreendendo a ciência e cheios Esdras–Neemias Zacarias
Crônicas (I, II) Malaquias
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Ecos do pensamento sapiencial também aparecem nas histórias de José (Gn 39,1-6; 41,8-
32), Salomão (1Rs 5,9-14), Aquitofel e Cusai (2Sm 16,15-17,14). Aliás, José é um belo
exemplo de sábio: ele dá conselhos, é hábil no falar, contido nas emoções, paciente nas
ações, rejeita retribuir o mal com mal, adapta-se bem ao mundo estrangeiro e mostra-se
temente a Deus4.
Também alguns Salmos fazem parte da literatura sapiencial no Antigo Testamento. Assim
os Salmos 127 e 133 são breves coleções de provérbios de sabedoria; Sl 49 é um poema de
sabedoria mais extenso. Nos Sl 1; 128 e outros é exposta a ideia sapiencial que o piedoso e
temente a Deus irá bem na vida, algo que também é predominante no SI 37.
Mas esta “teologia da retribuição” acabou posta em xeque diante da tensão com a
realidade da vida. No SI 37 já está implícita a pergunta: como explicar que o ímpio tantas
vezes vai bem, enquanto o piedoso, o “justo” tem que sofrer? O Salmo citado acentua que
isso apenas aparentemente é a verdade, mas que a experiência sempre de novo comprova o
contrário (vers. 25 e outros). Mas em outras partes este problema rompeu com toda a
veemência (cf. SI 73!).
De forma resumida:
4 Sobre a narrativa sobre José, Von Rad destaca que: “foi cunhada em círculos sapienciais [e] celebra este
personagem como intérprete competente de sonhos e acontecimentos futuros; também Daniel segue seus
passos”, cf. VON RAD, Gerhard, La sabiduria en Israel, los sapienciales, lo sapiencial, 1973, p. 357. E ainda: “a
história de José tem um notável parentesco com a sabedoria antiga”, VON RAD, Gerhard, El libro del
Genesis, p. 533.
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Até mesmo alguns animais são tidos como sábios: as formigas (ajuntam no verão para que
não falte no inverno), o coelho (faz sua casa na rocha), o gafanhoto (são unidos apesar de
não terem rei) e a lagartixa (é fraca, mas está nos palácios dos reis, cf. Pv 30,24).
No livro do profeta Jeremias a figura do sábio aparece duas vezes. Na primeira trata-se de
uma crítica:
Como pois dizeis: Nós somos sábios, e a lei do Senhor está conosco? Mas eis
que a falsa pena dos escribas a converteu em mentira. 9 Os sábios são
envergonhados, espantados e presos; rejeitaram a palavra do Senhor; que
sabedoria, pois, têm eles? (Jr 8,8-9).
Mas ao contrário do que acontece com os sacerdotes e profetas, pouco se sabe a respeito
desses homens que na corte dos reis de Judá e Israel eram chamados de sábios (hakham),
pessoas dotadas de grande cultura e presentes na história do povo desde os tempos mais
remotos. Além do tradicional hakham, os sábios por vezes aparecem designados pelas
palavras hebraicas moreh ou melamed:
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No período pós-exílico há uma particular ênfase na sabedoria dos mestres da lei, como
Esdras, escriba que “tinha aplicado seu coração a perscrutar a Lei de Javé, a praticar e
ensinar, em Israel, os estatutos e as normas” (Esd 7,10).
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Muito pouco interesse pelas principais tradições do Pentateuco, tais como a Lei do
Sinai, a aliança, o culto, a vocação especial de Israel;
Pouca ou nenhuma preocupação pela história de Israel como povo;
Busca pelo sentido da vida e o domínio da vida como ela é conhecida pela
experiência e não apenas pela fé;
Ânsia de analisar o desconhecido e os difíceis problemas de doença, sofrimento,
morte, a desigualdade entre ricos e pobres, a aparente arbitrariedade da bênção
divina sobre as pessoas;
Dedicação à descoberta do comportamento moral apropriado, o modo certo de
viver.
Curiosidade sobre o mundo como um todo e a experiência universal de todos os
povos e nações;
Quanto a este último ponto, vale destacar que no livro de Provérbios há trechos
provenientes do Egito: Agur (Pr 30,1-14) e Lemuel (31,1-9) são pagãos de Messa (30,1;
31,1). Jó sequer é cidadão de Israel, mas de Hus, na Arábia (Jó 1,1). Os marujos e os
ninivitas dão uma lição em Jonas quando o assunto é piedade, misericórdia e obediência a
Deus. Rute (uma moabita que entra na genealogia do rei Davi!), nora de Noemi, dá nome
a um livro israelita e é recebida pelos anciãos de Belém com extremo otimismo ao
celebrarem seu casamento com Booz: “Javé torne essa mulher que entra em tua casa
semelhante a Raquel e a Lia, que formaram a casa de Israel” (Rt 4,11). A experiência de vida
adquirida no estrangeiro é vista com entusiasmo no livro do Eclesiástico:
5 BERGANT, Dianne; KARRIS, Robert J. (org.). Comentário bíblico em três volumes, 1999, p. 43.
6 GUNNEWEG, Antionius. Teologia bíblica do Antigo Testamento, 2005, p. 328.
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A Edom.
