Canções No Cinema Les Mis

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1

unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”

Faculdade de Ciências e Letras


Campus de Araraquara - SP

NICOLE MIONI SERNI

CANÇÕES CINEMATOGRÁFICAS: ANÁLISE


DIALÓGICA DO FILME MUSICAL LES MISÉRABLES

Araraquara - SP

2018
NICOLE MIONI SERNI

CANÇÕES CINEMATOGRÁFICAS: ANÁLISE


DIALÓGICA DO FILME MUSICAL LES MISÉRABLES

Tese de Doutorado, apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da
UNESP/Araraquara, para a Defesa, como requisito para
obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua
Portuguesa.

Linha de pesquisa: Estrutura, organização e


funcionamento discursivos e textuais

Orientadora: Luciane de Paula

Bolsa: CNPq

Araraquara - SP

2018
NICOLE MIONI SERNI

análise dialógica do filme


musical Les Misérables

Tese de Doutorado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Linguística e Língua
Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras
– UNESP/Araraquara, como requisito para
obtenção do título de Doutor em Linguística e
Língua Portuguesa.

Linha de pesquisa: Estrutura, organização e


funcionamento discursivos e textuais
Orientador: Profa. Dra. Luciane de Paula
Bolsa: CNPq

Data da defesa: 30/05/2018

MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA:

Presidente e Orientador: Profa. Dra. Luciane de Paula


Faculdade de Ciências e Letras – UNESP Araraquara

Membro Titular: Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves


Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN

Membro Titular: Prof. Dr. Marco Antonio Villarta-Neder


Universidade Federal de Lavras – UFLA

Membro Titular: Prof. Dr. Odilon Helou Fleury Curado


Faculdade de Ciências e Letras – UNESP Assis

Membro Titular: Profa. Dra. Marina Célia Mendonça


Faculdade de Ciências e Letras – UNESP Araraquara

Local: Universidade Estadual Paulista


Faculdade de Ciências e Letras
UNESP – Campus de Araraquara
À Clarice Prosdocini Mioni

Junto à saudade guardo toda a gratidão a você, vó amada.


Agradecimentos

À Deus.
Aos meus pais e minha família pelo apoio cuidadoso e sempre presente.
À Luciane de Paula, pela jornada de tantos anos (oito, certo?) em que eu pude aprender
e me inspirar cada dia mais! Pessoas como você, Lu, são raras e eu só tenho a agradecer
pelo privilégio de tê-la como orientadora durante todos esses anos. Nunca me
esquecerei do dia em que recebemos a resposta positiva da FAPESP para a bolsa de IC.
Naquele dia o parecerista disse que para a orientadora faltava apenas um grupo de
estudos expressivo na área, e você disse que ele “ia ver o grupo que você iria iniciar!”.
E hoje estamos aqui, com o GED repleto de pessoas, pesquisas, eventos grandemente
elogiados e uma história de muitas conquistas, graças a você! É um prazer enorme ser
testemunha de tudo que você alcançou e serei eternamente grata por ter me permitido
estar ao seu lado. Obrigada de coração e conte sempre comigo!
Minhas amigas e amigos na caminhada acadêmica (em especial Jessica, Marly, Bárbara,
Marcela, Tati, Cezinaldo, Radamés, Rafael, Thiago e Camila)
Amigos e amigas do GED (em especial Ana Beatriz, Gi, Natasha, Toninho e Jonathan)
Meus amigos do PSDE (de NYC para vida) Amanda, Laisy, Bruno e Lucas. E ao
professor co-orientador durante o estágio, Peter Hitchcock.
À professora Eunice, que já no segundo ano de graduação me mostrou que era possível
unir cinema e pesquisa no curso de Letras.
Às professoras de Araraquara com as quais tive aulas que muito agregaram à pesquisa,
Marina, Renata, Rosário e Lu.
Ao Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa.
Ao CNPq pela bolsa fornecida.
À CAPES pela bolsa de doutorado sanduíche durante os quatro meses em Nova Iorque.
Aos professores da banca da defesa: Luciane de Paula, Maria da Penha Casado Alves,
Marco Antonio Villarta-Neder, Odilon Helou Fleury Curado e Marina Celia Mendonça.
“And in truth, whenever a number commences in any musical,
the world does become a stage.” (FEUER, 1993, p.24)
RESUMO

Esta pesquisa se propôs a analisar o filme musical Les Misérables (2012), de Tom
Hooper, sob a ótica dos estudos do Círculo Bakhtin, Medviédev, Volochinov, tendo como
objetivo refletir, por meio de uma análise dialógica, acerca da constituição da
arquitetônica do filme musical como gênero discursivo, em sua forma, conteúdo, estilo,
produção e circulação, conforme as ideias do Círculo. A partir de Les Misérables este
trabalho buscou investigar a especificidade do gênero filme musical assim como analisar
os diálogos entre o filme escolhido e outras obras musicais produzidas no cinema norte-
americano. A canção, aqui também considerada como um gênero, é elemento constitutivo
do filme escolhido e sua presença é de extrema importância na formação do musical,
configurando-o como intergenérico. O filme musical norte-americano é marcado por
elementos de canto e dança que se consolidam especialmente na era de ouro (anos 50 e
60). Les Miserables apresenta características diferentes de outros filmes musicais, como,
por exemplo, a temática (a partir da obra de Victor Hugo), a fala cantada constante (e não
apenas canto em momentos performáticos), e a ausência de dança (ainda que as
movimentações sejam ritmadas). Estas especificidades do gênero discursivo filme
musical foram discutidas ao longo desta pesquisa a partir da trajetória do filme musical,
sendo possível, deste modo, analisar como a obra cinematográfica em questão dialoga
com outras produções, de diferentes períodos; assim como as relações estabelecidas entre
o filme e o teatro musical da Broadway.

Palavras-Chave: Diálogo; Gênero; Musical.


ABSTRACT

This research aims to analyze the musical film Les Misérables (2012), by Tom Hooper,
within the perspective of the Circle Bakhtin, Medviédev, Volochinov studies, having as
objective to reflect, by a dialogic analysis, about the constitution of the architectonic of
the musical film, as a discursive genre in its form, content, style, production and
circulation, based on the ideas of the Circle. With the study of Les Misérables this work
focuses on the investigation of the specificity of the musical film genre as much as analyze
the dialogs between the musical film, and other musicals produced in the North American
cinema. The song, here as well considered as a genre, is an element that constitutes de
movie chosen and its presence is of extreme importance in the formulation of the musical,
which is built with intergenres. The North American musical film is marked by elements
of singing and dancing that are consolidated in the golden era (the 50’s and 60’s). Les
Misérables presents characteristics which are different from other musical films, such as,
for example, the thematic (based on the novel by Victor Hugo), the constant singing (and
not just singing in performatic contexts), and the absence of dance (even though every
move is punctuated). These specificities of the musical film as a discursive genre were
discussed along this research from the trajectory of the musical film, making it possible
to analyze how the cinematographic work in focus dialogs with other productions, from
different periods; such as the relations stablished between the movie and Broadway
musical theatre.

Keywords: Dialog; Genre; Musical.


Lista de Figuras

Figura 1 Cenas de O Cantor de Jazz............................................................................................. 44


Figura 2 Cena de dança de O Picolino ......................................................................................... 45
Figura 3 Cena de canto, sem dança, de Ama-me esta noite ....................................................... 46
Figura 4 Cena de canto solo em O Mágico de Oz ........................................................................ 47
Figura 5 Cena de canto com dança ............................................................................................. 47
Figura 6 Cena em que há dança no interior de uma festa .......................................................... 48
Figura 7 Cena em que “have yourself a merry little christmas” é cantada pela personagem de
Judy Garland ................................................................................................................................ 48
Figura 8 Cenas de dança com Astaire ......................................................................................... 49
Figura 9 Cena com atuação marcante de Yul Brynner ................................................................ 50
Figura 10 Cena icônica de Gene Kelly em Dançando na chuva ................................................... 51
Figura 11 Cena de Mary Poppins em que se misturam animações com filmagens dos atores .. 52
Figura 12 Cena com as crianças na escada.................................................................................. 53
Figura 13 Cena inicial do filme e cena com performance da personagem cientista/travesti ..... 54
Figura 14 Cenas, respectivamente, de Hair e de Across the Universe, em que a temática da
guerra aparece. ........................................................................................................................... 56
Figura 15 Cena com espelhos em Chorus Line ............................................................................ 58
Figura 16 Cena de Moulin Rouge em que se faz referência à Gene Kelly ................................... 60
Figura 17 Cena de Mamma Mia! em que há dança .................................................................... 61
Figura 18 Cena de Across the Universe com o recurso da solarização ....................................... 61
Figura 19 Cena de Across the Universe com sobreposição ........................................................ 62
Figura 20 Cena de Sweeney Todd em que o barbeiro canta ...................................................... 63
Figura 21 Cena de uma morte ..................................................................................................... 63
Figura 22 Foto da Broadway em 1920 ........................................................................................ 69
Figura 23 Times Square em 1920 ................................................................................................ 71
Figura 24 Times Square em 2009 ................................................................................................ 71
Figura 25 Tabela que ilustra as chances de se ganhar a loteria de Hamilton ............................. 74
Figura 26 Programas dos quatro primeiros musicais assistidos ................................................. 77
Figura 27 Programas dos quatro últimos musicais assistidos ..................................................... 78
Figura 28 Palco da peça musical Cats.......................................................................................... 80
Figura 29 Cena em que é intepretada a canção I dreamed a dream .......................................... 89
Figura 30 Cena do curta em que é interpretada a canção I dreamed a dream .......................... 89
Figura 31 Cena do filme musical The Rocky Horror Picture Show .............................................. 94
Figura 32 Cena do musical para a televisão ................................................................................ 94
Figura 33 Cena da canção Valjean Soliquoy ................................................................................ 96
Figura 34 Recorte da partitura da canção ................................................................................... 99
Figura 35 Cena em que o personagem rasga o documento ..................................................... 101
Figura 36 Destaque da partitura que dialoga com a cena do filme musical ............................. 101
Figura 37 Cena em que Fantine canta ....................................................................................... 103
Figura 38 Cena que mostra a beira do precipício...................................................................... 105
Figura 39 Suicídio de Javert ....................................................................................................... 106
Figura 40 Cenas em que Javert aparece junto à figura da águia .............................................. 109
Figura 41 Recorte que mostra a centralidade ........................................................................... 110
Figura 42 Cena com Javert que mostra a câmera contra plongée ............................................ 110
Figura 43 Cena que mostra Javert como proporcionalmente grande ...................................... 111
Figura 44 Plano geral com Eponine sozinha .............................................................................. 112
Figura 45 Destaque para a chuva na cena ................................................................................ 112
Figura 46 Sequência em que Eponine aparece não centralizada no enquadramento ............. 113
Figura 47 Grande plano geral .................................................................................................... 116
Figura 48 Aproximação gradativa da câmera............................................................................ 116
Figura 49 Câmera em plongée .................................................................................................. 118
Figura 50 Sequência que mostra o personagem ao observar Javert ........................................ 119
Figura 51 Javert em enquadramento central ............................................................................ 120
Figura 52 Contra plongée que mostra Javert como superior .................................................... 120
Figura 53 Câmera que mostra Gavroche durante a canção...................................................... 125
Figura 54 Câmera que mostra os pedintes ............................................................................... 125
Figura 55 Câmera que mostra os líderes revolucionários ......................................................... 126
Figura 56 Câmera que mostra o povo ....................................................................................... 126
Figura 57 Recorte da partirura que mostra a melodia do refrão sendo tocada antes de ser
cantada ...................................................................................................................................... 127
Figura 58 Destaque da melodia do refrão cantada ................................................................... 128
Figura 59 Cena da morte dos jovens ......................................................................................... 129
Figura 60 Cenas de Dançando no escuro .................................................................................. 131
Figura 61 Ingressos dos musicais assistidos em Nova Iorque ................................................... 138
Sumário

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 12
1 GÊNERO DISCURSIVO E CONTEXTO: O FILME MUSICAL ...................................................... 21
1.1 Gênero discursivo .......................................................................................................... 22
1.1.1 Filme ........................................................................................................................... 24
1.2 Musical .......................................................................................................................... 25
1.2.1 Histórico: uma visão panorâmica ............................................................................... 26
1.3 A relação com o filme-corpus Os Miseráveis ................................................................ 65
2 A PEÇA MUSICAL .................................................................................................................. 69
2.1 A Broadway ................................................................................................................... 69
2.2 Relação vida e arte: teatro musical e as peças em Nova Iorque ................................. 72
3 O VERBIVOCOVISUAL E A CANÇÃO ...................................................................................... 85
3.1 Verbivocovisualidade .................................................................................................... 85
3.2 Canção ........................................................................................................................... 87
4 MÉTODO DIALÉTICO DIALÓGICO E CONCEITOS DO CÍRCULO .............................................. 91
4.1 O ENUNCIADO, O SUJEITO, A IDEOLOGIA E A ARQUITETÔNICA ................................... 92
5 LES MISÉRABLES ................................................................................................................... 96
Ato 1. Canções em foco:...................................................................................................... 96
Ato 2. Canções em foco:.................................................................................................... 116
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................ 130
Referências bibliográficas ......................................................................................................... 133
ANEXOS ................................................................................................................................. 136
Estágio no exterior: Doutorado sanduíche em Nova Iorque ............................................ 136
12

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem motivação a partir das pesquisas efetuadas durante a


graduação e o mestrado. Desde a iniciação científica me interessei1 por analisar o cinema
e compreender como o gênero filme musical se constitui por meio do diálogo com
diversos gêneros. Na dissertação de mestrado escolhi refletir sobre o filme musical, em
específico, a fim de investigar como a canção (um gênero que por si só é intergenérico)
se torna parte constitutiva essencial para as construções de sentido no gênero filme. A
obra cinematográfica trabalhada na ocasião foi Across the Universe (2007), Julie Taymor,
um filme musical que contém em sua trama apenas canções da banda britânica The
Beatles, e por se passar na mesma época de atuação dos músicos, o filme dialoga não
somente com as canções compostas pela banda, mas também com o contexto histórico
por ela vivido. Para a pesquisa de doutorado continuei instigada a analisar as
singularidades da construção do gênero filme musical, mas optei por uma obra
cinematográfica que tivesse suas canções compostas para o musical de fato, e não canções
já existentes que fossem inseridas na construção do filme (como é o caso de Across the
Universe). O filme Les Misérables (2012), de Tom Hooper, foi selecionado como corpus
do doutorado por ser um filme musical que se diferencia do escolhido para o mestrado,
uma vez que suas canções foram criadas especificamente para a obra, que, inicialmente,
era literária (um romance de Victor Hugo, de 1862) e, depois, adquiriu uma versão teatral
musical na Broadway, em 1987 (sob a direção de Robert Hossein e música de Claude-
Michel Schönberg).
A versão de Les Misérables eleita como corpus deste trabalho demonstra como as
formas típicas de enunciados2 de outros gêneros são incorporadas à sua genericidade e
lhe alteram as características (cf. BAKHTIN, 2011 – ainda que o autor não trate do gênero
filme musical, suas afirmações podem ser pensadas com relação à linguagem de maneira
ampla voltada, aqui, especificamente ao cinema). O trabalho com a análise do gênero
filme musical permite o estudo das formas de incorporação de diferentes genericidades
pelo filme musical, pois o corpus selecionado como objeto da pesquisa aqui proposta traz
em seu interior a canção como outro gênero que, mais que incorporado, define um gênero

1
Destaca-se aqui que somente nesta pequena parte do texto a pesquisadora escreve em primeira pessoa,
pois discorrerá sobre experiências pessoais.
2
O conceito de enunciado é pensado nesta pesquisa também sob a ótica dos estudos do Círculo e será
abordado com mais detalhes no capítulo quatro.
13

específico, o filme musical. A importância do estudo proposto se encontra na contribuição


que se pretende realizar para o entendimento da formação de gêneros a partir da relação
com outros gêneros, como concebe Bakhtin (idem), em diálogo com a vida e semiotisado
pela arte (teatro e cinema, no caso do objeto de estudo escolhido a ser pesquisado). O
filme Les Misérables pode ser reconhecido como gênero filme musical, sendo a sua
principal peculiaridade a presença da canção na construção da narrativa, como elemento
constitutivo da obra.
As variações no interior da formação dos gêneros demonstram a sua relativa
estabilidade, pois, se, por um lado, o musical preserva características e utiliza técnicas
cinematográficas de construção (enquadramento, iluminação, encenação, entre outras),
ou seja, não deixa de ser filme, por outro, ele assume uma especificidade, a música ou a
canção e a dança ou a coreografia (depende do filme) como elementos fundamentais que
constituem esse tipo de enunciado, ou seja, uma maneira (forma) particular de filme. Se,
para o Círculo russo, os gêneros são relativamente estáveis, tem-se de considerar tanto
sua estabilidade quanto a possibilidade de sua variação, que gera outros tipos ou mesmo
outros gêneros, dada a relatividade dos gêneros discursivos, que devem ser pensados na
construção de sua arquitetônica e nas esferas de atividade que são compostos e circulam.
A canção, gênero presente essencialmente de maneira constitutiva no filme
musical, já pode ser considerada como intergenérica, uma vez que esta é constituída por
outros gêneros, pois letra e música são necessárias para a existência da canção. O gênero
letra e o gênero música fazem parte da caracterização específica do gênero canção.
Mesmo que separadamente letra e música sejam gêneros com suas características
particulares, quando se unem constroem o gênero canção. É a partir desse diálogo (letra
e música) que a constituição da canção pode ser considerada como intergenérica. Ao se
falar em intergêneros estes são aqui considerados conforme discutido por Paula (2010)
em que um determinado gênero constitui outro de forma intrínseca. Se retirada a canção
do musical, este inexiste. Apenas a presença de um gênero no interior de outro não
caracteriza a intergenericidade, mas, sim, essa retroalimentação, em que um gênero é
parte da construção arquitetônica do outro e o altera. A composição do filme, assim como
a canção, é intergenérica, pois apresenta relações entre gêneros como parte essencial da
sua produção. A canção, aqui considerada como um gênero, é elemento constituinte de
arquitetônica enunciativa do filme (não se trata aqui de pensar a trilha sonora, presente na
maior parte dos filmes – este seria um caso de incorporação simples de um gênero por
outro, mas, no musical, mais que incorporação, a canção ou a música constituem o
14

enunciado cinematográfico), uma vez que desempenha papéis constitutivos da e na


narrativa: ora ela compõe falas de personagens, ora assume a função do narrador junto
com a câmera, etc
Uma questão inovadora da versão de 2012 para o clássico do musical Les
Misérables é o fato do cantar ao vivo. Ao invés dos atores gravarem as canções em estúdio
para depois atuarem dublando em cima de cada canção, eles se propuseram a gravar o
áudio das canções ao mesmo tempo em que atuam, como aconteceria no teatro. Cantar ao
vivo no momento da gravação de cada cena traz liberdade para os atores, que imprimem
na voz (por meio da entoação) a emoção da maneira que desejarem durante a atuação.
Fator que torna o corpus escolhido diferenciado para pesquisa e análise.
A presente pesquisa teve como objetivo geral refletir, por meio de uma análise
dialógica específica (de Les Misérables), acerca da constituição da arquitetônica do filme
musical como gênero discursivo, constituído de maneira intergenérica. E como objetivos
específicos analisar como o filme musical Les Misérables (2012) dialoga com outras
obras cinematográficas musicais e quais relações estabelece também com peças musicais
(em especial, espetáculos da Broadway), uma vez que muitas peças musicais são
inspiração para a construção de obras cinematográficas musicais; compreender, por meio
da análise dialógica discursiva, de que maneira os diversos gêneros se constituem no
corpus escolhido, reconhecido como intergenérico; e analisar a questão da entoação na
encenação (com canções gravadas ao vivo) como elemento inovador da produção
cinematográfica de 2012, em diálogo com o teatro musical e a performance cancioneira.
Sob a perspectiva teórica escolhida para este trabalho a questão do diálogo se
encontra no centro do entendimento de todas as outras concepções que serão aqui
discutidas. A partir e por meio do diálogo é que os estudos do Círculo refletem sobre o
conceito, por exemplo, de enunciado e signo ideológico. Para Bakhtin, todo enunciado
está ligado a outros, aqueles proferidos anteriormente e aqueles que a partir deste se
formarão. As relações entre enunciados criam uma espiral de ligações entre eles,
ininterrupta, sempre em processo, ampliando-se. Segundo os estudos do Círculo, todo
signo é ideológico, uma vez que o enunciado é o lugar da luta de classes; pode-se
compreender que existem valores, ideologias, permeando os signos, os enunciados, o
discurso. Na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem já se encontra a discussão sobre
essa concepção: “Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado
fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo”.
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992, p.31). Todo enunciado está ligado a uma realidade,
15

a um contexto histórico e social, mas, além dessa ligação, encontra-se sempre uma marca
ideológica, algum valor é representado em cada signo da interação verbal. “Compreender
um signo consiste em aproximar o signo apreendido de outros signos já conhecidos; em
outros termos, a compreensão é uma resposta a um signo por meio de signo.” (idem, p.
34).
Para o Círculo a concepção de sujeito também é importante nos estudos
discursivos. Para esse grupo de estudiosos, o sujeito é constituído pelo outro, que também
é sujeito e se constitui a partir de outros e do “eu”. Essa relação eu – outro é a própria
composição do sujeito. O sujeito é eu e outro e essa relação, para os estudos do Círculo,
é responsiva e responsável:

Ao agirmos com base na compreensão de algo que antecede a nossa própria


ação, somos responsáveis pela compreensão construída que passa a ser o
sentido do evento. Somos responsáveis por isso, e duplamente responsáveis
porque as ações que nosso ato desencadear no futuro (ações de outros ou
minhas) resultarão, por seu turno, de uma compreensão que não remete mais
somente ao meu ato, mas também ao ato de que meu ato foi resposta. Em outros
termos, a responsabilidade ‘responsiva’ tem dupla direção, tanto para o
passado quanto para o futuro, ainda que concretamente ela é sempre realizada
no presente. (GERALDI, 2010, p.287)

