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100 ANOS

DA
REVOLUÇÃO
RUSSA
Fundação Astrojildo Pereira
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Fone: (61) 3224-2269 Fax: (61) 3226-9756 – [email protected]
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Revista de Política e Cultura
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Copyright © 2017 by Fundação Astrojildo Pereira

Política Democrática – Revista de Política e Cultura –


Brasília/DF : Fundação Astrojildo Pereira, 2017.

ISSN 1518-7446 – Edição Especial-100 anos da Revolu-


ção Russa. 172p. 23cm
CDU 32.008 (05)

Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores.


Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.
Distribuição
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Política Democrática
Revista de Política e Cultura | EDIÇÃO ESPECIAL
Fundação Astrojildo Pereira

100
REVOLUÇÃO
ANOS
DA

RUSSA

Dezembro/2017
Apresentação

P
or sugestão de um de seus membros e por deliberação quase
unânime, os Conselhos de Redação e Editorial da Revista
Política Democrática organizaram esta edição especial para
relembrar e comemorar os 100 anos da Revolução Russa, um dos
maiores acontecimentos do século XX.
Trata-se de uma rica oportunidade não apenas de tornar
conhecido ou relembrar um momento histórico dos mais destaca-
dos do século passado, para as gerações que viveram suas conse-
quências, para as atuais e para as vindouras, graças aos resulta-
dos altamente positivos que promoveu na sociedade humana, em
diferentes lugares do planeta, assim como também pelos erros e
equívocos cometidos junto à sociedade soviética e à de outros
lugares do planeta.
Os autores, que colaboram com seus ensaios aqui expostos, se
revelam muito honestos em destacar a verdade sobre o primeiro
centenário de uma das maiores façanhas revolucionárias ocorri-
das no mundo, abordando seus aspectos mais ricos e variados,
assim como procuram evitar uma visão de vertente religiosa, de
que só teriam ocorrido acertos e nenhum erro na sua construção
e na sua expansão. Trata-se de um amplo e rico material a ser
lido e discutido, amplamente
No tocante aos aspectos positivos, eles podem ser resumidos
não apenas no que diz respeito ao espaço geográfico da Rússia
monarquista, que se tornou - com a chegada ao poder dos bolche-
viques - uma das maiores potências políticas e econômico-finan-
ceiras, em muito pouco tempo, sendo responsável principal pelas
vitórias positivas obtidas pelas forças progressistas, no desfecho
tanto da I como da II Guerra Mundial, ambas tendo como palco o
território da Europa.
Graças à existência da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS), e sob sua inspiração, foram enfrentadas e
derrotadas as forças coloniais e imperialistas, pondo-se fim ao
desumano e escravagista sistema colonial, que era comandado
sobretudo pela Grã-Bretanha, França e Estados Unidos, particu-
larmente nos continentes africano e asiático, e em algumas áreas
das Américas.

5
No plano político, particularmente no de caráter ideológico, a
URSS estimulou e deu assistência na construção dos Partidos
Comunistas, que foram surgindo em diferentes regiões do planeta,
como o nosso PCB, fundado em março de 1922, por um variado
grupo de nove intelectuais e lideranças sociais, à frente Astrojildo
Pereira, e envolvendo pessoas com as mais variadas posturas,
desde o marxismo, passando pelo trotskismo, anarquismo etc.
É importante ressaltar que, nas análises a seguir expostas,
seria recomendável nos concentrar – considerando a importância
para a continuidade da nossa batalha diária por uma sociedade
mais democrática e mais justa – nos erros que foram sendo come-
tidos por nossas lideranças russas, não apenas no processo de
conquista do poder, mas particularmente nas ações para se cons-
truir a nova sociedade, sem donos e patrões.
Destaque-se também, e como um elemento central, mas que
foi posto de lado – a democracia, subestimada como uma faceta
decisiva para quem quer construir uma nova sociedade. Não só o
nosso querido Vladimir Ilitch, o Lênin, como outros líderes desse
rico e exemplar processo político, foram se deixando envolver em
desvios que, com o tempo, foram se apresentando e revelando
suas funestas consequências, como bem demonstradas logo após
a ascensão de Josef Stálin, sobretudo no que diz respeito às liber-
dades e à importância da direção coletiva.
Dois momentos que precisam ser melhor estudados e dos
quais, lamentavelmente, não tivemos tempo de obter material
para exposição nestas páginas e para aprofundamento no debate,
se referem aos períodos e atitudes dos líderes soviéticos Nikita
Kruschëv, nos anos 1950 e 1960, e de Michail Gorbachëv, nos
anos 1980. Vamos continuar nossa pesquisa.
Boa leitura e bons debates!

Os editores

6 
Sumário

Julius Martov e a Revolução Russa


Claudio de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Relações entre o PCB e a Internacional Comunista (IC)
Dina Lida Kinoshita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
Revolução Russa: a distopia
Ernesto Caxeiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
Utopia e realidade no socialismo de Estado
Flávio R. Kothe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
Proletários de todo o mundo, perdoem-nos!
Hubert Alquéres . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
Um século russo
Ivan Alves Filho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
Revolução Russa e O Capital
José Antonio Segatto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
As duas vidas da Revolução Soviética
José Arlindo Soares. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
O plano menchevique e a NEP de Lenin
Júlio Martins. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
Eles eram justos e puros
Luiz Carlos Azedo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
1917
Luiz Sérgio Henriques. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
1917-2017 – Cem anos que abalaram o mundo
Marly de A.G.Vianna. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
A Revolução Russa de 1917: fevereiro ou outubro?
Paulo César Nascimento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125
O reformismo de Celso Furtado e a Revolução de 1917
Raimundo Santos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
Um marco na Humanidade
Roberto Freire . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147
A Revolução Russa de 1917 Erros – Acertos – Ensinamentos
Sergio Augusto de Moraes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153
A encruzilhada da revolução
Sérgio C. Buarque. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157
Legados do comunismo? Nacionalismo e Estado autoritário
Silvio Pons. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165
Julius Martov e a Revolução Russa

Claudio de Oliveira1

J
ulius Martov foi uma das mais proeminentes personagens
da Revolução Russa de 1917. Líder dos internacionalistas,
facção de esquerda dos mencheviques, ele se opôs à partici-
pação dos socialistas nos governos provisórios após a Revolução
de Março e a abdicação do czar Nicolau II.2 Foi também contrário
à permanência da Rússia na I Guerra Mundial. A continuidade no
conflito agravou a crise econômica do país e a insatisfação popu-
lar abriu caminho para a Revolução de Novembro, quando, então,
os bolcheviques tomaram o poder, liderados por Vladimir Lenin.3
No dia 8 de novembro, dia seguinte à insurreição, durante o 2º
Congresso dos Sovietes – os conselhos de representantes de
operários, camponeses, soldados e marinheiros – Martov propôs a
formação de um governo de união de todas as correntes do socia-
lismo russo para evitar que o país mergulhasse no caos. Para
desespero de Martov, a maioria dos mencheviques e socialistas
revolucionários se retirou do encontro em protesto contra o
levante. O gesto dificultou a negociação apoiada por líderes
bolcheviques como Grigori Zinoviev e Lev Kamenev. No entanto, a
resposta da maioria bolchevique à proposta veio de Leon Trotski:

1 Jornalista e cartunista.
2 Mencheviques – ala moderada do Partido Operário Social Democrata Russo,
banido em 1921.
3 Bolcheviques – ala radical do Partido Operário Social Democrata Russo que, a
partir de 1918, denominou-se Partido Comunista.

9
As massas populares seguiram nosso estandarte e nossa
insurreição é vitoriosa. E agora nos dizem: Renunciem à vitó-
ria, façam concessões, cedam. A quem? Eu pergunto: a estes
grupos deploráveis que nos abandonaram ou a quem apresenta
tal proposta? [...] Ninguém na Rússia continua ao lado deles.
Um acordo só pode ser firmado entre partes iguais [...]. Mas
aqui não há acordo possível. Àqueles que nos deixaram e àque-
les que nos aconselham a transigir, respondemos: Vocês são
corruptos miseráveis, sua função acabou; vão para onde devem
ir – para a lata de lixo da história.

Martov, então, se concentrou nas eleições para a Assembleia


Constituinte, realizadas no final daquele mês. Porém, os menche-
viques obtiveram uma votação de apenas 3%. Contrariando a
arrogância e o sectarismo de Trotski, os vencedores foram os
socialistas revolucionários, com 40% dos votos, ao suplantarem
os 24% dados aos bolcheviques.4 Os liberais do Partido Constitu-
cional Democrata obtiveram 5% dos votos. Em minoria e com
ajuda de soldados que participaram da insurreição, os bolchevi-
ques fecharam a Constituinte.
Iniciada a guerra civil, Martov apoiou o Exército Vermelho
contra a intervenção estrangeira e o Exército Branco, comandado
por generais monarquistas. Apesar do apoio ao governo soviético
no combate à contrarrevolução, o líder menchevique foi um crítico
contundente da repressão generalizada, opondo-se ao fechamento
de jornais liberais e às perseguições aos partidos que faziam
oposição pacífica. As posições de Martov indicavam a possibili-
dade de uma alternativa democrática e socialista tanto ao último
governo provisório – liderado pelo trudovique Alexander Kerensky
–, quanto à ditadura comunista que se seguiu.5 A bibliografia
sobre Martov em português é quase inexistente. Após o fim da
União Soviética, em 1991, foram publicados vários livros revalori-
zando o papel de Martov na Revolução Russa. Porém, a obra
fundamental sobre ele foi publicada ainda em 1967, pela Editora
da Universidade de Cambridge, do Reino Unido, em coedição com
a Universidade de Melbourne, da Austrália. Intitulada Martov – A
Political Biography of a Russian Social Democrat, é de autoria de

4 Partido Socialista Revolucionário – banido durante a guerra civil. A ala direita foi
acusada de apoiar o Exército Branco. A ala esquerda, inicialmente participou do
governo soviético, porém foi excluída ao se opor ao Tratado de Brest-Litovsky, de
paz com a Alemanha.
5 Trudovique — membro do Partido Trabalhista, dissidência do Partido Socialista
Revolucionário, surgido em 1905 e desintegrado após a Revolução de Novembro.

10 Claudio de Oliveira
Israel Getzler (1920-2012), professor da Universidade de Jerusa-
lém, e continua inédita no Brasil.

A questão democrática
A obra de Getzler traz as polêmicas entre Martov e Lenin, como
a de 1903, durante o 2º Congresso do Partido Operário Social
Democrata Russo (POSDR), sobre a organização do partido: se diri-
gido por um comitê centralizado, mas aberto à filiação de todos os
que aderissem ao seu programa, como defendido por Martov, ou se
por um círculo composto exclusivamente de revolucionários profis-
sionais, como queria Lenin. A proposta vencedora foi a de Martov.
O livro relata a ação posterior de Lenin para alcançar a maioria,
pois, mesmo vencendo no Congresso, Martov e seus partidários
ficaram em minoria no Comitê Central, o que causou a divisão do
POSDR em duas alas: mencheviques (partidários da minoria, em
russo) e bolcheviques (partidários da maioria).
A discussão sobre a forma de organização partidária revelava
duas questões de fundo que marcarão todas as divergências
entre Martov e Lenin: a avaliação que faziam do nível de desen-
volvimento econômico da Rússia e a concepção de cada um sobre
o Estado e a democracia. Lenin acreditava que o capitalismo
estava suficientemente desenvolvido para uma revolução socia-
lista e defendia um governo forte e centralizado – a ditadura do
proletariado. Martov avaliava que o país não estava suficiente-
mente industrializado, possuía um operariado pequeno e uma
grande massa de camponeses analfabetos. Propunha uma estra-
tégia democrática e reformista, como já praticada por socialistas
franceses e alemães.
Tais diferenças ficarão profundamente marcadas com a
chegada dos bolcheviques ao poder, quando os conceitos de demo-
cracia e ditadura do proletariado serão alvos de controvérsias
entre Lenin, Martov e Karl Kautsky, influente teórico do Partido
Social Democrata Alemão. Para estes dois últimos, a democracia
era um valor intrínseco ao ideário socialista. Para Lenin, apenas
uma formalidade. A visão leninista justificou a dissolução da
Constituinte e a repressão a todos os adversários, dos liberais aos
socialistas, como Martov.
Outra polêmica se estabeleceu a partir de 1914, com o início da
I Guerra Mundial e o colapso da II Internacional, a organização que
congregava os partidos socialistas europeus, dissolvida em 1916.

Julius Martov e a Revolução Russa 11


Vários daqueles partidos tomaram posições nacionalistas em apoio
ao esforço de guerra de seus respectivos países, enquanto outros se
opuseram ao conflito. O mais influente de todos eles, o Partido
Social Democrata Alemão, votou pelos créditos de guerra, alegando
que o Império Alemão se defendia das agressões do Império Russo.
Mencheviques como Georgi Plekhanov, um dos introdutores do
marxismo na Rússia, também tomaram posição nacionalista, acre-
ditando que a derrota da Alemanha seria a vitória da Inglaterra e
da França e, assim, dos valores democráticos.
No entanto, Martov formou uma ala do POSDR contra a guerra,
passando a sua facção a ser denominada de internacionalista.
Dessa vez, Martov e Lenin ficaram ao mesmo lado, ao considera-
rem o conflito uma disputa entre as potências europeias, estra-
nha aos interesses dos trabalhadores. Mas havia uma diferença:
enquanto Lenin propunha transformar a guerra imperialista em
guerra civil do operariado contra as classes dominantes, Martov
defendia uma proposta pacifista de armistício imediato, sem
anexações e reparações.
A aproximação entre mencheviques e bolcheviques levou a
uma tentativa de reunificação do POSDR, desejada por Martov.
Afinal, ele havia iniciado sua militância ao lado de Lenin, ambos
com pouco mais de 20 anos de idade, quando juntos fundaram,
em 1895, a Liga de Luta pela Emancipação da Classe Operária de
São Petersburgo, iniciando uma amizade e admiração mútua.
A Liga criou as bases para que ambos participassem da organiza-
ção do POSDR, em 1898. Estiveram juntos na redação do Iskra
(centelha), o jornal do partido, e compartilharam o exílio na Sibé-
ria e em vários países da Europa ocidental. Mas a união entre as
duas alas não prosperou, para desapontamento de Martov, retra-
tado na biografia como sentimental, indeciso, incapaz de desleal-
dades: o oposto de Lenin. De moral e ética rígidas para os padrões
bolcheviques, Martov pediu a expulsão de militantes envolvidos
em roubos a bancos para financiar a atividade partidária. Em
1918, denunciou publicamente Josef Stalin pela participação em
um assalto, em 1907, na capital da Geórgia, Tbilisi, em ação
desastrosa que teria deixado vários mortos.
Depois da Revolução de Novembro, Martov conquistou a maio-
ria no Comitê Central do POSDR, em oposição à ala direita do
partido, representada por Fyodor Dan, Pavel Akselrod e Irakli
Tsereteli. Em 1919, os mencheviques haviam resolvido aceitar o
governo soviético, adiar a batalha pela convocação da Consti-

12 Claudio de Oliveira
tuinte, protestar contra o esvaziamento dos poderes dos sovietes
e lutar para transformá-los em órgão de poder democrático e
parlamentar. Apesar de então se opor à contrarrevolução, o
partido menchevique sofreu a repressão dos bolcheviques, alter-
nando momentos de legalidade, proscrição e semiclandestinidade,
até ser definitivamente banido em 1921, ao defender as reivindica-
ções da revolta dos marinheiros bolcheviques do Kronstadt.
O jornal menchevique Avante foi fechado várias vezes. O próprio
Martov ficou em prisão domiciliar por cinco dias, e só teria esca-
pado da repressão da Tcheka, a polícia secreta que antecedeu a
KGB, por proteção de Lenin. Na ocasião da proscrição do POSDR,
Martov estava na Alemanha para tratamento de saúde.

Inspiração para a NEP


Com a desilusão de muitos operários após o fracasso econô-
mico do comunismo de guerra, período no qual todos os setores
da economia foram estatizados e o Estado monopolizou a compra
da produção agrícola e impôs baixos preços aos produtores,
causando desabastecimento e fome, os mencheviques consegui-
ram alguns êxitos nas eleições dos sovietes locais. No início de
1920, apresentaram o nome de Martov para a eleição ao soviete de
Moscou, e, para confrontar o líder menchevique, os bolcheviques
apresentaram a candidatura de Lenin. Durante uma votação
entre operários em uma fábrica de produtos químicos, Martov
obteve 76 votos contra oito dados a Lenin.
A ação de Martov e de seus partidários não foi apenas crítica,
como também propositiva. Em julho de 1919, em meio à guerra
civil e à grave crise econômica, os mencheviques apresentaram
um programa econômico alternativo ao comunismo de guerra.
Defenderam um regime de economia mista, no qual o setor estatal
deveria conviver com o setor privado. Segundo o programa,
somente setores fundamentais da grande indústria deveriam ser
nacionalizados. Defenderam que os camponeses deveriam decidir
livremente sobre produção e preços e o Estado deveria negociar
acordos com cooperativas para o abastecimento das cidades,
entre outras medidas. Geztler sugere que tal programa serviu de
base para que Lenin formulasse, em fevereiro de 1921, a Nova
Política Econômica, a NEP, em substituição ao comunismo de
guerra, então motivo de greves e protestos.

