O Canibal de Rotemburgo
O Canibal de Rotemburgo
O Canibal de Rotemburgo
O CANIBAL DE ROTHENBURG:
uma análise acerca da decisão do Tribunal Alemão
Juiz de Fora
2010
UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
O CANIBAL DE ROTHENBURG:
uma análise acerca da decisão do Tribunal Alemão
Juiz de Fora
2010
Fellipe Guerra David Reis
O CANIBAL DE ROTHENBURG:
uma análise acerca da decisão do Tribunal Alemão
__________________________________________________
Professor Orientador Bruno Stigert de Sousa
__________________________________________________
Professora Kelly Cristine Baião Sampaio
__________________________________________________
Professor Abdalla Daniel Couri
Folha de Rosto 01
Folha de Aprovação 02
Dedicatória 03
Epígrafe 04
Resumo 05
Introdução 07
Capítulo 1. A Liberdade 08
1.1. Inserindo a Liberdade na História 08
1.2. Os dois conceitos de Liberdade 12
1.2.1. Liberdade no sentido ‘negativo’ 13
1.2.2. Liberdade no sentido ‘positivo’ 16
1.3. Liberdade segundo John Stuart Mill 18
Conclusão 37
Bibliografia 39
7
Introdução
1
MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência – Romance XXIV: “Liberdade – essa palavra que o sonho
humano alimenta: que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda!”
2
Neste sentido conferir: SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e
na igualdade. Belo Horizonte: Editora UFMG, PROED. 1995
8
1. A Liberdade
Immanuel Kant (1724-1804) não foi o único a dar à liberdade um enfoque distinto,
mais relevante, do até então adotado pelos que o precederam. Com ele também Locke,
Montesquieu e Rousseau constataram a importância desta para a justiça 3.
Entretanto, Kant foi, sem dúvidas, o protagonista, pois viu a necessidade de uma ética
universal que fosse capaz de inserir o homem na esfera do Sollen (dever-ser) e não mais do
Sein (ser), quis uma natureza humana estável e não variável, como os filósofos empiristas
ingleses a conceituaram; desejava a natureza humana livre. Com isso, influenciou, direta ou
indiretamente, todos os filósofos do século XIX e XX.
Esta manifestação do dever-ser são os imperativos categóricos, verdadeiros princípios
de justiça. Através deles Kant apresenta um critério máximo para o ajuizamento da
moralidade, vez que, como um dever-ser, o imperativo nos exorta a agir moralmente, ou seja,
segundo máximas universalizáveis que seriam, conforme afirma Höffe citando Kant,
“proposições fundamentais subjetivas do agir, que contém uma determinação da vontade e
dependem de diversas regras práticas 4”.
3
Apesar de ser usualmente vinculado à idéia de comunitarismo, isto é, oposta ao liberalismo, Rousseau foi
fundamental para a filosofia kantiana como o próprio Kant assim o reconheceu. Ele deixou claro que Rousseau
o inspirou pelo fato de mostrar que não se encontra o ético por abstrações filosóficas, mas sim no homem
comum. A grande contribuição de Rousseau para a ética kantiana foi a identificação da liberdade com a lei; até
então, a lei era vista como entrave à liberdade, mas Rousseau redefiniu a liberdade como a obediência à lei a si
mesma prescrita. É a liberdade que Kant admirou em Rousseau – o homem livre de si para si.
4
HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm e Valerio Rohden. 1° Edição. São Paulo: Martins
Fontes, 2005, p. 203.
9
Em conseqüência, um Estado Racional (ou livre) seria um Estado governado por leis
que todos os homens racionais acatariam livremente; isto corresponde a dizer, leis que eles
mesmos teriam promulgado se lhes tivessem perguntado quais.
Começando, como dito, com os contratualistas, o liberalismo é uma doutrina que tem
vários patronos e, entre eles John Stuart Mill (1806-1873), cuja obra Sobre a Liberdade é
fundamental para o presente trabalho.
5
SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo
Horizonte: Editora UFMG, PROED. 1995
6
SILVA, Denis Franco. “O Princípio da Autonomia: da Invenção à Reconstrução”. In: Princípios do Direito Civil
Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
7
Embora a noção kantiana de autonomia moral tenha inspirado a construção do conceito de autonomia
privada dentro do direito privado, conforme ressalta Denis Franco Silva, “[...] Não há que se falar, portanto, na
existência de equivalência entre a construção kantiana de autonomia e o modo pelo qual se estruturou,
tradicionalmente, aquilo que chamamos de autonomia privada na ciência do direito.” E continua citando Maria
Venegas Grau: “[...] pode-se falar somente de uma influência indireta da filosofia das luzes, e não de uma
transposição desta para o âmbito do direito positivo.” Ou então, segundo Georges Rouhette, “da influência de
uma “vulgata kantiana”, na qual, melhor do que invocar a conversão dos juristas ao pensamento kantiano,
diretamente tomado de seus textos, seria afirmar uma inspiração dos mesmos por uma autonomia da vontade
simplificada e, até mesmo, falseada”. Cf.: SILVA, Denis Franco. “O Princípio da Autonomia: da Invenção à
Reconstrução”. In: Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
8
HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm e Valerio Rohden. 1° Edição. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 219.
10
9
MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Trad. Alberto da Rocha Barros. 2° Ed. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 12
10
Idem.
11
MILL, John Stuart. op. cit. p. 13
12
MILL, John Stuart. op. cit. p. 15
13
Há que se ressaltar que Berlin se preocupou em descrever as vertentes existentes de liberdade, apontando-
lhes críticas, contudo, não pretendeu construir uma teoria própria sobre elas.
11
A teoria da justiça de John Rawls tem uma matriz eminentemente kantiana como o
próprio autor afirma, tendo ele, inclusive, dedicado vários capítulos de sua obra ‘História da
Filosofia Moral’ ao pensamento de Kant. Entretanto, houve distanciamentos. Rawls
pretendeu que seu liberalismo construtivista fosse meramente político, não ético, como de
Kant e também de Hume 14; distanciou-se, desde logo, da perspectiva de primeira pessoa
kantiana, que eleva a máxima de sua ação à lei universal propondo, ao revés, dois princípios
substantivos de justiça 15:
1) Cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema total mais extenso de
liberdades básicas compatíveis com um sistema de liberdade similar a todos;
2) As desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de modo que
sejam:
a) para o maior benefício dos que têm menos vantagens e;
b) vinculadas a cargos e posições abertos a todos sob condições de
igualdade de oportunidade equitativas16.