A ação do sujeito no mundo é singular (o ato) e suas relações (eu-outro) serão


sempre responsivas e responsáveis.
Na relação com o outro é que o sujeito se constitui, porém esse outro não está
necessariamente fora de mim (do eu). Esse outro pode coabitar o próprio ser (o eu). No
momento em que se pensa, por exemplo, em algo a ser dito para outra pessoa a reação
deste outro é levada em consideração, ou seja, ao pensar no outro e interagir com ele, o
outro se encontra no eu. O sujeito é múltiplo, fragmentado, tem relações internas e
externas com o(s) outro(s). Essas relações podem ser pensadas como, de acordo com o
que é colocado em Para uma filosofia do ato responsável (2010) por Bakhtin, eu-para-
mim, eu-para-o-outro, outro-para-mim. Nessas multi-facetadas definições do sujeito para
o Círculo, o conceito de diálogo permanece presente, uma vez que entre diversas relações
o sujeito será sempre dialógico.
Do ponto de vista do Círculo, o estudo dos gêneros envolve diversos outros
conceitos importantes, sem os quais a compreensão de gênero não se forma. Para Bakhtin,
os gêneros discursivos surgem sempre em uma dada esfera, ou seja, um campo de
atividade daquele gênero, assim como todo gênero dispõe, segundo o filósofo russo, de
uma forma, um estilo e um conteúdo específicos. Os gêneros possuem características
16

semelhantes que podem levar os sujeitos a reconhecê-los e atribuí-los a algum campo de


conhecimento da humanidade. No entanto, eles também possuem traços únicos, a cada
ato de cada gênero, em sua composição, surgem mudanças, renovações e, dessa maneira,
os estudos do Círculo consideram os gêneros não apenas na sua estabilidade, mas também
em sua mobilidade, no seu caráter instável.
Certas características podem levar os sujeitos a reconhecer cada gênero como tal;
todavia, essas qualidades não devem ser consideradas como exigência para a
denominação de um certo gênero, ou seja, não existe uma fôrma em que um enunciado
deve sempre se encaixar para se tornar um gênero, mas, sim atos únicos que, a cada
enunciação, poderão (re)formular novos gêneros, com suas nuances e seus tons
específicos: “Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de
utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais
denominamos gêneros do discurso.” (BAKHTIN, 2011, p.262). Para o Círculo, “uma
obra só se torna real quando toma a forma de determinado gênero.” (MEDVIÉDEV, 2012,
p.193) E é o filme musical que será visto a partir dessa perspectiva, como gênero, no
interior desta pesquisa.
O conceito de gênero, conforme discutido por Bakhtin, não segue a ideia de que
existem características (pré) definidas nas quais um enunciado em especial deve se
encaixar para então ser “enquadrado como determinado gênero”. Para o Círculo, os
gêneros não são apenas um conjunto de fatores em comum, como se os requisitos para a
existência de cada gênero surgissem antes do próprio, mas são um olhar contemplativo
de um sujeito que (re)cria e responde ao dialogar com uma realidade e, a partir desse ato,
um dado gênero se (re)formará. Conforme Medviédev:

O artista deve aprender a ver a realidade com os olhos do gênero. É possível


entender determinados aspectos da realidade apenas na relação com
determinados meios de sua expressão. Por outro lado, os meios de expressão
podem ser aplicados somente a certos aspectos da realidade. O artista não
encaixa um material previamente dado no plano preexistente da obra. O plano
da obra lhe serve para revelar, ver, compreender e selecionar o material. (idem,
p.199)

Para Bakhtin, os gêneros são construções relativamente estáveis, dentro da


mobilidade ou não do próprio gênero. Porém, para que um enunciado seja analisado como
gênero, nesta pesquisa, torna-se necessário o esclarecimento acerca do reconhecimento
17

de uma dada construção como gênero. Para que um enunciado seja considerado gênero
discursivo, Bakhtin aponta três marcas que todo gênero contém: forma, estilo e conteúdo.
Na forma são pensadas as diversas maneiras como as construções aparecem,
enquanto no estilo e no conteúdo transparecem, respectivamente, o sujeito autoral e o
tema. O estudo da constituição dos gêneros discursivos, conforme o filósofo russo, leva
sempre em consideração a singularidade de cada gênero em particular (forma
composicional; material/conteúdo/tema; estilo-marca identitária, que pode ser do autor
ou do próprio gênero).
O conceito de esfera, para os estudos do Círculo, leva em consideração a
produção, a circulação e a recepção de um gênero em particular. A produção seria um
dado projeto; enquanto a circulação seria a maneira como ele é executado em determinada
esfera; já na recepção considera-se o público, ou seja, a demanda e a leitura do projeto
produzido. A esfera é também um dado campo de conhecimento, como, por exemplo, a
esfera de um sujeito pode o levar a agir de certa maneira, ética, naquele determinado
campo. A ética não é compreendida da maneira kantiana, universal, mas é constituída de
acordo com o lugar do sujeito enunciado, de forma concreta.
No estudo dos gêneros discursivos, a esfera de atividade ajuda a pensar sobre onde
um gênero ou discurso atua e onde nasce, de onde ele se alimenta e qual o seu contexto,
uma vez que todo discurso acontece num espaço e tempo específicos, vindos de algum
sujeito em especial. Da mesma maneira que o gênero está no social, ele nasce numa esfera
de atividade.
Bakhtin também analisa os gêneros em dois grupos: primários e secundários.
Conforme o filósofo russo:

Os gêneros discursivos secundários (complexos – romances, dramas, pesquisas


científicas de toda espécie, os grandes gêneros publicísticos, etc.) surgem nas
condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito
desenvolvido e organizado (predominantemente o escrito) – artístico,
científico, sociopolítico, etc. (BAKHTIN, 2011, p.263)

Essas denominações não visam à hierarquização, mas, sim, ao reconhecimento de


dois núcleos distintos de criações de gêneros do discurso. Os gêneros primários seriam
aqueles do cotidiano, mais ligados à vida, enquanto os gêneros secundários estão mais
conectados à arte e às construções mais complexas, não tão espontâneas quanto os
gêneros primários e surgem destes
18

Gênero primário e secundário, assim como vida e arte, encontram-se ligados, um


em processo de geração do outro (seja de maneira derivada, seja em contraposição), em
constante relação dialógica (de embate - concordância ou discordância).
Os gêneros discursivos, conforme discutidos pelos autores do Círculo, são
reconhecidos ao se aceitar que os diversos campos da atividade humana (arte, política,
ciência, etc) têm conexão com a linguagem, ou seja, cada esfera de atividade, na sua
singularidade, necessita da linguagem e essa linguagem será modificada conforme cada
discurso e cada gênero específico.
A construção de cada discurso utiliza artifícios particulares, pois os enunciados

refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não


só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção
dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas acima de tudo,
por sua construção composicional. (BAKHTIN, 2011, p.261)

Na produção de um filme são necessárias especificidades de diferentes campos


artísticos, desde a construção de uma breve cena cinematográfica foram utilizados
gêneros diversos, como a fotografia, o teatro (a atuação), a dança (em alguns casos de
musicais que apresentam a coreografia como parte de sua construção – caso, por exemplo,
de Dançando na chuva, entre outros), a canção ou a música (trilha sonora), bem como
elementos típicos de sua construção: a escolha do figurino, a movimentação da câmera,
etc.
O estudo de qualquer discurso concreto carece de olhares atentos para as
particularidades de cada gênero, “porque todo trabalho de investigação de um material
linguístico concreto [...] opera inevitavelmente com enunciados concretos (escritos e
orais) relacionados a diferentes campos da atividade humana e da comunicação.” (idem
p.264). Dessa maneira é que o estudo de um gênero secundário, como o filme musical,
propõe-se a refletir acerca da incorporação de outros diversos gêneros em seu cerne, de
maneira intergenérica, como a aqui proposta.
A presente pesquisa é qualitativa de caráter interpretativo, composta por etapas de
descrição e análise que partam do texto/discurso, mas o vêem em sua mobilização pelo
gênero. Para isso, parte-se das concepções de gênero (composição, forma e conteúdo) e
intergênero, esfera de atividade, sujeito, diálogo, entoação e ato, da filosofia bakhtiniana.
Em consonância com a metodologia utilizada no projeto de pesquisa de Paula
(2010), o percurso a ser seguido calca-se em três etapas: a descritiva, a analítica e a
19

interpretativa. Considera-se a interpretativa como síntese do exame bakhtiniano do


discurso, uma vez que por meio dela é possível demonstrar como a concepção da
especificidade da abordagem bakhtiniana a torna distinta de outras propostas.
O método, de acordo com Paula et al. (2011) é o dialético-dialógico e o material
é o bibliográfico. Ponzio reflete sobre o método aqui considerado:
O sentido do texto se define na lógica da pergunta e da resposta, que não são
categorias abstratas do logos, absoluto e impessoal, mas sim momentos
dialógicos concretos que pressupõem “encontrar-se reciprocamente fora”,
pressupõem “cronotopos” diferentes, para quem pergunta e para quem
responde. O “encontrar-se reciprocamente fora”, a “extralocalização”, é, para
Bakhtin, fundamental na compreensão ativa. (2011, p. 188)

Discute-se, deste modo, sobre a dialética por ela se assemelhar à dialética clássica
de afirmação, negação e síntese sem, necessariamente, concluir-se no terceiro elemento,
mas entendendo-o como nova afirmação, logo, reinício de um novo ciclo, sem fim,
sempre em movimento, em espiral.
A dialógica calca-se no enunciado responsivo por afirmar que, conforme os
escritos do Círculo, a “primeira” afirmação (ou negação) nunca será, de fato, um
enunciado inicial, mas, sim, já a resposta a enunciados outros que foram proferidos antes
e serão produzidos depois dele. A anti-tese, por sua vez, é uma resposta ao enunciado
anterior (tese) e estimula a produção de enunciados posteriores (síntese/nova afirmação),
de maneira a dialogar com aquilo que foi e com o que se espera ser respondido. A síntese
também se constitui como uma outra resposta, em diálogo com a anterior e com as
posteriores a ela. Ela não finaliza o processo. Ao contrário, ela o mantém em movimento,
com enunciados ininterruptos.
Quando se descreve os elementos de um exemplar de gênero, como, no caso, o
gênero filme musical, abordam-se as interrelações entre seus elementos e se identificam
efeitos de sentido nele produzidos, o que remete à interdiscursividade3 do e no objeto,
bem como, no caso do corpus desta pesquisa, à construção da arquitetônica do musical
Les Misérables.
Ao se seguirem implicitamente as etapas explicitadas acima, não se pode perder
de vista o caráter totalizante da pesquisa, uma vez que, segundo Paula e Stafuzza (2010),
a teoria bakhtiniana é “inclassificável”. Logo, a ênfase é a interseção, necessária e
positiva, entre essas etapas, dado que, a fim de preservar a unidade do discurso, o analista

3
Ressalta-se aqui o ponto de vista de interdiscursividade conforme pensado em FIORIN, J. L.
Interdiscursividade e intertextualidade. In BRAIT, B. (org.). Bakhtin – outros conceitos-chave. São Paulo:
Contexto, 2006.
20

deve ter presente em seu olhar os vários aspectos que constituem o objeto de pesquisa, à
luz do universo de sua discursividade e genericidade.
O encontro da vida e da arte permite a percepção de que uma complementa a outra
o tempo todo, assim como os gêneros primários e secundários ou como o próprio sujeito,
que se constitui somente na relação com o outro sob a perspectiva bakhtiniana. O diálogo
e o aspecto inacabado (ou em acabamento) do sujeito e do discurso são reflexões
aprofundadas pelos estudos do Círculo, de maneira a provocar o ato responsivo de
reconhecimento das particularidades da composição de cada discurso, na arte ou na vida.
Não apenas filme musical, mas diversos outros gêneros (contemporâneos ou não) podem
ser pensados em suas singularidades e relações dialógicas, sempre levando em
consideração que a pesquisa não esgota a espiral de ligações dialógicas de cada
enunciado, mas a faz crescer e ganhar novas (re)forma-ações únicas. Conforme
comentado, nos estudos de Bakhtin, os gêneros discursivos são compreendidos como
relativamente estáveis, ou seja, não existe gênero acabado, fechado, mas em processo de
acabamento. Da mesma maneira, a análise aqui proposta, a ser pensada a partir de Les
Misérables, não busca finalizar um acabamento para este gênero, mas, sim, estudar as
particularidades do corpus, como exemplar do gênero filme musical, com seus diálogos
e relações, sempre em movimento.
21

1 GÊNERO DISCURSIVO E CONTEXTO: O FILME MUSICAL

As discussões realizadas na dissertação de mestrado da pesquisadora contribuíram


para o estudo dos gêneros discursivos ao analisar, a partir da perspectiva do Círculo de
Bakhtin, o filme musical Across the Universe (2007), de Julie Taymor, relacionando-o
com o contexto retratado e a época histórica com a qual dialoga (os anos 60 e 70), assim
como com a trajetória e as canções da banda britânica The Beatles. No entanto, esta
dissertação se centrou, como era o seu objetivo, na análise do exemplar de filme musical
Across the Universe, sem o compromisso de identificá-lo no interior de um panorama
histórico do gênero musical no cinema. E esta é uma das continuidades que motivaram a
escrita da presente tese, que irá desenvolver uma discussão da trajetória da produção de
filmes musicais no cinema e, em especial, no cinema norte-americano. A partir, então, de
uma pesquisa sobre a construção deste tipo de filme ao longo dos anos, será possível não
somente (re)ver as particularidades de Across the Universe como também do novo filme-
corpus escolhido para o doutorado: Les Misérables (2012), de Tom Hooper.
A discussão sobre a história do filme musical trabalhará aqui com a relação entre o
estável e o instável, uma vez que entre os filmes expostos serão reconhecidas as
repetições, as reiterações e estabilidades, assim como as inovações, peculiaridades e
características individuais de cada obra cinematográfica. No subitem 1.1 Será discutido o
conceito de gênero discursivo sob a ótica dos estudos do Círculo de Bakhtin, seguindo
para o 1.1.1, em que o gênero fílmico será ressaltado e comentado. A partir de uma visão
panorâmica, no subitem 1.2 serão discutidos filmes musicais; em 1.2.1 as obras
produzidas dos anos 20 até os anos 2010 serão comentadas década por década. Em 1.3 a
relação entre os filmes comentados e Les Mis é trazida à tona para posteriormente ser
aprofundada no capítulo de análise. Sendo o teatro musical a inspiração da obra
cinematográfica em questão, o capítulo 2 discorre sobre a peça musical, enquanto em 2.1
a Broadway será o foco principal, como central de produção do teatro musical; em 2.2 a
Broadway aparece como experiência vivenciada nos quatro meses de doutorado
sanduíche em Nova Iorque. Nos capítulos 3, 4 e 5 a teoria do Círculo de Bakhtin é o foco
das discussões, já no capítulo 6 as questões teóricas são aplicadas na análise do filme
musical-corpus Les Misérables.
22

1.1 Gênero discursivo

O conceito de gênero discursivo sob a ótica dos estudos do Círculo de Bakhtin4


engloba, assim como todas as ideias do Círculo, uma série de outros conceitos a partir
dos quais se forma e se encontra em relação. Para se falar de gênero discursivo torna-se
necessária a discussão acerca de conceitos como diálogo, enunciado, entre outros. Nos
estudos bakhtinianos o enunciado nunca é adâmico, ou seja, está sempre ligado a outros
enunciados que foram construídos anteriormente e também aos que a partir dele surgirão.
Essa relação dialógica forma uma espiral infinita de interligações.
A ideia de gênero discursivo é comumente ligada à simples separação por
características comuns, assim como fala Aristóteles em seus escritos. Este tipo de divisão,
no entanto, considera uma espécie de forma pré-montada em que uma construção deve se
encaixar. As características comuns acabam por se tornar regras, particularidades que são
exigidas de um devido gênero para que seja identificado como tal. Medviédev escreve
que:
Normalmente, os formalistas definem o gênero como um agrupamento
específico e constante de procedimentos com determinada dominante. Uma
vez que os procedimentos fundamentais foram determinados fora do gênero,
este foi mecanicamente composto a partir dos procedimentos. (2012, p. 193)

Os estudos do Círculo não compreendem os gêneros deste modo, pois assim haveriam
regras prontas para o gênero antes mesmo deste se formar. Para Bakhtin os gêneros
discursivos são relativamente estáveis, uma vez que se deve considerar tanto suas formas
(relativamente) fixas quanto as características únicas e irrepetíveis de cada novo
enunciado. Bakhtin afirma que
A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são
inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em
cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que
cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um
determinado campo. (2011, p. 262)

O filme musical, objeto do presente estudo, apresenta, como gênero discursivo,


particularidades que se repetem, que permitem que este seja reconhecido como musical,
tais como o canto (em que aqui será pensada a canção) e dança (ou coreografia), por
exemplo. Estas marcas possibilitam o reconhecimento do gênero, pois estão
frequentemente presentes nele. Há, no entanto, também as características inovadoras,

4
Ao se referir aqui ao Círculo de Bakhtin este trabalho considera as diversas obras produzidas por um grupo
de autores do mesmo Círculo, entre eles Bakhtin, Medviédev, Volochinov, sem ter o objetivo, neste caso,
de designar a autoria específica de devidas ideias ou conceitos, mas, sim, considerando a obra do Círculo
como um todo de produção a ser estudada e discutida.
23

únicas a cada novo exemplar deste gênero. Não existe, deste modo, uma receita pronta,
com exigências fixas, em que todo gênero deve se encaixar, mas, sim, formas
relativamente estáveis, em que o gênero apresenta particularidades que se repetem ao
mesmo tempo que apresenta as novas. Sendo todo enunciado, conforme o Círculo, único
e irrepetível, cada exemplar de um devido gênero sempre apresentará traços novos.
Nesta pesquisa não apenas o filme musical será reconhecido como gênero discursivo,
mas também a canção. Esta que, por si só, já intergenérica, pois possui letra e música em
sua composição. Assim como a canção, o filme musical é intergenérico, pois para sua
formação são utilizados diferentes gêneros. Ao se falar aqui em intergenericidade este
trabalho considera não apenas a mera incorporação de um gênero no outro, um simples
reconhecimento, mas um gênero como constitutivo do outro. Para a constituição do
gênero canção música e letra não são apenas outros gêneros no interior da canção, são a
própria composição deste gênero. No filme musical a canção ou a dança, por exemplo,
são parte da construção do filme, se retirados, o gênero inexiste. São, portanto, parte
integrante da constituição do gênero, que é intergenérico.
Para o Círculo os gêneros se dão em um devido espaço e tempo e circulam em esferas
de atividade específicas. A discussão sobre o filme musical aqui considera, portanto, o
gênero em sua forma, estilo e conteúdo, bem como sua produção, circulação e recepção
dentro das esferas em que se encontram.
Os gêneros podem ser divididos entre primários e secundários, conforme discute
Bakhtin. Esta divisão não visa à hierarquização nem à separação de melhor ou pior, ela
visa ao reconhecimento de particularidades entre estes gêneros. Enquanto os gêneros
primários estão ligados ao cotidiano e ao imediato, os secundários são os gêneros das
esferas da ciência ou das artes, por exemplo. De formação mais complexa, os gêneros
secundários se constroem a partir dos primários, pois os gêneros primários “que integram
os complexos, aí se transformam e adquirem um caráter especial: perdem o vínculo
imediato com a realidade concreta.” (BAKHTIN, 2011, p. 263)
O gênero que se considera o filme musical, neste trabalho, é o gênero discursivo,
conforme discutido pelo Círculo. No entanto, o vocábulo gênero também será pensado
aqui conforme as divisões entre os tipos de filmes no cinema como “negócio”. Sendo o
filme um enunciado de produção mercadológica, para a indústria cinematográfica o
gênero “ajudou a estabelecer padrões de filmes, fator extremamente desejável por
representar economia de escala e direcionamento determinados por produções para
plateias específicas” (CUNHA, 2012, p.20) O gênero na forma em que é compreendido
24

pela indústria se mostra como “uma estratégia para fidelizar suas plateias e minimizar
seus próprios custos” (idem, p.24) Percebe-se, desta forma, que o filme musical é aqui
pensado em sua circulação e recepção, ou seja, em sua relação com a vida:

O que se chama de “compreensão” e “avaliação” de um enunciado


(concordância ou discordância) sempre engloba a situação pragmática
extraverbal juntamente com o próprio discurso verbal. A vida, portanto, não
afeta um enunciado de fora; ela penetra e exerce influência num enunciado de
dentro [...] A enunciação está na fronteira entre a vida e o aspecto verbal do
enunciado; ela, por assim dizer, bombeia energia de uma situação da vida para
o discurso verbal, ela dá a qualquer coisa linguisticamente estável o seu
momento histórico vivo, o seu caráter único. (VOLCHINOV/BAKHTIN, s/d,
p.14)

Os enunciados, ou obras cinematográficas no presente caso, são considerados em seus


meios de produção, sem excluí-los de seus valores ideológicos e posicionamentos de
resposta aos devidos tempo e espaço em que se encontram.

1.1.1 Filme
Ao se pensar sobre o filme como um enunciado a ser analisado percebe-se que
este possui particularidades, traços que se repetem, a cada exemplar de filme.
Para Bakhtin o gênero discursivo contém, como comentado, forma, conteúdo,
estilo, e apresenta uma dada esfera de atividade em que circula e um tempo e espaço em
que é produzido. Como relativamente estáveis, os gêneros apresentam as características
comuns, que se repetem, e as inovadoras, que mantém o gênero vivo, sempre me processo
de renovação.
O filme pode ser considerado como gênero a partir do momento que se pensa neste
como um enunciado, um objeto a ser analisado, que detém uma estrutura específica,
característica do gênero, assim como contém outras novas, a cada filme produzido. A
estrutura do filme musical trabalha com a canção, mas não entra apenas para confirmar
algo do conteúdo e da forma do gênero, mas, sim, como parte do conteúdo e da forma do
filme.
O musical é um gênero discursivo, e entre seus traços constitutivos está a canção.
Muitos musicais possuem dança também, ou seja, as personagens se expressam tanto por
canções quanto por movimentações e coreografias.
No desenvolvimento desta pesquisa não há interesse em subdivisões, a ideia de
“sub”, de um dentro do outro, não é relevante para a análise aqui feita. O objetivo deste
trabalho é compreender quais características norteiam o musical, o que ele apresenta de
25

especial, de peculiar, que, ao mesmo tempo em que não deixa de ser filme, como gênero
discursivo, também carrega traços característicos de musicais. Desta forma o musical é
gênero filme, porém não qualquer filme, porque tem suas peculiaridades. O trabalho com
a canção e com a dança estão entre as características marcantes do filme musical, e estes
traços podem ser entendidos historicamente, como será feito a seguir.

1.2 Musical

A presente pesquisa pensa o cinema e, mais especificamente, o filme musical, a partir


dos estudos do Círculo de Bakhtin, que se debruçam sobre objetos como a literatura, por
exemplo. Pensar o filme desta forma, sob a ótica de Bakhtin, é uma tomada de posição
não tão usual, mas que se justifica ao se refletir sobre os conceitos gerados pelo filósofo
russo, ainda que seus objetos de análise fossem diferentes, pois ideias como diálogo,
gênero discursivo, entre outras, fomentam discussões e possibilitam análises de artes
diversas, entre elas, o cinema.
A arte do cinema possui

suas maneiras de sugerir, através da colocação da câmera, do enquadramento


e da interpretação, fenômenos como intimidade ou distancia, companheirismo
e dominação, em suma, a dinâmica social e pessoal que se realiza entre
interlocutores. (STAM, 1992, p.63)

O filme musical é aqui reconhecido como um enunciado a ser analisado,


considerado como um gênero discursivo, conforme as ideias do Círculo de Bakhtin. Para
o filósofo russo o enunciado é sempre dialógico, ou seja, não há enunciado que não se
ligue a outros, sejam os que existiram antes dele quanto os que a partir dele se formarão.
O conceito de diálogo, desta forma, é também muito importante para esta pesquisa. Ao
falar sobre diálogo Bakhtin não pensa apenas no diálogo face-a-face, pensa também nas
relações dialógicas mais amplas. As obras do Círculo têm o diálogo ou o dialogismo como
uma tônica, que aparece em diversas discussões, Stam afirma que:

Em todos os livros encontramos variações do tema central da linguagem e do


dialogismo. Esse tema central assume diversos nomes: poliglossia,
heteroglossia, polifonia, dialogismo. Todos os termos estão associados à
comunicação através da diferença, tanto entre pessoas como entre textos ou
grupos sociais. (idem, p.12)
26

Ao se analisar, por exemplo, o filme musical como um enunciado poderão ser


reconhecidas diversas relações dialógicas entre os exemplares deste gênero, discutidos
nesta seção.