Julius Martov e a Revolução Russa 13


Com a NEP, várias proposições dos mencheviques foram
adotadas e medidas de mercado foram introduzidas na combalida
economia soviética, inclusive a permissão ao investimento estran-
geiro. Apesar da oposição da esquerda bolchevique, encabeçada
por Trotski, Lenin conseguiu aprovar a NEP e a defendeu como
um capitalismo de Estado, necessário para recuperar a economia
e fazer uma transição ao socialismo. O plano começou a tirar o
país da crise e teve o apoio de Nikolai Bukharin, um economista
bolchevique que gradualmente passou de posições políticas radi-
cais para moderadas. Após o afastamento de Lenin por motivo de
saúde, na segunda metade de 1921, Bukharin se tornou o princi-
pal defensor da NEP e fez oposição ao plano de industrialização
acelerada e coletivização forçada lançado por Stalin em 1928.
Bukharin foi fuzilado nos expurgos na década de 1930.

A terceira via
Em 1920, Martov foi autorizado a deixar a Rússia para trata-
mento de saúde na Alemanha e participar da convenção do Partido
Independente Social-Democrata Alemão (cuja sigla em alemão era
USPD), na cidade de Halle. Naquele ano, o USPD havia sido o
segundo partido mais votado, com 17,9% dos votos, abaixo apenas
do governante Partido Social-Democrata, o SPD, que conquistara
21,7%. Martov fora convidado pelos moderados do USPD para
convencer os socialistas alemães a não aderirem à Internacional
Comunista (IC), a III Internacional, criada em 1919 por Lenin, e
que estimulou os radicais dos partidos socialistas a fundarem os
partidos comunistas. Para fazer o contraditório com Martov, a ala
esquerda do USPD convidou o presidente da IC, Grigori Zinoviev.
Com a saúde abalada e a voz fraca, Martov não conseguiu termi-
nar o seu discurso, lido então por um dos presentes. A proposta
de adesão à IC ganhou o apoio de 236 contra 150 dos convencio-
nais e a ala esquerda aderiu ao PC alemão. Porém, três quartos
da bancada de 81 deputados permaneceram no USPD.
Como resultado da intervenção de Martov, o USPD se articulou
com o Partido Social-Democrata Operário da Áustria e outros para
fundarem, em janeiro de 1921, a União de Partidos Socialistas para
a Ação Internacional, conhecida também como a Internacional de
Viena ou a Internacional Dois e Meio, que buscou uma via interme-
diária entre o comunismo da III Internacional e a socialdemocracia
da II Internacional. Martov fez parte da direção da Internacional de
Viena ao lado de líderes socialdemocratas da Áustria, como Otto

14 Claudio de Oliveira
Bauer. Chamados de austromarxistas, o programa de reformas
sociais e econômicas dos socialdemocratas austríacos influenciará
posteriormente na constituição do Estado do Bem-Estar Social nos
países escandinavos. E também inspirará, na década de 1970,
Enrico Berlinguer, secretário-geral do PC italiano, a formular o
eurocomunismo, com o qual reconhece a democracia como valor
universal e oficializa o rompimento dos comunistas italianos com o
modelo soviético. A Internacional de Viena existiu até 1923, quando
se fundiu à II Internacional, reorganizada em 1920, para criar a
Internacional Operária e Socialista.
Martov morreu na Alemanha em abril de 1923, meses antes
de completar 50 anos de idade, vítima de tuberculose. Em 1922,
Lenin havia sofrido um primeiro acidente vascular cerebral.
Afastado do poder, agora sob o mando de Stalin, paralisado do
lado esquerdo e com dificuldades de falar, Lenin teria tentado se
reconciliar com Martov. Em cadeira de rodas, costumava apon-
tar para livros de Martov em sua estante e pedia que um moto-
rista o levasse até ele. Geztler cita Reminiscências de Lenin,
livro de memórias de Nadezhda Krupskaya, mulher do fundador
da União Soviética, para descrever o abatimento dele ao receber
a notícia da gravidade da doença do antigo amigo e camarada:
“Vladimir Ilyich estava seriamente doente quando me falou certa
vez com muita tristeza: ‘Dizem que Martov está morrendo
também’”. Lenin morreu em janeiro de 1924 aos 53 anos, menos
de um ano depois de Martov.
No Brasil, a inexistência de obras de e sobre Martov contrasta
com a profusão de biografias e de livros de autoria de Lenin,
sustentando a persistência da influência do leninismo em parce-
las expressivas da esquerda brasileira. Num momento em que
setores esquerdistas na América Latina flertam com soluções
autoritárias, o resgate de Martov e de suas ideias democráticas
talvez fosse útil ao debate público.

Referências
FIGES, Orlando. A tragédia de um povo. A Revolução Russa 1891-
1924. Rio de Janeiro: Record, 1999.
Getzler, Israel. Martov – A Political Biography of a Russian Social
Democrat. Cambridge Univesity Press/Melbourne University Press,
2003.

Julius Martov e a Revolução Russa 15


Relações entre o PCB e a
Internacional Comunista (IC)

Dina Lida Kinoshita1

O anarquismo no Brasil
Embora houvesse lutas sociais e revoltas de escravos desde o
Brasil Colônia, e uma greve memorável de gráficos, no Rio de
Janeiro, em 1852, um movimento operário, ainda que incipiente,
começou a se organizar logo após ser abolida a escravidão em
1888, e a proclamação da República, no ano seguinte.
Último país da América a abolir a escravidão, até esta data,
praticamente não havia mão de obra livre no Brasil, essencial-
mente agrário. As primeiras levas de imigrantes europeus chega-
ram na década de 80 do século 19 para substituir a mão de obra
escrava nas lavouras cafeeiras, bem como para estabelecer um
novo tipo de produção agrícola nas colônias do Paraná, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul. Estes imigrantes chegaram de
vários países europeus: poloneses, lituanos e ucranianos do Impé-
rio da Rússia czarista, Alemanha, Itália e Espanha entre outros.
Os imigrantes destes dois últimos países se estabeleceram com
maior facilidade, uma vez que existiam maiores afinidades linguís-
ticas e religiosas. Entre italianos e espanhóis havia um grande
contingente de anarquistas e os italianos chegaram a estabelecer
colônias (KUPPER, 1993), e também passaram a influenciar o
movimento operário no seu nascedouro. Embora já houvessem
pequenos círculos de “socialistas vulgares” entre a intelectuali-

1 Foi membro da Cátedra Unesco de Educação para a Paz, Direitos Humanos,


Democracia e Tolerância, IEA-USP, entre 1997 e 2016.

17
dade brasileira, desde a segunda metade do século 19, o movi-
mento anarquista se espraiou pelo país, publicando jornais
(SODRÉ, 1966), e organizando sindicatos e centros operários, com
o que adquiriu grande expressão. Em 1906, foi organizado um
grande Congresso, que deu origem à Confederação Operária Brasi-
leira (COB), em 1908. No entanto, não havia nenhuma preocupa-
ção em organizar um partido devido a princípios ideológicos.
Com a eclosão da I Guerra Mundial (1914-1918), o Brasil teve
sua primeira industrialização de “substituição de importações”,
uma vez que os tradicionais fornecedores europeus não tinham
mais como suprir os produtos necessários ao consumo brasileiro.
Isto acarretou um expressivo crescimento numérico da classe
operária e as ideias anarquistas tinham uma grande penetra-
ção, apesar da repressão ferrenha do poder estabelecido. Entre-
tanto, “os anarquistas continuavam rejeitando a luta política do
proletariado, dirigindo-a para o plano eminentemente econô-
mico” (Bandeira, 1967). Este ciclo de movimento operário e
sindical teve seu auge em 1917, quando os anarquistas estavam
na linha de frente do proletariado, num contexto em que a I
Guerra Mundial agravou as condições de vida das massas brasi-
leiras. “Os gêneros alimentícios sumiram do mercado. Os
aluguéis atingiram níveis proibitivos. Fecharam-se as pequenas
operações de crédito. Os agiotas pululavam nas portas das fábri-
cas e nas repartições públicas. Os industriais agravavam ainda
mais as condições de trabalho do proletariado. Os comerciantes
estocavam mercadorias aguardando melhores preços ou condi-
ções de aumentá-las” (Bandeira, 1967). Tudo isto gerava uma
enorme revolta e a eclosão de movimentos grevistas em todos os
Estados importantes do país. Apesar do denodo e heroísmo dos
anarquistas, estes não possuíam suficiente organização e todo o
movimento entrou em colapso.
No entanto, é preciso notar que práticas anarquistas são
ressuscitadas pelo PT e entidades sociais vinculadas a este
partido. Como exemplos pode-se citar a luta sindical, meramente
por melhorias salariais, sem se dar conta das mudanças acarre-
tadas pela globalização e pela Revolução Técnico Científica, além
de ser contrário a mudanças de uma legislação trabalhista
copiada da Carta del Lavoro do fascismo italiano ou das escolas
do Movimento dos Sem Terra (MST), que se parecem com as
“colmeias” (La Ruche) dos anarquistas franceses do passado.

18 Dina Lida Kinoshita


Cisão do movimento socialista internacional e criação da
Internacional Comunista
Por sua vez, do outro lado do mundo, os bolcheviques tomam
o poder no mesmo ano de 1917, na Rússia, após uma longa jornada
de lutas, que se inicia ainda antes da frustrada Revolução de
1905. (GROL, 1976).
Durante a I Guerra Mundial, o movimento socialista interna-
cional sofreu um duro embate. Embora a II Internacional (1889-
1914), núcleo principal de reunião dos partidos marxistas do
mundo, especialmente da Europa, tradicionalmente defendesse a
paz mundial contra as guerras entre os países capitalistas, vários
parlamentares de sua principal corrente, a socialdemocracia,
aprovaram os créditos dos governos de seus países para financiar
a participação no conflito. Dois dos principais expoentes socialis-
tas radicais que já tinham expressado posições mais consequen-
tes pela manutenção da paz, durante a guerra, se desfiliaram da
II Internacional: o russo Vladimir Ilich Lenin, fundador da
corrente bolchevique do Partido Operário Social Democrata da
Rússia (1903), e a polonesa, militante do Partido Socialista Alemão
(SPD), Rosa Luxemburg, fundadora da Liga Espartaquista (1915).
Em outubro de 1917, pelo calendário juliano, ou novembro,
pelo gregoriano, Lenin liderou uma revolução que derrubou o
governo provisório de Kerenski, sucessor do czarismo russo (este
abolido em fevereiro) e pôde, assim, aplicar na prática sua política
socialista radical, chamada de “comunista”, uma ruptura completa
com a velha socialdemocracia da II Internacional, a qual julgava
“oportunista” e “reformista”. Em decorrência dessa ruptura, e a
necessidade de consolidar a Revolução Russa, era preciso criar
uma nova organização mundial que agregasse todos os outros
movimentos comunistas ou de sovietes, também protagonistas de
revoluções em curso na convulsionada Europa do pós-guerra.
Assim, por iniciativa bolchevique, foi fundada, em 1919, a III
Internacional, ou Internacional Comunista, ou ainda Comintern,
para sustentar a nova onda revolucionária e opor-se fortemente
ao reformismo e ao colonialismo.
Mas a vaga soviética na Europa não vingou do jeito que os
comunistas planejavam (PONS, 2014), e o movimento precisou
cerrar ainda mais suas fileiras para que os insucessos e a repres-
são institucional não o desagregassem, de vez. Todas as insur-
reições foram sufocadas e os russos ficaram isolados, especial-
mente após a queda da efêmera República Soviética Húngara, de

Relações entre o PCB e a Internacional Comunista (IC) 19


Bela Kuhn. Foi o fim desta breve experiência no poder que
influenciou Lenin a enrijecer as condições para que os partidos
fossem admitidos na IC, buscando afastar tendências menos
radicais que pudessem diluir a combatividade da organização.
O líder propôs, então, em seu II Congresso Mundial (julho a
agosto de 1920), 19 pontos que deveriam ser seguidos pelos
candidatos ao ingresso na jovem Internacional.
Discutidas previamente numa comissão especial, as 19 condi-
ções sofreram leves alterações, tendo sido adicionada, por inicia-
tiva do próprio Lenin, aquela que se tornaria a condição 20 (sobre
a composição dos principais órgãos centrais) e transformada a
condição 12 no segundo parágrafo da primeira (ambas tratando
da imprensa e da propaganda partidárias). Em seguida, debati-
das em plenário, essas novas 19 condições, aceitas prontamente
por uns e rejeitadas fortemente por outros, foram acrescidas
ainda das de números 18 (publicação dos documentos do Comitê
Executivo da Internacional Comunista) e 21 (expulsão dos mili-
tantes contrários às 21 condições), esta última, considerada a
mais drástica, por incentivo especial do italiano Amadeo Bordiga.
Aprovado o documento, estava doravante fixado “o marco que
dividiria o antigo socialismo institucionalizado e o comunismo
renovador e inconformista”.

Fundação do PCB
Diferentemente dos países do Cone Sul da América Latina, as
ideias marxistas chegaram tardiamente ao Brasil. Nunca houve
um partido socialista expressivo no país, como os partidos socia-
listas do Uruguai, Argentina ou Chile, fundados em fins do século
19 ou nos primórdios do século 20. Mesmo sem raízes nos movi-
mentos sociais organizados, somente no II pós-guerra, em 1947, é
que surgiu no Brasil um Partido Socialista que se mantém até hoje.
Mas foram intelectuais anarquistas brasileiros que se deram
conta dos motivos do colapso. Astrojildo Pereira, um ex-anar-
quista, um dos fundadores do PCB, constata: “As grandes greves e
agitações de massas do período de 1917/20 puseram a nu a inca-
pacidade teórica, política e orgânica do anarquismo para resolver
todos os problemas de direção de um movimento revolucionário de
envergadura histórica, quando a situação objetiva do País (em
conexão com a situação mundial criada pela guerra imperialista
de 1914/18 e pela vitória da Revolução operária e camponesa na

20 Dina Lida Kinoshita


Rússia) abria perspectivas favoráveis a radicais transformações
na ordem política e social dominantes”. (Pereira, 1962).
Foi após a derrocada do anarquismo brasileiro e a tomada do
Palácio de Inverno pelos bolcheviques russos, em 1917, que se inicia-
ram tentativas para criar um Partido Comunista, ainda em 1919.
O ano de 1922 caracteriza-se por uma grande efervescência
tanto no plano internacional quanto no nacional. No Brasil, ele é
marcado por manifestações que expressam os grandes anseios
por mudanças na esfera artístico-cultural representada pela
Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, no mês de
fevereiro, como na esfera sociopolítica, pelo Movimento Tenen-
tista, constituído por militares de média e baixa patentes, que
perderam protagonismo desde a Presidência de Hermes da
Fonseca, em particular, e pela pequena burguesia urbana, de um
modo mais geral. Essas manifestações ocorrem num contexto de
desagregação das velhas oligarquias rurais e aprofundamento do
modo de produção capitalista. Esses setores passam a reivindicar
uma série de direitos liberais como uma nova Constituição repu-
blicana que represente o novo mundo que emerge e sobrepuja o
mundo rural, eleições secretas sem fraudes nem corrupção, e
liberdade de expressão e comunicação. A primeira crise institu-
cional acontece com o levante tenentista, conhecido como o
Levante dos 18 do Forte, por ter ocorrido no Forte de Copacabana,
no Rio de Janeiro, em 1922. Outro ocorreu em 1924, em São
Paulo, comandado por Isidoro Dias. Derrotado, este conduziu as
tropas rebeldes para o Paraná. Esta tropa se uniu às tropas
gaúchas rebeladas em 1923, comandadas por Luiz Carlos Pres-
tes, para formar a Coluna Prestes. Esta Coluna deslocou-se, ao
longo de dois anos, por cerca de 25 mil quilômetros, atravessando
grande parte do território nacional. Sem muito apoio popular,
sofrendo perseguições e cercos, sem uma clareza política e ideo-
lógica, a Coluna se desagregou. em um ambiente caracterizado
por uma democracia muito frágil, com seguidas crises institucio-
nais, e um movimento social que apresentava muitas debilidades,
em especial, no seio do movimento operário. No plano internacio-
nal, ocorreu a reconstrução europeia após a I Guerra Mundial e,
sob o impacto da Revolução Socialista de Outubro de 1917, seto-
res expressivos da humanidade sentiram-se estimulados por
ideias libertárias e revolucionárias. (Malina, 2002).
É nesse contexto que o Partido Comunista do Brasil (PCB) foi
finalmente fundado no I Congresso, realizado entre os dias 25 e

