Canções No Cinema Les Mis
Canções No Cinema Les Mis
Canções No Cinema Les Mis
Araraquara - SP
2018
NICOLE MIONI SERNI
Bolsa: CNPq
Araraquara - SP
2018
NICOLE MIONI SERNI
À Deus.
Aos meus pais e minha família pelo apoio cuidadoso e sempre presente.
À Luciane de Paula, pela jornada de tantos anos (oito, certo?) em que eu pude aprender
e me inspirar cada dia mais! Pessoas como você, Lu, são raras e eu só tenho a agradecer
pelo privilégio de tê-la como orientadora durante todos esses anos. Nunca me
esquecerei do dia em que recebemos a resposta positiva da FAPESP para a bolsa de IC.
Naquele dia o parecerista disse que para a orientadora faltava apenas um grupo de
estudos expressivo na área, e você disse que ele “ia ver o grupo que você iria iniciar!”.
E hoje estamos aqui, com o GED repleto de pessoas, pesquisas, eventos grandemente
elogiados e uma história de muitas conquistas, graças a você! É um prazer enorme ser
testemunha de tudo que você alcançou e serei eternamente grata por ter me permitido
estar ao seu lado. Obrigada de coração e conte sempre comigo!
Minhas amigas e amigos na caminhada acadêmica (em especial Jessica, Marly, Bárbara,
Marcela, Tati, Cezinaldo, Radamés, Rafael, Thiago e Camila)
Amigos e amigas do GED (em especial Ana Beatriz, Gi, Natasha, Toninho e Jonathan)
Meus amigos do PSDE (de NYC para vida) Amanda, Laisy, Bruno e Lucas. E ao
professor co-orientador durante o estágio, Peter Hitchcock.
À professora Eunice, que já no segundo ano de graduação me mostrou que era possível
unir cinema e pesquisa no curso de Letras.
Às professoras de Araraquara com as quais tive aulas que muito agregaram à pesquisa,
Marina, Renata, Rosário e Lu.
Ao Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa.
Ao CNPq pela bolsa fornecida.
À CAPES pela bolsa de doutorado sanduíche durante os quatro meses em Nova Iorque.
Aos professores da banca da defesa: Luciane de Paula, Maria da Penha Casado Alves,
Marco Antonio Villarta-Neder, Odilon Helou Fleury Curado e Marina Celia Mendonça.
“And in truth, whenever a number commences in any musical,
the world does become a stage.” (FEUER, 1993, p.24)
RESUMO
Esta pesquisa se propôs a analisar o filme musical Les Misérables (2012), de Tom
Hooper, sob a ótica dos estudos do Círculo Bakhtin, Medviédev, Volochinov, tendo como
objetivo refletir, por meio de uma análise dialógica, acerca da constituição da
arquitetônica do filme musical como gênero discursivo, em sua forma, conteúdo, estilo,
produção e circulação, conforme as ideias do Círculo. A partir de Les Misérables este
trabalho buscou investigar a especificidade do gênero filme musical assim como analisar
os diálogos entre o filme escolhido e outras obras musicais produzidas no cinema norte-
americano. A canção, aqui também considerada como um gênero, é elemento constitutivo
do filme escolhido e sua presença é de extrema importância na formação do musical,
configurando-o como intergenérico. O filme musical norte-americano é marcado por
elementos de canto e dança que se consolidam especialmente na era de ouro (anos 50 e
60). Les Miserables apresenta características diferentes de outros filmes musicais, como,
por exemplo, a temática (a partir da obra de Victor Hugo), a fala cantada constante (e não
apenas canto em momentos performáticos), e a ausência de dança (ainda que as
movimentações sejam ritmadas). Estas especificidades do gênero discursivo filme
musical foram discutidas ao longo desta pesquisa a partir da trajetória do filme musical,
sendo possível, deste modo, analisar como a obra cinematográfica em questão dialoga
com outras produções, de diferentes períodos; assim como as relações estabelecidas entre
o filme e o teatro musical da Broadway.
This research aims to analyze the musical film Les Misérables (2012), by Tom Hooper,
within the perspective of the Circle Bakhtin, Medviédev, Volochinov studies, having as
objective to reflect, by a dialogic analysis, about the constitution of the architectonic of
the musical film, as a discursive genre in its form, content, style, production and
circulation, based on the ideas of the Circle. With the study of Les Misérables this work
focuses on the investigation of the specificity of the musical film genre as much as analyze
the dialogs between the musical film, and other musicals produced in the North American
cinema. The song, here as well considered as a genre, is an element that constitutes de
movie chosen and its presence is of extreme importance in the formulation of the musical,
which is built with intergenres. The North American musical film is marked by elements
of singing and dancing that are consolidated in the golden era (the 50’s and 60’s). Les
Misérables presents characteristics which are different from other musical films, such as,
for example, the thematic (based on the novel by Victor Hugo), the constant singing (and
not just singing in performatic contexts), and the absence of dance (even though every
move is punctuated). These specificities of the musical film as a discursive genre were
discussed along this research from the trajectory of the musical film, making it possible
to analyze how the cinematographic work in focus dialogs with other productions, from
different periods; such as the relations stablished between the movie and Broadway
musical theatre.
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 12
1 GÊNERO DISCURSIVO E CONTEXTO: O FILME MUSICAL ...................................................... 21
1.1 Gênero discursivo .......................................................................................................... 22
1.1.1 Filme ........................................................................................................................... 24
1.2 Musical .......................................................................................................................... 25
1.2.1 Histórico: uma visão panorâmica ............................................................................... 26
1.3 A relação com o filme-corpus Os Miseráveis ................................................................ 65
2 A PEÇA MUSICAL .................................................................................................................. 69
2.1 A Broadway ................................................................................................................... 69
2.2 Relação vida e arte: teatro musical e as peças em Nova Iorque ................................. 72
3 O VERBIVOCOVISUAL E A CANÇÃO ...................................................................................... 85
3.1 Verbivocovisualidade .................................................................................................... 85
3.2 Canção ........................................................................................................................... 87
4 MÉTODO DIALÉTICO DIALÓGICO E CONCEITOS DO CÍRCULO .............................................. 91
4.1 O ENUNCIADO, O SUJEITO, A IDEOLOGIA E A ARQUITETÔNICA ................................... 92
5 LES MISÉRABLES ................................................................................................................... 96
Ato 1. Canções em foco:...................................................................................................... 96
Ato 2. Canções em foco:.................................................................................................... 116
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................ 130
Referências bibliográficas ......................................................................................................... 133
ANEXOS ................................................................................................................................. 136
Estágio no exterior: Doutorado sanduíche em Nova Iorque ............................................ 136
12
INTRODUÇÃO
1
Destaca-se aqui que somente nesta pequena parte do texto a pesquisadora escreve em primeira pessoa,
pois discorrerá sobre experiências pessoais.
2
O conceito de enunciado é pensado nesta pesquisa também sob a ótica dos estudos do Círculo e será
abordado com mais detalhes no capítulo quatro.
13
a um contexto histórico e social, mas, além dessa ligação, encontra-se sempre uma marca
ideológica, algum valor é representado em cada signo da interação verbal. “Compreender
um signo consiste em aproximar o signo apreendido de outros signos já conhecidos; em
outros termos, a compreensão é uma resposta a um signo por meio de signo.” (idem, p.
34).
Para o Círculo a concepção de sujeito também é importante nos estudos
discursivos. Para esse grupo de estudiosos, o sujeito é constituído pelo outro, que também
é sujeito e se constitui a partir de outros e do “eu”. Essa relação eu – outro é a própria
composição do sujeito. O sujeito é eu e outro e essa relação, para os estudos do Círculo,
é responsiva e responsável:
de uma dada construção como gênero. Para que um enunciado seja considerado gênero
discursivo, Bakhtin aponta três marcas que todo gênero contém: forma, estilo e conteúdo.
Na forma são pensadas as diversas maneiras como as construções aparecem,
enquanto no estilo e no conteúdo transparecem, respectivamente, o sujeito autoral e o
tema. O estudo da constituição dos gêneros discursivos, conforme o filósofo russo, leva
sempre em consideração a singularidade de cada gênero em particular (forma
composicional; material/conteúdo/tema; estilo-marca identitária, que pode ser do autor
ou do próprio gênero).
O conceito de esfera, para os estudos do Círculo, leva em consideração a
produção, a circulação e a recepção de um gênero em particular. A produção seria um
dado projeto; enquanto a circulação seria a maneira como ele é executado em determinada
esfera; já na recepção considera-se o público, ou seja, a demanda e a leitura do projeto
produzido. A esfera é também um dado campo de conhecimento, como, por exemplo, a
esfera de um sujeito pode o levar a agir de certa maneira, ética, naquele determinado
campo. A ética não é compreendida da maneira kantiana, universal, mas é constituída de
acordo com o lugar do sujeito enunciado, de forma concreta.
No estudo dos gêneros discursivos, a esfera de atividade ajuda a pensar sobre onde
um gênero ou discurso atua e onde nasce, de onde ele se alimenta e qual o seu contexto,
uma vez que todo discurso acontece num espaço e tempo específicos, vindos de algum
sujeito em especial. Da mesma maneira que o gênero está no social, ele nasce numa esfera
de atividade.
Bakhtin também analisa os gêneros em dois grupos: primários e secundários.
Conforme o filósofo russo:
Discute-se, deste modo, sobre a dialética por ela se assemelhar à dialética clássica
de afirmação, negação e síntese sem, necessariamente, concluir-se no terceiro elemento,
mas entendendo-o como nova afirmação, logo, reinício de um novo ciclo, sem fim,
sempre em movimento, em espiral.
A dialógica calca-se no enunciado responsivo por afirmar que, conforme os
escritos do Círculo, a “primeira” afirmação (ou negação) nunca será, de fato, um
enunciado inicial, mas, sim, já a resposta a enunciados outros que foram proferidos antes
e serão produzidos depois dele. A anti-tese, por sua vez, é uma resposta ao enunciado
anterior (tese) e estimula a produção de enunciados posteriores (síntese/nova afirmação),
de maneira a dialogar com aquilo que foi e com o que se espera ser respondido. A síntese
também se constitui como uma outra resposta, em diálogo com a anterior e com as
posteriores a ela. Ela não finaliza o processo. Ao contrário, ela o mantém em movimento,
com enunciados ininterruptos.
Quando se descreve os elementos de um exemplar de gênero, como, no caso, o
gênero filme musical, abordam-se as interrelações entre seus elementos e se identificam
efeitos de sentido nele produzidos, o que remete à interdiscursividade3 do e no objeto,
bem como, no caso do corpus desta pesquisa, à construção da arquitetônica do musical
Les Misérables.
