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Editora Chefe
Patrícia Gonçalves de Freitas
Editor
Roger Goulart Mello
2021 by Editora e-Publicar Diagramação
Copyright © Editora e-Publicar Roger Goulart Mello
Copyright do Texto © 2021 Os autores Projeto Gráfico e Edição de Arte
Copyright da Edição © 2021 Editora e-Publicar Patrícia Gonçalves de Freitas
Direitos para esta edição cedidos à Revisão
Editora e-Publicar pelos autores Os Autores
Conselho Editorial
Alessandra Dale Giacomin Terra – Universidade Federal Fluminense
Andréa Cristina Marques de Araújo – Universidade Fernando Pessoa
Andrelize Schabo Ferreira de Assis – Universidade Federal de Rondônia
Bianca Gabriely Ferreira Silva – Universidade Federal de Pernambuco
Cristiana Barcelos da Silva – Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
Cristiane Elisa Ribas Batista – Universidade Federal de Santa Catarina
Daniel Ordane da Costa Vale – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Danyelle Andrade Mota – Universidade Tiradentes
Dayanne Tomaz Casimiro da Silva - Universidade Federal de Pernambuco
Diogo Luiz Lima Augusto – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Elis Regina Barbosa Angelo – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Ernane Rosa Martins - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás
Ezequiel Martins Ferreira – Universidade Federal de Goiás
Fábio Pereira Cerdera – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Francisco Oricelio da Silva Brindeiro – Universidade Estadual do Ceará
Glaucio Martins da Silva Bandeira – Universidade Federal Fluminense
Helio Fernando Lobo Nogueira da Gama - Universidade Estadual De Santa Cruz
Inaldo Kley do Nascimento Moraes – Universidade CEUMA
João Paulo Hergesel - Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Jose Henrique de Lacerda Furtado – Instituto Federal do Rio de Janeiro
Jordany Gomes da Silva – Universidade Federal de Pernambuco
Jucilene Oliveira de Sousa – Universidade Estadual de Campinas
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Luana Lima Guimarães – Universidade Fede ral do Ceará
Luma Mirely de Souza Brandão – Universidade Tiradentes
Mateus Dias Antunes – Universidade de São Paulo
Milson dos Santos Barbosa – Universidade Tiradentes
Naiola Paiva de Miranda - Universidade Federal do Ceará
Rafael Leal da Silva – Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Rita Rodrigues de Souza - Universidade Estadual Paulista
Willian Douglas Guilherme - Universidade Federal do Tocantins
Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-89340-93-5
Editora e-Publicar
Rio de Janeiro – RJ – Brasil
[email protected]
www.editorapublicar.com.br
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Apresentação
É com grande satisfação que a Editora e-Publicar vem apresentar a obra intitulada
“Estudos e pesquisas sobre a Literatura Brasileira, volume 1”. Neste livro, engajados
pesquisadores das áreas de literatura contribuíram com suas pesquisas. A obra é composta por
16 capítulos que abordam múltiplos temas.
Editora e-Publicar
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Sumário
CAPÍTULO 1 ........................................................................................................................... 11
REPRESENTAÇÃO DA LITERATURA INFANTIL NO DISCURSO DO PROGRAMA
“CONTA PRA MIM” ............................................................................................................ 11
DOI: 10.47402/ed.ep.c20216331935
Aldenora Resende dos Santos Neta
CAPÍTULO 2 ........................................................................................................................... 22
ROMANCE E TRAGÉDIA NA “PAIXÃO DE AJURICABA” ......................................... 22
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CAPÍTULO 5 ........................................................................................................................... 62
LITERATURA E ORALIDADE: UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA SOBRE O QUE É
PRIVILEGIADO NA ESCOLA (2010-2020) ...................................................................... 62
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CAPÍTULO 10 ....................................................................................................................... 120
REGIONALISMO E RELIGIOSIDADE COMO MARCAS DA TRADIÇÃO ORAL NO
CONTO “A MENINA DE LÁ” DE GUIMARÃES ROSA............................................... 120
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CAPÍTULO 16 ....................................................................................................................... 190
CAIO FERNANDO ABREU E A BRASILIENSE: RELAÇÃO AUTOR-EDITORA
DURANTE O PERÍODO PÓS-DITATORIAL ................................................................. 190
DOI: 10.47402/ed.ep.c202148216935
João Paulo Massotti
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CAPÍTULO 1
REPRESENTAÇÃO DA LITERATURA INFANTIL NO DISCURSO DO
PROGRAMA “CONTA PRA MIM”
DOI: 10.47402/ed.ep.c20216331935
Aldenora Resende dos Santos Neta, Mestra em Educação, UFMA e Professora Substituta do
curso de Pedagogia, do Departamento de Educação I, da Universidade Federal do maranhão
RESUMO
O presente artigo busca analisar as representações da literatura infantil contidas no discurso do
Programa Conta pra Mim. O Programa foi lançado em dezembro de 2019, constituído como
uma Política Nacional de Alfabetização (PNA), tendo como público-alvo todas as famílias,
prioritariamente, aquelas em condições de vulnerabilidade socioeconômica. O Programa
apresenta como principal objetivo a ampla promoção da Literacia Familiar. Por isso, esse
trabalho de pesquisa tomou como foco de investigação o Guia de Literacia Familiar, vídeos de
orientações, além da leitura e análise da Portaria nº 421, de 23 de Abril de 2020, que instituiu o
Programa Conta pra Mim. Utilizou-se como metodologia da pesquisa a análise do discurso
(AD) da vertente francesa, que oferece instrumentos teóricos e metodológicos que permitem
identificar as condições históricas e ideológicas implícitas nos detalhes do discurso. Neste
sentido, foi possível identificar elementos na natureza do texto/discurso, os quais permitem
refletir sobre o conteúdo e as funções persuasivas da retórica. Os resultados da pesquisa indicam
que a representação da literatura infantil no discurso do Programa distancia-se da concepção da
literatura como arte e da formação estética e do letramento literário. O discurso do Programa
Conta pra Mim apresenta uma visão da literatura como instrumento pragmático, utilitarista,
tendo a finalidade de ensinar a ler, com fins extremamente moralistas, além de
responsabilização das famílias pela alfabetização das crianças.
PALAVRAS-CHAVE: Representação Social. Literatura Infantil. Literacia família.
Letramento literário.
INTRODUÇÃO
Em dezembro de 2019, foi lançado o Programa Conta Pra Mim, do Governo Federal,
que integra a Política Nacional de Alfabetização (PNA), tendo como público-alvo todas as
famílias, com prioridade para aquelas em condições de vulnerabilidade socioeconômica. O
principal objetivo é a ampla promoção da “Literacia Familiar”, em que, segundo o site do
Ministério de Educação (MEC), as famílias são orientadas a “interagir, conversar e ler em voz
alta com seus filhos”.
Dessa forma, o Programa defende que a família utilizará os materiais compostos por 01
Guia de Literacia familiar, 40 vídeos de orientações e a coleção com 40 livros produzidos para
ler online, imprimir ou colorir, sendo 25 livros de ficção, 6 de poesias, 3 somente de imagens,
3 para bebês e 3 informativos, a fim de “estimular a desenvolver, por meio de estratégias
simples e divertidas, quatro habilidades: ouvir, falar, ler e escrever!”.
Contudo, podemos nos questionar: como as famílias irão desenvolver essas estratégias
de leitura com os/as filhos/as, considerando que a realidade brasileira tem 88% da população
com algum nível de analfabetismo funcional (VALENTE, 2020)? A coleção do Programa
Conta pra Mim pode ser considerada literatura? Qual é visão de literatura infantil representada
no Programa?
A análise tem o propósito de refletir sobre a linguagem para além do texto, trazendo, a
partir da situação histórico-social-ideológica do discurso, as ideias, pensamentos e visões de
1
Assim, compreende-se na mesma perspectiva do senso comum que uma criança que gosta de livros de histórias
ou de poesia, geralmente, escreve melhor e dispõe de um repertório mais amplo de informações. Mas, advoga-se
que esse não é o principal sentido que a literatura cumpre junto a seu leitor (CADEMARTORI, 2010).
Essas perspectivas têm orientado projetos, programas e ações de fomento à leitura nas
instituições escolares e na sociedade. Realidade percebida na sinalização de políticas públicas,
documentos e orientações, no que se refere ao investimento, nesse campo, junto às instituições
de ensino: Parâmetros de Qualidade para a Educação Infantil; Referencial Curricular da
Educação Infantil (RCNEI); Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (DCNEI);
Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Dessa maneira, o incentivo à leitura e à formação
de leitores, em todas as etapas da educação, tem sido amplamente discutido, em diferentes
espaços formativos. Contudo, mesmo considerando alguns avanços, ainda se percebe alguns
equívocos na circulação, função, imagem da literatura infantil na sociedade.
2
Antonio Candido (2011) concebe a literatura como direito de todos e um bem incompressível, ou seja,
indispensável ao ser humano.
(...) os analistas de discurso veem todo o discurso como prática social. A linguagem,
então, não é vista como mero epifenômeno, mas como uma prática em si mesma. As
pessoas empregam um discurso para fazer coisas (...) realçar isto é sublinhar o fato
que o discurso não ocorre em um vácuo social. (GILL, 2014, p. 248)
Por isso, selecionou-se alguns Enunciados (E) e imagens contidos no texto do Programa
Conta pra Mim, a fim de fazer uma análise interpretativa do discurso sobre a representação da
literatura, dessa forma, analisando o dito e não dito no teor do discurso.
Graça Paulino (2010) compreende por letramento literário e defende o valor estético da
literatura, de seu poder formador e de seu conteúdo filosófico afirmando que:
Dessa forma, pelo conteúdo do Programa, a leitura está a serviço de uma alfabetização
baseada na decodificação, destituída de sentidos, como já foi mencionado. Nesta imagem
abaixo, retirada dos vídeos de orientações do Programa Conta pra Mim, percebe-se que a leitura
e uso da “literatura” estão a serviço de uma alfabetização baseada apenas na decodificação.
Podemos inferir que na concepção do Programa, para ser alfabetizado, basta justar
letras, sílabas, palavras. A Literatura é vista de forma pragmática, utilitarista e didatizante.
Marisa Lajolo escreveu, na década de 80, o artigo “O texto não é pretexto”, no qual crítica as
práticas de leitura literária maçantes e distantes das práticas sociais. Diferentes pesquisadores
produziram um intenso movimento para tratar a leitura atrelada aos seus usos sociais, sem
pretextos pedagógicos que esvaziassem a linguagem estética e as especificidades do texto.
Orlandi (2001) desenvolve uma reflexão crítica sobre a leitura, discutindo a polissemia
da noção de leitura. Vejamos alguns sentidos possíveis que a autora nos apresenta:
Antonio Candido (2004) defende que a literatura tem a função formadora, a qual não
deve ser confundida com a função pedagógica ou moralizante, porque a literatura, a arte das
palavras, não é inofensiva. Ao transfigurar o real, ela acena tanto para o bem como para o mal.
Outro ponto curioso na análise do Programa Conta Pra Mim é que o mascote da coleção
é um ursinho, denominado de Tito, um animal que não é encontrado na fauna brasileira, mas
que faz parte dos filmes e desenhos estadunidense. Observamos que a escolha pela imagem do
mascote representa simbolicamente o colonialismo e a visão servil de ter os Estados Unidos
como principal referência em suas políticas, nos aspectos ideológicos e culturais.
O Programa Conta Pra Mim tem sido alvo de diversas críticas3 devido às
representações, sentidos, concepções ideológicas e culturais contidas na visão de literatura
infantil, que inclusive já estavam ultrapassadas. Assim, como já mencionado, a representação
da literatura no Programa é de cunho utilitarista, com a finalidade de ensinar a ler, destituído
de sentido estético, com fins extremamente moralistas, além de responsabilização das famílias
pela alfabetização das crianças, numa tentativa de superdimensionar o papel das famílias,
secundarizando o papel da escola e perdendo de vista que se trata de instituições
complementares, com funções e atribuições diferenciadas dentro de um processo educativo.
Considerações finais
3
Para mais informações sobre essas críticas, indica-se os seguintes os artigos: “Conta outra”, do jornalista Rubens
Valente (2020); “Não conta pra mim”, da escritora e pesquisadora Marina Colasanti; “O que há por trás da onda
de cancelamento dos contos de fadas”, da jornalista Heloisa Noronha, entre outros.
AZEVEDO, Ricardo. Como o ar não tem cor, se o céu é azul? Vestígios dos Contos
Populares na Literatura Infantil. 1997. Dissertação (Mestrado) - Universidade de São Paulo.
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas. São Paulo, 1997.
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura in Vários Escritos. 4. ed., reorganizada pelo autor.
Duas Cidades. São Paulo/Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004.
CARVALHO, Ana C; BAROUKH, J.A. Ler antes de saber ler: oito mitos escolares sobre
leitura literária. São Paulo: Panda books, 2018.
COLASANTI, Marina. O que você entende por qualidade em literatura infantil e juvenil? In:
O que é qualidade em literatura infantil e juvenil? Com a palavra o escritor. Ieda de
Oliveira (Org.) São Paulo: DCL, 2005.
_________. Não conta pra mim. Revista Emília. Disponível em: <
https://revistaemilia.com.br/nao-conta-pra-mim/.
CORSINO, P. Infância e literatura: entre conceitos, palavras e imagens. In: SILVA, M.C., and
BERTOLETTI, E.N.M., orgs. Literatura, leitura e educação (online). Rio de Janeiro:
EDUERJ, 2017, pp. 207-230. Pesquisa em educação/ Práticas de leitura e escrita series. ISBN
978-85-7511-497-1. Disponível em: http://books.scielo.org/id/5gg44/epub/silva-
9788575114971.epub. Acesso em: 05 fev. 2020.
COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.
GILL, Rosalind. Análise de Discurso. In: BAUER, Martin, W.,GASKELL,G. (Orgs); Pesquisa
qualitativa com texto, imagem e som. Tradução de Pedrinho A. Guarechi. 12 ed. Petrópolis:
Vozes, 2014.
PAULINO, Graça. Funções e disfunções do livro para crianças. In: Das leituras ao
Letramento Literário. Belo Horizonte: Fae/UFMG, 2010. p.107.
VALENTE, Rubens. Conta outra. Revista Quatro cinco um, São Paulo, ano 4, n.38, p. 12 e
13, out. 2020.
RESUMO
A Paixão de Ajuricaba é uma peça teatral de grande sucesso, da década de 1970, e uma obra
literária cuja segunda edição foi lançada em 2005, escrita pelo dramaturgo manauara Márcio
Souza. A obra/peça retrata os conflitos históricos entre portugueses e indígenas, com destaque
para a luta e resistência da tribo dos Manau e o seu chefe Ajuricaba, no território do vale do Rio
Negro na Amazônia. Ajuricaba liderou uma confederação de povos do Rio Negro resistindo,
por oito anos, contra a ameaça de ocupação colonizadora portuguesa, sendo derrotado em 1728,
quando Ajuricaba é preso. Em meio ao conflito com os portugueses, temos o romance entre
Ajuricaba e Inhambu. Mas Inhambu é a princesa dos Xirianá, filha de Poararé, chefe rival dos
Manau. Ao mesmo tempo em que Ajuricaba luta contra a ofensiva portuguesa, precisará lutar
pelo seu amor com Inhambu. O enredo da obra pode ser entendido, então, a partir destes dois
eventos principais: o conflito entre indígenas e colonizadores e o romance conflituoso entre
Ajuricaba e sua amada Inhambu. O destino, no entanto, reserva um final trágico para ambos.
Preso, Ajuricaba é enviado para Belém, mas o guerreiro indígena não chegará ao seu destino
final, já que Ajuricaba se lança nas águas do Rio Negro após um embate no barco que o
conduzia a Belém e sua amada, Inhambu, é assassinada pelo comandante português em uma
tentativa de salvar sua própria honra.
Palavras-chave: Literatura Indígena, Tragédia, Resistência, Luta.
INTRODUÇÃO
A peça teatral foi lançada no ano de 1974, com grande sucesso e repercussão local e
nacional. Já a obra literária teve sua segunda edição lançada em 2005. O espetáculo dramático
trata de lutas, amor e resistência. É uma releitura da vida do indígena Ajuricaba que,
segundo documentos constantes nos livros História da Amazônia, de Márcio Souza
(2009), e A Presença Indígena na Formação do Brasil, de Nádia Farage (2006), viveu
e lutou pelos povos nativos do rio Negro, na região Norte do Brasil, no período de
1722 e 1728 (FERNANDES, 2016, p. 18).
O cronista Mauricio de Heriarte (apud Souza, 2005, p. 25) escreveu em 1665 que aquela
região do Rio Negro era
Habitada por inumeráveis pagãos. Eles possuem um chefe (...), que chamam de rei,
(...) e ele dirige várias tribos subjugadas ao seu domínio e é por elas obedecido com
grande respeito. (...) As aldeias e gentes desse rio são grandes e suas casas circulares
e fortificadas por cercas. Se esse território for colonizado pelos portugueses, nós
poderemos fazer dali um império e poderemos dominar todo o Amazonas.
No ano de 1974, surge em Manaus um grande sucesso, uma peça teatral que entraria
para a história da literatura Amazonense e que levaria o grupo de teatro TESC (Teatro
Experimental do SESC) a um verdadeiro sucesso de público e bilheteria esgotada: A Paixão de
Ajuricaba de Márcio Souza 4. “Márcio Souza, em conjunto com os integrantes do Tesc, escreve
um conjunto de textos dramáticos que revisa criticamente a história social e política da
Amazônia, desde o período colonial até a sua contemporaneidade” (LIMA; LUNA, 2010, p.
180). Mas foi A Paixão de Ajuricaba, a primeira peça que Márcio Souza escreveu para o Tesc,
que deu notoriedade ao mesmo, com “grande receptividade e repercussão por onde passou,
desde a primeira encenação em 1974 até sua última temporada em janeiro de 2012, no teatrinho
4
O Grupo de Teatro Experimental do SESC – TESC foi fundado em 1968 e em 1972 Márcio Souza passou a atuar
como autor e diretor. O grupo “investigava acontecimentos históricos e sociais da Amazônia, e tais informações
serviam de subsídios para os textos das suas produções. Os trabalhos eram divididos entre os membros do grupo
após a decisão do tema a ser desenvolvido. Em seguida alguns componentes do grupo realizavam o levantamento
de dados, ficando a cargo de Márcio Souza a produção do texto/roteiro da peça” (COSTA, 2012a, p. 29).
O Tesc era um movimento cultural com expressão política discutindo de modo crítico a
problemática política e social na Amazônia, seguindo uma tendência presente em outras regiões
brasileiras, conforme afirmam Lima e Luna (2010, p. 180):
Em pleno regime da ditadura militar, o TESC foi “um dos primeiros grupos de teatro de
Manaus a apresentar, como proposta principal, a encenação de peças teatrais cuja temática
trouxesse fatos e acontecimentos da formação histórica, cultural e política da região amazônica”
(FERNANDES, 2016, p. 47). Sendo a luta política e de resistência uma marca da criação do
teatro, cuja memória dos povos indígenas, relegada ao abandono, corria o risco de ser
exterminada pela ação exploratória colonialista, refletindo criticamente sobre o processo
hitórico-social da região amazônica e resgatando sua História. No momento em que
como uma tragédia moderna, na qual transgride a ideia da utilização de falas do teatro
tradicional, adicionando em sua composição descrições cenográficas que também
dialogam com o leitor. Além disso, o sentimento de luta na peça é muito presente; a
luta entre a civilidade versus a barbárie, a qual estaria mais apta ao poder e ao que se
é possível fazer para adquirir tal domínio.
Para além da tragédia, a obra de Márcio Souza pode ser vista também como uma obra
de denúncia, uma obra descolonizadora, de resgate da memória dos povos indígenas, a partir
de um reencontro com o passado, propondo ao leitor/espectador um redescobrimento dos fatos
“a partir do olhar dos indígenas, os quais sofreram com o processo de colonização”
(FERNANDES, 2016, p. 18).
A Paixão de Ajuricaba descreve hábitos, crenças e a vida indígena amazônica. Vida que
é afetada com a chegada do colonizador branco “que mata indiscriminadamente para impor e
demarcar território” (FERNANDES, 2016, p. 26-27).
É aqui que entra a figura de Ajuricaba, que representa o herói amazonense, que lutou
pela liberdade de seu povo e da sua amada até o fim de seus dias e entrou para a história fazendo
o gesto que lhe concedeu a imortalidade dentro da literatura amazonense. Quando em um ato
de puro amor pela sua raça e dominado pelo desejo de justiça, se joga nas águas escuras do rio
Amazonas e seu corpo jamais é encontrado. Ajuricaba, rei da tribo dos Manau, o maior tuxaua
daquela região. “Ajuricaba aparece nesse contexto histórico como um legítimo representante
de liberdade e resistência, que preferia seguir a cultura e a tradição de seu povo, não
concordando com as imposições e os valores dos colonizadores” (FERNANDES, 2016, p. 68).
No entre texto, há o genocídio dos índios, no qual os portugueses invadem a tribo dos
Xirianá e querem invadir também as do Manau, porém a tribo Manau tem à frente
Ajuricaba que recorre até os últimos recursos para não deixar que isso aconteça e ao
mesmo tempo paga caro pelo preço de sua afronta (SILVA, 2019, p. 143).
O encontro entre o indígena e o homem branco é cheio de conflitos e embates em torno
do qual vemos a necessidade do colonizado se rebelar contra o colonizador. “Márcio Souza
[...] traz uma representação da violência de parte do massacre indígena e a transformação de
Ajuricaba em mártir (mito) de seu povo, restabelecendo de uma forma moderna o sentido do
trágico antigo” (SILVA, 2019, p. 143).
Ajuricaba, como vimos, matou Poararé, rei dos Xirianá e roubou Inhambu, sua filha,
sem, no entanto, conhecer sua verdadeira identidade.
Antes mesmo deste episódio, Ajuricaba já estava enamorado por Inhambu, mas ele não
conhecia a identidade de princesa). Para levar adiante o seu romance, Ajuricaba ataca a tribo
dos Xirianá e mata o chefe da tribo, pai de Inhambu. Após muita resistência em respeito ao seu
pai Poararé e todos os seus irmãos da tribo derrotada, Inhambu tentou resistir, mas enfim,
também se apaixona pelo bravo guerreiro. Ajuricaba fala:
E ele me pareceu senhor de si, colocou sua língua como um cunabi entre meus lábios
e ficou assim, esperando, até mover aquela língua com ritmo, apertando-me e
sufocando-me com o abraço. E eu me senti afetada pelos cuidados dele. Mas as cinzas
ainda dançavam no ar e eu tinha de esperar que descansassem (SOUZA, 2005, p. 23).
Ao mesmo tempo em que o jovem casal se casa em uma cerimônia onde reúne os Manau
e os Xirianá, os portugueses estavam impacientes e não podiam tolerar a resistência de
Ajuricaba que impedia bravamente o avanço das tropas portuguesas. Um processo foi
organizado em Belém para promover a guerra a Ajuricaba que deveria ser preso e
imediatamente julgado. O rio Negro deveria pertencer somente ao rei de Portugal.
Vemos assim, na obra, a ameaça de Ajuricaba, como líder indígena, contra as pretensões
do império português. Para evitar uma insurreição contra Portugal, era necessário prender e
humilhar Ajuricaba de modo a servir de exemplo aos demais índios. O discurso do colonizador
está presente na obra, como no trecho a seguir:
os portugueses não podiam tolerar por muito tempo a resistência de Ajuricaba. Eles
precisam fincar suas tropas na área do rio Negro, sob pena de perderem o domínio
para os outros europeus. Ajuricaba impedia o avanço de qualquer tropa lusitana e
guerreava os índios traidores. O nome Ajuricaba logo foi conhecido na capital da
província. Era preciso destruir o caudilho da selva (SOUZA, 2005, p. 41-42).
Para acabar com a resistência e depois de sofrer vários ataques, Portugal enviou tropas
armadas ao Brasil e, em 1728, Ajuricaba foi capturado e deveria ser enviado para Belém. Antes
da viagem, vale ressaltar o encontro na prisão entre Ajuricaba e o carcereiro Teodósio, um índio
tukano, nascido Dieroá, aculturado, catequizado e batizado pelos irmãos carmelitas. Ajuricaba
tenta convencer que Teodósio não tinha identidade, pois não era branco e nem mais índio, se
vestia como branco, mas de fato, não era. No entanto, o aculturado índio não dava ouvidos as
palavras de Ajuricaba, ele acreditava que estava agindo corretamente e que as palavras do
guerreiro não passavam de teimosia. Após um diálogo onde Teodósio pergunta para Ajuricaba
o que é mais importante entre ficar ao lado dos estrangeiros ou ser morto por eles, vemos o
guerreiro responder com voz enfurecida que o povo é mais importante. O aculturado percebe
que ficar ao lado dos portugueses era negar sua própria natureza. Nesse momento da peça entra
o coro:
Chorai amantes, pois que chora ouvindo qual razão o faz chorar. Amor ouve mulheres
a clamar, pelos olhos mostrando amarga dor. Pois a morte vilã causando horror (...).
Tão profunda de amor foi a amargura que lamentar-se o vi de forma verá sobre minha
pálida imagem atraente. E olhava para o Céu constantemente, onde aquela alma abrigo
já tivera que dona foi de tanta formosura (SOUZA, 2005, p. 58).
Quando Ajuricaba estava indo como prisioneiro para a cidade de Belém, e já estavam
em suas águas, ele e seus homens se levantaram da canoa onde se encontravam acorrentados, e
tentaram matar os soldados portugueses. Esses fortemente armados bateram em alguns e
mataram outros. Ajuricaba então pulou no mar e não reapareceu mais, nem vivo nem morto.
Ele tinha 27 anos quando o retiraram da cela. Foi levado a ferro para embarcação
fundeada na baía do rio Negro. Era uma manhã de sol forte, fazia calor e o rio estava
calmo e sem banzeiro (...) Eu fui carcereiro do meu próprio rei. Que cegueira era essa
que me impedia de enxergar a realeza? (...) olhei para mim mesmo vi a miséria que
era. Um homem sem família e sem tradição (...) Pintei meu rosto com as tintas de
guerra. Meu nome é Dieroá, antigo assimilado de nome Teodósio, guerreiro e
flagelado dos portugueses (SOUZA, 2005, p. 73).
Ajuricaba inspirou Dieroá e vários outros líderes indígenas e a resistência continuou até
1759, quando os portugueses conseguem, finalmente, dominar a região do Rio Negro.
Herói Ajuricaba
Ah, Ah, Ah, Ah
Ajuricaba, líder da taba
Da tribo dos Manaó
Ajuricaba, morubixaba
Da tribo dos Manaó
He, he, he, he
Bravura e coragem sobrevivem
Nas veias do povo baré
Valentes de grandes conquistas
Exemplo de raça e de fé
Ô, ô, ô, ô
E a vida do nosso guerreiro
Repousa no encontro dos rios
Rio negro e rio mar, ah, ah
5
Parintins é uma cidade do interior no Estado do Amazonas, conhecida nacional e internacionalmente por causa
do Festival Folclórico de Parintins. “O Festival é uma festa a céu aberto, realizado no Bumbódromo, com três
noites de apresentação, onde o Boi Caprichoso (identificado pela cor azul e uma estrela na testa) e o Boi Garantido
(identificado pela cor vermelha e um coração na testa) exploram temáticas regionais como lendas, rituais indígenas
e costumes dos povos amazônidas através de alegorias, indumentárias, toadas e encenações” (MEDEIROS, 2019,
p. 3). O Festival deu tamanha projeção à cidade que a mesma já recebeu os títulos de: Capital da Cultura e do
Folclore Amazonense em 2012; e em 2017, foi declarada como a Capital Nacional do Boi Bumbá.
CARVALHO, João Carlos de. Amazônia Revisitada: de Carvajal e Márcio de Souza. Tese
(Doutorado em Letras), Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Estadual Paulista
– UNESP, campus de São José do Rio Preto, São José do Rio Preto-SP, 2001.
COSTA, Izabelly Cruz da. A Realidade Fragmentada: A relação entre cinema e literatura nas
obras de Márcio Souza e Milton Hatoum. Dissertação (Mestrado em Sociologia), Programa de
Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2012a.
LIMA, Rainério; LUNA, Sandra. Paixão na Zona Franca: Márcio Souza e a Dramaturgia na
Amazônia. Graphos, João Pessoa, vol. 12, n. 1, p. 179-197, junho/2010. Disponível em:
<https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/graphos/article/view/9862/5391>. Acesso em: 20
jun. 2019.