1.2.1 Histórico: uma visão panorâmica

Pensar a trajetória do filme musical no cinema 5não busca aqui uma mera
descrição histórica, mas, sim, uma discussão com foco na estrutura do gênero, que se
forma num contexto que não pode ser ignorado, pois este por vezes se mantém, e por
vezes se modifica. Assim também a história e o homem se modificam, conforme surjam
novas ferramentas tecnológicas; algumas características se renovam e outras vão se
tornando menos comuns.
O filme musical surgiu juntamente com o filme sonoro. Quando a produção
cinematográfica passa a dominar o advento do som, é feito um filme considerado o
primeiro musical, O Cantor de Jazz (1927), de Alan Crosland. Sobre o nascimento do
filme sonoro (e do musical), Cunha comenta que:
Considerado um fenômeno gerado inicialmente pela tecnologia que conseguiu
reunir imagem e som – e apresentado oficialmente através de O Cantor de Jazz
(1927), os filmes musicais rapidamente se aprimoraram com roteiros
pertinentes, artistas carismáticos, produções suntuosas, música arrebatadora e
dança envolvente. Além de divertir, tal força imagética e sensorial conseguia
projetar esperança nos espectadores, posto que na tela houvesse algo de bom e
positivo, desejado e sonhado, de tal maneira que este caráter utópico e
escapista marcou – e perpetuou – o gênero musical já em seus primórdios.
(2012, p.25)

Dentro do gênero “industrial” musical, filmes somente com dança (sem “falas
cantadas”) também são considerados musicais. Porém, dentro dos objetivos desta
pesquisa e na seleção de filmes a serem apontados e discutidos neste capítulo, terão maior
relevância e destaque as obras musicais que possuem essencialmente o canto, ou a canção
em sua construção. Esta escolha se justifica a partir do ponto de vista de que este trabalho
busca observar como se constrói o gênero discursivo canção no interior do musical. É
claro que não há apenas o gênero canção no interior destas obras, no entanto os filmes

5
O recorte aqui feito tem foco no cinema norte-americano e esta escolha foi feita com base nas produções
de filmes musicais às quais se tem mais acesso no Brasil. Sendo Hollywood uma indústria norte-americana
expressiva pensa-se aqui, portanto, a especificidade a partir da expressividade de produção. Reconhece-se
nesta pesquisa que filmes musicais são efetuados também para além das produções norte-americanas, no
entanto, para o trabalho torna-se necessário um recorte e este foi o escolhido com base na grande indústria
de cinema que os EUA contêm, assim como a presença da Broadway e sua importância para a história do
teatro musical.
27

musicais apresentados neste panorama histórico têm em seu interior cenas com o gênero
canção. Não há nenhum sem canção. Assim como não serão discutidos aqui os filmes
considerados “repletos de canções”, mas que não aparecem nos filmes como falas. Isso
ocorre em filmes biográficos sobre cantores, por ex. Este tipo de filme é tomado em
grande parte por performances, por canções, porém estas aparecem apenas dentro deste
contexto de apresentação e não como falas das personagens, como palavra cantada.
A seguir se encontra uma tabela, construída a partir dos filmes musicais mais
expressivos de cada década, ainda que entre eles se encontrem alguns filmes em que
prevalece a dança, todas as obras abaixo citadas são importantes para se considerar a
formação do gênero filme musical ao longo dos anos no cinema.

ANO FILME MUSICAL

Década de 20

1927 O Cantor de Jazz (The Jazz Singer)


Direção de Alan Crosland

Década de 30

1932 Ama-me esta noite (Love me Tonight)


Direção de Rouben Mamoulian
28

1933 Rua 42 (42nd Street)


Direção de Lloyd Bacon

1933 Cavadoras de ouro (Gold diggers os


1933)
Direção de Mervyn Leroy

1935

O Picolino (Top Hat)


Direção de Mark Sandrich

1937 Vamos dançar? (Shall we dance?)


Direção de Mark Sandrich
29

1939 O Mágico de Oz (The Wizard of Oz)


Direção de Victor Fleming

1939 Sangue de artista (Babes in Arms)


Direção de Busby Berkeley

Década de 40

1944 Modelos (Cover Girl)


Direção de Charles Vidor

1944 Agora seremos felizes (Meet me in St


Louis)
Direção de Vincent Minelli

1948 Desfile de páscoa (Easter parade)


Direção de Charles Walters
30

1948 O Pirata
Direção de Vincent Minelli

1949 Um dia em Nova Iorque (On the town)


Direção de Gene Kelly e Stanley Donen

Década de 50

1950 Sinfonia em Paris (An American in Paris)


Direção de Vincent Minelli

1950 Bonita e valente (Annie get your gun)


Direção de George Sidney
31

1951

Núpcias Reais (Royal Wedding)


Direção de Stanley Donen

1952 Cantando na chuva (Singing in the rain)


Direção de Gene Kelly e Stanley Donen

1953 A Roda da Fortuna (The band wagoon)


Direção de Vincent Minelli

1953 Os homens preferem as loiras


(Gentlemen prefer boldes)
Direção de Howard Hawks
32

1953 Dá-me um beijo (Kiss me Kate)


Direção de George Sidney

1954 Sete noivas para sete irmãos (Seven


brides for seven brothers)
Direção de Stanley Donen

1954 A Lenda dos Beijos Perdidos


(Brigadoon)
Direção de Vincent Minelli

1954 Nasce uma estrela (A star is born)


Direção de William A. Wellman

1955 Papai pernilongo (Daddy Long Legs)


Direção de Jean Negulesco
33

1955 Oklahoma!
Direção de Trevor Nun

1956 O Rei e eu (The king and I)


Direção de Walter Lang

1957 Cinderela em Paris (Funny Face)


Direção de Stanley Donen

1958 Gigi
Direção de Vincent Minelli
34

Década de 60
Can Can
1960 Direção de Walter Lang

1961
Amor Sublime Amor (West Side Story)
Direção de Robert Wise

1964 Amor a toda velocidade (Viva Las Vegas)


Direção de George Sidney

1964 Mary Poppins


Direção de Robert Stevenson

1964 Minha bela dama (My fair lady)


Direção de George Cukor
35

1964 Os guarda-chuvas do amor (Les


Parapluies de Cherbourg)
Direção de Jacques Demy

1965 A Noviça Rebelde (The sound of music)


Direção de Robert Wise

1968 Funny Girl


Direção de William Wyler

1969
Alô Dolly (Hello Dolly)
Direção de Gene Kelly
36

Década de 70 Jesus Cristo Superstar


Direção de Norman Jewison
1971

1972
Cabaret
Direção de Robert Fosse

1975 The Rocky Horror Picture Show


Direção de Jim Sharman

1977 Embalos de Sábado à noite (Saturday


Night Fever)
Direção de John Badham

1978 Grease
Direção de Randal Kleiser
37

1979 O show deve continuar (All that jazz)


Direção de Bob Fosse

1979 Hair
Direção de Milos Forman

Década de 80

1980 Fama (Fame)


Direção de Kevin Tancharoen

1982 Victor/Victoria
Direção de Blake Edwards
38

1983 Yentl
Direção de Babra Streisand

1983 Flashdance
Direção de Adrian Lyne

1985 Chorus line, em busca da fama


Direção de Richard Attenbourough

Década de 90

1992 Mudança de hábito (sister act)


Direção de Emile Ardolino
39

1996 Todos dizem eu te amo


Direção de Woody Allen

1996 Evita
Direção de Alan Parker

Anos 2000

2000 Dançando no escuro


Direção de Lars Von Trier

2001 Moulin Rouge


Direção de Baz Luhrmann
40

2002 Chicago
Direção de Rob Marshall

2004 O Fantasma da ópera


Direção de Joel Schumacher

2005 Os produtores
Direção de Susan Stroman

2005 Rent, os boêmios


Direção de Chris Columbus
41

2007 Dreamgirls
Direção de Bill Condon

2007 Across the Universe


Direção de Julie Taymor

2007
Hairspray
Direção de Adam Shankman

2007 Sweeney Todd


Direção de Tim Burton
42

2008 Mamma Mia!


Direção de Phyllida Lloyd

2009 Nine
Direção de Rob Marshall

Anos 2010

2010 Burlesque
Direção de Steven Artin

2012 Os Miseráveis
Direção de Tom Hooper

A tabela acima compõe a proposta de se contextualizar o filme musical norte-


americano em um panorama histórico, pois a compreensão de um enunciado, com base
na filosofia da linguagem bakhtiniana, necessita ser vista em seu contexto:
43

Pois aceitar um enunciado não significa capturar seu sentido geral como
capturamos o sentido da “palavra de dicionário”. Entender um enunciado
significa entendê-lo no contexto da sua contemporaneidade e da nossa (caso
não coincidam). É necessário compreender o sentido no enunciado, o conteúdo
do ato e a realidade histórica do ato em sua união concreta e interna. Sem tal
compreensão, o próprio sentido estará morto, tornar-se-á um sentido de
dicionário, desnecessário. (MEDVIÉDEV, 2012, p.185)

Os filmes escolhidos para este quadro se encontram entre os mais populares do


gênero e são citados por críticos de cinema como Guido Bilharinho, em seu livro “O filme
musical”, e David Parkinson, em “The rough guide to film musicals”.
A partir desta tabela as capas dos filmes musicais podem ser observadas
juntamente com os atores presentes nas obras, em que alguns nomes são mais recorrentes.
Entre eles estão Gene Kelly, Fred Astaire, Judy Garland, entre outros, que serão de grande
importância para a história do filme musical. Este esquema cronológico das obras
musicais também permite concluir que as décadas mais frutíferas para a produção de
filmes musicais, a chamada era de ouro6, se encontra entre os anos 50 e 60. Esta época
deve ser lembrada, porém, não como um momento exclusivo para a produção de musicais,
de forma a se desconsiderar a qualidade de obras após este período, mas, sim, como marca
histórica na trajetória do gênero. Cada obra cinematográfica musical terá seu valor e
significado dentro do seu devido tempo e espaço. Para Bilharinho, sobre os caminhos do
filme musical: “Ao contrário do que se julga e se propala, o filme musical estadunidense
não acabou. Transformou-se e aprofundou-se tematicamente ao influxo dos novos
tempos.” (2006, p.11) A mudança de temática na narrativa dos filmes musicais é também
notável quando se projeta o olhar para uma perspectiva histórica. No entanto, estas
mudanças se encontram na formação do gênero, pois o musical não “acaba” após sua
época de “ouro”, mas “o que se encerrou foi sua fase romântica e alegre, na qual a ênfase,
o meio e o modo concentravam-se e destinavam-se ao descontraído desfrute do prazer
musical e coreográfico, constituindo a trama apenas veículo e suporte da finalidade
proposta.” (idem) Com o passar dos anos as modificações do gênero se dão tanto em sua
forma, estilo, quanto no conteúdo. Trazendo obras que discutem temas completamente
distantes do meio musical ou teatral, tema recorrente em vários musicais dos anos 40 e
50, por exemplo.
Ao se observar os nomes de diretores também se torna clara a ocorrência maior
de nomes como o de Vincent Minelli e Bob Fosse, por exemplo, que dirigiram diversos

6
Entre os críticos da área do cinema esta valorização da era de ouro é comum; porém, nesta pesquisa o
foco não se encontra no julgamento da era melhor ou pior para o filme musical, mas, sim, considerar este
período como maior produção, em questão de números de filmes de fato, e não em qualidade.
44

musicais expressivos em épocas diferentes. A partir daqui serão discutidos alguns dos
filmes que aparecem nesta tabela cronológica.
O primeiro filme considerado musical é O cantor de Jazz (1927), de Alan
Crosland. Esta é a primeira obra cinematográfica em que o recurso do som é utilizado, as
falas das personagens podem ser finalmente escutadas pelos espectadores. O filme é preto
e branco e as cenas faladas coincidem com os momentos de performance musical, as
canções aparecem, deste modo, quando a personagem principal se posiciona para
apresentar, de fato, um número. O filme é ainda uma transição, do cinema mudo para o
sonoro, pois as cenas misturam falas escritas com momentos em que se pode-se ouvir as
personagens falando. As canções não aparecem ainda, como será feito ao longo dos anos
com os filmes musicais, fora de um contexto de apresentação. As cenas com canto ou são
na sinagoga ou no palco, pois o “cantor de jazz” é um homem de família judaica, criado
para ser o cantor de sua sinagoga, que deseja ser cantor dos palcos, das apresentações
musicais e especialmente, do jazz.

Figura 1 Cenas de O Cantor de Jazz

As figuras acima mostram três momentos deste filme que transita entre o cinema
sonoro e o mudo. O primeiro quadro mostra uma cena característica de filmes mudos, em
que a fala aparece por escrito. Já no segundo e terceiros quadros são mostrados recortes
do filme em que há falas que podem ser escutadas, mas ainda estão diretamente ligadas
aos momentos de performance musical. 7 No quadro do meio, ao se sentar para tocar e
cantar a personagem principal estabelece um diálogo com sua mãe, e o espectador pode
escutar esta conversa. Enquanto no último quadro, a performance musical, a apresentação
de fato, também aparece nesta obra com o advento do som. Para Bilharinho: “O cinema,
que já era arte extraordinária antes desse filme, com ele, após ele e a futura utilização da

7
A pintura facial de Al Jolson na última figura faz referência ao Ministrel Show (Menestréis), um tipo de
teatro popular dos Estados Unidos em que artistas brancos se pintavam de negros em performances cômicas
e musicais.
45

cor, completa-se, incorporando, em arte-síntese, os elementos da realidade que


definitivamente o configuram: imagem, movimento, som e cor.” (2006, p.19)
Nos anos 30, musicais como O Picolino (Top Hat), 1935, de Mark Sandrich, se
destacam pelo casamento entre as performances e a narrativa. Ainda seguindo um padrão
de se cantar dentro de um contexto, estas performances não se tornam tão forçadas, ou
deslocadas na construção do filme, estas cabem bem e trazem significações que
complementam o enredo. O início do filme já brinca com a relação silêncio e som, ou
silêncio e música, pois a personagem principal, interpretada por Fred Astaire, adentra uma
sala de cavalheiros que prezam o silêncio, qualquer som desnecessário ali é proibido. A
personagem de Astaire, por sua vez, provoca não apenas som, naquele ambiente taciturno,
mas sapateia, alegremente, em frente aos cavalheiros, antes de deixar rapidamente a sala.

Figura 2 Cena de dança de O Picolino

Este filme se caracteriza por possuir dança e canto quase na mesma medida, mas
pendendo para a superioridade da dança. É também repleto de humor, e uma trama
delicada que marca o tipo de história desenvolvida no cinema musical desta época,
Ama-me esta noite (Love me Tonight), 1932, de Rouben Mamoulain, é mais um
exemplar dos anos 30, porém, neste caso percebe-se que a dança não prevalece, e, sim, o
canto.
46

Figura 3 Cena de canto, sem dança, de Ama-me esta noite

Uma marca recorrente tanto em O Picolino quanto em Ama-me esta noite é o


trabalho com o som/silêncio, ou seja, a música (ou a ausência dela) por meio do cenário
e das situações em cena. Em ambos filmes este jogo se dá ao início da obra
cinematográfica. Enquanto em O Picolino o é interrompida pelo som do sapateado de
Astaire, em Ama-me esta noite as cenas iniciais mostram atividades do cotidiano do
despertar de uma cidade em Paris, em que sons como o arrastar de uma vassoura no chão,
o ronco de um andarilho e o bater de um martelo se tornam uma sequência ritmada, uma
percussão. A marca do gênero musical já se mostra, no início destes filmes, por meio da
construção sonora, que capta sons (e pausas) criados a partir das situações em cena. A
música, e também a canção, são parte do tema dos filmes musicais, mas se encontram
também na forma, na estrutura da obra, como pode ser observado nestes dois momentos
de O Picolino e de Ama-me esta noite.
Em 1939 estreia um dos filmes musicais que ultrapassa seu tempo, O Mágico de
Oz, de Victor Fleming. Com a atuação marcante de Judy Garland este filme traz o trabalho
com a cor no cinema, pois o início do filme se dá em um tom todo sépia, e somente após
passar para um mundo “imaginário” ganha cor. Ao longo do musical há dança e
coreografia também, porém o canto ainda se mostra mais importante. Ainda que existam
diversas canções, que são conhecidas até hoje (Somewhere over the rainbow, Ding Dong
the Witch is Dead, entre outras), o filme não é tomado apenas por canções. Há também
muitas partes faladas. Em relação aos outros exemplares de filmes musicais, O Mágico
de Oz, em questão, não apresenta tantas canções, e nem começa ou termina com
personagens cantando.
47

Figura 4 Cena de canto solo em O Mágico de Oz

Figura 5 Cena de canto com dança

O filme Agora seremos felizes (Meet me in Saint Louis), 1944, de Vincent Minelli,
é mais um trabalho com Judy Garland, só que agora já nos anos 40, com a atriz mais
adulta. O musical apresenta tanto canto quanto dança, mas as coreografias aparecem
apenas quando fazem parte de um contexto para a dança (como parte de uma festa, por
exemplo). Não há, desta forma, momentos de coreografia junto com canções fora do
contexto de apresentação ou performance. Ainda que possua canções marcantes, como
Have yourself a merry little christmas, este filme possui mais história com falas das
personagens do que com canto.
48

Figura 6 Cena em que há dança no interior de uma festa

Figura 7 Cena em que “have yourself a merry little christmas” é cantada pela personagem de Judy Garland

Agora seremos felizes possui uma temática familiar com uma trama leve, marca
recorrente no gênero durante os anos 40, 50 e 60, pois

Se a década de 30 no país foi inicialmente marcada pelas consequências


econômicas e financeiras da dramática queda da bolsa de valores em 1929, os
anos 40, não obstante a guerra (e até por isso, pelo que representou de
galvanização da energia do país) singularizaram-se pelo otimismo advindo dos
49

êxitos da política econômica implementada pelo governo Roosevelt (New


Deal), pelo desenvolvimento industrial, a a vitória na guerra e a ascensão do
país ao primeiro plano da economia e da política mundial. [...] O romantismo
e a idealização fílmica desse período que impregnaram o gênero musical
estenderam-se até fins da década de 1950. (BILHARINHO, 2006, p.11)

Também do ano de 1944, Modelos (Cover Girl), de Charles Vidor, é um filme


desta década que já conta com um dos artistas que mais marcaria presença dentro deste
tipo de filme, Gene Kelly. A trama desta obra se desenrola com várias canções e dança
de sapateado. Kelly aparece novamente em Sinfonia em Paris (An American in Paris),
1950, com direção de Vincent Minelli. Nesta obra Kelly mostra mais uma vez seu talento
para o sapateado, pois este filme musical contém vários números em que o ator exibe sua
virtuosidade e domínio da dança de sapateado. Sobre esta época pode-se dizer que “a
característica básica do filme musical estadunidense da década de 1940, mas,
principalmente, dos anos 50, é, como já notado e proclamado, o otimismo temático e a
alegria, leveza e desenvoltura musical.” (idem, p.65) O filme Modelos possui, deste
modo, a trama leve, romântica e com toques de humor, marcas que caracterizavam os
musicais levados pelo sapateado, tal qual os filmes em que aparecia Astaire.

Figura 8 Cenas de dança com Astaire

O diferencial nesta obra é que, além do sapateado “usual” e “esperado” para o tipo
de filme há também trabalho com ballet, e, por esta razão, as coreografias clássicas de
ballet são embaladas por músicas instrumentais eruditas. Conforme discute Bilharinho,
“Aí o cinema musical atinge um de seus grandes momentos, que o equipara, em
criatividade, planejamento, execução e desempenho, com o que de melhor se fez em
ópera, música e dança em geral.” (2006, p.67) O grande “clímax” do filme ocorre por
meio de um verdadeiro espetáculo de ballet, pois, “Como se trata de cena final,
50

direcionou-se o filme para esse clímax apoteótico e grandioso em sua limpidez e


luminosidade ambiental e na desenvoltura dos movimentos coreográficos.” (idem, p.67)
Longa e repleta de dançarinos e cenários diversos, esta é a sequência do filme que mais o
diferencia do sapateado usual de Kelly.
O filme O rei e eu (1956), de Walter Lang, se constrói como um musical
riquíssimo em produção, no quesito cenário, figurino, entre outros, é uma obra
cinematográfica com alto investimento. O filme é inspirado na peça musical e a atuação
da personagem do rei demonstra traços de peça teatral, como expressões fortes e
movimentações bem marcadas.

Figura 9 Cena com atuação marcante de Yul Brynner

As cenas com canções não são tantas, apesar do filme ser bem cantado. A
construção das performances musicais é diretamente ligada a cada cena, trazendo a letra
da canção como falas das personagens, seja em monólogos ou em diálogos.
Na década de 50 é criado o filme musical Dançando na chuva, de Stanley Donen
e Gene Kelly, que acabou por se tornar um dos grandes representantes do gênero com o
passar dos anos.
51

Figura 10 Cena icônica de Gene Kelly em Dançando na chuva

Conforme discute Bilharinho sobre esta obra:

Todavia, não se pode perder de vista que é musical, com suas qualidades e
especificidades. Notadamente, porque não se constitui de simples soma de
sons, imagens e movimentos, mas, de seu amálgama e síntese para compor arte
diversa, cinematográfica, e, nos lindes de seus parâmetros, configurar um
gênero, o musical. Se se adicionar a isso, a circunstância de que a trama,
mesmo leve e levemente conduzida, revela (e por isso até certo ponto
desmistifica) a máquina de sonho hollywoodiana, e seus processos e, ainda,
simultaneamente, com beleza e desenvoltura, o filme mostra o outro lado, isto
é, a criação artística do espetáculo, da música, da dança e a capacidade de
improvisação e adaptação vertiginosa às novas conquistas da técnica, têm-se
algumas de suas virtualidades básicas. (2006, p.78)

Em 1964 a Disney lançou um filme musical com uma importante atriz do gênero:
Julie Andrews. O filme Mary Poppins, de Robert Stevenson, mistura animação com
filmagens das personagens. Esse cenário cria um ambiente de fantasia, típico das obras
da Disney. Esta obra, dentro do gênero musical, inova em sua forma, ao utilizar, por meio
da edição das imagens, os cenários de pinturas (com animações) juntamente com as
filmagens das personagens.
52

Figura 11 Cena de Mary Poppins em que se misturam animações com filmagens dos atores

Há grandes sequências instrumentais orquestradas, na maioria das vezes com


dança. A obra cinematográfica intercala falas com falas cantadas, em sua maioria
lideradas pela personagem de Julie Andrews.
A Noviça Rebelde (The Sound of music), de 1965, é um dos musicais mais
conhecidos. A canção se inicia antes mesmo do título aparecer, já demonstrando o valor
que será dado à parte musical ao longo do filme. É um filme de longa duração e repleto
de canções. Há um intervalo, um entreato, que remete ao teatro, às etapas de um
espetáculo. As performances permanecem em sua maioria sem coreografias. Tendo a
interpretação de Julie Andrews como uma freira que não se encaixa nos padrões do
convento e vai passar uma temporada cuidando das crianças de um viúvo, as
performances no interior do filme são em grande parte centradas na interação entre a
noviça e as crianças. A famosa canção metalinguística “Do-re-mi” se desenvolve a partir
do aprendizado das notas musicais, que são sete, assim como o número de crianças.
53

Figura 12 Cena com as crianças na escada

As canções são inseridas na trama de uma forma coerente, em que se criam


coreografias, letras, música e interpretações que se casam durante o filme. No caso de
“do-re-mi”, as notas que correspondem ao número de crianças também se relacionam com
a coreografia durante a performance, especialmente quando as personagens se utilizam
de uma escada para cantar as notas musicais. As notas mais agudas permanecem mais
para o alto da escada enquanto as mais graves se colocam mais para baixo. Algumas
canções no filme também aparentam mais um monólogo, como falas cantadas, sem
coreografia.
Passada a era de ouro dos filmes musicais, os anos 50 e 60, os anos 70 demonstram
uma redução na produção, mas ainda mantendo obras de qualidade do gênero. Observa-
se que:
No campo do cinema musical, os anos 1970 significaram a perda de força do
gênero, com a redução na produção destes filmes. Ainda assim, neste período,
ele precisou gerir todas as tendências para garantir sua importância e sua
audiência. E se fez presente também refletindo a diversidade de interesses e de
questionamentos herdados, como pode ser comprovado por alguns de seus
filmes com temáticas tão distintas”. (CUNHA, 2012, p.33)

Um nome de direção importante na história do filme musical, conforme pode-se


observar na lista de filmes no início do capítulo, é Bob Fosse. O filme Cabaret, dirigido
por ele em 1972, é baseado na peça musical homônima. Este filme concentra as
performances musicais no palco. As canções ocorrem sempre no palco do cabaret, com
muita dança. O canto e as coreografias aparecem no palco do cabaret como parte cantada
da história que se passa na trama. Este palco se torna o ambiente em que todas as canções
54

são regidas pelo apresentador, se relacionando com os acontecimentos do filme. No geral


é um filme elaborado, porém não possui falas cantadas nas cenas de forma espontânea.
O filme de 1975, The rocky horror picture show, é um exemplar bem peculiar do
gênero. Esta obra carrega traços fortes de humor e sátira, ao reinventar traços típicos de
filmes de terror e ficção no interior de uma atmosfera que foge da oficialidade. Em The
Rocky horror Picture show a personagem do cientista, detentora do conhecimento, genial,
criador de inovações, é interpretada por um travesti, que canta, dança e se porta de formas
que contradizem o que seria um cientista “padrão”. E em sua genialidade como criador,
a criatura construída por ele é um homem de físico musculoso, pele bronzeada e cabelos
loiros, ou seja, seu Frankenstein é na verdade a materialização de um desejo sexual.

