STAUT JR, S. O Discurso Tradicional Dos Direitos Autorais
STAUT JR, S. O Discurso Tradicional Dos Direitos Autorais
STAUT JR, S. O Discurso Tradicional Dos Direitos Autorais
Os direitos do sujeito criador sobre sua obra, tal como atualmente vêm regulados
pelas legislações contemporâneas, apresentam-se marcados por uma duplicidade de
conteúdo, pois contemplam aspectos de natureza claramente patrimonial, representado pela
obra, resultado material da criatividade e do esforço humano, a partir dos quais são tratados
como direitos patrimoniais do autor. Outros, de natureza complexa, denominados direitos
morais do autor, permanecem identificados e vinculados à própria personalidade do autor.
A natureza dúplice dos direitos autorais pode ser claramente identificada na Lei
brasileira, em vigor desde 1998, Lei n.º 9.610, especialmente no art. 22, quando dispõe:
“Pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou.” 4
Esta Lei
3
DUVAL, Hermano. Direitos autorais nas invenções modernas. Rio de Janeiro: Editorial Andes,
1949. p. 7.
4
Essa também era a orientação adotada pela Lei n.º 5.988, de 14 de dezembro de 1973, revogada
(excetuando-se o art. 17 e seus parágrafos 1º e 2º), que regulamenta os Direitos Autorais. Essa Lei dispunha
no seu art. 21: “O autor é titular de direitos morais e patrimoniais sobre a obra intelectual que produziu.”
reserva um capítulo específico para cada uma dessas facetas. O Capítulo II (arts. 24 a 27),
do Título III, é destinado aos direitos morais do autor e o Capítulo III (arts. 28 a 45), desse
mesmo Título, cuida dos direitos patrimoniais do autor e sua duração.
Nessa mesma linha, a doutrina jurídica destaca a peculiaridade desses direitos nos
seguintes termos: “O direito de autor concretiza-se em faculdades de caráter patrimonial e
em faculdades de caráter pessoal”5. Esse traço característico é aceito, explicado e trabalhado
amplamente pelo discurso tradicional dos direitos autorais6.
Por evidente, essa forma de entender e regular essa categoria de direitos não é algo
separado da historicidade do próprio Direito Moderno, não sendo poucas as formulações
teóricas e expressões jurídicas que, ao longo da história, constatam e procuram explicar e
trabalhar com essa singularidade dos direitos autorais.
A discussão sobre o duplo aspecto dos direitos autorais que acompanha o
nascimento e todo o processo de transformação e mudança dos direitos autorais, encontra-se
positivada, de certa maneira, na Lei n.º 9.610/98 (de direitos autorais) e não está,
evidentemente, superada, permanecendo em aberto na doutrina e na jurisprudência, para o
debate.
Aprofundando a análise inicial a respeito das posições doutrinárias especialmente
conhecidas e adotadas no espaço jurídico brasileiro, José de Oliveira ASCENSÃO aponta
para a duplicidade estrutural dos direitos autorais, quando afirma: “Discute-se vivamente se
o chamado direito de autor é um único direito, ou se devemos distinguir em direito pessoal e
um direito patrimonial do autor. É o problema da estrutura do direito do autor”7.
Permanecendo no exame da estrutura dos direitos autorais, discute-se se o direito
de autor é um único direito, compreendendo faculdades patrimoniais e extrapatrimoniais
(chamadas de morais, pessoais ou personalíssimas, dependendo do autor), ou se são vários
5
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito autoral ... p. 71. Nessa mesma linha, Ricardo
LORENZETTI afirma: “Para nuestros fines es suficiente con señalar que la ley protege el derecho de autor, y
que éste tiene dos aspectos: uno vinculado a los elementos extrapatrimoniales y outro a su explotación
económica; este último aspecto permite que sea objeto de los contratos.” (LORENZETTI, Ricardo Luis.
Tratado de los contratos. Tomo III, Buenos Aires: Rubinzal – Culzoni Editores. s/d. p. 16).
6
12
A orientação aqui adotada segue, exemplificativamente, a posição de Darcy BESSONE
(BESSONE, Darcy. Direitos reais. 2a ed., São Paulo: Saraiva, 1996). Para outras leituras que abordam outras
teorias sobre a constituição da natureza jurídica do direito do autor verificar: CHAVES, Antônio. Criador da
obra intelectual: direito de autor natureza, importância e evolução. São Paulo: LTr, 1995. p. 18 – 27;
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito de autor e direitos conexos ... p. 667 – 687. Todas essas orientações,
apesar das suas variações, inserem-se no discurso tradicional dos direitos autorais.
13
BESSONE, Darcy. Direitos reais ... p. 117.
14
BESSONE, Darcy. Direitos reais ... p. 118.
Continuando sua exposição, BESSONE conclui que as teorias anteriormente
apontadas “cometiam o equívoco” de analisar o fenômeno autoral apenas por um desses
aspectos, pois, “publicado o trabalho intelectual, surge uma situação jurídica mista, formada
de dois elementos: um imaterial e pessoal, que se liga à personalidade e à liberdade do autor,
e, outro, patrimonial e econômico, que é suscetível de cessão”15. Essa maneira de entender
os direitos autorais, que reconhece esses dois aspectos da produção intelectual, é
denominada “teoria dualista”16.
Apesar das variações doutrinárias em torno dessas posições teóricas17, a teoria
dualista, geralmente, é apresentada pelo discurso tradicional dos direitos autorais como o
último estágio do desenvolvimento doutrinário dos direitos autorais, o ápice da elaboração
teórica nessa matéria18.
15
BESSONE, Darcy. Direitos reais ... p. 117.
16
BESSONE comentando a “teoria dualista” afirma que: “As dificuldades do tema acentuam a
impossibilidade de tratá-lo sem o dualismo admitido por esta última teoria. O direito pessoal do autor, que
impropriamente se costuma qualificar de moral, não se submete à disciplina do direito patrimonial. A este, de
outra parte, não satisfaz a técnica do chamado direito moral. Parece-nos que o bifrontismo argüido constitui,
no caso, uma contingência invencível, que corresponde à essência e à natureza do direito autoral.”
(BESSONE, Darcy. Direitos reais ... p. 117.)
17
Teixeira dos SANTOS classifica de outra maneira as principais teoria que procuram explicar a
natureza jurídica dos direitos autorais, apesar de trazer um rol menos extenso de propostas teóricas, o autor
sintetiza as principais orientações com relação à matéria e, por isso, devem ser citadas. Segundo Teixeira dos
SANTOS: “A teoria da Propriedade é a mais tradicional. Foi a que classificou dentro da sistemática clássica
romana, incluindo-a na categoria dos direitos reais.” (...) “A teoria da Personalidade tem sua origem nas
concepções de Kant. Seu principal seguidor, Otto Von Gierke, deu forma jurídica a essa tese, que vê na obra
uma extensão da pessoa do autor, cuja personalidade não pode ser dissociada do produto de sua inteligência:
o Direito do Autor é um Direito Pessoal, como o direito ã vida, ã integridade física, ao nome.” (...) “A teoria
dos Bens Jurídicos Imateriais, de Joseph Kohler, reconhece ao autor um direito absoluto sui-generis, de
natureza real. Paralelamente, declara existir uma relação jurídica de natureza pessoal entre o autor e a obra,
que não constitui um elemento do direito autoral e conserva as características de puro direito da
personalidade. Mantém-se fiel à concepção clássica, apenas substituindo os direitos reais pela categoria mais
ampla de direitos sobre os bens, a qual compreenderia os direitos sobre os bens corporais (direitos reais) e os
direitos sobre o bens imateriais (Direito Autoral).” (...) “A Teoria dos Direitos sobre Bens Intelectuais. Como
não encontrava possibilidade de incluir o Direito Autoral numa das três categorias da divisão romana,
Edmond Picard adicionou-lhe uma quarta, cuja denominação seria jure in re intellectuali.”(...) “A Teoria
Dualista que, conciliando as teses anteriores, vê na proteção à criação intelectual um direito autônomo que
enfeixa dois direitos diversos, interdependentes, porém distintos um do outro: o patrimonial, transferível e o
pessoal, insubrogável”. (SANTOS, Newton Paulo Teixeira dos. A fotografia e o direito do autor, 2a ed., São
Paulo LEUD, 1990. p.16 – 19). Com essa mesma classificação, ver: COSTA NETTO, José Carlos. Direito
autoral no ... p. 47.