MEDEIROS, Alexsandro Melo. Filosofia da arte indígena: uma análise crítica do Festival
Folclórico de Parintins/AM sob a ótica da Indústria Cultural. Anais do 3º Congresso
Internacional dos Povos Indígenas da América Latina – CIPIAL: Trajetórias, narrativas, e
epistemologias plurais, desafios comuns. Brasília-DF, 2019.
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 6. ed. São Paulo: Brasiliense,
1961.
RESUMO
A literatura infantil é uma importante ferramenta didática para a inicialização das crianças no
mundo literário. O presente artigo traz uma reflexão sobre o conto “Uma galinha” e a novela
“A hora da estrela” de autoria de Clarice Lispector, assim como também uma pequena biografia
da autora, na qual se realizou uma análise destas obras e observou as diferenças estéticas entre
o conto e a novela, questão está que se deve ter bem claro para poder fazer esta diferenciação,
a autora faz estas diferenciações de forma bem clara nestas suas duas obras. Nestas obras
também se observou a visão sobre os problemas sociais e a constituição de identidade da
mulher.
PALAVRAS-CHAVE: Clarice Lispector; conto; novela, diferenças estéticas.
INTRODUÇÃO
Clarice não nasceu no Brasil, mas na Ucrânia (Europa), veio ainda criança para o nosso
país trazendo consigo algo pouco visto no mundo, uma visão de mundo e uma sensibilidade
mística, exótica, espiritualizada. Começou a descrever-se em seus escritos ainda jovem. Ela
traduzia muito bem sua vida nas suas letras. Quem olha para os seus livros encontra a alma de
Clarice Lispector, e quem olha para Clarice, vê todo o miolo dos seus livros. Ela mostra
angustia,mas entendimento. Aceitação, mas não conformação. Ela é uma escritora incrível,
densa e tensa, com uma alma denunciadora da realidade que a cercava aqui no Brasil. Sua
psique parece caótica e inquieta. Apesar detantos conflitos, ela é muito dona de si, muito segura,
enxuta e ousada. Tinha em si, muito uma peculiaridade,pois seus textos não são puramente para
crianças ou adultos, embora cada qual mantenha seus perfis. Os textos de Clarice Lispector,
mesmo os adultos, possuem um olhar, em algum momento, de criança.
Seus textos destaques são: “Perto de um coração selvagem”, “Laços de família”, “Um
sopro de vida”, “A paixão segundo G.H.”, “Uma galinha” e “A hora da estrela”. Clarice faleceu
em 1977, mas se eternizou nas suas letras. Quem lê Clarice, dialoga com sua alma eterna,
aprende dela e de si mesmo.
Lembrando que, parece-me que os textos de Clarice Lispector, mesmo os curtos, como
contos, são de grande profundidade de análise do ser humano e seu universo, mas importante
também aqui conjecturar das ações escritas de Clarice Lispector, que ela não trata como foco,
apenas da psique humana e nem apenas de sua relação externa com a sociedade em que vive,
mas como também desse espaço intersectório entre o externo e o interno, onde ocorrem os
conflitos principais da alma humana, em que o conflito concreto e o abstrato se confundem.
Clarice concedeu várias entrevistas, dentre elas, destacamos a que foi realizada na TV
Cultura Panorama em 01/02/1977, onde ela responde sobre a sua vida como autora, e não se
considerava como uma profissional, buscando evitar o “cargo”, a responsabilidade de ser vista
como tal, “tudo o que eu fizer, irão me ver comparando como autora”, ela se considerou como
morta, é o tempo de espaço entre uma obra e outra, e diz que se revigora quando assim produz
outra obra. Comentando sobre a obra dela “A hora da estrela”, Suzana Amaral, cineasta, afirma:
“a Macabeia é a imagem do Brasil, pelo menos naquela época”, pela sua história heroica e pelo
A princípio entendo que éimportante lembrar que o texto, seja qual for, deve ser
entendido em seu contexto, como o tempo em que foi escrito, por quem foi escrito (consciência
da vida e obra do autor até aquele momento), o espaço em que foi escrito, entre outros fatores
aqui não citados. Entre esses fatores não citados, faço aqui distinção ou destaque para o leitor
e seu mundo externo e interno como pontos marcantes para uma análise mais ou menos objetiva.
Importante também ressaltar que essa intensidade objetiva pode significar que uma
interpretação seja mais verdadeira, ou melhor, entendida que outra do ponto de vista geral e
acadêmico, mas não necessariamente do ponto de vista particular,pois o leitor não pode oferecer
a si e nem exigir de si o que não tem. Ele interpreta o texto conforme suas experiências, desejos
e necessidades. Daí a interpretação de um texto ser um denunciador do leitor/interpretador delr.
Ou seja, a interpretação fala mais do seu interpretador do que do texto em si, que se torna nessa
análise psicológica, marca de Clarice Lispector, uma metalinguagem.
Assim colocado, as interpretações são diversas porque os olhares sobre os textos são
diversos, o mundo, o tempo, a vida, são diversos. O próprio sujeito único é diverso em si,
interpretando o mesmo texto de diversas maneiras, conforme se altera seu currículo de vida.
Antes de qualquer análise, é preciso aqui tentar perceber a diferença estrutural entre os
gêneros “Conto” e “Novela” para que se siga a apreciação dos textos propostos.
Vamos lá! Apesar de grande similariedade, o conto e a novela têm suas particularidades
que os distinguem. Vamos buscar entender essas diferenças. Os três elementos constituintes
tanto do conto como da novela são: os personagens, o conflito e o climax do enredo.
O conto é breve, portanto não se é detalhista, assim, por exemplo, ele não dedicará muito
espaço determinante do perfil de personagem, de espaço ou acontecimento. Entenda. Ele será
profundo, mas conciso. Há aqui a habilidade do escritor em dizer profundamente algo, porém
com poucas palavras.
O conto é utilizado para manifestar nas entre linhas algo que se quer dizer de modo que
se construa uma ação fictícia, sendo assim, faço uso das palavras de Ricardo Piglia quando
afirma: “conto é construído para revelar artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a
Ainda sobre o conto, em suma é formado por uma estrutura dita da seguinte forma:
No que diz respeito à novela, ela possui esses mesmos itens do conto, conforme dito
anteriormente, mas com caráter mais extenso e explicativo, ou seja, com poucos personagens,
apenas um climax, mas que são extensões do principal, sem perder o foco da novela, podendo
ocorrer em mais de um espaço, portanto.
Como a novela é de estrutura mais ampla que o conto, então ela é mais competente ou
específica para detalhar personagens, espaços, acontecimentos, entre outros constituintes desse
gênero literário. Enfim, em sua leitura, você perceberá uma maior caracterização dos elementos
do texto. Contos de Machado de Assis e de Clarice Lispector se aproximam bastante do gênero
novela.
Percebe-se que há uma simlicidade na estruturação do conto, algo de modo direto que
envolve o leitor com uma línea de pensamento e um encadeamento textual de ações realizadas
pelo personagem central.
No livro, “A hora da estrela”, que devido ao seu sucesso tornou-se uma novela, temos
um narrador-personagem, aquele que participa da história, o sr. Rodrigo, que vive doente. Ele
não é o protagonista, mas é um personagem importante no enredo. O livro vai tratar e conflitar
os sentiomentos do narrador e da personagem protagonista, chamada de Macabéa, nome tão
feio quanto sua aparência.
A novela o drama de uma jovem que veio do nordeste, a qual não tem pai nem mãe,
muito magra, feia, tímida, ignorante, virgem e solitária. A jovem abandona onordeste e vai
morar no Rio de Janeiro e lá conseguiu um trabalho de datilógrafa. Seu Patrão não a despediu
em determinado momento por pena.
Morava juntamente com três irmãs, que eram apelidadas de “as três Marias”, por causa
das iniciais dos seus nomes. Ela não tinha muito o que fazer e passava horas ouvindo
programação em um radio emprestado. Mesmo diante de tanta dificuldade, ela consegue um
namorado, cujonome era Olímpio de Jesus, que depois de algum tempo a abandona por Glória,
uma menina bonita que roubara Olímpio de Macabéa.
Macabéa procura uma suposta cartomante conhecida por Madame Carlota, que lhe traz
falsas notícias de boa sorte através das cartas, porém ao sair contente é atropelada por uma
mercedes benz. Podemos perceber que tanto o romance como a novela “A hora da estrekla” se
dá em meio a uma diversidade de enredos e cenários, trzendo assim um contexto mais longo.
No conto “Uma galinha”, Clarice dá voz a uma criança, menina, como o fez em tantos
outros trabalhos seus. Parece ser uma referencia à menina que foi. Um texto com personagens
masculinos, secundários, predominando as manifestações femininas (na galinha, na mãe de
família e na menina) como crítica social leve, mas contundente.
Clarice é uma pessoa calada de corpo, com alma falante demais. Porém, no caso desse
conto, ela conteve-se e foi direto ao ponto. É um conto extremamente simples e bem curto, mas
que tem uma história marcante. É narrado em terceira pessoa e tem muita introspecção, pois a
autora é conhecida por ser intimista, o que faz com que o leitor busque não só o todo como
também o individual em suas obras.
O ato aqui retratado de se alimentar de uma galinha se apresenta como algo bem mais
simples e corriqueiro, mas o conto nos leva para o que seria o “lado pessoal” da galinha e passa
a nos mostrar pontos que são primordiais para a nossa vida em vários segmentos pessoais e
emocionais, de forma súbita ele faz com que o leitor se coloque na posição da galinha que está
prestes a ser abatida e busca um desfecho diferente para seu fim.
De forma irônica, o que já é uma caracterítica da autora, nas entrelinhas ela trás à tona
a problemática da luta feminina contra o machismo e a falta de igualdade de direitos entre
homens e mulheres presentes em nossa sociedade patriarcal independente da época.
Por fim, Clarisse Lispector nos expõe, que da mesma forma melancólica que a galinha
encontra seu fim, o machismo sempre vai existir e que algumas coisas podem nunca mudar,
mas devem ser combatidas.
É a obra mais famosa de Clarisse Lispector, sendo o último publicado em vida pela
autora. Com um humor ácido e um título irônico que nos trás a ideia de que só se brilha quando
se morre, “A hora da estrela” é considerada pela imprensa crítica, a obra prima da autora em
questão.
Aqui temos a história de Macabéia, uma migrante nordestina de 19 anos, moça simples
nascida no sertão de Alagoas, que vem para o Rio de Janeiro e passa a trabalhar num
subemprego de datilógrafa, dividindo um quarto com outras quatro mulheres em uma pensão
na zona portuária do Rio de Janeiro, ela torna-se uma figura mais uma figura invisível e
anônima na sociedade. Uma coisa que chama atenção é que paralelamente temos uma segunda
história que também transcorre, a do narrador.
Clarisse Lispector traz mais uma vez algumas de suas principais características: a crítica
e a irônia contra a desigualdade de gêneros. Na obra, personificada como o narrador, ela
descreve que Macabéa é conformada, não reage, não tem fibra, é dócil e obediente; usando as
palavras duras e machistas do narrador Rodrigo: Macabéia é tola, rosto que pedia tapa. E assim
Clarisse mostra nesta obra a desigualdade social, dentre outros fatores que cercam a mulher.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sempre foi de natureza humana contar histórias, por isso o conto possivelmente pode
ser a forma literária mais antiga da história. O conto é uma história breve que deve ser lida de
uma vez só, de forma ininterrupta; se apresenta como uma poderosa narrativa, porém é sempre
muito curta e densa, trazendo quase sempre uma contemporaneidade sem se ater muito aos
detalhes onde só se escreve o que é essencial.
No conto a essência é a narratividade, a sequência de fatos que está sendo contada com
um ou mais personagens envolvidos em um evento problemático a ser resolvido, sempre
É um gênero textual que abarca vários tipos de assuntos, já existem contos para todos
os tipos de gosto, temos os fantásticos, os populares, os contos de fadas, contos contemporâneos
e clássicos, enfim, para todos os tipos de leitores.
Já a novela, apresenta-se sempre como uma narrativa extensa que conta uma história
baseada em fatos reais ou imaginários, onde se cruzam várias outras histórias secundárias. Bem
mais extensa e detalhada que um conto, na novela a história é contada por um só narrador ou
vários narradores com as mais diferentes perspectivas, sempre existe uma história central da
qual dependem as outras histórias. Aqui se apresentam de maneira mais detalhada lugares,
personagens, épocas e os ambientes onde se desenvolvem as ações e tramas.
Na novela, o maior propósito do autor é criar uma história onde a ficção possa se
apresentar como verdadeira, um reflexo da realidade. Apresenta uma variedade de textos
podendo ser predominantemente narrada com a inclusão de discursos, diálogos, citações e
situações históricas e contemporâneas entre outros exemplos.
REFERÊNCIAS
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice – Fotobiografia. São Paulo: Edusp; Inesp, 2008.
PIGLIA, Ricardo. Formas breves. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.
SANTOS, Luciene Alves; GABRIEL, Maria Alice Ribeiro. Teoria de Literatura II – Curso EaD
– Letras – Espanhol. João Pessoa: UFPB, 2014.
NETGRAFIAS
RESUMO
A literatura produzida pelo escritor Dalcídio Jurandir (1909-1979) representa a manifestação
literária da identidade cultural amazônica. Com isso, este estudo tem como objetivo observar
como o hibridismo cultural é determinante para a formação dessa identidade. Considera-se que
os espaços amazônicos são divididos em dois: o espaço cultural rural-ribeirinho e o espaço
cultural urbano. Esses espaços são de fundamental importância para a ideia de identidade. O
homem amazônico coabita esses espaços que são decisivos para a sua construção identitária.
Para analisar como esses espaços e o indivíduo amazônico relacionam-se dialeticamente. Para
isso, utilizou a leitura de dois romances do escritor marajoara Dalcídio Jurandir: Três Casas e
um rio (1958) e Belém do Grão-Pará (1960). Nesse sentido, a proposta metodológica do
trabalho é de caráter bibliográfico e teve como aporte teórico as pesquisas desenvolvidas por
BAUMAN (1998), HALL (1996; 2001; 2003), BHABHA (1998), CANCLINI (2006), PAES
LOUREIRO (2015), FURTADO (2002), NUNES (2004) e PRESSLER (2016). Assim,
observou-se como o homem da região amazônica, que transita entre o espaço rural-ribeirinho e
o espaço urbano, por meio do processo de hibridização cultural, que é resultado do contato do
homem amazônico com esses espaços, lida com a ideia de coexistência identitária.
PALAVRAS-CHAVE: Identidade cultural. Hibridismo. Espaço. Cultura amazônica. Dalcídio
Jurandir.
INTRODUÇÃO
O espaço amazônico é caracterizado pela sua grande diversidade de fauna e flora, além
de apresentar também uma rica cultura que flutua entre o tradicional e o moderno. Tal
diversidade contribui incisivamente para uma vasta representação de valores identitários que
caracterizam o homem da região como um ser social peculiar. Essa peculiaridade estabelece,
figurativamente, uma espécie de amálgama do sujeito amazônico, ou seja, existe uma mistura
de identidades heterogêneas que forma um todo.
Nesse contexto, Loureiro (2015, p. 51-52) nos diz que “o homem amazônico, caboclo,
busca desvendar os segredos de seu mundo”. Assim, ainda segundo Loureiro (2005, p. 79), “é
preciso entender que a cultura do mundo ribeirinho se espraia pelo mundo urbano, assim como
aquela é receptora das contribuições da cultura urbana”. Dessa forma, percebemos que
intrinsecamente para homem amazônico os espaços rural-ribeirinho e urbano se fundem e se
agregam a identidade cultural dos habitantes dessa região.
Dessa forma, partindo das perspectivas mencionadas, o objetivo desse trabalho será o
de (re) conhecer a(s) identidade(s) do homem amazônico rural-ribeirinho e do homem
amazônico urbano e observar como a travessia desse homem do espaço rural para o urbano
impacta diretamente em sua identidade. Nesse caso, pretende-se, a partir da leitura das obras:
Três casas e um rio (1958) e Belém do Grão-Pará (1960), de Dalcídio Jurandir (1909-1979),
analisar a relação do homem com seu meio, evidenciando nesta perspectiva a formação do
indivíduo quanto à busca por sua identidade além de tentar perceber como a transição do espaço
rural-ribeirinho para o espaço urbano amazônico é capaz de resignificar o sujeito amazônico.
Assim, com o intuito de embasar teoricamente todo esse vasto campo de conhecimento
se utiliza de BAUMAN (1998) e HALL (1996; 2001; 2003) acerca concepção de identidade
cultural. Já para conceituar o processo de hibridização cultural, tem-se os estudos
epistemológicos de BHABHA (1998) e CANCLINI (2006). O professor PAES LOUREIRO
(2015) colaborou com suas teorias voltadas para os dois tipos de espaços existente na região
amazônica: o rural-ribeirinho e o urbano, além de se considera os conceitos identidade cultural
amazônica desenvolvidos por ele. Embasa-se também nas perspectivas teóricas de FURTADO
(2002), NUNES (2004), PRESSLER (2016) bem como outros autores pertinentes para analisar
as obras dalcidianas.
Vindo de família muito pobre, não consegue fundos para cursar no Ginásio Paes de
Carvalho e tem a matrícula cancelada no 2º ano (1927). Nessas circunstâncias decide viajar
para tentar a sorte no Rio de Janeiro, no entanto, a crise financeira não passa levando-o a
trabalhar como lavador de pratos no Café e Restaurante São Silvestre, na Rua Conselheiro
Zacarias. Mesmo assim, decide aceitar um trabalho sem remuneração na revista Fon-Fon como
revisor de textos.
A partir de 1941 começa sua produção literária com o romance Chove nos Campos de
Cachoeira pela Editora Vecchi; em 1947, Marajó, pela Livraria José Olympio; em 1958, Três
Segundo Furtado (2002), a partir do personagem Alfredo, pode-se dividir Extremo Norte
em três núcleos. O primeiro deles detém atenção aos três primeiros romances: Chove nos
campos de Cachoeira, Marajó, Três casas e um rio. Eles apresentam como espaço principal a
localidade do Marajó, neles Belém aparece de maneira mística. Belém é para alguns
personagens o espaço das realizações; e, em especial, para Alfredo é o local que permitirá a ele
se tornar uma pessoa distinta daquilo que poderá ser se permanecer em Cachoeira. O primeiro
e o terceiro romances marcam o desejo menino Alfredo, entendido e auxiliado por dona Amélia,
sua mãe, para ir estudar em Belém. Assim, o enredo do terceiro livro se encerra com a chegada
dos dois à cidade de Belém.
O segundo núcleo faz referência à Belém do Grão Pará, Passagem dos Inocentes,
Primeira manhã, Ponte do galo, Os habitantes, Chão dos Lobos. Os romances têm na capital
paraense, Belém, o principal espaço da narrativa dalcidiana desse núcleo. Salienta-se que existe
uma divisão entre os espaços marajoaras e os espaços belenenses. Não obstante, neste núcleo,
destaca-se o encontro do personagem Alfredo com a cidade de Belém e com o que ela
representava para ele de possibilidades, assim como é o encontro definitivo do personagem com
sua raça (o pai é branco, a mãe, negra) e com sua realidade.
Ribanceira, o último romance do ciclo, representa o terceiro núcleo. Ele nos apresenta
Alfredo já como homem maduro e com responsabilidades. Alfredo acaba exercendo a função
de secretário tesoureiro de uma cidade do baixo Amazonas, igualmente a atividade profissional
do pai. Foi enviado para gerenciar ruínas em um local insólito com quase nada para ser
administrado. Após um período fora, Alfredo retorna, desiludido, para os braços de Belém.
Durante sua vida como escritor, Dalcídio Jurandir recebeu quatro prêmios: o primeiro,
em 1940, lança o escritor no cenário nacional após vencer o concurso de romances promovido
Assim, híbridos são os arranjos para que convivam num mesmo espaço elementos
simbólicos tradicionais e outros, próprios da modernidade. É o encontro, a mistura de práticas
dos diferentes grupos sociais nunca completados, uma heterogeneidade multitemporal que leva
a novas modalidades de organização da cultura e de identificação. Trata-se de um processo
constante de encontros e negociações, fundamental na abordagem dos fenômenos sócio-
culturais. Tal conceito é destacado para a busca de compreensão dos mecanismos através dos
quais se dão as negociações no campo da cultura na Amazônia e na relação de migração feita
por Alfredo, personagem principal que se encontra nos dois romance analisados.
Assim, salienta-se que tal mistura cultural, o hibridismo, é formada precisamente pela
existência de uma zona de contato, nos termos de Mary Louise Pratt (1999), que permite uma
relação de fusão entre elementos culturais de todos os tipos especialmente por aqueles
responsáveis pela formação do ethos amazônico. Nesse sentido Pratt (1999) diz que:
(...) aquilo que chamamos zonas de contato, espaços sociais onde culturas díspares se
encontram, se chocam, se entrelaçam uma com a outra, frequentemente em relações
extremamente assimétricas de dominação e subordinação – como o colonialismo, o
escravagismo, ou seus sucedâneos praticados em todo o mundo (PRATT, 1999, p.
27).
Esse hibridismo tratado pela autora não está livre de tensão. Ao contrário, está inserido
em relações de poder que proporcionam o entrelaçamento entre os valores culturais, sociais,
ideológicos, políticos entre outros. Tal mistura gera combinações que estão sempre em processo
de negação, assimilação, revisão e reapropriação e é nesse contexto que a ideia de identidade
cultural se renova e se amplia.
Nessa perspectiva, o termo hibridismo sugere a ideia de identidade como sendo algo
que se constrói a partir das diferenças culturais o que acaba por enfatizar a importância do
heterogêneo no processo de hibridação. Com isso, destaca-se o pensamento de Homi Bhabha
(1998) que buscar exemplificar que mesmo após o exílio as pessoas são capazes de reconstituir
a sua nação fazendo isso a partir de encontros casuais com sujeitos de mesma nacionalidade
através de narrativas como é possível perceber a seguir:
Minha ênfase na dimensão temporal na inscrição dessas entidades políticas [...] serve
para deslocar o historicismo que tem dominado as discussões da nação como uma
força cultural. A equivalência linear entre evento e ideia, que o historicismo propõe,
geralmente da significado a um povo, uma nação ou uma cultura nacional enquanto
categoria sociológica empírica ou entidade cultural holística. No entanto, a força
narrativa e psicológica que a nacionalidade apresenta na produção cultural e na
Destaca-se que o hibridismo, para Bhabha, é uma forma de se ler as relações entre
dominantes e dominados que se alicerçam na relação de dominação por hora considerado como
regra. Não obstante, será levando em consideração esse entendimento com o propósito de se
observar as subjetividades amazônicas a partir da leituras das duas obras dalcidianas não com
a intencionalidade de se perceber relações identitárias de maior ou menor prestígio, mas com a
intenção de analisar como elas são capazes de formar os valores sócio-culturais do sujeito que
entra em contato com essas novas identidades culturais. Ademais, convêm salientar que não
pretende-se acreditar que essas relações entre identidades acontece de maneira harmoniosa e
pacífica, pelo contrário compreende-se que o personagem Alfredo perpassa em Belém por um
processo de adaptação conflituoso e tenso.
Acerca disso, tem-se as ideias de Néstor García Canclini, um dos precursores dos
estudos acerca do hibridismo cultural. Canclini em sua obra Culturas híbridas: estratégias
para entrar e sair da modernidade (2006) recomenda que haja uma reflexão sobre o que ele
denomina hibridação cultural nos países latino-americanos. Ele observa as maneiras de
hibridismo na América Latina que foram gerados através de contradições resultantes da
coexistência do convívio social urbano e do contexto internacional, paralelamente, com a
tradição e com a modernidade.
Assim, a definição de Canclini para hibridação pode ser: “processos socioculturais nos
quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar
novas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI, 2006, p.19). Salienta-se que o movimento de
hibridação, que agrega práticas discretas e novas estruturas e práticas, realiza-se de maneira não
planejada, resultante dos processos migratórios, turísticos e de intercâmbios ou também da
criatividade individual e coletiva.
Partindo dessa premissa, observa-se que a identidade amazônica assume uma espécie
de indeterminação devido ser uma região que apresenta uma diversidade de culturas, tanto do
ribeirinho, do índio, do caboclo, quanto do colonizado europeu. Em uma sociedade globalizada,
esse imbricamento cultural não permite que haja a constituição de uma identidade pura, original
e autêntica. Esse pensamento serve para toda e qualquer outra cultura, visto que a identidade é
sempre um processo e um devir constante.
Por esse viés, considera-se esse imbricamento cultural como um certa forma de
resistência cultural, pois compreende-se que existe uma vontade de ouvir o Outro, seja ele
rechaçado ou reprimido. Sendo assim, essa possibilidade de reversão do olhar está atrelada a
uma perspectiva pós-colonial. Sobre essa concepção pós-colonial, Homi Bhabha ressalta:
Tomemos como exemplo a ideia que o personagem Alfredo na obra Três casas e um rio
se metamorfoseia entre identidades plurais, ora representada pela forte influência africana que
se encontra presente em D. Amélia, ora se encontra marcada pelo traços europeus do Major
Alberto. Desse modo, reitera-se a ideologia de uma identidade cultural amazônica enquanto
O mundo construído de objetos duráveis foi substituído pelo de objetos duráveis foi
substituído pelo de produtos disponíveis projetados para imediata obsolência. Num
mundo como esse, as identidades podem ser adotadas e descartadas como uma troca
de roupa. O horror da nova situação é que todo diligente trabalho de construção pode
mostrar-se inútil; e o fascínio da nova situação, por outro lado, se acha no fato de não
estar comprometida por experiências passadas, de nunca ser irrevogavelmente
anulada, sempre mantendo as opções abertas. (Bauman, 1998, pp. 112-113)
Nesse sentido, considera-se que os indivíduos modernos precisam se adaptar
rapidamente as novas tendências. Para isso, considera-se necessário que se mantenha as opções
abertas, ou seja, o indivíduo que vivência e modernidade líquida necessita estar preparado para
lidar com as mais diferentes situações. Para tal compreensão com o objeto de estudo, veja-se o
fragmento a seguir da obra Belém do Grão-Pará (2004):
O andar é outro. Também na cidade saberiam logo descobrir os que vinham do sítio,
tios-bimbas no caminhar e no admirar de tudo? Os meninos, sobretudo, por certo bem
vestidos e donos de Belém, com a curiosidade afiada, gostariam de olhá-lo, ouvi-lo
pasmar diante do automóvel, imitar-lhe o andar, descido o beiço da matutice. (BGP,
2004, p. 81).
Nesse viés, considerando a adaptação sugerido por Bauman (1998), tem-se Alfredo que
ao chegar em Belém sente a necessidade de se parecer com um cidadão da capital. Ele se
preocupa com as suas ações frente aos meninos de Belém; não quer que a sua matutice, faça ele
parecer com os garotos que vinham do sítio: tios-bimbas. A partir daqui, compreende-se que se
faz necessário analisar a ideia de identidade cultural na região amazônica. Para tal, inicia-se
agora uma nova seção.
Assim, é preciso compreender que os povos da Amazônia não vivem isolados no tempo
e no espaço. Eles são capazes de estabelecer relações de trocas materiais e simbólicas entre si,
com as comunidades vizinhas e com os agentes mediadores da cultura, entre o mundo rural e o
urbano e a vida em escala global. Suas manifestações culturais e sociais se estendem pelo
mundo, buscando algumas práticas, mas também rejeitando outras.
Pontua-se que a originalidade amazônica está atrelada ao seu espaço que acaba por gerar
uma certa sobreposição, porém nunca um apagamento cultural. Assim, Paes Loureiro (2015)
destaca a existência de dois espaços nitidamente presentes na Amazônia: o espaço da cultura
rural e o espaço da cultura urbana. Convém enfatizar que esses espaços possuem características
Os romances publicados por Dalcídio Jurandir, sob o título geral de Ciclo Extremo
Norte, cristalizam aspectos técnicos e estéticos que cintilam o brilho de grandes romances. Com
isso, o autor consegue um brilho excepcional mais claro quando romantiza acentuadamente as
particularidades regionais, o espaço regional torna-se importante na medida em que nele
desenvolvem-se ações e os dramas familiares dos homens da Amazônia, pois, como ficcionista,
a usurpação do elemento regional com o humano obriga-o à uma disciplina ainda maior que
acabam por objetivar a atingir a universalidade.