Relações entre o PCB e a Internacional Comunista (IC) 21


27 de março de 1922, em Niterói. Participaram desse evento nove
delegados nacionais, representando 73 membros de diversos
agrupamentos comunistas existentes nas cidades do Rio de
Janeiro, Niterói, São Paulo, Recife, Cruzeiro (MG) e Porto Alegre,
a saber: Abílio de Nequete (barbeiro), Astrojildo Pereira (jorna-
lista), Cristiano Cordeiro (professor), Hermógenes da Silva (eletri-
cista), João da Costa Pimenta (gráfico), Joaquim Barbosa (alfaiate),
José Elias da Silva (sapateiro e operário da construção civil), Luís
Peres (vassoureiro) e Manuel Cendón (alfaiate). Sete deles eram
egressos das fileiras anarco-sindicalistas. Os únicos, com origens
socialistas, eram os estrangeiros Manuel Cendón, espanhol, e
Abílio de Nequete, libanês. O Congresso foi convocado para que
houvesse tempo hábil para enviar uma delegação a Moscou, para
o IV Congresso da IC, a se realizar em novembro de 1922.
O grande motor deste projeto era Astrojildo Pereira. Intelec-
tual autodidata era homem de letras, com vasta leitura de obras
nacionais e universais, conhecia obras de Marx e Engels. Dife-
rentemente de outros intelectuais anarquistas, teve facilidade de
migrar para as ideias marxistas. Ainda em 1915, organizou, no
Brasil, um movimento pela paz mundial, contra a I Guerra
Mundial. Mas o secretário-geral eleito no I Congresso foi Abílio
de Nequete. Astrojildo foi eleito no I Congresso, membro da
Comissão Executiva Central (CEC), Secretário de Imprensa e
Secretário Internacional do PCB. Mas esse partido teve várias
crises de ordem tática, durante a primeira década de sua exis-
tência. A primeira delas, em 1923. O próprio secretário-geral
não concordava com as 21 condições impostas para admitir um
partido na IC. Ademais, esta organização desconfiava de um
partido com tamanha hegemonia anarquista. Antonio Bernardo
Canellas, um gráfico, foi indicado para a Comissão Executiva
Central (CEC) do PCB e delegado ao IV Congresso da IC. Anar-
quista libertário e místico, não era um estudioso, mas um
ativista voluntarioso. Antes de chegar a Moscou, teve contato
com anarquistas na França. O IV Congresso da IC se concen-
trou, prioritariamente, no debate de problemas existentes no
PCF, tais como a grande influência da maçonaria, entre outros.
Canellas teve um comportamento inadequado no IV Congresso:
defendeu a maçonaria, inadmissível para os bolcheviques e
mentiu ao informar que o PCB tinha chegado a 500 militantes,
quando na verdade, eram 123. Elaborou um relatório confuso,
pouco objetivo, criticando os dirigentes da IC. Solicitado a refor-
mulá-lo, recusou-se a fazê-lo. (CARONE, 1981).

22 Dina Lida Kinoshita


Surgindo com o nome de Partido Comunista, Seção Brasileira
da Internacional Comunista, o PCB acatou as 21 condições políti-
cas e orgânicas da IC, e foi admitido nesta organização graças ao
empenho de Astrojildo Pereira e Octávio Brandão, que aderiu ao
PCB no final de 1922, e depois da expulsão de Nequete e Canellas.
Astrojildo assumiu a Secretaria Geral do PCB e Octávio2 a Secre-
taria de Relações Internacionais.
Durante as primeiras décadas de sua existência, o PCB sofreu
as vicissitudes da Internacional Comunista. De um modo mais
geral, pode-se afirmar uma vinculação histórica do PCB com o
chamado “socialismo real”, identificado com a URSS até à sua
derrocada, em 1991. Entretanto, a trajetória do PCB é caracteri-
zada por duas linhas gerais contraditórias: ora prevalecia o
dogmatismo, que acabava por transformá-lo num instrumento de
políticas e concepções vindas de fora; ora prevalecia um Partido
que se rebelava e se recusava a levar à frente essas mesmas polí-
ticas e concepções, procurando, desse modo, traçar e seguir seu
próprio caminho. É claro que estas duas vertentes não podem ser
examinadas de maneira maniqueísta, visto que, em muitos episó-
dios, os personagens e as políticas interagem de uma maneira
complexa e interdependente.
Não se pretende neste trabalho escrever um tratado da histó-
ria do PCB e sua origem na Revolução Russa. Procura-se tratar
de dois episódios mais marcantes.
Astrojildo teve um grande protagonismo no movimento comu-
nista. Como Secretário Geral do CEC do PCB na IC (1923-1924),
participou do V Congresso da IC (1924), sem ser delegado oficial,
e foi eleito membro sul-americano da Comissão Internacional de
Controle (CIC) (JEIFETS; JEIFETS, 2015). O V Congresso ainda
foi convocado sob a direção de Lenin, porém este líder faleceu em
janeiro de 1924 e pode ser considerado como uma transição para
o stalinismo. Foi nesse congresso que se definiu “a construção do
socialismo num só país” e a manutenção da política de Frente
Única nos outros países, em apoio a esta orientação. Daí em

2 Otávio Brandão participou do movimento revolucionário desde os 15 anos. Teve


grande atividade como anarquista. Aderiu ao PCB no final de 1922. Participou
no trabalho do Comitê de Ajuda aos famintos do Volga (1923). Assistiu à reunião
do Secretariado Sul-Americano da IC, em Buenos Aires, onde foi criticado por
“apoiar e difundir a teoria da revolução democrática pequeno-burguesa” (1930).
Para não ser expulso do Partido fez sua autocrítica (1930). Depois da Revolução
Liberal, foi preso e expulso do Brasil. Seguiu inicialmente para a Alemanha e,
posteriormente, viveu na URSS, por muitos anos.

Relações entre o PCB e a Internacional Comunista (IC) 23


diante, sob a égide do stalinismo, os congressos deixaram de ser
anuais, e até 1943, quando a organização foi dissolvida, só se
realizaram dois: o VI, em 1928, e o VII, em 1935.
As relações entre tenentistas e comunistas eram muito tensas.
O PCB acusava os tenentistas de serem linha auxiliar da burgue-
sia e das oligarquias. Estas tensões foram responsáveis por crises
táticas e expulsões. No seu II Congresso, realizado entre 16 e 18
de maio de 1925, no Rio de Janeiro, o Partido fez a primeira tenta-
tiva de abordar a realidade nacional de um ponto de vista de
classe. Embora de uma forma precária e incipiente, a análise
partia de uma concepção dual “agrarismo versus industrialismo”.
Na Resolução Política, é evidente a opção pelo “industrialismo”,
expressão inequívoca de progressismo e sentido histórico. Após
este Congresso, o PCB decidiu finalmente apresentar-se a uma
eleição, criando a legenda do Bloco Operário. Tal decisão decorreu
não só da orientação estabelecida no IV Congresso da IC, em
1922, de que fosse adotada uma política de Frente Única, mas
também, do desejo dos comunistas brasileiros de preparar uma
base orgânica e política legal para o PCB e atrair para suas ideias
e ações segmentos sociais mais amplos, em especial da pequena
burguesia urbana. A partir de 1926, ingressam no PCB os intelec-
tuais Leôncio Basbaum, Mario Pedrosa, Lívio Xavier, entre outros.
Finalmente, foi lançado, em janeiro de 1927, o Bloco Operário.
Leônidas de Resende, proprietário do diário A Nação, do Rio de
Janeiro, cedeu o seu jornal ao PCB, para divulgar suas posições
e as do Bloco Operário. Assim, em 5 de janeiro de 1927, os comu-
nistas publicaram, nas páginas desse jornal, uma Carta Aberta
dirigida a personalidades e organizações reformistas do Rio de
Janeiro, propondo a adesão à criação de uma Frente visando às
eleições para a Câmara dos Deputados. Em sua Carta Aberta, o
PCB propunha a seus interlocutores a criação do Bloco Operário,
nos marcos de uma política de “frente única” que tinha por obje-
tivo juntar os esforços de todos, em razão de sua “afinidade básica
de interesses”, para a disputa eleitoral. A Carta apresentava algu-
mas ideias básicas e uma plataforma a ser seguidas pelos aderen-
tes. Uma série de organizações e o deputado federal carioca João
Batista de Azevedo Lima concordaram com os termos. Formada a
Frente Única, pretendiam iniciar um combate à “política persona-
lista, individualista e irresponsável dos cabos eleitorais sem prin-
cípio, sem programa e sem finalidade” e garantir, assim, o compro-
misso dos políticos com as massas.

24 Dina Lida Kinoshita


A plataforma apresentada na Carta propunha a unificação de
todas as reivindicações propostas ao longo do tempo, em grandes
jornadas de luta e o compromisso e defesa das lutas operárias por
seus direitos políticos e trabalhistas, liberdade de associação e
reunião, bem como de expressão e comunicação.
Embora o deputado Azevedo Lima não fosse militante do PCB,
por sua adesão à Carta Aberta, sua candidatura foi acolhida na
chapa do Bloco Operário, da qual participava também o gráfico
comunista João da Costa Pimenta. Nas eleições de março de 1927,
por sua experiência eleitoral, Lima foi reeleito, obtendo 11.502
votos, enquanto Pimenta teve um resultado pífio, de 1.965 votos.
A repressão ao movimento tenentista e ao PCB e sua legenda legal,
o Bloco Operário, vai num crescendo. A vitória de Azevedo Lima e
a grande influência exercida pelo diário A Nação como meio de
divulgação e organização, do PCB e do Bloco Operário, provoca-
ram uma reação por parte do governo presidido por Washington
Luis, quando é aprovada a Lei Celerada (Decreto nº 5.221, de 12
de agosto de 1927). Esta lei visava jogar o PCB novamente na
clandestinidade. Aprovada pelo Congresso Nacional, a lei de
repressão previa “atos contrários à ordem, moralidade e segu-
rança públicas”. Ela censurava a imprensa e restringia o direito
de reunião da população.
A Lei Celerada obrigou os comunistas a buscar uma nova
forma de ação para que pudessem manter uma expressão pública,
ainda que não de forma explícita. Em novembro de 1927, a legenda
política-eleitoral teve seu nome alterado para Bloco Operário e
Camponês (BOC). A possibilidade de realizar debates e comícios,
fazendo uso do nome do BOC e contando com a presença do depu-
tado Azevedo Lima, presidente da organização, bem como o traba-
lho de alistamento de eleitores numa base mais ampla – que signi-
ficava, também, a possibilidade de se obter novos militantes para
o PCB –, abriam um amplo espectro de oportunidades de ação.
Esse novo formato do BOC fez com que ele começasse a cres-
cer e a se implantar pelo país. A partir de então, e ao longo dos
anos de 1928 e 1929, foram se formando seções estaduais, locais
ou de categorias profissionais em quase todos os estados do país.
No entanto, foi em sua unidade mais bem organizada, a do Rio de
Janeiro, que o BOC obteve uma vitória significativa nas eleições
de 28 de outubro de 1928, com a eleição de dois vereadores para
o Conselho Municipal do Distrito Federal. Pela primeira vez em
sua história, o PCB conseguiu levar a uma casa parlamentar dois

Relações entre o PCB e a Internacional Comunista (IC) 25


de seus militantes: o farmacêutico Octávio Brandão do Rego, com
7.650 sufrágios, e o marmorista Minervino de Oliveira, primeiro
operário negro eleito no Brasil, com 8.053.
Por interferência da IC, com o propósito de colaborar com o
líder da Coluna, Astrojildo encontrou-se com Luíz Carlos Prestes,
na Bolívia, no fim de 1927. Palmiro Togliatti, assistente da IC para
a América Latina, escreveu duas cartas a Prestes, em 1928.
É possível que estas cartas esclarecessem algo sobre os aconteci-
mentos ocorridos na época, no Brasil. Consta, porém, que estão
extraviadas nos arquivos de Moscou. O Instituto Gramsci não
possui cópias e, até o momento, não há vestígio delas no Brasil.
A eleição dos dois representantes do BOC marcou o ápice da
organização e também o início de sua dissolução. Houve desen-
tendimentos entre o PCB e o presidente do BOC, que acabou se
afastando, agastado da sua atividade como dirigente e foi deste
expulso em 1929, por rompimento de acordos pactuados. Foi
substituído na presidência pelo gráfico comunista João da Costa
Pimenta, o que estreitou a organização. Mas, o que enterrou o
BOC foi a nova orientação política definida pela IC no seu VI
Congresso, em 1928.
O III Congresso do PCB, realizado entre 29 de dezembro de
1928 e 4 de janeiro de 1929, em Niterói-RJ, foi precedido de forte
luta ideológica, sob influência estreita das orientações inspiradas
na tática adotada pela IC de “classe contra classe”. O Partido
optou pelo “obreirismo”, expulsou seus intelectuais, entre eles,
Astrojildo Pereira,3 seu fundador. Se foi capaz de explicitar novos

3 Astrojildo assiste ao VI Congresso da IC (1928) como delegado, e é eleito


membro brasileiro do Comitê Executivo da IC (CEIC). Depois da reorganização
da SSA da IC, em maio de 1928, foi membro brasileiro da SSA. Participou
nas discussões das questões brasileira e chilena pelo SSA, em julho de 1928.
Faria um informe sobre a questão do BOC na I Conferência Comunista Latino-
Americana, em Buenos Aires, em junho de 1929, mas não assistiu ao evento.
Participou no X Pleno do CEIC, eleito membro do seu Presidium pelo pleno,
na reunião do CEIC, em setembro de 1928. Participou das reuniões do SSA,
em 1929. Expôs um documento durante a discussão da questão brasileira em
22/10/1929 e se tornou representante dos PCs da América Latina na redação
da Revista Comunista Internacional. Depois da reunião da direção do PCB,
na SSA da IC, em Montevidéu, em 1930, Astrojildo insistiu na expulsão de
P. Melo do Partido, por seu “trotskismo” . Foi criticado pela SSA da IC por
“direitista”, em 4 de maio de 1930, e afastado do cargo de secretário-geral
do PCB por sua intenção de incluir o Partido no “Golpe de Estado preparado
pela Aliança Liberal” e seu Bloco com elementos burgueses, em novembro de
1930. Propuseram-lhe reconhecer seus erros e trabalhar no Comitê de São
Paulo do PCB. Foi detido em São Paulo, em 08/1931, e expulso do PCB, em

26 Dina Lida Kinoshita


parâmetros organizacionais e funcionais, do ponto de vista polí-
tico, sua tese da “terceira onda revolucionária”, sobre o imediato
futuro político do país, foi um grande equívoco. A dinâmica da
luta de classes no país e no mundo problematizou a Resolução do
III Congresso, no tocante à consolidação da revolução burguesa
no Brasil e os eventos de 1930. Embora houvesse no país grande
turbulência política e econômica, explicitada, sobretudo, pelo
tenentismo desde 1922, foi na esteira da crise mundial de 1929
que entrou em colapso a estrutura oligárquica, expressão política
da economia latifundiária. No entanto, com a deposição do presi-
dente da República, Washington Luís, em outubro de 1930, e o
estabelecimento de um Governo Provisório, aflora a heterogenei-
dade de composição surgida da luta militar: de um lado, a corrente
tenentista com seu programa reformista e, do outro, a corrente
tradicional, disposta a alijar a primeira e dar ao Estado a feição
conveniente aos seus interesses. Se, num primeiro momento, há
um rompimento com o latifúndio, aos poucos, a burguesia tende
a se compor com ele, eliminando a componente mais avançada
com quem havia se aliado para derrubar a oligarquia latifundiá-
ria (SODRÉ, 1976). Neste processo contraditório, dá-se o ingresso
de Luíz Carlos Prestes no PCB, com a interferência direta da IC.
Em 1930, o PCB, quando muito, era um projeto de partido
completamente instável e nada consolidado, na medida em que
fracassava no estabelecimento de alianças e quando optava ou
era condenado a ficar à margem da primeira experiência do
poder e da política nacionais. Mesmo com os êxitos de ações
decorrentes dos esforços dos seus fundadores, que se expressam
no jornal diário de sucesso – A Nação – e da experiência do Bloco
Operário e Camponês (BOC) que logrou eleger um deputado
federal, em 1927, e dois vereadores na capital da República, em
1928, não há como esconder que foi a ação do Estado, de um
lado, e a intervenção da IC e a adesão de Luíz Carlos Prestes, de
outro, que deram viabilidade e retiraram o partido do gueto
sindical. (BRANDÃO, 1997).
O PCB passou 25 anos sem realizar um congresso, embora
tenham ocorrido vários acontecimentos dramáticos no país.
O surgimento da Aliança Nacional Libertadora (ANL) e o Levante
Comunista de 1935, em Natal, Recife e no Rio de Janeiro, certa-
mente refletem as discussões que precederam o VII Congresso da

1932. Assistiu à reunião da SSA da IC, em Buenos Aires, onde foi criticado por
“divulgar a teoria da revolução democrática pequeno-burguesa”, em 1930.