18
“A pertinência da concepção dualista como uma ‘verdadeira evolução’ de todas as teorias é
defendida, a exemplo da maioria dos autoralistas, por Henry Jessen, concluindo que esta conciliaria as teses
anteriores, pois veria na criação intelectual um instituto autônomo que enfeixa dois direitos diversos,
interdependentes, porém distintos um do outro: o patrimonial, transferível, e o pessoal, insub-rogável”
(COSTA NETTO, José Carlos. Direito autoral no ... p. 51).
A posição adotada pelos formuladores da teoria dualista, embora não seja pacífica, é
a mais aceita pela doutrina autoralista e a que, na linha do discurso tradicional dos direitos
autorais, melhor explica a sua natureza jurídica. No entender de José Carlos COSTA
NETTO, a “solução pela teoria dualista, defendida pelo jurista Henry Desbois, não é
pacífica, mas tem sido considerada como a mais adequada à conceituação do direito de autor
na localização de sua natureza jurídica sui generis ou ‘híbrida’”19. Essa posição além de
estar positivada na Lei n.º 9.610/98, conforme já foi explicitado, também é aceita,
atualmente, pela jurisprudência, que reconhece, além do aspecto de ordem patrimonial, o
aspecto moral dos direitos autorais. A violação a esses direitos, conseqüentemente, enseja
tanto a reparação por danos materiais quanto morais20.
A teoria dualista sustenta que os aspectos patrimoniais e morais dos direitos autorais
são complementares, ou seja, tutelam ambas as esferas do autor, a pessoal e a patrimonial21.
A obra autoral só pode ser reconhecida e individualizada se for reconhecido e tutelado o
vínculo que une o autor à sua obra. Por mais que a materialização da idéia ou as formas de
transmissão variem, o elo entre criador e o seu produto intelectual permanece e, por isso,
deve ser protegido. Por outro lado, de acordo com a posição adotada por grande parte da
doutrina, são os direitos patrimoniais que garantem as condições materiais para a
permanência da atividade intelectual e tutelam, em última instância, a própria personalidade
do autor. Os direitos personalíssimos e os patrimoniais do autor, apesar de serem direitos
distintos, segundo o discurso tradicional dos direitos autorais, são interdependentes.
19
COSTA NETTO, José. Direito autoral no ... p. 49.
20
Um exemplo que caracteriza a duplicidade dos direitos autorais pode ser verificado em julgado
do Superior Tribunal de Justiça, que traz em sua Ementa a seguinte conclusão: “A divulgação (publicação)
em revista de cenas do último capítulo de novela, com transcrição integral e literal de significativa parte do
respectivo script, realizada sem autorização do autor e cerca de uma semana antes de referido capítulo ser
transmitido pela televisão, é procedimento que encerra ofensa aos direitos autorais, tanto de ordem
patrimonial como moral, não estando albergado ou amparado pelo direito de citação, tampouco pelo de
informação. (...) (sem grifos no original) (STJ) Resp. 23.746-8-SP-4a T.-J.28.3.95, Rel. Min. Sálvio de
Figueiredo Teixeira (DJU de 2.10.95)” (DIREITO AUTORAL: Série Jurisprudência. 2a ed., Rio de Janeiro:
Esplanada: ADCOAS, 1997. p.188). Nesse mesmo sentido, a seguinte ementa do Superior Tribunal de
Justiça: “Destruição de Obra de Arte. São invioláveis a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à
indenização pelo dano material ou moral conseqüente à sua violação. Não se paga a dor, tendo a
prestação pecuniária função meramente satisfatória. Assim como o detrimento de bens materiais ocasiona
prejuízo patrimonial, ‘a agressão aos bens imateriais configura prejuízo moral’. Uma vez incontroversa a
existência do dano e admitida a sua responsabilidade, decorre daí ser o mesmo indenizável, não pelo simples
decurso do tempo comprovada destruição da obra de arte, que é a projeção da personalidade do autor. (sem
grifos no original) (STJ), Resp 37.374-3-MG-2a T.-28-9-94, Rel. Ministro Hélio Mosimann –DJU 24-10-94”.
(DIREITO AUTORAL: Série Jurisprudência ... p.75).
21
BITTAR, Carlos Alberto. Contornos atuais ... p. 42.
Ocorre que esta complementaridade, propalada e defendida por grande parte do
discurso tradicional dos direitos autorais, pode e deve ser melhor analisada. Questionar se a
interdependência entre os direitos morais e patrimoniais do autor, estabelecida no plano
abstrato, corresponde e em que medida corresponde aos efeitos concretos verificados no
plano das relações sociais, é algo importante a ser feito.
A reflexão sobre a natureza dúplice dos direitos autorais remete a um outro conjunto
de preocupações, dentre elas, a questão do fundamento dos direitos autorais, ou seja, qual a
razão pela qual a lei protege esses direitos. Conforme Darcy BESSONE, são várias as
respostas que foram dadas a essa questão22, entretanto, a mais aceita atualmente é a criação.
Para esse autor, o “fundamento da proteção ao direito autoral residiria, pois, na criação”23. E
essa “é a melhor explicação, inclusive por afeiçoar-se à teoria dualista sobre a natureza de
tal direito”24.
Na linha traçada pelo discurso tradicional dos direitos autorais, só existem direitos
autorais se houver criação25. A atividade intelectual tutelada pelo direito autoral é aquela que
implica a existência de um mínimo de criatividade e originalidade. Sustentando esse mesmo
entendimento, José de Oliveira ASCENSÃO defende que “a tutela extensa do direito de
autor só é justificada pela criatividade, pelo que se não houver uma base de criatividade
nenhuma produção pode franquear os umbrais do Direito de Autor”26.
22
Segundo BESSONE, existiram outros fundamentos para o direito do autor, fundamentos que
também justificaram a proteção das obras intelectuais e seus autores, são eles: a) o autor seria o proprietário
das idéias; b) o autor “ocuparia” as idéias presentes em sociedade – teoria da ocupação; c) a teoria segundo a
qual o autor receberia uma contraprestação pelos serviços prestados à sociedade; d) também no trabalho
autoral é encontrada a razão da proteção ao direito autoral; e) por fim a justificativa da criação que é a
adotada pelo autor. (BESSONE, Darcy. Direitos reais ... p. 118 – 119).
23
BESSONE, Darcy. Direitos reais ... p. 119.
24
BESSONE, Darcy. Direitos reais ... p. 119.
25
Nas palavras de BITTAR, “é pela criação – vale dizer, pela ação de dar a lume obra intelectual
estética – que se adquirem direitos autorais. Daí, título originário para a aquisição de direitos é o fenômeno
natural de concepção e de materialização da forma intelectual protegível.” (BITTAR, Carlos Alberto.