Nesse sentido, uma das mais belas incorporações da paisagem amazônica na cultura,
por via da expressão simbólica de uma obra literária, é realizada por Dalcídio Jurandir,
romancista que entroniza a paisagem amazônica das cidades emolduradas pela paisagem, na
literatura brasileira moderna, por meio de um conjunto de romances telúricos que constituem o
ciclo do romance do Extremo Norte.
Dessa forma, tendo como fonte os romances de Dalcído Jurandir: Três casas e um rio e
Belém do Grão-Pará, refletidos dentro de quatro funções do espaço, segundo Borges Filho
(2007), cujos elementos se encontram na obra: a primeira, faz menção à caracterização do
personagem de acordo com a indicação do contexto espacial à que é submetido. A segunda, o
espaço é a influência exercida no personagem. A terceira função relaciona-se às ações dos
personagens a partir do momento em que o espaço é propício ao cumprimento dessa ação. E a
quarta e última função refere-se à representação dos sentimentos vividos pelos personagens.
Perceber esse elementos é primordial para compreender-se a formação identitária do indivíduo
amazônico.
Não obstante, para chegar a vivenciar esses dois espaços se faz necessário que Alfredo
acompanhado de sua mãe realize experimente o deslocamento de sua terra para terras
desconhecidas. Salienta-se o desconhecimento de Alfredo em relação a Belém se dá devido o
menino ainda não ter ido até capital paraense. Acerca disso, sente-se a necessidade de se
perceber a ida de Alfredo, saindo de Cachoeira e chegando até Belém.
O barco se arrastava como numa solidão. Até que a uma volta do rio, se pudesse ver,
lá no fundo, qualquer coisa espessa e parda, logo o desenho da caixa d’água, torres,
chaminés de gaiolas, a primeira boia do canal, as alvarengas. Como Alfredo invejava
os passageiros daquele navio que tão velozmente se aproximava do porto. Por que
estava tão inquieto e confusas recordações lhe assaltavam o coração? Talvez fosse o
peso da alegria e do orgulho de chegar, tão bom que lhe doía. Prometera manter-se
calmo, achando que era a coisa mais natural do mundo chegar a Belém, não passar
nunca por matuto, fazendo crer, isto sim, que era habituado à cidade. Feliz, cheio de
temores, doendo-lhe o desejo de chegar logo e ao mesmo de retardar a chegada,
assobiava não para chamar o vento, como faziam os tripulantes, mas para enxotá-lo.
(TCR, 2018, pp. 472-474).
A mãe lhe sorria, quieta como a fidelidade, Alfredo tocou-lhe o ombro e nele inclinou
o rosto. Ah, se a sua querida mãe voltasse a sorrir como agora sorria, tranquila como
estava naquela manhã da chegada de Belém. (TCR, 2018, p. 474).
Os fragmentos acima fazem menção a chegada de Alfredo em Belém. Neles são
percebidos, inicialmente, uma descrição da cidade, a ansiedade de Alfredo por chegar em
Belém. Esse processo de chegada a Belém inicia o seu processo de hibridização, considera-se
que o não querer ser matuto já conduz a percepção de Alfredo reconhece a necessidade de
adaptação e aceitação ao novo espaço que irá proporcionar as suas novas aventuras.
Personagem central do ciclo, alter ego do narrador, Alfredo só não está presente em
Marajó. É ele, ainda criança transferido para Belém a fim de prosseguir os estudos,
que faz do conjunto um ciclo biográfico e geográfico, da Ilha do Marajó à capital do
Estado do Pará. (NUNES, 2004, p. 16).
Por esse motivo, a análise da obra se centraliza no personagem Alfredo, pois
compreende-se que ele é representante dessa transformação identitária gerada pelo processo de
mudança de espaços.
Situada num teso entre os campos e o rio, a vila de Cachoeira, na ilha de Marajó, vivia
de primitiva criação de gado e da pesca, alguma caça, roçadinhos aqui e ali, porcos
magros no manival miúdo e cobras no oco dos paus sabrecados. O rio, estreito e raso
de verão, transbordando nas grandes chuvas, levava canoas cheias de peixe no gelos
e barcos de gado que as lanchas rebocavam até a foz ou em plena baía marajoara.
(TCR, 2018, p. 15)
A relação entre homem e natureza é forte e é regida pela oposição evidenciada pelos
campos e pelo rio, pode-se notar também, no fragmento, os costumes das pessoas que habitam
a vila de Cachoeira. É nesse espaço que se encontra a casa-morada de Alfredo.
Na obra, o chalé, a casa da família, destaca-se como sendo um dos espaço de maior
relevância. Fato que se percebe devido em grande parte do romance os personagens aparecem
nesse lugar, é como se estes estivessem interligados.
Outro espaço significativo para Alfredo, faz alusão a casa que ele passa a habitar quando
se munda para Belém: a casa da família Alcântara, retratada no romance Belém do Grão-Pará:
Não obstante, Alfredo, em Belém do Grão-Pará, se deixa atravessar entre outras coisas
por uma lógica, e uma logística calcadas na exclusão. As idealizações do menino acerca de
Belém convergem a um exílio que emerge a partir da frustração diante da degradação familiar
sofrida pela família Alcântara, com quem o protagonista irá habitar.
Era pelas enchentes de março que ilhavam o chalé e as palhoças naquela rua da
beirada, subindo a água um metro e pouco ao pé a casa do Major, de alto soalho de
madeira.
Antes de enfiar a linha por uma fenda do soalho, no meio da varanda, o menino colava
o olho para espiar, lá embaixo, o que havia e imaginava na enchente escura. Por ali, a
princípio, quando chegavam as grandes chuvas, via os sapos saltando na lama, esta e
aquela borboleta de misteriosa cor e procedência, o bico esquivo da derradeira galinha
aproveitando os últimos minutos do chão há pouco poeirento onde ciscava; depois,
Pode-se então perceber que o contexto espacial vivenciado por Alfredo sugere que ele
seja capaz de acompanha os modelos sociais que são impostos aos meninos que chegam em
Belém. Isso se deve, pois Alfredo ainda apresenta os traços de uma interiorização que ele
vivencia no espaço de Cachoeira: “[...] e o coração se fechava em uns quantos sentimentos
novos, na sensação de que o chalé ia dentro [...]” (TCR, 2018, p. 459).
Acerca disso, Furtado (2002) destaca que: “Do espaço, o grande ícone do derruído é a
casa: ou ela se transforma em um espaço opressor, como o chalé dos pais de Alfredo, ou ela rui
literalmente, como a casa da família Alcântara”. (FURTADO, 2002, p. 14).
É importante destaca que é exatamente no espaço das casas que se concentra um dos
processos de hibridização cultural: o paterno-materno. É no chalé que o menino acaba por
receber a cultura letrada dada pelo Major Alberto e por D. Amélia, o menino recebe os saberes
da cultura popular. Assim, Furtado (2002) questiona a qual dos polos o menino deve seguir.
Afinal, a qual dos pólos seguir? Ao pólo do pai branco, de cultura erudita, mas
desajeitado para a vida prática, incapacitado para acumular riquezas materiais,
reservado no que diz respeito a carinhos com os filhos; ou ao pólo da mãe negra, de
linhagem analfabeta, exalando natureza e sabedoria popular essencialmente intuitiva,
com melhor capacidade para demonstrar afetividade, e também essencialmente
crítica? (FURTADO, 2002, pp. 67-68)
Sendo assim, o conflito existente entre Cachoeira e Belém se materializa na luta entre o
rio e a cidade, a água e a terra. Assim, o rio e a casa são os referentes mais imediatos dos
subterrâneos do tempo e do território que o alimenta. O caboclo busca desvendar os segredos
do seu mundo, recorrendo aos mitos, lendas, plantas medicinais, rezadeiras, tanto no trabalho
como no lazer. Com isso, em algumas descrições, a água é sugerida tanto como elemento
positivo quanto negativo, dependendo somente de como ela se revela ao mundo íntimo das
personagens.
Alfredo é consciente da fratura identitária que lhe traz não apenas a solidão, mas
igualmente uma sensação de um viver intermediário:
Desse modo, em Três casas e um rio, os lugares não representam apenas localizações
no espaço, mas também são pontos para expressar sentimentos, apresentam em sua
configuração os anseios, as amarguras, as dores e solidões dos habitantes, tendo a capacidade
de proteger ou oprimir, de amedrontar ou encorajar. Assim, ao se falar do chalé que Alfredo
reside com a família, da casa de Lucíola e da fazenda de Marinatambalo, percebe-se que essas
três casas são pequenos mundos, ilhas de significados para seus habitantes.
Por assim dizer, a passagem do interior para a capital, conduz Alfredo a transposição de
fronteiras. Isso é primordial para o desenrolar da narrativa. Alfredo conseguiu realizar a
travessia física que é retratada pela chega em Belém.
O fato de no romance, Belém do Grão-Pará, ser enfocada uma cidade em suas diversas
faces, com uma multiplicidade de vozes e personagens, possibilita mostrar ao leitor um variado
painel urbano. Vale lembrar que os Alcântara, que ocupam mais extensivamente o enredo do
livro, sintetizam todo o drama da classe média decadente de Belém na primeira metade do
século XX, período em que a borracha entra em declínio.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O hibridismo é formado pela existência de uma zona de contato que são compreendidas
como espaços sociais onde culturas díspares se encontram, se chocam, se entrelaçam uma com
a outra. Destaca-se que essas zonas de contato que colaboram para o surgimento do processo
de hibridização se sintetiza na ideia de deslocamento humano que é gerado pelo processo de
imigração e migração. Nesse caso, Alfredo, ao sair de Cachoeira com destino a Belém, passa
por um processo de migração, pois ao deixar seu local de origem e entrar em contato com outros
sujeitos incorporaram marcas que ficaram registradas na identidade cultural desse migrante.
Pontua-se que a identidade cultural amazônica está atrelada aos seus espaços: Cachoeira
do Arari (espaço rural-ribeirinho) e Belém (espaço urbano). Pensando isso, observou-se que
Alfredo lida com a transição não só entre os espaços, mas também nota-se que esses espaços
são determinantes para caracterizar o menino e o adolescente. Esse transição é perceptível no
olhar do menino que habita Cachoeira e também perceptível no olhar do adolescente que passa
a habitar Belém. Essa ambiguidade existente entre os espaços é essencial para que Alfredo
possa agrega-las e faze-las parte da sua identidade cultural amazônica. O ser da Amazônia se
encontra dotado dessa mescla cultural que forma os habitantes que residem tanto nos espaço
rural-ribeirinho quanto no espaço urbano.
REFERÊNCIAS
ABDALA JUNIOR, Benjamin. Literatura, história e política. São Paulo: Ateliê editorial,
2007.
BAUMAN, Zymunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editores, 1998.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Àvila, Eliana Lourenço de Lima Reis,
Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Hibridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.
4ª ed. Tradução de Heloísa Pezza Cintrão e Ana Regina Lessa. São Paulo: USP, 2006.
JURANDIR, Dalcídio. Três casas e um rio. 4ª ed. Bragança: Pará.grafo Editora, 2018.
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura Amazônica: uma poética do imaginário. Belém:
Cultura Brasil, 2005.
PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Trad. Jézio
Hernani Bonfim Gutierre. São Paulo: EDUSC, 1999.
RESUMO
Este estudo aborda a relação entre literatura e oralidade nas pesquisas desenvolvidas nos
últimos dez anos (2010-2020) acerca do ensino da Língua Portuguesa (LP) para crianças.
Buscamos evidenciar o lugar da literatura no currículo dos anos iniciais do Ensino Fundamental
(EF), situando o contexto discursivo da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que
pulveriza a literatura no bojo das práticas de linguagem. Esta pesquisa foi desenvolvida
mediante os pressupostos da pesquisa qualitativa e bibliográfica (GÜNTHER, 2006), está
fundamentada em Zilberman (1987, 1988, 2008, 2012), Abramovich (1997) e em Candido
(2011). Como resultados, destacamos que embora os estudos abordem os anos iniciais do EF
(1º ao 5º ano), a centralidade dada à alfabetização é evidenciada. Além disso, no tocante ao
trabalho com a literatura, alguns estudos abordam diferentes textos (crônicas, lendas, folclore,
biografia) sempre utilizados como meio para consolidação das aprendizagens. Conforme
registrado por um dos estudos, as queixas das crianças destacam o desejo de ouvir histórias
lidas/contadas pela professora. Tal desejo indica uma diminuição dessa prática no contexto dos
anos iniciais se comparado ao que é proposto para a Educação Infantil (EI), tendo em vista uma
mudança na significação sobre a criança, que passa a ser vista como estudante/aluno.
Palavras-Chave: Literatura Infantil. Oralidade. Anos Iniciais.
INTRODUÇÃO
Este trabalho está relacionado a um projeto mais amplo acerca das práticas de linguagem
no ensino de LP nos Anos Iniciais 6. Nesta escrita, mais especificamente, buscamos apresentar
as pesquisas publicadas sobre a oralidade nos últimos dez anos (2010-2020), disponibilizadas
em formato de artigos científicos, de modo a contribuir à compreensão acerca de como a
6
Projeto aprovado pela Pró-reitora de Pesquisa da UFMT – envolve atualmente quatro estudantes de graduação
em Pedagogia e uma Professora do Curso de Pedagogia. O projeto está articulado às ações do Grupo de Pesquisa
em Políticas Contemporâneas de Currículo e Formação Docente GPLIC-For (UFMT).
7
Reforçamos que os sentidos apresentados para Literatura Infantil na BNCC dos Anos Iniciais se distanciam dos
sentidos apresentados no texto referente à Ed. Infantil, conf. (BRASIL, 2017, p. 44).
8
Embora as obras utilizadas tenham sido publicadas em nova edição (2012), optamos por apresentar o ano da
primeira publicação a fim de situar há quanto tempo essa temática vem sendo problematizada pela autora.
Com o passar dos anos e com novas formas de pensar o ensino da LP, a prática de ensino
desse componente curricular foi se tornando ainda mais complexa, agregando outras interfaces
como exemplo, a oralidade 10 e a análise semiótica.
Zilbeman (1988), ao abordar a especificidade dos anos iniciais, salienta que a Literatura
Infantil mediada pelo texto (disposto geralmente em livros didáticos) distancia a criança da obra
de ficção completa. Tal compreensão possibilita entender que o texto, de modo fragmentado,
aloca a literatura na mera condição de meio para um objetivo pedagógico, uma forma de se
alcançar aprendizagens. O texto, em suas considerações, já representa uma retirada da literatura
do seu lugar sacralizado, algo que pode tanto representar maior possibilidade de acesso à
literatura (massificada pelo ensino) quanto distanciamento da obra em si.
9
No que tange à Literatura, a autora explica que: “O termo Literatura provém de littera “letra”, em latim, o que
assinala sua relação com a escrita. Contudo, as manifestações verbais às quais se relaciona a Literatura não se
apresentam necessariamente por escrito [...]”. (ZILBERMAN, 2008, p. 7).
10
Registramos que a partir dos Documentos Oficiais endereçados à escola, oralidade e escrita são geralmente
enunciadas como:1. Modalidades; 2. Eixos; 3. Práticas de linguagem. Os conceitos que abarcam contribuem para
a compreensão da língua na sua relação com o ensino e estão, às vezes, mais enfatizadas em alguns documentos
curriculares que outros.
Nesse sentido, salientamos que a experiência com a literatura, muitas vezes, é iniciada
pela escuta por parte das crianças em uma interação que privilegia a troca, a partilha de sentidos.
Elas, às vezes com a família, responsáveis ou nos ambientes educativos, demonstram o interesse
pela contação de histórias, pela narrativa.
Esse aspecto foi evidenciado por Abramovich (1997), que apresenta elementos para a
construção da experiência com a literatura atravessada pela oralidade e escuta em sala de aula.
“Ah, como é importante para a formação de qualquer criança ouvir muitas, muitas histórias...
Escutá-las é o início da aprendizagem para ser um leitor, e ser leitor é ter um caminho
absolutamente infinito de descoberta e de compreensão do mundo.” (p. 16)
11
Citamos, por exemplo, o trabalho de Mota (2006), intitulado De Crianças a Alunos: Transformações Sociais na
Passagem da Educação Infantil para o Ensino Fundamental.
No tocante aos trabalhos, foi sistematizada uma apresentação das pesquisas a partir de
uma ordem temporal que busca evidenciar como algumas formas de pensar a oralidade foram
mudando ao longo dos últimos dez anos. Além disso, são apresentados os enfoques dos estudos
e de que modo identificam/abordam a literatura nas práticas pedagógicas levantadas.
Chaer e Guimarães (2012) visam destacar a relevância do ensino da oralidade nos anos
iniciais do ensino fundamental, mostrando como esta abordagem pode se tornar significativa
para o desenvolvimento e socialização dos alunos. Conforme o estudo, no processo de
comunicação, a criança precisa formular ideias e ter uma linguagem oral desenvolvida. Os
resultados da pesquisa evidenciam que os professores compreendem a importância de se
trabalhar esta modalidade em sala de aula, visando um melhor aprendizado de seus alunos,
promovendo o seu desenvolvimento, sua autonomia.
12
Consideramos um número pequeno de publicações para um intervalo de dez anos, atribuímos a isso um
desinteresse pela temática oralidade nos últimos anos, embora ela seja enfatizada nos documentos oficiais. Para
continuidade do estudo, combinaremos outros termos de busca e utilizaremos da pesquisa documental.
No bojo dessa pesquisa, o trabalho com o livro didático possui centralidade, sendo o
trabalho com textos literários realizado com baixa frequência, especialmente quando à
finalidade é a fruição. Nesse sentido, o estudo ainda retrata a fala das crianças sinalizando o
desejo que a professora lesse mais para elas.
De modo semelhante, Azevedo e Galvão (2015) apresentam uma pesquisa que buscou
refletir sobre a modalidade 13 oral e o ensino de Língua Portuguesa no ensino fundamental, bem
como entender o que os docentes do ensino básico pensavam sobre tais questões.
A partir das análises foi possível verificar que muitos docentes ainda não detêm de
clareza sobre esta modalidade de ensino, o que comprova que se deve haver um maior estudo
com relação a noções teóricas, para se evitar um ensino vazio e sem fundamentação, visando
que tanto a escrita quanto a oralidade merecem colocações semelhantes na sociedade.
Silva (2015) analisou as marcas de oralidade em textos escritos, tendo como enfoque os
diálogos literários produzidos em livros didáticos utilizados nas escolas. O estudo apresenta
uma breve discussão de como a oralidade é vista sem relevância nos âmbitos da escola em
comparação da escrita, tendo ainda uma forte convicção de que na escola é “lugar para
escrever”.
13
O termo modalidade na Base Nacional Comum Curricular é utilizado tanto para tratar das modalidades de ensino
na educação básica, quanto para se referir à oralidade. “Grande parte das habilidades descritas nos eixos Leitura e
Produção de texto também se relaciona com o eixo Oralidade. Foram incluídas no quadro a seguir somente
habilidades que se relacionam com gêneros e aspectos mais específicos da modalidade oral.” (BRASIL, 2017, p.
79).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho buscou evidenciar a literatura, considerada nas práticas discursivas sobre
oralidade em sala de aula. Para tal, levantamos estudos sobre a temática oralidade, práticas de
linguagem e anos iniciais dos últimos dez anos (2010-2020). A partir da leitura e análise dos
textos, foi possível perceber que, no tocante a oralidade, existe um trabalho com a literatura,
desempenhado por professores nos anos iniciais ainda que motivado pela compreensão da
literatura como instrumento pedagógico.
Nesse sentido, em muitos dos casos evidenciados, a literatura é meio para desenvolver
a oralidade (leitura oralizada), potencializar a alfabetização ou aprendizagens previstas para as
crianças nos anos iniciais do EF. Dentre as práticas registradas pelos pesquisadores, podemos
Entendemos que a oralidade sendo trabalhada como leitura em voz alta merece novas
problematizações ao campo de estudos sobre a temática, entretanto, de certo modo, essa prática
viabiliza a leitura do texto literário e o acesso à literatura. Os estudos evidenciaram ainda a
compreensão de que, com a saída das crianças da EI para o EF, parece existir uma diminuição
da contação de história e de um trabalho com a Literatura que focalize a fruição, o prazer e a
experiência com o texto literário. Nesse sentido, chama a atenção o fato de as próprias crianças
relatarem sobre a falta que sentem de que a professora leia para elas, indicando o uso excessivo
da repetição e do livro didático.
REFERÊNCIAS
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários Escritos. 5 ed. Rio de Janeiro: Ouro
sobre Azul/ São Paulo: Duas Cidades, 2011.
FREITAS, Sara Helena da Costa; MACHADO Miriam Raquel Piazzi e TEIXEIRA, Josina
Augusta Tavares. Desafios no ensino da oralidade. Revista Cadernos de Estudos e Pesquisas
na Educação Básica, Recife, v.2,n.1,p.197-215, 2016. CAp- UFPE. Disponível em:
https://periodicos.ufpe.br/revistas/cadernoscap/article/viewFile/14977/17812 Acessado em 25
de abril de 2021.
FONSECA Aline Lopes da; LIMA, Gustavo Henrique da Silva; VILELA, Sara Talita Cordeiro.
Atividades com o oral nos anos iniciais do ensino fundamental. Letras, Santa Maria,
Especial 2020, n. 01, p. 485-501. Disponível:
https://periodicos.ufsm.br/letras/article/view/38835/pdf Acessado em 25 de abril de 2021.
SILVA, Luiz Antônio da. Análise da Conversação e oralidade em textos escritos. Filol.
Linguíst. Port., São Paulo, v. 17, n. 1, p. 131-155, jan./jun. 2015 ISSN 1517-4530
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2176-9419.v17i1p131-155 24 de abril de 2021.
TASSONI, Elvira Cristina Martins. A leitura e a escrita nos anos iniciais do Ensino
Fundamental: a prática docente a partir da voz dos alunos. EccoS – Rev. Cient., São Paulo,
n. 27, p. 191-209, jan./abr. 2012. Disponível em:
https://periodicos.uninove.br/eccos/article/view/3383/2262 Acessado em 25 de abril de 2021.
RESUMO
Antes marcada por um caráter estritamente pedagógico, escolar e formativo
(CADEMARTORI, 2010), a literatura infantil se ressignificou com o passar do tempo,
permitindo à criança o desenvolvimento do senso crítico e o exercício da fruição por meio da
linguagem. Na verdade, esse caráter pedagógico da literatura infantil era associado à imagem
da criança como um ser imbecil, bestializado e inocente (BORDINI, 1986), o que tem sido
descontruído por diversos autores que sucederam Olavo Bilac, cuja obra fora encomendada
para ser trabalhada em sala de aula com a finalidade de ser ferramenta de ensino/instrução.
Dado o exposto, considerando a realidade da sociedade deste milênio, marcada pelo intenso
debate em torno de questões relacionadas à diversidade, seja ela de gênero, etária, seja de raça,
a poesia infantil coloca-se como materialidade discursiva capaz de permitir a reflexão das
crianças acerca dessa temática, com vistas ao exercício pleno da cidadania por esses sujeitos.
Nessa perspectiva, o presente estudo objetiva apresentar uma proposta para abordagem da
temática da diversidade na poesia infantil; para tanto, o corpus utilizado é composto por dois
poemas: “Pessoas são diferentes”, de Ruth Rocha, e “Diversidade”, de Tatiana Belinky. Assim,
será apresentada uma proposta de transposição didática desses poemas para a promoção da
leitura literária para crianças, com vistas a favorecer o trabalho com a poesia infantil em sala
de aula de forma dinâmica, pragmática e crítica, com foco na abordagem da diversidade. Como
alicerce teórico, esta pesquisa tomou como base os estudos de: Cadermartori (2010), que
problematiza a noção de literatura infantil em dois vieses, o pedagógico e o literário; Bordini
(1986), cujas reflexões permeia a poesia infantil em torno das concepções de criança; Candau
(2012), Hall (2003, 2006) e Larrosa e Skilar (2001), os quais discutem acerca de identidade,
(inter)cultura(lidade), diversidade e poéticas da diferença; Pinheiro (1995), que discute sobre a
poesia e seu papel em sala de aula; e Cosson (2014a, 2014b), o qual apresenta sugestões
metodológicas para o trabalho com a literatura em sala de aula. Logo, percebe-se a relevância
de se contemplar a temática da diversidade em sala de aula para crianças, especialmente por
meio de um instrumento tão encantador, lúdico e reflexivo como é a poesia. Destarte, a proposta
de intervenção didática aqui posta mostra-se ao mesmo tempo simples e ousada, pois embora
se utilize de recursos existentes no cotidiano, traz consigo a possibilidade de novas abordagens
para o professor desenvolver em sala de aula, bem como propicia o aperfeiçoamento do senso
estético e crítico da criança.
Palavras-chave: poesia infantil, diversidade, leitura literária, ensino.
Não obstante, sob influência da Semana de Arte Moderna, houve movimentos em busca
da modificação dessa literatura pedagogizante, de vinculação “moral e cívica”. Nesse sentido,
Cademartori (2010) discute muito bem a aplicação e formação da literatura infantil em duas
perspectivas principais sobre as quais ela se desenvolveu: a pedagógica e a literária. Na
pedagógica, tem-se o que se observa em Olavo Bilac; na literária, por sua vez, corroborando
com Bordini (1986), preza-se pela não-bestialização do ser criança, considerando-a capaz de
refletir sobre a linguagem, por meio dos mais diversos temas, muitas vezes desatribuídos à
criança, como o suicídio, as perdas, dentre outros. Assim, deve-se priorizar, na produção
literária para crianças, a criticidade e a fruição como novas perspectivas da literatura infantil,
bem como a representação de aspectos pertinentes às realidades dos sujeitos, como é a
abordagem da temática da diversidade, foco deste trabalho, a qual focaliza a literatura na escola
para além do aspecto formativo-pedagógico.
Assim, com base em autores como Cadermartori (2010), Bordini (1986), Candau
(2012), Hall (2003, 2006), Larrosa e Skilar (2001), Pinheiro (1995), Cosson (2014a, 2014b),
sobretudo nas concepções de Hall (2006), o qual aponta para um deslocamento identitário na
pós-modernidade, de Larrosa e Skliar (2011), que trazem (re)interpretações sobre o mito bíblico
de Babel, apontandoo a diversidade enquanto surgida desse mito, mas que também é criticada
por muitos, e de Candau (2012), que versa sobre a reinvenção da escola a partir da
interculturalidade, dentre outros, objetiva-se apresentar uma proposta didática para o trabalho
da poesia infantil da escola sob a ótica da diversidade. Para tanto, partiu-se da seguinte
problemática:
2 A PROPOSTA DIDÁTICA
Tema: Diversidade.
Objetivos:
Realizar um “Sarau da Diversidade” com vistas a retomar tudo o que foi discutido nos
encontros desta proposta.
Assim, feita essa discussão inicial, o professor entregará a cada aluno uma folha
impressa com o poema “Pessoas são diferentes”, de Ruth Rocha, e, inicialmente,
solicitará que cada aluno faça uma leitura silenciosa do mesmo. Adiante, o professor
toma a voz e a realiza uma leitura em voz alta para que toda a turma escute. Depois,
provoca-se a turma acerca das questões referentes às diferenças abordadas no poema: a
de penteado, a de gostos, etc.
14
Disponível em: http://poesiaparacrianca.blogspot.com/2010/02/pessoas-sao-diferentes-sao-duas.html. Acesso
em 15 de agosto de 2018.
2º ENCONTRO:
Diversidade 15
Um é feioso,
Outro é bonito
Um é certinho
Outro, esquisito
Um é magrelo
Outro é e gordinho
Um é castanho
Outro é ruivinho
Um é tranquilo
Outro é nervoso
Um é birrento
Outro dengoso
Um é ligeiro
Outro é mais lento
Um é branquelo
Outro sardento
Um é preguiçoso
Outro, animado
Um é falante
Outro é calado
Um é molenga
Outro forçudo
Um é gaiato
Outro é sisudo
Um é moroso
Outro esperto
Um é fechado
Outro é aberto
Um carrancudo
Outro, tristonho
Um divertido
Outro, enfadonho
15
Disponível em: https://poesiaspreferidas.wordpress.com/2013/06/24/diversidade-tatiana-belinky/. Acesso em
15 de agosto de 2018.
De pele clara
De pele escura
Um, fala branda
O outro, dura
Olho redondo
Olho puxado
Nariz pontudo
Ou arrebitado
Cabelo crespo
Cabelo liso
Dente de leite
Dente de siso
Um é menino
Outro é menina
(Pode ser grande ou pequenina)
Um é bem jovem
Outro, de idade
Nada é defeito
Nem qualidade
Tudo é humano,
Bem diferente
Assim, assado todos são gente
Cada um na sua
E não faz mal
Di-ver-si-da-de
É que é legal
Vamos, venhamos
Isto é um fato:
Tudo igualzinho
Ai, como é chato!