Ao se seguirem implicitamente as etapas explicitadas acima, não se pode perder
de vista o caráter totalizante da pesquisa, uma vez que, segundo Paula e Stafuzza (2010),
a teoria bakhtiniana é “inclassificável”. Logo, a ênfase é a interseção, necessária e
positiva, entre essas etapas, dado que, a fim de preservar a unidade do discurso, o analista
3
Ressalta-se aqui o ponto de vista de interdiscursividade conforme pensado em FIORIN, J. L.
Interdiscursividade e intertextualidade. In BRAIT, B. (org.). Bakhtin – outros conceitos-chave. São Paulo:
Contexto, 2006.
20
deve ter presente em seu olhar os vários aspectos que constituem o objeto de pesquisa, à
luz do universo de sua discursividade e genericidade.
O encontro da vida e da arte permite a percepção de que uma complementa a outra
o tempo todo, assim como os gêneros primários e secundários ou como o próprio sujeito,
que se constitui somente na relação com o outro sob a perspectiva bakhtiniana. O diálogo
e o aspecto inacabado (ou em acabamento) do sujeito e do discurso são reflexões
aprofundadas pelos estudos do Círculo, de maneira a provocar o ato responsivo de
reconhecimento das particularidades da composição de cada discurso, na arte ou na vida.
Não apenas filme musical, mas diversos outros gêneros (contemporâneos ou não) podem
ser pensados em suas singularidades e relações dialógicas, sempre levando em
consideração que a pesquisa não esgota a espiral de ligações dialógicas de cada
enunciado, mas a faz crescer e ganhar novas (re)forma-ações únicas. Conforme
comentado, nos estudos de Bakhtin, os gêneros discursivos são compreendidos como
relativamente estáveis, ou seja, não existe gênero acabado, fechado, mas em processo de
acabamento. Da mesma maneira, a análise aqui proposta, a ser pensada a partir de Les
Misérables, não busca finalizar um acabamento para este gênero, mas, sim, estudar as
particularidades do corpus, como exemplar do gênero filme musical, com seus diálogos
e relações, sempre em movimento.
21
Os estudos do Círculo não compreendem os gêneros deste modo, pois assim haveriam
regras prontas para o gênero antes mesmo deste se formar. Para Bakhtin os gêneros
discursivos são relativamente estáveis, uma vez que se deve considerar tanto suas formas
(relativamente) fixas quanto as características únicas e irrepetíveis de cada novo
enunciado. Bakhtin afirma que
A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são
inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em
cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que
cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um
determinado campo. (2011, p. 262)
4
Ao se referir aqui ao Círculo de Bakhtin este trabalho considera as diversas obras produzidas por um grupo
de autores do mesmo Círculo, entre eles Bakhtin, Medviédev, Volochinov, sem ter o objetivo, neste caso,
de designar a autoria específica de devidas ideias ou conceitos, mas, sim, considerando a obra do Círculo
como um todo de produção a ser estudada e discutida.
23
únicas a cada novo exemplar deste gênero. Não existe, deste modo, uma receita pronta,
com exigências fixas, em que todo gênero deve se encaixar, mas, sim, formas
relativamente estáveis, em que o gênero apresenta particularidades que se repetem ao
mesmo tempo que apresenta as novas. Sendo todo enunciado, conforme o Círculo, único
e irrepetível, cada exemplar de um devido gênero sempre apresentará traços novos.
Nesta pesquisa não apenas o filme musical será reconhecido como gênero discursivo,
mas também a canção. Esta que, por si só, já intergenérica, pois possui letra e música em
sua composição. Assim como a canção, o filme musical é intergenérico, pois para sua
formação são utilizados diferentes gêneros. Ao se falar aqui em intergenericidade este
trabalho considera não apenas a mera incorporação de um gênero no outro, um simples
reconhecimento, mas um gênero como constitutivo do outro. Para a constituição do
gênero canção música e letra não são apenas outros gêneros no interior da canção, são a
própria composição deste gênero. No filme musical a canção ou a dança, por exemplo,
são parte da construção do filme, se retirados, o gênero inexiste. São, portanto, parte
integrante da constituição do gênero, que é intergenérico.
Para o Círculo os gêneros se dão em um devido espaço e tempo e circulam em esferas
de atividade específicas. A discussão sobre o filme musical aqui considera, portanto, o
gênero em sua forma, estilo e conteúdo, bem como sua produção, circulação e recepção
dentro das esferas em que se encontram.
Os gêneros podem ser divididos entre primários e secundários, conforme discute
Bakhtin. Esta divisão não visa à hierarquização nem à separação de melhor ou pior, ela
visa ao reconhecimento de particularidades entre estes gêneros. Enquanto os gêneros
primários estão ligados ao cotidiano e ao imediato, os secundários são os gêneros das
esferas da ciência ou das artes, por exemplo. De formação mais complexa, os gêneros
secundários se constroem a partir dos primários, pois os gêneros primários “que integram
os complexos, aí se transformam e adquirem um caráter especial: perdem o vínculo
imediato com a realidade concreta.” (BAKHTIN, 2011, p. 263)
O gênero que se considera o filme musical, neste trabalho, é o gênero discursivo,
conforme discutido pelo Círculo. No entanto, o vocábulo gênero também será pensado
aqui conforme as divisões entre os tipos de filmes no cinema como “negócio”. Sendo o
filme um enunciado de produção mercadológica, para a indústria cinematográfica o
gênero “ajudou a estabelecer padrões de filmes, fator extremamente desejável por
representar economia de escala e direcionamento determinados por produções para
plateias específicas” (CUNHA, 2012, p.20) O gênero na forma em que é compreendido
24
pela indústria se mostra como “uma estratégia para fidelizar suas plateias e minimizar
seus próprios custos” (idem, p.24) Percebe-se, desta forma, que o filme musical é aqui
pensado em sua circulação e recepção, ou seja, em sua relação com a vida:
1.1.1 Filme
Ao se pensar sobre o filme como um enunciado a ser analisado percebe-se que
este possui particularidades, traços que se repetem, a cada exemplar de filme.
Para Bakhtin o gênero discursivo contém, como comentado, forma, conteúdo,
estilo, e apresenta uma dada esfera de atividade em que circula e um tempo e espaço em
que é produzido. Como relativamente estáveis, os gêneros apresentam as características
comuns, que se repetem, e as inovadoras, que mantém o gênero vivo, sempre me processo
de renovação.
O filme pode ser considerado como gênero a partir do momento que se pensa neste
como um enunciado, um objeto a ser analisado, que detém uma estrutura específica,
característica do gênero, assim como contém outras novas, a cada filme produzido. A
estrutura do filme musical trabalha com a canção, mas não entra apenas para confirmar
algo do conteúdo e da forma do gênero, mas, sim, como parte do conteúdo e da forma do
filme.
O musical é um gênero discursivo, e entre seus traços constitutivos está a canção.
Muitos musicais possuem dança também, ou seja, as personagens se expressam tanto por
canções quanto por movimentações e coreografias.
No desenvolvimento desta pesquisa não há interesse em subdivisões, a ideia de
“sub”, de um dentro do outro, não é relevante para a análise aqui feita. O objetivo deste
trabalho é compreender quais características norteiam o musical, o que ele apresenta de
25
especial, de peculiar, que, ao mesmo tempo em que não deixa de ser filme, como gênero
discursivo, também carrega traços característicos de musicais. Desta forma o musical é
gênero filme, porém não qualquer filme, porque tem suas peculiaridades. O trabalho com
a canção e com a dança estão entre as características marcantes do filme musical, e estes
traços podem ser entendidos historicamente, como será feito a seguir.
1.2 Musical
Pensar a trajetória do filme musical no cinema 5não busca aqui uma mera
descrição histórica, mas, sim, uma discussão com foco na estrutura do gênero, que se
forma num contexto que não pode ser ignorado, pois este por vezes se mantém, e por
vezes se modifica. Assim também a história e o homem se modificam, conforme surjam
novas ferramentas tecnológicas; algumas características se renovam e outras vão se
tornando menos comuns.
O filme musical surgiu juntamente com o filme sonoro. Quando a produção
cinematográfica passa a dominar o advento do som, é feito um filme considerado o
primeiro musical, O Cantor de Jazz (1927), de Alan Crosland. Sobre o nascimento do
filme sonoro (e do musical), Cunha comenta que:
Considerado um fenômeno gerado inicialmente pela tecnologia que conseguiu
reunir imagem e som – e apresentado oficialmente através de O Cantor de Jazz
(1927), os filmes musicais rapidamente se aprimoraram com roteiros
pertinentes, artistas carismáticos, produções suntuosas, música arrebatadora e
dança envolvente. Além de divertir, tal força imagética e sensorial conseguia
projetar esperança nos espectadores, posto que na tela houvesse algo de bom e
positivo, desejado e sonhado, de tal maneira que este caráter utópico e
escapista marcou – e perpetuou – o gênero musical já em seus primórdios.
(2012, p.25)
Dentro do gênero “industrial” musical, filmes somente com dança (sem “falas
cantadas”) também são considerados musicais. Porém, dentro dos objetivos desta
pesquisa e na seleção de filmes a serem apontados e discutidos neste capítulo, terão maior
relevância e destaque as obras musicais que possuem essencialmente o canto, ou a canção
em sua construção. Esta escolha se justifica a partir do ponto de vista de que este trabalho
busca observar como se constrói o gênero discursivo canção no interior do musical. É
claro que não há apenas o gênero canção no interior destas obras, no entanto os filmes
5
O recorte aqui feito tem foco no cinema norte-americano e esta escolha foi feita com base nas produções
de filmes musicais às quais se tem mais acesso no Brasil. Sendo Hollywood uma indústria norte-americana
expressiva pensa-se aqui, portanto, a especificidade a partir da expressividade de produção. Reconhece-se
nesta pesquisa que filmes musicais são efetuados também para além das produções norte-americanas, no
entanto, para o trabalho torna-se necessário um recorte e este foi o escolhido com base na grande indústria
de cinema que os EUA contêm, assim como a presença da Broadway e sua importância para a história do
teatro musical.
27
musicais apresentados neste panorama histórico têm em seu interior cenas com o gênero
canção. Não há nenhum sem canção. Assim como não serão discutidos aqui os filmes
considerados “repletos de canções”, mas que não aparecem nos filmes como falas. Isso
ocorre em filmes biográficos sobre cantores, por ex. Este tipo de filme é tomado em
grande parte por performances, por canções, porém estas aparecem apenas dentro deste
contexto de apresentação e não como falas das personagens, como palavra cantada.
A seguir se encontra uma tabela, construída a partir dos filmes musicais mais
expressivos de cada década, ainda que entre eles se encontrem alguns filmes em que
prevalece a dança, todas as obras abaixo citadas são importantes para se considerar a
formação do gênero filme musical ao longo dos anos no cinema.