Contornos atuais ... p. 24).
26
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito de autor e direitos conexos ... p.11.
A Lei brasileira n.º 9.610, de 19 de fevereiro, de 1998, também, nesse aspecto se
orienta pelo discurso jurídico tradicional, em especial, no Capítulo I, do Título II, no artigo
7o: “São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio
ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no
futuro (...)”27. (sem grifos no original).
A atividade jornalística serve, perfeitamente, para ilustrar a presença e a necessidade
de criatividade como elemento justificador da tutela jurídica autoral. O que se observa na
atividade jornalística é que as notícias, em si mesmo, não são protegidas, o que se protege é
a “novidade” agregada, pelo autor, aos fatos. Assim, só “há direito de autor do jornalista
desde que haja criação, ou seja desde que ele ultrapasse o simples relato de acontecimentos,
a notícia singela, que, por definição não é protegida”28. A maneira como esses fatos são
contados, os comentários, a leitura realizada pelo jornalista dos acontecimentos, entre outras
maneiras de se “trabalhar” com a notícia são os elementos que podem atribuir alguma
criatividade ao relato e, desse modo, permitir que a tutela jurídica dessa atividade se faça
por meio dos direitos autorais.
Essa mesma fundamentação também é verificada, amplamente, na jurisprudência.
José CRETELLA JÚNIOR, ao analisar um leading case entre julgados brasileiros referentes
à coletânea de leis e sua proteção jurídica, verificou que ausente o caráter criativo da obra, a
atividade intelectual não está sujeita à tutela autoral. De acordo com o autor, “Esta decisão,
leading case sobre o tema, deixa bem claro que Coletânea de Leis, composta de texto único,
remissões e índice, sem notações ou comentários, é desprotegida da lei brasileira autoral,
por estar ausente o traço da criação intelectual”29.
27
No Capítulo I, do Título II (arts. 7o - 10) da atual Lei de direitos autorais, são definidas as obras
intelectuais protegidas.
28
REIS. Miguel. O direito de autor no jornalismo. Lisboa: Quid Juris? Sociedade Editora, 1999. p.
26. Segundo Miguel REIS: “É regra a de que as notícias em si mesmas e os relatos de acontecimentos não
merecem protecção, como, aliás, bem se compreende. Elas existem por si e não pela forma por que são
comunicadas ou pela mensagem que as transporta. Mas não é a isso, à simples reprodução de notícias ou ao
simples relato de acontecimentos que se chama jornalismo. (...) O resultado da criação jornalística, desde que
seja criação e não se resuma a mera reprodução de factos ou resumo de acontecimentos, sem nenhuma
criatividade que acrescente aos próprios factos uma novidade em termos criativos, é protegida pelo direito de
autor.” (REIS. Miguel. O direito de autor ... p.19-20). Estas observações de Miguel REIS, embora se refiram
ao Direito português, são válidas ao Direito brasileiro.
29
CRETELLA JÚNIOR, José. O direito autoral na jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 1987.
p.1. Nessa obra, o autor faz uma compilação de casos clássicos envolvendo direitos autorais. O acórdão
apontado possui a seguinte ementa: “Compilar ou coletar textos de leis, arrumando-os com índices e
remissões em rodapés, ainda que constitua prestação que exige gabarito técnico e trabalho exaustivo de
pesquisa, não chega a constituir criação intelectual científica, e muito menos artística ou literária. (Primeira
Câmara do Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, 1979, em RT 526/131).” (CRETELLA
JÚNIOR, José. O direito autoral ... p.2).
Em um caso mais recente, decidido pelo Tribunal de Alçada do Estado de Minas
Gerais, a questão principal, objeto de controvérsia entre o voto vencido e a posição
majoritária, ficou em se definir se o trabalho fotográfico de determinado sujeito constituía
ou não criação artística e conseqüentemente se estava ou não amparado pelo direito autoral.
Uma frase do Voto Vencido demonstra a controvérsia: “Para que a fotografia se enquadre
como obra intelectual protegida, no entanto, exige-se que a mesma possa ser considerada
criação artística, portanto verdadeira obra de arte, em vista da escolha do objeto e das
condições de sua execução.” A solução adotada no caso restou sintetizada na Ementa do
Acórdão: “Não caracteriza obra de arte, a justificar a proteção da lei de Direito Autoral, a
fotografia cujo objeto não foi escolhido pelo fotógrafo e em cuja produção não se empregou
criatividade” 30.
Ainda em relação a esse problema, Manoel Joaquim Pereira dos SANTOS destaca a
dificuldade em se definir se um determinado trabalho fotográfico é ou não uma criação. De
acordo com esse autor:
“enquanto os desenhos, charges e caricaturas resultam essencialmente do trabalho intelectual do
artista, a fotografia é também o produto de atividades mecânicas e de reações químicas, o que
muitas vezes pode permitir a obtenção de um resultado com grande valor informativo sem que
tenha concorrido, de forma significativa, a participação do fotógrafo. É o caso da foto instantânea,
cuja proteção como obra intelectual foi muitas vezes discutida, embora a tendência seja para
admitir seu amparo legal, com base no entendimento de que o direito autoral protege o resultado e
não o esforço desenvolvido, além do argumento de que também neste caso intervém certa dose de
inteligência criativa do autor”31.
30
RJTAMG. Belo Horizonte: DelRey, vol. 75, ano XXIV, abr./jun. 1999. p. 142 e p. 139. Nessa
linha, um outro exemplo que pode ser indicado é a decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro, sintetizado na seguinte Ementa: “Propriedade intelectual. Proteção do invento, obra literária ou
qualquer obra intelectual. Forma ou expressão da idéia pura. A idéia em si, ou uma simples concepção ideal,
não constitui trabalho intelectual protegível. (...) (TJ-RJ) Ap. Cív. 949/91, Relator: JD. Subs. Des. Décio
Xavier Gama (Reg. Em 10-4-92) (DIREITO AUTORAL: Série Jurisprudência ... p.70).
31
SANTOS, Manoel Joaquim Pereira dos. O direito de autor na obra jornalística gráfica. São Paulo:
RT, 1981. p.84.
5 OBJETIVO DOS DIREITOS AUTORAIS: A PROTEÇÃO INTEGRAL DO
AUTOR
36
“(STJ), (Rec. Esp. 1.297-RJ) (89.0011461-1) ... Rel. p/ Acórdão: O Sr. Ministro Sálvio de
Figueiredo”. (sem grifos no original) (DIREITO AUTORAL: Série Jurisprudência ... p.170-171). Em outro
julgado, o STJ, além de ressaltar a peculiaridade dos direitos autorais, sustenta que a sua dúplice constituição
serve para a proteção do autor: “(...) O autor de obra intelectual é titular de direitos morais e
patrimoniais (art. 21). Depende de autorização qualquer forma de utilização de sua obra (art. 30). Ocorrendo
ofensa a ambos os direitos, cumulam-se as indenizações. Caso em que se reconheceu, também, a lesão de
direito patrimoniais. Recurso especial, por isso, conhecido e provido, em parte. (sem grifos no original)
(STJ) (RE 13.575-SP) (Reg. 91162655) Relator: O Exmº Sr. Ministro Nilson Naves”. (DIREITO
AUTORAL: Série Jurisprudência ... p.84).
a função de estimular a atividade artística, científica e literária, ou seja, aos direitos autorais
é atribuído o papel de fomentar a produção cultural em sociedade.