Relações entre o PCB e a Internacional Comunista (IC) 27


IC, em julho de 1935. Embora estes dois importantes eventos
tivessem fortes componentes nacionais decorrentes das contradi-
ções de 1930, eles foram influenciados por acontecimentos exter-
nos, tendo como pano de fundo a crise econômica mundial deto-
nada pelo crack da Bolsa de Nova Iorque.
Nesse ínterim, em meados dos anos 1930, o movimento comu-
nista internacional foi protagonista de acontecimentos dramáti-
cos. Com a consolidação do poder stalinista na União Soviética e
a decisão da construção do socialismo num só país, a política da
IC se resumia na “luta de classe contra classe”. Mas esta política
sofreu uma derrota de grandes proporções na Alemanha, onde a
divisão entre comunistas e socialdemocratas (denominados pelos
comunistas de social-fascistas) abriu caminho para a ascensão
dos nazistas ao poder. Nos anos imediatamente subsequentes
ocorreu um imenso debate na IC, pois o líder comunista búlgaro
Ghiorgy Dimitrov havia proposto uma mudança radical de linha
política, consubstanciada nas “frentes populares” (REIS, 1981)
para derrotar o nazifascismo. Forças expressivas discordavam da
mudança, tentando demonstrar que a linha anterior era mais
correta. No Brasil, em particular, os acontecimentos assumiram
maior gravidade. Tendo em vista uma série de questões não resol-
vidas na Revolução de 1930 e a palavra de ordem das “Frentes
Populares”, foi criada no início de 1935 a Aliança Nacional Liber-
tadora (ANL). Considerando a experiência do BOC como um episó-
dio mais restrito, a ANL é a primeira experiência aliancista impor-
tante, de caráter moderno de mobilização do PCB. Não obstante o
“baluartismo” de alguns quadros brasileiros, que entendiam que
o país passava por um momento revolucionário, é plausível que a
experiência da Coluna Prestes fizesse alguns dirigentes da IC
tentar convencer o capitão Luiz Carlos Prestes a organizar o
levante de novembro de 1935, um grande equívoco político e mili-
tar que vem se somar à derrota de Mao Tsé Tung frente a Chang
Kai Chec, na China, um pouco antes. É significativo que boa parte
dos assessores internacionais vindos ao Brasil eram alemães e
que alguns também tivessem passado pela China4 (Braun, 1973).
Seria a última cartada da política de “classe contra classe”. Em

4 Em particular, o líder comunista Arthur Ewert foi afastado de suas funções


políticas no KPD (Partido Comunista Alemão), devido a sua ação determinante
contra a stalinização. Considerado comunista confiável, recebeu atribuições
internacionais importantes, afastado do centro de gravidade da hierarquia do
poder da IC, na China e América Latina, onde desempenhou funções de lider-
ança nos Secretariados Regionais da IC. (MESCHKAT, 2011).

28 Dina Lida Kinoshita


contradição com o golpe de novembro de 1935, a ANL não foi
compreendida por sua modernidade, naquele momento. A política
aliancista foi retomada em 1945 e como uma estratégia central
permanente, apenas a partir de 1958. (BRANDÃO, 1997).
O PCB foi destroçado pela repressão implacável, entre 1935 e
1940, diminuindo de maneira drástica suas atividades, com a
maioria de seus quadros encarcerada (CARONE, 1977) e, alguns
poucos, lutando na Guerra Civil Espanhola (CUNHA, 1986), mais
tarde juntando-se aos resistentes franceses durante a II Guerra
Mundial. (CARVALHO, 1997).
Várias Direções Regionais, sobretudo em São Paulo, mas
também no Paraná e Minas Gerais, onde já havia um movimento
operário organizado, ainda que incipiente, eram contrárias a este
movimento. (DULLES, 1985).
Com a ascensão do nazismo na Alemanha, a IC – num processo
de autocrítica, liderado pelo búlgaro Dimítrov – propõe a política
das Frentes Populares, o que se dá sob fortes resistências. No
plano brasileiro, a criação da ANL expressa os setores favoráveis
à mudança política e à adoção das Frentes Populares, enquanto o
Levante Comunista de 1935 é uma tentativa desesperada de
manter a política de “classe contra classe”. É emblemático que os
membros da IC, chegados ao Brasil para orientar e preparar o
levante, tinham sido os recém-derrotados na China.
Em razão do fracasso do levante, o PCB é desarticulado e, com
o advento do Estado Novo, o governo autocrático implantado em
1937, a repressão assesta golpes profundos na organização parti-
dária. Por volta de 1940, a direção central é destituída e formam-
se, em vários estados, núcleos dirigentes regionais. Alguns deles
organizam, em 1943, a Conferência da Mantiqueira, no interior
do Estado do Rio de Janeiro. A questão central, nesse momento,
era a luta contra o fascismo e de novo surgiram duas posições:
uma priorizava a luta contra o Estado Novo, enquanto a segunda
afirmava ser preciso centrar fogo contra o “nazi-fascismo”, uma
vez que a derrota do fascismo na Europa condicionaria a derrota
dele no Brasil (VINHAS, 1982). Prevaleceu a segunda posição,
com o aval de Luiz Carlos Prestes, o que abriu caminho para a
defesa da participação brasileira na II Guerra Mundial. E, de fato,
o combate ao Eixo e pela democracia no exterior acabou refor-
çando a luta democrática no Brasil, deixou a ditadura Vargas
vulnerável, precipitando a sua derrota. O PCB é legalizado no
imediato pós II Guerra Mundial. Porém, com o advento da Guerra

Relações entre o PCB e a Internacional Comunista (IC) 29


Fria, seu registro eleitoral é cassado, sob a alegação de que era
um partido estrangeiro, uma vez que se denominava Partido
Comunista do Brasil. A fim de legalizar o PCB, no seu V Congresso
realizado em 1960, foi renomeado Partido Comunista Brasileiro.
Em 1948, foi criado o Cominform para substituir a IC. Sob
forte impacto desse novo organismo, depois da vitória de Mao Tsé
Tung, em 1949, na China, ocorreu nova radicalização no Brasil,
caracterizada pelo Manifesto de Agosto de 1950.

Referências
ALMEIDA, F. I. (Org), O último secretário – as lutas de Salomão
Malina. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2002.
BANDEIRA, M.; Melo, C.; Andrade, T. O ano vermelho – a Revolução
Russa e seus reflexos no Brasil, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1967.
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Canellas e Astrojildo in: Memória e História. São Paulo: E.L. Ciências
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meio ao cataclismo mundial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985
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KUPPER, A. Colônia Cecília, uma experiência anarquista, São Paulo:
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MALINA, S. Última entrevista concedida por Malina, a Eduardo
Rocha. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2002.
O Manifesto de Agosto. Encarte do jornal A Classe Operária, agosto
de 1950.
PEREIRA, A. Formação do PCB. Rio de Janeiro: Vitória, 1962.

30 Dina Lida Kinoshita


PONS, S. A Revolução Global – história do comunismo internacional
(1917-1991). Rio de Janeiro: Contraponto; Brasília: Fundação
Astrojildo Pereira, 2014.
SODRÉ, N. W. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1966.
______. História da burguesia brasileira. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1976.
VINHAS, M. O Partidão: a luta por um partido de massas (1922-
1974). São Paulo: Hucitec, 1982.

Relações entre o PCB e a Internacional Comunista (IC) 31


Revolução Russa: a distopia
Narrativa histórico-teórica da Revolução.
Até quando a Revolução o foi?

Ernesto Caxeiro1

A
narrativa dos acontecimentos da Revolução mostra a distor-
ção da utopia. Por ela vemos quais as razões que distorce-
ram o ideal da revolução, ou como a utopia se perverteu.
A base da discussão para os descaminhos da Revolução Russa
já está, de há muito, estabelecida, nas cartas trocadas por Marx e
Engels com os narodniks russos (populistas), publicadas no livro
de Michel Lowy, As Lutas de Classe na Rússia. A mínima conclusão
de que se pode ter desta troca é que não há nenhuma, quer dizer,
nenhuma afirmação quanto à sua legitimidade. A dúvida persiste
na cabeça dos fundadores do comunismo moderno. Ora Marx diz
ser possível ora Engels a condiciona à revolução no Ocidente.
Tal discussão era conhecida por Lenin e Trotsky, quando a
revolução eclodiu e como nos mostra Luciano Gruppi no livro
O Pensamento de Lenin, publicado nos anos 80 do século passado,
este último passou-se de “malas e bagagens” para a concepção de
revolução permanente de Trotsky, como se esta fosse uma inova-
ção em relação ao pensamento de Marx e Engels.
Mas a concepção de Trotsky revela, num período em que os
escritos de juventude e mesmo as cartas com os narodniks não
eram conhecidos bem, o conhecimento mais profundo dos funda-
mentos do comunismo de Marx e Engels por parte do compa-
nheiro de Lenin. Num livro de 1903, Trotsky disse que o futuro da

1 Professor, advogado formado pela UFRJ e especialista em Filosofia Moderna e


Cotemporânea.

33
Revolução dependia da classe operária, a qual foi estimada por ele
em 2 milhões e 500 mil pessoas, em seu livro A Revolução Russa.
Como diz José Paulo Netto, no texto “O que é stalinismo”, a
classe operária praticamente se reduziu a nada, no período da
guerra civil, de 1918 a 1919, e depois nos esforços de levar a Revo-
lução ao Ocidente, através da Hungria (Bela Kun) e através da
Polônia, via Guerra Russo-Polonesa, em 1920, dentro daquele
desembarque citado por Gruppi.
No âmbito da construção da URSS, em 1922, Lenin quis
manter o espírito internacionalista associando a Rússia a outras
repúblicas, em termos de igualdade, pensando assim em ferir de
morte o chauvinismo grão-russo. Para isto e como sua base social,
estabeleceu uma aliança operário-camponesa, que já não corres-
pondia muito bem à realidade social.
Como efeito desta destruição da classe fundamental da “revo-
lução proletária” e também pela constatação da não adesão clara
do campesinato, desde 1918 até 1929 (e além), os líderes bolchevi-
ques foram aconselhados por outros partidos comunistas da
Europa Ocidental a fazer uma transição, uma vez que a sua base
social não existia. Isaac Deutscher em seu O profeta armado,
sobre a participação de Trotsky na Revolução, cita uma das
primeiras destas sugestões.
Bordiga, em uma carta, se referiu à proposta dos comunistas
austríacos. Numa carta ao austro-marxista Korsch, ele diz:
Por exemplo, o seu "modo de se exprimir" sobre a Rússia
parece-me incorreto. Não se pode dizer que "a revolução russa
é uma revolução burguesa". A Revolução de 17 foi uma revolu-
ção proletária, se bem que seja um erro generalizar suas lições
"táticas". Agora, coloca-se o problema: que acontecerá com a
ditadura do proletariado num país se não houver a sequência
da revolução nos outros países? Pode acontecer uma interven-
ção externa, pode acontecer uma continuidade degenerada
cujos sintomas e reflexos dentro dos partidos comunistas
precisamos descobrir e definir.

E depois:
Não se pode dizer simplesmente que a Rússia é um país onde
se expande o capitalismo. A coisa é muito mais complexa:
trata-se de novas formas da luta de classes que não têm prece-
dentes históricos; trata-se de demonstrar como qualquer
concepção das relações com a classe média, sustentada pelos

34 Ernesto Caxeiro
stalinistas, é uma renúncia ao programa comunista. Parece-
me que você exclui a possibilidade de uma política do Partido
Comunista russo que não equivalha à restauração do capita-
lismo. Isto equivaleria a dar uma justificativa a Stálin ou a
sustentar a política inadmissível de "demitir-se do poder".
É necessário, ao contrário, dizer que uma política correta e
classista na Rússia teria sido possível sem a série de graves
erros de política internacional cometidos por toda a "velha
guarda leninista" junta. (grifo meu).

Como se vê, havia um claro debate sobre a natureza da Revo-


lução e que ela, segundo os fundamentos, estava se esgotando e
caminhando para um desvio.
Aqui podemos chamar à baila a parte final de Guerra e Paz, de
Tolstoi, na qual ele afirma que quando os fatos históricos degrin-
golam, por vicio de origem, fica difícil voltar atrás e Adam Schaff,
um marxista polonês, aduz a esta constatação que Stalin repre-
senta o aspecto trágico da Revolução Russa. A sua decisão de não
continuar era difícil, em função do que já ocorrera, inclusive
mobilizando partidos comunistas em muitos lugares.
Contudo, não foi só Stalin que se iludiu com a URSS, que
sucumbiu ao chauvinismo (patrocinado por Stalin); não foi ele que
não ouviu os conselhos de Trotsky sobre o problema dos sindica-
tos, que estavam sendo transformados em “correias de transmis-
são do partido”, mas Lenin. Deutscher cita, no mesmo livro, que
quando Trotsky o alertou para este último problema, Lenin, opor-
tunísticamente, e revelando não atribuir a isto importância, instou
Trotsky a ocupar-se desta questão, num movimento típico de jogar
“a batata quente” para quem a esquentou. Mas a identificação
entre Partido e Estado foi sim obra de Stalin, que, com o cargo de
secretário-geral, dominou todas as esferas do poder. Ainda assim
só o fez por causa dos erros dos bolcheviques e de Lenin.
Numa perspectiva anacrônica moderna, que deve ser feita, e
após tantas transições, tanto do lado da esquerda, países comu-
nistas, quanto da direita, países de ditadura militar (América
Latina, Grécia), o melhor a fazer era exatamente “demitir-se do
poder”, fazer uma transição.
Os camponeses, em maioria, vendo o enfraquecimento do
partido bolchevique, começaram a atacá-lo, numa atitude que
justificou os posteriores excessos de Stalin.

Revolução Russa: a distopia 35


Com a morte de Lenin, o problema da sucessão se colocou
claramente e embora Trotsky fosse mais popular e respeitado
intelectualmente, quem detinha a máquina do Partido era Stalin,
que a usou, a partir do enterro de Lenin (uma invenção propagan-
dística dele próprio [contra a vontade da esposa de Lenin]{Mme
Krupskaya}), para o seu “ Cesarismo progressivo” (conceito de
Gramsci), o método das aproximações sucessivas que o levou ao
poder absoluto e ao “culto da personalidade”, a negação absoluta
do comunismo (substituído pelo personalismo) e da legalidade
socialista (substituída pela vontade do chefe).
Diversos momentos políticos preparam a ascensão de Stalin.
Mas a discussão em torno do desenrolar da economia foi a ques-
tão do que viria em substituição à NEP, de Lenin.
Por esta, para diminuir os efeitos do “comunismo de guerra”,
setores da economia privada, capitalista, foram permitidos, inclu-
sive os lucros, de modo a melhorar a produção (na medida em que
era livre) e garantir o consumo dos produtos, reaquecendo a
economia, combalida pela guerra. Neste sentido, a visão de Lenin
adequava-se aos fundamentos do marxismo, pois a base do socia-
lismo é a grande incrementação das forças produtivas já no capi-
talismo. Naturalmente que todo este processo seria guiado, prote-
gido e controlado pelo Estado.
Tratava-se de fazer uma “acumulação primitiva socialista” para
garantir o socialismo, a sua independência e, quiçá, extinguir o
Estado. Trotskistas, como Preobrajhenski, apostavam nesta senda.
Marx e Engels, de modo total e absoluto, sempre concordaram
com os anarquistas de que a implantação do comunismo seria
inversamente proporcional ao fim do Estado. A admissão do
Estado soviético e seu crescimento evidente ia (e vai) contra este
pressuposto teórico essencial e vai de encontro ao vaticínio de
Korsch e dos austríacos, criticados por Bordiga, mais acima: a
URSS era, de certo modo, um “Estado burguês”, autoritário,
tendente ao totalitarismo (culto à personalidade) e até a uma
restauração do Estado czarista, já que as condições deste perma-
neciam intactas. Nem a coletivização forçada e a implantação da
indústria pesada modificaram esta apreensão, porque a política
czarista, grã-russa, continuou e se acentuou, apesar e por causa
destes progressos materiais.
Curiosamente os arqui-inimigos Trotsky e Stalin se opuseram
à NEP, alegando que surgiriam as classes burguesa e/ou média,

36 Ernesto Caxeiro
inimigas da Revolução. Daqui, a discussão se deu entre o controle
do Estado e este controle com a liberdade econômica. Para fazer a
transição ao socialismo, era preciso acumular, produzir, mas divi-
dir, segundo o Estado de orientação comunista, pela população.
O discípulo dileto de Lenin, Bukharin, tentou uma alterna-
tiva que era uma relativa continuação da NEP, enquanto que
Stalin e Trotsky cada vez mais apoiavam uma intervenção do
Estado na economia. Desta discussão nascerá a hegemonia do
stalinismo, a divisão do partido bolchevique (criticada, em uma
carta, por Gramsci).
Na medida em que a situação piorou, as hesitações de Trotsky
o prejudicaram. Além do mais, o camponês atacava progressiva-
mente os bolcheviques e Stalin usou este fato para fazer o mais
simples: forçar, pelo alto, a coletivização e implantar a partir daí
o seu poder. De 1928 (quando Trotsky e os trotskistas foram
exilados) a 1933, incluindo aí a questão da Ucrânia, Stalin foi de
uma ditadura simples para o culto à personalidade, que é a
forma de seu totalitarismo.
Para um artigo sobre a Revolução Russa é importante concluir
aqui até onde ela foi realmente Revolução. A Revolução Francesa
parece ter acabado quando Napoleão III deu o golpe de 2 de dezem-
bro de 1852, porque os interesses nacionais da França se torna-
ram dominantes e não o seu papel transformador de país revolu-
cionário. Trotsky, com o seu conceito de Termidor e dentro destas
discussões anteriormente citadas, afirmou que a Revolução Russa
acabou aí, com o totalitarismo stalinista. Concordamos com ele,
pois já não se tratava da Revolução, mas do predomínio de uma
figura sobre o movimento, agora estancado. Parafraseando um
outro comentário de Tolstoi a respeito de Napoleão no mesmo
texto, o francês, ao se tornar Imperador, passou a ser mais impor-
tante do que a Revolução. Com Stalin, mutatis mutandi, o movi-
mento comunista ficou refém da personalidade e se paralisou.
Trotsky esperava um retorno do impulso revolucionário, mesmo
na Rússia, mas este não veio até hoje.