Década de 20
Década de 30
1935
Década de 40
1948 O Pirata
Direção de Vincent Minelli
Década de 50
1951
1955 Oklahoma!
Direção de Trevor Nun
1958 Gigi
Direção de Vincent Minelli
34
Década de 60
Can Can
1960 Direção de Walter Lang
1961
Amor Sublime Amor (West Side Story)
Direção de Robert Wise
1969
Alô Dolly (Hello Dolly)
Direção de Gene Kelly
36
1972
Cabaret
Direção de Robert Fosse
1978 Grease
Direção de Randal Kleiser
37
1979 Hair
Direção de Milos Forman
Década de 80
1982 Victor/Victoria
Direção de Blake Edwards
38
1983 Yentl
Direção de Babra Streisand
1983 Flashdance
Direção de Adrian Lyne
Década de 90
1996 Evita
Direção de Alan Parker
Anos 2000
2002 Chicago
Direção de Rob Marshall
2005 Os produtores
Direção de Susan Stroman
2007 Dreamgirls
Direção de Bill Condon
2007
Hairspray
Direção de Adam Shankman
2009 Nine
Direção de Rob Marshall
Anos 2010
2010 Burlesque
Direção de Steven Artin
2012 Os Miseráveis
Direção de Tom Hooper
Pois aceitar um enunciado não significa capturar seu sentido geral como
capturamos o sentido da “palavra de dicionário”. Entender um enunciado
significa entendê-lo no contexto da sua contemporaneidade e da nossa (caso
não coincidam). É necessário compreender o sentido no enunciado, o conteúdo
do ato e a realidade histórica do ato em sua união concreta e interna. Sem tal
compreensão, o próprio sentido estará morto, tornar-se-á um sentido de
dicionário, desnecessário. (MEDVIÉDEV, 2012, p.185)
6
Entre os críticos da área do cinema esta valorização da era de ouro é comum; porém, nesta pesquisa o
foco não se encontra no julgamento da era melhor ou pior para o filme musical, mas, sim, considerar este
período como maior produção, em questão de números de filmes de fato, e não em qualidade.
44
musicais expressivos em épocas diferentes. A partir daqui serão discutidos alguns dos
filmes que aparecem nesta tabela cronológica.
O primeiro filme considerado musical é O cantor de Jazz (1927), de Alan
Crosland. Esta é a primeira obra cinematográfica em que o recurso do som é utilizado, as
falas das personagens podem ser finalmente escutadas pelos espectadores. O filme é preto
e branco e as cenas faladas coincidem com os momentos de performance musical, as
canções aparecem, deste modo, quando a personagem principal se posiciona para
apresentar, de fato, um número. O filme é ainda uma transição, do cinema mudo para o
sonoro, pois as cenas misturam falas escritas com momentos em que se pode-se ouvir as
personagens falando. As canções não aparecem ainda, como será feito ao longo dos anos
com os filmes musicais, fora de um contexto de apresentação. As cenas com canto ou são
na sinagoga ou no palco, pois o “cantor de jazz” é um homem de família judaica, criado
para ser o cantor de sua sinagoga, que deseja ser cantor dos palcos, das apresentações
musicais e especialmente, do jazz.
As figuras acima mostram três momentos deste filme que transita entre o cinema
sonoro e o mudo. O primeiro quadro mostra uma cena característica de filmes mudos, em
que a fala aparece por escrito. Já no segundo e terceiros quadros são mostrados recortes
do filme em que há falas que podem ser escutadas, mas ainda estão diretamente ligadas
aos momentos de performance musical. 7 No quadro do meio, ao se sentar para tocar e
cantar a personagem principal estabelece um diálogo com sua mãe, e o espectador pode
escutar esta conversa. Enquanto no último quadro, a performance musical, a apresentação
de fato, também aparece nesta obra com o advento do som. Para Bilharinho: “O cinema,
que já era arte extraordinária antes desse filme, com ele, após ele e a futura utilização da
7
A pintura facial de Al Jolson na última figura faz referência ao Ministrel Show (Menestréis), um tipo de
teatro popular dos Estados Unidos em que artistas brancos se pintavam de negros em performances cômicas
e musicais.
45
Este filme se caracteriza por possuir dança e canto quase na mesma medida, mas
pendendo para a superioridade da dança. É também repleto de humor, e uma trama
delicada que marca o tipo de história desenvolvida no cinema musical desta época,
Ama-me esta noite (Love me Tonight), 1932, de Rouben Mamoulain, é mais um
exemplar dos anos 30, porém, neste caso percebe-se que a dança não prevalece, e, sim, o
canto.
46
O filme Agora seremos felizes (Meet me in Saint Louis), 1944, de Vincent Minelli,
é mais um trabalho com Judy Garland, só que agora já nos anos 40, com a atriz mais
adulta. O musical apresenta tanto canto quanto dança, mas as coreografias aparecem
apenas quando fazem parte de um contexto para a dança (como parte de uma festa, por
exemplo). Não há, desta forma, momentos de coreografia junto com canções fora do
contexto de apresentação ou performance. Ainda que possua canções marcantes, como
Have yourself a merry little christmas, este filme possui mais história com falas das
personagens do que com canto.
48
Figura 7 Cena em que “have yourself a merry little christmas” é cantada pela personagem de Judy Garland
Agora seremos felizes possui uma temática familiar com uma trama leve, marca
recorrente no gênero durante os anos 40, 50 e 60, pois
O diferencial nesta obra é que, além do sapateado “usual” e “esperado” para o tipo
de filme há também trabalho com ballet, e, por esta razão, as coreografias clássicas de
ballet são embaladas por músicas instrumentais eruditas. Conforme discute Bilharinho,
“Aí o cinema musical atinge um de seus grandes momentos, que o equipara, em
criatividade, planejamento, execução e desempenho, com o que de melhor se fez em
ópera, música e dança em geral.” (2006, p.67) O grande “clímax” do filme ocorre por
meio de um verdadeiro espetáculo de ballet, pois, “Como se trata de cena final,
50
As cenas com canções não são tantas, apesar do filme ser bem cantado. A
construção das performances musicais é diretamente ligada a cada cena, trazendo a letra
da canção como falas das personagens, seja em monólogos ou em diálogos.
Na década de 50 é criado o filme musical Dançando na chuva, de Stanley Donen
e Gene Kelly, que acabou por se tornar um dos grandes representantes do gênero com o
passar dos anos.
51
Todavia, não se pode perder de vista que é musical, com suas qualidades e
especificidades. Notadamente, porque não se constitui de simples soma de
sons, imagens e movimentos, mas, de seu amálgama e síntese para compor arte
diversa, cinematográfica, e, nos lindes de seus parâmetros, configurar um
gênero, o musical. Se se adicionar a isso, a circunstância de que a trama,
mesmo leve e levemente conduzida, revela (e por isso até certo ponto
desmistifica) a máquina de sonho hollywoodiana, e seus processos e, ainda,
simultaneamente, com beleza e desenvoltura, o filme mostra o outro lado, isto
é, a criação artística do espetáculo, da música, da dança e a capacidade de
improvisação e adaptação vertiginosa às novas conquistas da técnica, têm-se
algumas de suas virtualidades básicas. (2006, p.78)
Em 1964 a Disney lançou um filme musical com uma importante atriz do gênero:
Julie Andrews. O filme Mary Poppins, de Robert Stevenson, mistura animação com
filmagens das personagens. Esse cenário cria um ambiente de fantasia, típico das obras
da Disney. Esta obra, dentro do gênero musical, inova em sua forma, ao utilizar, por meio
da edição das imagens, os cenários de pinturas (com animações) juntamente com as
filmagens das personagens.
52
Figura 11 Cena de Mary Poppins em que se misturam animações com filmagens dos atores
O início do filme já traz uma canção. Uma boca gigante, em um fundo preto, canta
uma letra em que são citadas as personagens do filme que está para se iniciar. E ao longo
da obra cinematográfica as canções surgem fora de palcos, são iniciadas pelas
personagens como se fossem falas, que são, de fato, falas cantadas. Há também
coreografia ao longo do filme, e as interpretações das canções no interior do castelo (em
que a maior parte do filme se desenrola) tomam rumos mais fantásticos e aparentemente
fora da realidade. A narrativa em si é uma história que busca fugir ao oficial, portanto, as
canções, suas coreografias e letras não seguem um modelo clássico do gênero musical.
Algumas questões levantadas por Stam podem contribuir para refletir sobre esta obra
musical:
O filme assume uma atitude distante, ou uma espécie de intimidade?
Pressupõe um interlocutor de determinado sexo ou classe, e qual é sua atitude
em relação a esse interlocutor imaginado? Quais são os pressupostos do filme
em relação a nosso conhecimento, ou ideologia? Em termos retóricos, ele
seduz, admoesta, convence, encanta, colabora, implora ou intimida? [...] Qual
a relação entre os sujeitos falantes dos filmes, em termos de posição discursiva,
grau de intimidade, relação com outros personagens? Qual a sua relação
55
The Rocky Horror Picture Show se insere bem na discussão gerada a partir dos
questionamentos de Stam, pois é um exemplar do gênero filme musical que apresenta um
conteúdo ou tema que se difere do recorrente na construção do gênero ao longo dos anos.
A forma, a construção deste musical em questão, também é diferente, o que se une a um
estilo único. O locutor ou, no caso da obra cinematográfica, o espectador imaginado, se
encontra em um padrão da oficialidade, que compreende que certos papéis ou lugares na
sociedade são tomados por certos tipos de pessoas. Os valores colocados no filme são,
por sua vez, contrários aos do espectador esperado, levando ao choque com a construção
vigente ou “oficial” destes papéis (como o cientista, por exemplo). O travesti, que seria
na sociedade um lugar de exclusão, possui, na trama do musical, um lugar de destaque.
Este lugar de destaque pode ser estabelecido também pela entoação da personagem, que
ao interpretar as canções ao longo do filme coloca a voz de maneira firme e sedutora ao
mesmo tempo. Na performance da canção Sweet Transvestite, por exemplo, a personagem
do travesti alcança notas mais agudas e graves também, desenho sonoro e pertencente à
melodia da canção que marcam e confirmam, por sua vez, a posição de transexual.
Um musical expressivo dos anos 70 foi Hair. Com direção de Milos Forman, o
filme de 1979 é baseado na peça musical. Logo no seu início, a canção já está presente,
assim como o trabalho com a coreografia. É um filme repleto de canções, de falas
cantadas, as cenas sem canção são poucas. As letras das canções retratam polêmicas da
época, como o uso de drogas, a libertação sexual e a luta contra o preconceito racial. Todo
o universo da contracultura está presente ao longo do filme, assim como as
movimentações estudantis pela paz no Vietnã, uma vez que o filme se passa nos Estados
Unidos. O universo desta obra se relaciona muito com o filme musical de 2007, Across
the Universe, que também discute os temas correntes dos anos 60 e 70, e em ambos os
filmes há uma personagem do sexo masculino que é obrigada a servir o exército norte
americano.