14
NEDEL, José. A teoria ético-política de John Rawls: uma tentativa de integração de liberdade e igualdade.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 85.
15
Idem.
16
KYMLICKA, Will. Filosofia Política Contemporânea. Trad. Luís Carlos Borges. 1° Edição. São Paulo: Martins
Fontes, 2006. p. 67
17
Há quem considere, como Habbermas, que Rawls não logrou êxito nessa tentativa de construção dialógica da
moralidade. Por sua vez, “Habermas propõe uma mudança de paradigma: da filosofia da consciência para a
teoria da interação, da razão reflexiva para a razão comunicativa. Com essa nova “revolução copernicana”
Habermas procura resgatar a validade da teoria cognitiva da razão sem incorrer nas limitações impostas por
Kant. A razão comunicativa proposta por Habermas é essencialmente dialógica, substituindo o conceito
monológico da razão pura de Kant. Ela não mais se assenta no sujeito epistêmico, mas pressupõe o grupo numa
situação dialógica ideal. A verdade produzida nesse novo contexto é processual e depende dos membros
integrantes do grupo. Nesta nova concepção da razão comunicativa a linguagem torna-se elemento
constitutivo.” Cf.: FREITAG, Barbara. A Questão da Moralidade: da razão prática de Kant à ética discursiva de
Habermas. Disponível em: < http://www.fflch.usp.br/sociologia/temposocial/pdf/vol01n2/a%20questao.pdf>.
Acesso em: 07 de novembro de 2010.
12
Como bem asseverou Isaiah Berlin, quase todos os moralistas na história humana têm
entoado loas à liberdade com os mais diversos significados que o termo poderia abarcar:
felicidade e bondade, natureza e realidade, etc. O significado do termo não poderia ser mais
poroso. Assim como delimitou o referido autor os sentidos de liberdade os quais trabalharia,
dentre “os mais de duzentos sentidos dessa palavra protéica registrados 18”, também assim se
faz, analisando-se os aspectos da Liberdade em sentido “positivo” e “negativo”.
Por detrás desses dois conceitos de liberdade está a controvérsia sobre se a mera
imoralidade de um ato constitua razão suficiente para que o direito nele interfira 19. A posição
liberal sustenta, nesse sentido, que o direito não pode estar dirigido à impor modelos de
condutas pessoais ou planos da vida que, por sua vez, pressupõe modelos de ‘virtude’. A
posição oposta, os conservadores, afirmam que é missão do Estado fazer com que os homens
se orientem corretamente elegendo para si formas de vida virtuosa e ideais de excelência.
18
BERLIN, Isaiah. Quatro Ensaios sobre a Liberdade. Trad. Humberto Hudson Ferreira. Brasília: Universidade de
Brasília, 1981. p. 135
19
NINO, Carlos Santiago. Ética y Derechos Humanos: Um ensayo de fundamentación. Barcelona: Ariel S.A.,
1989. p. 202.
13
Segundo Ronald Dworkin, conforme é citado por Santiago Niño, ambas as posições
derivam de uma interpretação diferente do princípio da igualdade:
20
“La primera teoría (liberal) de la igualdad supone que las decisiones políticas deben ser, en la medida de lo
posible, independientes de cualquier concepción sobre la vida buena o sobre lo que da valor a vida. Desde que
los ciudadanos de una sociedad difieren en sus concepciones, el gobierno no los trata como iguales si prefiere
una concepción a otra, sea porque los funcionarios piensan que una de ellas es intrínsecamente superior o
porque ella es sostenida por el grupo social más numeroso o más poderoso. La segunda teoría (conservadores)
arguye, por el contrario, que el contenido del tratamiento igualitario no puede ser independiente de alguna
concepción de lo bueno para el hombre o de lo que es bueno en la vida, ya que tratar una persona como a un
igual significa tratarla de la forma en que una persona buena y sabia desearía ser tratada. El buen gobierno
consiste en promover o al menos reconocer aquellas vidas que son buenas; el tratamiento igualitario consiste
en tratar a cada persona como si ella estuviese deseosa de materializar la vida que es realmente buena al
menos en la medida que esto es posible.” DWORKIN, Ronald. apud NINO, Carlos Santiago. Ética y Derechos
Humanos: Um ensayo de fundamentación. Barcelona: Ariel S.A., 1989. p.204
14
individual desses planos de vida e a satisfação dos ideiais que cada um sustenta,
impedindo a interferência mútua no curso de tal persecução 21. (traduziu-se)
21
“siendo valiosa la libre elección individual de planes de vida y la adopción de ideales de excelencia humana, el
Estado (y los demás individuos) no debe interferir en esa elección o adopción, limitándose a diseñar
instituciones que faciliten la persecución individual de esos planes de vida y la satisfacción de los ideales de
virtud que cada uno sustente e impidiendo la interferencia mutua en el curso de tal persecución.” NINO, Carlos
Santiago. Ética y Derechos Humanos: Um ensayo de fundamentación. Barcelona: Ariel S.A., 1989 p. 204
22
MILL, John Stuart. apud BERLIN, Isaiah. Quatro Ensaios sobre a Liberdade. Trad. Humberto Hudson Ferreira.
Brasília: Universidade de Brasília, 1981. p. 140
15
23
para justificar as próprias convicções – o limite máximo seria sempre a individualidade do
outro. Apesar de móveis, as fronteiras são sempre identificáveis.
Críticas não faltam sobre a liberdade no sentido de meta ‘negativa’, contrapondo-se à
interferência. Alguns liberais, notadamente Stuart Mill, defenderam que essa forma de
liberdade é uma condição necessária para o aperfeiçoamento do gênio humano, o que foi alvo
de implacáveis críticas. O mais notável nessa empreitada foi James Stephen 24 que asseverou
que sentimentos como integridade, amor à verdade e individualismo apaixonado,
intensificam-se na mesma freqüência em comunidades rigidamente disciplinadas, ou sob a
disciplina militar, do que em sociedades mais tolerantes ou indiferentes, ou seja, tais
sentimentos poderiam aflorar em sociedades onde o dogma castra o pensamento, não sendo,
necessariamente, derivados do aperfeiçoamento do gênio humano causado pela liberdade.
Foi também alvo de críticas a idéia que essa suposta não-interferência seria impossível
vez que os homens, em grande parte, são interdependentes e nenhuma atividade é
completamente privada de modo que jamais venha a produzir efeitos na esfera de terceiros de
uma forma ou outra: “A liberdade do tubarão é a morte para as sardinhas 25”. Essa afirmação,
embora verídica, foi utilizada em um discurso crítico de políticas economicamente liberais, ou
seja, como usufruiria um camponês da liberdade se lhe faltava o que comer?