Opiniões sobre a Revolução Russa


Para tratar da repercussão da Revolução e seus descaminhos,
escolhi dois autores, não só por serem entusiastas dela, mas para
mostrar como, dentro e fora da socialdemocracia, a discussão sobre
os seus fundamentos já existia desde o seu nascedouro: Lukács e

Revolução Russa: a distopia 37


Rosa Luxemburg. Esta última se inseria na 2ª Internacional de
forma crítica e debateu com Kautsky e Bernstein, que eram fron-
talmente contra a Revolução (como Plekhanov, na Rússia).
Em seu livro A Revolução Russa, capítulo II, ela narra estas
dissensões. A formulação de Kautsky era a mesma de Plekhanov:
a Rússia não estava madura para a revolução e tinha que se
manter no limite da derrubada do czarismo.
Porém, o mais interessante, e é por isso que este texto é citado
aqui, é que Rosa acusa o proletariado alemão de estar desprepa-
rado para ajudar à Revolução Russa, exatamente por causa,
segundo ela, das hesitações de Kautsky.
Lenin atacava os socialdemocratas da II Internacional, pelo
fato de terem apoiado a 1ª guerra, mas Kautsky foi pacifista, tendo
inclusive fundado uma dissidência.
Diz Rosa:
Praticamente, esta doutrina tende a recusar a responsabilidade
do proletariado internacional – o proletariado alemão em primeiro
lugar – pela sorte da Revolução Russa e a negar as interferências
internacionais desta revolução. A guerra e a Revolução Russa
demonstraram não a imaturidade da Rússia, mas a imaturidade
do proletariado alemão para cumprir sua missão histórica.
Ressaltar este fato com toda a nitidez é a primeira tarefa de uma
análise crítica da Revolução Russa. Os destinos da revolução na
Rússia dependiam integralmente dos acontecimentos internacio-
nais. Contando com a revolução mundial do proletariado, os
bolcheviques deram precisamente a prova mais brilhante da sua
perspicácia política, da sua fidelidade aos princípios, da audácia
da sua política. Aí torna-se visível o imenso salto dado pelo
desenvolvimento capitalista nos últimos dez anos. A revolução de
1905-1907 encontrou apenas um fraco eco na Europa.

O outro exemplo nos serve para mostrar as sinuosidades de


comportamento da média dos militantes comunistas do século 20
(inclusive do autor deste artigo): Lukács.
Qual foi a posição deste nos debates citados antes sobre a
continuidade da revolução? De um lado, aqueles que considera-
vam a “Revolução” um mero golpe dado por uma minoria e, de
outro, os que pensavam como Lenin, para quem a plataforma da
Revolução – Terra, saída da guerra (Paz), Pão, Liberdade – eram
exigências das massas que os bolcheviques souberam identificar
e foram os únicos a prometer e cumprir. Foi esta mediação polí-

38 Ernesto Caxeiro
tico-discursiva que uniu Stalin a Lenin e foi com ela que Lukács
ficou. O “Socialismo num só país”, conceito muito discutível, já
que Stalin nunca perdeu a perspectiva da Revolução no Ocidente,
teria fundamento real neste programa que atendia aos interesses
tanto do proletariado, já muito reduzido, como do campesinato.
De modo geral, Lukács e os comunistas aceitaram este
“realismo”, este “pragmatismo”. Lenin-Stalin-Lukács e no período
de implantação do totalitarismo stalinista, com suas violências,
acrescentou(-aram) a necessidade de preservar o socialismo diante
da ameaça fascista e do mundo capitalista, no pós-2ª guerra.
Este pragmatismo é resumido na famosa frase do último, sempre
citada por todos, na hora em que a crítica dos opositores se fazia
presente: “O pior socialismo é melhor do que o melhor capitalismo”,
ou seja, a Albânia, de Henver Hodja, era melhor do que a Suíça.
Num certo sentido, com isto ele chancelou o stalinismo (que
depois o prendeu) e criou o chamado “ marxismo-leninismo”, legi-
timando as políticas de Stalin como uma resposta possível diante
de todo o quadro internacional de isolamento da URSS.
O que parece ter mudado a concepção de Lukács, quanto ao
desvio stalinista, foi a descoberta dos escritos do jovem Marx, fato
que abalou a todos, desde o stalinismo, que procurou soterrar
estes textos, mas também a futura direita do marxismo, que
começou a destruir o marxismo-leninismo e a buscar a conexão
com a filosofia, especialmente Kant, que já era importantíssimo
no austro-marxismo (Korsch-Bauer).
Aqui é preciso fazer uma correção no desenvolvimento do pensa-
mento marxista-leninista: o uso do pensamento de Plekhanov, por
Stalin (seguindo Lenin), é uma fraude, talvez não intencional, mas,
ainda assim, uma fraude, pois nesta elaboração não se diz que
Plekhanov era menchevique. Isto é importante porque Lukács refle-
tiu sobre as mudanças, associando erradamente Plekhanov ao stali-
nismo, opondo o seu suposto sociologismo à filosofia contida agora
no marxismo. Até então, sem os textos do jovem Marx, esta conexão
não existia e os marxistas, inclusive Plekhanov, foram acusados de
reducionismo materialista e mecanicista, por resumirem tudo às
“condições materiais de existência”, quando o problema da cultura
surge e já possuía base nos textos fundadores.
O que está por trás de tudo isto é a pergunta: qual é a filosofia
do marxismo? Até Althusser e Habermas, passando por Poulant-

Revolução Russa: a distopia 39


zas (e um pouco de Gramsci, claro), esta foi (e é) a discussão
quanto à sobrevivência do marxismo e do comunismo.
Lukács erra ao dizer que não havia um “materialismo dialético”
em Marx, porque Engels o propôs, quando Marx recusou para si o
epíteto de “marxista” (moi, je ne suis pas marxiste). A categorização
deste materialismo por Stalin através de Deborin resultou em críti-
cas e mais polêmicas: Marx seria historicista ou não (estrutura-
lista)? A resposta de Lukács é por uma ontologia do Ser social, que
apresenta uma legitimidade parcial, uma vez que a questão das
ideias e da cultura, tão mal compreendida pelo materialismo (em
geral, e marxista, em particular), não ficou clara.
O marxismo, bem como todo materialismo, precisa entender o
significado do transcendente e do idealismo, pois só assim deixará
o reducionismo das “condições materiais de existência”, para
incluir a existência subjetiva no processo de edificação da socie-
dade comunista, coisa que a revolução não fez. É que, nas condi-
ções materiais, estão incluídas as ideias, sonhos, necessidades do
supérfluo, de arte e cultura, para as quais 1917 não deu resposta.
Uma nova sociedade, uma nova época exige uma Paideia e
esta moldura foi o que faltou à Revolução Russa, que não deveria
ter acontecido, sem ela.

Conclusões para o futuro


A Paideia, a pedagogia, são tão importantes que até a derrota e
o entendimento de sua anatomia ajudam a não cometer os erros do
passado, e a não esquecê-los. O elo mais real hoje com a Revolução
Russa é a China, cujo feitio moderno foi realizado por um discípulo
de 18 anos de Trotsky e que participou das discussões dos anos
trinta: Deng Xiao Ping, o mentor do “Massacre da Praça da Paz
Celestial”. Ele conseguiu realizar o equilíbrio entre a economia
capitalista e a comunista, seguindo um pouco Bukhárin , benefi-
ciado pelos descaminhos das experiências comunistas anteriores.
Mas o problema persiste: esta proposta, “um país, dois sistemas”
será capaz de reimpulsionar o processo de revolução? Acontecerá o
vaticínio de Trotsky, no tempo da NEP, de que isto será impedido
por classes burguesa e média, inimigas do socialismo? Não será
fundamental uma Paideia? Apesar de tudo, dos fracassos e por eles
mesmos, a Revolução Russa prossegue, nas ideias.

40 Ernesto Caxeiro
Referências
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GRAMSCI, Antonio. Carta ao Comitê Central Bolchevique, 1926.
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Graal,1979.
LOWY, Michel. As lutas de classe na Rússia. Rio de Janeiro:
Boitempo, 2013.
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2008.

Revolução Russa: a distopia 41


Utopia e realidade no
socialismo de Estado

Flávio R. Kothe1

M
arx achava que uma revolução só acontece quando as
relações de produção não permitem mais o desenvol-
vimento das forças produtivas. O capitalismo somente
seria superado quando se esgotassem seus potenciais. A revolu-
ção não poderia ocorrer, portanto, onde a industrialização não
tivesse se completado. Estranhamente, Marx queria a revolução
para aumentar a produtividade, ambição do capitalista, que assim
consegue aumentar sua taxa de lucro.
Lenin contrapôs a tese de que o sistema capitalista seria uma
corrente formada por elos, que se rompe onde houver o elo mais
fraco. O capitalismo não era avançado na Rússia em 1917, mas o
país estava metido numa guerra com a Alemanha. Lenin foi levado
à Rússia com ajuda do governo alemão e, conseguindo tomar o
poder enfraquecido, retirou o país da guerra, o que lhe rendeu
imediato apoio de milhões que estavam perdendo seus familiares
e amigos em batalhas sem sentido, de uma monarquia metida em
conflitos entre primos. Logo veio, porém, a guerra civil, que o
exército vermelho conseguiu vencer, até que teve de enfrentar
uma coalizão de direita na Segunda Guerra.
Não só no Brasil, muito já se falou mal da Revolução Russa,
como houve também exaltação desbragada. Seu centenário não
foi rememorado nas universidades brasileiras, para proporcionar
uma reflexão sobre fato tão relevante. Preferiu-se o silêncio, que é

1 Professor titular de Estética na Universidade de Brasília–UnB.

43
sintomático da acomodação vigente nos quadros acadêmicos. Os
cursos atuais geram apenas técnicos, diplomados tão depressa
quanto possível, sem proporcionar pensamento crítico mais
amplo. Os centros acadêmicos deixaram de ser locais geradores
de pensamento político. Não se tem um curso que dê formação
humanística, filosófica, política e artística capaz de gerar quadros
de elite para a alta administração do Estado.
A geração que era jovem, na época do golpe de 1964, e enfren-
tou a repressão, está ora se acabando e, com ela, o pendor crítico.
A Ditadura Militar catou as melhores cabeças pensantes da
universidade e cortou. O critério não era ser ou não marxista,
mas ser capaz de pensar e fazer pensar. Os que restaram e subi-
ram, esses geraram quadros acadêmicos acomodados, que
procriaram, por sua vez, uma geração que hoje, com seus trinta
ou quarenta anos, faz uma opção tecnicista, sem formação
humanística e incapaz de pensar criticamente. Wikipédia e
Power Point são ferramentas para ralos dados de informação,
sem que se desenvolva a capacidade de reflexão mais profunda e
acurada. Não se consegue avaliar o quanto a universidade ainda
hoje está prejudicada pelas decapitações feitas pela Ditadura.
Aliás, isso nem interessa.
A quem não interessa? A quem não quer a concretização dos
ideais de igualdade, liberdade e fraternidade, consagrados pela
Revolução Francesa e que Lenin quis que deixassem de ser prin-
cípios jurídicos formais para se tornarem práticas sociais efeti-
vas. O modelo soviético foi apenas um dos caminhos para chegar
a isso. O dramaturgo Heiner Müller, sucessor de Bertolt Brecht,
na Alemanha Oriental, disse uma vez que o capitalismo era liber-
dade sem igualdade e o comunismo era igualdade sem liberdade.
De fato, porém, no capitalismo, a liberdade é proporcional ao
dinheiro que se tem. A fraternidade é o que se esqueceu aí. Esque-
ceu-se também de questionar os fundamentos teológicos desses
princípios, a maneira como devem ser entendidos. Igualdade não
é igualar tudo, nivelando tudo por baixo, e sim distinguir a dife-
rença do desigual. Mesmo que se dessem as mesmas oportunida-
des a todos, nem todos iriam aproveitá-las igualmente, mas isso
não significa que todos não deveriam tê-las.
Marx achava que, desfazendo-se o conflito entre classes,
seria possível aos homens finalmente se tornarem irmãos. Niet-
zsche lembrou, contudo, que os maiores ódios se dão entre
pessoas próximas. A natureza é conflito permanente, em que

44 Flávio R. Kothe
árvores disputam luz, animais maiores comem os menores e
todos são comidos pelos bem pequenos. Sendo a história da
“civilização”, o relato da existência de uma espécie de animal,
não é de se admirar que ela seja feita de conflitos que não cessam
nunca. Embora Marx assumisse a história como luta de classes,
queria que ela deixasse de ser luta, para que afinal aflorasse o
anjo escondido em cada homem. O marxismo é uma teologia
cristã, salvacionista. Faz parte da história do platonismo. Ignora
isso, quando se proclama materialista.
No socialismo de Estado, quem quisesse fazer da existência a
busca do luxo estaria no lugar errado. Não havia necessidade de
se exibir como melhor por ser mais rico. No capitalismo, sempre
se paga mais pelas mercadorias do que custou produzi-las. No
socialismo de Estado, os preços eram estranhos: ou baratos
demais, ou caros demais. Aquilo que se supunha seria do consumo
do trabalhador (inglês, na época de Marx) era vendido abaixo do
custo de produção; o que fosse considerado luxo era muito mais
caro no mundo socialista do que no capitalista. O sistema todo
era artificial, com os preços ditados por um comitê central.
O problema é que um televisor, um telefone ou um carro se torna-
ram propriedades comuns para o trabalhador no capitalismo
avançado, mas não eram para o trabalhador que estava a cami-
nho, e de pé no chão, do paraíso socialista.
Na aparência do sistema, todos tinham emprego, mesmo que
fosse para fingir que trabalhavam. A velocidade da caravana é,
porém, a do camelo mais lento, a não ser que ele seja comido. Se
todos tinham direito a emprego, se o diretor da empresa precisava
arranjar novo emprego para os funcionários mais relapsos antes de
mandá-los embora – e eles tinham pouca demanda –, acabava
havendo uma acomodação geral que corroía a produtividade. Depois
de anos iniciais de entusiasmo, todos acabavam produzindo tanto
quanto quem menos produzia. Os salários eram muito parecidos,
não fazia diferença ficar se matando no serviço. Quem produzia
mais tinha de esconder que produzia, se tornava inimigo dos cole-
gas. Garçons não queriam fregueses, pois davam trabalho.
O sistema de produção, dominado por um partido que não
admitia alternância – incapaz, portanto, de se reformar –, faliu
por dentro. O que pretendia ser revolucionário se tornou tão
reacionário que foi incapaz de fazer sequer as reformas que o
salvassem. Não apenas cidadãos comuns, mas muitos membros
do Partido alertaram sobre a necessidade de reformas, mas a