Figura 13 Cena inicial do filme e cena com performance da personagem cientista/travesti

O início do filme já traz uma canção. Uma boca gigante, em um fundo preto, canta
uma letra em que são citadas as personagens do filme que está para se iniciar. E ao longo
da obra cinematográfica as canções surgem fora de palcos, são iniciadas pelas
personagens como se fossem falas, que são, de fato, falas cantadas. Há também
coreografia ao longo do filme, e as interpretações das canções no interior do castelo (em
que a maior parte do filme se desenrola) tomam rumos mais fantásticos e aparentemente
fora da realidade. A narrativa em si é uma história que busca fugir ao oficial, portanto, as
canções, suas coreografias e letras não seguem um modelo clássico do gênero musical.
Algumas questões levantadas por Stam podem contribuir para refletir sobre esta obra
musical:
O filme assume uma atitude distante, ou uma espécie de intimidade?
Pressupõe um interlocutor de determinado sexo ou classe, e qual é sua atitude
em relação a esse interlocutor imaginado? Quais são os pressupostos do filme
em relação a nosso conhecimento, ou ideologia? Em termos retóricos, ele
seduz, admoesta, convence, encanta, colabora, implora ou intimida? [...] Qual
a relação entre os sujeitos falantes dos filmes, em termos de posição discursiva,
grau de intimidade, relação com outros personagens? Qual a sua relação
55

implícita com o autor do texto, ou com o espectador, nos mesmos termos? E


como se transmitem todas essas relações através da entonação? (1992, p.63)

The Rocky Horror Picture Show se insere bem na discussão gerada a partir dos
questionamentos de Stam, pois é um exemplar do gênero filme musical que apresenta um
conteúdo ou tema que se difere do recorrente na construção do gênero ao longo dos anos.
A forma, a construção deste musical em questão, também é diferente, o que se une a um
estilo único. O locutor ou, no caso da obra cinematográfica, o espectador imaginado, se
encontra em um padrão da oficialidade, que compreende que certos papéis ou lugares na
sociedade são tomados por certos tipos de pessoas. Os valores colocados no filme são,
por sua vez, contrários aos do espectador esperado, levando ao choque com a construção
vigente ou “oficial” destes papéis (como o cientista, por exemplo). O travesti, que seria
na sociedade um lugar de exclusão, possui, na trama do musical, um lugar de destaque.
Este lugar de destaque pode ser estabelecido também pela entoação da personagem, que
ao interpretar as canções ao longo do filme coloca a voz de maneira firme e sedutora ao
mesmo tempo. Na performance da canção Sweet Transvestite, por exemplo, a personagem
do travesti alcança notas mais agudas e graves também, desenho sonoro e pertencente à
melodia da canção que marcam e confirmam, por sua vez, a posição de transexual.
Um musical expressivo dos anos 70 foi Hair. Com direção de Milos Forman, o
filme de 1979 é baseado na peça musical. Logo no seu início, a canção já está presente,
assim como o trabalho com a coreografia. É um filme repleto de canções, de falas
cantadas, as cenas sem canção são poucas. As letras das canções retratam polêmicas da
época, como o uso de drogas, a libertação sexual e a luta contra o preconceito racial. Todo
o universo da contracultura está presente ao longo do filme, assim como as
movimentações estudantis pela paz no Vietnã, uma vez que o filme se passa nos Estados
Unidos. O universo desta obra se relaciona muito com o filme musical de 2007, Across
the Universe, que também discute os temas correntes dos anos 60 e 70, e em ambos os
filmes há uma personagem do sexo masculino que é obrigada a servir o exército norte
americano.
56

Figura 14 Cenas, respectivamente, de Hair e de Across the Universe, em que a temática da guerra aparece.

Também dos anos 70, Jesus Cristo Superstar é um filme baseado na peça musical
da mesma época. O filme é de 1973 e foi dirigido por Norman Jewison. Com composições
(originais da peça musical) de Andrew Lloyd Webber, o filme é praticamente todo
cantado. Não há uma fala que não se torne logo em uma canção, ou fala cantada. Desde
a primeira cena do filme as falas das personagens são cantadas. Há coreografia também,
mas prevalece o canto. Mesmo quando a personagem parece apenas falar, sem estar
necessariamente cantando, há música acompanhando e logo se percebe que não é fala
somente, é canto.
Nos anos 70 surgem alguns filmes também com grande valor para a dança. A
dança, mais que coreografia, compõe o musical e nele (re)significa o enunciado (o filme)
como um todo. O ato de dançar (e se aqui considerando o ato como discutido por Bakhtin,
ato responsivo e responsável, que se difere da ação, que é mecânica) pode estabelecer
um posicionamento de uma personagem, por exemplo, como nos filmes Embalos de
57

Sábado a noite, ou Footlose, (que não possuem a canção, como comentado anteriormente,
mas são considerados musicais por possuírem a dança). Nestes filmes as personagens
assumem uma atitude de protesto por meio da dança:
A dança tornou-se, então, a fronteira da contravenção dos costumes e da
situação contra a qual lutavam – tanto em relação ao aspecto pessoal, como ao
social. Enquanto dançavam, criavam o embevecimento ante o estético e o
projetivo. Logo, o que mudou foi sua relação com a realidade. [...] Afinal,
como ser bem sucedido, como conquistar, como ser do jeito que a imagem era
– e é – projetada através da mídia de massa e da propaganda? Ou melhor, como
bradar a injustiça e a dificuldade frente a tais objetivos? Como gerar este
sentido? A resposta continuava a ser dada através da ação de seus
protagonistas: cantando e dançando. (CUNHA, 2012, p.34)

O filme Fama (1980), de Alan Parker, possui canções essencialmente nas


situações de performances, e, por se tratar de uma história que conta a trajetória de jovens
estudantes de uma escola de canto/dança, as interpretações estão em sua maioria
vinculadas a uma situação de aula ou apresentação. São poucos momentos em que a
canção se torna parte da fala das personagens, e a primeira canção fora de performances
de audição ou palco só se dá aos 30 minutos de filme, em uma cena no refeitório da escola.
Durante o filme quase não se canta e este exemplar de musical não seria, conforme o
objetivo da pesquisa, uma obra que se aproxima de Os Miseráveis.
Uma das canções mais marcantes, Out here on my own, tem destaque no filme,
mas em geral as construções das cenas com canções em Fama parecem descoladas da
trama. Em um certo momento do filme há uma referência ao musical The Rocky Horror
Picture Show, uma relação interessante que traz uma obra musical para o interior de um
filme já (considerado pela indústria) musical.
A Chorus Line, em busca da fama (1985) de Richard Attenborough, baseado na
peça musical homônima, lembra o filme Fama no sentido de que fala sobre a formação
de artistas, passando por audições, seleções, etc. Porém Chorus Line é muito mais musical
do que Fama. O foco das personagens, nas audições, é a dança. Todos são essencialmente
dançarinos, e o filme faz referência a um famoso filme de dança dos anos 40, Os
Sapatinhos Vermelhos. A construção das cenas de dança em Chorus Line deixam
transparecer ou denunciar o esforço físico da dança, o suor. Além de fazer referência a
um filme de temática sobre dança nesta obra, as personagens também citam musicais
como 42nd street, dos anos 30. A Chorus Line é um tipo de musical conhecido como
“backstage musicals”, em que “Whatever technique, the effect is the same: to constantly
remind the spectator that she/he is seeing from the point of view of the theatrical audience
58

while at the same time moving in to address the performance directly to the spectator.”
8
(FEUER, 1993, p.28)

Figura 15 Cena com espelhos em Chorus Line

O filme todo se passa no tempo de apenas um dia da história, em que ocorriam as


audições para uma linha de coro de uma peça musical. O cenário é, portanto,
“delimitado”, mas ao mesmo tempo infinito, pois trabalha intensamente com o jogo de
espelhos. O filme é repleto de canções, mas há também falas que não são cantadas. E
acima de tudo, muita dança.
Nos anos 90 as produções de filmes musicais não são tão numerosas, porém
surgem animações marcantes que poderiam ser chamadas de filmes musicais de
animação. Animações como A Bela e a fera (1991), por exemplo, O Rei Leão (1994) e
Aladim ganharam posteriormente versões musicais para teatro, na Broadway. Conforme
comenta Cunha, “O impacto gerado pelos filmes musicais de animação [...] mostrava-se
tão forte ou maior que o dos filmes musicais convencionais de então.” (2012, p.34-5)
A obra cinematográfica Mudança de Hábito, de 1992, inspirou a peça musical da
Broadway de 2011. O filme dos anos 90, porém, apesar de conter muitos momentos com
músicas e canções interpretadas pelas personagens, não se aproxima das características
musicais de fala cantada, e não se relaciona com Os Miseráveis, pois esta obra contém

8
“Não importa qual seja a técnica, o efeito é o mesmo: constantemente lembrar o espectador que ele/ela
está vendo do ponto de vista do público do teatro, enquanto está, ao mesmo tempo, em movimento para
dirigir a performance diretamente ao espectador.” (tradução nossa)
59

performances apenas durante as apresentações do coral das freiras ou, no início, em que
a personagem principal aparece como cantora em Vegas.
Em 1996 o filme Evita, dirigido por Alan Parker é mais um exemplar de obras
baseadas em peças musicais, e que possuem composições de Andrew Loyld Webber.
Como as outras obras musicais do mesmo compositor, “Evita” se caracteriza por ser
extremamente cantado, tendo poucas falas sem o canto. Tanto coro quanto solo, as
personagens interpretam canções quase o tempo todo. A personagem de Antonio
Bandeiras, por exemplo, permanece como um narrador que conta/canta a história. Uma
característica marcante de musicais é a repetição de uma mesma melodia, ao longo do
filme, porém, com letras diferentes, como se fosse um “tema” musical recorrente. Esta
obra se relaciona de certa forma com Os Miseráveis pela demonstração de mobilização
popular, há cenas de protestos, em que as canções e tornam a voz do povo.
Nos anos 2000 alguns filmes musicais produzidos se destacam, como Moulin
Rouge (2001), Chicago (2002), Rent (2005) Dream girls (2007), Across the Universe
(2007) e Mamma mia (2008). Nesta época surgem revivals de musicais da Broadway,
filmes premiados como Chicago (2002), Os Produtores (2005), Rent (2005),
Dreamgirls – Em busca de um sonho (2007) e Haispray (2007) [...] Produções
impecáveis que, sob forte impacto de marketing, guardam o carisma da época
de ouro dos musicais. (CUNHA, 2012, p.35)

Algumas destas obras se destacam pelo trabalho com a canção de uma forma
diferenciada, que não se encontrava nos filmes das décadas anteriores. Em Moulin Rouge,
por exemplo, a maior parte das canções interpretadas pelas personagens são canções que
já existem, ou seja, compostas antes da existência do filme. Já Across the Universe e
Mamma Mia, além das canções utilizadas não terem sido compostas para o filme (como
ocorria na maioria dos musicais), estas composições pertencem a um
intérprete/compositor específico. Mesmo com particularidades inovadoras as referências
aos musicais clássicos permanecem, como em Moulin Rouge, em que há uma cena de
dança que faz referência à coreografia de Gene Kelly em Cantando na Chuva.
60

Figura 16 Cena de Moulin Rouge em que se faz referência à Gene Kelly

No filme de 2007, Across the Universe, todas as canções utilizadas na obra são
composições da banda The Beatles, enquanto a construção de Mamma Mia se dá apenas
com canções do grupo Abba. Sobre os filmes com obras de apenas um compositor,
comenta Cunha:
Outra vertente observada no período introduz um tipo de musical que atinge
tanto os admiradores do gênero como aqueles de um determinado tipo de
música. Baseados em obras anteriormente apresentadas em teatro e buscando
um espectador mais maduro, surgem no horizonte do gênero filmes musicais
narrativamente construídos sobre a obra de artistas reconhecidos, costurando
os versos de canções como diálogos e de fato se constituindo em verdadeiros
tributos, começando por Moulin Rouge (2001) – este que homenageia o gênero
musical com sua instigante produção visual e inúmeras referências
cinematográficas -, passando por Across the Universe (2007), baseado nos
Beatles, Mamma Mia! – o filme (2008), baseado nas músicas do conjunto
sueco ABBA, até Nine (2009) que reverencia o cinema italiano e ao diretor
Federico Fellini.(2012, p.36)

Observa-se então que obras como Across the Universe e Mamma Mia inovam no
conteúdo, por construírem a narrativa apenas com canções de um único compositor. Em
Across the Universe uma das marcas principais do musical, a dança, aparece muito pouco,
porém, em Mamma Mia muitas cenas são construídas com coreografias.
61

Figura 17 Cena de Mamma Mia! em que há dança

Across the Universe possui também o uso de recursos diferenciados na forma, na


construção das cenas, como o efeito de Sabatier (ou a solarização) e a sobreposição de
imagens.

Figura 18 Cena de Across the Universe com o recurso da solarização


62

Figura 19 Cena de Across the Universe com sobreposição

Inicialmente uma peça musical, o filme Sweeney Todd é do ano de 2007 e


demonstra uma questão importante para análise do filme musical como gênero, a marca
autoral. O estilo no gênero, para o Círculo, pode ser do próprio gênero (no caso, filme
musical) e também pode ser autoral, ou seja, as marcas específicas de um sujeito autor
podem ser reconhecidas e analisadas como o estilo daquele autor, quando um devido
enunciado apresenta uma assinatura, que para o cinema será o diretor. O diretor de
Sweeney Todd, Tim Burtom, transparece em suas obras por meio de algumas
particularidades. O estilo deste diretor se mostra dentro do seu gênero de produção, o
filme, e este estilo permanece na produção do filme musical assinado por ele. A temática
de Sweeney Todd fala sobre um barbeiro que possui um lado assassino, um conteúdo que
revela o possível lado sombrio de uma personagem/trama, e esta é uma marca que aparece
em muitas obras do diretor. Sendo o filme em questão um musical, gênero que, como foi
visto até aqui, tratou em sua maioria de temas mais utópicos, a obra de Burton carrega
unão sombrios. Neste quesito Sweeney Todd rompe com o aparente padrão do gênero,
pois sua temática não é comum na produção de filmes musicais como um todo.
63

Figura 20 Cena de Sweeney Todd em que o barbeiro canta

Figura 21 Cena de uma morte

Nas cenas acima os tons escuros e acinzentados dominam a coloração do cenário


e figurinos como um todo. Estas escolhas permanecem ao longo de toda a obra
cinematográfica, demonstrando a forma com que o diretor trabalhou o filme. As cores
escuras e os tons de cinza criam destaque para as cenas em que o vermelho do sangue
aparece, estes recursos se encontram no âmbito da forma e contribuem para a significação
do filme como um todo. Estas observações demonstram as marcas de estilo autoral do
diretor Tim Burton, que se encontram tanto no conteúdo/tema do filme musical quanto
na forma com que o filme foi construído.
64

Desde que surgiu, até hoje, o musical mantém algumas características, e em


consonância com as ideias escritas por Bakhtin, os gêneros discursivos possuem tanto
características que se repetem quanto as que são novas, que renovam o gênero. Ao se
analisar o filme musical como gênero a partir desta perspectiva, pode-se verificar que
algumas características são de fato recorrentes, mas não se tornam em nenhuma instância
uma regra, uma delimitação do gênero. Entre os traços que se repetem na maioria dos
filmes musicais até hoje estão o canto (que aqui é pensado como a canção) e a dança.
O musical teve forte influência do sapateado, desde seus primórdios. Fred Astaire,
já nos anos 30 (considerando que os primeiros filmes musicais surgiram no final da
década de 20, a década de 30 seria também o início da produção de filmes deste gênero),
atuava em filmes com papeis que sempre apareciam com a dança de sapateado. Logo
surgiu também Gene Kelly, Ginger Rogers, entre outros, que permaneceram reforçando
o sapateado nos filmes musicais. Pode-se dizer, desta forma, que inicialmente uma das
principais características destas obras cinematográficas era a dança de sapateado.
Também havia o canto, a canção. Mas especialmente nas obras em que havia o sapateado
de Astaire e Kelly a dança prevalecia sobre o canto.
Uma das noções teóricas basilar à teoria do Círculo e também de grande
importância para esta pesquisa é o conceito de diálogo. Ao serem discutidas diversas
obras nesta sessão do trabalho a relação dialógica entre elas é sempre comentada, ou seja,
todos estes enunciados estão relacionados entre si. Conforme a teoria do Círculo, todo
enunciado se liga aos que foram proferidos antes dele e aos que a partir dele se formarão.
E uma vez que o filme musical é aqui considerado gênero discursivo, este também é
pensado em sua forma, estilo e conteúdo. Bakhtin discute que:

O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos)


concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da
atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as
finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e peo
estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos
e gramaticais da língua, mas, acima de tudo, por sua construção composicional.
(2011, p. 261)

Quando observado a partir de um panorama histórico, o filme musical apresenta


elementos de forma, estilo e conteúdo que se repetem e outros que se renovam. Na forma
pode-se pensar a estrutura do enunciado, por exemplo, e no cinema consideram-se o
enquadramento, as tomadas, a fotografia, a iluminação, a edição, etc. Já no estilo e
65

conteúdo refletem, respectivamente, os traços únicos, autorais, e o conteúdo ou tema. Em


muitas obras cinematográficas musicais o tema envolve a montagem de uma peça
musical, ou de um filme musical, ou até a aprendizagem do canto e da dança. Nem todos
os musicais apresentam este conteúdo, mas é um tema recorrente nas obras deste gênero,
tais como Singing in the Rain, Chorus Line, Fama, etc. Sobre o estilo, Bakhtin afirma
que:

é indissociável de determinadas unidades temáticas e – o que é de especial


importância – de determinadas unidades composicionais: de determinados
tipos de construção do conjunto, de tipos do seu acabamento, de tipos de
relação do falante com outros participantes da comunicação discursiva – com
os ouvintes, os leitores, os parceiros, o discurso do outro, etc. O estilo integra
a unidade de gênero do enunciado como seu elemento. (2011, p.266)

Estas características dos gêneros discursivos são férteis para discussões acerca da
construção de enunciados específicos, como aqui é pensado o filme musical, porém, ao
se considerarem as ideias do Círculo, esta pesquisa não busca “desmembrar” forma, estilo
e conteúdo, mas pensá-los individual e coletivamente ao mesmo tempo, no todo do
enunciado, conforme discute Medviédev: “Assim, na arte, o significado é absolutamente
inseparável de todos os detalhes do corpo material que a encarna.” (2012, p. 54). A
construção dos enunciados-filmes e, em especial, de Os Miseráveis, são deste modo uma
discussão importante para esta pesquisa. Ainda que focada em um filme-corpus
específico, todas as transformações do filme musical discutidas nesta sessão contribuem
para o entendimento da construção do gênero.

1.3 A relação com o filme-corpus Os Miseráveis

One dominant impulse in musical films appears to be congenital: the desire to


capture on celluloid the quality of live entertainment. Yet also from infancy,
the dream of immediacy came up against the reality of technological truth: film
is not a ‘live’ medium. 9(FEUER, 1993, p.2)

Conforme Feuer o filme musical norte-americano não era, inicialmente, o lugar


da performance ao vivo, do espetáculo que se aproximasse do teatro. No entanto, Os
Miseráveis rompe com estes padrões e grava suas canções ao vivo, como será discutido
a seguir nesta seção.