Outras críticas deram-se, mas como se relacionam com o perfeccionismo –
intimamente relacionado com o conceito de liberdade positiva – serão abordadas a frente.
Um ponto sobre o qual merece que sejam tecidas algumas considerações foi a
afirmação feita acima de que a tradução da liberdade em sentido de não-intervenção –
negativa – não realiza valorações sobre o bom, justo e o certo. Essa afirmação pode gerar
controvérsias falaciosas, infundadas como acontece na assertiva de Santiago Nino: “o
liberalismo, indubitavelmente, descansa em uma concepção do bom, ou do que é socialmente
bom, segundo o qual a autonomia dos indivíduos para eleger e materializar projetos e estilos
de vida é intrinsecamente valiosa 26” (traduziu-se).
De fato, os liberais valoram positivamente a idéia de liberdade traduzida no princípio
máximo da autonomia da pessoa humana. Tal princípio é tanto individualmente quanto
socialmente bom. Contudo, isto não guarda relação com a assertiva retro mencionada, pois, o
23
BERLIN, Isaiah. Quatro Ensaios sobre a Liberdade. Trad. Humberto Hudson Ferreira. Brasília: Universidade de
Brasília, 1981. p. 139
24
BERLIN, Isaiah. op. cit. p. 141.
25
BERLIN, Isaiah. op. cit. p. 137
26
NINO. Carlos Santiago. Ética y Derechos Humanos: Um ensayo de fundamentación. Barcelona: Ariel S.A.,
1989. p. 209.
16
que se afirmou foi o fato de que o liberalismo, da forma como foi exposto, não valora
moralmente expressões da subjetividade, ou seja, não há uma caracterização de uma conduta
individual por critérios de moralidade postos (certo ou errado; justo ou injusto...). Tal análise
cabe tão somente àqueles cujas decisões influenciarão seus respectivos planos de vida.
27
BERLIN, Isaiah. Quatro Ensaios sobre a Liberdade. Trad. Humberto Hudson Ferreira. Brasília: Universidade de
Brasília, 1981. p. 142
28
Idem.
17
29
Não nos adentraremos pelas especificidades de cada uma, mas apenas no seu argumento de liberdade. Cf.:
NINO. Carlos Santiago. Ética y Derechos Humanos: Um ensayo de fundamentación. Barcelona: Ariel S.A., 1989.
p. 199.
30
NINO. Carlos Santiago. op. cit. p. 205-211.
31
Idem.
32
Idem.
33
Idem.
18
Como já afirmado, Stuart Mill possui um viés utilitarista até pela sua criação
extremamente próxima a Benthan, um dos precursores desta corrente. Entretanto, não deve ser
de pronto desmerecido vez que, como salientou Gertrude Himmelfarb 35 em seu segundo
momento caracterizou-se pelo viés eminentemente democrático.
Ele não trata da liberdade do querer e sim da liberdade civil ou social, ou seja, a
natureza e os limites do poder de a sociedade, legitimamente, exerça sobre o indivíduo. Isso o
torna, indiscutivelmente, atual, pois mesmo nos dias atuais, a despeito de a grande quantidade
de produção científica nesta área, tais limites ainda não foram bem delimitados e, se assim
foram por alguns, não se levou em conta as peculiaridades intrínsecas da subjetividade capaz
de se manifestar, especialmente nos dias atuais, de inúmeras formas.
Para Mill, a luta entre Liberdade e Autoridade remonta aos tempos antigos da Grécia e
Roma, contudo, nesta fase, esse debate se travou entre os súditos, ou alguma classe deles, e o
governo. “Liberdade significava a proteção contra a tirania dos governantes 36”. O poder
destes governantes era encarado como necessário, mas altamente perigoso, uma arma que
usariam contra seus súditos não menos do que contra inimigos externos. Desta feita, a
finalidade dos patriotas consistia em pôr limites ao exercício desse poder de modo a “evitar
que os membros mais fracos da comunidade fossem pilhados por inumeráveis abutres 37”. Tal
limitação era o que entendiam por liberdade e foi tentada de duas maneiras: 1) o
34
BERLIN, Isaiah. Quatro Ensaios sobre a Liberdade. Trad. Humberto Hudson Ferreira. Brasília: Universidade de
Brasília, 1981. p. 147.
35
Vide considerações acima p. 10.
36
MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Trad. Alberto da Rocha Barros. 2° Ed. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 45
37
Idem.
19
38
MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Trad. Alberto da Rocha Barros. 2° Ed. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 47
39
MILL, John Stuart. op. cit. p. 48
40
MILL, John Stuart. op. cit. p. 48-49
20
41
MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Trad. Alberto da Rocha Barros. 2° Ed. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 51
42
É necessário que se teça a consideração de que em absoluto estamos defendendo um ou outro lado na
Guerra que vem sendo travada nos dias atuais: a chamada ‘Guerra contra o Terror’, onde, de um lado, estão
fundamentalistas religiosos e de outro, governos autoritários que desprezam a soberania de outros povos. De
ambos os lados, no nosso entendimento, o ódio étnico e/ou religioso é fundamento da opressão.
21
O objeto deste Ensaio é defender como indicado para orientar de forma absoluta
as intervenções da sociedade no individual, um princípio muito simples 43, quer
para o caso do uso da força física sob a forma de penalidades legais, quer para o
da coerção moral da opinião pública. Consiste esse princípio em que a única
finalidade justificativa da interferência dos homens, individual e coletivamente,
na liberdade de ação de outrem, é a autoproteção. O único propósito com o qual
se legitima o exercício do poder sobre algum membro de uma comunidade
civilizada contra a sua vontade é impedir dano a outrem. O próprio bem do
indivíduo, seja material seja moral, não constitui justificação suficiente. 44
43
A idéia do simples, neste contexto, pode ser remetida ao fato de que embora possuísse um viés utilitarista
como já afirmado, Mill desprezava as abstrações e complexidades dessa corrente. A utilidade para ele é
baseada nos interesses do homem como ser progressivo.
44
MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Trad. Alberto da Rocha Barros. 2° Ed. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 53
45
Por democrática queremos afirmar não a construção tradicional do termo de ser esta o ‘governo da maioria’.