Tatiana Belinky
Logo após essa discussão, apresenta-se à turma sobre o evento “Sarau da Diversidade”,
a ser realizado ao fim desta proposta, o qual contemplará as seguintes atividades:
Para casa, solicita-se que cada um escreva sobre a importância do respeito à diversidade
para a promoção de uma sociedade de paz.
3º ENCONTRO:
4º ENCONTRO:
5º ENCONTRO:
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal Editora, 2001.
COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014b.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed., 5ª reimpressão. – São Paulo:
Contexto, 2014a.
HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
RESUMO
Este artigo tem como objetivo refletir sobre o diálogo interdisciplinar entre a geografia e a obra
de João Guimarães Rosa (1976), Grande Sertão: Veredas. A intenção é de conferir que a
literatura pode ser um importante aliado para exemplificar o conceito de paisagem e lugar. Esta
aproximação visa verificar os elementos convergentes entre geografia e literatura e como eles
se articulam. A fundamentação teórica centra-se na perspectiva das abordagens culturais em
geografia. Assim, esta discussão une cultura, valores e subjetividade humana para compreender
a relação humana com o seu meio. Aqui a literatura é vista no processo de compreensão do real.
Palavras-chave: Literatura. Paisagem. Grande Sertão Veredas.
INTRODUÇÃO
O presente artigo defende a ideia de que a literatura pode ser um dos importantes
apoiadores da ciência geográfica, visto que, é possível analisar as obras literárias pelas
perspectivas das categorias que buscam sistematizar o conhecimento geográfico. A Literatura
pode abrir vários caminhos para os geógrafos conseguirem entender o espaço transformado.
Acredita-se que a Literatura pode auxiliar na forma de entender a relação da humanidade com
seus semelhantes e o meio ambiente e sua influência na organização espacial.
É indiscutível que a humanidade vive sob a égide de algumas incertezas intituladas por
muitos intelectuais como crise dos saberes, crise da modernidade, crise das ciências, crise da
geografia, passagem da modernidade à pós-modernidade. Quando Adorno e Horkhaimer (1985)
descrevem que o objetivo dos mitos era o desencantamento do mundo, são identificados fortes
indícios da constituição de uma ciência cujos pilares seriam a razão, o método, a utilidade. De
um modo profundamente radical e crítico os autores dissertam sobre a natureza desse saber que
encontrou na ciência moderna o ápice de sua legitimação.
O saber que é poder não conhece nenhuma barreira, nem na escravização da criatura,
nem na complacência em face dos senhores do mundo. Do mesmo modo que está a
serviço de todos os fins da economia burguesa na fábrica e no campo de batalha, assim
também está à disposição dos empresários, não importa sua origem. (...) A técnica é a
essência desse saber, que não visa conceitos e imagens, nem o prazer do
16
A caricatura de Borges, citada por Hissa, conta a estória de um mapa criado em um dado império, cujo rigor
cientifico era extremo, sendo esse mapa criado em uma escala 1:1 e cada ponto do mapa coincidia com seu
respectivo ponto no império. A ironia é que apesar de todo rigor e precisão conferiram ao mapa o simples status
de inútil, já que não podia sequer ser manuseado.
A etimologia da palavra crítica remete a um verbo de origem grega krinein, termo que
possui múltiplos sentidos e um dos principais significa “desmembrar para distinguir” chegar
aos fundamentos ou à origem. (LEÃO, 1977) Dito de outro modo, significa não ficar na
superfície ou na aparência das coisas, fato que nos obscurece e funciona como mecanismo
ideológico, função política clara do ensino básico tradicional. Para desenvolver a criticidade é
necessário o estabelecimento de relações dialógicas. O diálogo é uma categoria central à
emancipação do Ser:
Ser dialógico é não invadir, é não manipular, é não sloganizar. Ser dialógico é
empenhar-se na transformação constante da realidade. [...] O diálogo é o encontro
amoroso dos homens que, mediatizados pelo mundo, o ‘pronunciam’, isto é, o
transformam, e, transformando-o, o humanizam para a humanização de todos
(FREIRE, 1977, p. 43).
Não adotar uma postura invasiva, manipuladora e não ser taxativo, sloganizando 17,
requer um diálogo amoroso, onde um sujeito é capaz de se colocar no lugar do outro, por esse
17
O termo slogan tem sua etimologia no gaélico e significa grito ou mesmo grito de guerra, atualmente é
utilizado pela publicidade na guerra entre empresas. (MESQUITA, 2002).
Uma questão fundamental a ser inserida nesse debate é o lugar ocupado pelo conteúdo
no ensino de Geografia. Para um grande número de professores o conteúdo possui um fim em
si mesmo (SANTOS, 2012) o que importa é conseguir ensiná-lo porque ele é importante. Daí
que entra a questão: por que a hidrografia é importante em si mesma? Por que estudar o espaço
geográfico é importante? O pressuposto aqui adotado é que nenhum conteúdo possui qualquer
importância em si mesmo. Os conteúdos podem adquirir importância na medida em que
possibilita criar uma experiência cognitiva no aluno, algo que no processo inter-relacione sua
própria experiência construindo uma experiência de hidrografia que possua sentido para ele.
Por isso, o diálogo e alteridade são tão enfatizados nesse caminho de construção do
conhecimento. Ensinar os conteúdos geográficos por meio do diálogo e alteridade é ensinar a
formular perguntas e respostas. Quando o professor ensina sobre os rios, no conteúdo
hidrografia, o conceito de rios e hidrografia é o menos importante e talvez deva ser o último a
ser colocado, outro sim, o que importa é quais perguntas serão emuladas e quais respostas serão
desenvolvidas em discurso que não é colocado pronto pelo professor e sim, construído pelo
próprio aluno.
“O senhor vê, nos Gerais longe: nuns lugares, encostando o ouvido no chão, se escuta
barulho de fortes águas, que vão rolando debaixo da terra”. (ROSA, 1986, p. 412).
É possível perceber na citação/epígrafe em Riobaldo (ex-jagunço, personagem central e
narrador) uma relação muito própria e que se utiliza de sua experiência, sobretudo sensorial
(visão, audição, paladar, olfato e tato), para falar das paisagens do sertão. Isso é encontrado
com frequência nas mais de 800 páginas da obra, cada qual com sua riqueza e entrelaçamento
com elementos da paisagem muito particular, próprio do mundo do personagem e de como ele
a percebe. Tal característica é enriquecida ainda mais devido aos recursos linguísticos que
Guimarães Rosa utiliza para escrever como: neologismos, vocábulos coloquiais e eruditos,
expressões regionais, entre outros. Apesar de tantos recursos e a ausência de capítulos trazerem
mais dificuldade ao leitor e requerer uma leitura bastante atenta, são também exatamente esses
elementos que possibilitam uma riqueza na profusão de imagens e subjetividades a serem
construídas. Riobaldo sinaliza vários percursos no sertão, nos mostrando as paisagens em seus
aspectos físicos, sociais e regionais e possibilitando ao leitor experimentar a paisagem por meio
do narrador.
[...] senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada
pega a latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor
tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos
gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia.
Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que
tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um
pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive
seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade (ROSA, 1976, p. 04).
Além disso, possibilitar o que Cavalcanti sugere como heterogeneidade da paisagem:
Cada tipo de paisagem é a reprodução de níveis diferentes de forças produtivas; a
paisagem atende a funções sociais diferentes, por isso ela é sempre heterogênea; uma
paisagem é uma escrita sobre a outra, é um conjunto de objetos que têm idades
As representações não são compreendidas como mimese do que se diz ser a realidade
(como se houvesse uma realidade alheia a representação), mas como múltiplas
possibilidades de construção de imagens, leituras do mundo denominado real,
sistemas de significações produzidos pelos homens e suas formas de olhar, ver,
imaginar e grafar o espaço em que vivem. (MELO, 2006:26)
Não é tarefa fácil, visto que a geografia construiu grande parte de seu conhecimento
através de uma representação descritiva do real. Tarefa difícil mais necessária, se levarmos em
conta o que Edgar Morin (2003) considera como necessário à ciência: produções menos
compartimentadas e um pensamento mais complexo, contextualizado e reintegrado.
Um dos caminhos possíveis para que a Geografia possa ganhar novos sentidos na sala
de aula é com a mesma adquirindo novos sentidos no meio acadêmico. Utilizando a obra de
Guimarães e suas nuances não dicotômicas a partir do que é expresso como sertão para
(re)inovar o pensar/fazer geográfico e enfim que as leituras produzidas por esse movimento
cheguem às nossas salas de aula e revigoram o ensinar e aprender geográfico. Observemos mais
um trecho de uma fala de Riobaldo:
Lá era, como ainda hoje é, mata alta. Mas, por entre as árvores, se podia ver um carro-
de-bois parado, os bois mastigavam com escassa baba indicando vinda de grandes
distâncias. Daí, o senhor veja: tanto trabalho, ainda, por causa de uns metros de água
mansinha, só por falta duma ponte. Ao que, mais, no carro-de-bois, levam muitos dias,
para vencer o que em horas o senhor em seu jipe resolve. Até hoje é assim, por barco.
(ROSA, 1976, p.85).
Em breves linhas podemos alçar vôo e refletir sobre cultura, sobreposição de
temporalidades/espacialidades, expressões vocabulares do interior sertanejo, economia
pecuária, construir/perceber paisagens e tantos outros elementos que podem servir como ponto
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 13ªEdição. Editora Paz e Terra.Rio de Janeiro: 1984.
HISSA, Cássio Eduardo Viana. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise
da modernidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002
Lovison, A. M., & Camara, G. D. (2008). Outramente que ser: revolvendo questões à luz da
pedagogia do oprimido. Veritas (Porto Alegre), 53(2). https://doi.org/10.15448/1984-
6746.2008.2.4454
MARTINS, Rosa Elisabeth Militz Wypyczynki. A trajetória da geografia e seu ensino no século
XXI. In: TONINI, Ivaine Maria. O ensino de geografia e suas composições curriculares.
Porto Alegre: UFRGS, 2011, p. 61-75.
MELO, Adriana Ferreira de. O lugar-Sertão: grafias e rasuras. 2006. Dissertação (Mestrado
em geografia) - Programa de Pós-Graduação em geografia, Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte. Disponível em:
http://dspace.lcc.ufmg.br/dspace/bitstream/1843/MPBB6VRHHG/1/Disserta%C3%A7%C3%
A3o+Adriana+Melo.pdf. Acesso em: 28 de setembro de 2018.
MESQUITA, Roberto Melo. Gramática da Língua Portuguesa. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, repensar o pensamento. 8. ed.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003 b.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 11. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1976.
SANTOS, Milton. O mundo não existe. Veja, Rio de Janeiro, Editora Abril, ano 27, n.46, 16
nov. 1994. Entrevista concedida a Dorrit Harazim.
TUAN, Yi-fu (1979) – Thought and Landscape. The Eye and the Mind’s Eye. In
D.W.MEINIG (ed.), ob. cit.: 89-102, 1979.
RESUMO
Tendo em vista a influência da sociedade na apreciação da mulher tradicional e conservadora,
e de um homem machista e dominador, este capítulo tem por objetivo analisar a construção da
personagem feminina na obra Lucíola, de José de Alencar, a partir da influência do
patriarcalismo vivenciado no século XIX. Para fundamentar a pesquisa baseamo-nos,
principalmente, em Candido (1996), Saffioti (2011) e Barreto (2004). Nossa abordagem
metodológica se deu através da leitura integral da obra de Alencar, em seguida, realizamos uma
análise aprofundada da construção de Lúcia sob o olhar de Paulo; destacamos alguns aspectos
como, o social versus natural; como a sociedade atua para o desfecho de Lúcia na trama; e o
olhar sob a crítica de gênero. Diante disso, a análise leva a concluir o modelo que a sociedade
padroniza como digna de se casar, enquanto a figura masculina é tida como o centro da família.
Por fim, este trabalho contribuirá para a comunidade literária porque dará um melhor
entendimento sobre as influências do patriarcalismo na escrita literária, mostrando que elas
possuem reflexos de comportamentos sociais.
PALAVRAS-CHAVE: Lucíola. Patriarcalismo. Sociedade.
INTRODUÇÃO
José de Alencar, antes de escrever Lucíola em 1862, se dedicou por três anos ao teatro
– de 1857 a 1860, e com isso, nota-se a marca da experiência teatral na firmeza do diálogo entre
os personagens, o senso das situações reais nas cenas e o gosto pelo conflito psicológico durante
os capítulos de Lucíola (CANDIDO, 1997).
Na obra de Alencar, Lúcia tem sua descrição feita sob o olhar de Paulo Silva, narrador
dos fatos. Paulo se constitui como um homem jovem possuidor de valores patriarcais, que estão
refletidos na descrição de Lúcia. Na descrição, Paulo adota quatro condutas. Inicialmente, ele
a observa de uma perspectiva na qual se apresenta encantado pela imagem; no segundo
momento, mostra-se perturbado com a dualidade daquela mulher; revela-se também um
dominador e manipulador; e mais, age como um idealizador e salvador de Lúcia.
Após ter a certeza de Lúcia ser uma prostituta, com as insinuações de Sá, Paulo a olha
de uma nova maneira, passou a descrever com uma passagem constante de uma postura virginal
para uma sedutora. Essa dualidade gerou uma confusão psicológica para Paulo, havendo uma
visão preconceituosa da posição ocupada por ela, contrastada com o seu eu interior, de mulher
cândida. Este trecho mostra bem os nuances da personalidade de Lúcia:
— Acabemos com isso, Lúcia. Sabes o que me traz à tua casa: se te desagrado por
qualquer motivo, dize francamente, que eu tomo o meu chapéu e não te aborrecerei
mais. Se pensas que valho tanto como os outros, não percas o tempo a fingir o que
não és. Esta comédia de amor pode divertir os mocinhos de 18 anos e os velhos de 50;
mas afianço-te que não lhe acho a menor graça. (ALENCAR, 1988, p. 17)
Na referida fala, há uma manipulação de Paulo para que a cortesã cumpra sua obrigação,
devendo ela apenas satisfazer os desejos, assim, demonstra que ele não está ali para cortejá-la
e sim para possuí-la. Conseguindo o que desejava, tem-se, então, prevalência de uma postura
dominadora intensificada após a orgia na casa de Sá, pois Paulo adota com mais frequência
uma postura de possuidor de Lúcia, notória no modo com o qual a descreve.
Compreenda agora por que a bacante ficou fria e gelada para mim, na sua ardente
lascívia. A mulher que com seus encantos cevava outros olhos que não os meus, a
estátua animada de desejos que eu não havia excitado, em vez de provocar em mim a
admiração, indignou-me. Tive vergonha e asco, eu, que na véspera apertara com
delírio nos meus braços essa mesma cortesã, menos bela ainda e menos deslumbrante,
do que agora na sua fulgurante impudência. (ALENCAR, 1988, p. 34)
Em uma terceira perspectiva, o protagonista faz sobressair às condutas de boa mulher,
conforme o desejado pela sociedade, tenta esconder o que fazia de Lúcia, uma mulher incapaz
de estar no centro da sociedade, por outro lado, evidencia em suas descrições as percepções do
Nesse sentido, Barreto (2004) postula que o referido sistema ideológico é uma estrutura
das quais se assentam as sociedades contemporâneas. Ainda de acordo com a autora, uma
sociedade patriarcal se caracteriza “por autoridade imposta institucionalmente do homem sobre
mulheres e filhos no ambiente familiar, permeando toda a organização da sociedade da
produção e do consumo, da política, à legislação e à cultura” (BARRETO, 2004, p. 64).
Na obra Lucíola, de José de Alencar, a personagem Lúcia depois que conhece Paulo vai
deixando as suas características como cortesã e se transformando em uma mulher dentro dos
moldes do patriarcalismo e isso é perceptível no seguinte trecho: — É indiferente para ti que
eu veja aquela francesa! — Tenho acaso o direito de me queixar? Disse com melancolia. O
prazer que ela lhe promete, sinto que já não posso dá-lo. (ALENCAR, 1988, p. 73).
Com esse trecho, percebemos que Lúcia se comporta como uma mulher do século XIX,
pois as mulheres desse período sabiam que eram traídas por seus maridos, mas, mesmo assim,
continuavam casadas. Nessa época, os casamentos eram arranjados, então, os homens que não
Lúcia, depois de já se sentir atraída por Paulo, acaba cedendo e seguindo as ordens do
personagem. Na passagem a seguir, ele deixa bem claro que ela o obedece.
O constrangimento de Lúcia tinha ido sempre de aumento; mas nunca, até ali, o meu
desejo encontrara uma resistência; nunca uma desculpa, um pretexto, o encontraria.
Ainda pronta para sair, no momento de entrar no carro, já no teatro ou passeio, bastava
uma palavra minha para fazê-la voltar, muda e fria, é verdade, mas obediente e
resignada. Em qualquer ocasião, a qualquer hora do dia ou da noite, se meu lábio
procurava o seu, achava-o seco e áspero, mas dócil à carícia. (ALENCAR, 1988, p.
75).
Nesse trecho, percebemos que há subordinação da personagem em relação a Paulo, pois
mesmo pronta para sair, basta o personagem dar uma ordem para que ela deixe o que está
fazendo somente para atender a um pedido dele. Em vista disso, podemos destacar uma postura
dominadora de Paulo, assim como uma dependência emocional de Lúcia, a qual não consegue
desenvolver uma postura negativa, quando se trata de satisfazer as vontades do parceiro.
O SOCIAL X NATURAL
Lúcia foge às regras da época porque ela se mostra uma personagem com atitude e dona
de bens, algo inédito para a época, pois as mulheres desse período não podiam se configurar
nos moldes de Lúcia. Ela era totalmente independente, tinha sua casa, sua fortuna e frequentava
livremente os lugares boêmios da sociedade carioca, pois ela era uma cortesã.
Lucíola foi produzida sob uma visão marcada por uma crítica social a respeito da figura
feminina do século XIX, visto que apresenta a mulher do período Romântico. Dessa forma,
retrata questões dos valores burgueses, de uma mulher fora dos padrões desejados pela
população, de uma temática voltada para preconceitos tanto da parte da sociedade como do
próprio amado da personagem Lúcia. Diante disso, busca-se analisar a forma como a sociedade
atua no desfecho de Lúcia.
Lúcia é uma mulher educada, branca, bonita, com traços de uma dama respeitável, que
é pura. Porém, o olhar que a torna uma mulher não casável é o seu passado, pois diante do que
a família estava passando, doente por conta da febre amarela, e sem recursos financeiros para
o tratamento, teve que se submeter à prostituição a fim de obter dinheiro para tratá-los. E nisso,
seu pai ficou muito envergonhado pela atitude da filha e a expulsou de casa, já que haveria
julgamentos a ela por não ser mais uma mulher digna de um casamento.
A personagem é vista pelas pessoas ao seu redor apenas como uma mulher bonita, não
sendo uma senhora, a qual para ser considerada esta última precisa ser pura, cândida, estar sob
o domínio do pai para em seguida ser submissa ao marido. Lúcia é totalmente o oposto das
Nesse sentido, a mulher devia seguir regras de conduta e comportamento aceitável pela
sociedade, em que o perfil da mulher como modelo é ter uma educação, ter posses de bens,
emprego de repercussão, para quando casar apresentar-se como uma mãe educadora, presente
para a maternidade, e cuidar do marido, dos filhos e do lar. Em contrapartida, Lúcia é uma
personagem que tinha bens obtidos de forma impura, através do seu trabalho nos salões,
gerando uma repulsa por parte da sociedade
Por conta disso, a personagem Lúcia não pôde ter um final feliz com o seu amado Paulo,
justamente porque ela já não era mais digna de se casar, tinha a consciência de que não poderia
formar uma família com Paulo, o que é retratado no momento da sua morte, quando não aceita
ter a criança, até mesmo quando pede a ele para que se case com sua irmã, pois ela, sim, era
digna do casamento. Mesmo diante de toda a situação pelo qual estava passando, Lúcia ainda
sonhava em ter uma vida feliz, romântica, onde não poderia julgá-la.
Nesta seção, será exposto um olhar sob o viés da crítica de gênero, realizadas à obra
Lucíola, de José de Alencar, através da análise mais aprofundada do discurso proferido pelo
personagem-narrador, Paulo Silva, no que diz respeito, à figura feminina representada por
Lúcia/ Maria da Glória.
Como a história representa a sociedade do final do século XIX e início do século XX,
sabe-se que predominavam na época rígidas regras de condutas de comportamentos à mulher,
e que esta, sofria diversos tipos de privações e preconceitos perante a sociedade. A fim de evitar
maiores constrangimentos e/ou exclusão social, as mulheres eram obrigadas a aceitar as
imposições feitas em relação a elas.
Paulo Silva durante toda a narrativa descreve suas impressões e sentimentos com relação
à Lucíola, sob a ótica masculina e baseado no contexto social em que ele estava inserido, ou
seja, numa sociedade altamente patriarcal/ machista, moldada por preceitos cristãos e poderes
econômicos favoráveis.
Para Sant´Anna (1984), existem duas termologias que definem a mulher que
corresponde às expectativas esperadas naquela época: a “mulher-flor” e/ou “mulher-
esposável”, que significa aptas para o matrimônio, bem vistas e quase idealizadas. Porém,
Lúcia, em consequência de suas escolhas, é colocada à margem da sociedade, e, portanto,
considerada: “mulher comível” ou “mulher fruto” (SANT´ANNA, 1984, p. 22).
Com isso, percebe-se que a sociedade da época exerce um papel importante para o
comportamento da personagem dentro da trama e para o desfecho do romance. Além disso,
toda a percepção sobre a personagem se constrói diante da narrativa masculina feita por Paulo,
o qual reflete em seus posicionamentos e colocações relacionadas à Lúcia de acordo com as
suas vivências e valores patriarcalistas. Por fim, entende-se que o desfecho dado à Lúcia pode
ser compreendido como uma forma de punição social, por ela ter vivido fora dos padrões, de
todo modo seria punida, apesar de ter se refugiado no campo, teve como fim a morte.
REFERÊNCIAS
ALVES, Lidiane Cossetin. COSTA, José Carlos da. Lucíola e a figura feminina na narrativa de
José de Alencar. In: Anais do SLHM. 2017.
CANDIDO, A. Os três Alencares. In: Formação da literatura brasileira. ( 200- 211). 1997.
DEL PRIORI, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.
SANT` Anna, Affonso Romano de. O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa
cultura através da poesia. São Paulo: Brasiliense, 1984.
RESUMO
A literatura fantástica se consolidou na Europa no século XIX e desde então tem sido objeto de
estudo para diversas pesquisas literárias. Ao longo do século XX, como resultado das mudanças
na sociedade moderna, o gênero evoluiu e adquiriu novas formas, sendo o (neo)fantástico uma
delas. No Brasil, Murilo Rubião é o principal representante do gênero. Desse modo, este
trabalho tem como objetivo apresentar os resultados obtidos através da análise de sua obra. Esta
pesquisa é de natureza bibliográfica e foi embasada nas reflexões teóricas sobre a literatura
fantástica a partir dos estudos de Tzvetan Todorov (1997), Jaime Alazraki (2001) e David Roas
(2014); nos fundamentos sobre a alegoria, utilizamos os pressupostos teóricos de Walter
Benjamim (1984) e Flávio Kothe (1986); além de outras referências sobre Murilo Rubião, como
os estudos de Jorge Schwartz (1981), Aldemaro Taranto (1995), Maria Cristina Batalha (2011),
entre outros. Por meio do estudo da produção literária de Rubião, constatou-se que, em sua
obra, o insólito se configura de forma alegórica de modo que os personagens e as situações que
eles vivenciam são representações simbólicas da vida moderna. Temáticas como o trabalho
alienado, a objetificação do ser humano, o pessimismo etc., aparecem em seus contos como
críticas intermediadas e comunicadas através da alegoria e mostram o absurdo da realidade.
Também observamos que o espaço urbano é um elemento essencial para composição de suas
narrativas, uma vez que retrata o indivíduo perdido em meio ao caos do cotidiano, no qual
mesmo estando cercado de pessoas se sente sozinho.
Palavras-chave: Literatura. (Neo) fantástico. Murilo Rubião. Alegoria.
INTRODUÇÃO
A obra do contista mineiro Murilo Rubião já foi analisada por diversos estudiosos, e
uma premissa em comum é a dificuldade de classificar o tipo de conto do autor. Como afirmou
a pesquisadora Manuela Ribeiro Barbosa, os pesquisadores sublinham a simplicidade e
naturalidade com que Rubião relata os fatos sobrenaturais, no entanto, fadigam-se em tentar
classificar o corpus do contista como ““realismo mágico”, “maravilhoso”, “estranho”,
“fantástico”, “insólito”, irreal”, “su(pra)rreal, “alegórico”, “simbólico”, “nonsense” ou
“absurdo””. (BARBOSA, 2014, p. 77).
Essa condição se deve ao fato de Rubião fazer parte de uma nova modalidade da
literatura fantástica instaurada no século XX, que tem o escritor Franz Kafka como o precursor
O fato de Gregor Samsa, personagem principal da obra kafkiana, acordar em uma manhã
transformado em um inseto gigante e viver dessa forma ao longo de toda a narrativa sem
despertar medo ou se quer espanto, por parte tanto dele quanto de sua família, mostra que não
é possível enquadrá-la nos esquemas todorovianos, como afirma o próprio crítico “o relato
kafkiano abandona o que tínhamos considerado como segunda condição do fantástico: a
vacilação representada dentro do texto, e que caracteriza mais particularmente os exemplos do
século XIX” (TODOROV, 2004, p.90).
Desse modo a partir do século XX, surge um novo fantástico. David Roas e Jaime
Alazraki são dois estudiosos que se debruçam sobre essas novas produções e apresentam uma
perspectiva analítica que não desconsidera suas origens no fantástico tradicional, mas enfatiza
suas características e elementos próprios. Segundo Roas (2014, p.67) “o que caracteriza o
fantástico contemporâneo é a irrupção do anormal em um mundo aparentemente normal, mas
não para demonstrar a evidência do sobrenatural, e sim para postular a possível anormalidade
da realidade”, ou seja, é a inversão do que é apresentado no fantástico tradicional, no qual a
realidade apresenta uma construção estável e passa a ser posta em dúvida após o surgimento do
fenômeno sobrenatural, nessas novas narrativas primeiro temos o sobrenatural e a partir dele é
que a realidade e os acontecimentos vão se configurando.
De acordo com sua análise, essas novas produções são diferentes do fantástico
tradicional, porque causa “uma perplejidad o inquietud sí, por lo insólito de las situaciones
narradas.” (ALAZRAKI, 2001, p.227). Porém, isso é construído de forma muito sutil no texto
neofantástico por meio de três elementos: a visão, a intenção e o modus operandi. No que se
refere a visão, trata-se da característica responsável por apresentar a ideia de que no
neofantástico temos duas realidades. Sobre a qual Alazraki (2001, p. 276) afirma:
Por su visíon, porque si lo fantástico assume la solidez del mundo real – aunque para
“poder mejor devastralo”, como decía Caillois –, lo neofantástico asume el mundo
Por último, o modus operandi. Essa característica diz respeito ao fato de que no
neofantástico o fenômeno sobrenatural é apresentado de início para, em seguida, o texto ir sendo
construído a partir dele, à medida em que vai tornando-o em algo socialmente aceitável. Isso
porque, diferente das narrativas tradicionais, o sobrenatural não surge como uma ruptura
abrupta da realidade, mas é incorporada a ela, existe paralelamente como parte dela.
Esse aspecto da literatura fantástica contemporânea que já havia sido observado também
por Tzevtan Todorov, vejamos:
Em linhas gerais, o conto é sobre um jovem de 20 anos apaixonado que escreve e vende
seus poemas para sobreviver, até que um dia tem uma experiência sobrenatural ao ser levado
para O País da Quimera, mundo no qual ele observa o apego às fantasias como um viés para
fuga da dura realidade. Somado a esse, outros contos machadianos também podem ser
classificados como fantásticos tais como “O anjo Rafael” (1869), “Os óculos de Pedro Antão”
(1874) e “A mulher pálida” (1881). Ao analisar essa característica na escrita machadiana,
Miranda & Cézar afirmam que o fantástico em Machado de Assis é “um fantástico mitigado e,
na maioria das vezes, explicável a partir da retomada de consciência da personagem”. (2014, p.