9
“Um impulso dominante nos filmes musicais parece ser congênito: o desejo de capturar em celuloide a
qualidade do entretenimento ao vivo. Ainda também da infância, o sonho do imediato veio contra a
realidade da verdade sobre a tecnologia: o filme não é uma mídia ao vivo.” (tradução nossa)
66

O panorama histórico sobre a trajetória do filme musical no cinema se faz


indispensável para se pensar no exemplar escolhido como corpus: Os Miseráveis (2012),
de Tom Hooper.
Os filmes já comentados possuem características que se aproximam e se
distanciam de Os Miseráveis. A começar, por exemplo, pelo fato de que os filmes
escolhidos para se pensar a partir de Os Miseráveis são aqueles em que a canção aparece
como fala das personagens, pois é assim que a canção aparece ao longo de todo o filme.
Em Os Miseráveis praticamente não se encontram falas isoladas, sem músicas. O filme é
quase inteiramente cantado, repleto de falas cantadas.
Assim como outros filmes musicais, Os Miseráveis foi inspirado em uma peça
musical homônima, sendo a criação original em francês de 1980 e a estreia na Broadway
somente em 1987. Entre alguns outros filmes inspirados em peças estão Cabaret (1972),
de Fosse; Hair (1979), de Milos Forman; A Chorus Line (1985), de Richard
Attenborough; Evita (1996), de Alan Parker, entre outros.
Por ter como referência uma obra originalmente teatral, estes filmes podem trazer
características de peças para o cinema. Em Os Miseráveis há uma particularidade do
teatro, inovadora para o cinema musical: o cantar ao vivo. Durante a produção dos filmes
musicais o procedimento usual sempre foi gravar em estúdio com os atores todas as
canções dos filmes. E posteriormente, no momento das gravações, os atores interpretavam
a canção tendo a faixa gravada em estúdio como áudio. O que chegava aos nossos ouvidos
ao contemplar a obra cinematográfica eram canções gravadas em estúdio, e não no
momento da cena. Já no filme-corpus desta pesquisa as canções foram gravadas no
momento da cena, tendo apenas uma faixa de piano base para que os atores
interprestassem as canções. A entoação, desta forma, se modifica, pois “situada na
fronteira entre o verbal e o não-verbal, a entonação constitui um canal e um conformador
sutil de relações sociais. É por intermédio da entoação que o sujeito falante estabelece
contato com seu ouvinte inteiramente social.” (STAM, 1992, p.63). Ao se pensar sobre a
performance cantada ao vivo as ideias do Círculo sobre entonação são essenciais para se
refletir sobre esta particularidade de Os Miseráveis. Conforme Medviédev:
A entonação expressiva que dá cor a cada palavra do enunciado reflete sua
singularidade histórica, diferente da entonação sintática que é mais estável. O
caráter expressivo é determinado não pelo esquema lógico do sentido, mas por
toda sua plenitude e integridade individual, e por toda sua situação concreta e
histórica. Da mesma forma, a entonação expressiva dá cor ao sentido e ao som,
aproximando-os de forma íntima na união peculiar do enunciado. (2012, p.185)
67

Este método de produção do gravar as canções ao vivo possibilitou, portanto, mais


liberdade e expressividade para os atores em cena. Desta forma o filme musical em
questão se aproximou do teatro musical, trazendo particularidades de peça teatral para o
cinema. Feuer também reforça que a performance ao vivo torna a narrativa mais próxima
do espectador:
The Hollywood musical worships live entertainment because live forms seem
to speak more directly to the spectator. To make a verbal analogy, live
entertainment seems to be a ‘first-person’ form, a performance which assumes
an active and present spectator. 10(FEUER, 1993, p.23)

Uma marca comum ao gênero filme musical é a presença de canções que foram
compostas para o musical em si, e não canções preexistentes que foram inseridas no filme;
assim também em Os Miseráveis, as canções foram todas compostas especificamente para
a obra.
A temática do filme em questão não se insere nos conteúdos mais frequentes em
filmes musicais. Grande parte da produção dentro deste gênero trata de questões mais
leves e utópicas, em que as personagens dançam e cantam por meio de performances
virtuosas e chamativas. Já em Os Miseráveis o tema coloca as personagens em situações
de decadência e sofrimento. Conteúdo que em nada se parece com o dos musicais
canônicos repletos de sapateado e brilho nas roupas. Este caráter não deve ser considerado
precisamente inovador, uma vez que outros filmes foram produzidos com temáticas
diferenciadas também antes dele (entre os exemplos anteriormente citados estão The
Rocky Horror Picture Show, Sweeney Todd, Across the Universe, etc, que possuem
conteúdos incomuns historicamente dentro do gênero filme musical).
Alguns críticos de cinema já discutiram os possíveis tipos de filmes musicais,
entre eles, Thomas Schatz. Não é o intuito deste trabalho classificar os filmes, mas ter
conhecimento dos estudos já feitos sobre eles e, a partir destes pontos de vista, pensar no
filme musical em suas peculiaridades, estáveis e instáveis, ao longo dos anos.
Inicialmente, para Schatz (1981), os filmes musicais eram construídos de duas
formas distintas. A primeira era quando as várias complicações do enredo se resolviam
em um show, o filme se tornava acima de tudo um grande espetáculo de dança e canto,
por exemplo. A segunda era quando em diversos pontos da narrativa as personagens
expressavam seus conflitos e emoções por meio da música e do movimento.

10
O musical de Hollywood venera o entretenimento ao vivo porque as formas ao vivo parecem falar mais
diretamente ao espectador. Para fazer uma analogia, o entretenimento ao vivo se parece com uma forma de
primeira pessoa, uma performance que assume um espectador ativo e presente. (tradução nossa)
68

Em os Miseráveis não há nenhum momento em que as personagens executem


alguma coreografia ou dança, como é encontrado na maioria dos filmes musicais. As
movimentações das personagens enquanto cantam, no entanto, são ritmadas e fazem parte
da interpretação da canção de cada cena.
A análise do filme em questão será aprofundada no capítulo seis, mas a partir de
alguns apontamentos sobre a estrutura de Os Miseráveis como exemplar do gênero filme
musical pode-se perceber que a composição da obra cinematográfica como um todo
produz sentidos que se relacionam com a arquitetônica do gênero musical, com a presença
de outro gênero, a canção, como parte essencial da construção do filme.
69

2 A PEÇA MUSICAL

Conforme comentado na seção anterior, grande parte dos filmes musicais foram
construídos a partir de peças musicais. Para a compreensão do filme musical como gênero
discursivo cabe aqui uma discussão sobre o teatro musical, fonte de inspiração para as
produções cinematográficas.

2.1 A Broadway

A Broadway surge11 no início de 1900 e suas peças inicialmente não eram levadas
a sério pelo público em geral. O distrito teatral atraia pessoas de classe média em busca
de música e os melhores assentos da casa custavam entre 1,50 e 2,0 dólares apenas. O
público geralmente se envolvia com a peça, conversavam com os atores, batiam palmas
e interagiam.
Após a entrada dos EUA na primeira guerra mundial as peças da Broadway eram
usadas mais como um escape da dura realidade. Já nos anos de 1920, após o final da
guerra, a Broadway se ilumina, os teatros crescem e novas ideias surgem. A partir desta
década este centro de peças começa a se tornar uma influência para o teatro do mundo
todo.

Figura 22 Foto da Broadway em 192012

11
As discussões aqui encontradas possuem como base os dados disponíveis em
http://www.spotlightonbroadway.com, um projeto desenvolvido pelo escritório municipal de mídia e
entretenimento da cidade de Nova Iorque.
12
Imagem retirada do site: http://www.spotlightonbroadway.com/broadway-history Acesso em 28/09/2015
70

Com a queda da bolsa em 1929 e o período da Grande Depressão a Broadway


também afundou durante os anos de 1930, fazendo com que o número de produções
diminuísse bastante. Mesmo assim foi um período criativo para o teatro, com obras que
se voltaram para o comunismo, com dramas de protesto social que falavam sobre a classe
trabalhadora em busca de levar os ideais comunistas ao grande público em teatros
offbroadway.
Durante os anos 40 a Broadway começa a perder sua força ao competir com a
televisão e com o cinema, levando muitos teatros a se fecharem. O distrito começou a se
parecer cada vez menos com um território de teatros e alguns dos arredores se tornaram
favelas.
De 1950 até 1970 a Broadway e todo o comércio do teatro musical continuaram o
declínio iniciado nos anos 30. O número de produções permaneceu pequeno e muitas das
produções da época eram revivals. Ainda assim, alguns musicais importantes surgiram
nessa época, como West Side Story, My Fair Lady, Wonderful Town, The Sound of Music,
Man of la Mancha e Hair. A dificuldade de se investir em peças musicais naquela época
era tão grande que apenas as pessoas mais empolgadas acabavam se envolvendo, o que
contribuiu para a produção de musicais extravagantes como estes durante este período.
Os musicais da Broadway ainda hoje se encontram em destaque e suas adaptações
são transportadas para diversos países, mantendo a mesma estrutura e superprodução,
modificando apenas a língua da peça.
A iluminação da Times Square se modificou e ganhou cores, e as tecnologias para
o aumento deste aspecto podem ser observadas nas fotos a seguir:
71

Figura 23 Times Square em 192013

Figura 24 Times Square em 200914

13
Imagem retirada do site: http://www.spotlightonbroadway.com/broadway-history Acesso em 28/09/2015

14
Imagem retirada do site: http://www.spotlightonbroadway.com/broadway-history Acesso em 28/09/2015
72

As performances grandiosas, carregadas em brilho dos filmes musicais das


décadas de 50 e 60 se relacionam com as luzes e a aparência glamorosa do próprio distrito
da Broadway. Sendo o teatro musical a principal referência para as produções
cinematográficas deste gênero, percebe-se a vasta referência à aparência da Broadway em
si no interior das construções dos filmes musicais.

2.2 Relação vida e arte: teatro musical e as peças em Nova Iorque 15

Durante os meses de maio a agosto de 2017 a aluna efetuou um estágio de


doutorado sanduíche, com bolsa CAPES/PDSE, em Nova Iorque, sob a orientação do
Professor Peter Hitchcock. Neste período a doutoranda teve como objetivo geral: refletir
acerca da constituição da arquitetônica do filme musical como gênero discursivo,
constituído de maneira intergenérica, pensando-o em sua relação com o teatro musical e
em especial a Broadway. E como objetivos específicos: coletar dados sobre teatro musical
e sobre a Broadway considerando-os em relação com o filme musical norte americano;
aprofundar o estudo teórico do Círculo de Bakhtin, em especial, as noções de cultura e
estética; compreender, por meio da análise dialógica discursiva, de que maneira os
diversos gêneros se constituem no filme musical escolhido, reconhecido como
intergenérico, e também analisar a questão da entoação na encenação como elemento
inovador da produção cinematográfica Les Misérables, em diálogo com o teatro musical
e a performance cancioneira.
Assistir aos musicais em Nova Iorque permitiu analisar como são constituídas as
peças hoje, em seu principal contexto de produção (a própria Broadway). Passar pela
vivência do estar em Nova Iorque destacou as questões mercadológicas do funcionamento
da Broadway. Os ingressos para assistir aos musicais são caros e os meios mais em conta
para se consegui-los são: rush tickets, lotteries, standing room, entre outros16. Todos

15
Nesta sessão a doutoranda se utilizará da sua experiência/vivência na Broadway durante seu estágio em
Nova Iorque sob a orientação do Professor Peter Hitchcock. Afim de analisar a constituição do Teatro
Musical, a partir daqui a aluna por vezes irá narrar sua trajetória como espectadora das peças, detalhamento
que contribui para a discussão sobre a construção do musical como gênero da perspectiva bakhtiniana, em
seu contexto de produção, circulação e recepção.

16
Os rush tickets são ingressos que se vendem assim que a bilheteria do teatro é aberta. O público que
deseja buscar estes ingressos chega horas antes da abertura da bilheteria (se estas abrem, por exemplo, às
10h da manhã, há pessoas que chegam na fila às 6h). As lotteries são loterias que ocorrem tanto de forma
física quanto digital. A loteria presencial é um sorteio em papel, em que os participantes inscrevem seu
nome e aguardam o horário do sorteio no mesmo dia. Já a loteria digital é feita exclusivamente online. Os
participantes precisam acessar a página das peças que desejam concorrer e se inscrever para os sorteios,
73

muito concorridos e de difícil aquisição. Nenhum destes meios leva ao ganho de um


ingresso, mas, sim, à a chance de se pagar um valor menor do que o tabelado ou
considerado regular para cada peça. Os métodos e valores disponíveis para aquisição dos
ingressos variam de musical para musical. Estas características das formas de se adquirir
um ingresso para a Broadway confirmam a faceta mercadológica dos musicais como
“negócio” na cidade de Nova Iorque.
A doutoranda se inscreveu em diversas loterias online, diariamente, e em algumas
conseguiu vencer a “chance de comprar” ingressos mais baratos, como para a peça
Hamilton: An American Musical. A loteria digital para esta peça (que foi/ainda é um
fenômeno na Broadway, detalhe que será discutido a seguir nesta sessão) é tão concorrida
que existe até um gráfico que “brinca” com a dificuldade de se conseguir ganhar:

que ocorrem por vezes no dia anterior à peça, por vezes no mesmo dia pela manhã. Caso receba o e-mail
dizendo que foi sorteado, o espectador precisa pagar por seus ingressos no período máximo de uma hora
ou sua chance passará para outra pessoa. A concorrência é, por este motivo, muito grande, assim como a
procura. A categoria standing room define um tipo de ingresso vendido para aqueles que se sujeitarem a
assistir à peça inteira de pé. Um pequeno espaço do teatro (nem todos possuem esta modalidade) fica
separado para que os espectadores do standing room assitam ao musical por um valor inferior, porém estes
permanecem o tempo todo sem um lugar para se sentar. Todos estes meios de se conseguir ingressos mais
baratos ilustram como a indústria dos musicais da Broadway é forte em Nova Iorque.
74

Figura 25 Tabela que ilustra as chances de se ganhar a loteria de Hamilton17

Hamilton é um dos musicais mais populares da Broadway e continua sendo um


fenômeno até o presente momento. O gráfico acima afirma que “dez mil pessoas entram
para a loteria de Hamilton todos os dias. Um total de 21 ingressos são sorteados e ao

17
Imagem retirada do site: http://mashable.com/2016/05/26/odds-of-winning-a-hamilton-
ticket/#Nh4kesCYbgq9 Acesso em 20/07/2017
75

ganhar os vencedores têm a chance de escolher entre adquirir um ou dois ingressos de


uma vez” (tradução nossa).
Ao longo dos quatro meses, a doutoranda assistiu a sete peças musicais diferentes.
A vivência do funcionamento da Broadway trouxe grande contribuição para o estudo dos
musicais conforme pensados por esta pesquisa, em seu contexto de produção. As loterias
confirmaram a faceta mercadológica da Broadway, em que é preciso concorrer ao
ingresso mais em conta caso o espectador não tenha condições de pagar pelos preços
regulares. Peças com maior prestígio e público, como Hamilton, possuem ingressos com
valores que começam em 400 dólares, enquanto a loteria sorteia ingressos a 10.
As peças assistidas foram selecionadas por meio das oportunidades de loterias.
Cinco foram resultado de ingressos mais baratos por meio das loterias, um por meio de
ingressos vendidos exclusivamente por meio de universidade e um por meio dos rush
ticktes. Todas as peças assistidas possuíam filas enormes para entrar e um público que
lotava os teatros, mais uma confirmação do quão forte e expressivo o teatro musical é
como “negócio” em Nova Iorque.
Ao se observarem as sete peças analisadas podem-se notar alguns traços comuns,
como o uso de planos no palco. A maioria destas peças se utilizava de planos mais baixos
e planos mais no alto dentro do próprio palco. Estas estruturas por vezes eram fixas, com
escadas, por exemplo, e em outros casos eram móveis. Apesar de a maioria das peças
apresentar dança, em algumas esta característica era mais frequente e marcante na trama
do que em outras. Enquanto em algumas peças o canto era mais valorizado, em outras a
expressividade da dança era maior do que o canto.
Havia uma diferença grande também entre a quantidade de recursos e tecnologias
para o cenário/background nas peças. Algumas tinham um forte trabalho com projeção
(Anastasia, por ex, como será comentado a seguir), enquanto outras se utilizavam de
pouquíssimos recursos deste tipo, como Chicago.
Algumas peças se utilizam também de artifícios como fogo em cena. Em
Fantasma da Ópera há uma cena com fogo no palco que chega a ser tão forte e intenso
que se pode sentir o calor da cadeira do espectador. Estes recursos pirotécnicos
lembram/se assemelham a um “show” de fato, o que aproxima o musical da ideia de
76

“espetáculo”18. A constante interrupção para palmas também confirma esta questão, uma
vez que performances como esta eram abundantemente aplaudidas no meio do musical.
As peças como um todo passam a ideia da necessidade de entretenimento. Ao
observá-las, como espectador (e contemplador), a construção da narrativa (seus artifícios
tecnológicos, sua intensidade nos aspectos da dança e do canto) se faz de forma a manter
o público entretido cem por cento do tempo, como se não fosse possível “tirar os olhos
do palco”. Esta necessidade de entretenimento constante é uma característica do musical
que se diferencia do teatro para o cinema.
Quanto à performance das canções, a dinâmica da interpretação dos solos, por
exemplo, se mostra muito forte nas peças. Há um aumento gradativo na intensidade,
volume e projeção da voz durante os solos, que culmina num clímax da canção. A
trajetória das narrativas demonstrara sempre ter uma parte inesperada, que surpreende o
espectador, como uma morte, um acidente, algo terrivelmente dramático, enquanto os
filmes musicais nem sempre apresentam esta característica.
As sete peças assistidas durante os quatro meses em Nova Iorque serão também
analisadas uma por uma nos parágrafos a seguir. Abaixo se encontram os programas de
todas as peças digitalizados:

18
É importante ressaltar que a presente pesquisa considera as relações existentes entre os musicais e o Circo
e a Ópera, porém, como estas duas últimas não são o foco principal, não figuram aqui com discussão
aprofundada.
77

Figura 26 Programas dos quatro primeiros musicais assistidos


78

Figura 27 Programas dos quatro últimos musicais assistidos


79

As capas dos programas observadas em conjunto mostram também as questões


mercadológicas dos musicais ao se reparar que apenas uma é colorida. A capa colorida é
paga pela produção da peça, enquanto as em preto e branco não. Hamilton possui capa
colorida por ser a peça mais popular entre todas as assistidas. As primeiras capas também
mostram um detalhe na parte superior com as cores da bandeira LGBT, detalhe que se dá
pela época do ano em que se distribuíram estes programas. Durante o mês de junho
aconteceu em Nova Iorque a parada gay e a cidade se mobilizou de diversas formas,
inclusive nas capas das peças. Este posicionamento pode ser tomado tanto como um
“lugar” das produções da Broadway (que apoia as causas LGBT) quanto como um
instrumento para se chamar/incentivar um público (e um mercado) específico. Nota-se
também que uma das capas apresenta assinaturas dos atores e este momento será
comentado a seguir nos detalhamentos da experiência como espectador de cada peça.

Cats
Esta peça contém canções de Andrew Lloyd Webber e T. S. Elliot, sendo o
primeiro o mesmo compositor de musicais como Fantasma da Ópera, Jesus Cristo
Superstar e Evita.
O teatro se encontrava lotado e, ainda que o musical tenha sido assistido durante
a semana, no período da tarde havia fila para entrar do lado de fora. O corpo de
funcionários da peça (staff) era em geral impaciente e extremamente direto. Este aspecto
confirma a posição das peças como lugares comerciáveis, pois as pessoas que ali
trabalhavam demonstravam pouco cuidado com o público. O teatro (espaço físico)
também era pequeno e apertado, diferente de peças com orçamentos maiores (como
Hamilton), o local era tão pequeno que não possuía fosso da orquestra, ou seja, não era
possível ver os músicos, apenas ouvi-los.
Cats apresenta muita dança, inclusive há várias cenas sem fala, em que só há
coreografias. É um musical que coloca muita expressividade por meio da dança. O cenário
era fixo, não se modificava ou trocava a ambientação como ocorre em outros musicais.
Cats se passa com um cenário que mostra um beco dos gatos, e pode ser observado na
imagem a seguir:
80

Figura 28 Palco da peça musical Cats

Há muitas luzes no palco desta peça e o espectador se distrai com elas da mesma
forma que um gato se encantaria. A experiência do espectador é construída também por
meio destes detalhes que são coerentes com o conteúdo da peça (uma narrativa sobre a
vida de felinos).
Os recursos utilizados no palco também trabalham com fogo, mas não tanto
quanto em O Fantasma da Ópera. A peça apresenta em diversos momentos o jogo de luzes
claro/escuro (cenas em que todas as luzes se apagam e voltam a ligar rapidamente, e no
“flash” do momento claro das luzes acesas os personagens/gatos se encontravam sempre
num salto/no ar, por exemplo).
Todos demonstravam grande desenvoltura/habilidade física levada ao máximo
pelos atores/cantores. Essa intensidade das performances corporais dos atores se coloca
próxima da noção dos musicais da Broadway como “espetáculo” de fato. Como uma
produção que “deve” apresentar ao espectador uma vivência extrema. Esta questão
apareceu não somente neste primeiro musical e ainda será comentada nos próximos
parágrafos.
O cenário, apesar de fixo, possuía a característica comum à maioria das peças: o
trabalho com planos. Ainda que todo o musical se passe no beco dos gatos, diversas cenas
se utilizam de planos diferentes, ora mais altos, ora mais baixos; recurso que explora
melhor as possibilidades do palco. Enquanto na produção musical dentro do cinema pode-
se pensar nas cenas construídas a partir da “visão” da câmera, o teatro tem como
81

possibilidades os planos do palco, assim como os focos de luz, que se colocam em cada
personagem conforme este canta/interpreta parte de um solo.
Uma característica que apareceu somente em Cats foi a presença de uma cena que
mostrasse um pouco de dança sapateado. Esse tipo de dança, tão expressiva nos filmes
musicias, se mostrou, desta forma, pouco frequente nas peças assistidas durante o período
em Nova Iorque.
Como comentado anteriormente, os solos das peças demonstraram uma dinâmica
na escolha do “crescer” gradativo das canções. Assim também no solo de Memory
percebe-se que a atriz guarda a potência da voz para uma única nota/parte da canção. Esta
dinâmica se mostrou muito presente nas peças como um todo.

Phantom of the Opera


Este musical teve também o teatro lotado, como os outros, com fila para entrar do
lado de fora. Já o espaço físico do teatro era grande, diferente de Cats. Por se tratar de um
dos musicais que permaneceu em cartaz por mais tempo na Broadway o teatro é também
todo personalizado/inspirado no musical, repleto de detalhes e referências à peça na
decoração e arquitetura do local. O Fantasma da Ópera demonstra pequenos detalhes
também nos figurinos e nas tecnologias de cenário, que, como foi citado, levava recursos
de peso, como fogos e fumaça, por exemplo.
Enquanto em Cats a coreografia era grande parte da expressividade dos
personagens em cena, esta peça só apresentou dança em cenas com contextos de “dança”
de fato (como “dança de salão” em pares). O conteúdo do musical apresenta tema
metalinguístico – fala sobre Teatro Musical (ópera no caso) – e esta é uma característica
que se assemelha a muitos filmes musicais.
Este foi o único musical em que a pesquisadora buscou observar a relação dos
atores com o público: após a peça os atores se direcionam até uma porta de saída em que
o público os espera para pegar autógrafos. Os atores se mostram de forma solícita e alguns
já aparecem até com canetas nas mãos para assinar. A partir da observação desta prática
é possível notar que os atores de peças musicais da Broadway não se aproximam dos
atores do cinema, uma vez que o saírem da parte dos autógrafos todos os protagonistas
das peças se dirigiam à pé para o metrô/ para seus destinos sem nenhum tipo de
acampamento pessoal ou transporte particular.
82

Sunset Boulevard
A peça, que possui canções de Andrew Lloyd Weber, tinha o teatro lotado, como
os demais musicais, no entanto, trazia em seu elenco uma protagonista que era do
cinema (Glenn Close). A questão do estrelismo e das palmas que interrompem a peça (e
que a aproxima mais da ideia de “espetáculo”) era muito presente em Sunset Boulevard.
A orquestra deste musical permanecia no palco (e não num fosso, como em O
Fantasma da Ópera). As músicas possuíam um estilo próximo do Jazz, o instrumental
era extremamente preciso e virtuoso.

Hamilton: an american musical


De todas as sete peças assistidas, Hamilton é a única que possui um programa com
capa colorida, como pode-se observar nas digitalizações apresentadas anteriormente. A
empresa que distribui os programas musicais da Broadway fornece capas em preto e
branco gratuitamente para os teatros, enquanto as coloridas são pagas pela peça.
Hamilton, desta forma, se configura em mais um aspecto como uma peça bem sucedida
e cara, tanto por ser a única que apresenta uma capa da “playbill” 19 colorida quanto por
conter ingressos de valor altíssimo.
Até mesmo a dinâmica da loteria deste musical era muito diferente das outras,
como foi comentado anteriormente, era extremamente difícil de se ganhar o ingresso de
valor mais baixo (apenas dez). As regras da loteria para Hamilton eram diferentes, pois
só se podia pegar o ingresso na hora de entrar na peça, enquanto todas as outras davam a
opção de se buscar o ingresso com meia hora de antecedência. O espaço físico do teatro
era grande, e ainda que os valores dos ingressos fora da loteria começassem em torno de
400 dólares, o local se encontrava lotado.
Há nesta peça musical uma “aparente” contradição entre o estilo musical das
canções (hip hop/rap) e o contexto histórico da narrativa (século XVIII) e isso pode
considerado como uma das características únicas deste musical associadas com sua
popularidade.
Neste musical há muita dança e muita expressividade por meio das coreografias,
também ligadas aos movimentos de rap/hip hop. Os debates históricos que aparecem ao
longo da narrativa, por exemplo, são “travados” como uma batalha de rap.