Pelo contrário, usamos o termo no sentido atualmente empregado pelos existencialistas, ou seja, de que
democracia consiste, primordialmente, a proteção dos interesses das minorias.
46
Cf. MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Trad. Alberto da Rocha Barros. 2° Ed. Petrópolis: Vozes, 1991. P. 56
47
MARQUES, António (Cord.). Dictionary of Moral and Political Philosophy: Utilitarismo. Disponível em: <
http://www.ifl.pt/main/Portals/0/dic/utilitarismo.pdf>. Acesso em 07 de novembro de 2010.
22
48
Sobre uma visão crítica do Utilitarismo de Bentham, conferir TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: a construção
da identidade moderna. Trad. Adail Ubirajara Sobral e Dinah de Abreu Azevedo. 2° Edicão. São Paulo: Edições
Loyola, 2005. p. 415-454.
49
MARQUES, António (Cord.). Dictionary of Moral and Political Philosophy: Utilitarismo. Disponível em: <
http://www.ifl.pt/main/Portals/0/dic/utilitarismo.pdf>. Acesso em 07 de novembro de 2010.
23
2. Liberdade e Solidariedade
Enquanto o século XIX foi marcado pelo triunfo do individualismo, o século XX foi
marcado por um tipo de relacionamento intersubjetivo completamente novo: o solidarismo.
Solidariedade nas palavras de Pedro Buck Avelino é o “atuar humano, de origem no
sentimento de semelhança, cuja finalidade objetiva é possibilitar a vida em sociedade,
mediante respeito aos terceiros, tratando-os como se familiares o fossem; e cuja finalidade
subjetiva é se auto-realizar por meio da ajuda ao próximo 50”.
O princípio da Solidariedade, por sua vez, baseia-se, de acordo com os ensinamentos
de Maria Celina Bodin de Moraes 51, na “reviravolta da consciência coletiva” ocorrida após as
atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial e pode ser traduzido na necessidade
de uma atitude positiva por parte do governo e dos membros da sociedade de modo a
promoverem os direitos sociais e a igualdade substancial 52.
A solidariedade, assim, deriva de um critério fático: da necessidade indispensável de
coexistência entre os indivíduos já que não há como conceber, inclusive historicamente, o
homo clausus, ou seja, o ser humano isolado, solitário, como se uma ilha fosse. Além,
também pode refletir-se como um valor derivado da consciência racional de interesses em
comum entre os membros do grupo social, valor este que implica “na obrigação moral de
50
AVELINO, Pedro Buck. apud SILVA, Cleber Demetrio de Oliveira da. O Princípio da Solidariedade. Disponível
em:
<http://www.rzoconsultoria.com.br/resources/multimidia/files/1164885118_Art20_PrincipioDaSolidariedade.
pdf>. Acesso em 13 de novembro de 2011.
51
MORAES, Maria Celina Bodin de. Na Medida da Pessoa Humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2010. p. 237-238.
52
O conceito de igualdade substancial contrapõe-se ao de igualdade formal e aduz que “deve-se tratar os
iguais igualmente e os desiguais desigualmente na medida de sua desigualdade.”
24
cada membro de “não fazer aos outros o que não se deseja que lhe seja feito 53”. Neste
sentido é também uma forma de reciprocidade.
53
MORAES, Maria Celina Bodin de. Na Medida da Pessoa Humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2010. p. 240-243.
54
Partindo-se da lógica de que toda ação precisa, necessariamente, de substratos fáticos para que seja levada a
cabo, para que se cumpram os objetivos de um indivíduo é necessário que ele tenha condições fáticas, causais
de fazê-lo. Se se intenta ampliar a liberdade de tal indivíduo deve-se remover tais freios causais.
25
respeito às liberdades subjetivas assim como a não desvalorização do indivíduo por suas
escolhas morais, enxergando-se os pares como sujeitos autônomos é, inegavelmente, o
respeito à liberdade, a prima forma de se exercer o solidarismo. Desta feita, também poder-se-
ia falar na solidariedade em sentido inverso: não mais somente do indivíduo para com a
sociedade, cuja convivência é, com ela, necessária e se deve estabelecer da melhor forma
possível, mas ao revés, da sociedade para com o indivíduo. Sendo ele membro do grupo e,
portanto, importante para a consecução dos fins comuns, é valorado positivamente, enxergado
como ser humano capaz de eleger para si os próprios planos de vida segundo sua própria
concepção moral.
Segundo esta dupla leitura da solidariedade, redefine-se o conceito clássico de
liberdade negativa, como forma de não-intervenção, vinculando-se, ao exercício desta, o
dever objetivo dos sujeitos frente aos objetivos sociais. Assim, conforme José Fernando de
Castro Farias citando Duguit, “[o homem] tem o dever de desenvolver tanto quanto possível
sua individualidade física, intelectual e moral, e ninguém pode entravar esse livre
desenvolvimento. Por outro lado, a liberdade do homem não exclui o dever, porque o
indivíduo tem uma função social a cumprir 55”. O sujeito tem direito ao livre desenvolvimento
segundo suas concepções, vedada qualquer forma de intervenção por critérios morais que não
impliquem na afetação da esfera jurídica de terceiros e sua função social. Conseqüentemente,
é dever do Estado assim garantir.
Contudo, concretamente, como bem asseverou Stuart Mill, os indivíduos tendem a
punir socialmente os comportamentos desviantes, sendo tais punições baseadas em um juízo
de valor em preferências moralmente dominantes. Estas vão além daquelas implementadas
pelo Estado e, não raras vezes, se mostram mais degradantes do que as últimas. Alguns
exemplos são citados neste contexto: a segregação de religiões minoritárias como o Islamismo
no Ocidente; o preconceito contra a união homoafetiva; e o repúdio à eutanásia.
Isto pode ser atribuído ao fato que escapa à visão de, pela quebra das barreiras físicas
para o contato com diferentes culturas assim como a complexidade de fatores aos quais os
sujeitos são expostos hodiernamente durante a formação de sua subjetividade, os indivíduos
refletem-se, ao mesmo tempo, como maiorias e minorias morais, isto é, são moralmente
identificados ora – e em um determinado âmbito – com uma determinada parcela do grupo,
ora com outra. Assim, por exemplo, se se pertence à determinada religião identifica-se como
maioria, mas ao se compartilhar determinada consciência política, se é minoria. Deste modo,
55
FARIAS, José Fernando de Castro. A Origem do Direito de Solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p.
233.