56
Figura 14 Cenas, respectivamente, de Hair e de Across the Universe, em que a temática da guerra aparece.
Também dos anos 70, Jesus Cristo Superstar é um filme baseado na peça musical
da mesma época. O filme é de 1973 e foi dirigido por Norman Jewison. Com composições
(originais da peça musical) de Andrew Lloyd Webber, o filme é praticamente todo
cantado. Não há uma fala que não se torne logo em uma canção, ou fala cantada. Desde
a primeira cena do filme as falas das personagens são cantadas. Há coreografia também,
mas prevalece o canto. Mesmo quando a personagem parece apenas falar, sem estar
necessariamente cantando, há música acompanhando e logo se percebe que não é fala
somente, é canto.
Nos anos 70 surgem alguns filmes também com grande valor para a dança. A
dança, mais que coreografia, compõe o musical e nele (re)significa o enunciado (o filme)
como um todo. O ato de dançar (e se aqui considerando o ato como discutido por Bakhtin,
ato responsivo e responsável, que se difere da ação, que é mecânica) pode estabelecer
um posicionamento de uma personagem, por exemplo, como nos filmes Embalos de
57
Sábado a noite, ou Footlose, (que não possuem a canção, como comentado anteriormente,
mas são considerados musicais por possuírem a dança). Nestes filmes as personagens
assumem uma atitude de protesto por meio da dança:
A dança tornou-se, então, a fronteira da contravenção dos costumes e da
situação contra a qual lutavam – tanto em relação ao aspecto pessoal, como ao
social. Enquanto dançavam, criavam o embevecimento ante o estético e o
projetivo. Logo, o que mudou foi sua relação com a realidade. [...] Afinal,
como ser bem sucedido, como conquistar, como ser do jeito que a imagem era
– e é – projetada através da mídia de massa e da propaganda? Ou melhor, como
bradar a injustiça e a dificuldade frente a tais objetivos? Como gerar este
sentido? A resposta continuava a ser dada através da ação de seus
protagonistas: cantando e dançando. (CUNHA, 2012, p.34)
while at the same time moving in to address the performance directly to the spectator.”
8
(FEUER, 1993, p.28)
8
“Não importa qual seja a técnica, o efeito é o mesmo: constantemente lembrar o espectador que ele/ela
está vendo do ponto de vista do público do teatro, enquanto está, ao mesmo tempo, em movimento para
dirigir a performance diretamente ao espectador.” (tradução nossa)
59
performances apenas durante as apresentações do coral das freiras ou, no início, em que
a personagem principal aparece como cantora em Vegas.
Em 1996 o filme Evita, dirigido por Alan Parker é mais um exemplar de obras
baseadas em peças musicais, e que possuem composições de Andrew Loyld Webber.
Como as outras obras musicais do mesmo compositor, “Evita” se caracteriza por ser
extremamente cantado, tendo poucas falas sem o canto. Tanto coro quanto solo, as
personagens interpretam canções quase o tempo todo. A personagem de Antonio
Bandeiras, por exemplo, permanece como um narrador que conta/canta a história. Uma
característica marcante de musicais é a repetição de uma mesma melodia, ao longo do
filme, porém, com letras diferentes, como se fosse um “tema” musical recorrente. Esta
obra se relaciona de certa forma com Os Miseráveis pela demonstração de mobilização
popular, há cenas de protestos, em que as canções e tornam a voz do povo.
Nos anos 2000 alguns filmes musicais produzidos se destacam, como Moulin
Rouge (2001), Chicago (2002), Rent (2005) Dream girls (2007), Across the Universe
(2007) e Mamma mia (2008). Nesta época surgem revivals de musicais da Broadway,
filmes premiados como Chicago (2002), Os Produtores (2005), Rent (2005),
Dreamgirls – Em busca de um sonho (2007) e Haispray (2007) [...] Produções
impecáveis que, sob forte impacto de marketing, guardam o carisma da época
de ouro dos musicais. (CUNHA, 2012, p.35)
Algumas destas obras se destacam pelo trabalho com a canção de uma forma
diferenciada, que não se encontrava nos filmes das décadas anteriores. Em Moulin Rouge,
por exemplo, a maior parte das canções interpretadas pelas personagens são canções que
já existem, ou seja, compostas antes da existência do filme. Já Across the Universe e
Mamma Mia, além das canções utilizadas não terem sido compostas para o filme (como
ocorria na maioria dos musicais), estas composições pertencem a um
intérprete/compositor específico. Mesmo com particularidades inovadoras as referências
aos musicais clássicos permanecem, como em Moulin Rouge, em que há uma cena de
dança que faz referência à coreografia de Gene Kelly em Cantando na Chuva.
60
No filme de 2007, Across the Universe, todas as canções utilizadas na obra são
composições da banda The Beatles, enquanto a construção de Mamma Mia se dá apenas
com canções do grupo Abba. Sobre os filmes com obras de apenas um compositor,
comenta Cunha:
Outra vertente observada no período introduz um tipo de musical que atinge
tanto os admiradores do gênero como aqueles de um determinado tipo de
música. Baseados em obras anteriormente apresentadas em teatro e buscando
um espectador mais maduro, surgem no horizonte do gênero filmes musicais
narrativamente construídos sobre a obra de artistas reconhecidos, costurando
os versos de canções como diálogos e de fato se constituindo em verdadeiros
tributos, começando por Moulin Rouge (2001) – este que homenageia o gênero
musical com sua instigante produção visual e inúmeras referências
cinematográficas -, passando por Across the Universe (2007), baseado nos
Beatles, Mamma Mia! – o filme (2008), baseado nas músicas do conjunto
sueco ABBA, até Nine (2009) que reverencia o cinema italiano e ao diretor
Federico Fellini.(2012, p.36)
Observa-se então que obras como Across the Universe e Mamma Mia inovam no
conteúdo, por construírem a narrativa apenas com canções de um único compositor. Em
Across the Universe uma das marcas principais do musical, a dança, aparece muito pouco,
porém, em Mamma Mia muitas cenas são construídas com coreografias.
61
Estas características dos gêneros discursivos são férteis para discussões acerca da
construção de enunciados específicos, como aqui é pensado o filme musical, porém, ao
se considerarem as ideias do Círculo, esta pesquisa não busca “desmembrar” forma, estilo
e conteúdo, mas pensá-los individual e coletivamente ao mesmo tempo, no todo do
enunciado, conforme discute Medviédev: “Assim, na arte, o significado é absolutamente
inseparável de todos os detalhes do corpo material que a encarna.” (2012, p. 54). A
construção dos enunciados-filmes e, em especial, de Os Miseráveis, são deste modo uma
discussão importante para esta pesquisa. Ainda que focada em um filme-corpus
específico, todas as transformações do filme musical discutidas nesta sessão contribuem
para o entendimento da construção do gênero.
9
“Um impulso dominante nos filmes musicais parece ser congênito: o desejo de capturar em celuloide a
qualidade do entretenimento ao vivo. Ainda também da infância, o sonho do imediato veio contra a
realidade da verdade sobre a tecnologia: o filme não é uma mídia ao vivo.” (tradução nossa)
66
Uma marca comum ao gênero filme musical é a presença de canções que foram
compostas para o musical em si, e não canções preexistentes que foram inseridas no filme;
assim também em Os Miseráveis, as canções foram todas compostas especificamente para
a obra.
A temática do filme em questão não se insere nos conteúdos mais frequentes em
filmes musicais. Grande parte da produção dentro deste gênero trata de questões mais
leves e utópicas, em que as personagens dançam e cantam por meio de performances
virtuosas e chamativas. Já em Os Miseráveis o tema coloca as personagens em situações
de decadência e sofrimento. Conteúdo que em nada se parece com o dos musicais
canônicos repletos de sapateado e brilho nas roupas. Este caráter não deve ser considerado
precisamente inovador, uma vez que outros filmes foram produzidos com temáticas
diferenciadas também antes dele (entre os exemplos anteriormente citados estão The
Rocky Horror Picture Show, Sweeney Todd, Across the Universe, etc, que possuem
conteúdos incomuns historicamente dentro do gênero filme musical).
Alguns críticos de cinema já discutiram os possíveis tipos de filmes musicais,
entre eles, Thomas Schatz. Não é o intuito deste trabalho classificar os filmes, mas ter
conhecimento dos estudos já feitos sobre eles e, a partir destes pontos de vista, pensar no
filme musical em suas peculiaridades, estáveis e instáveis, ao longo dos anos.
Inicialmente, para Schatz (1981), os filmes musicais eram construídos de duas
formas distintas. A primeira era quando as várias complicações do enredo se resolviam
em um show, o filme se tornava acima de tudo um grande espetáculo de dança e canto,
por exemplo. A segunda era quando em diversos pontos da narrativa as personagens
expressavam seus conflitos e emoções por meio da música e do movimento.
10
O musical de Hollywood venera o entretenimento ao vivo porque as formas ao vivo parecem falar mais
diretamente ao espectador. Para fazer uma analogia, o entretenimento ao vivo se parece com uma forma de
primeira pessoa, uma performance que assume um espectador ativo e presente. (tradução nossa)
68
2 A PEÇA MUSICAL
Conforme comentado na seção anterior, grande parte dos filmes musicais foram
construídos a partir de peças musicais. Para a compreensão do filme musical como gênero
discursivo cabe aqui uma discussão sobre o teatro musical, fonte de inspiração para as
produções cinematográficas.
2.1 A Broadway
A Broadway surge11 no início de 1900 e suas peças inicialmente não eram levadas
a sério pelo público em geral. O distrito teatral atraia pessoas de classe média em busca
de música e os melhores assentos da casa custavam entre 1,50 e 2,0 dólares apenas. O
público geralmente se envolvia com a peça, conversavam com os atores, batiam palmas
e interagiam.
Após a entrada dos EUA na primeira guerra mundial as peças da Broadway eram
usadas mais como um escape da dura realidade. Já nos anos de 1920, após o final da
guerra, a Broadway se ilumina, os teatros crescem e novas ideias surgem. A partir desta
década este centro de peças começa a se tornar uma influência para o teatro do mundo
todo.
11
As discussões aqui encontradas possuem como base os dados disponíveis em
http://www.spotlightonbroadway.com, um projeto desenvolvido pelo escritório municipal de mídia e
entretenimento da cidade de Nova Iorque.
