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De um mundo dos possíveis: as atuações da

verossimilhança na teoria da literatura


fantástica

Ana Carolina Bianco Amaral 1

Resumo: Por meio de uma reflexão acerca das convergências entre a crítica e a
teoria da literatura fantástica, o presente trabalho demonstrará como o processo de
realidade e de sobrenaturalidade atua no gênero fantástico. Para tanto, refletiremos
acerca do conceito de verossimilhança clássica e moderna para compreendermos a
construção do cenário realístico dessa literatura.
Palavras -chave: Verossimilhança. Teoria. Literatura Fantástica.

Abstract: Through a reflection on the convergences between critical theory and


fantastic literature, this paper will demonstrate how the process of reality and
supernatural acts in the fantastic genre. To this end, we reflect on the concept of
classical and modern verisimilitude to understand the construction of the realistic
setting of this literature.
Keywords: Verisimilitude. Theory. Fantastic literature.

Resumen: Por medio de una reflexión acerca de las convergencias entre la crítica y
la teoría de la literatura fantástica, el presente trabajo demostrará cómo el proceso
de la realidad y los actos sobrenaturales actúan en el género de la fantasía. Por lo
tanto reflexionaremos sobre el concepto de verosimilitud clásica y moderna para
entender la construcción del entorno o escenario realista de esta literatura.
Palabras Clave: Verosimilitud. Teoría. Literatura Fantástica.

1
Doutoranda em Letras (2012) na Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP-
IBILCE).
Revista Investigações Vol. 28, nº 1, Janeiro/2015

Introdução

Não é de hoje que a querela observada pelos teóricos e pelos


críticos da teoria da literatura fantástica gera contradições no que
compete uma definição pautada de gênero ou de modo dessa literatura.
Tal impasse desenvolve-se pela própria natureza caótica do fantástico,
uma vez que o leque de adjetivos do gênero o faz estar muito além de
um posicionamento claro e definido, como muito articula a variedade
dos trabalhos dessa área. Há de se considerar, no entanto, que dentre os
desdobramentos 2 promovidos por esse tipo há um eixo central, um
ponto de apoio no qual o gênero se apropria e toma posse para então
multiplicar-se em outros aspectos, criando, assim, um ramo de estéticas
dessa corrente.
Iniciamos essa discussão em nosso trabalho anterior, intitulado
Uma ironia fantástica: a dicotomia da narrativa em Murilo Rubião
(2012), no qual falamos acerca do processo de configuração central do
fantástico. Identificamos, aqui, três características maiores da
sistematização do gênero, que denominamos, pela ocasião, de
simulacro de realidade, simulacro de sobrerrealidade e dicotomia
irônica. No entanto, a fim de não nos chocarmos com a tradução
brasileira de um dos termos propostos na teoria de Jean Baudrillard, em
Simulacro e simulação (1991), permutaremos a terminologia própria de
nossa argumentação pela sinonímia “simulação”. Especialmente, essa
escolha imprime-nos certa claridade à reflexão ambientada aqui. O fato

2
Vide Realismo Mágico, Realismo Maravilhoso e Neofantástico.
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Ana Carolina Bianco Amaral

é que os termos em si são irrelevantes, já que a pragmática do conteúdo


de tais é, comumente, pautada em nosso diálogo.
Iniciamos nossa investigação por suspeitarmos de uma forte
convergência entre certas narrativas dos séculos XIX, XX e XXI, cujos
encontros estilísticos baseiam-se na existência, em nosso viés, da
simulação de realidade e na simulação de sobrerrealidade. Ademais,
acreditamos que crítica e a teoria da literatura fantástica, praticada por
Italo Calvino, Jorge Schwartz, Maria Cristina Batalha, Bráulio Tavares,
Tzvetan Todorov, Irene Bessière, Felipe Furtado, entre outros, também
concorda que há, ainda que por cognição e não por enfrentamento, a
circulação desses dois pontos nas narrativas fantásticas: o aspecto de
realidade e o de sobrenaturalidade. Por isso, dizemos que a recorrência
desses dados na crítica e na teoria não é, de modo algum, intermitente,
mas é tendenciosa a qualificar um gênero textual para o fantástico,
apresentando o seguinte binarismo:
1. A imitação de um cenário integralmente realista, do universo do
leitor;
2. A transgressão do ambiente realista da história, dada com a aparição
de algum personagem ou evento, tipologicamente, sobrenatural.
Logo de início, compreendemos que a primeira premissa é
condicionalmente complexa, já que a atuação exata do universo físico
do leitor, no mundo da narrativa, compreenderia, imprescindivelmente,
a existência de um mundo e de contextos históricos únicos, onde
estariam compartilhados os mesmos valores e referências dos grupos
sociais, bem como a cultura desses grupos. Todorov, porém, parece não
se inclinar a essa intangibilidade, quando ele diz:

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Revista Investigações Vol. 28, nº 1, Janeiro/2015

Somos assim transportados ao âmago do fantástico. Num


mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos,
sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um
acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste
mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por
uma das duas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão
dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as
leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o
acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da
realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis
desconhecidas para nós. (TODOROV, 1975: 30. Grifo nosso).

Essa proposição todoroviana não distingue o mundo literário do


universo real do leitor. O que nos faz acreditar que se, por exemplo, o
receptor não participar da execução da narrativa, hesitando ou não com
os personagens a respeito da procedência do evento sobrenatural, não
haverá literatura fantástica. Neste caso, para haver o processo de
hesitação, o leitor precisaria ser orientado por sua própria noção de
realidade, que é sempre concretizada em seu ambiente físico e social.
Por essa via, o distanciamento completo do universo empírico do
receptor do cenário da ficção não seria possível, e ambientaria o leitor
no universo diegético, simulando seu ambiente cotidiano, sem
distinções. Mas o que aconteceria com a literatura fantástica se a
concepção de realismo do leitor não anuir com a noção de real que o
texto pretende? A narrativa abandonaria o campo do fantástico? Essa
acepção teórica é predominantemente suicida, na medida em que ela
almeja impor a literatura a criação de um ambiente realista a partir de
processos fechados de referências, espelhados nos valores sócio-
culturais que, nesse caso, seriam próprios do teórico, bem como Braulio
Tavares faz ao considerar que a literatura fantástica é “tudo que não é
realista (2003: 7, grifo do autor).

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Ana Carolina Bianco Amaral

A verossimilhança na modernidade

Pode-se dizer que o nascimento do fantástico é instaurado pela


liberdade de criação e de fantasia promovida pelo romantismo europeu.
Com isso, uma gama de publicações que privilegia a aparição de
personagens e situações sobrenaturais ganhou espaço, sobretudo, na
frança do século XIX. Em meados de 1830, quando as primeiras
traduções das obras do alemão E. T. A. Hoffmann começam a circular
em ares parienses, a literatura fantástica é tipologicamente consolidada,
tendo, assim, o seu início. Desde então, as narrativas fundadoras, tais
como: “O homem da areia” (1817), de Hoffmann, “A morte apaixonada”
(1836), de Gautier e “Um sonho” (1876), de Ivan Turgueniv, são
marcadas pela manifestação de um elemento sobrenatural no cenário
realista.
Na atualidade, observa-se um grande tumulto na crítica literária
ao referir-se ao termo verossímil. Sobretudo no fantástico, a
verossimilhança parece esboçar um tipo de realidade presente do
mundo externo ao texto, que está representada no cenário interno da
narrativa. Se pensarmos nos primeiros aparecimentos da palavra
verossímil, remontaremos à A arte poética, de Aristóteles. Essa obra,
escrita no século IV a.C foi impressa, na Europa, no final do século XV,
início do século XVI, sendo leitura requisitada nas escolas de Arte
europeias. Por esse motivo, as ideias cultivadas na Arte poética foram
fonte de inspiração da arte renascentista e do classicismo de forma
geral, o que nos faz pensar essa verossimilhança como “clássica”. No
livro IX, História e poesia, da Arte poética, Aristóteles faz a seguinte
afirmação: “[...] é evidente que não compete ao poeta narrar exatamente
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o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível,