26
3. O Canibal de Rothenburg
Com a construção do critério interpretativo exposto, far-se-á, segundo tal, uma análise
crítica de um caso concreto, especificamente, do caso do Canibal de Rothenburg. Entretanto, é
pertinente que primeiramente algumas breves considerações sobre a lei alemã aplicável bem
como os substratos fáticos que envolvem o tema sejam tecidas.
(1) Wer einen Menschen tötet, ohne Mörder zu sein, wird als Totschläger mit
Freiheitsstrafe nicht unter fünf Jahren bestraft.
(2) In besonders schweren Fällen ist auf lebenslange Freiheitsstrafe zu erkennen.
A pena restritiva de liberdade prevista é não inferior a cinco anos (1) e, em casos mais
graves, o autor pode ser punido com prisão perpétua (2).
Minder schwerer Fall des Totschlags, previsto no §213 do StGB, se equipararia no
homicídio doloso privilegiado. Entretanto, para o caso alemão a circunstância “impelido por
56
Para os fins do presente estudo, não adentraremos as peculiaridades de cada tipo penal do Strafgesetzbuch,
apenas faremos uma comparação com o Código Penal brasileiro para clarear o entendimento do leitor. Cf.:
MENDES, Gercélia Batista de Oliveira. A ausência de equivalentes diretos para conceitos e institutos jurídicos
alemães no Direito Brasileiro: um desafio à competência tradutória. Disponível em: <
http://www.ampamg.com/boletim/boletim4/Akten_Gercelia.htm>. Acesso em 10 de novembro de 2010.
28
motivo de relevante valor social ou moral”, não existe 57. A pena prevista para este tipo é de
um a dez anos de prisão.
O homicídio culposo no direito alemão vêm previsto no §222 do StGB sob a
denomiação, Fahrlässige Tötung e a pena prevista é de até cinco anos de prisão ou multa.
Também tal tipo não corresponde precisamente ao modelo brasileiro vez que não prevê a
modalidade do §4º do art. 121 do Código brasileiro, ou seja, do homicídio culposo com causa
de aumento.
Dentre as modalidades de homicídio do Strafgesetzbuch, tem-se, afinal, o Tötung auf
Verlangen, disposto no §216 do StGB, que poderia ser traduzido por ‘homicídio a pedido da
vítima’. Este tipo não encontra paralelo no direito brasileiro e prevê pena privativa de
liberdade sensivelmente inferior às demais modalidades dolosas: seis meses a cinco anos.
Por fim, um último tipo penal do StGB cuja análise é fundamental à compreensão do
caso concreto a ser examinado está previsto no §168, Störung der Totenruhe, podendo ser
traduzido como ‘Perturbar a Paz dos Mortos’ e equivalente, no direito pátrio, ao crime de
vilipêndio a cadáver. Sendo condenado a três anos de pena privativa de liberdade ou multa,
quem, ilegalmente, tira a custódia do corpo da pessoa falecida ou suas partes.
A infância de Armin Meiwes foi turbulenta e sôfrega. Quando com apenas seis anos,
seu pai o abandonou levando consigo seus irmãos e deixando-o com sua autoritária mãe que,
com freqüência, o maltratava publicamente.
Durante sua adolescência, Meiwes sofria humilhações na escola e, em casa, dissecava
e queimava bonecas. Eram os primeiros sinais dos desejos por carne humana associando-o ao
desejo sexual.
Mais velho, tornou-se militar enquanto a presença da mãe continuava marcante em sua
vida, acompanhando-o tanto nos desfiles das tropas como também nos seus encontros
amorosos.
Ao sair das forças armadas, Meiwes iniciou a carreira como programador e voltou a
viver com sua mãe em uma pequena cidade nos arredores de Kassel, Alemanha. Quando esta
morreu aos 77 anos, Meiwes sofreu demasiadamente, mas adquiriu liberdade para pôr em
57
MENDES, Gercélia Batista de Oliveira. A ausência de equivalentes diretos para conceitos e institutos jurídicos
alemães no Direito Brasileiro: um desafio à competência tradutória. Disponível em: <
http://www.ampamg.com/boletim/boletim4/Akten_Gercelia.htm>. Acesso em 10 de novembro de 2010.
29
prática suas fantasias sexuais. “Por volta de 1999 começou a se ocupar cada vez mais com o
tema canibalismo pela internet. Se deparou então com “instruções para estripamento” do
corpo humano [Schlachteinleitung] e montou em sua casa um “quarto de execução”
[Schalachraum]. Então passou a procurar homens para consumir 58”, publicando na internet,
com o nickname ‘Antropófago’ o seguinte: ‘homem gay procura homem forte 18-30 anos para
abater 59.
Seus requisitos eram rigorosos. Não apenas deveriam ser homens bonitos e fortes na
faixa etária indicada, como também precisavam ser interessantes, educados e, acima de tudo,
que quisessem ser comidos.
Manteve contato com mais de quatrocentos homens interessados em canibalismo, mas,
como o próprio canibal deixou claro, ou não preenchiam seus rígidos requisitos ou, como
acontecera algumas vezes, estavam interessados em uma ‘encenação’ e não propriamente no
desfecho do ato em si. Nesses casos – muitos já se encontravam no lugar onde, em tese,
seriam executados – ele liberava-os imediatamente. Tudo isso porque o ato de ingerir a carne
de uma pessoa representava, para Meiwes, a incorporação dessa pessoa, de modo que ela se
tornasse parte dele próprio, uma ligação inseparável.
Em janeiro de 2001, após dois anos sem levar a cabo seus ‘apetites’, apareceu Bernd
Jürgen Armando Brandes, berlinense de 42 anos – Meiwes tinha 40 – que respondeu à
proposta do canibal: “Espero que me ache saboroso 60”.
Bernd, engenheiro de computação, possuía a idéia de mais alto prazer sexual vinculada
à amputação e a ingestão de seu pênis por outro homem – o que não representava o real
interesse de Meiwes. A partir de então se desenvolveu uma intensa troca de emails entre
ambos.
Em nove de março de 2001, Bernd tomou o trem de Berlin para Kessel, onde Meiwes
o aguardava. Após chegarem à casa do canibal, iniciaram-se as brincadeiras sexuais, mas logo
houve desentendimentos entre eles. Para satisfazer Bernd, o canibal mordiscava o seu pênis,
58
Tradução livre da Sentença do Tribunal que apreciou o recurso da decisão de primeira instância.