633)
Além do escritor carioca, Álvares de Azevedo com Noite na Taverna (1855), sob
influência do clima romântico bayroniano, apresenta narrativas nas quais o insólito é um
elemento essencial. Ao longo de toda a obra somos apresentados a personagens ébrios, orgias,
assassinatos, mas é em especial no episódio em que Solfieri se apaixona e mantém relações
sexuais com um cadáver que o absurdo se torna explícito. Na verdade, esse arquétipo da
noiva/amante cadáver é bastante recorrente na literatura, em alguns casos como no poema
“Lenore” (1774) de Gottfried August Bürger, o amante volta do mundo dos mortos para buscar
sua amada, enquanto “A morta amorosa” (1836), de Theóphile Gautier é uma bela dama de
natureza diabólica que seduz um jovem padre. Dessa forma, observamos que Álvares de
Azevedo em sua obra retoma o insólito e traços do fantástico através de topos literários que já
eram universais e se alimenta da matéria mítica, das histórias mal-assombradas e da tradição
oral.
Os contos de Rubião passaram por várias reedições, a maioria delas realizadas pelo
próprio escritor, que tinha uma preocupação excessiva com a linguagem e a clareza. Esse fato,
segundo Taranto, já é uma marca do caráter insólito de sua escrita “não resta dúvida de que
nesse processo de fazer/refazer, já está instalado o insólito, marca registrada da obra muriliana,
caracterizado no fato de o escritor jamais se satisfazer com o que seriam os limites de sua
escrita” (TARANTO, 2002, p.15). Ainda sobre essa relação angustiante com a escrita, o próprio
Murilo Rubião afirmou:
Sempre aceitei a literatura como uma maldição. Poucos momentos de real satisfação
ela me deu. Somente quando estou criando uma história sinto prazer. Depois é essa
tremenda luta com a palavra, é revirar o texto, elaborar e reelaborar, ir para frente,
voltar. Rasgar. (RUBIÃO, 1992 apud ALEIXO, 2008, p. 191).
Ou seja, escrever era um processo doloroso, pois exigia muito de seus esforços e
obviamente lhe causava bloqueios, não de criatividade como o autor mesmo afirma ter
facilidade para criar as histórias, mas de estruturação de seus contos, a significação deles, e por
isso a troca incessante de palavras. Ao todo, o escritor deixou um total de 32 contos publicados
em sete livros. São eles: O ex-mágico (1947), A estrela vermelha (1953), Os dragões e outros
contos (1965), O convidado (1974), O pirotécnico Zacarias (1974), A casa do Girassol
Vermelho (1978) e O homem do boné cinzento publicado em 1990, um ano antes de sua morte.
Assim como a obra kafkiana, a literatura fantástica produzida por Murilo Rubião não se
enquadra nos moldes todorovianos, pois uma das características dos contos rubianos é a
aceitação do insólito, não há sensação de hesitação, ou mesmo choque entre o real e o irreal.
Nos contos de Murilo Rubião, o sobrenatural se apresenta por diversas formas que, mesmo
Além disso, a essência de seus contos é a crítica à modernidade, por isso, em sua
maioria, os espaços das narrativas são ambientes urbanos que tematizam o trabalho alienado, a
objetificação do ser humano, o consumismo exacerbado, os valores corrompidos, o sistema, o
pessimismo, etc. São críticas que aparecem intermediadas e comunicadas através de alegorias
e nos mostram o absurdo da realidade.
Além desses dois, Todorov é outro teórico que se debruçou sobre a alegoria em seus
estudos, especificamente sobre a sua presença na narrativa fantástica:
Em primeiro lugar, a alegoria implica a existência de pelo menos dois sentidos para
as mesmas palavras; nos diz às vezes que o primeiro sentido deve desaparecer, e outras
que ambos devem estar juntos. Em segundo lugar, este duplo sentido está indicado na
obra de maneira explícita: não depende da interpretação (arbitrária ou não) de um
leitor qualquer [...] Se o que lemos descreve um elemento sobrenatural e, entretanto,
é necessário tomar as palavras não em sentido literal a não ser em outro sentido que
não remete a nada sobrenatural, já não há capacidade para o fantástico.” (TODOROV,
2004, p.35).
Asi se explica tambien que - contra la opinion de Todorov - se vea el caso de que lo
alegórico nos refuerce el nivel literal fantástico en lugar de debilitarlo, porque el
contenido alegórico de la literatura contemporánea es a menudo el sin sentido del
mundo, su naturaleza problemática, caótica e irreal. (BARRENECHEA, 1972, p.295)
Isso porque na literatura fantástica contemporânea existe um forte teor crítico social, e
a alegoria é o recurso perfeito para expressar a mensagem crítica de forma simbólica, pois
apresenta a realidade em diálogo com uma nova configuração de mundo que torna estranho o
que até então era normal, levando o leitor a enxergar o conhecido por outras formas, com um
olhar mais aguçado, menos automático.
No que se refere ao caráter alegórico presente nos contos de Murilo Rubião, Schwartz
(1981, p.77) afirma que:
No livro intitulado Murilo Rubião: A poética do Uroboro (1981), Jorge Schwartz faz
uma análise de toda a obra do escritor mineiro. O crítico identifica duas características muito
recorrentes nos contos rubianos: a tendência ao infinito e a circularidade. Essas alegorias
possuem seu sentido expresso já no título da análise, uma vez que o Uroboro aparece em várias
Schwartz elenca sete contos nos quais essa tendência ao infinito pode ser observada de
formas diferentes. Nos contos “O Convidado” e “A fila”, o infinito se dá por meio da espera,
pois, no primeiro, todos aguardam um convidado que nunca chega e no segundo o personagem
principal está preso em uma fila que cresce dia após dia, impedindo-o de alcançar seu objetivo.
Em “Aglaia” e “Bárbara” as protagonistas femininas configuram dois outros tipos diferentes de
infinito. Aglaia, pelo fato da reprodução contínua, gerando crianças de modo incontrolável;
Bárbara, porque possui desejos incessantes e a medida em que são realizados seu corpo aumenta
mais e mais.
— Nesta construção não há lugar para os pretensiosos. Não pense em terminá-la, João
Gaspar. Você morrerá bem antes disso. Nós que aqui estamos constituímos o terceiro
Conselho da entidade e, como os anteriores, jamais alimentamos a vaidade de sermos
o último. (RUBIÃO, 2010, p. 61).
Neste conto, assim como em outros textos de Rubião, não temos a interrupção do
fenômeno sobrenatural na narrativa, algo que rompa bruscamente com as leis naturais. Embora
pareça absurda a descrição de um edifício com “ilimitado número de andares”, não há, de fato,
algo de natureza sobrenatural. No entanto, o insólito é ocasionado não por algo transcendental,
mas pelo exagero do processo de construção que contraria a normalidade. Conforme aponta
Schwartz, a hipérbole aparece nas obras de Murilo Rubião como “figura-chave que desvenda
os mecanismos fantásticos da narrativa”. (SCHWARTZ, 1981, p. 70). Assim, Rubião utiliza
acontecimentos da realidade cotidiana como pano de fundo para seus contos, como a construção
de um prédio ou uma simples espera em uma fila, e os exageram, a ponto de convertê-los em
algo absurdo e insólito.
Nos episódios que se seguem, ele experimenta um tipo de euforia. Com a morte dos
antigos membros do Conselho, João Gaspar se torna o grande responsável pelo projeto.
Contudo, uma vez que se encontra preso na rotina diária de trabalho, esse sentimento é
substituído pelo desânimo e crises de ansiedade:
O herói aumenta as tentativas de fazê-los desistir por meio de seus discursos exaustivos,
mas nada os convence e o prédio vai crescendo ainda mais. Schwartz observa que nessa parte
a narrativa retoma a história da Torre de Babel, pois a incompreensão das palavras do
personagem lembra a confusão de línguas que colocou fim na construção da torre:
Nunca me preocupei em dar um final aos meus contos. Usando da ambiguidade como
meio ficcional, procuro fragmentar minhas histórias ao máximo, para dar 24 ao leitor
a certeza de que elas prosseguirão indefinitivamente, numa indestrutível repetição
cíclica. (RUBIÃO, 1988, p. 4).
A tendência ao infinito é tida por Schwartz de forma negativa, uma vez que nas
narrativas rubianas a eternidade, em todos os casos, recai sobre os personagens como uma
espécie de fardo/maldição. Um conto exemplar dessa tendência é “Aglaia”, em que a
personagem, homônima ao conto, após abortar o primeiro filho é alvo de um processo
ininterrupto de gestações, mesmo utilizando todos os métodos contraceptivos existentes e se
abstendo de atividade sexuais, os filhos continuam a nascer incessantemente. O conto termina,
mas nenhuma explicação ou solução para as gestações da protagonista é dado e os filhos
continuam a nascer.
Perceba, assim, que os personagens são vítimas de processos que eles não controlam e
sequer compreendem, a tendência ao infinito, se alegoricamente, representa a alienação do
homem moderno, bem como sua incapacidade de escapar ou alterar o próprio destino, restando
apenas resinar-se aos desígnios que lhes foram impostos.
A ambição humana também é um aspecto que merece destaque, viso que ela é retratada
não apenas no conto em análise, mas alegoricamente no mito da Torre de babel, assim, a
ambição está duplamente exposta no conto, embora o fracasso do empreendimento se dê de
modo diferente em cada uma delas, em uma narrativa a ambição foi a ruína da construção,
culminando em sua queda, contrariamente, no conto de Rubião, a ambição foi motivo que
impulsionou a continuidade perpétua da obra.
Se lida a luz da alegoria, “O edifício” traz à tona inúmeras críticas sócias, pois o processo
hiperbólico de construção do arranha-céu representa a inutilidade dos atos e o fazer desprovido
de sentido que recai sobre o cotidiano de uma sociedade cada vez mais automatizada. O homem,
nesse processo, se vê impotente frente ao caos da modernidade, fruto de um rápido processo de
modernização, com os grandes centros urbanos crescendo cada vez mais verticalmente e,
consequentemente, com edificações cada vez mais altas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A literatura fantástica acompanha a história e é apontada por uma vasta tradição crítica
como uma das mais antigas manifestações literárias. Embora haja por parte dos pesquisadores
uma tentativa de estruturá-la, percebemos claramente em autores como Frank Kafka e Murilo
Rubião que a literatura fantástica não é estática ao ponto de ser facilmente moldada. Deste
modo, compreendemos que em seu processo de adequação às transformações sociais do século
XX, a narrativa fantástica deixou as catacumbas e mausoléus e passou a habitar os grandes
centros urbanos, embora tão naturalizada que muitas vezes não dos damos conta.
Assim, constatamos que Murilo Rubião compõe seus contos valendo-se do contexto
cotidiano como pano de fundo para a construção das narrativas. Uma casa, um trem, uma
estrada, todos os aspectos mais corriqueiros podem se converter em algo absurdamente
fantástico. Para tanto, a hipérbole foi um recurso amplamente utilizado pelo autor como
desencadeador da lógica do absurdo, além disso, o processo hiperbólico traz à tona as questões
sociais implícitas no texto, como afirmou a pesquisadora Marcela Aguiar: “A hipérbole e a
reiteração são recursos estilísticos recorrentes nos contos de Murilo Rubião e trazem para o
REFERÊNCIAS
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- Número 8. 2008. p. 187-198.
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ROAS, David. A Ameaça do fantástico: aproximações teóricas. São Paulo: UNESP, 2014.
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SCHWARTZ, Jorge. Murilo Rubião: A poética do Uroboro. São Paulo: Ática, 1981.
SCHWARTZ, Jorge. Murilo Rubião: um clássico do conto fantástico. In: RUBIÃO, Murilo. O
pirotécnico Zacarias e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
TARANTO, Audemaro. O Conto fantástico de Murilo Rubião. Belo Horizonte: Editora Lê,
1995.
RESUMO
O presente trabalho possui como objetivo analisar a tradição oral através das perspectivas do
regionalismo e da religiosidade, no conto “A menina de lá” de Guimarães Rosa. Uma grande
parcela dos contos e novelas produzidos por Guimarães Rosa são veiculadas pelo cenário dos
sertões brasileiros, trazendo os costumes e tradições, como também, a linguagem típica e
inovadora do povo sertanejo como é o caso do conto “A menina de lá”, tornando-se assim, uma
escolha ideal para realizamos a nossa investigação. Para embasar a nossa pesquisa, utilizamos
como aporte teórico os estudos de Cândido (2002), Lucena (2016) e Souza&Lima (2019) sobre
a perspectiva do regionalismo; e apresentamos as contribuições dos estudos literários de
Vitorino (2007) sobre os traços da religiosidade no corpus selecionado. A pesquisa possui a
natureza aplicada, e de abordagem qualitativa, pois buscamos compreender como é apresentada
a tradição oral no corpus selecionado, uma vez que, analisamos a obra através da vertente do
regionalismo e religiosidade. E os resultados obtidos apresentam que o conto “A menina de lá”
de Guimarães Rosa é repleto de elementos típicos que remetem ao sertão brasileiro, podemos
encontrar animais e iguarias tradicionais das comunidades interioranas. Além disso, o conto
possui o teor da religiosidade, uma vez que, a própria personagem protagonista é a
representação de uma divindade e/ou mística. Desse modo, a tradição oral é apresentada no
conto através do regionalismo e da religiosidade, pois transporta o leitor a conhecer o mundo
sertanejo descrito na obra.
Palavras-chaves: A menina de lá. Tradição oral. Regionalismo. Religiosidade.
INTRODUÇÃO
O conto “A menina de lá” narra a história de uma menina chamada Nhinhinha, que mora
com seu Pai, Mãe e Tiantônia, no local chamado Temor-de-Deus situado no sertão mineiro. A
garotinha sempre foi muito quieta e observadora, poucas coisas falava. Mas quando dizia algo,
os seus pais não entendiam; ela possuía uma linguagem própria que mais ninguém compreendia.
Um certo dia, os pedidos que Nhinhinha fazia começaram a se realizavar, os seus pais e a
Tiantônia pensavam que era mera coincidência do destino. Mas eles começaram a acreditar que
a menina era milagrosa.
O primeiro pedido foi que um sapo aparecesse, o segundo foi o desejo de comer uma
pamonha de goiabada, e o terceiro, curou a sua Mãe com um abraço e um beijo. Nhinhinha
também pediu um arco-íris durante uma época de estiagem, e choveu, trazendo alegria para os
seus familiares. Mas nesse dia, Tiantônia repreendeu Nhinhinha por algo que ela disse, e
ninguém sabia o motivo daquela repreensão. Depois de alguns dias, a menina faleceu. E
Tiantônia confessou que no dia que choveu, a menina tinha pedido um caixãozinho cor-de-rosa
com detalhes verdes, ou seja, Nhinhinha tinha desejado a sua própria morte.
Desse modo, analisaremos dois elementos que configuram essa característica oral em
“A Menina de Lá”. São eles o regionalismo, sobre o qual discorremos na primeira parte da
análise sob a perspectiva teórica de Cândido (2002), Lucena (2016), Souza&Lima (2019); e a
religiosidade, que será aprofundada no segundo momento do texto. Para analisar essa última
característica, utilizamos as contribuições dos estudos literários de Vitorino (2007), além de
trechos do conto que servem como respaldo teórico para nossas afirmações durante a análise
literária.
Nhinhinha, só, sentada, olhando o nada diante das pessoas: - “Eu queria o sapo vir
aqui” [...]. Mas, aí, reto, aos pulinhos, o ser entrava na sala, para aos pés de Nhinhinha
– e não o sapo de papo, mas uma bela rã brejeira, vinda do verduroso, a rã verdíssima.
[...] Dias depois, com o mesmo sossego: - “Eu queria uma pamonhinha de goiabada”
– sussurrou; e, nem bem meia hora, chegou uma dona, de longe, que trazia os
pãezinhos da goiabada enrolada na palha. (ROSA, 2005, p. 67)
Como também no trecho, “E o Pai alisava com as mãos o tamboretinho em que
Nhinhinha se sentava tanto, e em que ele mesmo se sentar não podia, que com o peso de seu
corpo de homem o tamboretinho se quebrava.” (ROSA, 2005, p. 69). Sendo assim, o autor
utiliza os elementos “rã brejeira” e “pamonhinha de goiabada” e “tamboretinho” para
caracterizar o cenário da obra através das particularidades do sertão mineiro, que de acordo com
Chiappini (1995, p. 09), um “grande escritor regionalista é aquele que sabe nomear; que sabe o
nome exato das árvores, flores, pássaros, rios e montanhas”. Além disso, Rosa aborda sobre a
época da estiagem no brejo, no qual, dificulta bastante as vidas dos sertanejos em relação a
alimentação:
Estava no quintal, vestidinha de amarelo. O que falava, às vezes era comum, a gente
é que ouvia exagerado: - “Alturas de urubuir...” Não, dissera só: - “... altura de urubu
não ir.” O dedinho chegava quase no céu. Lembrou-se de: - “Jabuticaba de vem-
mever...” Suspirava, depois: - “Eu quero ir para lá.” – Aonde? – “Não sei” Aí,
observou: - “O passarinho desapareceu de cantar...” De fato, o passarinho tinha estado
cantando, e, no escorregar do tempo, eu pensava que não estivesse ouvindo; agora,
ele se interrompera. Eu disse: - “A Avezinha.” De por diante, Nhinhinha passou a
chamar o sabiá de “Senhora Vizinha” [...] Outra hora falava-se de parentes já mortos,
ela riu: - “Vou visitar eles...” Ralhei, dei conselhos, disse que ela estava com a lua.
Além disso, observamos que a oralidade se apresenta também por meio da religiosidade,
especificamente à tradição judaico-cristã em sua variante de catolicismo popular. De modo que
já no primeiro parágrafo do texto é possível notar a presença de alguns elementos que atestam
esse caráter. A iniciar pelo nome do lugar onde os personagens vivem “Temor-de-Deus", um
ambiente rural, afastado dos avanços da industrialização urbana, e como o próprio nome indica,
propício a crenças e tradições:
Sua casa ficava para trás da Serra do Mim, quase no meio de um brejo de água limpa,
lugar chamado o Temor-de-Deus. O Pai, pequeno sitiante, lidava com vacas e arroz;
a Mãe, urucuiana, nunca tirava o terço da mão, mesmo quando matando galinhas ou
passando descompostura em alguém. E ela, menininha, por nome Maria, Nhinhinha
dita, nascera já muito para miúda, cabeçudota e com olhos enormes (ROSA, 2005, p.
66)
Observamos também outro dado importante: a Mãe, em letra maiúscula assim como a
palavra Pai, representa o comportamento tradicionalmente religioso de grande parte das
mulheres que moram no interior, nessas regiões sertanejas, que são mães de família, devotas,
estão sempre com seus terços, fazendo suas preces em silêncio no intervalo de uma atividade e
outra. Outro costume religiosamente popular é dar aos filhos, assim como a lugares, nomes de
figuras santas, por isso Nhinhinha é batizada como Maria, dado que já de início nos oferece
indícios sobre a natureza da personagem.
Nhinhinha é uma dessas figuras extraordinárias que possuem um certo tipo místico de
dom. Diferente dos demais, tem uma perspectiva única e possui contato com uma outra natureza
que, ao mesmo tempo, transcende e coexiste com a que conhecemos. Misteriosamente, a
Com efeito, toda a obra de Guimarães Rosa está sedimentada em elementos das
narrativas orais sertanejas, particularmente, na apropriação de suas variantes
mitopoéticas [...] embora seja no conto “A Menina de Lá” que o autor tenha criado
um ícone correspondente a um ente que, no sistema mitológico sertanejo, se
consideraria um santo. É inegável a intertextualidade estabelecida por esta narrativa
não apenas com os relatos orais que se ouvem nas conversações com sertanejos, nos
seus casos que reportam eventos maravilhosos envolvendo a vida de indivíduos
bizarros, em torno dos quais pairam a aragem do sagrado, mas também com as
narrativas medievais das vidas dos santos, que davam conta de miraculosidades e
estigmas, análogos as marcas físicas que encontramos no corpo quasidomesco da
personagem. (VITORINO, 2007, p. 138)
Ou seja, Nhinhinha nos lembra não só as histórias sobre santos, mas também os
rezadores, as curandeiras, essas figuras populares que vivem principalmente no interior, sobre
as quais todos nós já ouvimos falar por meio de nossos avós ou até mesmo conhecemos, que
fazem certos tipos de prodígios e despertam temor e fé no povo. Vejamos um trecho do conto
que confirma isso:
E mais para repassar o coração, de se ver quando a Mãe desfiava o terço, mas em vez
das ave-marias podendo só gemer aquilo de – “Menina grande... Menina grande...” –
com toda ferocidade. E o Pai alisava com as mãos o tamboretinho em que Nhinhinha
se sentava tanto, e em que ele mesmo se sentar não podia, que com o peso de seu
corpo de homem o tamboretinho se quebrava (ROSA, 2005, p. 69)
Observamos aqui uma espécie de deslocamento de fé, a Mãe substitui as ave-marias
pelas palavras que a filha dizia e faz delas sua nova prece, enquanto o Pai se apega ao
tamboretinho que a menina se sentava. O que nos lembra o costume de sacralizar objetos,
roupas, usadas por figuras consideradas santas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através dos estudos realizados, foi possível analisarmos como a oralidade é trazida para
o universo do conto “A menina de lá” escrito por Guimarães Rosa. Desse modo, os trechos
analisados acima evidenciaram que por meio do regionalismo e da religiosidade, o autor traz
para sua narrativa aspectos que remetem a oralidade. De acordo com Lucena (2016), a união
dessas duas vertentes possuem um caráter inovador nas obras rosianas, pois:
Ao narrar diversas travessias no sertão mineiro da sua infância e juventude, que, longe
de ser representado como um ambiente meramente exótico e pitoresco, apresenta-se
com vastidões outras: apuro formal, tratamento poético à prosa, oralidade aliada à
sofisticação, recriação da linguagem, alta capacidade de fabulação, simbologia densa,
desafio à narrativa convencional e sondagem psicológica de personagens em um
universo a um só tempo ordenado e caótico. (LUCENA, 2016, p. 118)
Desse modo, o regionalismo é apresentado na obra por meio da linguagem informal,
trazendo assim, marcas da oralidade por meio de palavras típicas, como também, através das
referências à animais, objetos e iguarias tradicionais das comunidades interioranas que remetem
as tradições e costumes dos povos sertanejos. Vale ressaltar que, na própria obra contém um
trecho descrevendo o local como um brejo, e retrata também o período de estiagem no sertão
mineiro e as consequências trazidas por essa mudança climática.
REFERÊNCIAS
CHIAPPINI, Lígia. Do beco ao belo: dez teses sobre o regionalismo na literatura. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, 1995, p. 153-159. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/viewFile/1989/1128>. Acesso em: 25
mar. 2020.
SOUSA, Julienni Lopes de; LIMA, Luana Nunes Martins de. Regionalismo e variação
linguística: uma reflexão sobre a linguagem caipira nos causos de Geraldinho. Revista do
Instituto de Estudos Brasileiros, n. 72, p. 63-82, 2019.
ROSA, J. G. A menina de lá. In: ROSA, J. G. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2005.
RESUMO
O objetivo deste trabalho é analisar algumas relações entre modernização capitalista, ações
violentas e propostas de resistência no romance Parque industrial (1933), de Patrícia Galvão.
A partir do estudo de situações específicas encenadas no livro tais como exploração econômica,
alienação política, violência e abuso de poder, constatam-se ações de resistência praticadas por
certas classes sociais. Se, por um lado, há os excluídos e explorados pelo sistema capitalista,
por outro, há os grupos repressores, que, pela violência, tentam inibir os movimentos
revolucionários que reclamam por melhores condições de vida. A resistência estaria tanto na
resposta que essa classe oprimida e violentada dá aos opressores quanto na própria estrutura da
obra. Para o embasamento dessa proposta, levam-se em conta elementos teóricos de Theodor
Adorno, Hannah Arendt, Walter Benjamin e Alfredo Bosi.
PALAVRAS-CHAVE: Modernização, violência, resistência, Parque industrial.
Se a modernização, que se faz sentir pelo aparecimento de indústrias, por novos meios
de transportes, pelo encontro de pessoas de diferentes origens e classes e pelo ritmo frenético
da vida urbana, gera inicialmente uma perspectiva otimista para quem a observa de fora ou a
quem a experimenta pela primeira vez, faz também saltar aos olhos problemas diversos para
quem nela mergulha e para quem nela decide viver tais como a exploração de mão de obra, a
formação de relações violentas de poder, a falta de humanidade para quem entrega sua rotina
às máquinas em troca de um salário que mal dá para viver. A modernização jogou o homem
para as margens da história. Isso se percebe na segunda passagem do livro que foi reproduzida.
A edição de 1994 de Parque industrial conta com uma apresentação de Flávio Loureiro
Chaves e com um prefácio escrito por Geraldo Galvão Ferraz. O primeiro crítico afirma tratar-
se esse de um “texto na contramão”, seja pela perspectiva crítica que resguarda – na mesma
linha de A bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, O quinze (1930), de Rachel de
Queiroz, Menino de engenho (1932), de José Lins do Rego, e Caetés (1933), de Graciliano
Ramos –, seja pela própria biografia da autora, que era militante do Partido Comunista à época,
mas do qual se desvinculou em 1945, por alegar ter sido traída por ele (p. 8-9). Ferraz, no
prefácio, também reforça esse aspecto da vida da autora e afirma ter sido Patrícia Galvão “a
primeira mulher brasileira a ser presa política” devido a seu comportamento subversivo (p. 12-
13). Parque industrial seria, então, um elemento ou um produto que se somaria a essa postura
revolucionária da autora. De fato, o era. O livro critica o rápido processo de modernização por
que passou o Brasil, nas primeiras décadas do século XX, fazendo com que muitos não fossem
absorvidos pelas grandes transformações políticas, econômicas e sociais. Formam-se, assim, os
bolsões de miseráveis, de humilhados e de enjeitados principalmente por aqueles que detinham
18
Numa busca por trabalhos sobre a autora e sua respectiva obra na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e
Dissertações (BDTD), em fevereiro de 2021, encontraram-se os seguintes resultados. Em 1998, Thelma Guedes
Camelo defendeu, na USP, a dissertação Revolução contra a literatura: Parque industrial. Em 2004, o livro
recebeu certa atenção na dissertação de mestrado de Denise Adélia Vieira intitulada A literatura, a foice e o
martelo, defendida na UFJF. No ano seguinte, Roberto José da Silva dedica alguns comentários à obra de Galvão
na sua dissertação Inferno urbano: estudo do espaço em Os corumbas, de Amando Fontes, defendida na
Unicamp. Em 2011, Larissa Satico Ribeiro Higa defendeu, na mesma universidade paulista, a dissertação
Estética e política: leituras de Parque industrial e A famosa revista. Ainda nesse ano, na UnB, Ludimila Moreira
Menezes defendeu o trabalho de mestrado com o título Entreatos de uma vida não fascista: as múltiplas faces
de Patrícia Galvão. Em 2014, na UEL, Cassiano Motta Fernandes defendeu o trabalho Versões do feminino
proletário: a representação da mulher trabalhadora em três escritoras brasileiras, em que aborda romances de
Patrícia Galvão, Carolina Maria de Jesus e Clarice Lispector. Em 2015, João Carlos Ribeiro Junior apresentou,
na USP, a dissertação Literatura e política no romance de Patrícia Galvão.
Os pontos de vista de Foster e de Chaves sobre esse romance são similares. Ambos
compartilham a ideia de que Parque industrial é um livro que pertence a experiências típicas
do modernismo brasileiro e a das vanguardas modernas. Trata-se de uma obra moderna, de fato,
não só por estimular no leitor uma reflexão crítica da modernidade no nível temático, mas pelo
fato de lançar mão de uma série de estratégias discursivas e formais bastante específicas. Nesse
sentido, o livro abole o princípio de linearidade, e a sucessão vertiginosa dos quadros ocorre
como se o leitor estivesse diante de um mosaico estilhaçado, a quem cabe fazer a soldagem das
peças, para obtenção de uma leitura particular e, por isso mesmo, sempre nova e reveladora,
mas nunca, provavelmente, conclusiva ou totalizante. Ferraz, em sua análise, retoma os
comentários do brasilianista Kenneth David Jackson, o qual afirma que o texto em questão
apresenta um valor estético absolutamente desigual, sendo um caso singular no quadro do
romance social dos anos 1930. Escrito por uma mulher que, na época, tinha 21 anos, o livro, de
acordo com Jackson, apresenta-se “com uma perspectiva feminina e única do mundo
modernista de São Paulo” (apud FERRAZ, 1994, p. 14). Esse tema foi exemplarmente
explorado por Foster.