Utopia e realidade no socialismo de Estado 45


gerontocracia não as encaminhava. Quando achou que bastava
um chefe mais jovem (que se concentrou em proibir a vodca), era
tarde demais. O transparente é o que menos se vê. A “União
Soviética” foi um modo de os russos dominarem povos vizinhos,
dando para si melhores empregos e casas, o que provocou
profundas revoltas. Nos países bálticos, vi pessoas se darem os
braços para que os russos fossem embora: a fila tinha setecen-
tos quilômetros. O império se desfez.
Na segunda metade do século 20, os Estados Unidos havia, em
nome da democracia, implantado ditaduras por toda a América
Latina; em nome do marxismo, o comunismo soviético não conse-
guia ser materialista, nem dialético e nem histórico. Os dois regi-
mes faziam o contrário do que proclamavam. Fingindo aproximar
o real do ideal, aumentavam a distância entre ambos. Os inimigos
se pareciam mais do que admitiam.
É preciso entrar na esfinge para, de dentro, tentar decifrá-la.
Não se pode confiar, porém, na apregoada honestidade da esfinge
da fábula, pronta a se suicidar ante quem proferisse a palavra do
seu banal mistério. Não, a oligarquia devoraria a quem dissesse o
seu nome secreto, antes que mais alguém o escutasse. Não, do
seu encontro com Édipo a esfinge sai disfarçada de filho de Laio.
Nas primeiras décadas do século 20, fascistas e comunistas
estavam todos buscando redenção, Deus projetado na sociedade
ideal, o Estado como Divina Providência. Milênios de embates
secretos estavam aflorando, inimigos unidos na crença de que a
história teria sentido, que um homem melhor seria possível.
A ilusão do ideal dava sentido às existências, parecia justificar
matanças e guerras. Cada um queria ser melhor que o outro, com
quem tanto se parecia. Conseguia ser pior, querendo ser melhor.
Nos países sob regime comunista, necessidades básicas passa-
ram a ser atendidas na paz – emprego, teto, roupa, alimentação,
saúde, educação e até lazer –, não apenas no papel. Isso, porém,
não bastava: depois disso é que começavam os problemas mais
humanos. Acreditar em um deus que tudo sabia, significaria acei-
tar a onipresença de um serviço de informações, um deus que
tudo podia era incompatível com a noção de liberdade. Sob a laici-
zação, havia crença, metafísica. Aqueles que acreditavam na vida
eterna venceram aqueles que apostavam se salvar na existência
terrena, pois ela não estava salva. Não se vivia melhor. Os cida-
dãos queriam o direito de viajar sem restrições, sem lembrar que
a liberdade no capitalismo é proporcional ao dinheiro; falavam de

46 Flávio R. Kothe
direito de voto, como se voto formal bastasse para a cidadania;
exigiam direito de expressão, como se ele não fosse inversamente
proporcional ao público potencial.
Será o homem um ser insatisfeito por natureza? Sempre a
buscar outra coisa, a querer mais? – Assim formulada, a pergunta
pouco adianta. Alimentação – sim –, mas que tipo de alimenta-
ção? Moradia – sim –, mas de que tamanho? Saúde – sim –, mas
quem pagaria? Emprego – sim –, mas com que prédios e máqui-
nas? No socialismo, havia muitas fábricas com janelas quebra-
das, máquinas antigas e pifadas. No capitalismo, uma minoria de
ricos desperdiça em luxo o que falta à maioria em comida, escola,
saúde, moradia. A questão humana começa, porém, depois que as
necessidades primárias estiverem atendidas. O que a um faz feliz
é a desgraça para o outro.
Perseguido no Brasil, fui professor titular visitante na Univer-
sidade de Rostock, de 1988 a 1992, tendo vivenciado, desde dentro,
o último período e o colapso do socialismo de Estado. Escrevi em
1990 um romance, O Muro, em que registrava o embate entre os
dois sistemas. Meu único leitor foi, então, Jorge Amado, que estava
em Paris. Ele quis publicar a obra na editora de que era mais
próximo, mas depois me disse que havia problemas no momento.
Eu quis deixar que o tempo depurasse o que eu havia escrito e
decidi guardar o texto por 25 anos, até que o publiquei em 2016.
Cito aqui uma parte do capítulo IX, 2 Rerik, em que se refletem,
num simpósio de latino-americanistas em 1988, portanto antes
da Queda do Muro, tensões então presentes e que continuam de
algum modo atuais:
– Não se compensa mais atraso econômico com culto à personali-
dade – interveio um colega barbudo, Hans-Theodor, um biólogo. Stálin
não executou a política que Lenin queria e não fez boa industrializa-
ção: sentou em cima da baioneta, e isso não é cômodo. Não vai dar
certo fazer ciência, arte e tecnologia só na Europa, no Japão e na
América do Norte. Cientistas de países pobres são mais baratos, às
vezes até mais competentes, mas as metrópoles não querem perder o
domínio técnico. Cuba insistiu em plantar somente cana: o preço do
açúcar despencou no mercado, não industrializaram o país. Planejar
a economia pode ser tão ruim quanto a antiga anarquia capitalista.
No Brasil, constroem estádios e pontes sem uso em vez de ferrovias,
hospitais, escolas. A América Latina não pode condenar o esforço de

2 Kothe, Flávio R. O Muro, São Paulo: Scortecci, 2016, p. 133-144.

Utopia e realidade no socialismo de Estado 47


igualdade que aqui, nos países socialistas, foi feito. Ou se tem tecno-
logia para todos ou se tem pobreza multiplicada: vamos ver qual
sistema político resolve melhor essa contradição.
O professor Ziembinski, da Academia de Ciências de Berlim,
pediu a palavra e, do alto dos seus 70 anos, disse:
– Marx previu o socialismo como uma formação que só poderia
surgir depois que o capitalismo tivesse esgotado seus potenciais,
mas eles não se esgotaram. Ele queria a revolução mais para
aumentar a produção. Não se queimam etapas na história.
Lamento, a revolução soviética foi um aborto histórico. Com exce-
ção da nossa Alemanha e da Tchecoslováquia, isso que se chama
de comunismo não se instalou nos países industrializados e se
tornou antes uma socialização da miséria, com uma filosofia mise-
rável. Queimar etapas supõe um caminho necessário, ditado por
um deus. Não há como negar os avanços socialistas na educação,
saúde, igualdade, até na produtividade. Com as reformas certas,
na hora certa, teria sido possível retomar o crescimento sem perder
os avanços. Agora é tarde.
Mário lembrou-se de uma assertiva do seu pai, de que o Brasil
nunca se tornaria comunista, porque isso exigia disciplina demais.
Como saber o que poderia acontecer? Se o básico fosse não imitar
modelos de fora, mas isso era conversa para boi dormir. Os erros
teóricos, as tragédias práticas e a tendência inerente ao capital –
ele teve de bocejar, precisava de um café – faziam a diferença entre
ricos e pobres ir aumentando, e ela iria aumentar ainda mais se o
comunismo fosse varrido. O planeta sempre tinha estado dividido
entre poucas culturas mais avançadas e muitas atrasadas. A
dívida externa, o valor da moeda, a divisão internacional do traba-
lho, tudo fazia continentes inteiros, como África e América Central
e do Sul, se tornarem os proletários do mundo. A luta pela valoriza-
ção do trabalho era uma luta de libertação nacional. No socialismo
real, prateleiras vazias; nesses continentes, barrigas vazias.
Um peruano pediu a palavra, para dizer que era preciso enten-
der a dupla tragédia da esquerda latino-americana: ela podia ter
tido propostas e práticas erradas, mas os problemas continua-
vam reais; ela era antes massacrada pelas boas intenções do que
por enganos teóricos. A CIA e a direita de cada país tinham provo-
cado o reforço das estruturas autoritárias nas organizações de
esquerda e impedido que tivessem uma ação mais esclarecida e
adequada à realidade.

48 Flávio R. Kothe
Um alemão respondeu que o dogmatismo da esquerda era a
face inversa do fascismo no poder, que o avanço da politização
faria superar, por dentro, esse autoritarismo, mas que as esquer-
das não tinham maior importância, não seria por elas que passa-
ria a decisão da história. A globalização enfraqueceria as burgue-
sias nacionais. Os trabalhadores teriam pouco respaldo na
burguesia nacional, para criarem juntos um mercado interno forte
e melhor distribuição de renda.
Nesse momento, o professor Ziembinski não se conteve e irrom-
peu a dizer:
– Só com aumento de liberdade se vai conseguir maior atenção
para os problemas ecológicos. Os problemas coletivos não podem ser
deixados somente na mão dos políticos, precisam ser debatidos em
público, com posições contraditórias, para se encontrar o bem
comum. A burguesia latino-americana está tão imbricada com o
capital internacional que já foi superada a antiga tese de que teriam
interesses antagônicos. O capital internacional tem tecnologia mais
avançada, pode aceitar formas mais distributivas de produção e
transpor para países em desenvolvimento mais cuidados com o meio
ambiente. A população nem está exigindo isso. As empresas estão
preocupadas com a maximização do lucro e não são instituições de
caridade; elas manipulam dados sobre investimentos, negócios e
lucros, mas não vejo uma consciência mais avançada brotar por si
em uma população mantida na ignorância pelas oligarquias locais.
Não espero que questões de poluição, de lixo biodegradável, de
produtos tóxicos sejam capazes de provocar no povo uma reação que
imponha mudanças imediatas. Há medo de perder empregos. Não
se espere da imprensa ou da escola melhor solução: jornalistas e
professores não decidem sobre o que o povo vai ver e ouvir.
O dr. Altenberg, da Escola Superior de Economia, de Berlim,
interveio:
– Os países industrializados estão ficando cada vez mais ricos e
os pobres proporcionalmente mais pobres, ainda que melhorem.
Esta bomba vai estourar, um dia. Com mais força, se não houver
mais a alternativa socialista. A década de 1980 tem sido marcada
pela estagnação e regressão econômica na América Latina.
O encerramento dos governos militares traz insegurança para o
capital transnacional, só que a garantia que eles davam era peri-
gosa. Introduziram o capitalismo no campo. Ditaduras são insegu-
ras. Se a burguesia nacional brasileira tivesse sido revolucionária,
poderia ter distribuído melhor a renda. A industrialização maior foi

Utopia e realidade no socialismo de Estado 49


feita pelas multinacionais. No regime militar, esse progresso não foi
visto pelos que o combateram. Os “reacionários” foram progressistas
e os progressistas foram reacionários. A industrialização por meio
de companhias estatais sonhada pelas esquerdas virou um pesa-
delo. Ninguém garante que um FNM, um fenemê da Fábrica Nacional
de Motores no Brasil, fosse melhor que um caminhão Mercedes ou
Scania, ou que poluísse menos: a lei econômica é mais forte que a
decisão política. O salário dos trabalhadores da Mercedes ou da
Scania de lá não se compara com o dos europeus, mas ganham
mais que a média do mercado. Se o valor gerado é baixo, não se
pode decretar salário alto. Só a produção de riqueza permite distri-
buir riqueza, mas a tendência do capital é concentrar riqueza.
Tecnologia avançada pode ter menos poluição. Desde a segunda
metade de 1980, já houve lá mais retiradas que investimentos de
capital, o que é uma tendência natural da relação entre metrópole e
periferia, mas interessa ao capital o aumento gradual dos salários,
para gerar um mercado interno forte, que vá aumentar a taxa de
lucros. Progressista é entender isso. Para as pessoas viverem melhor
é preciso diminuir a taxa de natalidade. Quanto maior a riqueza,
mais criminalidade e mais conflitos.
O dr. Altenberg, com os óculos na ponta do nariz, consultou
seus apontamentos, olhou em volta e, notando ouvintes atentos,
continuou:
– No Brasil, o déficit do governo federal vem crescendo desde
1984. Vejam alguns dados: em 1984, o déficit foi de 1,6%; em 1985,
foi de 3,5%; em 1986, de 3,7%; em 1987, ele já saltou para 5,4%,
enquanto que, em 1988, se prevê um salto para 7,4%. Isso obriga
qualquer governo a tomar medidas drásticas, já que uma hiperinfla-
ção se torna inevitável. Três são as soluções teoricamente possíveis
no curto prazo: 1) não mais pagamento da dívida externa e interna
como fonte do déficit; 2) aumento dos impostos para aumentar a
receita; 3) redução das despesas, especialmente com o corte de
funcionários, assistência social e projetos de desenvolvimento.
Dessas três alternativas, nenhuma especula com um aumento súbito
de produção. A primeira contraria os interesses dos países indus-
trializados e dos credores internos, não sendo de se esperar que
aconteça dentro do atual esquema de governo. Poderia haver uma
decisão política, de abater o montante da dívida externa para finan-
ciar o desenvolvimento, mas não se pode crer que isso vá acontecer
por pressões populares ou gestos de generosidade. Nenhum governo
consegue manter a legitimidade se serve a interesses externos

50 Flávio R. Kothe
contrários ao seu povo. A segunda alternativa, o aumento de impos-
tos, iria contrariar os interesses da classe média e da burguesia,
mas iria reduzir o poder de compra, levar à recessão, o que, aliás,
um confisco da economia popular também provocaria. Se eu conheço
o Brasil, um aumento de taxas provocaria aumento da sonegação,
sem que houvesse um aumento proporcional de receita...
Nesse momento, o dr. Altenberg ficou com o olhar parado, um
leve sorriso nos lábios, como se estivesse lembrando antigas histó-
rias. Ele percorria túneis da memória. Todos ficaram esperando,
alguns riram, o homem era conhecido por suas distrações. Ele
continuou, no entanto, a falar:
– Eu tinha esquecido uma coisa: a privatização de empresas
estatais, especialmente das lucrativas, como os partidos de direita
vêm propondo há tempos e que os militares, por seu nacionalismo,
não fizeram, apesar de terem cedido espaço a empresas estrangei-
ras. Isso representaria uma entrada de dinheiro, como quem vende
um anel, mas não resolveria nada. A solução estaria em conter as
contas e aumentar a produção, contando com taxas cambiais
melhores. Mas isso é utopia.
O sexagenário passou a mão pelos cabelos grisalhos, deu um
suspiro como quem está demasiado cansado com o peso do mundo,
olhou para os presentes e continuou:
– A terceira alternativa prejudica diretamente os interesses dos
funcionários públicos, da pesquisa, da assistência médica, da
atividade cultural e assim por diante; indiretamente, prejudica a
todos os que poderiam ser beneficiados pela assistência social,
pelos resultados da pesquisa, pela ativação do patrimônio cultural
e assim por diante. Como essa última alternativa atinge o fator
mais fraco e pode beneficiar o capital, inclusive por lançar mais
mão de obra barata no mercado, como ela oferece o argumento de
que o governo está cortando excessos em benefício do povo, como
ela serve para enfraquecer o aparelho de Estado facilitando a
imposição dos interesses dos grandes investidores, é provável que
seja este o caminho preferencial. Como não há de solucionar a
crise, em breve será necessário conjugar elementos das diversas
alternativas. Se o Brasil, enquanto maior país da América Latina,
não consegue enfrentar os interesses do FMI, não se pode esperar
que os países menores possam. Há força militar e policial para
controlar qualquer rebelião. Seriam necessários vários anos de
superávit nas exportações para pagar a dívida, o que pode ocorrer
se houver valorização das commodities. Países pobres não têm

Utopia e realidade no socialismo de Estado 51


grandes planos de investimento científico e tecnológico: apenas
como parte da divisão internacional do trabalho parece que isso
será promovido, os cientistas do terceiro mundo são baratos. Cada
vez mais, tudo está atrelado ao sistema internacional, sem alter-
nativas. Certos continentes levam a pior. Os processos inflacioná-
rios facilitam reduções salariais, o Estado não assume responsabi-
lidade pelos desempregados, necessidades básicas da população
continuarão sem serem atendidas. Os descendentes de imigrantes
europeus não podem esperar investimentos para ajudá-los, pois o
que importa às empresas não é a solidariedade: pela qualificação
da mão de obra pode haver até uma substituição nas elites gover-
nantes e uma nova mentalidade de trabalho e de responsabilidade
com o meio ambiente. A burguesia tem dois caminhos clássicos
para maximizar a taxa de lucros: 1) reduzir os custos de produção
e aumentar os preços dos produtos, o que tende a ser feito através
da diminuição dos salários reais e ser facilitado pela inflação; 2)
aumentar a produtividade do trabalho e o salário, ampliando o
poder de compra. É esta a diferença entre partidos de direita e de
esquerda no capitalismo, entre linha dura e progressista, entre
capitalismo selvagem e economia social de mercado. O primeiro
caminho está hoje reservado ao terceiro mundo, enquanto o
segundo prepondera no primeiro mundo. Para se desenvolver, o
capitalismo não só precisa de uma fase de acumulação primitiva,
um vale-tudo na exploração da mão de obra para a formação do
grande capital, mas só pode percorrer o segundo caminho fazendo
com que o primeiro prepondere noutras partes do planeta. O
primeiro mundo é rico porque o terceiro mundo é pobre; ele se diz
democrático, mas se apoia em ditaduras. Europa e Estados Unidos
são ricos não só pela exploração secular de outros continentes,
pelo baixo preço pago aos produtos naturais e à mão de obra, mas
porque milhões de operários trabalharam muito nas metrópoles.
Quando é que essa tensão vai se transformar em ódio racial e reli-
gioso? Do lado europeu, o que mais existe é desprezo e distância,
e isso não vem de hoje.
O dr. Altenberg temia um renascimento do racismo e das guerras
religiosas, já que para ele a luta de classes havia se transformado
em luta entre povos-patrões e povos-proletários. Resolveu concluir:
– Até há pouco tempo, os países atrasados, piedosamente chama-
dos de países em desenvolvimento, tinham no comunismo uma alter-
nativa à exploração que sofriam. Eu não sei o que vai acontecer com
o socialismo europeu, só sei que a produção não vai tão bem quanto