Assim disse Javé dos Exércitos.
Não há mais sabedoria em Temã,
perdeu-se o conselho dos inteligentes,
desapareceu a sua sabedoria? (Jr 49,7)
No Egito a sabedoria aparece como Maat, filha de Rá, representada por uma mulher
sentada que traz sobre a cabeça uma pluma levantada. A palavra tem significado muito
vasto, podendo ser traduzido por “verdade”, “justiça”, “ordem primordial” ou “ordem
10 Diz-nos um verso do Bhagavad-Gita: “Por pura compaixão, Eu, o Um Divino, que reside em todas as
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cósmica”12. A missão do Faraó pode se resumir em “fazer a maat”. Para os egípcios a maat
é anterior a tudo o que existe, uma espécie de ordem estática que determina todos os
cursos e processos, garantindo a estabilidade do mundo. Sábio é que reconhece e se
submete a essa ordem.
Exortações contra a sedução feminina presentes nesses textos condizem muito bem na
atitude tomada por José contra as investidas da esposa de Potifar:
Assim como uma lista suméria registra 43 espécies de serpentes, 13 espécies de touros
selvagens, 33 espécies de cachorros, 42 tipos de construções e 48 variedades de pratos com
carnes16, Salomão “pronuncia 3.000 provérbios [...]. Falou das plantas, desde o cedro do
Líbano até o hissopo que sobe pelas paredes; ele fala também dos quadrúpedes, dos
pássaros, dos répteis e dos peixes” (1Rs 4,32-33).
O tema da flecha atirada contra o justo, presente no Salmo 11,2.4, aparece em forma de
conselho nos “Provérbios de Ahiqar”, conselheiro dos reis Senaqueribe e Asaradon da
Assíria, por volta de 700 a.C. (período do reinado de Ezequias):
12 VON RAD, Gerhard. La sabiduria en Israel, los sapienciales, lo sapiencial, 1973, p. 100.
13 LONGMAN, Tremper. Baker commentary on the Old Testament: Proverbs, 2006, p. 44.
14 BERGANT, Diane; KARRIS, Robert J. Comentário bíblico, 1999, p. 242.
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17Provérbios de Ahiqar 126; AOT, p. 460; TUAT, II/2, p. 328) apud SCHMIDT, Werner, A fé no Antigo
Testamento, p. 410.
18 AOT, p. 292; TUAT, III/1, p. 166) apud SCHMIDT, Werner, A fé no Antigo Testamento, p. 410.
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Este tipo de texto sapiencial, caracterizado pela escrita voltada para a boa educação e
governo, é encontrada na Síria, na Mesopotâmia e no Egito, representada em forma de
provérbios, fábulas e poemas. Testemunhos da sabedoria estrangeira aparecem, por
exemplo, nas “Palavras de Agur, filho de Jaces, o massaíta” (Pv 30) e nas palavras de
Lemuel, rei de Massá (Pv 31,1-9).
O prólogo de Jotão (Jz 9,8-15), considerado como a crítica mais feroz de todos os tempos
ao sistema monárquico é um exemplo de texto de sabedoria israelita mais antigo. No
âmbito das famílias e clãs há textos sobre a amizade, a educação dos filhos, a hospitalidade
e temas parecidos. Muitos deles encontram-se atualmente no livro de Provérbios.
Outros enfoques desse período, particularmente ligados à corte, são: a) a sabedoria como
dom que se pede a Deus (1Rs 3,1-14), b) o governo do povo e a administração da justiça
(1Rs 3,5-12.16-28), c) a capacidade de tomar decisões adequadas como a construção do
templo (1Rs 5,21), d) o conhecimento enciclopédico (1Rs 5,9-14; 10,-19).
Material da época monárquica podem ser encontrados no livro de Provérbios (cap. 10-29
principalmente). No caso particular das seções de Provérbios, pode-se dizer que em linhas
gerais a sabedoria deste momento se caracteriza por carecer de ambições filosóficas e
teológicas e por seu otimismo. Os temas que mais lhe interessam são a prudência, a
honradez, a modéstia, laboriosidade, confiança em Deus, caridade. Negativamente, no
charlatanismo, preguiça, orgulho, soberba e violência.