19
Dados encontrados no endereço oficial: http://www.playbill.com/article/ask-playbillcom-theatre-size-
equity-archives-and-playbill-covers-com-144869 acesso em 08/09/2017.
83

Há um outro fator diferencial neste musical, que é a presença de muitos atores


negros (diferente de outros musicais). Em Hamilton muitos personagens são interpretados
por atores negros, ainda que na “História” dos Estados Unidos aqueles sujeitos aos quais
se faz referência sejam brancos. (as referências históricas/inspirações reais para peça).
Hamilton possui mobilizações neste formato também para além da peça.
“Imigrants, we get the job done!” é um projeto ligado ao autor de Hamilton (Lin-Manuel
Miranda) que apoia e ajuda imigrantes nos estados unidos. Uma canção/vídeo inédito20
do projeto foi lançado no dia 28/06/2017.

On you feet!
A peça que conta a história de Gloria Estefan foi a única de todas as assistidas que
não teve o teatro lotado. Havia muita dança, mas em contexto de apresentação de danças
na narrativa, uma vez que contava a trajetória da carreira da cantora. Esta foi uma das
peças assistidas que possuía mais partes faladas, sem canções. A banda, que se encontrava
no palco, muitas vezes fazia parte das cenas.
Quanto ao conteúdo a narrativa sempre passa por um momento “triste”, uma parte
que não seria “esperada”. No caso desta peça, o acidente de Gloria. O figurino era também
extremamente colorido, ligado à cultura do país da história, Cuba.

Chicago
O teatro para esta peça estava quase lotado, mas não tão lotado quanto outros. Os
ingressos foram adquiridos por meio de rush tickets, como foi mencionado no início desta
sessão. A banda ficava no palco, assim como em On your feet! E muitas vezes interagia
com os personagens em cena. Esta peça se utiliza de poucos ou quase nenhum recurso
tecnológico de cenário/ fundo de palco.
Em Chicago há muita dança, por vezes mais do que o canto, ainda que o musical
possua canções fortes e icônicas. O filme musical inspirado na peça se relaciona muito
com o teatro, a ponto de parecer uma peça filmada.

20
O videoclipe pode ser assistido no endereço oficial da campanha:
https://www.youtube.com/watch?v=6_35a7sn6ds e a letra da canção fala sobre as dificuldades dos
imigrantes nos Estados Unidos.
84

Anastasia
Anastasia foi a peça mais recente (entrou em cartaz no ano de 2017) e mesmo
assim também teve o teatro lotado.
O ponto mais forte da peça era o cenário e as projeções que ocorriam no palco. Os
recursos tecnológicos eram bem avançados se comparados com outros musicais, se
utilizando inclusive de vídeos nas projeções (e não apenas imagens).
Conclui-se a partir destas vivências com as peças que a vivacidade cultural não se
limita à Broadway, mas é uma característica da cidade de Nova Iorque. As expressões
culturais presentes pela cidade são numerosas e a cidade se mostra como um ambiente
aberto a essas manifestações artísticas.
Assistir às peças da Broadway contribuiu para se pensar o gênero de uma forma
interativa, considerando a esfera de atividade na qual são produzidos, em que se
movimentam, circulam e são recepcionados. A recepção é ativa. Os sujeitos respondem
com novas produções a partir da contemplação dos musicais. Neste aspecto, sob a ótica
dos estudos do Círculo:
O material em si e por si funde-se diretamente com o meio extra-artístico
circundante e tem um número infinito de aspectos e definições [...] Por mais
que se vá longe na análise de todas as propriedades do material e de todas as
combinações possíveis dessas propriedades, nunca se será capaz de encontrar
seu significado estético, a menos que lancemos mão, de contrabando, de um
outro ponto de vista que não pertença à moldura da análise do material.
(VOLOCHINOV/BAKHTIN, s/d, p.4)

Conforme a perspectiva teórica escolhida, a vivência de assistir aos musicais é de


extrema importância, pois do ponto de vista do Círculo deve-se olhar para o contexto, a
circulação, a recepção e as relações dialógicas dos enunciados a serem analisados.
Os aspectos mercadológicos ligados às loterias, teatros lotados e preços altos das
peças confirmam o aspecto massivo destes enunciados; porém, não excluem a sua riqueza
estética. A presente pesquisa não deixa de pensar nestas produções como respostas a
demandas de popularidade e consumo e considera que, tendo como aporte teórico os
estudos bakhtinianos, as relações entre os musicais analisados sempre refletem e refratam
a vida, sem deixar de lado as questões sociais, culturais, econômicas e políticas.
85

3 O VERBIVOCOVISUAL E A CANÇÃO

Tendo como objeto de pesquisa filmes musicais, este trabalho pensa sobre o
enunciado fílmico a partir da perspectiva da verbivocovisualidade, conforme calcado por
Luciane de Paula (no prelo), em que se discute uma abordagem bakhtiniana
tridimensional da linguagem. Ao se analisar o corpus aqui escolhido consideram-se suas
partes verbais, sonoras (vocais) e imagéticas (visuais), e estas dimensões estão presentes
em qualquer enunciado, mais ou menos enfatizadas conforme a arquitetônica de cada
gênero.
As ideias do Círculo de Bakhtin trazem conceitos e discussões que convergem
para a visualidade e a sonoridade ou musicalização, e este posicionamento, ainda que não
usual, é tomado por autores leitores das obras bakhtinianas. Suas obras e reflexões serão
base para discussão a seguir apresentada sobre a verbivocovisualidade e o Círculo de
Bakhtin.

3.1 Verbivocovisualidade

A análise do filme musical como gênero discursivo não apenas prevê uma
confirmação do posicionamento que aqui se toma de gênero discursivo, mas também
defende o ponto de vista de que tais materialidades podem ser discutidas sob a ótica dos
estudos do Círculo de Bakhtin.
A autora Haynes aborda os estudos de Bakhtin para discutir linguagens
imagéticas, visuais. Não é um posicionamento usual, mas é coerente com as leituras
possíveis a partir das ideias do filósofo russo. A autora afirma que: “I attempt to do what
Bakhtin has suggested. I take his discourse not as authoritative, but as internally
persuasive, as inviting development, extension, and application toward the goal of
creative understanding21.” (2008, p.15) A fim de estudar a criação da arte (como obra), a
autora se utiliza das teorias do Círculo para discorrer sobre as materialidades artísticas,
em especial as visuais.
O filme musical, objeto do presente estudo, é aqui considerado como um
enunciado verbivocovisual, desta forma considera-se tanto sua parte verbal, quanto as não

21
“Eu busco fazer o que Bakhtin sugeriu. Eu levo seu discurso não como autoritário, mas como
internamente persuasivo, como construção convidativa, extensão e aplicação em busca do objetivo da
compreensão criativa.” (tradução nossa)
86

verbais (no caso, imagéticas e sonoras). As ideias bakhtinianas, ainda que não tenham se
debruçado sobre tais enunciados (como o filme), convergem para possíveis leituras destas
materialidades. É importante ressaltar que o próprio Círculo era composto por membros
de diversas áreas, entre elas, a música: “Among Bakhtin’s interlocutors and the members
of his Circle, we find not only poets, men of letters, philosophers and linguists, but also
scientists, biologists, painters, sculptors, musicians and musicologists22.” (CASSOTTI,
2010 p.114)
A autora Haynes, pesquisadora das obras do Círculo, defende em sua obra que
Bakhtin “brings us back to the aesthetics of the creative process itself, back to the activity
of the artist or author who creates23.” (2008, p.4), a preocupação se encontra, deste modo,
nas produções estéticas de obras de arte, sejam enunciados verbais ou não. As dimensões
verbivocovisuais, ainda que não tenham sido parte da corpora analisada pelo Círculo,
integram o conjunto da cultura oral, a qual não se encontra apartada da escrita, pois
“Bakhtin não trata a oralidade como um domínio à parte da escrita, e não faz uma drástica
divisão entre cultura oral e a cultura escrita como dois âmbitos contrastantes.”
(BUBNOVA, 2011, p.269). A parte sonora (que aqui se considera em especial a canção)
possui valor igual à escrita, pois, sob a ótica escolhida, a cultura oral também pode ser
objeto de estudo.
Mais afundo, no âmbito musical especificamente, as ideias do Círculo podem ser
consideradas para quaisquer obras de arte, sejam elas verbais ou não, uma vez que:

For Yudina and Sollertinsky a complete understanding of a musical work, for


example, demands a continuous shift outside music, towards literature,
philosophy and the other arts. In their writings, they often highlight the ties
between the musical and extra-musical world, the connections between the
artwork an external cultural universe. And, even if Bakhtin focused his
philosophical theories on literary creation and on the verbal text, his concept
of dialogism can be applied to any artwork intended as a nonverbal text.
24
(CASSOTTI, 2010, p.114)

22
“Entre os interlocutores de Bakhtin e membros do seu Círculo encontramos não apenas poetas, homens
das letras, filósofos e linguísticas, mas também cientistas, biólogos, pintores, escultores, músicos e
musicologistas.” (tradução nossa)
23
“nos traz de volta para o processo de criação estética em si, para a atividade do artista ou autor que cria”
(tradução nossa)
24
Para Yudina e Sollertisnky uma compreensão completa do trabalho musical, por exemplo, demanda um
contínuo deslocamento para fora da música, rumo à literatura, à filosofia e outras artes. Em seus escritos,
eles frequentemente destacam as ligações entre o mundo musical e o extramusical, as conexões entre o
trabalho artístico e o universo cultural externo. E, ainda que Bakhtin focasse suas teorias filosóficas em
criações literárias e no texto verbal, seu conceito de dialogismo pode ser aplicado para qualquer trabalho
artístico considerado como um texto não verbal.” (tradução nossa)
87

É do ponto de vista do Círculo também que aqui a canção é reconhecida como


gênero discursivo, como produção enunciativa prenhe de sentidos a serem analisados.

3.2 Canção

Nesta pesquisa a canção também possui um lugar específico na análise do filme


musical. Ao se pensar o filme como gênero discursivo, a canção também será aqui
considerada como um gênero discursivo sob a ótica dos estudos bakhtinianos. Mais do
que ser considerada como gênero, a canção se diferencia, a partir dos posicionamentos
tomados no presente trabalho, da música. A canção é composta por letra e música, sendo
a letra sua parte “textual”, ou verbal, enquanto a música é a parte sonora (ou musical).
Canção é aqui reconhecida como palavra cantada e para tal compreende um enunciado
em que seu o intérprete verbaliza uma letra cantada (musicada) e em que o ato concreto
da canção será tomado como performance. A performance no filme musical é ligada ao
intérprete/personagem e à narrativa na qual se insere. A canção é a palavra cantada do
personagem. Laing ressalta que no musical:

The instrumental music, and the musical qualities of the melody line and
supporting harmony, enable the vocal elements to be transformed from the
level of normal everyday speech, and to be given a sense of deep emotional
and unmediated self-expression. […] The character must carry the weight of
the emotional content of the song, and therefore becomes sincere for the
audience because of this direct, musical, expression, and through the
commitment to their performance that often takes over their whole body, in
either a particularly intense singing style or, of course, dance25. (2000, p.10-
11)

Desde os trovadores mostrava-se uma ligação entre música, poesia e canção. Sobre a
canção nacional, por exemplo, Wisnick aponta que “No Brasil a poesia e a música vieram
se encontrar e produziram uma ligação que ao mesmo tempo é da poesia com a música e
é da cultura letrada com a cultura oral, ou se quisermos, do erudito com o popular.”
(documentário Palavra(en)cantada26). Ao se discutir sobre filmes musicais, a canção
também se caracteriza como a transformação da fala em poesia, “the ordinarily prosaic

25
A música instrumental e as qualidades musicais da linha melódica e a harmonia de apoio permitem aos
elementos vocais serem transformados do nível de discurso do cotidiano para um sentido de auto expressão
profunda e não mediada. [...] O personagem deve carregar o peso do conteúdo emocional da canção e, desta
forma, se torna sincero para o público por sua expressão direta e música e por meio do compromisso de sua
performance que geralmente toma seus corpos inteiros, seja em uma forma intensa de canto seja, é claro,
pela dança. (tradução nossa)
26
Documentário de 2009, dirigido por Helena Solberg. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=liWshEbz8Ik
88

words of the characters are elevated and transformed into the patterns of poetry27.”
(LAING, 2000, p.9)
Tratar de canção a partir de uma análise dialógica do discurso também se justifica
uma vez que o próprio Círculo se utiliza em suas concepções de vocabulário ligado ao
som ou à musicalidade, Bubnova lembra que “O filósofo russo da linguagem Mikhail
Bakhtin, apesar de não ter se ocupado do folclore e da tradição oral, mas da literatura
escrita canônica, utiliza amplamente o vocabulário relacionado ao oral, à voz, à audição,
à escuta, ao tom, à tonalidade, à entonação, ao acento, etc.” (2011, p.269) 28Quanto à voz
especificamente, a autora afirma que do ponto de vista do Círculo “Todo enunciado é
resposta a algum outro, pois “O mundo que nos rodeia, segundo Bakhtin, está povoado
de vozes de outras pessoas.” (idem, p.271) Os enunciados estão, desta forma, sempre
interligados: “Em uma palavra soa a voz de quem disse essa palavra antes.” (idem, p.277)
O estudo da canção, para o presente trabalho, lida com um enunciado em sua
dimensão verbivocovisual e assim também se considera que os estudos do Círculo
contribuam e sejam coerentes para análise destas materialidades: “Bakhtin affirms that
the text is “the primary given”, “the point of departure” for all human and philological
sciences. He also specifies that, if we mean “text” in a broad sense, as a coherent complex
of signs, then even “the study of music” deals with texts (works of art)29.” (CASSOTTI,
2010, p.115)
Conforme concebe Paula, a canção “nasce do processo de composição e de
musicalização, sendo que o último pode ser anterior, posterior ou concomitante ao texto.
O ato de cantar finaliza esse processo e inicia outro, que envolve a relação entre sujeitos”
(2014, p. 229). Deste modo, uma “mesma” canção pode provocar significações diferentes
conforme a construção do enunciado verbivocovisual no qual se insere. Uma das canções
mais conhecidas do musical Les Miserablés é I dreamed a dream, que está inserida no
musical em um momento dramático da trama em que uma personagem canta sobre o
declínio de seus sonhos e ideais. Sua situação específica, construída no interior do
musical, se refere às injustiças sociais da época da história; no entanto, a letra da canção,

27
“As palavras prosaicas comuns dos personagens são elevadas e transformadas para os padrões da poesia”
(tradução nossa)
28
Ainda que a autora aponte neste excerto que Bakhtin não tinha se ocupado do folclore e da tradição oral,
a presente pesquisa compreende que estes podem não ter sido objeto principal de aprofundamento, mas
com certeza são parte dos estudos do Círculo, como em A Cultura popular na Idade Média e no
Renascimento.
29
“Bakhtin afirma que o texto é “inicialmente dado”, o “ponto de partida” para toda a ciência humana e
filológica. Ele também específica que se quisermos dizer “texto” em um sentido amplo, como um complexo
coerente de signos, então até o estudo da música lida com textos (trabalhos de arte).” (tradução nossa)
89

se inserida em um novo contexto, pode estabelecer significados outros. Este é o caso de


um vídeo intitulado “Dream”30 (veiculado pelo Youtube) em que I dreamed a dream é
subscrita em um enunciado verbivocovisual “novo”, uma animação. Este desenho
animado mostra animais diversos que tomam a palavra e cantam esta canção como um
lamento frente à situação de desmatamento da vida selvagem/natureza.

Figura 29 Cena em que é intepretada a canção I dreamed a dream

Figura 30 Cena do curta em que é interpretada a canção I dreamed a dream

30
Vídeo produzido pela WCFF, Wildlife Conservation Film Festival. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=RjMzXykfbm8
90

Ao se lembrar que para o Círculo as vozes são sempre vozes-respostas, “Todas


as palavras são direcionadas a alguém e são de alguém (não há palavras neutras, que
existam por conta própria), e dizer palavras próprias – as que “pertencem” a alguém – só
é possível em resposta a algo que foi dito antes de nós.” (BUBNOVA, 2011, p.271). Desta
mesma forma, a animação responde a um enunciado anterior. Enquanto a letra permanece
“igual”, os sujeitos e meios de produção se modificaram. Sobre o sujeito na canção, Paula
salienta que “A canção se torna emblemática de situações passionais consideradas
extremas – sejam elas positivas ou não – na vida de quem a escuta” (2007, p.233). O filme
musical apresenta personagens que interpretam canções no lugar de suas falas, ou seja, o
gênero canção (que possui sempre uma letra, uma melodia/parte musical e um intérprete)
se encontra inserido na construção de um outro gênero discursivo, o filme musical.
91

4 MÉTODO DIALÉTICO DIALÓGICO E CONCEITOS DO CÍRCULO

No interior dos estudos do Círculo, quando observados em sua totalidade de


conceitos e obras, é possível notar um método de análise recorrente. Aqui este método
será reconhecido como dialético-dialógico, uma vez que todo enunciado-resposta se
encontra numa espiral ininterrupta de construções na interação verbal. Numa dialética-
dialógica todo enunciado é responsivo e responsável, único e irrepetível, sobre o caráter
dialógico do ato-enunciado Bubnova lembra que:

O caráter de acontecimento que tem o ato-enunciado – é ato bilateral, de dupla


autoria construtora de sentido – determina sua condição dialógica e sua
inerente responsabilidade/responsividade: a alternante capacidade de tomar
consciência de seu compromisso no ato por meio da capacidade de responder
ao ato-enunciado anterior e prever uma futura resposta. (2011, p.275)

Para se compreender os diversos conceitos do Círculo é necessário discutir o


caráter de resposta do enunciado. Para o filósofo russo, todo ato é resposta, uma vez que,
“Todo sentido, repito, é uma resposta a um sentido anterior, todo autor é responsável pelo
sentido do enunciado que emite, todo autor compartilha a autoria com o receptor de sua
resposta, etc. Ao atuar e ao falar, somos autores dos atos responsáveis que envolvem nossa
posição no mundo e nosso ser.” (idem, p.275)
Para pensar sobre literatura (sobre a poética sociológica) Medviédev coloca os
questionamentos a seguir; para se pensar o gênero discursivo filme musical, também se
colocam neste trabalho as mesmas perguntas:

O que é uma obra literária? Qual é sua estrutura? Quais são os elementos dessa
estrutura e quais são suas funções artísticas? O que é o gênero, o estilo, o
enredo, o tema, o motivo, o protagonista, o metro, o ritmo, a melodia, e assim
por diante? Todas essas questões, e, em particular, aquela sobre o reflexo do
horizonte ideológico no conteúdo da obra e sobre as funções desse reflexo no
conjunto de sua estrutura artística, pertencem ao vasto campo de pesquisas, da
poética sociológica. (2012, p. 75)

As ideias do autor aplicadas ao presente objeto de pesquisa se tornam: O que é um


filme musical? Qual é sua estrutura? Quais são os elementos dessa estrutura e quais são
suas funções artísticas? A partir desse ponto de vista posiciona-se uma categoria de
análise para o filme musical, tomado como enunciado-ato-resposta inserido em um
devido espaço-tempo.
92

Um método de análise sob a ótica dos estudos do Círculo prevê uma obra inserida
historicamente sempre, porque:

Uma obra literária não pode ser compreendida fora da unidade da literatura.
Mas essa unidade em seu todo, assim como cada um de seus elementos, não
pode ser compreendida fora da unidade da vida ideológica. Por sua vez, essa
unidade não pode ser estudada em sua totalidade, nem em seus elementos
isolados, fora de uma única lei socioeconômica. (idem, p. 72)

Os enunciados fílmicos, além de serem considerados historicamente, também são


observados em suas partes específicas, colocando-as em relação com o todo da obra
também, pois “Somente diante da observação de todas essas condições é possível realizar
o autêntico estudo histórico concreto da obra de arte.”(ibidem, p.72)
O meu lugar extra localizado em relação ao outro (objeto-filme) permite
contemplá-lo e responder a ele de uma posição específica: “Compreender um objeto
significa compreender meu dever em relação a ele (a orientação que preciso assumir em
relação a ele), compreendê-lo em relação a mim na singularidade do existir –evento: o
que pressupõe a minha participação responsável, e não a minha abstração” (BAKHTIN,
2010, p.66). Assim se pensa sobre o filme musical como gênero discursivo a ser
analisado.

4.1 O ENUNCIADO, O SUJEITO, A IDEOLOGIA E A ARQUITETÔNICA

Para se falar de enunciado sob a ótica dos estudos do Círculo de Bakhtin é preciso
pontuar, inicialmente, que para o filósofo russo nenhum enunciado é adâmico, ou seja,
toda produção de enunciados concretos possui marcas (ou vozes) de enunciados
proferidos anteriormente, assim como se liga aos que a partir deste se formarão. Um
enunciado ressoa vozes de outros, forma um elo entre seus atos-enunciados-únicos que é
initerrupto (não se encontra nem seu ponto de início, nem seu fim). Os concomitantes
atos-respostas são a essência da interação verbal, o diálogo:

A combinação do som com o silêncio significativo, que responde a algo dito


e/ou significado antes, produz como resultado a irrupção do sentido. Só aquilo
que responde a uma pergunta tem sentido. O sentido é, então, uma resposta a
algo dito antes, e, é algo que pode ser respondido. A voz é, assim, a fonte de
um sentido personalizado; atrás dela há um sujeito pessoa; mas não se trata de
uma metafísica da presença [...] mas de um constante devir do sentido
permanentemente gerado pelo ato-resposta, que vai sendo modificado no
tempo ao ser retomado por outros participantes no diálogo. (BUBNOVA,
2011, p.274)
93

Como pode-se discutir a partir das ideias do Círculo, uma voz nunca está sozinha,
em um enunciado outros ressoam, “O sentido, por assim dizer, soa.” (idem, p.275). Pode-
se dizer que a proposta bakhtiniana lida com uma translinguística, pois sobre a palavra
oral, a translinguística, a estudiosa do Círculo Russo, Tatiana Bubnova afirma que “Em
suma, a palavra oral é origem e fim do diálogo existencial que Bakhtin trata de explicar
mediante sua exegese literária e teoria translinguística – uma linguística que vai além da
análise dos elementos formais da língua, em direção às relações dialógicas, que são o
sentido próprio da comunicação.” (ibidem p.278)
Para Bakhtin o sujeito se forma na relação entre o eu e o outro, pois “É no
processo da comunicação verbal, da interação com o outro, eu alguém se faz sujeito
forjando seu próprio eu. O “eu” só existe na medida em que está relacionado a um “tu”:
“Ser significa comunicar-se”, e um “eu” é alguém a quem se dirigiu como um “tu””
(ibidem, p.271). A autora Haynes pontua a necessidade que se tem do outro como:

We cannot author ourselves, because we cannot see the whole of ourselves.