12
Imagem retirada do site: http://www.spotlightonbroadway.com/broadway-history Acesso em 28/09/2015
70
13
Imagem retirada do site: http://www.spotlightonbroadway.com/broadway-history Acesso em 28/09/2015
14
Imagem retirada do site: http://www.spotlightonbroadway.com/broadway-history Acesso em 28/09/2015
72
15
Nesta sessão a doutoranda se utilizará da sua experiência/vivência na Broadway durante seu estágio em
Nova Iorque sob a orientação do Professor Peter Hitchcock. Afim de analisar a constituição do Teatro
Musical, a partir daqui a aluna por vezes irá narrar sua trajetória como espectadora das peças, detalhamento
que contribui para a discussão sobre a construção do musical como gênero da perspectiva bakhtiniana, em
seu contexto de produção, circulação e recepção.
16
Os rush tickets são ingressos que se vendem assim que a bilheteria do teatro é aberta. O público que
deseja buscar estes ingressos chega horas antes da abertura da bilheteria (se estas abrem, por exemplo, às
10h da manhã, há pessoas que chegam na fila às 6h). As lotteries são loterias que ocorrem tanto de forma
física quanto digital. A loteria presencial é um sorteio em papel, em que os participantes inscrevem seu
nome e aguardam o horário do sorteio no mesmo dia. Já a loteria digital é feita exclusivamente online. Os
participantes precisam acessar a página das peças que desejam concorrer e se inscrever para os sorteios,
73
que ocorrem por vezes no dia anterior à peça, por vezes no mesmo dia pela manhã. Caso receba o e-mail
dizendo que foi sorteado, o espectador precisa pagar por seus ingressos no período máximo de uma hora
ou sua chance passará para outra pessoa. A concorrência é, por este motivo, muito grande, assim como a
procura. A categoria standing room define um tipo de ingresso vendido para aqueles que se sujeitarem a
assistir à peça inteira de pé. Um pequeno espaço do teatro (nem todos possuem esta modalidade) fica
separado para que os espectadores do standing room assitam ao musical por um valor inferior, porém estes
permanecem o tempo todo sem um lugar para se sentar. Todos estes meios de se conseguir ingressos mais
baratos ilustram como a indústria dos musicais da Broadway é forte em Nova Iorque.
74
17
Imagem retirada do site: http://mashable.com/2016/05/26/odds-of-winning-a-hamilton-
ticket/#Nh4kesCYbgq9 Acesso em 20/07/2017
75
“espetáculo”18. A constante interrupção para palmas também confirma esta questão, uma
vez que performances como esta eram abundantemente aplaudidas no meio do musical.
As peças como um todo passam a ideia da necessidade de entretenimento. Ao
observá-las, como espectador (e contemplador), a construção da narrativa (seus artifícios
tecnológicos, sua intensidade nos aspectos da dança e do canto) se faz de forma a manter
o público entretido cem por cento do tempo, como se não fosse possível “tirar os olhos
do palco”. Esta necessidade de entretenimento constante é uma característica do musical
que se diferencia do teatro para o cinema.
Quanto à performance das canções, a dinâmica da interpretação dos solos, por
exemplo, se mostra muito forte nas peças. Há um aumento gradativo na intensidade,
volume e projeção da voz durante os solos, que culmina num clímax da canção. A
trajetória das narrativas demonstrara sempre ter uma parte inesperada, que surpreende o
espectador, como uma morte, um acidente, algo terrivelmente dramático, enquanto os
filmes musicais nem sempre apresentam esta característica.
As sete peças assistidas durante os quatro meses em Nova Iorque serão também
analisadas uma por uma nos parágrafos a seguir. Abaixo se encontram os programas de
todas as peças digitalizados:
18
É importante ressaltar que a presente pesquisa considera as relações existentes entre os musicais e o Circo
e a Ópera, porém, como estas duas últimas não são o foco principal, não figuram aqui com discussão
aprofundada.
77
Cats
Esta peça contém canções de Andrew Lloyd Webber e T. S. Elliot, sendo o
primeiro o mesmo compositor de musicais como Fantasma da Ópera, Jesus Cristo
Superstar e Evita.
O teatro se encontrava lotado e, ainda que o musical tenha sido assistido durante
a semana, no período da tarde havia fila para entrar do lado de fora. O corpo de
funcionários da peça (staff) era em geral impaciente e extremamente direto. Este aspecto
confirma a posição das peças como lugares comerciáveis, pois as pessoas que ali
trabalhavam demonstravam pouco cuidado com o público. O teatro (espaço físico)
também era pequeno e apertado, diferente de peças com orçamentos maiores (como
Hamilton), o local era tão pequeno que não possuía fosso da orquestra, ou seja, não era
possível ver os músicos, apenas ouvi-los.
Cats apresenta muita dança, inclusive há várias cenas sem fala, em que só há
coreografias. É um musical que coloca muita expressividade por meio da dança. O cenário
era fixo, não se modificava ou trocava a ambientação como ocorre em outros musicais.
Cats se passa com um cenário que mostra um beco dos gatos, e pode ser observado na
imagem a seguir:
80
Há muitas luzes no palco desta peça e o espectador se distrai com elas da mesma
forma que um gato se encantaria. A experiência do espectador é construída também por
meio destes detalhes que são coerentes com o conteúdo da peça (uma narrativa sobre a
vida de felinos).
Os recursos utilizados no palco também trabalham com fogo, mas não tanto
quanto em O Fantasma da Ópera. A peça apresenta em diversos momentos o jogo de luzes
claro/escuro (cenas em que todas as luzes se apagam e voltam a ligar rapidamente, e no
“flash” do momento claro das luzes acesas os personagens/gatos se encontravam sempre
num salto/no ar, por exemplo).
Todos demonstravam grande desenvoltura/habilidade física levada ao máximo
pelos atores/cantores. Essa intensidade das performances corporais dos atores se coloca
próxima da noção dos musicais da Broadway como “espetáculo” de fato. Como uma
produção que “deve” apresentar ao espectador uma vivência extrema. Esta questão
apareceu não somente neste primeiro musical e ainda será comentada nos próximos
parágrafos.
O cenário, apesar de fixo, possuía a característica comum à maioria das peças: o
trabalho com planos. Ainda que todo o musical se passe no beco dos gatos, diversas cenas
se utilizam de planos diferentes, ora mais altos, ora mais baixos; recurso que explora
melhor as possibilidades do palco. Enquanto na produção musical dentro do cinema pode-
se pensar nas cenas construídas a partir da “visão” da câmera, o teatro tem como
81
possibilidades os planos do palco, assim como os focos de luz, que se colocam em cada
personagem conforme este canta/interpreta parte de um solo.
Uma característica que apareceu somente em Cats foi a presença de uma cena que
mostrasse um pouco de dança sapateado. Esse tipo de dança, tão expressiva nos filmes
musicias, se mostrou, desta forma, pouco frequente nas peças assistidas durante o período
em Nova Iorque.
Como comentado anteriormente, os solos das peças demonstraram uma dinâmica
na escolha do “crescer” gradativo das canções. Assim também no solo de Memory
percebe-se que a atriz guarda a potência da voz para uma única nota/parte da canção. Esta
dinâmica se mostrou muito presente nas peças como um todo.
Sunset Boulevard
A peça, que possui canções de Andrew Lloyd Weber, tinha o teatro lotado, como
os demais musicais, no entanto, trazia em seu elenco uma protagonista que era do
cinema (Glenn Close). A questão do estrelismo e das palmas que interrompem a peça (e
que a aproxima mais da ideia de “espetáculo”) era muito presente em Sunset Boulevard.
A orquestra deste musical permanecia no palco (e não num fosso, como em O
Fantasma da Ópera). As músicas possuíam um estilo próximo do Jazz, o instrumental
era extremamente preciso e virtuoso.
19
Dados encontrados no endereço oficial: http://www.playbill.com/article/ask-playbillcom-theatre-size-
equity-archives-and-playbill-covers-com-144869 acesso em 08/09/2017.
83
On you feet!
A peça que conta a história de Gloria Estefan foi a única de todas as assistidas que
não teve o teatro lotado. Havia muita dança, mas em contexto de apresentação de danças
na narrativa, uma vez que contava a trajetória da carreira da cantora. Esta foi uma das
peças assistidas que possuía mais partes faladas, sem canções. A banda, que se encontrava
no palco, muitas vezes fazia parte das cenas.
Quanto ao conteúdo a narrativa sempre passa por um momento “triste”, uma parte
que não seria “esperada”. No caso desta peça, o acidente de Gloria. O figurino era também
extremamente colorido, ligado à cultura do país da história, Cuba.
Chicago
O teatro para esta peça estava quase lotado, mas não tão lotado quanto outros. Os
ingressos foram adquiridos por meio de rush tickets, como foi mencionado no início desta
sessão. A banda ficava no palco, assim como em On your feet! E muitas vezes interagia
com os personagens em cena. Esta peça se utiliza de poucos ou quase nenhum recurso
tecnológico de cenário/ fundo de palco.
Em Chicago há muita dança, por vezes mais do que o canto, ainda que o musical
possua canções fortes e icônicas. O filme musical inspirado na peça se relaciona muito
com o teatro, a ponto de parecer uma peça filmada.
20
O videoclipe pode ser assistido no endereço oficial da campanha:
https://www.youtube.com/watch?v=6_35a7sn6ds e a letra da canção fala sobre as dificuldades dos
imigrantes nos Estados Unidos.
84
Anastasia
Anastasia foi a peça mais recente (entrou em cartaz no ano de 2017) e mesmo
assim também teve o teatro lotado.
O ponto mais forte da peça era o cenário e as projeções que ocorriam no palco. Os
recursos tecnológicos eram bem avançados se comparados com outros musicais, se
utilizando inclusive de vídeos nas projeções (e não apenas imagens).
Conclui-se a partir destas vivências com as peças que a vivacidade cultural não se
limita à Broadway, mas é uma característica da cidade de Nova Iorque. As expressões
culturais presentes pela cidade são numerosas e a cidade se mostra como um ambiente
aberto a essas manifestações artísticas.
Assistir às peças da Broadway contribuiu para se pensar o gênero de uma forma
interativa, considerando a esfera de atividade na qual são produzidos, em que se
movimentam, circulam e são recepcionados. A recepção é ativa. Os sujeitos respondem
com novas produções a partir da contemplação dos musicais. Neste aspecto, sob a ótica
dos estudos do Círculo:
O material em si e por si funde-se diretamente com o meio extra-artístico
circundante e tem um número infinito de aspectos e definições [...] Por mais
que se vá longe na análise de todas as propriedades do material e de todas as
combinações possíveis dessas propriedades, nunca se será capaz de encontrar
seu significado estético, a menos que lancemos mão, de contrabando, de um
outro ponto de vista que não pertença à moldura da análise do material.