Nessa perspectiva, ao se proteger juridicamente o autor, garantindo os frutos
econômicos e o vínculo indissolúvel entre ele e sua obra, está-se estimulando a criação
artística, científica e literária e, conseqüentemente, contribuindo para o desenvolvimento e
progresso de toda a sociedade.
Um exemplo desse discurso pode ser verificado nas palavras de Miguel REIS: “É
hoje pacífico que o acesso à cultura e catalização da produção cultural passa (...) por uma
proteção eficaz das obras publicadas e é inversamente enfraquecida por uma falta de
proteção ou por uma proteção insuficiente”37. Ainda mais eloqüente, no sentido de vincular
o desenvolvimento cultural e a proteção autoral, são as observações de Antônio CHAVES:
“Os governos dos países mais adiantados estão compenetrados de que, no mundo altamente
competitivo de hoje, não existe progresso sem amparo à cultura e à técnica” 38. Pois, segundo
o mesmo autor, “Continuarão escravas as nações, mesmo poderosas economicamente, que
não estiverem em condições de preparar, a par de suas tropas aguerridas com os mais
modernos equipamentos bélicos, outro exército, silencioso e pacífico: o dos obreiros do
espírito, o dos homens do pensamento, o dos artistas (...)”39. E continua: “Ora, essa meta só
se alcançará por um caminho lógico, natural, autógeno, no sentido de que de si mesmo
aufere forças: amparar, proteger, indistintamente, todas as criações intelectuais”40.
A importância atribuída à função dos direitos patrimoniais e de personalidade do
autor é tão grande que, na linha desse discurso, se não houver proteção jurídica, aos moldes
do atual modelo de regulação das idéias em sociedade, não se produz cultura41. A proteção à
personalidade do autor e aos possíveis frutos econômicos que sua obra possa produzir é que
impulsionam a inventividade e a criatividade do autor. Salta aos olhos, nesse discurso, a
37
REIS, Miguel. O direito de autor ... p. 14-15
38
CHAVES, Antônio. Criador da obra intelectual ... p. 36.
39
CHAVES, Antônio. Criador da obra intelectual ... p. 36.
40
CHAVES, Antônio. Criador da obra intelectual ... p. 36.
41
Segundo Antônio CHAVES: “A relevância do direito de autor está intimamente relacionada com
a própria importância da criação intelectual: origem, base, desenvolvimento de tudo quanto existe de belo e
de construtivo no mundo.” (CHAVES, Antônio. Criador da obra intelectual ... p. 29).
valorização do indivíduo em relação à sociedade que, aliás, lhe é anterior e, por isso, lhe
transmite a base para a própria atividade criativa42.
Ocorre que, se essa maneira de compreender a questão está correta, corre-se o risco
de identificar o atual modelo de regulação com a própria noção de criação intelectual,
estimulando, assim, apenas algumas formas de criação. O que não se encaixa muito bem aos
moldes da regulação jurídica tradicional não é protegido e não é estimulado. A forma
jurídica é que delimita o conteúdo do que será tutelado e do que, nesse caso, constitui uma
atividade intelectual criativa. Incentiva-se um único tipo de atividade artística, científica ou
literária em detrimento de outros que, para o atual modelo, não são considerados
manifestações intelectuais criativas, passíveis de tutela pelos direitos autorais. O que deve
ser analisado com maior cuidado é se a valorização da criatividade é fruto apenas da
modernidade e do seu sistema de proteção jurídico autoral.
42
Nessa questão, parece ser pertinente a observação de Michel VILLEY: “Parece que estamos ainda
muito mergulhados no sistema individualista, herdado do século XVIII. Os princípios individualistas estão
mesmo ancorados profundamente na consciência contemporânea.” (VILLEY, Michel. Filosofia do direito ...
p.135). Nas palavras de Gerd BORNHEIM, “Abrevio o tema dizendo que o súdito medieval, o homem
subordinado ao rei e ao papa, empenhavam-se em construir as muralhas da cidade e mesmo as do império; o
burguês, como que emoldurando os seus procedimentos de auto-afirmação, despreocupa-se da cidade e
limita-se à construção do muro que protege a sua própria casa.” (BORNHEIM, Gerd. O sujeito e a norma. In:
NOVAES, Adauto. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 250).
43
SANTOS, Newton Paulo Teixeira dos. A fotografia ... p. 14.
comercial”44. Nessa linha, o aspecto patrimonial dos direitos autorais, inicialmente, pode ser
entendido como a parcela ou aspecto patrimonial dos direitos autorais.
A Lei n.º 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que regulamenta esta matéria no Título
III, Capítulo III, intitulado: “Dos Direitos Patrimoniais do Autor e de sua Duração”, em seu
art. 28 dispõe: “Cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária,
artística e científica.” Segundo Darcy BESSONE, trata-se do jus utendi, do jus fruendi e do
jus abutendi conferidos ao titular de um direito sobre uma propriedade, no caso, aplicados
ao conteúdo patrimonial dos direitos autorais45. As faculdades ou poderes patrimoniais de
fruir e dispor podem ser identificadas como formas de utilização da obra46.
Delimitando melhor o conteúdo patrimonial dos direitos autorais, José de Oliveira
ASCENSÃO observa que a faculdade de utilizar uma obra autoral não se constitui,
necessariamente, em um direito patrimonial47. Para esse autor, “a essência do direito
patrimonial se encontra na exploração econômica da obra.”48 Isso significa que a utilização a
que a lei se refere não é qualquer maneira de utilização, mas sim à “utilização com intuito
de lucro, pois essa está condicionada à autorização do autor”49.
A tutela do conteúdo patrimonial dos direitos autorais encontra o seu fundamento
legislativo no art. 5º, do texto constitucional, mais especificamente no seu inciso XXVII,
segundo o qual “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou
reprodução de suas obras, transmissíveis aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”.
O direito patrimonial do autor contém uma série de direitos específicos que, embora
comunguem da mesma natureza patrimonial, se destinam a assegurar a fruição econômica,
por parte do autor, de atividades distintas em relação à mesma obra produzida. Hermano
DURVAL cita os direitos de reprodução, de representação, de execução, de recitação, de
44
MANSO, Eduardo J. Vieira. O que é direito autoral ... p. 52.
45
BESSONE, Darcy. Direitos reais ... p.123. Para Darcy BESSONE, “Nos termos do artigo, o
direito autoral pode constituir propriedade plena ou, fragmentando-se. Propriedade limitada.” (BESSONE,
Darcy. Direitos reais ... p. 123).
46
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito autoral ... p. 85.
47
“Na realidade, por natureza, não podemos falar de um direito de utilizar restrito ao autor. Uma
vez quebrado o inédito qualquer um tem o direito de utilizar a obra.” (ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito
autoral ... p. 82).
48
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito autoral ... p. 84.
49
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito autoral ... p. 83 (sem grifos no original). Segundo
ASCENSÃO, “O que está reservado ao autor não são pois tipos de utilização da obra, é antes a possibilidade
de fazer qualquer utilização com intuito lucrativo.”(ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito autoral ... p. 83).
adaptação, de tradução e de radiodifusão como exemplos de utilização econômica do
produto autoral50.
Segundo José Carlos COSTA NETTO, a possibilidade de aproveitamento
econômico de obras intelectuais, na linha da doutrina clássica, são duas: a reprodução e a
representação51. Destas duas grandes ramificações dos direitos patrimoniais do autor, ou
formas de utilização patrimonial, derivam uma série de atividades em que se verificam a
manifestação do aspecto patrimonial desse direito. A Lei n.º 9.610/98, especialmente no art.
29, aponta para um extenso rol dessas atividades, tais como: reprodução, edição, adaptação,
tradução, inclusão, distribuição, utilização direita ou indireta, entre outras52.