BUNDESGERICHTSHOF. Urteil des 2. Strafsenats vom 22.4.2005 - 2 StR 310/04. Disponível em: <
http://juris.bundesgerichtshof.de/cgi-
bin/rechtsprechung/document.py?Gericht=bgh&Art=en&sid=0c1607e20879c6d690a67d0cbcb2b243&nr=3267
5&pos=0&anz=1>. Acesso em 10 de novembro de 2010.
59
O verbo originalmente utilizado neste contexto remete ao abate de um animal, notadamente, para consumo.
Tradução livre do texto: “gay male seeks hunks 18-30 to slaughter”. In: Guest Who’s Coming to Dinner?
Disponível em: < http://fascinatingpeople.wordpress.com/category/armin-meiwes/>. Acesso em: 10 de
novembro de 2010.
60
Armin Meiwes: O Canibal Alemão. Disponível em: <http://oserialkiller.com.br/armin-meiwes-canibal-
alemao/>. Acesso em: 10 de novembro de 2010.
30
mas o fazia de modo vacilante e inseguro – já que não era esta a sua associação com o prazer
sexual. Além, Bernd, segundo Meiwes, queria ser esquartejado rapidamente, o que também
contrariava os interesses do canibal, vez que ele queria conhecer o berlinense melhor de modo
a satisfazer seus requisitos para a ‘incorporação’. Em conseqüência disso, Bernd decidiu
voltar para sua cidade. Meiwes então o levou de volta à estação onde tomaria o trem de volta
para Berlin. Lá, no entanto, a vítima reconsiderou afirmando que ao menos a amputação do
pênis deveria ser realizada. Voltaram então à casa do canibal e dirigiram-se ao ‘quarto de
execução’.
Por volta das 18h30min do dia nove de março de 2001, Bernd disse ao canibal que
este poderia cortar-lhe o pênis, o que após duas tentativas, de fato ocorreu. Meiwes fez um
curativo na ferida de modo que a vítima não perdesse logo a consciência devido à perda de
sangue e ambos consumiram o membro amputado frito com pimenta e alho.
O êxtase sexual esperado por Bernd, contudo, não aconteceu. Não obstante, manteve
sua decisão de que este deveria ser seu ato final e que Meiwes poderia eliminá-lo em seguida
sem deixar pistas. Ele proibiu o canibal de chamar socorro médico, e nas horas seguintes
preparou-se para morrer, esclarecendo à Meiwes que ele deveria matá-lo através de golpes
realizados por instrumento pérfuro-cortante assim que estivesse irreversivelmente
inconsciente. Tal aconteceu por volta das 4h da manhã.
Meiwes colocou o corpo sobre um balcão no ‘quarto’ e instalou uma câmera para
filmar os acontecimentos seguintes. Bernd ainda estava vivo como afirmou o canibal à
câmera. Hesitou alguns momentos, mas acabou desferindo dois cortes fatais no pescoço da
vítima. Após tal fato, Meiwes dissecou o corpo segundo as instruções lidas na internet e
congelou cerca de vinte quilogramas de carne, a qual consumiu pela primeira vez em 12 de
março de 2001.
No período subseqüente, o canibal voltou a procurar por vítimas em potencial,
enviando para uma delas fotos conseguidas a partir das filmagens feitas. Entretanto, uma
dessas pessoas, um estudante que havia respondido ao anúncio, alertou a polícia, o que
culminou no início das investigações.
Tanto a promotoria quanto a defesa apelaram para a Suprema Corte Federal (de
Justiça) 63 alegando suas teses de primeiro grau 64. E, novamente, de acordo com a Folha
Online:
61
Tradução livre da Sentença do Tribunal que apreciou o recurso da decisão de primeira instância.
BUNDESGERICHTSHOF. Urteil des 2. Strafsenats vom 22.4.2005 - 2 StR 310/04. Disponível em: <
http://juris.bundesgerichtshof.de/cgi-
bin/rechtsprechung/document.py?Gericht=bgh&Art=en&sid=0c1607e20879c6d690a67d0cbcb2b243&nr=3267
5&pos=0&anz=1>. Acesso em 10 de novembro de 2010.
62
ONLINE, Folha. Promotoria apela da sentença contra o Canibal alemão. Disponível em: <
http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u68723.shtml>. Acesso em: 10 de novembro de 2010.
63
Na Alemanha a Suprema Corte Constitucional não julga, a priori, tais casos, tal como o modelo brasileiro.
64
Ver considerações supra.
65
ONLINE, Folha. Promotoria apela da sentença contra o Canibal alemão. Disponível em: <
http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u68723.shtml>. Acesso em: 10 de novembro de 2010.
66
Tradução livre da Sentença do Tribunal que apreciou o recurso da decisão de primeira instância.
BUNDESGERICHTSHOF. Urteil des 2. Strafsenats vom 22.4.2005 - 2 StR 310/04. Disponível em: <
http://juris.bundesgerichtshof.de/cgi-
bin/rechtsprechung/document.py?Gericht=bgh&Art=en&sid=0c1607e20879c6d690a67d0cbcb2b243&nr=3267
5&pos=0&anz=1>. Acesso em 10 de novembro de 2010.
32
[§211 do StGB, Mort]; e remeteu o processo para o Tribunal Regional de Frankfurt am Main
[instância inferior] para novo julgamento 67.
Em janeiro de 2006, Armin Meiwes foi novamente julgado e condenado. Desta vez a
prisão perpétua sendo reconhecido que matou para satisfazer desejos sexuais 68.
Harald Ermel, advogado de Meiwes, recorreu novamente da decisão desta vez ao
Tribunal Constitucional Alemão alegando que seu cliente não poderia ter sido condenado com
base no §211 do StGB, pois existia o consentimento da vítima, configurando outro tipo penal,
a saber, o §216 do StGB. Porém, em outubro de 2008 o Tribunal Constitucional confirmou a
decisão de condenação entendendo que Meiwes efetivamente matou por motivos sexuais 69.
O Canibal de Rothenburg, em suma, foi condenado à prisão perpétua com
possibilidade de livramento condicional após quinze anos de cumprimento da pena.
3.4. Os fundamentos da decisão da Suprema Corte Federal, uma visão crítica segundo a
hermenêutica de adequação principiológica
67
Idem.
68
ONLINE, Folha. Canibal de Rotenburgo será novamente julgado nesta quinta feira. Disponível em: <
http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u91400.shtml>. Acesso em: 10 de novembro de 2010.
69
ONLINE, Folha. Canibal recorrerá da sentença de prisão perpétua na Alemanha. Disponível em: <
http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u96077.shtml>. Acesso em: 10 de novembro de 2010.