(VOLOCHINOV/BAKHTIN, s/d, p.4)
3 O VERBIVOCOVISUAL E A CANÇÃO
Tendo como objeto de pesquisa filmes musicais, este trabalho pensa sobre o
enunciado fílmico a partir da perspectiva da verbivocovisualidade, conforme calcado por
Luciane de Paula (no prelo), em que se discute uma abordagem bakhtiniana
tridimensional da linguagem. Ao se analisar o corpus aqui escolhido consideram-se suas
partes verbais, sonoras (vocais) e imagéticas (visuais), e estas dimensões estão presentes
em qualquer enunciado, mais ou menos enfatizadas conforme a arquitetônica de cada
gênero.
As ideias do Círculo de Bakhtin trazem conceitos e discussões que convergem
para a visualidade e a sonoridade ou musicalização, e este posicionamento, ainda que não
usual, é tomado por autores leitores das obras bakhtinianas. Suas obras e reflexões serão
base para discussão a seguir apresentada sobre a verbivocovisualidade e o Círculo de
Bakhtin.
3.1 Verbivocovisualidade
A análise do filme musical como gênero discursivo não apenas prevê uma
confirmação do posicionamento que aqui se toma de gênero discursivo, mas também
defende o ponto de vista de que tais materialidades podem ser discutidas sob a ótica dos
estudos do Círculo de Bakhtin.
A autora Haynes aborda os estudos de Bakhtin para discutir linguagens
imagéticas, visuais. Não é um posicionamento usual, mas é coerente com as leituras
possíveis a partir das ideias do filósofo russo. A autora afirma que: “I attempt to do what
Bakhtin has suggested. I take his discourse not as authoritative, but as internally
persuasive, as inviting development, extension, and application toward the goal of
creative understanding21.” (2008, p.15) A fim de estudar a criação da arte (como obra), a
autora se utiliza das teorias do Círculo para discorrer sobre as materialidades artísticas,
em especial as visuais.
O filme musical, objeto do presente estudo, é aqui considerado como um
enunciado verbivocovisual, desta forma considera-se tanto sua parte verbal, quanto as não
21
“Eu busco fazer o que Bakhtin sugeriu. Eu levo seu discurso não como autoritário, mas como
internamente persuasivo, como construção convidativa, extensão e aplicação em busca do objetivo da
compreensão criativa.” (tradução nossa)
86
verbais (no caso, imagéticas e sonoras). As ideias bakhtinianas, ainda que não tenham se
debruçado sobre tais enunciados (como o filme), convergem para possíveis leituras destas
materialidades. É importante ressaltar que o próprio Círculo era composto por membros
de diversas áreas, entre elas, a música: “Among Bakhtin’s interlocutors and the members
of his Circle, we find not only poets, men of letters, philosophers and linguists, but also
scientists, biologists, painters, sculptors, musicians and musicologists22.” (CASSOTTI,
2010 p.114)
A autora Haynes, pesquisadora das obras do Círculo, defende em sua obra que
Bakhtin “brings us back to the aesthetics of the creative process itself, back to the activity
of the artist or author who creates23.” (2008, p.4), a preocupação se encontra, deste modo,
nas produções estéticas de obras de arte, sejam enunciados verbais ou não. As dimensões
verbivocovisuais, ainda que não tenham sido parte da corpora analisada pelo Círculo,
integram o conjunto da cultura oral, a qual não se encontra apartada da escrita, pois
“Bakhtin não trata a oralidade como um domínio à parte da escrita, e não faz uma drástica
divisão entre cultura oral e a cultura escrita como dois âmbitos contrastantes.”
(BUBNOVA, 2011, p.269). A parte sonora (que aqui se considera em especial a canção)
possui valor igual à escrita, pois, sob a ótica escolhida, a cultura oral também pode ser
objeto de estudo.
Mais afundo, no âmbito musical especificamente, as ideias do Círculo podem ser
consideradas para quaisquer obras de arte, sejam elas verbais ou não, uma vez que:
22
“Entre os interlocutores de Bakhtin e membros do seu Círculo encontramos não apenas poetas, homens
das letras, filósofos e linguísticas, mas também cientistas, biólogos, pintores, escultores, músicos e
musicologistas.” (tradução nossa)
23
“nos traz de volta para o processo de criação estética em si, para a atividade do artista ou autor que cria”
(tradução nossa)
24
Para Yudina e Sollertisnky uma compreensão completa do trabalho musical, por exemplo, demanda um
contínuo deslocamento para fora da música, rumo à literatura, à filosofia e outras artes. Em seus escritos,
eles frequentemente destacam as ligações entre o mundo musical e o extramusical, as conexões entre o
trabalho artístico e o universo cultural externo. E, ainda que Bakhtin focasse suas teorias filosóficas em
criações literárias e no texto verbal, seu conceito de dialogismo pode ser aplicado para qualquer trabalho
artístico considerado como um texto não verbal.” (tradução nossa)
87
3.2 Canção
The instrumental music, and the musical qualities of the melody line and
supporting harmony, enable the vocal elements to be transformed from the
level of normal everyday speech, and to be given a sense of deep emotional
and unmediated self-expression. […] The character must carry the weight of
the emotional content of the song, and therefore becomes sincere for the
audience because of this direct, musical, expression, and through the
commitment to their performance that often takes over their whole body, in
either a particularly intense singing style or, of course, dance25. (2000, p.10-
11)
Desde os trovadores mostrava-se uma ligação entre música, poesia e canção. Sobre a
canção nacional, por exemplo, Wisnick aponta que “No Brasil a poesia e a música vieram
se encontrar e produziram uma ligação que ao mesmo tempo é da poesia com a música e
é da cultura letrada com a cultura oral, ou se quisermos, do erudito com o popular.”
(documentário Palavra(en)cantada26). Ao se discutir sobre filmes musicais, a canção
também se caracteriza como a transformação da fala em poesia, “the ordinarily prosaic
25
A música instrumental e as qualidades musicais da linha melódica e a harmonia de apoio permitem aos
elementos vocais serem transformados do nível de discurso do cotidiano para um sentido de auto expressão
profunda e não mediada. [...] O personagem deve carregar o peso do conteúdo emocional da canção e, desta
forma, se torna sincero para o público por sua expressão direta e música e por meio do compromisso de sua
performance que geralmente toma seus corpos inteiros, seja em uma forma intensa de canto seja, é claro,
pela dança. (tradução nossa)
26
Documentário de 2009, dirigido por Helena Solberg. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=liWshEbz8Ik
88
words of the characters are elevated and transformed into the patterns of poetry27.”
(LAING, 2000, p.9)
Tratar de canção a partir de uma análise dialógica do discurso também se justifica
uma vez que o próprio Círculo se utiliza em suas concepções de vocabulário ligado ao
som ou à musicalidade, Bubnova lembra que “O filósofo russo da linguagem Mikhail
Bakhtin, apesar de não ter se ocupado do folclore e da tradição oral, mas da literatura
escrita canônica, utiliza amplamente o vocabulário relacionado ao oral, à voz, à audição,
à escuta, ao tom, à tonalidade, à entonação, ao acento, etc.” (2011, p.269) 28Quanto à voz
especificamente, a autora afirma que do ponto de vista do Círculo “Todo enunciado é
resposta a algum outro, pois “O mundo que nos rodeia, segundo Bakhtin, está povoado
de vozes de outras pessoas.” (idem, p.271) Os enunciados estão, desta forma, sempre
interligados: “Em uma palavra soa a voz de quem disse essa palavra antes.” (idem, p.277)
O estudo da canção, para o presente trabalho, lida com um enunciado em sua
dimensão verbivocovisual e assim também se considera que os estudos do Círculo
contribuam e sejam coerentes para análise destas materialidades: “Bakhtin affirms that
the text is “the primary given”, “the point of departure” for all human and philological
sciences. He also specifies that, if we mean “text” in a broad sense, as a coherent complex
of signs, then even “the study of music” deals with texts (works of art)29.” (CASSOTTI,
2010, p.115)
Conforme concebe Paula, a canção “nasce do processo de composição e de
musicalização, sendo que o último pode ser anterior, posterior ou concomitante ao texto.
O ato de cantar finaliza esse processo e inicia outro, que envolve a relação entre sujeitos”
(2014, p. 229). Deste modo, uma “mesma” canção pode provocar significações diferentes
conforme a construção do enunciado verbivocovisual no qual se insere. Uma das canções
mais conhecidas do musical Les Miserablés é I dreamed a dream, que está inserida no
musical em um momento dramático da trama em que uma personagem canta sobre o
declínio de seus sonhos e ideais. Sua situação específica, construída no interior do
musical, se refere às injustiças sociais da época da história; no entanto, a letra da canção,
27
“As palavras prosaicas comuns dos personagens são elevadas e transformadas para os padrões da poesia”
(tradução nossa)
28
Ainda que a autora aponte neste excerto que Bakhtin não tinha se ocupado do folclore e da tradição oral,
a presente pesquisa compreende que estes podem não ter sido objeto principal de aprofundamento, mas
com certeza são parte dos estudos do Círculo, como em A Cultura popular na Idade Média e no
Renascimento.
29
“Bakhtin afirma que o texto é “inicialmente dado”, o “ponto de partida” para toda a ciência humana e
filológica. Ele também específica que se quisermos dizer “texto” em um sentido amplo, como um complexo
coerente de signos, então até o estudo da música lida com textos (trabalhos de arte).” (tradução nossa)
89
30
Vídeo produzido pela WCFF, Wildlife Conservation Film Festival. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=RjMzXykfbm8
90
O que é uma obra literária? Qual é sua estrutura? Quais são os elementos dessa
estrutura e quais são suas funções artísticas? O que é o gênero, o estilo, o
enredo, o tema, o motivo, o protagonista, o metro, o ritmo, a melodia, e assim
por diante? Todas essas questões, e, em particular, aquela sobre o reflexo do
horizonte ideológico no conteúdo da obra e sobre as funções desse reflexo no
conjunto de sua estrutura artística, pertencem ao vasto campo de pesquisas, da
poética sociológica. (2012, p. 75)
Um método de análise sob a ótica dos estudos do Círculo prevê uma obra inserida
historicamente sempre, porque:
Uma obra literária não pode ser compreendida fora da unidade da literatura.