Deve ser observado que, de acordo como o discurso tradicional dos direitos
autorais, os direitos patrimoniais do autor sobre a sua obra não se esgotam na enumeração
trazida pela Lei n.º 9.610/98. Ou seja, as possibilidades de utilização econômica da obra não
são limitadas pela legislação, pois o rol de modalidades de utilização indicada pela lei não é
taxativo. “Assim, há tantos direitos de utilização econômica quantos comportar a natureza
da obra.”53 Esta é a orientação adotada, inclusive, pela Lei n.º 9.610/98, no caput do art. 29.
50
DUVAL, Hermano. Direitos autorais ... p. 16.
51
Segundo José Carlos COSTA NETTO, os “direitos de reprodução: decorrem da reprodução, em
qualquer suporte, de obra intelectual” e os “direitos de representação decorrem da ‘interpretação (ou
execução) de uma obra mediante ações, tais como encenação, recitação, canto, dança ou projeção, realizados
na presença do espectador ou transmitindo a interpretação através de mecanismos ou processos técnicos, tais
como microfones, radiodifusão ou televisão por cabo’.” (COSTA NETTO, José. Direito autoral no ... p. 81).
No mesmo sentido, ver: MANSO, Eduardo Vieira. Direito autoral: exceções impostas aos direitos autorais
(derrogações e limitações). São Paulo: José Bushatsky Editor, 1980, p. 40.
52
Segundo o art. 29, da Lei n.º 9.610/98, “Depende de autorização prévia e expressa do autor a
utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como: I – reprodução parcial ou integral; II – a edição; III
– a adaptação, o arranjo musical e quaisquer outras transformações; IV – a tradução para qualquer idioma; V
– a inclusão em fonograma ou produção audiovisual; VI – a distribuição, quando não intrínseca ao contrato
firmado pelo autor com terceiros para uso ou exploração da obra; VII – a distribuição para oferta de obras ou
produções mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário
realizar a seleção da obra ou produção para percebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por
quem formula a demanda, e nos casos em que o acesso às obras ou produções se faça por qualquer sistema
que importe em pagamento pelo usuário; VIII – a utilização, direta ou indireta, da obra literária, artística ou
científica, mediante: a) representação, recitação ou declamação; b) execução musical; c) emprego de alto
falante ou sistemas análogos; d) radiodifusão sonora ou televisiva; e) captação de transmissão de
radiodifusão em locais de freqüência coletiva; f) sonorização ambiental; g) a exibição audiovisual,
cinematográfica ou por processo assemelhado; h) emprego de satélites artificiais; emprego de sistemas
óticos, fios telefônicos ou não, cabos de qualquer tipo e meios de comunicação similares que venham a ser
adotados; j) exposição de obras de artes plásticas e figurativas. IX – a inclusão em base de dados, o
armazenamento em computador, a microfilmagem e as demais formas de arquivamento do gênero; X –
quaisquer outras modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas.”
53
DURVAL, Hermano. Direitos autorais ... p. 16.
Sinteticamente, compreende-se o conteúdo patrimonial dos direitos autorais como
sendo a possibilidade de exploração econômica da obra, originariamente conferida ao autor.
Mas, para pôr em andamento a exploração patrimonial desses direitos são necessários
mecanismos que possibilitem a sua circulação. Por isso, os direitos patrimoniais do autor
podem ser transferidos, total ou parcialmente, pelo autor ou por seus sucessores, a título
universal ou singular, pessoalmente ou por seus representantes e podem ser transferidos
mediante licenciamentos, concessões, cessões e outros meios admitidos pelo direito54. As
obras artísticas, científicas e literárias inserem-se, por meio do discurso dos direitos
patrimoniais do autor e de sua autonomia privada, no trânsito jurídico e econômico dos bens
imateriais no mercado.
Uma boa parte da doutrina jurídica justifica a existência dos direitos patrimoniais do
autor e a importância de sua tutela, alegando que são direitos naturais do homem. De
acordo com Antônio CHAVES, “Se algum direito natural existe, nenhum poderá ser mais
‘natural’ do que o direito de autor”55. Com entendimento similar, Dirceu de Oliveira e
SILVA sustenta que “O Direito de Autor resulta de um fato natural: o autor deve poder
dispor daquilo que criou com o seu próprio trabalho”56.
Ainda, nessa mesma linha, justifica-se a existência desses direitos naturais alegando
que a produção artística, científica e literária, fruto do trabalho do autor, se constitui na mais
sagrada das propriedades. Miguel REIS, comentando a proteção conferida ao direito de
autor no mundo e em Portugal, verifica que “apesar de o direito de autor ser direito privado,
goza de uma proteção muito especial na generalidade dos Estados (...) este aspecto confere
um especial significado ao direito de autor, naquele sentido de que é o mais sagrado dos
direitos de propriedade”57. Esse autor repete, com isso, entendimento consagrado na
Revolução Francesa58.
54
COSTA NETTO, José Carlos. Direito autoral ... p. 79.
55
CHAVES, Antônio. Direito de autor ... p. 4 (sem grifos no original).
56
SILVA, Dirceu de Oliveira. O direito de autor: no teatro – cinema – rádio – televisão – literatura –
artes plásticas. Rio de Janeiro: Editora Nacional de Direito LTDA, 1956 p. 11 (sem grifos no original).
57
REIS, Miguel. O Direito de autor ... p. 15.
58
José de Oliveira ASCENSÃO explica que é a Revolução Francesa que trará um coroamento
ideológico ao movimento que pretendia que os direitos do autor fossem reconhecidos, “concebendo o direito
de autor como uma propriedade – ‘a mais sagrada de todas as propriedades.’” (ASCENSÃO, José de
Oliveira. Direito autoral ... p. 2).
Verificados alguns dos postulados básicos do discurso tradicional dos direitos
autorais a respeito dos direitos patrimoniais do autor, pode-se, ainda, discutir alguns pontos,
muitas vezes, deixados de lado. Pode ser questionado se a atual tutela conferida por esses
direitos recaem especificamente sobre o autor e se são eficazes no plano das relações
sociais; em que medida o sentido individualista, exclusivista e patrimonialista desses
direitos ainda são válidos, e qual a influência dos direitos patrimoniais do autor sobre os
seus direitos morais.
59
CHAVES, Antônio. Criador da obra intelectual ... p.23.
60
MANSO, Eduardo J. Vieira. O que é direito autoral ... p. 52.
61
Conforme explica Carlos Alberto BITTAR, “O elemento moral é a expressão do espírito criador
da pessoa, com reflexo da personalidade do homem na condição de autor de obra intelectual. (...) Os direitos
respeitantes ao liame pessoal entre autor e obra são, assim, inseridos, pela doutrina, entre os direitos da
personalidade”. (BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 4a ed., Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2000. p.140 –141).
parte dos direitos da personalidade são considerados, em regra, direitos extrapatrimoniais,
indisponíveis (intransmissíveis, inalienáveis e irrenunciáveis) e absolutos62.
São direitos extrapatrimoniais63 porque não são suscetíveis de avaliação econômica,
não são passíveis de serem medidos economicamente, ainda que a violação a esses direitos
possa resultar em reparação mediante uma indenização pecuniária64. O autor, titular do
direito moral, não pode dele dispor65 e, nesse sentido, não é possível que o autor aliene ou
renuncie de alguma forma a ele. Deve ser observado, entretanto, que essa regra comporta
exceções no campo dos direitos autorais, pois, conforme o parágrafo 1º, do art. 24, da Lei
n.º 9610/98, vários direitos (ou faculdades) da personalidade são transferidos aos sucessores
66
. A intenção é não deixar sem proteção a personalidade do autor após a sua morte. Além
disso, é um direito absoluto67, no sentido de valer contra todos, ou seja, todas as pessoas
devem respeitá-lo68.