ONLINE, Folha. Tribunal Alemão confirma condenação de Canibal à prisão perpétua. Disponível em: <
http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u459853.shtml>. Acesso em: 10 de novembro de 2010.
70
Tradução livre da Sentença do Tribunal que apreciou o recurso da decisão de primeira instância.
BUNDESGERICHTSHOF. Urteil des 2. Strafsenats vom 22.4.2005 - 2 StR 310/04. Disponível em: <
http://juris.bundesgerichtshof.de/cgi-
bin/rechtsprechung/document.py?Gericht=bgh&Art=en&sid=0c1607e20879c6d690a67d0cbcb2b243&nr=3267
5&pos=0&anz=1>. Acesso em 10 de novembro de 2010.
33
aceita como forma de se dispor do corpo sem vida. Não há fundamento em se falar do
sentimento de piedade baseado em uma moral posta, pois, como já dito, o sentimento de
moralidade de uma maioria não pode sobrepujar as concepções individuais. Em especial
porque, se tal sentimento de piedade está diretamente relacionado com concepções religiosas
particulares como bem salientou Stuart Mill, a liberdade religiosa foi uma das primeiras
formas de liberdade reconhecidas e é pedra fundamental de uma sociedade democrática até os
dias atuais.
O consentimento da vítima em ser esquartejada e ingerida pelo acusado, segundo a
Corte, se fosse válido, só teria o condão de afastar a punibilidade pelo tipo de ‘perturbação da
paz dos mortos’ se o bem jurídico tutelado fosse somente o direito ao respeito póstumo.
Contudo, como também haveria o bem ‘sentimento geral de piedade’ não se afastaria o tipo
penal.
Ademais, o Tribunal negou de plano a tese da defesa de homicídio a pedido da vítima
[§216 do StGB] por, além de afirmar que o réu sofria de uma forma avançada de masoquismo
e que, portanto, seu consentimento não seria válido dada a sua incapacidade de entender o
resultado morte como conseqüência de suas atitudes, também tal consentimento não foi a
única vontade determinante para o cometimento do homicídio. O consentimento da vítima
haveria concorrido com o interesse do réu e, “o desejo de B.[Bernd], após o início dos
acontecimentos, de que nenhum médico socorrista devesse ser chamado e de que o réu
devesse golpeá-lo com instrumento pérfuro-cortante assim que ele tivesse perdido a
consciência, só pode ser entendido como a realização do acordo acertado reciprocamente
entre autor e vítima, acordo esse que deveria servir única e exclusivamente para a realização
de seus próprios interesses 71”. (grifou-se)
Esta postura da Corte perante o tipo do §216 do StGB foi dispare da adotada no
primeiro argumento, qual seja: da que reconheceu a “satisfação de instinto sexual”. No
primeiro caso, a casa julgadora interpretou ampliativamente o conceito “satisfação de instinto
sexual” presente no tipo penal de modo a enquadrar nela a conduta do ofensor. Por outro lado,
no que diz respeito ao tipo mais benéfico ao réu, interpretou-o de forma restritiva, não
considerando o consentimento como válido e sequer determinante, também de forma
prejudicial ao acusado.
71
Tradução livre da Sentença do Tribunal que apreciou o recurso da decisão de primeira instância.
BUNDESGERICHTSHOF. Urteil des 2. Strafsenats vom 22.4.2005 - 2 StR 310/04. Disponível em: <
http://juris.bundesgerichtshof.de/cgi-
bin/rechtsprechung/document.py?Gericht=bgh&Art=en&sid=0c1607e20879c6d690a67d0cbcb2b243&nr=3267
5&pos=0&anz=1>. Acesso em 10 de novembro de 2010.
35
Pode-se inferir, pelo aduzido, que a previsão dos ‘especialistas 72’ estava correta. A
pena leve dada em primeiro grau, pela reprovabilidade moral da conduta, que chocou juristas
e políticos alemães, precisava ser revertida pelo Tribunal Superior de modo propagar
socialmente a intolerância a tais formas de manifestação da subjetividade. Neste sentido,
afirma-se que a decisão possuiu um caráter mais político do que propriamente jurídico e
comparável, inclusive, pelos pressupostos, à ‘Caça as Bruxas’ na Idade Média: uma forma de
recado à sociedade de que comportamentos desviantes não serão tolerados.
Por outro lado, se se pauta exclusivamente pela interpretação supra definida da
liberdade, consonante com o valor principiológico solidário, como expressão da dignidade, a
atitude de Armin Meiwes não se mostra atentatória aos limites impostos ao exercício da
autonomia. Não houve interferência, nem a imposição de ônus materiais, à terceiros ou à
coletividade, senão à vítima, cujo interesse se identificou com o do canibal.
Como já aduzido, os fundamentos de um Estado intervir na eleição ou realização de
determinado plano de vida individual, dependem da interferência de tais planos na esfera de
outrem ou da sociedade como um todo. A interferência Estatal fora desses padrões remetem a
uma forma de totalitarismo, a um argumento perfeccionista de que as atitudes desviantes dos
padrões morais seriam formas de irracionalidade, insanidade, pois tais padrões foram criados
por seres super racionais, cujo entendimento vai além da compreensão de seres humanos
normais e que, por isso, são melhores.
Dessa forma, o exercício da autonomia por Bernd Jürgen Armando Brandes também é
válido, segundo a hermenêutica de adequação, vez que nenhum outro indivíduo
especificamente foi prejudicado pela sua atitude de eleger para si a vontade de ter seu pênis
amputado e, após, de ser ingerido. A vítima do canibal simplesmente decidiu que a busca de
seu prazer sexual máximo era um plano de vida que merecia sua atenção e a morte, como
conseqüência desta busca, era aceitável, assim como também o era o fato de ter seu corpo
ingerido por outro ser humano. Bernd tinha ciência das conseqüências de seus atos e as
assumiu racionalmente. Questionar sua capacidade após sua morte, como fez a Suprema Corte
Alemã, afirmando que sofria de uma doença psíquica grave, a saber, uma forma avançada de
masoquismo sexual, é, indubitavelmente, uma forma de perfeccionismo: o comportamento tão
absurdamente desviante só pode caracterizar-se como doença, em especial porque sua
capacidade de discernimento, até então, jamais havia sido questionada.
72
Conferir supra p. 31.