segundo a verossimilhança ou a necessidade.” (ARISTÓTELES, 2007:
43). Como o conceito da verossimilhança não é completamente
explícito nessa obra, a partir dessa citação e do conjunto das
considerações que compõe a Arte poética, aceitam-se como verossímeis,
as possibilidades internas dos enunciados discursivos, ou seja, pode-se
aceitar que verossimilhança é uma coesão discursiva que organiza o
possível, mantendo uma estrutura. Nessa esteira, o poeta, ou qualquer
outro criador de literatura “fazendo-se a conversão de poeta para
romancista [...]” (CARVALHO, 1998: 192) produz um texto composto
por uma série de eventos e ações que são acontecimentos possíveis no
enredo, espelhado nas ações humanas, e que conformam, por isso, uma
coerência interna.
Há de se ressaltar que a Arte poética é cunhada no conceito de
mimese. Reconhecendo como gêneros somente a comédia, a tragédia e
a epopeia, Aristóteles os fundamenta na noção de imitação, pois essas
espécies implicam não só uma equivalência, mas uma transformação,
no texto, positiva ou negativamente, da personalidade, do caráter do
homem, seu, então, modelo direto: “é pela ação que as personagens
produzem a imitação [...]” (ARISTÓTELES, 2007: 35). Dessa maneira,
considera-se que a poesia, assim como a epopeia, então a narrativa, é
um tipo mimético, pois representa e imita as ações dos homens e da
natureza, transcendendo à composição do caráter geral do universo
para o particular. Essa noção de imitação aristotélica, na literatura, é
conceituada quando o filósofo refere-se à tragédia: “imitação de uma
ação é sobretudo por meio da ação que ela imita as personagens que

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agem [...]” (ARISTÓTELES, 2007: 37), é orientada, para Lígia Militz da


Costa, pelo conceito da verossimilhança:
[...] a verossimilhança situa a mimese nas fronteiras ilimitadas
do “possível”: [...] o possível”, e não o verdadeiro, como objeto
temático da mímise, [...] o “possível” lógico, causal e
necessário, como modo de arranjo interno, solidário, das
ações do mito. (COSTA, 2011: 53-54).

Assim, quando Aristóteles afirma que o poeta ou um romancista e


narra conforme a verossimilhança, ele refere-se, principalmente, à
imitação como um processo de organização interna. E esse imitar na
narrativa posicionaria, equilibradamente, uma possibilidade de
representação dos elementos do mundo empírico dentro do texto, ou
seja, a mimese imitaria e sistematizaria a ação dos homens, formando
uma estrutura. Esta, por sua vez, não escaparia das noções gerais do
senso comum, pois ela tende a exprimir a verdade dos eventos e a
integridade do comportamento dos personagens.
A verossimilhança então, ainda na visão de Lígia Militz da Costa,
se subdividiria em duas categorias ligadas à mimese: “a ‘externa’, ligada
à relação de seu objeto temático com as referências exteriores de tempo
e espaço; e ‘interna’, referente à seleção e disposição estrutural do
material verbal do mito.” (COSTA, 2011: 53). Esse desdobramento impõe
na verossimilhança externa, uma função representante, do mundo
contextual, do signo. E na interna, a mimese é posicionada como o
critério fundamental de um texto, se considerarmos que tudo é possível
e verossímil na imitação, até mesmo o sobrenatural.
Esse verossímil clássico, instaurado como uma coerência interna
entre as partes do discurso, assume, no entanto, outra postura na
modernidade. Já nos anos 60, a abordagem estruturalista de Roland

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Barthes, no artigo O efeito de real (1968) fala acerca de um novo


verossímil:
Este [...] é muito diferente do antigo, pois não é o respeito das
leis do género, nem sequer o seu disfarce, antes provém da
intenção de alterar a natureza tripartida do signo para fazer
da notação o puro encontro de um objeto com sua expressão.
A desintegração do signo – que parece ser de facto o grande
caso da modernidade – está sem dúvida presente na empresa
realista, mas de um modo um tanto regressivo, visto que é
feita em nome de uma plenitude referencial, ao passo que
aquilo de que se trata hoje é, ao contrário, esvaziar o signo e
fazer recuar infinitamente o seu objecto até pôr em causa, de
modo radical, a estética secular da “representação”.
(BARTHES, 1984: 136).