62
Dependendo do autor, as denominações e o número dessas características variam um pouco. Para
Dirceu de Oliveira e SILVA, “o Direito Moral é absoluto, perpétuo, intransmissível e irrenunciável.” SILVA,
Dirceu de Oliveira e. O direito de autor ... p. 2). Para José Carlos COSTA NETTO, “o direito moral de autor
é perpétuo, inalienável e imprescritível.” (COSTA NETTO, José Carlos. Direito autoral ... p. 74). A Lei n.º
9610/98, no seu art. 27, dispõe que: “Os direitos morais do autor são inalienáveis e irrenunciáveis.”
63
Para San Tiago DANTAS, os direitos de personalidade são direitos “inestimáveis, o que quer
dizer que eles não têm um equivalente exato em dinheiro. Este problema da falta de um equivalente em
dinheiro gera um dos problemas mais delicados da técnica jurídica, qual seja o da reparação das lesões
sofridas pelos direitos da personalidade” (DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil: teoria geral. 3a ed.,
Rio de Janeiro: Renovar, p. 154).
64
Um exemplo que ilustra a maneira tradicional e geralmente adotada (por meio de indenização
pecuniária) para a reparação da violação aos danos morais do autor, pode ser retirado da seguinte Ementa:
“(...) O autor intelectual de trabalho fotográfico tem o direito personalíssimo de ter o seu nome indicado na
fotografia quando de sua divulgação. Se inobservado tal, cabível há de ser a indenização por danos morais
(...) (TJ-RJ) ( Ap. 1.357/89-Capital) (...) Relator: Desembargador Darcy Lizardo de Lima) (Reg. Em 24-8-
90)” (DIREITO AUTORAL: Série Jurisprudência ... p.133).
Segundo San Tiago DANTAS, “Os direitos subjetivos transmitem-se, por ato entre vivos ou não,
65
como nas alienações mortis causa, nas sucessões, mas os direito da personalidade, esses não se transmitem
de nenhum modo. (DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil ... p. 154).
66
De acordo com parágrafo 1o, do art. 24, da Lei n.º 9610/98: “Por morte do autor, transmitem-se a
seus sucessores os direitos a que se referem os incisos I a IV.”
67
Explicando o caráter absoluto dos direitos de personalidade, San Tiago DANTAS afirma que “os
direitos subjetivos absolutos, são aqueles que prevalecem contra todos, erga omnes. Quer isso dizer que, aos
direitos do titular, corresponde um dever de todos os indivíduos que se encontram na sociedade e não um
dever de uma determinada pessoa ou grupo de pessoas.” (DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil ...
p. 153).
68
Essa característica dos direitos da personalidade (são oponíveis erga omnes) deriva ou provém
dos direitos reais (que são em sua generalidade direitos patrimoniais). Com esse entendimento, ao pontuar a
origem dos direitos da personalidade, José Antônio Peres GEDIEL observa que: “Também se passou a
reconhecer a necessidade de tutelar os vários bens, corpóreos ou incorpóreos da personalidade, identificados
com a pessoa, mas dela distintos, definiu-os como direito subjetivos, oponíveis erga omnes e previstos em
numerus clausus, à similitude dos direitos reais.” (GEDIEL, José Antônio Peres. Os transplantes de órgãos e
Embora a unidade da tutela jurídica se dê em torno da proteção da personalidade do
autor, é admitido o fracionamento dos direitos morais do autor em direitos ou faculdades
derivados desse conteúdo personalíssimo. Para Hermano DURVAL, são direitos morais do
autor: o direito ao inédito, o direito à integridade da obra, o direito à paternidade e ao nome
da obra e o direito ao arrependimento69. Segundo Eduardo J. Vieira MANSO, o aspecto
moral dos direitos autorais compreende: o direito à paternidade, o direito de conservar a
obra inédita, o direito de definir a forma final da obra, o direito ao renome autoral, o direito
de publicar sua obra anonimamente, o direito de arrependimento, ou direito de retrato70.
A Lei n.º 9.610/98 também se ocupa, no seu art. 24, em definir os direitos autorais,
que compreende: I – o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra; II – o de ter seu
nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o autor, na
utilização da obra; III – o de conservar a obra inédita; IV – o de assegurar a integridade da
obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma,
possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra; V – o de
modificar a obra, antes ou depois de utilizada; VI – o de retirar de circulação a obra ou
suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização
implicarem afronta à sua reputação e imagem; VII – o de ter acesso a exemplar único e raro
da obra, quando se encontre legitimamente em poder de outrem, para o fim de, por meio de
processo fotográfico ou assemelhado, ou audiovisual, preservar sua memória, de forma que
cause o menor inconveniente possível a seu detentor, que, em todo caso, será indenizado de
qualquer dano ou prejuízo que lhe seja causado. Sinteticamente, pode-se concluir que a Lei
n.º 9.610/98 enumera os seguintes direitos: o direito de reivindicar a autoria da obra; o
direito ao nome; o direito de conservar inédita a obra; o direito à integridade da obra; o
direito de modificar a obra; o direito de retirar de circulação a obra e o direito de ter acesso a
exemplar único. O desrespeito ou a restrição de qualquer um desses aspectos dos direitos de
personalidade, geralmente, é a causa da violação ao direito moral de autor.
Apesar da enumeração legal das faculdades ou direitos personalíssimos do autor, a
doutrina jurídica afirma que esses direitos “não se esgotam nesta relação meramente
71
MANSO, Eduardo J. Vieira. O que é direito autoral ... p. 53.
72
SILVA, Dirceu de Oliveira e. O direito de autor ... p. 11.
73
BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade ... p. 141.
74
BITTAR, Carlos Alberto. Contornos atuais ... p.42. Em outra obra, Carlos Alberto BITTAR
leciona: “Os aspectos intrínsecos dos direitos autorais (...) evidenciam, desde logo, o reconhecimento de um
direito pessoal de autor (chamado “direito moral” de autor), que, aliás, constitui a sua própria base e
justificador dos direitos patrimoniais atribuídos ao titular.” (BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da
personalidade ... p. 139.
direitos de personalidade, uma vez que a obra intelectual, como criação de espírito, se
vincula essencialmente à personalidade do seu autor”75.
A valorização do conteúdo personalíssimo dos direitos autorais também encontra
no plano legislativo o seu fundamento, especialmente, no inciso III, do art. 1º, da
Constituição Federal de 1988, que consagra o princípio fundamental da dignidade da pessoa
humana, cláusula geral dos direitos da personalidade. Além disso, no plano doutrinário,
essa idéia ganha força, justamente, com os estudos que trabalham na perspectiva de
relacionar o Direito Civil com o Direito Constitucional76.
Ocorre que, em grande parte dos estudos, idéias e conceitos como direitos da
personalidade, dignidade da pessoa humana, conteúdo moral dos direitos (autorais), são
tomados como pontos de partida, lugares comuns que não podem ser problematizados,
“consensos” que só a “crítica destrutiva e irresponsável”, de plano desprezada pelos
“teóricos sérios”, poderia atacar.