Que se trata de um romance moderno pode-se perceber pela posição do narrador. Nos
fragmentos reproduzidos no início deste trabalho, nota-se que esse narrador varia o seu olhar:
ora ele parece sobrevoar o bairro Brás, trazendo comentários mais generalizantes sobre o que
está acontecendo, ora parece aterrissar e dedicar atenção especial para determinadas
personagens e situações. Essa variação da posição do narrador traduz a sua perplexidade diante
do que observa e aponta para a impossibilidade de tecer uma narrativa que se queira
demasiadamente detalhada ou que projete uma explicação razoável a respeito do que está
ocorrendo 19. Ele projeta quadros a partir de circunstâncias diversas, mas sem fios que os
costurem e os mantêm unidos. A exemplo do narrador e também das personagens, o leitor, da
mesma forma, sente-se desnorteado frente à complexidade que define a realidade urbana do
bairro Brás esboçada pelo romance.
19
Sobre o assunto, cf. ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: ______. Nota
de literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003. p. 55- 63.
Essa alienação surge de forma mais evidente numa conversa que Rosinha Lituana
estabelece com outra personagem. No diálogo, ela explica a um rapaz, a quem nunca lhe
disseram que era um explorado, o funcionamento do sistema capitalista: “– O dono da fábrica
rouba de cada operário o maior pedaço do dia de trabalho. É assim que enriquece às nossas
custas! [...]. – Você não enxerga! Não vê os automóveis dos que não trabalham e a nossa
miséria?” (GALVÃO, 1994, p. 21). Do conjunto das personagens de Parque industrial, Rosinha
Lituana é a mais esclarecida. Provavelmente por ter vindo do exterior, trouxe certas
experiências e uma carga de conhecimento que a colocam numa situação diferenciada. É ela
que, ao poucos, vai reunindo pessoas em torno de si e preparando uma revolução. A
modernização, portanto, revestida de uma aparente ideia de progresso, liberdade e igualdade,
encobre um rosto perverso calcado na lógica da exploração, da humilhação, da indignidade. Se,
nas sociedades pré-capitalistas, os indivíduos tinham certa representatividade, na modernidade,
eles são jogados para as margens da sociedade.
Embora a obra em questão se defina pelo seu espaço feminino, nota-se que não há um
senso de união e de fraternidade entre as mulheres. Existem níveis de hierarquia entre elas. Se,
por um lado, há as exploradas, as desempregadas, as prostitutas – produtos da modernização
conservadora –, por outro, há aquelas que gozam de prestígios e de confortos, seja porque
nasceram em berços de ouro, seja porque conseguiram uma união com algum empresário.
Madame é uma personagem que pertence a esse segundo grupo. Na fábrica, uma cliente lhe
encomenda uma roupa diferenciada para uma festa que promoveria no dia seguinte. Ela chama
uma das empregadas e lhe transmite a tarefa:
Uma menina pálida atende ao chamado e custa a dizer que é impossível terminar até
o dia seguinte a encomenda.
– Que é isso? exclama a costureira empurrando-a com o corpo para o interior da
oficina.
– Você pensa que vou desgostar mademoiselle por causa de umas preguiçosas? Hoje
haverá serão até uma hora.
– Eu não posso, madame, ficar de noite. Mamãe está doente. Eu preciso dar o remédio
pra ela.
– Você fica! Sua mãe não morre por esperar umas horas.
– Mas eu preciso!
– Absolutamente. Se você for é de uma vez.
Além de Bruna, das páginas iniciais do livro, e dessa menina pálida, com a mãe doente,
mas obrigada a trabalhar até tarde, outra personagem hostilizada é Corina. Essa se envolveu
com um burguês e, infelizmente, acabou engravidando. O problema não foi a gravidez em si,
mas por ter engravidado de um homem que imediatamente a abandona. Ela se ilude com um
futuro maravilhoso ao lado de Arnaldo, pai da criança, mas acaba, inicialmente, sendo rejeitada
pelas colegas de trabalho, em seguida, demitida pela Madame e, por fim, expulsa de casa pelo
seu pai Florino. Esse tipo de relacionamento é condenado pelas pessoas em geral, já que a
“burguesia procura no Brás carne fresca e nova”, mas para “uma noite” (GALVÃO, 1994, p.
40). É Otávia quem tenta advertir a amiga: “– Corina, você não percebe quem é o Arnaldo? Ele
não passa de um horrível burguês! Logo se saciará de você! Eles são sempre assim...”
(GALVÃO, 1994, p. 47). Desiludida, acaba sendo levada a um bordel do Brás, onde, em uma
das portas de uma das vinte e cinco casas, com a blusa aberta e o soutien rasgado, ocupa novo
lugar: “Nas vinte e cinco casas iguais, nas vinte e cinco portas iguais, estão vinte e cinco
desgraçadas iguais” (GALVÃO, 1994, p. 49).
Se, para muitos, a prostituição é o ponto máximo da degradação a que uma mulher pode
chegar, no caso de Corina, o seu desmoronamento enquanto ser humano consegue ir mais longe.
Mesmo estando grávida, é obrigada a manter relações sexuais no bordel: “Corina se vende no
Surpreendentemente, a degradação de Corina não para por aqui. Depois desse trecho,
fica-se sabendo, por razões não explicitadas, que ela matou o seu bebê. Como resultado, ela é
presa, levada a uma cela, junto a outras prisioneiras. A cena descrita é humilhante:
– Ora boba! Eu também estou podre! Vem comer comigo! Xii! Caraio de boia! Tenho
vontade de meter essa porcaria no queixo do carcereiro. Todo dia, esse macarrão
fedido. Filho da puta!
Corina lê um pedaço de jornal rasgado. Pálpebras moles, mal dormidas. Os piolhos e
pulgas se aninham no corpo delgado. A esteira suja, jogada num canto da prisão. O
brim azul da saia larga. As pernas bem feitas, descalças, morenas. Examina-as e cruza-
as, arrastando, sexualizada, as unhas crescidas dos pés nas saliências da parede.
Apalpa as carnes duras. Tão bonita, vai envelhecer sozinha, na prisão.
Parque industrial consegue atar essas duas pontas, ou seja, é capaz de colocar lado a
lado circunstâncias paradoxais: mansões e cortiços, luxo e miséria, empoderamento e
subserviência, fortuna e desgraça, carnaval e greve. Muitas personagens sentem na pele o peso
da exploração, no entanto, devido ao alheamento em que vivem, não conseguem, isoladamente,
reunir forças para se colocarem contra a situação. Todavia, ao poucos, vão surgindo aquelas
pessoas que são capazes de formar nas demais certa consciência crítica. Rosinha Lituana é uma
delas. Desde os capítulos iniciais de Parque industrial, ela vai alertando suas colegas a respeito
dos mecanismos de exploração capitalista. A conjuntura se torna insustentável. Mulheres e
homens vão à rua reclamar por melhores condições de vida. A voz de Rosinha se faz ouvir:
Parque Industrial foi publicado na década de 1930. Essa época responde pelo
aparecimento, no Brasil, de um clima cultural propício à divulgação de livros comunistas e de
obras sobre a então União Soviética. Nessa ocasião, começam a surgir discussões a respeito das
lutas de classe, da espoliação, da mais-valia, da moral burguesa, do proletariado. O Partido
Comunista Brasileiro (PCB) ganha forças nesse momento e empreende um programa de
proletarização, o qual se caracteriza pela valorização do modo de vida proletário. O comunismo
começa a se fazer notar em textos de vários ensaístas, sociólogos e ficcionistas. Começa a surgir
um público leitor afinado às ideias revolucionárias. Conforme Denise Adélia Vieira (2004),
Assim, o livro parte das experiências da própria autora com um público marginalizado
que vive a violência no cotidiano de uma cidade grande. Nesse sentido, a obra se afasta do
projeto dos primeiros modernistas, o qual, de acordo com Antonio Candido (2006), era
reinterpretar as deficiências brasileiras, supostas ou reais, como superioridades (p. 126).
Conforme Larissa Satico Ribeiro Higa (2011), em Parque industrial, não há essa preocupação
com a construção da identidade nacional pautada numa mescla harmoniosa e afirmativa entre
as novas tecnologias e a tradição de um Brasil arcaico. Por isso, o texto de Galvão se apresenta
como “literatura que se coloca em campo de conflito com relação ao projeto hegemônico
articulado para o Brasil nas décadas de 1920 e 1930” (p. 65). Em outras palavras, o romance se
coloca na contramão do discurso dominante. Com isso, o livro é uma denúncia de um Brasil
violento e autoritário que não mede esforços para reprimir os movimentos de resistência. Assim,
se, no fragmento anterior, algumas personagens se armam para lutar contra a opressão exercida
por policiais, por outro, fica subentendido que elas sofrerão as consequências de suas atitudes.
Que essas agitadoras sociais pagarão um preço alto por articularem movimentos
revolucionários, grevistas, pode-se ler em alguns capítulos a seguir. Numa conversa, uma delas
afirma ter ouvido dizer que Rosa Luxemburgo nunca existiu, o que Otávia retruca: “– Existiu
sim! Foi uma militante proletária alemã, que a polícia matou porque ela atacava a burguesia”
(GALVÃO, 1994, p. 89). Essa constatação surge como uma forma de advertência para as
militantes do bairro Brás, mas serve também como prenúncio do que aconteceria com elas:
A referência a Rosa Luxemburgo não é casual no livro. O fato de uma das personagens
principais se chamar de Rosinha Lituana não é mera coincidência. Essa última é a mais
politizada, a mais determinada, que, além de cumprir longas jornadas de trabalho, participa de
mobilizações que ela mesma organiza. É uma agitadora que, apesar da pouca idade e do aspecto
frágil, também é uma líder notável. É presa e deportada, mas, mesmo assim, não esmorece, pois
sabe que sua luta é necessária em qualquer outro lugar em que impera a injustiça social. Rosa
Luxemburgo, por sua vez, também foi uma líder revolucionária polonesa. Surgiu como uma
referência à esquerda europeia quando era dirigente da Social Democracia do Reino da Polônia
e da Lituânia. Participou ativamente dos principais debates sobre as lutas políticas das primeiras
décadas do século XX e teve papel importante nas disputas da Segunda Internacional,
especialmente na Alemanha, onde viveu grande parte de sua vida política. Rosinha Lituana
também pode ser uma homenagem a Rosa Brickman, militante comunista da cidade de Santos,
com quem provavelmente Galvão teve algum contato (RIBEIRO JUNIOR, 2015, p. 34).
Com isso, então, o romance projeta um cenário em que a violência se torna algo coerente
com o desenvolvimento de uma sociedade autoritária, calcada na exploração, na injustiça e nas
diferenças sociais. É por meio da violência que o Estado reprime um grupo de ativistas,
composto principalmente de mulheres. Se, num primeiro momento, violência e poder se
confundem, num segundo momento, de acordo com Hannah Arendt (2010), esses vocábulos
aludem a dimensões políticas distintas. Assim, se, inicialmente, na tradição do pensamento
político mais antigo, a violência era vista como a mais flagrante manifestação do poder, na
política contemporânea, trata-se o primeiro da capacidade de ação em conjunto e o segundo da
capacidade de manipulação de instrumentos como armas. Conforme Arendt (2010, p. 58), “o
poder sempre depende dos números, enquanto a violência, até certo ponto, pode operar sem
eles, porque se assenta em implementos”. A autora, em suas conclusões, é ainda mais enfática:
Que o Estado, por meio da polícia, se pauta na violência para garantir certa ordem é um
dos argumentos desenvolvidos por Walter Benjamin (1986) em seu ensaio “Crítica da violência,
crítica do poder”, publicado em 1921. Esse texto, um dos mais problemáticos e obscuros do
autor, avalia poder e violência como conceitos próximos, inter-relacionados, no âmbito do
Direito, mas concorda com o fato de que a atuação da polícia ocorre quando o Direito e o Estado
não estão mais conseguindo impor seus fins juridicamente. Conforme leitura de Márcio
Seligmann-Silva (2007, p. 218), trata-se de um poder mantenedor e instituidor do Direito, pois
“funciona como um instrumento do Estado que intervém onde o sistema jurídico esbarra no seu
limite”. Ainda conforme o crítico, ao alegar “questões de segurança”, o Estado pode assim
controlar seus cidadãos. Partindo-se dessas considerações, na obra de Galvão, o Estado,
destituído de poder, vale-se da violência policial para fazer aparecer certo poder, assegurar a
ordem e controlar seus indivíduos.
No que tange à sua estrutura, o livro adota uma série de recursos inovadores para a
época. Entusiasta de Fernando Arrabal, Samuel Beckett e James Joyce, Galvão adere à técnica
de montagem, própria do cinema, em que se observa a combinação de diferentes planos da
realidade. Simpática às vanguardas, a autora adota o estilo fragmentário, técnica essa que
confere velocidade às cenas, como nesta passagem:
Por tudo isso, então, a fragmentação formal a que aderiu Galvão, em Parque industrial,
denuncia o que, no plano social, precisa ser reparado. A fragmentação exigiria do leitor uma
postura reflexiva ativa frente à matéria que está lendo. E, porque os fragmentos não requerem
uma leitura linear nem assentada numa lógica causal, as possibilidades de interpretação são
sempre novas, atuais, presentes. Conforme escreve Ribeiro Junior (2015, p. 71), “[o] ato
criativo converte-se em ato político na medida em que obedece a uma arte sintética que agencia
os sentidos do leitor para o encontro dos significados de sua experiência”. Na esteira dessa
afirmação, o autor se pergunta: “[o]s fragmentos de imagens reunificados por um veio narrativo
militante não seriam a mimese da vida fragmentada que só ganharia força e sentido se unificada
pela política revolucionária?”.
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Trad. André Duarte. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010.
BENJAMIN, Walter. Crítica da violência, crítica do poder. In: ______. Documentos de cultura,
documentos de barbárie: escritos escolhidos. Sel. e apres. Willi Bolle. Trad. Celeste H. M.
Ribeiro de Sousa et al. São Paulo: EdUSP, 1986. p. 160-175.
BOSI, Alfredo. Narrativa e resistência. In: ______. Literatura e resistência. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002. p. 118-135.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
FERRAZ, Geraldo Galvão. Prefácio. In: GALVÃO, Patrícia. Parque industrial. 3. ed. Porto
Alegre: Mercado Aberto; São Paulo: EDUFSCar, 1994. p. 12-16.
GALVÃO, Patrícia. Parque industrial. 3. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto; São Paulo:
EDUFSCar, 1994. 104p.
HIGA, Larissa Satico Ribeiro. Estética e política: leituras de Parque industrial e A famosa
revista. 2011. 147f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, SP, 2011.
RIBEIRO JUNIOR, João Carlos. Literatura e política no romance de Patrícia Galvão. 2015.
129f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2015.
VIEIRA, Denise Adélia. A literatura, a foice e o martelo. 2004. 87f. Dissertação (Mestrado em
Letras) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, SP, 2004.
RESUMO
Uma das características marcantes do Romantismo foi a representação do satanismo na prosa
e, sobretudo, na poesia. O chamado Romantismo Sombrio ou Romantismo das Trevas, que se
iniciou na literatura estrangeira durante o século XVIII, também esteve presente na literatura
brasileira. Em Bernardo Guimarães, escritor mineiro nascido em Ouro Preto, a figura do mal
antropomorfizado foi um elemento explorado no poema A orgia dos duendes. Nesse sentido,
este ensaio perfaz um estudo do Romantismo, especialmente do Romantismo Satânico, bem
como aponta as representações do satanismo, circunscritas no interior da urdidura ficcional dos
versos, exploradas pela linguagem do patrono da 5º cadeira da Academia Brasileira de Letras e
um dos maiores escritores do Romantismo no Brasil.
Palavras-chave: Romantismo. Satanismo. Bernardo Guimarães. Orgia dos duendes.
INTRODUÇÃO
Um ponto determinante do movimento que nos interessa é a invasão das tropas francesas
a Portugal, em 1807, que obriga a transferência da família real para o Brasil, em 1808. Dada a
situação, o cenário brasileiro começa a sofrer uma série de modificações nos mais diversos
Posto isso, é nosso intuito, neste texto, empreender uma leitura do poema A orgia dos
duendes, buscando os elementos satânicos incutidos no corpus e a sua relação com o
Romantismo, bem como as funções que as representações elaboradas pelo autor admitem. Para
tanto, ancorar-nos-emos em discussões teóricas acerca da obra, do autor e, sobretudo, do
Romantismo.
Na esteira das considerações de Rudwin (1962, p. 5), o satanismo é uma parte integrante
e inerente ao Romantismo. Baudelaire, consagrado poeta francês, é uma importante figura da
literatura em se tratando de satanismo. O escritor maldito aspira à abertura da poesia a um novo
horizonte, cujas características devem se contrapor ao sistema de valores vigentes e desvelar,
de mais a mais, as contradições, a hipocrisia e a imoralidade que subjaz nas relações humanas.
Desse modo, a característica satânica de alguns de seus poemas retrata, de forma às vezes
humorada, um mundo marcado por ironias e incoerências. Na poesia romântica brasileira,
também se destaca Álvares de Azevedo, com um forte cunho satânico em sua lírica, não no
intuito de embate, mas de transgressão e como forma de encarar sua vida. Para Cavalcante
(2004),
Vale salientar que A orgia dos duendes, apesar de se tratar de um poema, traz, em seu
interior, uma espécie de narrativa, uma vez que conta um acontecimento, perfazendo uma
construção de personagens, espaço e tempo bem definidos. Na senda das considerações de Sales
(2011), assim se pode definir esse tipo de texto:
Na narração, aparecem as seguintes personagens, cada qual tendo para si uma estrofe
dedicada para sua caracterização: a velhinha (rainha da festa), um lobisome, um vermelho
diabo, uma taturana (uma bruxa amarela), uma getirana, uma mamangava, um galo-preto, um
crocodilo, algumas raparigas e duendes. Mais à frente, cada uma das principais personagens
ganham uma parte do poema, no qual, de maneira galhofeira, são descritas as suas culpas. Ao
final do poema, o espaço macabro é convertido num lindo jardim, no qual aparece uma bela
donzela, à maneira de um verdadeiro sabbath que acabou ao raiar o dia.
Na parte dedicada à taturana, o poeta faz uma certa alusão ao incesto, ao dizer “Dos
prazeres de amor as primícias,/ De meu pai entre os braços gozei; / E de amor as extremas
delícias/ Deu-me um filho, que dele gerei”. Mesmo assim, o suposto crime é escondido por traz
do convento, para o qual se remete.
Ao falar sobre a getirana, Bernardo tenta fazer uma correferência ao adultério e, mais
ainda, aos crimes cometidos por representantes religiosos. “Por conselhos de um cônego abade/
Dous maridos na cova soquei; / E depois por amores de um frade/ Ao suplício o abade arrastei”.
O esqueleto, mais uma vez, é uma alusão a alguma personagem religiosa, que cometeu
uma série de homicídios, mas que mesmo assim continua sendo beatificado por seu posto: Das
severas virtudes monásticas/ Dei no entanto piedosos exemplos;/ E por isso cabeças fantásticas/
Inda me erguem altares e templos.
O lobisome, não se sabe o que exatamente representa, mas muito provavelmente alguma
figura importante da época, que tinha poder de mando muito grande e, por seu abuso, foi
condenado ao inferno: Com o sangue e suor de meus povos/ Diverti-me e criei esta pança,/ Para
enfim, urros dando e corcovos, / Vir ao demo servir de pitança.
Por fim, a rainha, a quem o poeta dá mais espaço, pode representar uma mulher que,
para ascender ao poder, teve coragem de matar toda a sua família, inclusive seu pai e sua mãe.
E, em função de tudo que teve coragem de cometer, ainda se acha no direito de ser rainha entre
os condenados: Quem pratica proezas tamanhas/ Cá não veio por fraca e mesquinha, / E merece
por suas façanhas/ Inda mesmo entre vós ser rainha.
Vê-se, dessa forma, que por trás do festejo e de muito riso, há uma feroz crítica a vários
segmentos sociais da época, sob a forma de uma narrativa, certamente, moralizante. De mais a
mais, “[...] o pathos e as transgressões das personagens góticas em episódios nos quais o
sadismo se afirma pela narração pormenorizada das ações são esvaziados em A Orgia dos
Duendes pela ironia, cinismo e extrema concisão das falas. (MACHADO, 2007, p. 185). Ainda
para esse autor, que discute o riso em Bernardo Guimarães,
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, procuramos empreender uma leitura do poema A orgia dos duendes, do
escritor mineiro Bernardo Guimarães, no intuito de apontar as representações satânicas
inseridas linguagem do texto.
CANDIDO, Antonio. A poesia pantagruélica. In: O discurso e a cidade. São Paulo: Duas
Cidades, p.225-43, 1993.
CANDIDO, Antonio. O romantismo no Brasil. São Paulo: Humanitas / FFLCH / SP, 2002.
MACHADO, DUDA. Bernardo Guimarães: a exceção pelo riso. In: REVISTA USP, São
Paulo, n.74, p. 174-187, junho/agosto 2007.
MAGALHÃES, Basílio de. Bernardo Guimarães (esboço biográfico e crítico). Rio de Janeiro:
Tipografia do Anuário do Brasil, 1926.
RESUMO
Inglês de Sousa (1853-1918) ocupa um lugar de destaque nos compêndios de história da
literatura brasileira, mais especificamente nos capítulos que discutem o programa estético
realista ou naturalista no Brasil. Os autores desses manuais fizeram diversos e distintos
julgamentos críticos às obras inglesianas. Por conseguinte, faz-se necessário um estudo do
discurso dos historiadores da literatura para se compreender a fortuna crítica desse escritor. Em
vista disso, o objetivo deste trabalho é pesquisar a recepção dos romances O Cacaulista e O
Coronel Sangrado, do autor paraense, em diversos compêndios de história da literatura
brasileira publicados ao longo do século XX. Isto posto, a tese de doutorado em andamento
aponta que a crítica literária especializada estudou a ficção inglesiana sob a lente da perspectiva
documental sócio-político-histórica, consagrando uma forma de ler aquelas obras. Contudo,
afastar-se do modo como os romances inglesianos foram submetidos pela crítica possibilita
conhecê-los poeticamente.
Palavras-chave: Compêndio. Crítica. Romance. Inglês de Sousa.
INTRODUÇÃO
Para realizar esse intento, selecionamos doze livros de história da literatura brasileira
publicados especialmente durante o século XX, a saber: História da literatura brasileira: seus
fundamentos econômicos (1938), de Nelson Werneck Sodré; História da literatura brasileira:
20
Programa fomentador: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
É válido ressaltar que Lúcia Miguel Pereira (1973) na sua história da literatura dedicou
mais de dez páginas ao Inglês de Sousa. Assim sendo, a autora problematiza a recepção e
também solicita protagonismo às obras do autor paraense. Diante disso, a historiadora da
literatura esclarece que:
O certo é que José de Alencar morreu em 1877 sem ter visto combatidas as suas
concepções do romance, já que O Coronel Sangrado, de Inglês de Sousa, o primeiro
livro realista aparecido entre nós, passou desapercebido. Só quando o realismo se
exagerou no naturalismo e ganhou aquela rigidez agressiva que facilitou o êxito
retumbante de Zola em França e Eça de Queiróz em Portugal, é que se instalou
definitivamente aqui, com Aluísio Azevedo (PEREIRA, 1973, p. 123, grifo nosso).
A autora defende que O Coronel Sangrado deveria ter sido considerado o primeiro livro
“realista” da literatura brasileira, mas os outros críticos não notaram, talvez pela presença de
um realismo pouco acentuado pelo autor. A historiadora afirma que “Inglês de Sousa, que nos
primeiros livros fora tão independente, submetia-se aos moldes rígidos, permanecendo
entretanto fiel aos temas regionais” (PEREIRA, 1973, p. 129).
Ademais, Nelson Sodré (1964) salienta que nem mesmo após os romances de Aluísio
Azevedo conquistarem ampla atenção, Inglês de Sousa conseguiu ter os seus romances
divulgados e conhecidos; suas primeiras obras, portanto, ficaram no esquecimento. Nessa
medida, Temístocles Linhares (1987) confirma o silenciamento em volta da ficção do escritor
paraense:
o curioso é que tudo quanto se disse anteriormente sobre Inglês de Sousa não ficou de
pé. Só se falou, por exemplo, em seu romance O Missionário, esquecendo-se
totalmente de seus romances anteriores (LINHARES, 1987, p. 208).
Essa discussão é complementada também por José Castello (1999), “esquecido depois
do aparecimento de O Missionário, a este, O Coronel Sangrado emprestaria, contudo, as
matizes representativas da vida urbana interiorana” (CASTELLO, 1999, p. 403). No tocante à
relação de importância entre O Missionário e O Coronel Sangrado, Luciana Stegagno-Picchio
(2004) afirma que esse romance foi um prelúdio para a obra de maior valor literário, O
Missionário. Assim, aponta a autora “O Coronel Sangrado que prenuncia a obra maior, aquele
Missionário” (STEGAGNO-PICCHIO, 2004, p. 259). E coube a José Guilherme Merquior
(2014) fazer uma suposição curiosa acerca dos romances O Coronel Sangrado e O Mulato.
Segundo o autor,
21
Cf. MONTELLO, Josué. A ficção naturalista. In: COUTINHO, Afrânio (org.). A literatura no Brasil. 3. ed.
Rio de Janeiro: José Olympio; Niterói: UFF, 1986 [1955]. v. 4.
22
Temístocles Linhares usa “naturalismo épico” em seu texto. No entanto, não define o que seja essa expressão.
23
Nelson Sodré equivocou-se com as datas de publicação em livro do romance História de um Pescador que foi
publicado em 1876 no mesmo ano do O Cacaulista, e não em 1877 como informa o autor. O ano de 1877, conforme
Marcela Ferreira (2017), é a data de publicação no periódico Revista Nacional de Ciências, Artes e Letras do O
Coronel Sangrado, que teve a primeira edição em livro só em 1882, mas a data de publicação ficou instituída pela
história literária oficial como sendo em 1877. Cf. FERREIRA, Marcela. Inglês de Sousa: imprensa, literatura e
realismo. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2017.
Inglês de Sousa, assim, foi antes um filho de sua circunstância. Nascido no amplo
cenário do mundo amazônico, ele se ateve à órbita social e humana de pequenas
cidades como Óbidos e Silves, onde não havia nada de formoso, mas cuja mesquinhez
de vida sem horizontes era descrita em todos os seus aspectos, sem deixar de se
subordinar ao valor documentário recomendado pelo movimento naturalista
(LINHARES, 1987, p. 211).
No mais, Lúcia Miguel Pereira (1973) nos faz lembrar de um fato importante na
cronologia literária, aponta que “escrevendo antes da voga de Zola e Eça de Queirós, Inglês de
Sousa não possuía os tiques, os modismos” (PEREIRA, 1973, p. 159) dos romances publicados
no final do século XIX. No tocante à recepção do O Cacaulista, a historiadora destaca em
especial que
Livro nítido, humano, bem concebido e bem realizado, parece-me não só o melhor de
Inglês de Sousa, como um dos melhores no gênero, entre nós. Pelo seu valor, e pela
sua importância, como marco denunciador de novas tendências na nossa história
literária, exige um destaque que lhe foi até hoje negado (PEREIRA, 1973, p. 162).
A autora classifica o romance como o melhor de Inglês de Sousa, escrito “antes da voga
de Zola e Eça de Queirós” (PEREIRA, 1973, p. 159), assim como também assegura que essa
mesma obra apontou as tendências do Naturalismo na história literária brasileira, e, por isso,
Lúcia Miguel Pereira reivindica um merecido destaque para tal narrativa romanesca inglesiana.
Seguindo a atitude de Lúcia Miguel Pereira, Temístocles Linhares (1987) classifica O Coronel
Sangrado como a melhor obra do escritor:
Isto posto, a prosa ficcional inglesiana não pode ser reduzida às fórmulas de uma
interpretação engessada que apenas confirmam um julgamento prévio do leitor/intérprete. Por
isso, é necessário permitir o desabrochar do poético das narrativas de Inglês de Sousa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desse modo, a ficção inglesiana é além do histórico e do documental, e, por essa razão,
romper com as camadas de uma interpretação solidificada das narrativas possibilita conhecê-
las não epistemologicamente, mas ontologicamente. Ademais, as obras inauguram a si mesmas
e nos convidam a escutá-las.