36
Foi tal sentimento que tiveram os cristãos ao perseguirem os pagãos na Idade Média; o
mesmo sentimento presente quando questionou-se a autoridade concedida por Deus aos
déspotas; e, em termos mais ‘contemporâneos’, os mesmos sentimentos em relação ao
divórcio e ao homossexualismo.
Indiscutivelmente os planos da vida eleitos pelos sujeitos em pauta são imorais, no
sentido de contrários à moral posta. Contudo, por ser esta variável segundo um critério loco-
temporal, ou seja, a moral de um determinado grupo social não é a mesma de outro nem a
mesma desta mesma sociedade decorrido um lapso de tempo, não pode servir de fundamento
à idéia de Justiça.
O único modo pelo qual se pode aferir tal idéia, após inúmeras experiências históricas,
em um Estado Democrático plural, é através do princípio da dignidade da pessoa e,
especificamente, para o presente caso, através de uma hermenêutica liberal-solidarista.
Falou-se em Solidariedade em sentido inverso, isto é, não apenas do indivíduo para
com o grupo, mas deste para com aquele. Sendo o indivíduo socialmente importante para a
consecução dos fins comuns e sua valoração positiva necessária como capaz de determinar os
seus próprios planos da vida, o Estado deve não somente abster-se de qualquer intervenção
autoritária na esfera individual como também tem o dever de resguardar a manifestação dessa
subjetividade contra a punição social das condutas moralmente desviantes. Punição esta que,
como já dito, pode se mostrar mais gravosa do que as formas de coerção legítimas por parte
do Estado.
A pluralidade é o que marca a contemporaneidade e muitos esforços têm sido feitos
em direção ao reconhecimento do ser humano como digno pelo seu substrato ontológico,
como centro de direitos autônomos, como fundamento e fim últimos do Estado. Portanto,
conseqüência lógica é o reconhecimento do indivíduo como passível de eleger e perseguir por
si só, segundo seus valores e concepções morais, os seus planos da vida.
37
Conclusão
Liberdade é um sentimento que une povos distintos, com bases morais e religiosas
distintas, especialmente por ter sido vinculada, a partir dos contratualistas, à idéia de justiça.
Ela insere-se profundamente cada indivíduo de modo que a sua perda, ou mesmo a ameaça, é
dolorosamente sentida.
Sendo normalmente vinculada à idéia de justiça, foi conceituada de inúmeras formas e,
para o presente estudo, de duas formas distintas: a liberdade em sentido ‘positivo’ e em
sentido ‘negativo’.
A despeito de todo o esforço teórico em se justificar a idéia de liberdade em sentido
‘positivo’ como apta a integrar um sistema liberal democrático, esta concepção, que sempre
esteve vinculada a modelos estatais totalitários como o nazismo e o fascismo, falhou em
convencer de sua aplicabilidade nos dias atuais a um Estado Democrático cujas bases se
fundam na dignidade da pessoa humana e na pluralidade. Deste modo, o conceito de liberdade
em sentido negativo mostrou-se preferível, em especial, a idéia de liberdade conforme John
Stuart Mill dado o fato de não trabalhar apenas com a idéia de liberdade individual, mas da
liberdade social, isto é, os limites da interferência da sociedade na esfera privada
Através de uma adequação dos axiomas comportados nos princípios da liberdade e
solidariedade, não há que se falar em contraposição entre eles, ao revés, em uma necessária
correlação já que exponenciam-se mutuamente, isto é, a hermenêutica dialógica os amplia.
Assim infere-se que um indivíduo x, plenamente capaz, deseja conscientemente abdicar de
sua vida, ou de um membro, por motivos egoístas ou altruístas, sem interferir, com sua
atitude, na esfera de terceiros, ele poderá assim proceder. Da mesma maneira, se um indivíduo
x deseja amputar membros saudáveis do seu corpo, seja porque possui problemas de
identificação psicológica com ela ou porque simplesmente assim o quer, poderia fazê-lo desde
que não impusesse os ônus da manifestação de sua liberdade à sociedade, por exemplo, não
poderia requerer benefícios governamentais, como pensão por invalidez da Previdência
Social 73.
De outro modo, interpretá-los autonomamente importa não só na não-maximização do
princípio da dignidade humana como também pode conduzir a argumentos antidemocráticos,
como ensina a História.
73
Já existem formas de amputações voluntárias não reprovadas pelo Poder Público que estão se tornando a
cada dia mais comum. A Nulificação, uma forma de BodyModification (modificação do corpo) é um exemplo.
38
Analisando o caso do Canibal Alemão, indaga-se: “será que uma “maioria moral”
pode limitar a liberdade de cidadãos individuais sem uma justificativa melhor do que a de
desaprovar suas escolhas pessoais 74? Não o sendo, o critério de justiça se dá não pela moral
social, mas pelo princípio da dignidade da pessoa humana.
Desta forma, tanto a condenação à prisão perpétua de Armin Meiwes, o canibal, como
a caracterização do consentimento de Bernd em ser morto e devorado como uma forma de
doença psíquica é um abuso à individualidade que deve ser preservada em um estado plural,
cujas barreiras culturais foram quebradas transcendendo-se as fronteiras geográficas.
É injusto o Estado que discrimina manifestações de individualidade com base em
concepções mutáveis de moralidade, como também o é aquele que não protege o indivíduo
contra represálias sociais por suas escolhas moralmente díspares. A liberdade como dignidade
é o fundamento de uma democracia plural e deve ser de todo modo preservada contra o
totalitarismo e também contra a despreocupação estatal.
74
DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: A teoria e a prática da igualdade. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes.
2005. p. 643.
39
Referências Bibliográficas
BERLIN, Isaiah. Quatro Ensaios sobre a Liberdade. Trad. Humberto Hudson Ferreira.
Brasília: Universidade de Brasília, 1981.
DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: A teoria e a prática da igualdade. 1. ed. São Paulo:
Martins Fontes. 2005.
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HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm e Valerio Rohden. 1° Edição.
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MORAES, Maria Celina Bodin de. Na Medida da Pessoa Humana: estudos de direito civil-
constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.
MORAES, Maria Celina Bodin de. (Org.) Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de
Janeiro: Renovar, 2006.
ONLINE, Folha. Canibal de Rotenburgo será novamente julgado nesta quinta feira.
Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u91400.shtml>. Acesso
em: 10 de novembro de 2010.
ONLINE, Folha. Promotoria apela da sentença contra o Canibal alemão. Disponível em: <
http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u68723.shtml>. Acesso em: 10 de novembro
de 2010.
41