Com base comparativa de obras da estética realista, do século


XIX, Barthes formula a denominação do “novo” a partir das descrições
excessivas de elementos do cotidiano social, dentro da literatura. A
função de uma representação social realista, que em larga medida
almeja descrever os fenômenos contextuais em sua plena objetividade,
pretende refutar, também, a lírica romântica anterior a esse
movimento. Barthes argumenta que o excesso da descrição de um
objeto, na verdade, não posiciona a obra literária no âmbito da
realidade absoluta, como pretendiam os adeptos do realismo, mas faria
exatamente o contrário: afastaria o obra da realidade empírica:
Quando Flaubert, ao descrever a sala onde se encontrava a Srª
Aubain [...] nos diz que “um velho piano suportava, sob um
barómetro, um monte piramidal de caixas de madeira e de
cartão”, quando Michelet, ao contar [...] “ao fim de hora e
meia, bateram delicadamente a uma pequena porta por detrás
dela”, estes autores (entre muitos) produzem notações que a
análise estrutural, ocupada em identificar e sistematizar as
grandes articulações da narrativa [...] põe de lado, ou porque
se rejeitem do inventário [...] todos os pormenores
“supérfluos” (em relação à estrutura), ou porque se tratam
esses mesmos pormenores [...] como “enchimentos” [...]
afectados de um valor funcional indirecto, na medida em que,
ao adicionarem-se, constituem um certo índice de carácter ou
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de atmosfera, e podem assim ser finalmente recuperados pela


estrutura. (BARTHES, 1984: 131).

Deve-se a “desintegração do signo” o esvaziamento do significado


no significante, pois a descrição e/ou repetição de determinados objetos
de uma história perde o conceito corrente desse mesmo objeto, e ao
invés dessa descrição aspirar à existência concreta do elemento
narrado, ela reduz a realidade, pois no cotidiano social não há essa
revelação comum e minuciosa do objeto.
A título de exemplo, alguns contos fantásticos franceses, do
século XIX, comportam essa dissociação barthesiana do significado no
signo. O conto “O pé da múmia”, de Gautier, encena a superficialidade
de certos elementos descritivos:
À falta do que fazer, eu entrara num desses negociantes de
curiosidade, chamados negociantes de bricabraque na gíria
parisiense, tão perfeitamente ininteligível para o resto da
França. Já haveis sem dúvida dado uma olhada, através da
vidraça, nalgumas dessas lojas que se tornaram tão
numerosas desde que entrou na moda adquirir móveis
antigos, e que qualquer corretor de câmbio se acha obrigado a
possuir o seu quarto Idade Média. (GAUTIER apud PAES,
2005: 68).

Reparem que o adjetivo “perfeitamente” e os sintagmas


“negociantes de bricabraque na gíria parisiense”, “através da vidraça”,
“dessas lojas que se tornaram tão numerosas desde que entrou na moda
adquirir móveis antigos” são desnecessárias para demonstrar que o
narrador autodiegético está em um centro de compras em Paris,
porquanto uma simples descrição, anunciando sua ida ao comércio, já
refletiria o evento. Esse outro trecho:
Eu hesitava entre um dragão de porcelana todo constelado de
verrugas, a goela ornada de colmilhos e filamentos, e um
pequeno fetiche mexicano de aspecto assaz abominável,
representando ao natural o deus Witziliputzili, quando avistei
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um pé encantador, que tomei a princípio por um fragmento


de Vênus antiga. (GAUTIER apud PAES, 2005: 70).

reitera o pormenor supérfluo barthesiano, se relevarmos que a


apreciação dos objetos da casa de bricabraque, referida pelo narrador
autodiegético, pode configurar uma expectativa sobre a função desses
objetos para o leitor, mas que se frustra por não revelar, dentro da
narrativa, algum ponto convergente entre a função dessas descrições e
o enredo, e não nos dizem mais do que “eu existo, eu estou aqui”.
A respeito da verossimilhança na literatura fantástica, Todorov
declara que: “[...] é uma categoria que se relaciona com a coerência
interna, com a submissão ao gênero [...]. No interior do gênero
fantástico, é verossímil a ocorrência de reações fantásticas”
(TODOROV, 1975: 52). Essas reações, no olhar do teórico búlgaro,
seriam produzidas pela indefinição das expectativas criadas no leitor
acerca de uma explicação racional ou irracional para os eventos que, em
primeira ordem, seriam tidos como sobrenaturais. Por isso, se a
configuração da narrativa, a hesitação como cerne do fantástico, for
cumprida em sua totalidade, essa literatura, então, terá atingido sua
verossimilhança. Lembremos que para isso acontecer, na visão
todoroviana, será necessário que o texto, desejando atingir a
banalidade, o cotidiano, tenha sua estrutura interna rompida pela
introdução de um objeto sobrenatural. A ausência de explicação da
origem desse elemento subversivo geraria um ciclo hesitacional no
leitor, chamado, na perspectiva todoroviana, de leitor implícito, o qual
questionaria a natureza dos eventos insólitos, sem, porém, obter uma
resposta. Não obstante, no mesmo parágrafo da citação anterior, o

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teórico parece atribuir um outro sentido para o termo verossímil.