Em relação aos direitos de personalidade do autor e o discurso de valorização desses
direitos, talvez fosse interessante discutir um pouco mais o que se entende, o que significa e
qual o papel desempenhado pelo conteúdo pessoal dos direitos autorais. Além disso,
verificar o que, também, se está protegendo quando se valoriza ou se consagra um aparato
jurídico estatal de proteção à personalidade / criatividade do autor.
O sistema jurídico adotado pelo direito brasileiro, no tocante à regulação das idéias
em sociedade, respeita o modelo instituído internacionalmente em 1886 pela Convenção
(ou União) de Berna. Este instrumento normativo, com seus aditamentos e constantes
revisões77, continua sendo, até hoje, o instrumento básico, o padrão adotado para os direitos
75
COSTA NETTO, José Carlos. Direito autoral ... p. 72.
76
Segundo Carlos Alberto BITTAR e Carlos Alberto BITTAR FILHO, “Aqui, a nota central é, sem
dúvida, a dignidade da pessoa humana, que deve sempre ser preservada de todos os ataques da ilicitude, pois
que é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (Constituição Federal, art. 1º, III). Aliás, é a
personalidade, em decorrência do processo de ‘constitucionalização’ do Direito Civil, considerada o valor
fundamental do ordenamento jurídico (...)” (BITTAR, Carlos Alberto. BITTAR FILHO, Carlos Alberto.
Tutela dos direito da personalidade e dos direitos autorais nas atividades empresariais. 2a ed., São Paulo: RT,
2002. p. 20).
78
Sobre a diferença entre o sistema anglo-americano (copyright) e o sistema continental (direitos
autorais – adotado pela Convenção de Berna), explica Carlos Fernández BALLESTEROS “La esencia de las
diferencias conceptuales entre el sistema del common law (sistema anglo-americano o del copyright) y el del
civil law (sistema continental o del autor’s right) es la siguiente: los países del common law consideran los
derechos de autor como una forma de propiedad, capaz de ser creada tanto por un autor individual como por
una persona jurídica, que una vez creada es susceptible de explotación comercial de la misma manera que lo
es cualquier outra forma de propiedad, estando los derechos que la componen dirigidos exclusivamente a
asegurar el disfrute del potencial económico de dicha propiedad. En los países que siguen el sistema del
derecho civil o sistema continental, el derecho de autor está también mirado con características de
‘propiedad’, de la misma manera que lo hace el sistema del common law; pero, aquí radica la diferencia,
existe una dimensión adicional en el concepto intelectual o filosófico de que la obra de un autor es una
expresión de su personalidad y que, por una razón de natural justicia, requiere protección de la misma
manera que el potencial económico de la obra.” (BALLESTEROS, Carlos Fernández. El viejo mundo del
derecho de autor. In: Num novo mundo do direito de autor (II congresso ibero-americano de direito de autor
e direitos conexos). Tomo I, Lisboa: Edições Cosmos / Livraria Arco Íris, 1994. p. 42-43).
79
COSTA NETTO, José Carlos. Direito autoral ... p. 35.
80
Segundo Henrique GANDELMAN, “A Revolução Francesa, de 1789, com sua exacerbação dos
direitos individuais, adicionou ao conceito inglês a primazia do autor sobre a obra. O droit d’auteur enfoca
também os aspectos morais, o direito que o autor tem ao ineditismo, à paternidade, à integridade de sua obra,
que não pode ser modificada sem o seu expresso consentimento. (GANDELMAN, Henrique. De Gutenberg
à internet ... p. 32).
81
Fica a observação, entretanto, que apesar de os Estados Unidos terem aderido à Convenção de
Berna, os direitos morais do autor não encontraram o acolhimento que se esperava, permanecendo na
legislação americana apenas a proteção ao titular do direito de reprodução (copyright). (ASCENSÃO, José
de Oliveira. Direito de autor e direitos conexos ... p.22). Não constitui objeto do presente trabalho, em
virtude de sua amplitude, as relações (diferenças e semelhanças) entre estes dois sistema: o direito de autor
(origem francesa) e o copyright (origem inglesa), apenas a indicação de sua diferença básica.
Essa orientação internacional (Convenção de Berna), que foi adotada pelo
ordenamento jurídico brasileiro82 e é aplicada pela jurisprudência pátria83, constitui a base da
atual lei de direitos autorais e, por tudo isso, faz parte do discurso tradicional dos direitos
autorais. Atribui ao direito de autor o status de direito natural do homem. Os direitos
autorais são direitos fundamentais que devem ser protegidos tanto no seu aspecto público
(liberdade de expressão) quanto no seu aspecto privado (um direito individual / privado do
autor sobre a sua obra). É na Convenção de Berna, também, que se encontram os conceitos e
categorias jurídicas, acima apontados, que dão o substrato para o atual sistema de direitos
autorais adotado no Brasil. A estrutura, o fundamento, os objetivos e a função dos direitos
autorais estão todos presentes nessa convenção internacional.
A duplicidade de conteúdo dos direitos autorais está claramente positivada no artigo
6º (bis), da Convenção de Berna, que dispõe: “independentemente dos direitos patrimoniais
de autor e mesmo depois de cessão dos citados direitos, o autor conserva durante toda a vida
o direito de reivindicar a paternidade da obra e de se opor a toda e qualquer deformação,
mutilação ou outra modificação da mesma obra, ou a quaisquer outros atos que a atinjam e
que o possam prejudicar na sua honra ou reputação”84. Nesse sentido, no plano da estrutura
dos direitos autorais essa Convenção internacional adota a teoria dualista, tutelando,
portanto, uma série de direitos patrimoniais e morais do autor, assim como ocorre na
legislação brasileira.
O fundamento também é encontrado na criação, pois, já no seu artigo 2º, a
Convenção de Berna se preocupa em definir o que deve ser protegido. A proteção imposta
pela Convenção abrange “todas as produções no domínio literário, científico e artístico,
qualquer que seja o modo ou a forma de expressão (...)”85. Além disso, observa-se, no plano
dos objetivos da Convenção, que “a preocupação maior do legislador reside na defesa do
criador intelectual nas utilizações possíveis de sua obra.”86. No artigo 1º, da Convenção de
82
A Convenção de Berna de 9 de setembro de 1886, revista em Paris a 24 de julho de 1971, foi
aprovada pelo Decreto Legislativo nº 94, de 4 de dezembro de 1974, e promulgada pelo Decreto nº 75.699,
de 6 de março de 1975, da Presidência da República.
83
São verificadas, na fundamentação de inúmeros julgados brasileiros envolvendo direitos autorais,
menções (aplicação) expressas ao texto da Convenção de Berna, em especial, em julgados do Superior
Tribunal de Justiça.
84
Convenção de Berna, art. 6º bis. (PIMENTA, Eduardo Ss. Código de direitos autorais e acordos
internacionais. São Paulo: LEJUS, 1998, p. 497).
85
Convenção de Berna, art. 2º. (PIMENTA, Eduardo Ss. Código de direitos autorais ... p. 493-494).
86
BITTAR, Carlos Alberto. A lei de direitos autorais na jurisprudência ... p.14.
Berna, fica assinalado que: “Os países a que se aplica a presente Convenção constituem-se
em União para a proteção dos direitos dos autores sob as suas obras literárias e artísticas” 87.
Isso fica ainda mais evidente no artigo 2º, parte final do parágrafo 4, que dispõe: “A
proteção exerce-se em benefício dos autores e dos seus herdeiros e legítimos
representantes”88.
Deve ser ressaltado, ainda, que todo esse sistema internacional de proteção do autor
possui a função de garantir e estimular a produção intelectual em sociedade. Pelo menos é
essa a justificativa correntemente sustentada pelo discurso tradicional dos direitos autorais,
no plano internacional.