AMORA, Antônio Soares. História da literatura brasileira. 9. ed. São Paulo: Saraiva,
1977 [1955].
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 50. ed. São Paulo: Cultrix,
2015 [1970].
COUTINHO, Afrânio (org.). A literatura no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio;
Niterói: UFF, 1986 [1955]. v. 4.
PEREIRA, Lúcia Miguel. História da literatura brasileira: prosa de ficção (de 1870 a
1920). 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1973 [1950].
RESUMO
O artigo põe em tela uma reflexão sobre a produção da literatura negra brasileira, a partir de
Wilson Rodrigues, em sua obra Pai João menino. Autor e obra são desconhecidos na cena da
literatura negra no país. No entanto, mesmo se tratando de uma produção de 1940, pelos
próprios meios do escritor, que produziu 6 obras, além dessa e, ao que tudo indica, não estava
vinculado a nenhum movimento artístico/literário, é possível flagrar mensagens antirracistas ou
mesmo uma nova forma de produzir literatura, com base na tradição oral afro-brasileira. Para a
leitura proposta, buscou-se respaldo em estudos de Domício Proença Filho (2004), Florentina
Silva Souza (2004), Cinthia Domingos Ribeiro (2008), dentre outres.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura Negra. Reinvenção. Identidade Afrobrasileira.
1 INTRODUÇÃO
Wilson Rodrigues apresenta para o leitor uma narrativa que põe em questão a narrativa
oficial sobre a escravidão, tão contada e legitimada pelo sistema de representação brasileiro
(branco, eurocentrado e burguês) propondo uma outra versão que realça uma afrobrasilidade,
desconstruindo o discurso hegemônico literário da época, à medida que apresenta um
personagem negro e infantil como protagonista das histórias, dando a ele voz para problematizar
o lugar que a sociedade colonial reserva ao sujeito negro. Através de Pai João Menino, figura
presente em todas as pequenas narrativas do livro, fazendo o uso da contação de história, um
traço cultural muito presente nas tradições culturais afrobrasileiras, o autor vai resgatando
elementos da cultura negra do Brasil, fugindo ao modelo de literatura vigente naquele período.
Num primeiro momento, eu dialogo com estudos como os de Domício Proença Filho
(2004), Florentina Silva Souza (2004), Cinthia Domingos Ribeiro, dentre outros, para refletir
sobre a imagem do negro na literatura produzida no Brasil. Após isso, eu apresento a biografia
A imagem do negro, durante muito tempo, foi e ainda hoje é veiculada – seja por
representações reais ou fictícias – com base em estereótipos fundamentados pelo pensamento
colonial europeu. Em se tratando disso, já se imagina a configuração dada a tudo que se
relaciona à África e às populações nativas, em geral, que passaram pelo domínio da Europa. De
acordo com Domício Proença Filho (2004), a presença do negro na Literatura Brasileira se dá
de duas formas: a primeira, em que o negro é objeto – sem voz, sem reação, sem vontade
própria, submisso ao branco e carregado de todos os traços negativos possíveis a um ser
humano, muitas vezes levado a condição animal – e a segunda, em que o negro é o sujeito,
compromissado com sua história e sua luta.
Como objeto, o negro foi representado sob as mais diversas formas: o escravo nobre,
que passa pelo branqueamento; o negro vítima, o infantilizado e o escravo demônio, presentes
nas narrativas e poemas do Romantismo; o negro pervertido e sexualizado, corriqueiros nas
narrativas do Naturalismo; enfim, o negro inferior ao branco, retratados em obras como as de
Monteiro Lobato e várias outras, inclusive, mais atuais, que reforçam os estereótipos e
legitimam os preconceitos presentes na Literatura Brasileira desde a formação do cânone
nacional. De acordo com Florentina Silva Souza,
A ênfase, na maioria das descrições, recai sobre o corpo e a sensualidade, vistos como
selvagens, o desapego ao trabalho, o amor exclusivo aos prazeres e os desregramentos,
além da descorrespondência aos padrões estéticos de base ocidental branca – um
modelo de representação que reveza com o da mãe preta ou pai João, aceitos, todos,
como absoluta verdade e repetidos à exaustão, e que será a matriz da quase totalidade
das representações dos afrodescendentes na maioria dos textos canônicos que, desde
então, têm sido publicados no Brasil. (2004, p.5).
Cinthia Domingos Ribeiro (2008) fala sobre o éthos do sujeito negro na Literatura
Brasileira e postula que:
o negro passa a integrar narrativas que tratam mais da escravidão e menos sobre o
negro. Assim, o Sistema Literário Brasileiro silencia, ao longo de sua formação, um
grupo étnico constituinte do hibridismo do povo brasileiro, silencia uma cultura e suas
manifestações. E acaba conferindo um posicionamento, ao sujeito negro, acessório às
aspirações da classe dominante difusora dos bens culturais. (p.2).
Nessa perspectiva, vê-se surgir um novo estereótipo do negro: segundo Domício
Proença Filho, o negro exilado no Brasil, ou seja, aquele que vive no país, entretanto em nada
contribui para sua história, para a sua formação. Mesmo em movimentos literários em que se
No entanto, o que fica evidenciado é o esquecimento desses autores e suas obras pela
História da Literatura Brasileira, a exemplo de Solano Trindade, Luís Gama e Wilson W.
Rodrigues. Os dois primeiros, pelo menos, nos anos mais recentes, chegam a ser citados num
ou noutro exemplar, sem muito aprofundamento, além de serem lembrados e reverenciados
pelos movimentos negros, na literatura e na Academia. O que não ocorre com Wilson
Rodrigues, que se não fosse pelas tecnologias de informação eficientes da atualidade, seria esse
completamente desconhecido e nem eu estaria falando sobre agora... Esses e outros autores que
caíram no esquecimento, aliás, que na maioria das vezes nem se tornaram conhecidos, segundo
Florentina Souza,
ilustram algumas das estratégias que ficaram registradas em jornais, livros e revistas
e foram utilizadas por esses e outros afrodescendentes com o fito de se apossar do
O mesmo ocorre com Solano Trindade, que tem sua produção situada no período que
corresponde à terceira geração do Modernismo, em que um dos traços mais marcantes é a
valorização do que é popular, regional, além de na poesia prevalecer a estética do concretismo,
traços presentes na obra do autor que, ainda assim, é posto à margem da lista de autores do
citado período e como afirma Florentina Souza,
24
Este texto foi escrito no ano de 2011.
Quanto às suas publicações – um número significativo, por sinal –, infere-se que um dos
motivos de seu desconhecimento pelo público se dá, em partes, pelo fato de compor a gama de
escritores que fundaram suas próprias editoras para publicarem seus livros. Pelo pouco que se
sabe, Wilson escreveu contos infantis, mais considerados como poemas e, pelo que se nota nas
datas de algumas publicações suas – nem todas estão datadas –, está inserido no período que
corresponde ao Modernismo Brasileiro. Torna-se, nesse sentido, inevitável uma comparação
com o precursor da Literatura Infantil no Brasil, Monteiro Lobato.
Este último é conhecido pela maestria em compor narrativas infantis que trazem
elementos culturais que remetem ao folclore brasileiro, bem como a figura do sertanejo: o Saci
Pererê, a Caipora, o Jeca Tatu, são exemplo. A preocupação com a educação e o
desenvolvimento do senso crítico da criança era, também, uma preocupação do autor, segundo
Alfrâncio Dias Ferreira (2008). Em contrapartida, ele é muito criticado pela ratificação de
estereótipos da figura do negro em suas obras.
25
Por artimanha do destino, casa onde outrora morou o poeta Castro Alves, na rua do Sodré, Bairro Dois de Julho.
Já Wilson Rodrigues, através de Pai João Menino, constrói uma narrativa do negro
escravizado que, como Zumbi e Ganga Zumba, inconformado com a situação imposta pela
escravidão, busca estratégias para resistir à hegemonia branca. Não se sabe sobre o engajamento
do autor com a proposta dos escritores negros da época, nada é declarado sobre sua cor ou etnia.
Na orelha do livro, uma foto, em preto e branco, um homem nem branco, nem negro, talvez um
“branco da Bahia”, um branco para o Recôncavo... Sobre a obra em estudo, o que se tem na
contracapa são declarações de pessoas ligadas à Literatura, que descrevem o livro como “um
poema brasileiro”, de retorno ao “classicismo brasileiro” e denominam o autor como o maior
“folclorista brasileiro”, porém, nada que diga respeito a atuações quanto à Literatura negra, mas
também por, talvez, na década de 1940, não se falar em Literatura Negra...
Pai João menino é uma narrativa que, à princípio, parece tantas outras que tratam do
Brasil em seu período colonial: sociedade escravocrata que justifica sua desumanidade através
de um discurso que relega o negro à condição de sub-raça. Entretanto, percebe-se uma mudança
significativa: apesar de a escravidão servir de pano de fundo como em outras obras, o espaço e
as ações das narrativas não se concentram nem na Casa Grande, nem entre personagens brancos,
mas na senzala e entre os escravos, tendo Pai João menino como personagem principal. É o
que se percebe no primeiro conto que segue.
O menino magro
Com o menino no regaço, a escrava dizia:
- Mama, meu filho, mama. Eu escondi leite para te dar. Ioiozinho branco quer tudo
para ele, mas esse leite que guardo no meu peito foi Nosso Senhor quem me deu para
te dar. Mama, meu filho, mama...
Nesse momento, veio correndo o mulato Pemba, e avisou a escrava:
- Dona Sinhá mandou dizer que menino branco está com fome.
- Mama, meu filho.
- Anda, desavergonhada. Olha que eu vou dizer. – Vá logo, marvado.
E a escrava medrosa, ajeitando o filho entre os panos do catre de couro, saiu correndo
para a Casa Grande. O Pemba olhou o menino, e como não sabia ter piedade de
ninguém, disse indiferente:
- Ih! Até se veem os ossos.
Consolação
O moleque veio correndo para o curral ver o bezerro berrar. O Tião ordenhava a
Botija, a vaca mais leiteira da fazenda. O bezerro fazia alarido.
- Ó menino – gritou o Tião – faz o bezerro calar.
O negrinho pulou a cerca e veio para junto do bezerro:
- Não chore, não. Comigo eles também fizeram assim, tiravam o leite de mamãe para
ioiô branco.
O bezerro parou de chorar como se entendesse as palavras do menino.
Consciente de sua realidade, mas longe de aceitá-la pacificamente:
O carimbo
- Ele já está na idade. Pega!
Pegaram Pai João menino, e ali mesmo, no terreiro, com um ferro em brasa puseram
nas costas do negrinho o carimbo do “Senhor”.
O moleque gritou de ódio, de dor e de incompreensão à brutalidade humana.
- Eu não fiz nada. Por que me fizeram isto?
- Não chore, não, menino, disse um peão, isso é para gente saber que você pertence
ao fazendeiro.
Nem uma semana era passada, quando a fazenda ficou em polvorosa. Sinhozinho
aparecera carimbado nas costas.
-Quem te fez isso, meu filho?
- Foi o moleque João.
O negrinho veio sem medo.
- Fui eu, sim.
- Maldito negro! E ainda confessa. Por que você fez isso?
E o moleque confiante na surpresa:
- Foi para toda gente saber que sinhozinho pertence a ioiô.
Em meio às ações, Wilson Rodrigues insere elementos da cultura africana, presentes na
identidade brasileira, de forma a valorizar e apontar para a existência de uma afro-brasilidade,
é o caso da arte de contar histórias, presente na maioria dos contos através do personagem
Chico-Tumba:
O broto da palmeira
Parecia até uma festa. Sinhô branco veio com D. Sinhá, Sinhá Moça, D. Emereciana
e ioiozinho para o jardim que ficava em frente à “Casa Grande”. Sinhô branco falou
com solenidade:
- Aquela palmeira alta foi meu filho Miguel que plantou. Aquela outra, ali, crescidinha
foi Sinhá-moça. Agora, meu filho, você vai plantar uma palmeira. Quando a palmeira
estiver bem alta, e você, homem feito, poderá contemplá-la com satisfação.
As palavras de Sinhô branco pareciam uma oração ritual e todos o ouviam em atitude
respeitosa, a família, os peões e a escravaria. Ioiozinho plantou a palmeira.
Pai João menino assistiu à cerimônia. Quando toda gente foi embora, o moleque
voltou com uma faca e cortou o broto.
- Não vai crescer, não.
A palmeira de ioiozinho secou e morreu.
As palmeiras, aqui, podem representar o sistema escravocrata, passado de geração em
geração, que finda com o corte dado pelo Pai João menino na palmeira plantada por Ioiozinho,
contemporâneo, em lado oposto do sistema, ao protagonista dos minicontos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pai João menino é, de fato, uma metáfora que pode levar o leitor a várias reflexões.
Primeiramente, tem-se o nome que em outras obras – inclusive, canções –, tem o intuito de
conotar todos os negros que aceitaram e aceitam as condições sociais impostas a ele pela
ideologia do branco. Entretanto, Wilson Rodrigues apresenta o personagem com uma outra
acepção. É o que se pode chamar de um “novo Pai João”, “Pai João menino”, nova geração de
“Pais João”, que questiona, que luta, que aceita suas origens, sua história, sinalizando uma
mudança de postura, que não se submete mais ao sistema.
Isso faz com que se confirme a hipótese da pesquisa, bem como os relatos da contracapa
do livro: a obra é um “poema brasileiro”. O autor, mesmo que não tenha sido engajado ao grupo
Sobretudo, Wilson Rodrigues provou que, como Luís Gama e Solano Trindade,
produziu literatura e não obra panfletária. Apenas, igualmente aos escritores reconhecidos pela
historiografia da Literatura Brasileira, utilizou da literatura para “construir imagens e
sedimentar conceitos” para a construção da identidade nacional, sem omitir participação e
colaboração de nenhum grupo étnico e social.
REFERÊNCIAS
RESUMO
Antônio da Fonseca Soares (1631-1682), fidalgo e soldado das forças portuguesas durante os
conflitos da Guerra de Restauração (1640), foi um poeta português que conquistou fama na
produção de romances (poemas de cunho popular em quadras assonantes de temática variada).
Sua obra poética se deu primeiramente com a produção de poesias de circunstância, distribuídas
entre seus companheiros e enviadas (no formato de poemas-cartas) a seus correspondidos e a
seus interesses amorosos. Esses poemas são chamados pelos historiadores e críticos poesia
vulgar. Nosso trabalho discute a propriedade do termo, principalmente à luz dos estudos de
Retórica e Poética, quando aplicados às produções poéticas do seiscentismo luso e americano.
Foram escolhidos dois romances-cartas vulgares, dedicados a interlocutores masculinos do
romanceiro fonsequiano, cujos versos iniciais são “Senhor D. Luís Coutinho / que sois como
todos vemos” e “Mais que todos mercadores / sois de gram correspondencia”.
PALAVRAS-CHAVE: Poesia Seiscentista; Romance; Poesia Vulgar; Retórica; Poética.
INTRODUÇÃO
26
O corpus deste estudo é fonte primária adquirida com recursos FAPESP (Processos 2016/17138-3 e 2017/09111-
0), na forma de cópias de manuscritos da Biblioteca da Ajuda, Lisboa, Portugal, transcritos por Carlos Eduardo
Mendes de Moraes e em processo de edição pelo grupo de pesquisa “A Escrita no Brasil Colonial e suas relações”,
sediado na Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Departamento de Estudos Linguísticos, Literários e de
Educação. A discussão do tema, por seu turno, faz parte da tese de doutoramento de Luís Fenando Campos
D’Arcadia, intitulada O decoro vulgar do soldado poeta: a prática do romance por Antônio da Fonseca Soares,
defendida em 22 fev. 2019.
O primeiro eixo diz respeito à discussão de como se interpretar sua fortuna biográfica.
A dualidade da persona literária Antônio da Fonseca Soares é base para comentaristas de sua
obra desde sua (quase) hagiografia, feita pelo Frei Manoel Godinho (1687). Nesse sentido, a
construção retórica do eu lírico dessa poesia considera as várias práticas de gêneros e do decoro
na época, o que significa afirmar que existiu uma relação direta e intrínseca entre o gênero de
escrita (particularmente da poesia) e a maior ou menor gravidade que se poderia atribuir ao
tema escolhido.
27
O termo decoro refere-se à ideia de adequação, tal como é concebida pela obra horaciana, datada do séc. I a.C..
Nesse sentido específico, diz respeito à capacidade que o poeta possui de saber escolher formalmente o gênero
poético a ser utilizado em cada circunstância; enquanto internamente, saber desenvolver o poema dentro de
parâmetros argutos, com os cuidados da escolha do vocabulário e da produção dos efeitos esperados por um
público determinado. Enfim, adequar a obra ao público, que deve, previamente, ser de seu conhecimento.
Datam de sua estadia no Brasil poemas circunstanciais escritos por ocasião da morte
precoce do príncipe D. Teodósio, como o seguinte:
28
Pontes (1953, p. 11) obtém o nome a partir da biografia de Frei Rafael de Jesus. Segundo Pimentel (1889, p.
10) as memórias do bispo do Grão-Pará, Frei São José de Queirós, afirmam erroneamente que o homicídio teria
acontecido no Brasil, algo repetido por Camilo Castelo Branco (1876, p.110).
29
O soneto teve grande circulação manuscrita na época de sua composição (PIMENTEL, 1889, p. 158). Publicado
na Fénix Renascida (SILVA, 1746, vol. 2, p. 1746. Nesta obra, o poema foi atribuído a Francisco de Vasconcellos),
com cópias manuscritas registradas por, Pontes (1950, p. 94, item 51), e cópias da tradição manuscrita constantes
das bibliotecas seguintes: Biblioteca Nacional de Lisboa (hoje, BNP): mss. 3235 fl. 109v; 3549 pg. 16; 3566 fl.
239; 6215 fl. 150; 6430 pg. 810; 8610 pg. 87; 8576 fl. 111; 9321, fl. 188; 9322 fl. 4; Biblioteca da Academia das
Ciências de Lisboa, ms. 532 fl. 148; Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, mss. 350 fl. 37; 351 fl. 123;
380 fl. 5v; Biblioteca Pública Municipal do Porto, ms. 1157 p. 182.
Em 1656, retorna da Bahia. Durante a viagem, conforme o documento real que lhe
concederia a patente de capitão 30, o general da frota, ao saber da presença de Fonseca Soares
na embarcação, conhecendo a fama de seus feitos em Moura, convida o poeta para comandar a
guarda do castelo de proa da nau Capitânia.
30
A carta é transcrita por Alberto Pimentel (1889, p. 74).
Em uma breve resenha de 1955, feita por Helmut Hatzfeld à obra de Maria de Lourdes
Belchior Pontes, Frei Antônio das Chagas: um homem e um estilo do século XVII (1953), o
crítico alemão questiona, por exemplo, a religiosidade barroca do Frei Antônio das Chagas:
“Antonio das Chagas is not a baroque type in the sense of the German Geistsgeschichte. (...)
Chagas, as a sinner turned saint, is not different from Jacopone da Todi or Saint Francis of
Assisi.” (HATZFELD, 1955, p. 158). Podendo-se abstrair, da persona religiosa, uma referência
à figura do pecador tornado santo, para a qual havia uma tradição e modelos já estabelecidos
por ela.
31
O grupo de pesquisa A Escrita no Brasil colonial e suas relações tem atuado nos últimos cinco anos no projeto
de edição da obra de António da Fonseca Soares. O estágio de constituição do inventário e transcrição de sua obra,
em fase de conclusão, conta hoje mais de 900 poemas atribuídos ao poeta em estado de manuscrito, com diversas
variantes.
Livre já dos crimes, & alçada Patente de Capitão de Cavalos por despacho de seus
serviços, fez segunda súplica ao sobredito Provincial, pedindo-lhe trocasse aquela
Patente de Capitão por outra de Religioso de seu P. S. Francisco: que como ele só isso
queria ser, não lhe servia Patente de mandar, senão de obedecer; & se a procurara fora
para qual outro Centurião Comandante dos Soldados no Evangelho, ceder a Cristo
todo seu mando. Admirou ao Provincial esta valerosa, quanto pia resolução; (já
Christo se admirara da fé do Centurião) & com lhe mandar passar a Patente para tomar
o Hábito no Convento de Évora, passou a Antônio de Afonseca da terra para o Céu,
do mundo para o Paraíso, do cativeiro à liberdade, do mar ao porto, do golfo ao
sossego, da bandeira do demônio à de Cristo, de filho das trevas a filho de luz, de
escândalo da Igreja a um dos melhores exemplares dela. (GODINHO, 1687, p. 23)
O episódio bíblico refere-se a um centurião que pede que Jesus cure a um terceiro, cura
que impressiona o soldado, o qual, em um contexto alegórico, abre mão de sua autoridade
secular em favor da autoridade de Cristo. Temos, portanto, emanando das obras do frei, segundo
a recepção de seus contemporâneos, uma persona à qual se adequa uma determinada actio
retórica nos sermões e cartas, que pode também ser estendida aos romances seculares e outras
obras ligadas a ela. Para as críticas dos séculos XIX e início do XX, no entanto, certos aspectos
retóricos seriam interpretados literalmente, tendo em vista a perda da tradição retórica que
ocorre a partir do final do século XVIII, com a formação da sensibilidade e estéticas românticas.
Pode-se afirmar, nesses termos, que a cisão entre autor e obra passaram a invalidar o argumento
da persona, construído pela voz e à força da retórica do intervalo quinhentista-oitocentista, no
qual viveu, foi criado e criticado, além de ter tido documentado o destino de duas tradições de
escrita, uma sacra e impressa e a outra mundana, dispersa e manuscrita. Todavia, o tema
personae António da Fonseca Soares / Frei António das Chagas não é o foco deste estudo.
32
Nesse sentido, o uso do termo não destoa da tradição de qualificações do conceito vulgar desde a sua
classificação nos registros dos diferentes falares latinos, em que se registrava a distinção entre latine loqui e
Em uma carta datada do século XV, de autoria de Iñigo Lopez de Mendoza, o primeiro
Marquês de Santillana, endereçada ao condestável de Portugal, o letrado espanhol utiliza o
termo como se compartilhassem o mesmo sentido:
Como, pois, ou por qual maneira, Senhor mui virtuoso, estas ciências hajam
primeiramente vindo aos meios dos romancistas ou vulgares, creio seria difícil
inquisição e uma trabalhosa pesquisa (MENDOZA, 1852, p. 7, grifo nosso).
No contexto de uma propedêutica a um jovem de origem nobre, o texto se anexava à
coletânea de obras de Mendoza escritas em vulgar, e pretende recomendar ao jovem os
melhores nomes àquela época da disciplina a qual “em nosso vulgar gaia ciência chamamos”
(MENDOZA, 1852, p. 3). No texto é dada ênfase à poesia escrita em vulgar, e em dado
momento o Marquês de Santillana enumera ao condestável regiões originárias dos autores que
comentou:
Mas de todos esses, mui magnífico Senhor, assim itálicos, provençais, limusino,
catalães, castelhanos, portugueses e galegos, e ainda que quaisquer outras nações de
adiantaram e antepuseram os gálicos cesalpinos e da província de Aquitânia o
solenizar e dar honra a essas artes (MENDOZA, 1852, p. 18).
Como se pode constatar, além do aspecto estritamente linguístico, que era tanto a
interpretação tradicional quanto a leitura dos letrados seiscentistas sobre o tema, estudiosos
mais recentes como Pontes estendem o sentido de vulgar para abarcar, além da forma, um
conteúdo. Uma das consequências de tal extensão do termo é a sinalização de um realismo
intrínseco ao romance e ao vulgar. A autora aponta essa poesia como uma predecessora da
poesia realista do século XIX (“os poetas ‘vulgares’ não souberam, contudo, encontrar
autênticos caminhos para a poesia, que só mais tarde, no século XIX, se vieram a definir”
romanice loqui (falar dos romanos e falar dos conquistados/romanizados), cabendo ao segundo a pecha de ser mais
popular, de onde vem o termo romanice > romance (pela síncope do ‘i’ postônico).
Com efeito, uma das teorizações mais relevantes (à época) para o estudo da poesia
portuguesa relacionada ao termo romance no sentido de poesia popular advém de Poesia
Popular Portugueza (BRAGA, 1867). Nessa obra, Teófilo Braga apresenta uma influência de
autores românticos como Almeida Garrett, além de elementos que o mostram claramente filiado
ao positivismo científico de sua época. Por exemplo, aponta algumas Leis da Formação
Poética, que indicam uma natureza coletiva do povo: “I - Os povos são como as famílias;
procuram remontar-se à mais alta antiguidade, e descenderem de uma origem divina;”
(BRAGA, 1867, p. V). Na obra de Braga, o povo português é relacionado – em um sentido
A inspiração vem-lhe de dentro e não do alto. A unidade dos povos do Meio Dia da
Europa revela-se à medida que estudamos a sua poesia anônima; um mesmo gênio
imprime fatalmente um idêntico carácter em todas as criações (BRAGA, 1867, p. 66).
Para o autor novecentista, seguindo uma tendência crítica à qual aderiu, o povo é ao
mesmo tempo uma entidade infantil e irracional - “O povo acredita tudo que sente (...)”
(BRAGA, 1867, p. 64) e coletiva, sendo tal coletividade um elemento diluidor que corrompe o
trabalho dos verdadeiros poetas, dentre os quais o maior seria Gil Vicente (BRAGA, 1867, p.
62). Esse conjunto de obras individuais seria diluído pelo trabalho de jograis, o equivalente
português dos jongleurs provençais. Uma teoria do autor de Teófilo Braga, que envolve
elementos românticos e um determinismo positivista pode ser inferida:
Mas a praga dos poetas romancistas, que invadiu o Parnaso do século XVII, dificulta
a tarefa de atribuição do seu ao seu dono; são, porém, tão miseráveis as produções
poéticas de seus romancistas que quase não vale a pena gastar tempo e esforços
naquela tarefa (PONTES, 1953, p. XV).
O leitor de hoje deve, portanto, refletir sobre esses aspectos de oralidade e de variância
oral do texto não como defeitos, mas sim como parte de uma construção retórico-poética. Ao
estudar os romances de António da Fonseca Soares, pode-se atualmente perceber uma série de
práticas que remetem a tradições antigas que também se relacionam à oralidade ou à linguagem
vulgar – a adequação referida em nossas palavras iniciais – como, por exemplo, as práticas da
epístola familiar, do poema jocoso, do poema-carta em tom de invectiva, do poema de
sofrimento amoroso vazado em forma de acusações ou lamentos. Tomemos como exemplo um
romance jocoso, registrado em várias versões manuscritas, no qual o eu lírico intercede em
favor da dispensa de um soldado que havia adquirido uma pendência de Vênus. No caso
Romance 33 1°.
Senhor D. Luís Coutinho
que sois como todos Vemos
a moda dos atentados,
e a candala dos discretos
O padroeiro, da Musas
o Mecenas, dos Órfãos
o Xerife, de Mavorte
e o Conde Duque, de Vênus
Eu que com vossos Auxílios,
tão levantado me vejo,
que estou já mui arriscado
a ser lusbel dos modestos,
Com vossa Licença agora,
hei de apoiar um sujeito
que sendo Auxiliar do vossos
se val de Auxílios alheios
E Como os mais eficazes
E a vez de dar o Alentejo
um que não é suficiente
que falta pode fazer-vos.
Senhor; Francisco Correa
que desta Carta é Correio
as correias lhe saíram,
do couro há mui pouco tempo,
E só terá serventia
quando Marte brando, [em ergo]
calçe os ponslevis de Adonis,
ou os guantes de Hero;
E este que nos Pelames
de Chipre, curtido o temos
para o serviço da guerra
é [filele], e não bezerro,
Pois que esta Correa
que agora o é de S. Bento
mais que as de Santo Augustinho, se
valha dos privilégios,
E enfim, por falar-vos claro meu senhor,
este mancebo
não pode ser bom soldado,
sem ser soldado primeiro;
33
O poema foi transcrito do ms. 49 III 82 da Biblioteca da Ajuda. Registra-se no inventário de Pontes (1950, p.
63, ref. 275). Foi publicado na Fénix Renascida (1746, vol. 4, p. 332 atribuído a D. Monroy e Vasconcelos). Foi
também publicado no Postilhão de Apolo, poema 198, igualmente atribuído a Diogo de Monroy e Vasconcellos.
Constam também das seguintes bibliotecas: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, mss. 1726 fl. 302; 2168 rom.