52 Flávio R. Kothe
se diz. Notam-se as deficiências do planejamento centralizado, da
falta de concorrência entre empresas e de renovação do maquinário.
Gastos excessivos na área militar, investimentos de menos na estru-
tura de produção. Diz-se que se fez uma socialização da economia
sem fazer a socialização da política: talvez nem isso tenha sido feito.
O sistema cava a própria cova, por impasses internos: quem não se
renova, morre. Deveria haver mais liberdade para criar empresas
mistas e serviços. No mercado, necessidades e bens se encontram e
se socializam: como ele ensina o que o povo quer, devia-se aprender
a ouvi-lo. Partidos comunistas, como representantes de um socia-
lismo real em crise, não têm mais chances. No terceiro mundo, as
diferenças sociais extremas levam a sonhar com igualdade. O socia-
lismo não foi um aborto da história, embora pareça. Como apache
da ciência, saúdo os irmãos: owgh!
Todos tiveram de rir com esse final: o dr. Altenberg gostava do
papel de bobo da corte, ironizando contradições em geral silencia-
das. Não era um risco calculado, na esperança de que não houvesse
algum informe secreto. Também não era que o dr. Altenberg contasse
com a sua imagem de bobo da corte ou que, devido à idade, supu-
sesse que nada mais tinha a perder. Tinha se acostumado a dizer
o que pensava, ele considerava urgente radicalizar teses: queria
salvar o socialismo através de reformas. Queria ganhar tempo
para o socialismo se reencontrar. Quanto menos tempo pressentia
haver, maior sua acidez. Ele criticava o socialismo real para preser-
var sua utopia humanista.
Vendo a seriedade das questões, o professor Ziembinski
interveio:
− Vou dizer algo que não se costuma dizer entre nós. O
marxismo se fez como frente de combate, para defender interes-
ses dos trabalhadores, mas ele perde o dente da dialética se fica
acomodado no poder. Ser radical, dizia Marx, é examinar as ques-
tões pela raiz. Temos de ver os fundamentos, as contradições nos
fundamentos. Examinando a história, Marx concluiu que a revolu-
ção das relações de produção ocorre sempre que a estrutura delas
impossibilita o desenvolvimento das forças de produção. Isso é
atribuir à história uma vontade de produtividade crescente.
A igualdade é uma necessidade do capital, para que todos possam
oferecer o que quiserem e todos possam comprar no mercado o
que quiserem e puderem. Valores como igualdade e liberdade são
aí vetores necessários para o funcionamento do sistema, assim
como a fraternidade serve para controlar a concorrência e a misé-

Utopia e realidade no socialismo de Estado 53


ria social. A questão é saber se esses valores são os de um modo
específico de produção ou se são valores permanentes, que deve-
riam ser preservados sempre. Sabemos que o capitalismo prega
igualdade e gera desigualdade crescente, concentra a riqueza
nas mãos de uma minoria.
Ele fez uma pausa, tomou um gole d’água e continuou:
− Temos de indagar sobre modos mais singelos de vida, com
menos consumo. O marxismo parece ter ficado marcado pela lógica
do capital, que precisa sempre aumentar a produtividade para que a
mais-valia seja crescente. Marx queria a revolução para aumentar a
produtividade. Como organizar, no entanto, a produção? Como orga-
nizar o governo no socialismo? Marx não conseguiu elaborar essa
virada histórica, embora tivesse até intuído que a revolução socia-
lista poderia acontecer antes na Rússia que nos centros industriais.
Além do modo capitalista de organizar empresas, com seu poder
centralizado em grandes acionistas, poderíamos pensar alternati-
vas: 1) a produção em cooperativas dirigidas pelos cooperativados,
mas isso tende a fazer com que eles busquem o máximo de vanta-
gens com o mínimo de esforço, o que as destrói por dentro, tanto
quanto elas serem, como aqui, forçadas a entregar o seu produto ao
Comitê Central; 2) grandes empresas públicas em todos os setores
básicos da economia, de tal maneira que as necessidades do povo
possam ser atendidas, mas, sendo de todos, acabam não sendo de
ninguém, tendem a ser mal administradas e daí uma minoria de
espertos procura vantagens indevidas; 3) a estatização de grandes
empresas, mas isso tende a cultivar a ganância privada dentro delas
e novamente se tem a prática da corrupção e da ineficiência; 4) a
privatização de grandes empresas públicas, mas isso tende a privi-
legiar uma minoria, que acaba tomando conta do aparelho de Estado,
para conseguir privilégios, em que a busca do lucro se sobrepõe ao
atendimento do bem comum. Em suma, como quer que se faça, conse-
gue-se estragar os melhores projetos. O homem não é bom, não
merece que uns poucos se sacrifiquem por ele. Fica difícil lutar por
algo que, com o correr dos anos, exibe corrupção, oportunismo.
Fez-se um silêncio geral, como se tivessem topado com um
abismo. O estudante boliviano Pedro Uchoa achou que tinha uma
mensagem divina ao dizer que o capitalismo havia se esgotado na
América Latina e o único problema era descobrir como chegar mais
rápido ao socialismo. Alguns se puseram a rir de mansinho, mas
ninguém interveio, não porque respeitassem o ponto de vista e sim
porque era acadêmico tolerar as falas e o que ele dizia era uma

54 Flávio R. Kothe
antiga tese soviética de que tudo caminhava para o socialismo. O
boliviano insistiu que, se o capitalismo vinha sendo capaz de
desenvolver-se não só na tecnologia, mas na distribuição social
dos produtos, isso não valia para a maior parte da América Latina:
era necessário que algum país de peso virasse socialista para que
ele se tornasse “bonzinho” no continente. Sem tal alternativa, os
latino-americanos ficariam expostos aos interesses das grandes
metrópoles e seriam ordenhados como nunca.
Como os alemães calassem e o boliviano ficasse pendurado no
ar, Mário disse que o surgimento de uma Cuba socialista tinha
provocado o contrário, ou seja, a instalação de ditaduras milita-
res por todo o continente e que os países socialistas não apare-
ciam como alternativa tecnológica viável para o terceiro mundo e
não estavam sendo vistos como alternativa ecológica. A ciência, a
tecnologia e a arte sul-americanas talvez só fossem levadas a
sério se a educação ampla e de qualidade fosse um programa
permanente de Estado, como havia sido na Prússia com Frede-
rico, o Grande. Se não, o que se desenvolveria seria a emigração
devido à diferença entre primeiro e terceiro mundo. Não é alterna-
tiva − acrescentou com ironia − regredir aos valores das culturas
indígenas, desistir da modernidade, reproduzir demais e morrer
cedo. Se os países industrializados só quisessem explorar, quanto
menos riqueza e trabalho houvesse, menos teriam eles a explorar.
Essa poderia ser uma estratégia secular de resistência.
O dr. Altenberg interveio sarcástico:
– Diversão lá, trabalho aqui! Bom programa!
Um sociólogo de Leipzig comentou a expressão corrente de que
“os alemães vivem para trabalhar em vez de trabalhar para viver”,
para dizer que só assim tinha sido possível sair da fome e conseguir
progresso. Não adiantava o terceiro mundo ficar chorando miséria,
acusar europeus e americanos para depois bater à sua porta
exigindo ajuda. Ele que tratasse de resolver seus problemas: se
vendia a preço de banana não só a banana, mas a madeira, o miné-
rio e a própria força de trabalho, se era incapaz de se organizar de
modo mais produtivo e menos corrupto, não podia viver de crédito,
tinha de pagar o preço. O boliviano se levantou, dizendo que a dívida
externa da América Latina era uma ficção para legitimar uma desca-
rada exploração e que não se devia pagar mais nada, controlar toda
remessa de lucro e proibir toda exportação de recursos naturais.

Utopia e realidade no socialismo de Estado 55


Mário pôs-se a bocejar. Estava cansando de receitas mágicas,
palavras sem perspectiva. Era incurável a contradição entre um
mundo cada vez menor e diferenças cada vez maiores. O pato paga
o pato, mas ninguém lembra. Como é que essa esquerda latino-a-
mericana queria tecnologia sem educação, sem poder? O despeito
contra europeus discriminava descendentes e servia para manter
antigas oligarquias. Estava com sede e cansaço. Sentia-se sufo-
cado. Bocejou. Não adiantava continuar discutindo. Queria um
pouco de ar puro, caminhar, deitar-se debaixo de uma árvore, escu-
tar passarinhos cantando. A reunião foi suspensa para o almoço,
com uma pausa até às três horas da tarde.

56 Flávio R. Kothe
Proletários de todo o mundo,
perdoem-nos!

Hubert Alquéres1

A
Revolução Bolchevique, de novembro de 1917, pelo calen-
dário gregoriano, e de outubro, pelo calendário juliano, foi
a mola propulsora da grande utopia do século 20: o comu-
nismo. Para o bem e para o mal – e mais para o mal – marcou a
vida e a morte, sonhos e pesadelos, como diz o historiador italiano
Silvio Pons. E foi, ao mesmo tempo, “realidade e mitologia, ideo-
logia progressista e dominação imperial, utopia libertadora e
sistema concentracionário”.
A bipolaridade também caracterizou os descendentes de Vladi-
mir Ilyich Lenin que se espraiaram pelo mundo. Os comunistas
foram vítimas de regimes ditatoriais e artífices de Estados poli-
ciais, protagonistas de lutas sociais e libertárias e fundadores de
regimes totalitários e liberticidas, na genial definição de Pons em
seu livro A Revolução Global.
Sim, os comunistas estiveram na primeira trincheira das
lutas pela jornada das oito horas, pelo direito de greve, pelos
direitos da mulher no trabalho e ao voto, no enfrentamento do
fascismo e do nazismo, entre tantas e tantas batalhas. O surgi-
mento do primeiro país socialista incidiu sobre as sociedades
capitalistas no sentido de consagrar em seu arcabouço conquis-
tas sociais que perduram até hoje.

1 Professor e membro do Conselho Estadual de Educação (SP), lecionou na Escola


Politécnica da USP e no Colégio Bandeirantes e foi secretário-adjunto de Edu-
cação do Governo do Estado de São Paulo

57
Os anseios por equidade e igualdade despertados pela Revolu-
ção Russa teve a sua melhor resposta no Estado de Bem-Estar
Social, no qual a justiça social se concretizou em uma economia
de mercado sem a supressão da democracia e das liberdades.
Mas ao se erigirem em poder geraram ditaduras atrozes. Do
seu passivo fazem parte regimes tirânicos como o de Nicolae
Ceausescu, na Romênia; Erich Honecker, na Alemanha Oriental;
Pol Pot, no Camboja; o terror da era Josef Stalin ou da Revolução
Cultural Chinesa.
A instalação do socialismo em um país atrasado teve seu
preço: a consolidação da ditadura do partido único, por meio do
terror e do extermínio de todas as correntes políticas – inclusive
as com raízes operárias e camponesas, como os mencheviques de
esquerda, liderados por Julius Martov, e os esseristas de esquerda
(socialistas revolucionários com base sólida no campesinato).
Os fundamentos teóricos para o poder totalitário que viria a se
instalar foi dado por Lenin, às vésperas da Revolução, por meio do
seu livro O Estado e a Revolução. Stalin não foi um desvio de rota.
Foi a versão do leninismo levada às últimas consequências.
Como julgar uma revolução que prometia construir o paraíso
terrestre por meio de uma sociedade sem classes, sem Estado, e
da qual brotaria o homem novo – o homo sovieticus – e 74 anos
depois ruiu por causa do seu obsoletismo tecnológico, por sua
incapacidade de produzir bens de consumo moderno e por ter se
transformado na sociedade da escassez?
A revolução de 1917 produziu feitos homéricos. Em poucas
décadas, a Rússia secularmente atrasada e autocrática dos
tempos do czarismo transformou-se na segunda potência mundial,
rivalizando com os Estados Unidos nas corridas espacial e
armamentista.
Não se podem ignorar as páginas épicas que escreveu, como a
derrota das tropas de Adolf Hitler às portas de Moscou, Stalin-
grado, Leningrado, assim como a vitória do Exército Vermelho na
batalha final de Berlim. Os soviéticos foram capazes de mandar o
primeiro ser vivo a orbitar o planeta – a cadela Laika – e a levar
o primeiro homem ao espaço sideral, o major Yuri Gagarin.
Mas nem por isso merecem a absolvição da história.
Já nos estertores da Pátria Mãe do socialismo, Mikhail Gorba-
chev indagava como era possível uma nação dominar inteiramente

58 Hubert Alquéres
a tecnologia espacial e ser incapaz de fabricar um sapato ou uma
calça de qualidade.
Há uma explicação lógica: para fazer frente à corrida nuclear
e espacial, que ao final perdeu para os EUA – a URSS teve de
deslocar volumosos recursos de outras áreas. A consequência
disso foi a escassez de produtos de primeira necessidade.
Para a população dos países que experimentaram o “socia-
lismo real”, o comunismo está indissoluvelmente associado à
fome, ao terror, à falta de liberdade, ao Muro de Berlim, às KGB e
Stassi, às ditaduras de Stalin, Honecker e Ceaucesco.
Na sua fase terminal, já não se discutia mais na URSS se sua
história tinha sido um desastre; os debates eram sobre as razões
dos desastres. E responsabilizava-se Lenin por ter dado o tom do
poder soviético com o Terror Vermelho e os primeiros campos de
concentração.
O melhor balanço dos 74 anos da experiência socialista sovié-
tica veio em forma de ironia em uma faixa de uma das manifesta-
ções multitudinárias de Moscou: “Proletários de todo mundo,
perdoem-nos!”. Para quem viveu sob o tacão da tirania do partido
único não há como oferecer a outra face e perdoar.
E para a história não há como não ser implacável em seu
julgamento sobre os cem anos da Revolução Russa.

Proletários de todo o mundo, perdoem-nos! 59


Um século russo

Ivan Alves Filho1

O
século 20 – um século breve, conforme a definição do
historiador marxista britânico Eric Hobsbawm – come-
çou e acabou na Rússia. Teve início em 1917, quando os
revolucionários bolcheviques liderados por Vladimir Illitch Lenin
tomaram de assalto o Palácio de Inverno, num sete de novembro,
em São Petersburgo. E terminou com o fim da experiência sovié-
tica – iniciada em 1921 –, com a queda de Mikhail Gorbachev, o
último secretário-geral do Partido Comunista, em 1991.
Muito já se escreveu a propósito do desmoronamento do socia-
lismo realmente existente. O sistema teria sido minado por seus
próprios desvios burocráticos. Ou sucumbido à poderosa propa-
ganda ideológica do inimigo capitalista. Ou, ainda, desdenhado a
questão da democracia política. Para outros, a corrida armamen-
tista deslanchada pelo campo ocidental, sobretudo pelos norte-a-
mericanos, enfraqueceria de maneira irreversível as economias
socialistas, (historicamente debilitadas, se comparadas com o
desenvolvimento das potências capitalistas, com o ponto de
partida delas). Tudo isso é verdade. Mas existe um outro aspecto
nunca lembrado nessa questão do desmoronamento da União
Soviética: o país não soube – ou não pôde – se dotar de uma base
material que possibilitasse sustentar no topo relações de produ-
ção de novo tipo, livres de qualquer exploração do homem pelo

1 Jornalista, historiador, autor de mais de uma dezena de importantes livros, o último


dos quais é O Homem e o Tapeceiro, editado pela Fundação Astrojildo Pereira

61
homem, conforme estabelecia o ideário marxista. E sem uma base
material nova, não existe modo de produção historicamente novo.
É o que a marcha da História nos ensina.
O fato é que a antiga URSS fez uma revolução política mas
herdou a base material por excelência do sistema capitalista – a
unidade fabril. E não criou nada no lugar dela. E o mais dramá-
tico ainda estaria por vir: a base material da sociedade sem clas-
ses – representada pela revolução técnico-científica em curso no
mundo há pelo menos três décadas, com base na automação –
surgiria primeiro no Ocidente capitalista. A base técnica dessa
sociedade, bem entendido – e não a sua base social e política. É
como se a Revolução Russa de 1917 tivesse colocado a política na
frente da economia (ou das forças produtivas, mais concreta-
mente) e o Ocidente tivesse feito justamente o contrário disso.
Seja como for, a União Soviética não somente deixaria de
modificar essa base material (o capitalismo, diga-se de passagem,
mudou a base do feudalismo, o que possibilitou explodir de fato
com as relações servis de produção, reforçando assim o próprio
capitalismo) como também manteria as relações assalariadas de
produção já presentes no capitalismo. E o que é ainda mais sinto-
mático, o capital permaneceria intocado também no interior do
socialismo real. A pergunta parecia ser: o que fazer com ele?
O que o socialismo real modificaria estruturalmente, então?
Na verdade, apenas o estatuto formal dos meios de produção,
doravante sob o controle do Estado, não necessariamente sociali-
zado. É preciso reconhecer isso. Não é demérito. É que não havia
condições de se caminhar mais longe do que isso, dadas as condi-
ções da sua implantação. No fundo, os bolcheviques contavam
com o pipocar da revolução na Alemanha, área mais avançada,
para viabilizar de fato a Revolução Russa. Tanto que o idioma
oficial da III Internacional, criada em 1919, era o alemão.
Problemas fundamentais que têm que ver com o caráter da
gestão, tão ou mais importantes até do que o próprio estatuto da
propriedade, foram praticamente postos de lado. Afinal, se apro-
priar dos meios de produção é inseparável de se apropriar dos
meios de gestão – ou deveria ser. Pior ainda: a ideia de socialismo
se restringia à esfera econômica, mais concretamente às naciona-
lizações operadas no âmbito da indústria. Vale destacar ainda
que o próprio Karl Marx evitava se referir ao termo socialismo:
para o filósofo e ativista alemão o que havia, na realidade, eram