Mas essa unidade em seu todo, assim como cada um de seus elementos, não
pode ser compreendida fora da unidade da vida ideológica. Por sua vez, essa
unidade não pode ser estudada em sua totalidade, nem em seus elementos
isolados, fora de uma única lei socioeconômica. (idem, p. 72)
Para se falar de enunciado sob a ótica dos estudos do Círculo de Bakhtin é preciso
pontuar, inicialmente, que para o filósofo russo nenhum enunciado é adâmico, ou seja,
toda produção de enunciados concretos possui marcas (ou vozes) de enunciados
proferidos anteriormente, assim como se liga aos que a partir deste se formarão. Um
enunciado ressoa vozes de outros, forma um elo entre seus atos-enunciados-únicos que é
initerrupto (não se encontra nem seu ponto de início, nem seu fim). Os concomitantes
atos-respostas são a essência da interação verbal, o diálogo:
Como pode-se discutir a partir das ideias do Círculo, uma voz nunca está sozinha,
em um enunciado outros ressoam, “O sentido, por assim dizer, soa.” (idem, p.275). Pode-
se dizer que a proposta bakhtiniana lida com uma translinguística, pois sobre a palavra
oral, a translinguística, a estudiosa do Círculo Russo, Tatiana Bubnova afirma que “Em
suma, a palavra oral é origem e fim do diálogo existencial que Bakhtin trata de explicar
mediante sua exegese literária e teoria translinguística – uma linguística que vai além da
análise dos elementos formais da língua, em direção às relações dialógicas, que são o
sentido próprio da comunicação.” (ibidem p.278)
Para Bakhtin o sujeito se forma na relação entre o eu e o outro, pois “É no
processo da comunicação verbal, da interação com o outro, eu alguém se faz sujeito
forjando seu próprio eu. O “eu” só existe na medida em que está relacionado a um “tu”:
“Ser significa comunicar-se”, e um “eu” é alguém a quem se dirigiu como um “tu””
(ibidem, p.271). A autora Haynes pontua a necessidade que se tem do outro como:
O eu precisa do outro, assim como o outro precisa do eu. O ato único e irrepetível
é também importante para compreensão da obra do Círculo como um todo, pois todo
enunciado se dá em um dado espaço e tempo: “A ligação orgânica entre o signo e o
sentido, alcançada em um ato histórico concreto do enunciado, existe apenas para esse
enunciado e apenas para essas condições de sua realização.” (MEDVIÉDEV, 2012,
p.184)
No caso do filme musical The Rocky Horror Picture Show (1975), de Jim
Sharman, as particularidades de tempo/espaço, produção/recepção do enunciado concreto
estão diretamente ligadas ao se considerar a adaptação da FOX de 2016. A obra
cinematográfica em questão, que (desde sua versão inicial para o teatro) lida com
desconstruções de padrões por meio de um tom irônico e escrachado, recebeu uma versão
para a TV este ano que se distancia da versão de 1975 em alguns aspectos e em outros se
aproxima. Estas particularidades do enunciado se dão em função do tempo/espaço e
produção/recepção da versão de 2016, que se deu em uma transmissão televisiva (já não
31
Não podemos exercer autoria de nós mesmos, porque não podemos ver o nosso todo. De dentro do eu há
sempre a ‘possibilidade de’, e, ‘a abertura para’ a mudança. Isto significa que não é possível uma definição
estável ou autoritária do eu. Para isso precisamos do outro, e o outro precisa de nós.
94
5 LES MISÉRABLES
VALJEAN SOLIQUOY
As cores neste solo são predominantemente o ocre e o amarelo, cores que aparecem
no ambiente da casa do bispo e que se relacionam com o divino e a Igreja ao representar
a luz (ocre/amarelo) e o dourado do ouro das Igrejas. A canção se assemelha muito à fala
(fala cantada) e as tomadas da câmera focam no rosto de Jean Valjean, enquanto o
personagem constantemente olha para cima.
Esta canção também se parece com um choro, pois o personagem canta como se
fizesse uma confissão. Na cena acima pode-se perceber numa câmera plongée, que, ao
observar o personagem de cima para baixo, reforça sua inferioridade ao interpretar a
canção. A letra da canção é:
32
O que eu fiz?
Doce Jesus, o que eu fiz?
Tornei-me um ladrão na noite
Tornei-me um cão em fuga
Teria eu caído tão longe
E é a hora tão tarde
Que nada resta senão o choro do meu ódio
Os gritos no escuro que ninguém ouve
Aqui, onde estou com o passar dos anos?
Se houver outro caminho a seguir
Eu o perdi vinte longos anos atrás
Minha vida era uma guerra que nunca poderia ser vencida
Eles me deram um número e assassinaram Valjean
Quando eles me acorreram e me deixaram pra morrer
Apenas por roubar um bocado de pão
E agora por que eu permiti a esse homem
Tocar minha alma e me ensinar amor?
Ele me tratou como qualquer outro
Ele me deu sua confiança
Ele me chamou de irmão
Minha vida ele reivindica a Deus acima
Podem essas coisas existir?
Pois eu vim para odiar o mundo
Este mundo que sempre me odiou
Tome olho por olho
Transforme seu coração em pedra
Isso é tudo que eu vivi
Isso é tudo que eu conheci
Uma palavra dele e eu voltaria
Abaixo do chicote, sob tortura
Em vez disso, ele me ofereceu minha liberdade
Sinto a vergonha dentro de mim como uma faca
Ele me disse que eu tenho uma alma
Como ele sabe?
Que espírito move minha vida?
Existe outro caminho a percorrer?
Estou tentando, mas eu caio
E a noite está se encerrando
Enquanto olho para o vazio
Para o redemoinho do meu pecado
Eu escaparei agora deste mundo
Do mundo de Jean Valjean
Jean Valjean não é nada agora
Outra história deve começar (tradução nossa)
99
então da frase que fala sobre o passar dos anos que a canção ganha um ritmo mais
acelerado, como um tempo que passa a correr. Assim ela permanece, até a melodia chegar
na frase “chained me and left me for dead, just for stealing a mouthfull of bread”, em que
é criada uma ênfase por meio do instrumental, que toca notas fortes e mais espaçadas. A
frase em questão resume a trajetória que Jean Valjean teve até então na narrativa, ser
preso (acorrentado) e deixado “para morrer” apenas por “roubar um pedaço de pão” e por
isso seu destaque na melodia é justificado, pois é o motivo central da injustiça sofrida
pelo personagem.
O autor do Círculo afirma que cada parte de uma produção artística possui relação
com a totalidade da obra, com a sua construção por inteiro. Ainda que aqui sejam tomados
separadamente, os excertos do enunciado fílmico são parte de uma composição. Os
fotogramas, os recortes da partitura, as letras da canção; cada fragmento está interligado
no todo.
103
I DREAMED A DREAM
33
Eu sonhei um sonho em tempos passados
Quando a esperança era grande e a vida valia a pena viver
Eu sonhei que o amor nunca morreria
Eu sonhei que Deus seria misericordioso
Então eu era jovem e sem medo
E os sonhos eram feitos e usados e desperdiçados
Não havia resgate a pagar
Nenhuma música desconhecida, nenhum vinho sem sabor
Mas os tigres vêm à noite
Com suas vozes suaves como trovão
À medida que destroem sua esperança
E transformam seus sonhos em vergonha
Ele dormiu um verão ao meu lado
Ele encheu meus dias de maravilha infinita
Ele levou minha infância a passos largos
Mas ele se foi quando chegou o outono
E ainda sonho, que ele virá a mim
Que vamos viver os anos juntos
Mas há sonhos que não podem ser
E há tempestades que não podemos prever
Eu tive um sonho que minha vida seria
Tão diferente desse inferno que estou vivendo
Tão diferente agora do que parecia
105
STARS
Esta primeira canção solo do personagem Javert pode ser destacada pela relação entre
o conteúdo da letra e o local em que o personagem a interpreta. Javert canta sobre o ato
de cair e esta cena é feita à beira de um precipício (uma sacada) e a morte deste
personagem ao final do musical se dará por meio de um suicídio em que ele se joga das
alturas.
Na letra da canção Stars, Javert relaciona cair (to fall em inglês) a Lúcifer (the fallen,
o caído). Ao final este personagem comete suicídio ao se jogar (cena acima) e acaba por
se tornar, ele mesmo, the fallen one.
A letra de Stars é a seguinte:
34
Lá, na escuridão
Um fugitivo correndo
Caído de Deus
Caído da graça
Deus seja minha testemunha
Eu nunca cederei
Até que nos encontremos frente a frente
Até que nos encontremos frente a frente
Ele conhece o caminho no escuro
O meu caminho é o do Senhor
E aqueles que seguem o caminho dos justos
Terão sua recompensa
E se eles caírem
Como Lucifer caiu
A chama
A espada!
Estrelas
Em suas multitudes
Escasas para serem contadas
Enchendo a escuridão
Com ordem e luz
Vocês são as sentinelas
Silenciosas e seguras
Vigilando a noite
Vigilando a noite
Vocês conhecem seu lugar no céu
Vocês mantêm seu curso e seu objetivo
E cada uma na sua temporada
Retorna e retorna
E é sempre o mesmo
E se vocês caem como Lucifer caiu
Vocês queimam em chama!
E assim deve ser, e assim está escrito
Na porta do paraíso
108
No fazer artístico tudo está interligado, assim como nas canções aqui analisadas. Ao
se observar a letra em seu todo podem-se destacar partes distintas, que configuram na
composição de sua forma. Estes traços, no entanto, não estão apartados do conteúdo,
como será comentado a seguir.
A canção Stars pode ser dividida em A, B e C. As partes destacadas em vermelho (A)
apresentam melodias similares no plano musical e também conteúdos similares no plano
da letra. A primeira parte vermelha pode ser denominada como A e a segunda como A’,
pois traz variação sobre a mesma melodia, ou seja, aquilo que é cantando é quase igual,
porém não idêntico. O conteúdo da letra de A discorre sobre a presença do fugitivo (Jean
Valjean) e o dever de Javert encontrá-lo. O sujeito da canção (que neste caso é também o
interprete e o personagem) coloca o fugitivo como aquele que “conhece o caminho na
escuridão”, porém Javert seria quem “segue o caminho dos justos e terá a sua
recompensa”. Em A’ as estrelas são colocadas como alegoria para a ordem e a vigilância,
que seriam o papel do sujeito da canção. A relação com o dever e o divino se encontra
também na parte B, grifada em verde. É neste trecho da canção que o sujeito se refere a
Lúcifer, o caído, que, conforme comentado anteriormente, acaba por ser o próprio Javert,
que se suicida numa queda fatal. O desfecho da canção se dá em C com o juramento de
Javert, sob as estrelas, de que encontraria seu fugitivo, e mais uma vez a tarefa do sujeito
da canção é comparada a um compromisso/dever divino. Estas relações do conteúdo da
letra podem ser observadas também no mise-en-scène, em que se encontra a estátua de
uma águia compondo o enquadramento da cena junto com Javert. A figura do personagem
é tão ligada a esta ave durante a canção que por vezes estes chegam a ser sobrepostos, de
forma a se fundirem, como pode ser observado abaixo.