From within the self, there is always the possibility of and openness to change.
This means that no stable or authoritative definition of the self is possible. For
this we need the other, and the other needs us.” 31(2008, p.71)

O eu precisa do outro, assim como o outro precisa do eu. O ato único e irrepetível
é também importante para compreensão da obra do Círculo como um todo, pois todo
enunciado se dá em um dado espaço e tempo: “A ligação orgânica entre o signo e o
sentido, alcançada em um ato histórico concreto do enunciado, existe apenas para esse
enunciado e apenas para essas condições de sua realização.” (MEDVIÉDEV, 2012,
p.184)
No caso do filme musical The Rocky Horror Picture Show (1975), de Jim
Sharman, as particularidades de tempo/espaço, produção/recepção do enunciado concreto
estão diretamente ligadas ao se considerar a adaptação da FOX de 2016. A obra
cinematográfica em questão, que (desde sua versão inicial para o teatro) lida com
desconstruções de padrões por meio de um tom irônico e escrachado, recebeu uma versão
para a TV este ano que se distancia da versão de 1975 em alguns aspectos e em outros se
aproxima. Estas particularidades do enunciado se dão em função do tempo/espaço e
produção/recepção da versão de 2016, que se deu em uma transmissão televisiva (já não

31
Não podemos exercer autoria de nós mesmos, porque não podemos ver o nosso todo. De dentro do eu há
sempre a ‘possibilidade de’, e, ‘a abertura para’ a mudança. Isto significa que não é possível uma definição
estável ou autoritária do eu. Para isso precisamos do outro, e o outro precisa de nós.
94

cinematográfica, o que modifica o público/recepção e também a forma de produção a


obra) transmitida em um horário específico (20h, que possui um conteúdo limitado
conforme uma faixa etária permitida); tais pontos delimitam a construção de The Rocky
Horror Picture Show.

Figura 31 Cena do filme musical The Rocky Horror Picture Show

Figura 32 Cena do musical para a televisão


95

O personagem conhecido como Doutor Frank’n Further, que na versão de 1975


fora interpretado por Tim Curry, é feito por uma transexual negra (Laverne Cox) na
versão para a TV de 2016. Enquanto pode-se observar que a formatação da cena “Sweet
Transvestite” recebeu uma roupagem pouco explícita sexualmente (com figurinos de
erotismo velado, que não provoca choque com o que se espera do padrão de erotismo tido
como aceitável na mídia), ao mesmo tempo tende-se a notar que a posição do personagem
do doutor (que na trama é nomeado como um travesti transexual) é interpretada por um
sujeito transexual de fato. Este posicionamento marcado na construção do enunciado
coloca em discussão um dos temas do filme que é a travesti e a transexualidade também.
Da forma que aqui se compreende enunciado pensa-se que:
Entender um enunciado significa entendê-lo no contexto da sua
contemporaneidade e da nossa (caso elas não coincidam). É necessário
compreender o sentido no enunciado, o conteúdo do ato e a realidade
histórica do ato em sua união concreta e interna. Sem tal compreensão,
o próprio sentido estará morto, tornar-se-á um sentido de dicionário,
desnecessário. (MEDVIÉDEV, 2012, p.185)

Os exemplos de produções musicais (uma para o cinema e outra para a tv)


demonstram as características do gênero discursivo que como enunciado concreto se
modifica conforme seu contexto de produção.
Ao se pensar em enunciado, do ponto de vista do Círculo, percebe-se que mais
uma vez os conceitos se interligam. Falar de enunciado é também falar de gênero
discursivo: “Cada tipo de intercâmbio comunicativo [...] constrói e completa, à sua
maneira, a forma gramatical e estilística da enunciação, sua estrutura tipo, que
chamaremos a partir daqui de gênero.” (VOLOCHINOV, 2013, p.159). É sob esta ótica
de enunciado e gênero que o presente trabalho pensa o filme musical (na trajetória do
gênero) e, em especial, a obra cinematográfica Les Miérables (2012), de Tom Hooper,
que será discutida a seguir.
96

5 LES MISÉRABLES

O filme musical em questão possui mais de 20 canções ao longo da trama, porém,


nem todas serão colocadas em foco na presente análise. A metodologia para abordagem
de Les Mis se dará em duas partes. Assim como na peça musical, a obra se divide em atos.
Aqui também o filme musical será considerado em uma divisão que será denominada em:
Ato 1 e Ato 2. No primeiro momento serão comentadas canções que se caracterizam como
solos (em que um único personagem interpreta a canção). No ato 2 o foco será em canções
de coro, representadas no interior do musical como canções em grupos de movimentação
pela revolução. A discussão das canções se dará por meio da apresentação de fotogramas
retirados do filme, assim como as letras das canções e suas partituras, quando necessário.

Ato 1. Canções em foco:

VALJEAN SOLIQUOY

As cores neste solo são predominantemente o ocre e o amarelo, cores que aparecem
no ambiente da casa do bispo e que se relacionam com o divino e a Igreja ao representar
a luz (ocre/amarelo) e o dourado do ouro das Igrejas. A canção se assemelha muito à fala
(fala cantada) e as tomadas da câmera focam no rosto de Jean Valjean, enquanto o
personagem constantemente olha para cima.

Figura 33 Cena da canção Valjean Soliquoy


97

Esta canção também se parece com um choro, pois o personagem canta como se
fizesse uma confissão. Na cena acima pode-se perceber numa câmera plongée, que, ao
observar o personagem de cima para baixo, reforça sua inferioridade ao interpretar a
canção. A letra da canção é:

What have I done?


Sweet Jesus, what have I done?
Become a thief in the night
Become a dog on the run
Have I fallen so far
And is the hour so late
That nothing remains but the cry of my hate
The cries in the dark that nobody hears
Here where I stand at the turning of the years?
If there's another way to go
I missed it twenty long years ago
My life was a war that could never be won
They gave me a number and murdered Valjean
When they chained me and left me for dead
Just for stealing a mouthful of bread
Yet why did I allow this man
To touch my soul and teach me love?
He treated me like any other
He gave me his trust
He called me brother
My life he claims for God above
Can such things be?
For I had come to hate the world
This world that always hated me
Take an eye for an eye
Turn your heart into stone
This is all I have lived for
This is all I have known
One word from him and I'd be back
Beneath the lash, upon the rack
Instead he offers me my freedom
I feel my shame inside me like a knife
He told me that I have a soul
How does he know?
What spirit comes to move my life?
Is there another way to go?
I am reaching, but I fall
And the night is closing in
As I stare into the void
To the whirlpool of my sin
I'll escape now from that world
From the world of Jean Valjean
98

Jean Valjean is nothing now


Another story must begin32

A dinâmica da canção, tanto em sua melodia (interpretada pelo personagem)


quanto no acompanhamento instrumental, reflete os traços emotivos da situação de Jean
Valjean na narrativa e, especificamente, na devida cena. A canção começa com um
andamento mais lento e calmo do instrumental de fundo; porém, a partir de “turning of
the years” (destacado em vermelho) o acompanhamento passa a ser mais rápido, é a partir

32
O que eu fiz?
Doce Jesus, o que eu fiz?
Tornei-me um ladrão na noite
Tornei-me um cão em fuga
Teria eu caído tão longe
E é a hora tão tarde
Que nada resta senão o choro do meu ódio
Os gritos no escuro que ninguém ouve
Aqui, onde estou com o passar dos anos?
Se houver outro caminho a seguir
Eu o perdi vinte longos anos atrás
Minha vida era uma guerra que nunca poderia ser vencida
Eles me deram um número e assassinaram Valjean
Quando eles me acorreram e me deixaram pra morrer
Apenas por roubar um bocado de pão
E agora por que eu permiti a esse homem
Tocar minha alma e me ensinar amor?
Ele me tratou como qualquer outro
Ele me deu sua confiança
Ele me chamou de irmão
Minha vida ele reivindica a Deus acima
Podem essas coisas existir?
Pois eu vim para odiar o mundo
Este mundo que sempre me odiou
Tome olho por olho
Transforme seu coração em pedra
Isso é tudo que eu vivi
Isso é tudo que eu conheci
Uma palavra dele e eu voltaria
Abaixo do chicote, sob tortura
Em vez disso, ele me ofereceu minha liberdade
Sinto a vergonha dentro de mim como uma faca
Ele me disse que eu tenho uma alma
Como ele sabe?
Que espírito move minha vida?
Existe outro caminho a percorrer?
Estou tentando, mas eu caio
E a noite está se encerrando
Enquanto olho para o vazio
Para o redemoinho do meu pecado
Eu escaparei agora deste mundo
Do mundo de Jean Valjean
Jean Valjean não é nada agora
Outra história deve começar (tradução nossa)
99

então da frase que fala sobre o passar dos anos que a canção ganha um ritmo mais
acelerado, como um tempo que passa a correr. Assim ela permanece, até a melodia chegar
na frase “chained me and left me for dead, just for stealing a mouthfull of bread”, em que
é criada uma ênfase por meio do instrumental, que toca notas fortes e mais espaçadas. A
frase em questão resume a trajetória que Jean Valjean teve até então na narrativa, ser
preso (acorrentado) e deixado “para morrer” apenas por “roubar um pedaço de pão” e por
isso seu destaque na melodia é justificado, pois é o motivo central da injustiça sofrida
pelo personagem.

Figura 34 Recorte da partitura da canção


100

A partir do recorte da partitura da canção é possível reconhecer os traços citados:


O símbolo > , por exemplo, significa que a nota deve ser tocada em “crescendo”, ou seja,
com mais força e/ou presença. Esta é uma marca da dinâmica do instrumental. A parte
destinada ao instrumental se encontra com a marcação na cor amarela e a parte da
melodia/do solista está em azul.
Antes da frase aqui discutida (sublinhada em azul na partitura) aparecem no recorte
acima os pentagramas do acompanhamento, que mostram o andamento com várias
marcações do código da dinâmica > , enquanto na frase em destaque especificamente ele
é marcado de forma pontual. A marca > coincide com as sílabas tônicas “Chain” em
“Chained” e “Lef” em “Left”. O ritmo ganhado na virada de melodia em “turning of the
years” se modifica e em conjunto com a frase que resume a trajetória do personagem, o
instrumental modifica seu andamento de forma a destacar a grande injustiça da vida de
Jean Valjean até aquele momento.
A frase Yet why did I allow this man marca o início de uma parte da canção em que
esta se torna mais calma e com andamento mais lento, assim como na letra a revolta da
frase “Chained me and left me for death, just for stealing a mouthfull of bread” é
substituída por um Jean Valjean que fala sobre ter sido tocado em sua alma pelo gesto do
bispo. Já no final da frase “This world that always hated me” em hated me o andamento
lento termina e volta a ser rápido, mais uma vez sendo refletido na canção o estado
emotivo do sujeito que a interpreta. Em One word from him and I'd be back
Jean Valjean volta a falar do bispo e o andamento em coerência com o conteúdo da letra
se desacelera mais uma vez. Os destaques God above e I have a soul podem ser
observados como espelhos, pois possuem a mesma melodia cantada e falam ambos sobre
a possível presença divina e existência da alma de Jean Valjean.
101

Figura 35 Cena em que o personagem rasga o documento

Figura 36 Destaque da partitura que dialoga com a cena do filme musical


102

O final da canção é prolongado na palavra “Begin”, momento da narrativa em que o


personagem decide começar uma nova vida e se desvincular do seu passado. Sua mudança
é representada pelo rasgar de sua ficha em que constava seu antecedente como prisioneiro.
O ato de rasgar este papel ocorre de forma simultânea com o instrumental da canção,
sendo colocado de forma forte e pontual, como o gesto revoltado do rasgar do
personagem. Na sequência de fotogramas acima o personagem é mostrado no ato de
rasgar seu “passado” no papel, e no recorte da partitura da canção o instrumental em
destaque possui uma frase que se relaciona com o rasgar. Ao vir de uma nota mais grave
para uma mais aguda em um legato (que liga uma nota à outra, simbolizado pelo arco que
liga as figuras musicais), o instrumental se relaciona com os gestos do personagem em
cena no filme. Enquanto o solista sustenta uma nota (na sílaba “gin” da palavra “Begin”)
o acompanhamento instrumental marca o rasgar com o desenho de suas notas.
Ao se considerar a perspectiva bakhtiniana a análise de Les Mis aponta traços
específicos e pontuais da obra cinematográfica, porém sempre a considera também em
seu conjunto:
Independentemente das funções que o material possui na construção da obra,
dentro dele predomina uma lei natural. Porém, além disso, cada átimo do
material também está repleto da lei puramente artística. Um material é, em sua
totalidade, arranjado artisticamente. Não importa qual elemento pequeno do
material tomarmos, nele acontece um contato imediato da lei extra-artística
(ética, cognitiva ou outra) com a puramente artística. (MEDVIÉDEV, 2012
p.176)

O autor do Círculo afirma que cada parte de uma produção artística possui relação
com a totalidade da obra, com a sua construção por inteiro. Ainda que aqui sejam tomados
separadamente, os excertos do enunciado fílmico são parte de uma composição. Os
fotogramas, os recortes da partitura, as letras da canção; cada fragmento está interligado
no todo.
103

I DREAMED A DREAM

Figura 37 Cena em que Fantine canta

Em I Dreamed a dream a canção toda é gravada sem cortes. A partir do momento


em que ela é cantada (na pequena parte falada do início ela apresenta cortes), é
interpretada num único plano, ou seja, em plano sequência. Esta opção de filmagem traz
o espectador para o tempo do filme e torna aquilo que se narra mais real e mais próximo.
Neste solo da personagem Fantine o enquadramento é em primeiro plano, pois pode-se
ver ainda um pouco abaixo do rosto da personagem, em que fica evidente seus ombros
magros e vestimentas rasgadas. O posicionamento da personagem para um dos cantos não
apenas coloca-a como marginalizada, mas também evidencia a solidão, insuficiência e
falta de controle. Um personagem locado ao centro mostra-se no controle, sendo
suficiente e ocupando a região central do recorte de imagem. A posição de Fantine, por
sua vez, deixa um vazio ao seu lado, colocando neste espaço o destaque para o fato de ela
estar só, deslocada emocional e socialmente na narrativa. Essas marcas que podem ser
observadas a partir do fotograma fazem parte do todo da cena e criam significações
específicas para o enunciado fílmico em questão.
104

I dreamed a dream in times gone by


When hope was high and life worth living
I dreamed, that love would never die
I dreamed that God would be forgiving
Then I was young and unafraid
And dreams were made and used and wasted
There was no ransom to be paid
No song unsung, no wine untasted

But the tigers come at night


With their voices soft as thunder
As they tear your hope apart
As they turn your dream to shame
He slept a summer by my side
He filled my days with endless wonder
He took my childhood in his stride
But he was gone when autumn came
And still I dream he'll come to me
That we will live the years together
But there are dreams that cannot be
And there are storms we cannot weather
I had a dream my life would be
So different from this hell I'm living
So different now from what it seemed
Now life has killed the dream
I dreamed33

33
Eu sonhei um sonho em tempos passados
Quando a esperança era grande e a vida valia a pena viver
Eu sonhei que o amor nunca morreria
Eu sonhei que Deus seria misericordioso
Então eu era jovem e sem medo
E os sonhos eram feitos e usados e desperdiçados
Não havia resgate a pagar
Nenhuma música desconhecida, nenhum vinho sem sabor
Mas os tigres vêm à noite
Com suas vozes suaves como trovão
À medida que destroem sua esperança
E transformam seus sonhos em vergonha
Ele dormiu um verão ao meu lado
Ele encheu meus dias de maravilha infinita
Ele levou minha infância a passos largos
Mas ele se foi quando chegou o outono
E ainda sonho, que ele virá a mim
Que vamos viver os anos juntos
Mas há sonhos que não podem ser
E há tempestades que não podemos prever
Eu tive um sonho que minha vida seria
Tão diferente desse inferno que estou vivendo
Tão diferente agora do que parecia
105

Na letra de I dreamed a dream há um contraste entre as partes da letra que falam


sobre esperança e as a partes que falam sobre tristeza. Os trechos da letra destacados em
verde narram o sonho de esperança e do “amor que não morreria”, enquanto as partes em
laranja marcam o conteúdo desesperançoso e sombrio da letra. A trajetória da personagem
aparece, desta forma, no conteúdo da letra da canção e também na interpretação do canto,
que, nas partes destacadas em verde, é cantado com uma voz mais melodiosa e suave,
enquanto nas partes em laranja traz uma voz rasgada, quase distorcida e que impõe mais
força no cantar.

STARS

Esta primeira canção solo do personagem Javert pode ser destacada pela relação entre
o conteúdo da letra e o local em que o personagem a interpreta. Javert canta sobre o ato
de cair e esta cena é feita à beira de um precipício (uma sacada) e a morte deste
personagem ao final do musical se dará por meio de um suicídio em que ele se joga das
alturas.

Figura 38 Cena que mostra a beira do precipício

Agora a vida matou o sonho


Que eu sonhei (tradução nossa)
106

Figura 39 Suicídio de Javert

Na letra da canção Stars, Javert relaciona cair (to fall em inglês) a Lúcifer (the fallen,
o caído). Ao final este personagem comete suicídio ao se jogar (cena acima) e acaba por
se tornar, ele mesmo, the fallen one.
A letra de Stars é a seguinte:

There, out in the darkness


A fugitive running
Fallen from God
Fallen from grace
God be my witness
I never shall yield
Till we come face to face
Till we come face to face
He knows his way in the dark
Mine is the way of the Lord
And those who follow the path of the righteous
Shall have their reward
And if they fall
As Lucifer fell
The flame
The sword!
Stars
In your multitudes
Scarce to be counted
Filling the darkness
With order and light
You are the sentinels
107

Silent and sure


Keeping watch in the night
Keeping watch in the night
You know your place in the sky
You hold your course and your aim
And each in your season
Returns and returns
And is always the same
And if you fall as Lucifer fell
You fall in flame!
And so it must be, and so it is written
On the doorway to paradise
That those who falter and those who fall
Must pay the price!
Lord let me find him
That I may see him
Safe behind bars
I will never rest
Till then!
This I swear
This I swear by the stars!34

34
Lá, na escuridão
Um fugitivo correndo
Caído de Deus
Caído da graça
Deus seja minha testemunha
Eu nunca cederei
Até que nos encontremos frente a frente
Até que nos encontremos frente a frente
Ele conhece o caminho no escuro
O meu caminho é o do Senhor
E aqueles que seguem o caminho dos justos
Terão sua recompensa
E se eles caírem
Como Lucifer caiu
A chama
A espada!
Estrelas
Em suas multitudes
Escasas para serem contadas
Enchendo a escuridão
Com ordem e luz
Vocês são as sentinelas
Silenciosas e seguras
Vigilando a noite
Vigilando a noite
Vocês conhecem seu lugar no céu
Vocês mantêm seu curso e seu objetivo
E cada uma na sua temporada
Retorna e retorna
E é sempre o mesmo
E se vocês caem como Lucifer caiu
Vocês queimam em chama!
E assim deve ser, e assim está escrito
Na porta do paraíso
108

Conforme discutido pelo Círculo de Bakhtin forma e conteúdo estão interligados:


a forma não deve perder sua conexão com o conteúdo, sua correlação com ele,
pois de outro modo ela se torna uma experiência técnica esvaziada de qualquer
importância artística real. [...] A seleção do conteúdo e a seleção da forma
constituem um e o mesmo ato estabelecendo a posição básica do criador
(VOLOCHINOV/BAKHTIN, s/d, p.17)

No fazer artístico tudo está interligado, assim como nas canções aqui analisadas. Ao
se observar a letra em seu todo podem-se destacar partes distintas, que configuram na
composição de sua forma. Estes traços, no entanto, não estão apartados do conteúdo,
como será comentado a seguir.
A canção Stars pode ser dividida em A, B e C. As partes destacadas em vermelho (A)
apresentam melodias similares no plano musical e também conteúdos similares no plano
da letra. A primeira parte vermelha pode ser denominada como A e a segunda como A’,
pois traz variação sobre a mesma melodia, ou seja, aquilo que é cantando é quase igual,
porém não idêntico. O conteúdo da letra de A discorre sobre a presença do fugitivo (Jean
Valjean) e o dever de Javert encontrá-lo. O sujeito da canção (que neste caso é também o
interprete e o personagem) coloca o fugitivo como aquele que “conhece o caminho na
escuridão”, porém Javert seria quem “segue o caminho dos justos e terá a sua
recompensa”. Em A’ as estrelas são colocadas como alegoria para a ordem e a vigilância,
que seriam o papel do sujeito da canção. A relação com o dever e o divino se encontra
também na parte B, grifada em verde. É neste trecho da canção que o sujeito se refere a
Lúcifer, o caído, que, conforme comentado anteriormente, acaba por ser o próprio Javert,
que se suicida numa queda fatal. O desfecho da canção se dá em C com o juramento de
Javert, sob as estrelas, de que encontraria seu fugitivo, e mais uma vez a tarefa do sujeito
da canção é comparada a um compromisso/dever divino. Estas relações do conteúdo da
letra podem ser observadas também no mise-en-scène, em que se encontra a estátua de
uma águia compondo o enquadramento da cena junto com Javert. A figura do personagem
é tão ligada a esta ave durante a canção que por vezes estes chegam a ser sobrepostos, de
forma a se fundirem, como pode ser observado abaixo.

Que aqueles que vacilam e aqueles que caem


Devem pagar o preço!
Senhor, deixe-me encontrá-lo
Para que eu possa vê-lo
Seguro atrás das grades
Eu nunca vou descansar
Até então!
Isso eu juro
Isto juro pelas estrelas! (tradução nossa)
109

Figura 40 Cenas em que Javert aparece junto à figura da águia

A águia se relaciona ao predador que busca a presa, como Javert procura por Jean
Valjean, e também carrega a simbologia de espiritualidade e/ou ligada ao divino. Na letra
de Stars, Javert se coloca como sujeito que tem um dever supremo de encontrar e prender
seu “fugitivo” e para isso clama por intervenção divina, sempre se colocando ao lado da
luz e da justiça, enquanto Jean Valjean é a escuridão.
Outras características do conteúdo da canção e do personagem/sujeito da canção
se encontram marcadas na cena, como a posição de centralidade do personagem de Javert.
Diferente de canções como I dreamed a dream, em que o sujeito da canção não é colocado
no centro do enquadramento, Javert é disposto na cena de forma a confirmar seu poder.
110

Figura 41 Recorte que mostra a centralidade

A perspectiva da câmera também pode contemplar o sentimento de superioridade


de Javert. Na figura abaixo a câmera contra plongée se coloca abaixo do personagem,
instalando desta forma um status de autoridade a Javert. Assim como no fotograma
seguinte, em que Javert é disposto em uma perspectiva em que se parece
proporcionalmente grande com relação ao cenário (distante) ao fundo. Seu corpo se figura
com um tamanho grande e realça sua posição de dominação na interpretação da canção.