Vejamos:
De fato, as soluções realistas que recebem o “Manuscrit
trouvé à Saragosse” ou “Inès de Las Sierras” são perfeitamente
inverossímeis; as soluções sobrenaturais teriam sido, ao
contrário, verossímeis. A coincidência é por demais artificial
na novela de Nodier; quanto ao “Manuscrit” seu autor não
procura nem mesmo dar-lhe um fim crível: a história do
tesouro, da montanha oca, do império dos Gomélez é mais
difícil de se admitir que a da mulher transformada da carniça!
(TODOROV, 1975: 52).

Com base nessas afirmações, os termos verossímil e inverossímil


parecem adjetivar a possibilidade de existência de determinado evento
na realidade externa do texto. O fim crível seria julgado como legítimo
pelo leitor, com base na referencialidade do seu mundo de origem, e
reiteraria o pensamento de que “num mundo que é exatamente o nosso,
aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se
um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo
mundo familiar.” (TODOROV, 1975: 30, grifo nosso). Mas qual universo
é esse? A narrativa fantástica comporta a realidade coletiva de um
indivíduo dentro do texto? Além disso, esse impasse faz compreender a
verossimilhança do fantástico em duas categorias. A primeira, já citada,
como uma coerência do gênero, exercida pela instauração do efeito de
hesitação, e a segunda oriunda do aspecto realista do texto, o qual
fabrica elementos do cotidiano social que são espelhados numa obra
fantástica – conceito comentado, também, em a Poética da prosa (1971).
Todorov, no capítulo Introdução ao verossímil (1971), parece
anuir seu conceito de verossimilhança ao “novo verossímil”
barthesiano. Vejamos:

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A literatura, que simboliza a autonomia do discurso, não foi


suficiente para vencer a ideia de que as palavras reflectem as
coisas. O traço fundamental de toda nossa civilização
continua ser esta concepção de linguagem-sombra, com
formas talvez modificáveis, mas que não deixam de ser as
consequências directos dos objectos que reflectem.
(TODOROV, 1971: 96).

E, finalmente, o teórico crê o verossímil como reflexo direto da


realidade vigente no mundo exterior ao texto. A descrição de elementos
que compõem situações específicas estaria presente nessa categoria do
real, que não nega a herança aristotélica da mimese, uma vez que a
construção da realidade se basearia nas ações sociais. No entanto, o
legado de Aristóteles teve seu termo aplicado a um conceito mais
específico e tradutor da modernidade: “O termo ‘verosímil’ é utilizado
aqui no sentido mais ingénuo de ‘conforme a realidade’. (TODOROV,
1971: 97).
É justamente essa transcrição pura e objetiva da realidade que
Todorov critica, tentativa daquilo que Barthes chama de “pormenores
inúteis” (1984: 132), quando comenta a obra de Flaubert:
[...] o fim estético da descrição flaubertiana é inteiramente
infiltrado por imperativos “realistas”, como se a exactidão do
referente, superior e indiferente a qualquer outra função,
bastasse para comandar e justificar, aparentemente, a sua
descrição, ou – no caso das descrições reduzidas a uma
palavra – sua denotação: as exigências estéticas são aqui
penetradas – pelo menos a título de álibi – por exigências
referenciais [...] (BARTHES, 1984: 135).

Ainda que o excesso descritivo não legitime o real narrativo,


temos em mente que a ausência das descrições impediria a criação de
uma narrativa, já que também, na visão de Genette (s/d) “a narrativa
designa a sucessão de acontecimentos, reais ou fictícios, que
constituem o objecto desse discurso, e as suas diversas relações de
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encadeamento.” (p. 24). Isso nos faz entender que o novo verossímil
barthesiano, o qual constata o uso excessivo no contexto moderno do
significante no texto, e o verossímil todoroviano, sendo sua definição
“conforme a realidade”, são entidades produtoras de um certo realismo
que uma narrativa, por excelência, almeja criar, uma realidade,
independente do período de sua composição. Esse real não é o próprio,
não coexiste na realidade, ele simplesmente é uma impressão, ilustra
uma situação, um objeto, refere-se, simula, almeja a, aspira a,
comporta-se como, é uma fotocópia, mascara, imita, aparenta, enfim, é,
nas palavras de Barthes, um efeito, e nas nossas, um avatar realista.
Uma pergunta nos cabe. Se a realidade é uma ilusão, como a
própria designação especifica, por que algumas citações dos teóricos
parecem confundir o real contextual, vivido pela sociedade, com o
avatar realista? Ressaltamos que, além do excerto todoroviano sobre o
mundo, citado acima, o teórico italiano, Remo Ceserani, em O
fantástico, expõe: “O conto fantástico envolve fortemente o leitor, leva-
o para dentro de um mundo a ele familiar, aceitável, pacífico, para
depois fazer disparar os mecanismos da surpresa”. (2006: 71). Já no
campo da crítica não é diferente, porquanto Braulio Tavares argumenta:
Uma definição do fantástico depende, por exemplo, do fato
de que a concepção do real, para muitas pessoas, está
misturada à sua crença religiosa. Para um ateu, uma história
em que aparecem fantasmas é uma história fantástica, porque
a comunicação com as almas das pessoas mortas é impossível
(e a própria existência de tais almas é posta em dúvida).
(TAVARES, s/d, s/p).