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otimismo, daí a expressão “crise da sabedoria”. Mas é crise que enriquece e aprofunda as
mais graves questões da existência, ambição de penetrar o mistério, luta incansável e busca
da verdade.
É possível que esta crise tenha antecedentes remotos. Quando o profeta Jeremias
pergunta, nos finais do século VII: “Por que prosperam os ímpios e vivem em paz os
traidores?”. (12,1), está mostrando seu desacordo com o otimismo da educação
tradicional, formulado em frases como estas: “A casa dos ímpios será destruída, a tenda dos
homens retos prosperará” (Pv 14,11); “Na casa do justo há abundância, mas o rendimento
do ímpio é fonte de inquietação” (Pv 15,6). A experiência, grande mestre da sabedoria,
demonstra que isto não é certo.
No livro de Jó, Elifaz se aferra angustiosamente à doutrina anterior temendo perder sua fé
em Deus e na justiça divina:
Jó não se contenta com a fala de Elifaz pois entende que contraria todas as evidências. Sua
pergunta é formulada de forma ainda mais irônica que a de jeremias:
O que vem a seguir é um dos textos mais amargos e realistas do AT, debochando do
maravilhoso bem estar dos que se rebelam contra Deus (21,8-33). O verso final representa
uma crítica radical a toda a sabedoria anterior:
A falta de respostas adequadas à dor e ao sofrimento humano é uma das principais razões
para a crise na sabedoria tradicional de Israel (ver salmo 73). A antiga teologia da
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retribuição – simples, ingênua e segura - segundo a qual o mal é castigado com mal e o
bem é recompensado com o bem caiu por terra. Como consequência o otimismo deu
lugar a um pessimismo extremado. Embora o final no final do livro Jó reconheça que
tenha “denegrido os desígnios divinos com palavras sem sentido” (42,3), alguns
questionamentos do personagem refletem o tom crítico quase beirando o sacrilégio da
sabedoria sapiencial desse período:
Jó não duvida do poder e da sabedoria de Deus (cf. 12,13), mas o que o deixa perturbado é
que essas qualidades são usadas a serviço da destruição, da humilhação e da morte (12,14-
25). A crise sapiencial abandona o antigo conhecimento de Deus e leva Jó a buscar uma
nova imagem divina capaz de substituir a anterior. A velha sabedoria, após intensa luta
contra o mistério e a blasfêmia, finalmente é salva por uma sabedoria mais madura que
brota da dor: “Conhecia-te só de ouvido, mas agora viram-te meus olhos” (42,5).
A saída encontrada por Qohelet não é a mesma de Jó, baseada num conhecimento novo.
De forma mais profana e secular, opta pelo prazer simples e cotidiano:
E eu exalto a alegria, pois não existe felicidade para o homem debaixo do sol, a não ser
o comer, o beber e o alegrar-se; é isso que o acompanha no seu trabalho nos dias da
vida que Deus lhe dá debaixo do sol (8,15).
Não se trata de uma frase solta, mas um motivo que se repete ao longo da obra com força
crescente (2,24; 3,12.22; 5,17; 9,7-10). Quem incluiu esta obra na relação dos livros
canônicos deve ter visto nela algo a mais que pura sabedoria humana. O cortante
ceticismo do livro tornou-se parcialmente palatável por meio do artifício simples de
interpretar como afirmações reais certas observações pias que o autor pretendia ver
entendidas ironicamente. O pós escrito incorporado mais tarde ao texto aliviou ainda mais
o rigor de suas críticas:
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Ecl 12,13-14 Fim do discurso. Tudo foi ouvido. Teme a Deus e observa seus
mandamentos, porque este é o dever de todo homem. Porque Deus julgará toda obra,
até mesmo a que está escondida, para ver se é boa ou má.
Nesta última etapa são incluídas duas obras: eclesiástico (ou Sirácida) e Sabedoria. A elas
deve ser acrescentada a seção final de Provérbios (Pv 1-9). São três as características que
marcam este período:
Como resumo deste primeiro ponto, pode-se admitir que a cultura grega, com sua
influência crescente, causou profundo impacto nessa corrente sapiencial, ainda que não se
possa valorar com objetividade plena o alcance dessa influência.
Assim como há pouco interesse pela história nos contos de Esopo (O leão e o rato), de
Fedro (A raposa e as uvas), de La Fontaine (A cigarra e a formiga) ou na história do
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O livro de Jó é a tal ponto indiferente à história que ainda se discute sua data e sua relação
descritiva com as dificuldades encontradas pelos exilados da Babilônia em sua volta a
Jerusalém. O livro dos Provérbios, verdadeiro resumo da sabedoria antiga de Israel, não
tem relação com a história senão pela simples menção, nos títulos, daqueles que dirigiram
a coleção: Salomão e Ezequias. Ainda que Eclesiastes se apresente sob os traços de
Salomão, sua reflexão incisiva, amarga, desenvolve-se de modo intemporal, sem ligação
evidente com a história do rei protótipo dos sábios.