69; 2237 fl. 72; Biblioteca Nacional de Portugal, mss. 3255 fl. 88v.; 3549 pg. 124; 6430 pg. 347; 8576 (incompleto
aqui); 8614 fl. 42; 9322 fl. 55; Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, mss. 357 fl. 34v. rom. 27; 371 fl. 83;
380 fls. 13 e 81v.; 384 fl. 17v.; 555 p; 14; 1353 fl. 227 v.; Biblioteca Pública de Braga (Arquivo Distrital de Braga,
da Universidade do Minho), mss. BPB 5 p. 316; [353] fl. 167v.; Biblioteca Pública Municipal do Porto, mss. 1186;
;1157 fl. 217; 751; cópia da Biblioteca da Ajuda, ms. 49 III 83 fl. 29.
34
Optamos por fazer pequenos ajustes à transcrição, no formato de uma edição diplomático-interpretativa, para
conferir maior agilidade à compreensão da ortografia do documento, que aparece eivado de representações de um
português arcaico, como, por exemplo, o “u” representando a letra “v”, o desdobramento das abreviaturas; o
estabelecimento de fronteiras entre palavras, unidas ou separadas segundo critérios distintos da ortografia atual.
Todos os termos ajustados estão representados em itálico.
No terceiro núcleo, observa-se que a interlocução (eu lírico exortante vs. exortado
desqualificado), refere este interlocutor menos importante e não-prudente, tanto pela sua
ocupação mercador, que não ocupa posição de destaque, senão a de ser material / não-nobre
segundo uma escala burguesa, homem rico e liberal, vive de juros e vê sua condição ameaçada
pela perda de uma letra de trinta réis, corroborando a fragilidade do seu status. Sem boas
relações com melhores, depende de audiência jurídica para resgatar o valor que se perdeu pelo
equívoco de ter sido usada a letra para fins de higiene pessoal, em termos chulos, como evoca
a linguagem vulgar da composição, enfiou a letra no...
35
Este poema se encontra nos Reservados da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, cota ms. 392 e no
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, ms. 2168 rom. 15. Maria de Lourdes Belchior Pontes catalogou-o à p. 44,
referência 157 de sua Bibliografia (1950). Optamos por atualizar a sua grafia, dada a linguagem extremamente
vulgar que se aplicou na sua composição.
Vista por essa ótica, toda a obra do Frei António das Chagas (a versão religiosa de
António da Fonseca Soares), não foi lida segundo o viés do vulgar. O argumento se justifica: o
processo de produção impressa na Lusitânia seiscentista e setecentista optou por imprimir obras
de uma vertente nobiliárquico-religiosa, fosse pela segurança da aceitação destes modelos na
submissão aos organismos de censura prévia ligados à Corte e à Igreja, fosse, igualmente, pelo
financiamento que a nobreza, que interferiu na forma de ações de mecenato, fez aplicar e,
consequentemente, garantir a palavra no processo de escolha daquilo que viria a ser publicado.
REFERÊNCIAS
BRAGA, Teófilo. Poesia Popular Portugueza. Porto: Typographia Lusitana, 1867. Disponível
em: <https://books.google.com.br/books?id=PhpEAAAAcAAJ>. Acesso em: 15 nov. 2017.
BRANCO, Camilo Castelo. Curso de Literatura Portugueza. Lisboa: Livraria Editora Matos e
Moreira, 1876. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=g7ARAAAAYAAJ.
Acesso em: 31 dez. 2017.
BRITTAIN, F. The Medieval Latin and Romance Lyric. Cambridge: Cambridge University
Press, 1951.
GODINHO, Manoel. Vida, Virtudes, E Morte Com Opiniaõ de Santidade Do Veneravel Padre
Fr. Antonio Das Chagas Missionario Apostolico Neste Reyno, Da Ordem de S. Francisco:
Fundador Do Seminario de Missionarios Apostolicos Da Mesma Ordem, Sito Em Varatojo.
[S.l.]: na Officina de Miguel Deslandes & à sua custa impresso, 1687. Disponível em:
<https://books.google.com.br/books?id=71HclH7EYtUC>. Acesso em: 7 dez. 2017.
HATZFELD, Helmut. Reviewed Works: Frei António Das Chagas. Um Homem E Um Estilo
Do Século XVII, by Maria de Lourdes Belchior Pontes”. University of Pennsylvania Press, v.
23, n. 2, p. 155-58. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/470931. Acesso em: 15 dez.
2016.
MENDOZA, Iñigo Lopez de. 1852. Comiença El Prohemio E Carta Quel Marqués de Santillana
Envió Al Condestable de Portugal Con Las Obras Suyas. In: RIOS, Don José Amador. Obras
de Iñigo Lopez de Mendoza, Marqués de Santillana. Madrid: Imprensa de la calle de S. Vicente
baja, á cargo de José Rodriguez, 1852. p. 1-18.
PONTES, Maria de Lourdes Belchior. Frei António Das Chagas: Um Homem e um Estilo Do
Século XVII. Lisboa: Centro de Estudos Filológicos, 1953.
RESUMO
A redemocratização no Brasil foi um período marcado pelo surgimento e ou renovação no
campo editorial, principalmente quando se pensa nas editoras que se mostraram contrárias a
ditadura militar. Entre elas, figura a Brasiliense, que editou nos anos 80, a principal obra do
autor gaúcho, Caio Fernando Abreu. Buscando entender a relação do autor com a editora, este
artigo se propõe a traçar o perfil da Brasiliense durante a década de 1980, objetivando
caracterizar o processo de produção, comercialização e circulação dos livros. Para isso,
entende-se ser importante compreender, brevemente, como o mercado editorial evoluiu num
período de repressão às artes e à produção intelectual, através da abertura cada vez mais
significativa do Estado, quanto a produção e subsídios para a publicação. Nesse sentido, será
possível compreender como a Brasiliense, passará da crise, que enfrentou durante os anos de
chumbo, em um estrondoso sucesso – de público, de crítica e de inovação, e de que modo Caio
Fernando Abreu participou desta mudança significativa para a história da produção intelectual
nacional.
PALAVRAS-CHAVE: Caio Fernando Abreu. Cartas. Mercado Editorial. Anos 80.
INTRODUÇÃO
Assim, ao fortalecer a indústria editorial, criou-se também um paradoxo, uma vez que
nunca “se proibiu e nunca se produziu tanta cultura como nos anos do regime militar”
(PAIXÃO, 1998, p. 143). Um dos veículos responsáveis por isso, a televisão, cujo Estado
autoritário teve fundamental importância ao estabelecer sua influência na sociedade, aumentou
o consumo de bens culturais favorecendo um determinado segmento no mercado livreiro e,
mais tarde, criando a lista de best-sellers. É a partir dos anos 70, que se torna cada vez mais
comum que, a partir de obras literárias, novelas ou minisséries passassem a ser montadas para
Até a metade da década de 1970, a produção anual de livros havia triplicado o que
colocaria o Brasil entre os dez maiores produtores do mundo. Esse “boom” trouxe inúmeras
transformações, como o surgimento de novas editoras, que agora passam a operar com mais
força também fora do eixo Rio-São Paulo; e o aumento da publicação de obras de autores
nacionais. Além disso, a criação de organismos pelo governo e sociedade civil materializaram
o interesse da área privada do livro e do governo no mercado editorial. A eles, Galucio (2005)
aponta para a Câmara Brasileira do Livro (CBL), O Instituto Nacional do Livro (INL) e o
Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL).
É importante compreender como esses três organismos construíram suas formas de luta,
seja na manutenção ou mudança da ordem social. Seus resultados se mostram significativos
para que se possa perceber um novo segmento no mercado editorial, no início dos anos 80,
quando ocorrem mudanças no horizonte político através da redemocratização.
A CBL, “cuja função era organizar feiras de livros, promover campanhas de divulgação
e reduzir tarifas postais para a distribuição de livros para diversas regiões do país”, (GALUCIO,
2005, p. 2) representando os interesses dos empresários do livro, consegue algumas medidas
que favorecem as editoras. A primeira delas, ainda com efeitos sobre o mercado dos anos 70 e
80, foi a imunidade tributária para a importação de papel destinado a impressão de livros,
incorporada à Constituição de 67. Outra grande medida foi a criação do Programa Nacional de
Papel e Celulose, que possibilitou ampliar a capacidade de produção para suprir a demanda,
sem a necessidade de importação de papel. Nesse caso, a CBL, agindo hegemonicamente como
um aparelho privado, possibilitou que as editoras permanecessem no mercado editorial
brasileiro.
Quando se pensa nos obstáculos enfrentados para que o mercado editorial fosse
expandindo, percebe-se o quão significativo e potencialmente competitivo ele se transformou.
Dos segmentos que merecem destaque e que insuflaram a competitividade foram, além do
mercado de livros didáticos, por conta da expansão da educação para toda a classe média, o de
produção de livros de oposição ao regime ditatorial, a partir, principalmente, da reforma
universitária, que transformou os espaços acadêmicos em uma espécie de reduto de intelectuais,
que criou uma vasta bibliografia, utilizada, posteriormente, pelas editoras para vendagem.
Embora Caio Fernando Abreu ainda não tivesse sido consolidado como intelectual
presente no segmento universitário como acontece atualmente, seus textos apresentavam
críticas ao governo ditatorial, ressaltando o impacto do golpe militar, o que resultaria não apenas
na interrupção do processo democrático, mas também iria ocasionar traumas que limitariam o
sujeito em várias de suas liberdades, sejam elas no campo cultural ou político. Assim, tê-lo na
Brasiliense, era também reforçar seu papel histórico de publicação de livros e textos de oposição
às ditaduras brasileiras.
É nesse clima de abertura política, de ideias e de mercado que desperta um lado inovador
da Brasiliense. Fundada em 1943, por um historiador (Caio Prado Jr.), um escritor (Leandro
Dupré), um militante comunista (Arthur Neves), e tendo como participação Monteiro Lobato,
de quem iria publicar todas as obras, a Brasiliense sempre se apresentou como editora de
vanguarda, cujo perfil nacionalista, acompanhado de um pensamento político de esquerda,
continuava durante o período ditatorial, publicando em defesa dos interesses da classe
trabalhadora. Contudo, depois de quase ir à falência em 1974 – devido ao aumento no preço do
papel ocasionado pela crise do petróleo de 73, juntamente com a linha de crediário que havia
sido feita para o projeto de publicações de porta em porta; além da perseguição e censura devido
a sua posição política de esquerda, fizeram com que Caio Graco Prado, herdeiro de Prado Jr,
assumisse que era preciso repaginar essa situação. Para isso, era necessário compreender, o tipo
de público que ainda não estava sendo completamente atendido pelo mercado editorial da
época.
Assim, no início da década de 1980, um projeto ousado era posto em jogo. Ao perceber
que havia uma multiplicidade de público a ser atendido, tanto em relação à faixa etária –
crianças, pré-adolescentes, jovens, idosos – quanto em relação aos assuntos abordados –
identidades sexuais, crenças, astrologia – novas obras foram postas em circulação. Criaram-se
Para englobar os diferentes públicos foram criados os selos da Brasiliense, que eram
divididos, a partir dos assuntos que seriam abordados em cada obra. “Primeiros Passos”, por
exemplo, tinha o objetivo de trazer temas complexos, como o livro O que é ideologia?, de
Marilena Chaui, num formato não acadêmico. Para Galucio,
Além da CPP, outros selos como o “Tudo é história”, “Cantadas literárias”, “Circo de
letras” e “Encanto radical”, tinham o propósito de apresentar desde grandes, a novos escritores,
biografias de personalidades e autores da contracultura. Como resultado da inovação,
evidenciou-se nos três primeiros anos da década de 80, a maior tiragem da história da editora.
Somadas, as publicações destes três anos, correspondiam a toda a tiragem já produzida pela
Brasiliense, no período correspondente a sua criação até 1979.
A maneira encontrada pela editora para dialogar com o público jovem era perceptível
nas capas e nos textos das coleções, além da publicação de escritos inéditos no mercado para
O principal argumento de Caio Graco, de acordo com Galucio (2009) era o de que não
existia progresso sem cultura. O editor aproveitava o espaço para falar sobre a “falta de
incentivo ao livro, acrescentando que se todos os municípios tivessem bibliotecas públicas, os
editores venderiam muito para o governo e o preço dos livros seria mais baixo para a população”
(GALUCIO, 2009, p. 224). Com o tempo, novos editores passaram a fazer parte do “tablóide”.
Entre eles o jornalista, Caio Túlio Costa que, em 1982, foi sucedido pelo escritor Caio Fernando
Abreu (CFA).
No período em que CFA foi convidado por Caio Graco para fazer parte como editor da
Leia Livros, o autor estava em negociação, há quase um ano, com a Editora Nova Fronteira,
para a publicação de um novo livro. Para Caio, no início da década de 80, essa era a melhor
editora para projeção no mercado nacional. Em carta para a mãe Zael de Abreu, em 15 de maio
de 1980, diz
Agora que está mais ou menos em ordem, quero começar a aprontar um novo livro.
Estou transando com uma editora no Rio (a Nova Fronteira que pertencia ao Carlos
Lacerda) para publicá-lo. No momento, creio que é a melhor editora do Brasil. Acho
36
Entre os canais com o público utilizados, conforme Galucio (2009), pode-se citar: (1) o próprio livro, que passou
a ter uma linguagem mais acessível, possibilitando maior fluência de leitura; (2) a presença, majoritariamente, de
jovens na redação da editora, incluindo o próprio diretor editorial Luiz Schwarcz que, anos depois, fundaria a
Companhia das Letras; (3) a utilização de textos de apoio publicitário para vendagem, com gírias e uma linguagem
bastante próxima àquela utilizada pelos jovens; (4) a criação do boletim Primeiro Toque (1982), que objetivava
levar os catálogos da editora aos livreiros de todo o país. O catálogo, mais tarde se transformaria numa espécie de
revista, onde os leitores podiam interagir com os editores e autores, além de outros leitores da mesma editora,
através de cartas e bilhetes, servindo de termômetro para futuras publicações; (5) a implantação de um projeto de
padrão visual relacionado a cada tipo de coleção publicada pela editora, de modo que fosse possível criar, no leitor,
uma espécie de identificação com a imagem e o selo da editora; e por fim (6) a inserção corajosa do “pocket”,
ainda visto como obra de segunda mão, bastante criticado naquele momento, no mercado editorial brasileiro.
Me disseram ontem aqui que meu livro fica pronto HOJE (já fumei três maços). Esse
livro foi uma novela de Janete Clair. Ficou DOIS anos na Nova Fronteira com
contrato assinado e promessas de sair, sempre, o mês que vem. Até que me baixou
o terceiro santo (Ogum), pedi que rasgassem o contrato, devolvessem os originais e –
enfim – tá saindo aqui pela Brasiliense. Chama-se Morangos Mofados. Eu já achei
genial, já achei medonho, já achei insípido, já achei violento: agora estou em plena
síncope de pré-lançamento, não sei mais o que sinto. Mando um prôce assim que
sair. (ABREU, 2002, p. 38) [grifos meus]
Antes de trabalhar como editor da Leia, Caio tinha feito parte, em 1968, da primeira
equipe da revista Veja 37, onde aprendeu, em um curso de jornalismo, a “encurtar as coisas,
enxugar o texto” (DIP, 2009, p. 125) e ser menos excessivo. Trabalhou também na revista Pop
e com o encerramento dessa, na revista Nova de onde saiu por não se adaptar ao clima entre os
colegas. A relação de Caio com as revistas 38 – mais tarde faria parte do departamento de
37
Quando fez parte da primeira equipe da revista Veja, sobre a intensificação do AI-5, Caio recebeu um telefonema
do DOPS, para o esclarecimento de sua participação, mesmo que ocasional, em encontros contra a ditadura. Após
ser avisado pelos colegas, do telefone, o autor decide pela demissão da revista e posterior isolamento na Casa do
Sol, da amiga Hilda Hilst, em Campinas.
38
As revistas Veja, Pop, Nova e Pais & Filhos pertenciam à Editora Abril, onde Caio conheceu a amiga e jornalista
Paula Dip que, em 1983, o convidou para fazer parte da equipe da revista Around, do “Gallery”, que ela editava,
juntamente, com Antonio Bivar. Conforme Dip, Caio “era um jornalista experiente, um escritor premiado, dono
de um texto impecável” (DIP, 2009, p. 27). Em 1990 a Arround é comprada pela Editora Abril.
Antes da Brasiliense, Caio já havia lançado outros livros pela Editora Agir, na qual
estreou com Limite Branco, e Movimento (de Porto Alegre), onde publicou O inventário do
irremediável, ambos em 1970. No entanto, é somente em 1975 que o autor ganha projeção
nacional ao publicar O ovo apunhalado, pela editora Globo. Caio considera a experiência de
distribuição e venda de livros pela Globo fracas, o que faria com que mais tarde, em 1983, a
publicação de Triângulo das Águas, que inicialmente, sairia pela mesma editora, fosse
publicado pela Nova Fronteira, que naquele momento, acompanha o sucesso estrondoso de
Morangos mofados, da Brasiliense.
[...] Estou no momento mergulhado na revisão das últimas provas do livro novo, o
Triângulo das águas, três novelas que chamo de “noturnos”, a sair em outubro pela
Nova Fronteira. Tem várias homenagens, uma delas a você. 39 (ABREU, 2002, p. 61)
Triângulo das Águas 40 foi a obra responsável por afastar o escritor do cargo de editor
da revista Leia, da Brasiliense. Caio nunca teve problemas 41 em trabalhar em diferentes revistas
ou negociar com diferentes editoras. Na maior parte das vezes, era ele quem rompia contratos
ou pedia demissão dos empregos. Foi assim na revista Veja em 1982, e mais tarde no jornal O
Estado de São Paulo, em 1987. Assim, em 1983, o escritor pede demissão da Brasiliense e
muda-se, novamente para o Rio de Janeiro, onde passa a morar num hotel em Santa Teresa.
Caio queria, naquele momento, dedicar-se integralmente à Triângulo das águas. Em carta a
Charles Kieffer, em 24 de maio de 1983, o autor escreve, agradecendo o convite e, ao mesmo
39
Carta escrita para Maria Adelaide Amaral, em 23 de agosto de 1983.
40
CFA recebeu o Prêmio Jabuti por O Triângulo das Águas, em 1984; Os Dragões não conhecem o paraíso, em
1989; e Ovelhas Negras, em 1996. Além de receber o prêmio de Melhor Livro pela Revista IstoÉ, em 1982, pelo
livro Morangos mofados.
41
De acordo com Baena (2008), o primeiro dissabor de CFA – ter que sair da revista Veja, pouco tempo depois de
ter abandonado o curso de Letras na UFRGS para trabalhar nela – irá inaugurar “uma instabilidade profissional
que permeará toda sua trajetória, refletindo, por conseguinte, na obra do escritor” (BAENA, 2008, p. 28)
[...] O livro está pronto, e eu não posso (obrigado pelo convite) ceder O marinheiro
nem qualquer outra das três novelas à Mercado Aberto: elas foram um tripé (?), uma
trilogia (?) in-se-pa-rá-vel. Por isso mesmo, o livro chama-se Triângulo das águas (a
água dos rios, dos mares, da chuva). (ABREU, 2002, p. 52)
Outro motivo que o faria trocar, temporariamente, de editora para a publicação de
Triângulo das Águas, foi a necessidade de colocar em prática o projeto finalizado. De um lado,
a Brasiliense querendo do autor outra obra nos moldes de Morangos mofados, do outro, CFA
com uma proposta completamente diferente. Isso fez com que Triângulo das Águas passasse a
ser considerado pelo autor, um tipo de “filho renegado”, a quem devia o máximo de proteção.
Percebe-se em Caio, nesse caso, uma espécie de política de independência. O autor, cuja
produção literária atendia às expectativas coletivas da época, sendo reconhecido pela sociedade
através do consumo da obra Morangos mofados, resolve levar adiante não um projeto de
literatura “comercial”, de interesse da editora, mas algo seu, de significado personalíssimo e
que, há muito tempo, vinha trabalhando. Um livro cuja construção dos personagens baseava-se
na astrologia, tema bastante recorrente nas cartas e contos do autor. Conforme Bourdieu (1996),
Outro elemento presente nas cartas, quando se pensa no livro como mercadoria, diz
respeito à reprodutibilidade parcial da obra sobre a obra. Ao assinar o contrato com a Brasiliense
para a publicação de Morangos mofados, em 1982, e receber a remuneração pelos direitos
autorais da obra, Caio assina também um compromisso de tutela da editora sobre o nome e
todas as vinculações futuras daquela obra com ele. Assim, o contrato impede que CFA, por
exemplo, utilize o título da obra em uma adaptação, que ele e Luciano Alabarse estavam
preparando para o teatro, e que seria apresentada em Porto Alegre, a não ser que para isso,
Pena que você não venha. Mas podemos nos ver com calma aí. Ah: pelo contrato que
assinei com a Brasiliense, se você usar o título Morangos Mofados, tenho que dar 50%
dos meus direitos para eles. Podemos pensar numa solução juntos: não estou a fim de
dar um vintém para o Caio Graco. (ABREU, 2002, p. 136)
Outra forma de pensar o modo como foi estabelecido o contrato pela Brasiliense, em
relação a obra e o autor a quem ela pertence, está em como a editora encara (1) os riscos em
publicá-la ou (2) o seu potencial de sucesso. Segundo Bourdieu,
Um romance que não faz sucesso tem uma duração de vida (a curto prazo) que pode
ser inferior a três semanas. Em caso de sucesso a curto prazo, uma vez subtraídos os
gastos de fabricação, os direitos autorais e as despesas de difusão, [resta pouco para]
amortizar os não vendidos, financiar seu estoque, pagar seus gastos gerais impostos.
Mas quando um livro prolonga sua carreira além do primeiro ano e entra no “acervo”,
constitui uma “reserva” financeira que fornece as bases de uma previsão e de uma
“política” de investimentos a longo prazo (BOURDIEU, 1996, p. 164) [adaptado]
CFA, em 1982, tendo publicado pela editora Globo, já possuía notoriedade, e
conversava diretamente com os interesses e a proposta de mercado da Brasiliense. Com a nova
década despontando, Morangos mofados, reunia a “cara” do que viria a ser a nova geração,
distante da então ultrapassada tradição literária. O livro passou a fazer parte da coleção
“Cantadas Literárias”, que traziam textos voltados para um público jovem, e “tentava abrir
caminho junto à crítica literária [...] a Brasiliense apostava no fenômeno” (BARBOSA, 2008,
p. 43). Sendo assim, o contrato firmado, visava garantir um investimento, que para a editora
tinha tudo para dar certo.
segundo o critério do êxito temporal medido por índices de sucesso comercial (tais
como tiragem dos livros, o número de representações das peças de teatro etc.) ou de
notoriedade social [...] a primazia cabe aos artistas conhecidos e reconhecidos pelo
“grande público” (BOURDIEU, 1996, p. 247)
Naquele período, CFA já fazia parte deste grupo seleto, reconhecido pelo grande
público. A Brasiliense por sua vez, continuava tentando inovar. Até a primeira metade da
década de 80, a fim de aumentar seu campo mercadológico, a editora uniu-se em um projeto de
coedição com outra editora privada, a Abril. De iniciativa da Brasiliense, o resultado obtido
através da coedição, foi um ganho na posição de destaque no mercado editorial, de modo que
foi possível ampliar suas estratégias de consolidação.
Além disso, ideia de buscar um leitor não tradicional, fez com a editora ampliasse seu
número de livrarias, de modo que fosse possível aumentar as vendas com desconto, por
exemplo. Um sistema inovador de franquia, que atenderia as novas demandas do mercado. A
ideia desse sistema era fazer com que o livreiro não precisasse sondar o público leitor para
comprar o acervo, nem esperar que o vendedor das grandes livrarias passasse entregando o
pedido, uma vez que tudo ficaria à cargo da editora, numa espécie de sistema de trocas entre as
livrarias franqueadas. Nessa estratégia incluía-se também as vendas de porta em porta.
que era feito semestralmente [...] passava a ser trimestralmente. Esse tipo de iniciativa
já havia ocorrido em 1978, quando esta mesma editora alterara a forma de pagamento
dos direitos autorais realizado anualmente para o pagamento semestral, o que acabou
predominando no mercado (GALUCIO, 2009, p. 187)
O pagamento trimestral ou semestral pelos direitos autorais, iria facilitar a vida dos
escritores e conforme GORINI & BRANCO (2000), seguiria, mesmo após 20 anos, o mesmo
formado, no qual as editoras financiavam, todo o processo produtivo do livro, até chegar às
livrarias, concedendo prazo de 60 a 90 dias para pagamento dos autores. No entanto, para CFA,
Caio tinha consciência de que ser escritor, no Brasil, era viver uma luta diária pela
sobrevivência. O autor já havia dito isso à Vera Auton em carta, ainda nos anos 70, “Minha
profissão é essa coisa absurda de escritor, que não dá dinheiro nenhum, estou sempre
recomeçando e recomeçando e recomeçando. É muito duro” (ABREU, 2OO2, p. 464). Por
isso, entre um trabalho e outro, era obrigado a aceitar novas propostas. Entre elas a de ser
tradutor, função que também exerceu para a editora Brasiliense, conforme descreve em carta a
Fernando Alabarse, em 07 de fevereiro de 1984, época em que trabalhava com Paula Dip 42 na
revista Around,
Na produção intensa de CFA, como conta José Márcio, amigo do autor, à Paula Dip “eu
nunca vi ninguém escrever tanto. Com tanta assiduidade, tanta paixão. De manhã, de tarde, de
noite, de madrugada, no ônibus, na redação, na fila [...] Caio estava sempre escrevendo” (DIP,
2009, p. 49), integrava a escrita de um romance 43 que só seria concretizado no início da década
de 1990.
42
Nesta mesma época, CFA, trabalhava para a TV Cultura, apresentando o programa “Leitura Livre”, que discutia
literatura. A sugestão de Caio para ser apresentador, partiu da amiga e colega de trabalho na revista Around, Paula
Dip.
43
O segundo romance do autor intitulado Onde andará Dulce Veiga? Durante todo o processo de escrita, é possível
perceber a personagem título bastante presente nas cartas enviadas pelo escritor aos amigos.
Aceitei uma proposta louca da Brasiliense. Venho, há três anos, desde pouco antes de
sair Morangos, remexendo numa histórica louca e longa – anotando, pensando. Sem
tempo para sentar e escrever. Bueno, a Brasiliense fez essa proposta e topei. Agora
estou com medo. Porque tenho apenas que sentar e escrever. Claro que tem um jeito
simpático de profissionalização, mas também é arriscado. E se... não sair? Sairá, sairá.
(ABREU, 2002, p. 122)
Quantias como adiantamento, pagas a escritores para começar a escrever um livro, estão
relacionadas a projeção de vendas que esse autor pode proporcionar à editora. Sucesso em 1982,
pela publicação de Morangos mofados e vencedor do Jabuti de 1984, por Triângulo das águas,
CFA representava uma boa aposta a um sucesso prévio de vendas da futura obra encomendada.
É a partir de então, que a presença de Dulce Veiga será uma constante na vida do autor.
Inicialmente, preocupado em não conseguir terminar o projeto, Caio passará a incluir a
personagem em seu cotidiano, buscando espaços e pessoas que mais se aproximassem àquilo
que estava querendo, uma vez que a identificação com a história e os personagens eram, para o
autor, uma obsessão.
O livro, lançado apenas em 1990, pela Companhia das Letras, editora recém-criada por
Schwarcz, venceu o Prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) de Melhor
Romance do Ano de 1991, além de ter, no mesmo ano, seus direitos vendidos para editoras da
França e Inglaterra. Mais tarde o livro também seria traduzido para o italiano, alemão, holandês
e espanhol, viraria peça de teatro e, mais recentemente, em 2008, filme. No entanto, o contrato
que havia sido firmado por Schwarcz, com a Brasiliense, acabou sendo abocanhado por ele,
para ser publicado naquela que viria ser, uma das mais consagradas editoras do mercado
editorial brasileiro, a Companhia das Letras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Contudo, é importante pensar que, apesar do sucesso editora, grande parte disso se deu
através da inovação e adaptação na escrita dos autores, que nem sempre eram bem remunerados.
Isso fez com que escritores como Caio Fernando Abreu, vencedor do Jabuti de 1984, tivesse
que encarar múltiplas atividades em revistas e jornais de grande circulação para que pudesse
ter uma vida financeira razoável, algo que se percebe ainda hoje. Entender a relação autor-
editora em um período de abertura política, cujas novidades transformaram o modo como o
mercado editorial era visto, lança luz para que se pense o atual processo de mudança – as mídias
digitais – que as editoras estão passando e a adaptação dos autores a esse novo formato no
mercado editorial.
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