A águia se relaciona ao predador que busca a presa, como Javert procura por Jean
Valjean, e também carrega a simbologia de espiritualidade e/ou ligada ao divino. Na letra
de Stars, Javert se coloca como sujeito que tem um dever supremo de encontrar e prender
seu “fugitivo” e para isso clama por intervenção divina, sempre se colocando ao lado da
luz e da justiça, enquanto Jean Valjean é a escuridão.
Outras características do conteúdo da canção e do personagem/sujeito da canção
se encontram marcadas na cena, como a posição de centralidade do personagem de Javert.
Diferente de canções como I dreamed a dream, em que o sujeito da canção não é colocado
no centro do enquadramento, Javert é disposto na cena de forma a confirmar seu poder.
110
ON MY OWN
On my own
Pretending he's beside me
All alone
I walk with him till morning
Without him
I feel his arms around me
And when I lose my way I close my eyes
And he has found me
I love him
But when the night is over
He is gone
The river's just a river
Without him
The world around me changes
The trees are bare and everywhere
The streets are full of strangers
I love him
But every day I'm learning
All my life
I've only been pretending
Without me
His world will go on turning
A world that's full of happiness
That I have never known
I love him
I love him
I love him
But only on my own35
35
Por mim mesma
Fingindo que ele está ao meu lado
Totalmente sozinha
Eu ando com ele até de manhã
Sem ele
Eu sinto seus braços ao meu redor
115
Eu o amo
Mas quando a noite acaba
Ele se vai
O rio é apenas um rio
Sem ele
O mundo à minha volta muda
As árvores estão nuas e em toda parte
As ruas estão cheias de estranhos
Eu o amo
Mas todos os dias aprendo
Toda a minha vida
Eu apenas tenho fingido
Sem mim
O mundo dele continua girando
Um mundo cheio de felicidades
Que eu nunca conheci
Eu o amo
Eu o amo
Eu o amo
Mas somente por mim mesma (tradução nossa)
116
Esta é a canção inicial, que abre a obra cinematográfica em questão. Antes da parte
cantada começar o instrumental já toca a melodia principal, que é a melodia da frase “look
down”. Nesta introdução instrumental o enquadramento em grande plano geral mostra os
personagens pequenos, ao longe, e aos poucos a movimentação da câmera vai se
aproximando da cena.
36
Olhe para baixo, olhe para baixo
Não o olhe nos olhos
Olhe para baixo, olhe para baixo
Você está aqui até morrer
Sem Deus acima
E abaixo apenas o inferno
Olhe para baixo, olhe para baixo
Há vinte anos a frente
Eu não fiz nada de errado!
Doce Jesus escute minha oração!
Olhe para baixo, olhe para baixo
Doce Jesus não se importa
Eu sei que ela vai esperar
Eu sei que ela será fiel!
Olhe para baixo, olhe para baixo
Eles todos esqueceram você
Quando eu me libertar, você não me verá
Aqui pelo pé!
Olhe para baixo, olhe para baixo
Você sempre será um escravo
Olhe para baixo, olhe para baixo
118
A canção fala sobre olhar para baixo e não o olhar nos olhos. Este “ele” a quem
não se deve olhar nos olhos não está marcado com o nome de Javert na canção, porém na
sequência Javert aparece observando os prisioneiros, de cima para baixo. A canção versa
sobre os presos olharem para baixo, Jean Valjean, no entanto, lança seu olha para cima,
na direção de Javert, como pode ser observado nos fotogramas abaixo. O enquadramento
da câmera com relação aos prisioneiros (entre eles Jean Valjean) é feito inicialmente em
plongée, ou seja, de cima para baixo, inferiorizando os personagens.
Durante esta cena a canção “Look down (The Beggars)” é interpretada ora pelos
pedintes/povo das ruas, ora pelos jovens revolucionários. “The beggars” são os pedintes,
enquanto Gavroche, Marius e Enjolras são personagens evolvidos na revolução. As partes
em que cada personagem interpreta a canção podem ser observadas na letra a seguir:
BEGGARS
Look down and see the beggars at your feet
Look down and show some mercy if you can
Look down and see the sweepings of the street
Look down, look down,
Upon your fellow man!
GAVROCHE
'Ow do you do? My name's Gavroche
These are my people, here's my patch.
Not much to look at, nothing posh
Nothing that you'd call up to scratch
This is my school, my high society
Here in the slums of Saint Michele
We live on crumbs of humble piety
Tough on the teeth, but what the hell!
Think you're poor?
Think you're free?
Follow me! Follow me!
BEGGARS
Look down and show some mercy if you can
Look down, look down, upon your fellow man!
GAVROCHE
There was a time we killed the King
We tried to change the world too fast
Now we have got another King
He's no better than the last
This is the land that fought for liberty
Now when we fight, we fight for bread
Here is the thing about equality
Everyone's equal when they're dead
Take your place!
Take your chance!
122
COURFEYRAC
When's it gonna end?
BEGGAR 1
When we gonna live?
JOLY
Something's gotta happen now!
BEGGAR 2
Something's gotta give!
ENJOLRAS
Where the leaders of the land?
Where is the king who runs this show?
MARIUS
Only one man, General Lamarque
Speaks for the people here below
ENJOLRAS
Lamarque is ill and fading fast!
Won't last the week out, so they say.
MARIUS
With all the anger in the land
How long before the judgement day?
ENJOLRAS
Before we cut the fat ones down to size?
123
ALL
Before the barricades arise?37
37
PEDINTES
Olhe para baixo e veja os pedintes a seus pés
Olhe para baixo e mostre piedade se puder
Olhe para baixo e veja o lixo da rua
Olhe para baixo, olhe para baixo
Sobre o seu companheiro!
GAVROCHE
Como vai você? Meu nome é Gavroche
Este é meu povo, aqui está o meu remendo.
Não há muito para olhar, nada elegante
Nada que você chamaria para arranhar
Esta é minha escola, minha alta sociedade
Aqui nas favelas de Saint Michele
Nós vivemos em migalhas de piedade humilde
Duros nos dentes, mas que diabos!
Se acha pobre?
Se acha livre?
Siga-me! Siga-me!
PEDINTES
Olhe para baixo e mostre piedade se puder
Olhe para baixo, olhe para baixo, para o seu companheiro!
GAVROCHE
Houve um tempo em que matamos o rei
Nós tentamos mudar o mundo rápido demais
Agora nós temos outro rei
Ele não é melhor que o último
Esta é a terra que lutou pela liberdade
Agora quando nós lutamos, lutamos pelo pão
Esse é o lance sobre igualdade
Todos são iguais quando estão mortos
Tome seu lugar!
Agarre a sua oportunidade!
Vive la France! Vive la France!
COURFEYRAC
Quando irá acabar?
PEDINTE 1
Quando iremos viver?
JOLY
Algo precisa acontecer agora!
PEDINTE 2
Alguém tem que ceder!
124
ENJOLRAS
Onde estão os líderes desta terra?
Onde está o rei que comanda este show?
MARIUS
Somente um homem, General Lamarque
Fala pelo povo aqui abaixo
ENJOLRAS
Lamarque está doente e piorando rapidamente
Não durará a semana, eles dizem.
MARIUS
Com toda a raiva na terra
Quanto tempo até o dia do juízo final?
ENJOLRAS
Antes de cortarmos os gordos em pedaços?
TODOS
Antes das barricadas se erguerem? (tradução nossa)
125
Figura 57 Recorte da partirura que mostra a melodia do refrão sendo tocada antes de ser cantada
128
Nas duas figuras acima a parte em que existe um intérprete cantando é apresentada
com uma marcação em azul, enquanto a marcação em amarelo mostra as linhas em que o
instrumental se encontra. O destaque vermelho indica o refrão de Red, Black, que, como
comentado, é relevante tanto na canção quanto ao longo do musical como um todo. Na
figura 57 a melodia do refrão é tocada pelo instrumental logo antes da entrada do
personagem Enjolras. O instrumental apontado é reconhecível como de fato a melodia do
refrão ao se comparar com a parte circulada em vermelho na figura 58. Ambas partes
circuladas em vermelho (na figura 57 e 58) mostram a melodia do refrão desta canção. O
personagem de Enjolras lidera o grupo de jovens na revolução e o fato da melodia do
refrão ser apresentada logo antes de iniciar sua parte cantada é significativo para a
constituição do personagem como líder do movimento/luta e da melodia/canção em
questão.
129
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Referências bibliográficas
ALTMAN, R. The American film musical. Indianapolis: Indiana University Press, 1987.
AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas Ciências Humanas. São Paulo:
Musa, 2001.
BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987.
___. (1975). Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: UNESP, 1993.
___. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.
___. (1920-1974). Estética da Criação Verbal. (Edição traduzida a partir do russo). São
Paulo: Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, M. M. (VOLOCHINOV) (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São
Paulo: Hucitec, 1992.
BRAIT, B. (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 3. ed. Campinas:
UNICAMP, 2001.
___. Interação, Gênero e Estilo. In PRETI, D. Interação na Fala e na Escrita. São Paulo:
Humanitas, 2002, p. 125-157.
___. (Org.). Bakhtin: Conceitos-Chave. São Paulo: Contexto, 2005.
___. (Org.). Bakhtin: Outros Conceitos-Chave. São Paulo: Contexto, 2006.
___. (Org.). Bakhtin e o Círculo. São Paulo: Contexto, 2009.
___. (Org.). Bakhtin – Dialogismo e Polifonia. São Paulo: Contexto, 2009.
BRAIT, B; ROJO, R. Gêneros: artimanhas do texto e do discurso. São Paulo: Escolas
associadas, 2001.
BILHARINHO, Guido. O filme musical. Uberaba: Instituto Triangulino de Cultura,
2006.
BUBNOVA, T. Voz, sentido e diálogo em Bakhtin. Tradução do espanhol de Roberto
Leiser Baronas e Fernanda Tonelli. Bakhtiniana, São Paulo, v. 1, n.6, p. 268-280, 2º
semestre 2011.
CASSOTTI, R. Music, Answerability, and Interpretation in Bakhtin’s Circle: reading
together M.M.Bakhtin, I. I. Sollertinsky, and M. V. Yudina. in Orekhov, B.V. Chronotope
and Environs, Fetschift N. Pan’kov, Ufá, Vagant, 2010, pp. 113-120.
CLARK, K.; HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 1998.
CUNHA, Paulo Roberto Ferreira da. O Cinema Musical Norte-americano: Gênero,
Histórias e Estratégias da Indústria do Entretenimento. São Paulo: Annablume, 2012.
134
ANEXOS
38
O professor Peter Hitchcock trabalha com cultura e Bakhtin no Graduate Center da CUNY e por isso foi
escolhido com co-orientador estrangeiro desta pesquisa: https://www.gc.cuny.edu/Page-
Elements/Academics-Research-Centers-Initiatives/Doctoral-Programs/English/Faculty-by-Field/Peter-
Hitchcock
137