Por outro lado, para não citar senão o exemplo mais óbvio, o relato da vida e das obras de
Salomão em 1 Reis 3-11, ou o seu paralelo de 2 Crônicas 1-9, oferece uma visão idealizada
por excelência do sábio, a tal ponto que se torna difícil confirmar a historicidade dos fatos
e dos gestos narrados22.
Os livros de Tobias, Daniel (1-6) Judite, Ester, Rute, Suzana (Dn 13) e mesmo Jonas são
“novelas”, breves romances edificantes. Sua mensagem faz parte integrante da mensagem
bíblica. Entretanto, sendo “novelas”, pertencem ao gênero sapiencial, exatamente como O
pequeno príncipe, embora apresentem contornos mais históricos do que este último. A
sabedoria permeia também relatos deste tipo.
Devotos sinceros, sua pesquisa não se baseava na revelação histórica de que Abraão e seus
filhos, Moisés e os Profetas, haviam sido os mensageiros. Eles baseavam-se mais numa
teologia da criação, mais universal em seu princípio, pois as leis da natureza manifestam a
intenção do Criador do Universo, o mesmo que se revelou na história religiosa do antigo
Israel.
22 Ver P. Gilbert, Sagesse et Histoire. Sur l’Historie idéalisée de Salomon , in F. Mies (ed.).
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Dirigindo sua atenção para todo o real, os sábios terminaram por se interessar pela história
de Deus com Israel. Para eles essa história deve conter princípios de alcance universal. Ela
deve ser uma manifestação privilegiada da sabedoria divina, que aí se desenvolve e não
cessa de clamar. Quando nos lembramos do fascínio que exerceu sobre o Oriente Médio a
cultura helenística, glorificada pelos poderes públicos, compreendemos que os mestres da
sabedoria de Israel tenham se mostrado os defensores do valor cultural, sapiencial, de seu
próprio patrimônio religioso, a Torá.
Ben Sirac, mestre de sabedoria em Jerusalém por volta dos anos 200 chegará até mesmo a
traçar uma ampla descrição, passando em revista os principais personagens da história
antiga de Israel (Sr 44-50). Abaixo, apenas alguns versos do capítulo 44:
O mesmo tipo de abertura sapiencial à história bíblica aparece no livro grego da Sabedoria
de Salomão, redigido provavelmente em Alexandria nos últimos decênios da era antiga. O
autor recorre principalmente à figura de Salomão (Sab 6-8) e aos relatos do Êxodo (Sab
10,15-21).
Personificação da sabedoria
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que chama, busca e ama. E, o que é mais desconcertante, como uma pessoa que existe
desde antes da criação. Estes textos estão cheios de enigmas Seria absurdo querer esclarecê-
los em poucas linhas. Mas é necessário ao menos indicá-los. A personificação da sabedoria
pode ser apresentada numa evolução que passa pelos seguintes estágios:
23 É o que defende Whybray, ao dizer que a sabedoria é, em Eclo (cf. 24) e Sab (cf. 7,22-30), “uma
hipostasis ou ser divino, criado por Deus e dependente dele, mas com existência própria”, apud SICRE, Jose
Luis Sicre. Introducción al Antiguo Testamento, p. 267. Von Rad, por outro lado, rejeita o termo: “esta
noção não favorece a compreensão dos textos [...] pois não faz justiça a seus elementos específicos, mais
ainda, porque induz a erros. Nem em Jó 28 e nem em Pv 8,22ss, nem em Eclo 24 se trata de qualquer
personificação de uma qualidade divina”. VON RAD, Gerhard, La sabiduria en Israel, p. 193.
24 Shekinah é um substantivo abstrato de criação rabínica a partir do verbo shakan, “habitar, morar” (veja
Nm 5,3; Nm 35,34). Lê-se no Midrash Sifre Números: “Pois para onde quer que tenham ido os exilados, a
Shekinah ia com eles: foram ao exílio do Egito: a Shekinah ia com eles; [...] foram ao exílio da Babilônia, a
Shekinah ia com eles”, apud LOPEZ, José Antônio Fernandez (Ed.). Judaísmo finito, judaísmo infinito:
debates sobre pensamiento judío contemporáneo. Murcia, Espanha: Ediciones Tres Fronteras, 2009, p. 31
25 LEON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João I, 1996, pp. 95-96.
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