Essas observações a respeito da Convenção de Berna, além de indicarem que a
construção da base legislativa nessa matéria, no Brasil, está assentada em princípios
internacionais e que o “discurso tradicional dos direitos autorais” se alimenta, mas também
reforça a orientação adotada pela Convenção, têm também a intenção de demonstrar que a
pretensão da tutela jurídica no âmbito internacional é ser, de fato, universal. É interessante
notar que a orientação trazida pela Convenção de Berna não aponta para o reconhecimento
de diferentes maneiras de regular a produção artística, científica e literária presentes nas
diversas sociedades. A orientação da Convenção vai no sentido de impor um modelo único,
que deve ser adotado por todo o planeta. José de Oliveira ASCENSÃO explica a pretensão
de universalidade na regulação internacional dos direitos autorais, demonstrando que é
“típica do Direito de Autor a grande influência dos instrumentos internacionais. Ao
contrário do que acontece em outros ramos do Direito, essa contratação internacional não
consolida o estado atingido pelas leis internas. Freqüentemente as antecipa, representando
um instrumento de pressão sobre estas”89.
Com a justificativa que as atividades artísticas, científicas e literárias ultrapassam as
fronteiras dos Estados e os respectivos sistemas de proteção internos, a orientação
internacional para a regulação dos direitos autorais impõe a todos os países o modelo de
normatização estabelecido na Convenção de Berna, sob pena de não se proteger
suficientemente, no plano global, os autores e as suas criações intelectuais.
87
Convenção de Berna, art. 1o. (PIMENTA, Eduardo Ss. Código de direitos autorais ... p. 493).
88
Convenção de Berna, art. 2o. (PIMENTA, Eduardo Ss. Código de direitos autorais ... p. 493-494).
89
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito de autor e direitos conexos ... p.22.
Apesar de existirem outros tratados internacionais90 que também regulamentam
questões envolvendo a atividade intelectual, a linha traçada pela Convenção de Berna, em
matéria de direitos autorais, é a regra. Conforme explica José de Oliveira ASCENSÃO,
“Esta convenção deu o tom às convenções internacionais nestes domínios, pois a sua
estrutura fundamental foi seguida pelos instrumentos posteriores”91.
Deve ser observado, entretanto, que o Acordo Sobre Aspectos dos Direitos de
Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIP’S)92, apesar de adotar
praticamente todos os artigos da Convenção de Berna, deixa de fora do acordo o art. 6 “bis”
da citada Convenção, justamente o artigo que consagra o conteúdo moral dos direitos
autorais. Isso, por si só, já demonstra que a preocupação central do TRIP’S é com a proteção
internacional da propriedade intelectual e não propriamente com o autor.
Assim, pelo que foi exposto, fica claro que a regulação internacional em matéria
dos direitos autorais segue a orientação da Convenção de Berna. A estrutura dos direitos
autorais, o seu fundamento, os seus objetivos, a sua função, bem como o sentido de toda a
proteção da atividade autoral regulados pela legislação brasileira, defendidos pela doutrina
tradicional e verificados na jurisprudência pátria, estão todos de acordo e sustentados pela
Convenção de Berna. Não há dúvida de que o discurso tradicional dos direitos autorais
recebe um forte reforço internacional.
90
Conforme indica Henrique GANDELMAN, o Brasil aderiu, além da Convenção de Berna, aos
seguintes tratados envolvendo direitos autorais: a Convenção Universal (Revista em Paris a 24 de julho de
1971 – Aprovada pelo Decreto Legislativo n.º 76.905, de 24 de dezembro de 1975, da Presidência da
República); a Convenção de Roma (Concluída em 26 de outubro de 1961 para a proteção dos artistas
intérpretes ou executantes, dos produtores de fonogramas e dos organismos de radiodifusão - Aprovada pelo
Decreto Legislativo n.º 26/64 e promulgada pelo Decreto n.º 57.125, de 19 de outubro de 1965, da
Presidência da República.); a Convenção de Genebra (Concluída em 29 de outubro de 1971, para proteçào
de produtores de fonogramas – Aprovada pelo Decreto Legislativo º 59, de 30 de junho de 1975, e
promulgada pelo Decreto n.º 76.906, de 24 de dezembro de 1975, da Presidência da República); Acordo
sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIP’S) (Aprovado
pelo Decreto Legislativo nº 30, de 15 de dezembro de 1994, e promulgada pelo Decreto n.º 1355, de 30 de
dezembro de 1994. TODA (WCT) e TOIEF (WPPT) (Tratados da OMPI ratificados pelo Brasil, mas ainda
não aprovados pelo Congresso e sancionados pelo Executivo). (GANDELMAN, Henrique. De Gutenberg à
internet ... p. 37).
91
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito de autor e direitos conexos ... p.36.
92
Conforme explica Eduardo Ss PIMENTA, “No GATT, na Rodada do Uruguai, foi firmado pelo
Brasil o Acordo Relativo à Propriedade Intelectual, mais conhecido como TRIP’s (RIP’s – abreviatura de
intellectual property rights), que, apesar de inicialmente o Brasil ter se posicionado contrário a migração das
questões de propriedade intelectual da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI ou WIPO –
Word Intellectual Property Organization) para o GATT, acabou por assiná-lo. (...) O Acordo Relativo à
Propriedade Intelectual – TRIP’s – foi realizado por insistência dos Estados Unidos da América (USA),
desiludidos com a OMPI, pela ausência de sanções comerciais contra violações na área de propriedade
intelectual.” (PIMENTA, Eduardo Ss. Código de direitos autorais ... p. 599).
Todos esses textos e discursos vão resultar em elaborações e classificações
referentes à concepção teórica, estrutura, natureza jurídica, fundamento, objetivos, função
dos direitos autorais, entre outras categorias existentes tanto na legislação interna quanto em
Convenções e Acordos Internacionais. Constituem variações do discurso jurídico tradicional
que são acolhidos pelos Tribunais nacionais, mas se criticamente analisados podem ser
vistos como discursos de legitimação e justificação do atual sistema de proteção dos direitos
do sujeito criador sobre a sua obra.
Proteger a criação, incentivar a criatividade, tutelar os direitos do autor em todas as
suas esferas resguardando a sua personalidade e garantindo os frutos econômicos gerados
pelo seu esforço intelectual; incentivar a atividade cultural em sociedade protegendo as
atividades artísticas, científicas e literárias; entre outros discursos presentes na maioria dos
livros e manuais que trabalham com os direitos autorais e com outros direitos decorrentes da
atividade intelectual constituem a base da tutela jurídica nessa matéria, aceita sem maiores
reflexões.
Esta tutela, entretanto, possui uma história e seu conteúdo está em consonância com
uma determinada sociedade e ganha configuração jurídica específica a partir do sistema
jurídico em que se inserem. Corresponde a um determinado sistema de pensamento. Estas
questões, longe de serem menos importantes, são fundamentais para uma melhor
compreensão e problematização dos discursos de legitimação do atual sistema autoral,
inclusive para afastar a sua fundamentação de cunho jusnaturalista freqüentemente
invocada pelo discurso tradicional dos direitos autorais.
Com esse entendimento, o que pode ser perseguido e realizado em outros estudos
mais aprofundados é a reflexão crítica acerca dos principais aspectos desse discurso
tradicional dos direitos autorais, iniciando talvez com algumas reflexões que já demonstram
problemas e limites da forma corrente de compreender e trabalhar as relações jurídicas entre
o autor e seus direitos patrimoniais e de personalidade. Essa é uma sugestão que se coloca
para um possível diálogo.