Figura 42 Cena com Javert que mostra a câmera contra plongée


111

Figura 43 Cena que mostra Javert como proporcionalmente grande

ON MY OWN

Em On my own o início da canção traz um plano geral, que possibilita mostrar a


ambientação da personagem, que se encontra sozinha. A solidão de Eponine se coloca,
desta forma, desde o começo da canção, e assim permanece explícita em planos que
poderiam ser “conjuntos” (com outro personagem ao lado) mas que deixam um vazio ao
lado da intérprete da canção.
A chuva também, como parte do mise-en-scène, carrega a ambientação do tom de
tristeza de On my own ser cantada na rua, numa noite chuvosa.
112

Figura 44 Plano geral com Eponine sozinha

Figura 45 Destaque para a chuva na cena

A não centralidade da personagem no enquadramento não apenas evidencia sua


solidão como também posiciona a personagem (assim como Fantine) no lugar de
marginalizada, de não conter um espaço na sociedade em que vive ou até no momento
emocional/afetivo que está passando naquele momento da narrativa.
Há durante a sequência de cenas de On my own uma predominância do plano
próximo à personagem (quase um close up). E perto do encerramento da canção a câmera
ganha um plano plongée, em que a personagem é vista de cima para baixo, linguagem da
câmera que reforça a diminuição e impotência de Eponine ao interpretar a canção.
113

Figura 46 Sequência em que Eponine aparece não centralizada no enquadramento


114

A letra da canção pode ser observada abaixo:

On my own
Pretending he's beside me
All alone
I walk with him till morning
Without him
I feel his arms around me
And when I lose my way I close my eyes
And he has found me

In the rain the pavement shines like silver


All the lights are misty in the river
In the darkness, the trees are full of starlight
And all I see is him and me forever and forever

And I know it's only in my mind


That I'm talking to myself and not to him
And although I know that he is blind
Still I say, there's a way for us

I love him
But when the night is over
He is gone
The river's just a river
Without him
The world around me changes
The trees are bare and everywhere
The streets are full of strangers

I love him
But every day I'm learning
All my life
I've only been pretending
Without me
His world will go on turning
A world that's full of happiness
That I have never known

I love him
I love him
I love him
But only on my own35

35
Por mim mesma
Fingindo que ele está ao meu lado
Totalmente sozinha
Eu ando com ele até de manhã
Sem ele
Eu sinto seus braços ao meu redor
115

A parte destacada em laranja na letra da canção expressa a ilusão que o sujeito da


canção carrega com relação a presença/ausência do amado. A palavra em destaque,
“eyes”, marca um breve momento de silêncio, uma pausa que é dada tanto na canção
quanto na movimentação da câmera. Ao mesmo tempo que a personagem fecha os olhos
(ao cantar “close my eyes”), para de andar; a câmera deixa de se movimentar e todo o
instrumental da canção se silencia. Esta palavra demonstra, desta forma, o funcionamento
do som (no caso ausência de), imagem e letra da canção para a construção de um sentido.

Em embate com a parte laranja, a parte destacada em azul na letra define a


passagem para um tom mais triste e angustiante da letra. Enquanto no excerto em laranja
o instrumental da canção traz um piano mais delicado, que quase imita os pingos de chuva
que ambientam o cenário, a partir da parte em azul o instrumental ganha força com
instrumentos de corda em um tom mais dramático.

E quando eu me perco, fecho meus olhos


E ele me encontra

Na chuva a calçada brilha como prata


Todas as luzes são enevoadas no rio
Na escuridão, as árvores estão cheias de luz das estrelas
E tudo o que vejo é ele e eu para sempre e para sempre

E eu sei que é só na minha mente


Que eu estou falando sozinha e não com ele
E embora eu saiba que ele não veja
Ainda digo, há um jeito para nós

Eu o amo
Mas quando a noite acaba
Ele se vai
O rio é apenas um rio
Sem ele
O mundo à minha volta muda
As árvores estão nuas e em toda parte
As ruas estão cheias de estranhos

Eu o amo
Mas todos os dias aprendo
Toda a minha vida
Eu apenas tenho fingido
Sem mim
O mundo dele continua girando
Um mundo cheio de felicidades
Que eu nunca conheci

Eu o amo
Eu o amo
Eu o amo
Mas somente por mim mesma (tradução nossa)
116

Ato 2. Canções em foco:

WORK SONG/LOOK DOWN

Esta é a canção inicial, que abre a obra cinematográfica em questão. Antes da parte
cantada começar o instrumental já toca a melodia principal, que é a melodia da frase “look
down”. Nesta introdução instrumental o enquadramento em grande plano geral mostra os
personagens pequenos, ao longe, e aos poucos a movimentação da câmera vai se
aproximando da cena.

Figura 47 Grande plano geral

Figura 48 Aproximação gradativa da câmera


117

O grande plano geral e plano geral utilizados especificamente nos fotogramas


acima valorizam a ambientação, enquanto os personagens que figuram menores tornam
evidente sua pequenez e posição inferior com relação ao todo em que se encontram. “Look
down” ou “Work song” é a primeira canção de Les Mis, considerada seu Epílogo, e nela
são apresentados prisioneiros que, trabalhando, interpretam a canção com a letra a seguir:

Look down, look down


Don't look 'em in the eye
Look down, look down
You're here until you die
No God above
And Hell alone below
Look down, look down
There's twenty years to go
I've done no wrong!
Sweet Jesus hear my prayer!
Look down, look down
Sweet Jesus doesn't care
I know she'll wait
I know that she'll be true!
Look down, look down
They've all forgotten you
When I get free ya won't see me
Here for dust!
Look down, look down
You'll always be a slave
Look down, look down
You're standing in your grave36

36
Olhe para baixo, olhe para baixo
Não o olhe nos olhos
Olhe para baixo, olhe para baixo
Você está aqui até morrer
Sem Deus acima
E abaixo apenas o inferno
Olhe para baixo, olhe para baixo
Há vinte anos a frente
Eu não fiz nada de errado!
Doce Jesus escute minha oração!
Olhe para baixo, olhe para baixo
Doce Jesus não se importa
Eu sei que ela vai esperar
Eu sei que ela será fiel!
Olhe para baixo, olhe para baixo
Eles todos esqueceram você
Quando eu me libertar, você não me verá
Aqui pelo pé!
Olhe para baixo, olhe para baixo
Você sempre será um escravo
Olhe para baixo, olhe para baixo
118

A canção fala sobre olhar para baixo e não o olhar nos olhos. Este “ele” a quem
não se deve olhar nos olhos não está marcado com o nome de Javert na canção, porém na
sequência Javert aparece observando os prisioneiros, de cima para baixo. A canção versa
sobre os presos olharem para baixo, Jean Valjean, no entanto, lança seu olha para cima,
na direção de Javert, como pode ser observado nos fotogramas abaixo. O enquadramento
da câmera com relação aos prisioneiros (entre eles Jean Valjean) é feito inicialmente em
plongée, ou seja, de cima para baixo, inferiorizando os personagens.

Figura 49 Câmera em plongée

Você está sobre seu túmulo(tradução nossa)


119

Figura 50 Sequência que mostra o personagem ao observar Javert


120

A posição de domínio e controle de Javert é expressa pelo enquadramento


abaixo, em que sua figura se encontra centralizada e ao fundo, à sua frente, estão
dispostos os prisioneiros trabalhando a seu serviço.

Figura 51 Javert em enquadramento central

Na imagem a seguir a câmera em contra-plongée reforça o poder do personagem


Javert, pois este é apresentado mais uma vez centralizado e acima do olhar da câmera,
que, na letra da canção, expressa a presença de um “ele” a quem não se deve olhar nos
olhos.

Figura 52 Contra plongée que mostra Javert como superior


121

LOOK DOWN (THE BEGGARS)

Durante esta cena a canção “Look down (The Beggars)” é interpretada ora pelos
pedintes/povo das ruas, ora pelos jovens revolucionários. “The beggars” são os pedintes,
enquanto Gavroche, Marius e Enjolras são personagens evolvidos na revolução. As partes
em que cada personagem interpreta a canção podem ser observadas na letra a seguir:

BEGGARS
Look down and see the beggars at your feet
Look down and show some mercy if you can
Look down and see the sweepings of the street
Look down, look down,
Upon your fellow man!

GAVROCHE
'Ow do you do? My name's Gavroche
These are my people, here's my patch.
Not much to look at, nothing posh
Nothing that you'd call up to scratch
This is my school, my high society
Here in the slums of Saint Michele
We live on crumbs of humble piety
Tough on the teeth, but what the hell!
Think you're poor?
Think you're free?
Follow me! Follow me!

BEGGARS
Look down and show some mercy if you can
Look down, look down, upon your fellow man!

GAVROCHE
There was a time we killed the King
We tried to change the world too fast
Now we have got another King
He's no better than the last
This is the land that fought for liberty
Now when we fight, we fight for bread
Here is the thing about equality
Everyone's equal when they're dead
Take your place!
Take your chance!
122

Vive la France! Vive la France!

STUDENTS & BEGGARS


Look down and show some mercy if you can
Look down, look down, upon your fellow man!

COURFEYRAC
When's it gonna end?

BEGGAR 1
When we gonna live?

JOLY
Something's gotta happen now!

BEGGAR 2
Something's gotta give!

STUDENTS & BEGGARS


It'll come, it'll come, it'll come
It'll come, it'll come

ENJOLRAS
Where the leaders of the land?
Where is the king who runs this show?

MARIUS
Only one man, General Lamarque
Speaks for the people here below

ENJOLRAS
Lamarque is ill and fading fast!
Won't last the week out, so they say.

MARIUS
With all the anger in the land
How long before the judgement day?

ENJOLRAS
Before we cut the fat ones down to size?
123

ALL
Before the barricades arise?37

37
PEDINTES
Olhe para baixo e veja os pedintes a seus pés
Olhe para baixo e mostre piedade se puder
Olhe para baixo e veja o lixo da rua
Olhe para baixo, olhe para baixo
Sobre o seu companheiro!

GAVROCHE
Como vai você? Meu nome é Gavroche
Este é meu povo, aqui está o meu remendo.
Não há muito para olhar, nada elegante
Nada que você chamaria para arranhar
Esta é minha escola, minha alta sociedade
Aqui nas favelas de Saint Michele
Nós vivemos em migalhas de piedade humilde
Duros nos dentes, mas que diabos!
Se acha pobre?
Se acha livre?
Siga-me! Siga-me!

PEDINTES
Olhe para baixo e mostre piedade se puder
Olhe para baixo, olhe para baixo, para o seu companheiro!

GAVROCHE
Houve um tempo em que matamos o rei
Nós tentamos mudar o mundo rápido demais
Agora nós temos outro rei
Ele não é melhor que o último
Esta é a terra que lutou pela liberdade
Agora quando nós lutamos, lutamos pelo pão
Esse é o lance sobre igualdade
Todos são iguais quando estão mortos
Tome seu lugar!
Agarre a sua oportunidade!
Vive la France! Vive la France!

ESTUDANTES & PEDINTES


Olhe para baixo e mostre piedade se puder
Olhe para baixo, olhe para baixo, para o seu companheiro!

COURFEYRAC
Quando irá acabar?

PEDINTE 1
Quando iremos viver?

JOLY
Algo precisa acontecer agora!

PEDINTE 2
Alguém tem que ceder!
124

Na letra da canção pode-se perceber que as partes destacadas em azul, cantadas


pelo povo/pedintes, apresentam a mesma melodia de “Look down”, que aparece no início
do filme. A presente melodia se caracteriza, deste modo, como sendo interpretada pelos
personagens em situações coletivas (presos em serviço braçal, pedintes que vivem nas
ruas) e de forma a expressar sua condição de pobreza e/ou marginalização no contexto
em que se encontram.
Durante a cena no filme musical a câmera mostra os sujeitos que interpretam a
canção, intercalando inicialmente entre o personagem Gavroche e os pedintes, e
posteriormente entre os líderes revolucionários e o povo, como pode-se observar nas
imagens abaixo. A primeira imagem mostra uma câmera baixa, com centralidade em
Gavroche. Já a imagem dos pedintes possui uma câmera plongée em um plano aberto.

ESTUDANTES & PEDINTES


Irá chegar, irá chegar, irá chegar, irá chegar, irá chegar

ENJOLRAS
Onde estão os líderes desta terra?
Onde está o rei que comanda este show?

MARIUS
Somente um homem, General Lamarque
Fala pelo povo aqui abaixo

ENJOLRAS
Lamarque está doente e piorando rapidamente
Não durará a semana, eles dizem.

MARIUS
Com toda a raiva na terra
Quanto tempo até o dia do juízo final?

ENJOLRAS
Antes de cortarmos os gordos em pedaços?

TODOS
Antes das barricadas se erguerem? (tradução nossa)
125

Figura 53 Câmera que mostra Gavroche durante a canção

Figura 54 Câmera que mostra os pedintes


126

Figura 55 Câmera que mostra os líderes revolucionários

Figura 56 Câmera que mostra o povo

No recorte da cena dos líderes revolucionários a simetria causa um efeito de


espelhamento, pois neste momento da narrativa Enjolras e Marius são personagens
equiparáveis. Ambos se encontram na liderança da revolução, sob o mesmo nível de
motivação. Já a câmera da cena que mostra o povo traz um primeiro plano, com câmera
contra-plongée e uma perspectiva de não centralidade. Assim como o restante do filme a
sequência de cenas não possui coreografia e nas cores predominam tons de azul, cinza e
marrom.
127

ABC CAFÉ/RED, BLACK

Em Red, Black os jovens cantam sobre a revolução ao mesmo tempo que o


personagem Marius deseja cantar sobre um novo amor, Cossette. O vermelho do sangue
se torna a cor do desejo.
A melodia do refrão de Red, Black aparece no instrumental da canção antes de ser
de fato cantada pelo intérprete, o personagem Enjolras. Na sequência a seguir se
encontram excertos da partitura em que é possível observar este momento da canção.

Figura 57 Recorte da partirura que mostra a melodia do refrão sendo tocada antes de ser cantada
128

Figura 58 Destaque da melodia do refrão cantada

Nas duas figuras acima a parte em que existe um intérprete cantando é apresentada
com uma marcação em azul, enquanto a marcação em amarelo mostra as linhas em que o
instrumental se encontra. O destaque vermelho indica o refrão de Red, Black, que, como
comentado, é relevante tanto na canção quanto ao longo do musical como um todo. Na
figura 57 a melodia do refrão é tocada pelo instrumental logo antes da entrada do
personagem Enjolras. O instrumental apontado é reconhecível como de fato a melodia do
refrão ao se comparar com a parte circulada em vermelho na figura 58. Ambas partes
circuladas em vermelho (na figura 57 e 58) mostram a melodia do refrão desta canção. O
personagem de Enjolras lidera o grupo de jovens na revolução e o fato da melodia do
refrão ser apresentada logo antes de iniciar sua parte cantada é significativo para a
constituição do personagem como líder do movimento/luta e da melodia/canção em
questão.
129

Figura 59 Cena da morte dos jovens

Ao longo do musical a melodia desta canção se torna como um hino para os


envolvidos ativamente na revolução. Na cena em que os últimos personagens engajados
na barricada (que já havia sido tomada) morrem ouve-se ao fundo a melodia de Red, Black
sendo tocada. Esta canção se torna assim um grito de guerra, pois os líderes morrem sob
a execução deste hino. O fotograma acima mostra o personagem Enjolras, em um
enquadramento plongée, que apresenta sua morte vista de cima para baixo. O personagem
morre vestido com as cores da canção (Red, Black), de forma a perpetuar a canção na
construção visual da cena; ainda que não cante, o personagem interpreta a canção ao se
fazer presente em preto e vermelho na composição da cena.
Este capítulo discutiu canções solos (Ato 1) e em grupo (Ato 2) de forma a
escolher recortes significativos que se relacionassem com a constituição do filme como
um todo. As análises aqui apresentadas não buscaram esgotar as possibilidades de
relações encontradas nas canções do corpus, mas, sim, representar o filme musical em
questão como gênero discursivo, em suas relações móveis e únicas.
130

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme proposto, a análise dialógica específica de Les Misérables refletiu


acerca da constituição da arquitetônica do filme musical como gênero discursivo,
reconhecido como intergenérico. A partir da discussão sobre a trajetória do filme musical
norte-americano foi possível analisar como a obra cinematográfica em questão dialoga
com outras produções, de diferentes períodos; assim como as relações estabelecidas entre
o filme e o teatro musical. O filme-corpus escolhido apresentou características
diferenciadas com relação a outros filmes musicais, como, por exemplo, a ausência de
cenas com danças, traço recorrente em muitas produções cinematográficas musicais. No
entanto, ainda que não possua dança, as movimentações no interior do filme são ritmadas
e constituem a composição de cada cena junto com a interpretação das canções. Os traços
únicos de Les Misérables demonstram a renovação do gênero, pois, conforme o Círculo:
“Essa ligação orgânica do sentido e do signo [...] é criada para depois ser destruída e
recriada, porém, já em novas formas, nas condições de um novo enunciado.”
(MEDVIÉDEV, 2012, p.184).
A presente pesquisa reflete o caráter móvel (ou em movimento) da produção de
um dado gênero (no caso, uma tese), uma vez que, se observados o projeto de pesquisa
inicial e a construção (concreta) do texto aqui apresentado, percebem-se as modificações
entre o proposto/esperado e o encontrado/discutido. Os objetivos gerais e específicos
foram contemplados no interior da pesquisa; no entanto, o olhar anterior à obra (no
sentido de “colocar as mãos na massa”) não pôde prever os resultados que foram
alcançados.
O filme musical Les Misérables (2012), Tom Hooper, é o exemplar de gênero
discursivo que fomenta a discussão teórica e a análise sob a ótica dos estudos do Círculo;
no entanto, este trabalho não possui o foco unicamente nesta obra cinematográfica, mas,
sim, em seu caráter musical, o que a torna (ou não) um exemplar deste gênero, o que a
aproxima ou distância das produções feitas na indústria norte-americana desde que o
filme musical foi criado.
Para se pensar este possível ‘lugar’ de Les Mis entre as produções musicais e, mais
além, pensar o ‘lugar’ dos filmes musicais norte-americanos em geral cabe aqui a
referenciação a um outro filme considerado musical. Dancer in the Dark (2000)
Dançando no Escuro foi colocado na lista do capítulo de contexto; no entanto, será
comentado somente aqui justamente por seu caráter crítico em relação aos filmes
131

musicais. Na história de Dançando no escuro uma personagem cega é condenada


injustamente à pena de morte, e em diversas momentos a tragicidade e o drama da
personagem são interpelados por cenas musicais.

Figura 60 Cenas de Dançando no escuro

Na interpretação destas canções a personagem reforça várias vezes que adora


musicais norte-americanos, pois neles “tudo acaba bem” e “todos são felizes”. Na
sequência acima a personagem comenta que em musicais nada de horrível acontece. Na
cena em que a personagem vai presa (por um crime que não cometeu) a canção
interpretada por ela diz que “isto é um musical, e sempre há alguém para me pegar quando
eu cair”; durante a coreografia ela cai nos braços da polícia. Todos estes momentos do
filme constroem o sentido de que musicais são lugares de pessoas satisfeitas e plenas, e
essa discussão é importante para se considerarem as caraterísticas do filme musical como
gênero discursivo.
132

A pesquisa a respeito desse tipo de produção cinematográfica possibilitou a


percepção de que musicais carregam ainda as marcas da época considerada “áurea” do
gênero (fílmico) nos Estados Unidos (anos 50 e 60). No entanto, estes traços encontrados
nestas décadas, que, de fato, são as décadas em que mais se produziram musicais no
cinema norte-americano, não delimitam o gênero. O filme musical é composto por
canções; porém, não possui conteúdo necessariamente superficial ou alegre/suave. Os
Miseráveis é um exemplo de que o tema no interior de um musical não se restringe às
questões leves e dançantes. Desta forma a pesquisa sobre filme musical como gênero
discursivo buscou aqui discutir os traços tidos como comuns, assim como os inovadores
e/ou únicos, uma vez que musicais não são sempre ‘suspensos no tempo’, ‘distantes da
realidade’, ou artificiais, são a construção de um enunciado que se modifica e se renova
a cada novo exemplar do gênero.
133

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136

ANEXOS

Estágio no exterior: Doutorado sanduíche em Nova Iorque

Durante os meses de maio a agosto de 2017 a aluna efetuou estágio em Nova


Iorque por meio de bolsa CAPES PDSE sob a orientação do Professor Peter Hitchcock38,
no Graduate Center da City University of New York. Este intercâmbio se deu afim de
enriquecer a pesquisa, coletar dados sobre a produção do filme musical e sobre o teatro
musical da Broadway, uma vez que cinema e teatro se encontram em constante relação
no que se refere ao musical. O enunciado aqui escolhido como corpus e ilustração do
gênero possui esse cruzamento de linguagens (teatral e fílmica) em sua gênese,
especificamente com relação à produção da canção (não gravada em estúdio, mas
executada no ato de gravação do filme, como se faz no teatro).
O plano de pesquisa para o doutorado sanduíche foi constituído de quatro meses
de coleta de dados e escrita, e contemplou os objetivos a seguir:
Objetivo Geral
● Refletir acerca da constituição da arquitetônica do filme musical como gênero
discursivo, constituído de maneira intergenérica, pensando-o em sua relação com o teatro
musical e em especial a Broadway.
Objetivos Específicos
● Coletar dados sobre teatro musical e sobre a Broadway considerando-os em relação
com o filme musical norte americano;
● Aprofundar o estudo teórico do Círculo de Bakhtin, em especial, as noções de cultura
e estética;
● Compreender, por meio da análise dialógica discursiva, de que maneira os diversos
gêneros se constituem no filme musical escolhido, reconhecido como intergenérico;
● Analisar a questão da entoação na encenação como elemento inovador da produção
cinematográfica Les Misérables, em diálogo com o teatro musical e a performance
cancioneira.

38
O professor Peter Hitchcock trabalha com cultura e Bakhtin no Graduate Center da CUNY e por isso foi
escolhido com co-orientador estrangeiro desta pesquisa: https://www.gc.cuny.edu/Page-
Elements/Academics-Research-Centers-Initiatives/Doctoral-Programs/English/Faculty-by-Field/Peter-
Hitchcock
137

Durante os meses em Nova Iorque a aluna pôde cumprir os objetivos propostos e


a coleta de dados sobre teatro musical se deu especialmente com as peças assistidas. No
período da bolsa a doutoranda compareceu a sete peças musicais diferentes na Broadway
e os ingressos podem ser observados a seguir (as peças são, respectivamente: Cats,
Phantom of the Opera, Sunset Boulevard, Hamilton, On your feet, Chicago e Anastasia).
A escolha destas peças (e não outras) se deu por meio das oportunidades de se conseguir
ingressos com valores mais acessíveis. Visto que a doutoranda teria um tempo limitado
para assistir ao maior número de peças possível foram priorizadas as formas de aquisição
dos ingressos que estivessem com preços mais baixos. A maioria dos ingressos foram,
desta forma, adquiridos por meio das loterias.
138

Figura 61 Ingressos dos musicais assistidos em Nova Iorque

Esta pesquisa contribuiu para a formação da aluna e colaborou para a construção


de uma parte significativa da tese, uma vez que proporcionou contato com a produção do
teatro musical e com um professor que, com um olhar da área dos estudos culturais e
sendo bakhtiniano, pôde em Nova Iorque, ajudar a refletir sobre o estudo do gênero
musical, proposta central da pesquisa.
Além disso, este plano iniciou uma parceria entre professores e alunos
pesquisadores do Círculo de Bakhtin atentos à questão da arte e da mídia, especialmente,
de produções cinematográficas e teatrais, nos Estados Unidos e no Brasil, por meio do
GED – Grupo de Estudos Discursivos, com o contato entre a orientadora, a aluna e o co-
orientador, o que pode possibilitar a formação de uma rede de pesquisa entre grupos com
estudos especialmente voltados a enunciados de materialidades verbivocovisuais, como
tem sido pesquisado por Paula.
Os resultados deste estágio serão divulgados em forma de publicações de artigos
e capítulos de livros, escritos individualmente e em parceria com os orientadores.

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