Essas visões nos fazem pensar em até que ponto a realidade


contextual pode se confundir com a pretensão realista de um texto?
Essas considerações parecem elencar esses aspectos não em categorias

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distintas, como de fato são, mas nivelam as realidades no mesmo


patamar.

Considerações finais

As reflexões que tentamos estabelecer pautam-se,


preferencialmente, no campo da estrutura do fantástico. Embora a
noção de realidade contextual e de realidade textual possa ser distinta
para os estudiosos, não há, claramente, uma definição específica da
noção do real fantástico. Se a literatura fantástica é verossímil, como
explicitou Todorov, ela não anularia, então, o sobrenatural, pois este
teria a mesma forma do real: “A verossimilhança não se opõe [...]
absolutamente ao fantástico.” (TODOROV, 1975: 52). Se o elemento
insólito for aceito pelo texto como uma possibilidade, ou uma
coerência, o que subverterá, então, a narrativa? Os dois tipos de
verossimilhança, citados por Ligia Militz da Costa, interna e externa,
parecem concordar, ainda que se refiram à literatura em geral, com a
proposta todoroviana. A verossimilhança interna, assim, organizaria o
discurso equilibradamente, sistematizando as partes narrativas
coerentemente, a fim de formar uma unidade literária que, tratando-se
do fantástico pelo prisma todoroviano, seria identificável na
manutenção do ciclo hesitacional.
Por outro lado, a verossimilhança externa, proposta por Costa,
equivaleria ao novo verossímil bartesiano, pois o mundo empírico seria
o próprio referencial do texto, quando este imita ações dos homens, os
objetos sociais, a natureza, etc. Sendo assim, identificamos que a

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verossimilhança atua na modernidade como uma equivalência da


realidade mimética social. Por conta disso, o inverossímil aparece como
sinônimo do sobrenatural e não elimina as contradições no campo da
reflexão, já que o desequilíbrio almejado pelo binômio não faz mais que
erigir a coerência da unidade literária do fantástico.

Referências

ARISTÓTELES. A arte poética. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin


Claret, 2007.
BARTHES, R. O efeito de real. In:___. Rumores da língua. Tradução de António
Gonçalves. Lisboa: Edições 70, 1984. p. 32- 36.
CESARANI, R. O fantástico. Tradução de Nilto Cezar Tridapalli. Curitiba: Editora
UFPR, 2006.
COSTA, Ligia Militz da. A poética de Aristóteles: Mímese e verossimilhança. São
Paulo: Ática, 2011.
GAUTIER, Thèophile. O pé da múmia. In: Paes, J. P. (Org). Os buracos da máscara.
Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Brasiliense, 1985. pp. 68-82.
GENETTE, G. Discurso da narrativa. Tradução de Fernando Cabral Martins. Lisboa:
Vega, s/d.
TAVARES, Braulio. Algumas interfaces com o fantástico. Revista Rascunho.
Disponível em: <http://rascunho.rpc.com.br>. Acesso: 01 out 2008.
______. Introdução. In:___. (Org). Freud e o estranho: contos fantásticos do
inconsciente. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007.
TODOROV, T. As estruturas narrativas. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São
Paulo: Perspectiva, 2003.
______. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello.
São Paulo: Perspectiva, 2007.
_______. Introdução ao verossímil. In:___. Poética da prosa. Tradução de Maria de
Santa Cruz. Lisboa: 1971. p. 25-29.

Recebido em 09/04/2015. Aprovado em 15/06/2015.

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