62 Ivan Alves Filho


duas fases do comunismo, uma inferior e outra superior. Está na
Crítica do Programa de Gotha.
E a relação com a propriedade assim como a relação de explo-
ração do trabalho não eram as únicas apontadas por ele como
responsáveis pela alienação do homem. Ou seja, a coisificação
crescente do ser humano e a opressão exercida pelo Estado sobre
ele foram ignoradas pelo socialismo realmente existente. Vale
dizer, são muitas as áreas da experiência humana que merece-
ram a atenção de Marx, e não apenas a opressão econômica.
Contudo, acabou prevalecendo a redução da "etapa inferior" do
comunismo à simples organização de um sistema econômico com
base nas empresas estatais. Deu no que deu.
Na seara política, prevaleceria um absolutismo próximo
daquele vigente na Europa do Oeste durante o século 19. Absolu-
tismo esse que deitava raízes no velho czarismo, é bem verdade –
mas que o fechamento da Assembleia Constituinte pelos bolchevi-
ques só agravaria. Na realidade, os líderes políticos russos
viraram as costas a algumas das mais caras práticas democráti-
cas presentes desde o final do século 19 no movimento socialista
e operário europeu, como os direitos de greve, de reunião e de
voto. Ora, se essas conquistas foram obtidas sob o capitalismo,
mais uma razão para que fossem mantidas por aqueles revolucio-
nários. Questão complexa esta da democracia.
O fato é que a Revolução Russa teve dificuldades em assimilar
o que a civilização humana havia produzido de melhor, até então.
E a democracia é justamente isso: um conjunto de valores civili-
zatórios, em que despontam conquistas como o habeas corpus,
que data do Império Romano. A tradição autoritária russa – uma
área de frágil presença da sociedade civil, frequentemente engo-
lida pelo Estado, em prática nitidamente "oriental" – acabou
falando mais alto.
A extraordinária contribuição da União Soviética à luta contra
o nazismo não seria, infelizmente, assimilada internamente no
sentido de uma abertura política. Mesmo assim, os comunistas
ajudaram a consolidar a democracia no Ocidente, participando de
governos de União Nacional, como na França e na Itália, e esti-
mulando políticas de frentes populares. Propuseram a importan-
tíssima política de coexistência pacífica entre regimes sociais
diferentes. E o papel dos comunistas nas lutas pela descoloniza-
ção também foi digno de nota, com destaque para seu apoio
inabalável ao povo do Vietnam. Os comunistas da III Internacio-

Um século russo 63
nal – é preciso dizer – também fizeram sua parte na luta contra a
barbárie. Lamentavelmente, por momentos também mergulha-
ram nela, como no período stalinista.
No fundo, a grande diferença entre a proposta comunista e a
capitalista é de natureza antropológica. Ou seja, reside na batalha
pela desalienação do homem em todos os planos da sua existência,
do econômico ao modo de vida. Uma batalha pela superação daquilo
que Marx denominava por "pré-história" do homem. Não basta
mudar a sociedade; é preciso também mudar a própria civilização.
A rigor, a Revolução Russa ficará para a História como uma espécie
de ala esquerda da sociedade industrial.
A História ensina que, com todas as limitações de uma primeira
experiência revolucionária, a luta pela preservação da Revolução e
a montagem de um Capitalismo de Estado – a definição é do próprio
Lenin, em seus escritos sobre o caráter da Rússia pós-1917, mais
exatamente em seus artigos econômicos – liberaria uma energia
extraordinária, como que represada por longos anos na velha
Rússia dos czares. É que havia a esperança de uma mudança radi-
cal no modo de vida. E, em vários setores do conhecimento e da
prática humanas, essa esperança se concretizou. E isso também é
inegável, é preciso que se reconheça. Da servidão à industrializa-
ção: a Rússia, em pouquíssimas décadas, passou de um país de
servos a um país onde os proletários almejavam, pela primeira vez
na História, chegar ao poder. Tudo isso não é pouco mesmo.
Os artistas e a arte russa e soviética materializariam esse
início de mudança – para melhor, imagino – das fontes da vida no
chamado socialismo real. É o que a própria realidade objetiva nos
diz. Vejamos a coisa de perto. O cinema documental, com Dziga
Vertov à frente, nasceu durante o processo revolucionário russo.
Seu belíssimo “Três cânticos para Lenin” até hoje emociona as
plateias do mundo inteiro, pela força de suas imagens, até por
uma certa aspereza que delas emana. Fascinante, realmente.
Serguei Eisenstein, pelo lado do cinema ficcional, dirigiu e montou
verdadeiras obras-primas, como “Outubro”, “Ivan, o terrível” e
“Que viva México!” (este último inacabado. Os soviéticos chega-
ram então a sondar Glauber Rocha para terminar o filme.). Como
esquecer um criador como Eisenstein, se ele já pertence ao patri-
mônio cultural da humanidade?
Se caminharmos para o lado das artes plásticas, impossível
deixar de mencionar os nomes dos criadores russos Marc Chagall
(que chegou a ser comissário do povo ou ministro no novo governo

64 Ivan Alves Filho


da Revolução), Malevitch e Kandinsky, verdadeiros ícones da
modernidade, compreendendo aí os experimentos com as lingua-
gens abstratas na pintura.
E a história se repete na poesia, na dramaturgia e na novelís-
tica, onde despontam nomes como Maiacovski, Essenin, Bloch,
Meierhold e Máximo Gorki, todos de primeiríssima linha.
A influência desses artistas e escritores extrapolou a própria
cultura russa, encantando o conjunto da cultura ocidental.
O que dizer ainda? No terreno das práticas educacionais, não
podemos esquecer tampouco o nome de Makarenko. O pensamento
revolucionário russo não ficaria atrás: teóricos como Lenin, Bukha-
rin, Lunacharski e Trotsky enriqueceriam a compreensão dos fatos
políticos no século 20. E é preciso reconhecer que o próprio Josef
Stalin, em que pese seus erros e crimes brutais, foi autor de um
estudo dos mais rigorosos sobre a questão da nacionalidade. Difícil
encontrar um país como a Rússia, decididamente.
Revolução, pelo visto, também é cultura. Esta, talvez, uma das
heranças mais memoráveis de 1917 – talvez até a principal delas.
E essa memória aquece os nossos corações, irremediavelmente
esperançosos, apesar das vicissitudes da História recente.
Na velha Rússia, e também fora dela.

Um século russo 65
Revolução Russa e O capital

José Antonio Segatto1

H
á um século, em outubro de 1917, o processo revolucioná-
rio desencadeado na Rússia em fevereiro – com o colapso
do império czarista – sofreu drástica inflexão e ganhou
curso imprevisto com o movimento disruptivo sob a direção do
partido bolchevique.
Ainda no calor da hora, um jovem militante socialista italiano,
Antonio Gramsci, escreveu um pequeno e instigante artigo intitu-
lado “A revolução contra O capital”. Segundo o autor, a conquista
do Estado pelos bolcheviques contrariava as diversas tendências
do movimento socialista europeu e também russo (mencheviques
e socialistas revolucionários). O que Gramsci, na verdade, procu-
rava chamar a atenção era para a necessidade de reposição do
protagonismo do sujeito e da iniciativa política, que haviam sido
obscurecidos pelo fato dos partidos socialistas ou socialdemocra-
tas terem se impregnado pelo positivismo e pelo naturalismo.
Isso teria implicado numa compreensão evolutiva e fatalista da
história – o amadurecimento do capitalismo levaria inexoravel-
mente à abertura da transição socialista; ou seja, o desenvolvi-
mento das forças produtivas e das relações sociais de produção
capitalistas, secundado por uma revolução democrático-bur-
guesa, seria o pressuposto básico e necessário para o socialismo.
Concepção essa que – derivada de uma certa leitura da obra
capital de Marx (que, aliás, completava naquele exato momento,

1 Sociólogo. Professor titular de Sociologia da FCL/Unesp.

67
50 anos da publicação de seu primeiro volume em 1867) e cujos
fundamentos já haviam sido anunciados sinteticamente no
famoso prefácio à Contribuição à crítica da economia política
(1859) – fora erigida em cânone incontestável pela II Internacio-
nal Socialista. No referido preâmbulo, o intelectual alemão asse-
verou: “Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam
desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter, e as
relações de produção novas e superiores não tomam jamais seu
lugar antes que as condições materiais de existência dessas
relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha socie-
dade. Eis porque a humanidade não se propõe nunca senão os
problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a análise,
ver-se-á sempre que o próprio problema só se apresenta quando
as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias
de existir”. (Marx, 1983, p. 233).
A propósito e posteriormente, no início dos anos 1930, nos
Cadernos do cárcere, Gramsci retomaria esse excerto para dele
deduzir o conceito de revolução passiva. (2002, p. 321).
Para Gramsci, as agruras da guerra (com o morticínio de 5
milhões de soldados russos) teriam criado condições (vontade
coletiva), de maneira célere e inusitada, para a tomada do poder
pelos bolcheviques num país atrasado, de capitalismo incipiente
como a Rússia. Sem dúvida, a guerra potencializou a crise estru-
tural que já era latente em todo o imenso império russo, abar-
cando inúmeros problemas acumulados secularmente: dominân-
cia tirânica da autocracia czarista, subjugação de nacionalidades
não russas, brutal opressão do campesinato, bloqueios à organi-
zação da sociedade civil, inexistência de direitos mínimos (tanto
civis como políticos) etc.
Em 1917, a crise irrompe com tal força que desintegrou o todo
poderoso império czarista. “A autocracia czarista não foi exata-
mente derrubada por ninguém: desapareceu de cena em meio à
guerra, sem que existisse qualquer alternativa óbvia para assu-
mir o poder. A Duma [parlamento russo], que desfrutava de
prestígio zero, era incapaz de substituí-la. Apenas produziu um
governo provisório e saiu da cena política” (Lewin, 2007, p. 341).
Criara-se uma situação caótica que se agravou com a constitui-
ção de um governo provisório privado de credibilidade dirigente
e impotente para enfrentar as graves circunstâncias. “Nesse
contexto sombrio, o Governo Provisório, composto principal-
mente de socialistas revolucionários e mencheviques (...), perce-

68 José Antonio Segatto


beu que não controlava mais nada, que sua legitimidade
minguava a cada dia e que perdia seu espaço de manobras”
(Lewin, 2007, p. 345). Estavam criadas as condições – vazio de
poder, revolta e fúria popular, ordem anômica, desorganização
econômica, desmantelamento e/ou aniquilamento do exército
etc. – para que um pequeno partido de vanguarda, resoluto e
com propostas que atendiam os anseios imediatos das classes
subalternas (pão, paz e terra), se apoderasse dos aparatos do
Estado sem resistência, em nome dos sovietes (conselhos).
Conquistado o Estado – onde ele era tudo e a sociedade civil
rarefeita – os bolcheviques logo trataram de recompor o poder, em
meio a uma devastadora guerra civil, consolidando-o como “dita-
dura do proletariado” e com a edificação de um Estado demiurgo
sob a direção do partido único. A propósito, um dos primeiros
atos dos bolcheviques no poder foi a dissolução da Constituinte
(janeiro de 1918), eleita em novembro, na qual eram minoria. Rosa
de Luxemburgo chamou a atenção, de imediato, para as conse-
quências daquela conduta: “abafando a vida política em todo o
país, a paralisia atinge também, cada vez mais, a vida dos sovie-
tes. Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e de
reunião ilimitadas, sem o livre confronto de opiniões, a vida se
debilita e vegeta em todas as instâncias públicas e a burocracia
acaba como único elemento ativo”. (1991, p. 94).
Os sovietes e os sindicatos logo foram subordinados ao Estado
e ao partido e tornados correias de transmissão, pelos quais eram
aplicadas decisões emanadas do centro do poder, via centralismo
democrático. A “ditadura do proletariado” reduziu-se cada vez
mais à ditadura do Comitê Central – isso foi reforçado com a
eliminação e/ou ilegalização dos demais partidos (inclusive aque-
les de extração socialista) e a imposição do partido único. Nesse
sentido, Lenin, desde o início, salientou o caráter do socialismo a
ser construído na Rússia: “Enquanto a revolução tarda ainda a
nascer na Alemanha, nossa tarefa consiste em apreender o capi-
talismo de Estado com os alemães e implantá-lo com todas as
forças, em não suavizar os métodos ditatoriais para acelerar o
ocidentalismo na Rússia bárbara, nem evitar os meios bárbaros
de luta contra a barbárie”. (1988, p. 303).
No decorrer da década de 1920 – envolto em disputas e concep-
ções variadas – foi se corporificando um protótipo de socialismo
que seria fixado nas décadas seguintes, cujas características
gerais podem ser sintetizadas topicamente, como segue: 1. estati-

Revolução Russa e O capital 69


zação dos meios de produção e circulação, planejamento ultra-
centralizado da economia, industrialização extensiva, coletiviza-
ção da agricultura, abolição da economia de mercado, métodos de
gestão burocráticos e coercitivos; 2. estatização dos sovietes,
sindicatos, imprensa e outros órgãos; 3. inexistência de normas
democráticas – extintos quaisquer resquícios de liberdade e direi-
tos civis e políticos mínimos, as facções e as dissensões foram
criminalizadas com o banimento (gulags) ou mesmo eliminação
física e o Estado-partido chegou, em alguns momentos, a ganhar
caráter terrorista; 4. os problemas das nacionalidades, étnicos e
religiosos tratados com a coerção, anexações, remoções e russifi-
cação; 5. o marxismo-leninismo tornado ideologia ou doutrina
oficial, como um sistema de dogmas que tudo explicava e justifi-
cava; 6. conformação de extratos sociais ou estamentos privile-
giados, os novos donos do poder: dirigentes partidários (apparat-
chiks), alta burocracia estatal (nomenklatura), oficialidade militar
e outros, que totalizavam mais de um milhão de cargos.
Desde o primeiro momento, houve a tentativa de universalizar
o modelo bolchevique de socialismo. Em 1919, foi criada a III Inter-
nacional Comunista – IC para impulsionar o processo revolucioná-
rio na Europa (em especial na Alemanha). O insucesso desse
intento levou a IC a investir em sua eclosão nos países coloniais ou
dependentes (Ásia, América Latina e África), com caráter anti-im-
perialista e de libertação nacional. Esse modelo teve seu momento
áureo no pós-guerra, com sua expansão no leste europeu e no
oriente. “A URSS emergiu da guerra como grande potência de natu-
reza dual – Estado entre estados e centro do socialismo mundial.
O movimento comunista alcançou o ápice de sua expansão por
meio da resistência antifascista na Europa e da luta anti-imperia-
lista na Ásia (...); era uma superpotência militar, ainda que de cali-
bre inferior ao dos Estados Unidos. Em torno dela girava um
sistema de Estados satélites, reproduzindo o modelo soviético.
Continuado na Europa, o comunismo estava no poder na China e
mostrava uma face muito aguerrida na Coreia e no Vietnã. Moscou
dirigia um polo do poder mundial dominante no espaço euroasiá-
tico e no Extremo Oriente”. (Pons, 2014, p. 29 e 381).
Entretanto, já nesse período começou a dar sinais de exaustão
pelo acúmulo de problemas e de contradições irresolvidas.
O Movimento Comunista Internacional que substituiu a IC (extinta
em 1943), já nas décadas de 1950/60, estava fraturado pelas
dissidências da Iugoslávia, China e outros regimes e partidos

70 José Antonio Segatto


antes fiéis ao comando do PCUS. “A corrosão da autoridade sovié-
tica abria o cenário de perda de legitimação do comunismo”
(Pons, 2014, p. 479). A crise do movimento acentuou-se a partir
da Primavera de Praga e de movimentos, mais ou menos, correla-
tos no Ocidente. “De modo variado, os reformadores de Praga, os
estudantes rebeldes no Ocidente, os revolucionários terceiro
-mundistas puseram a nu a perda de relevância do Estado sovié-
tico e do movimento a ele ligado (...); no final da década, porém, o
comunismo soviético surgia esvaziado de qualquer significado
progressista (...); o comunismo internacional não mais represen-
tava um sujeito da política mundial. Aparecia cada vez mais como
movimento dividido, fragmentado e destituído de projeto unitário,
sinônimo de dogmatismo e conservadorismo imperial, modelo
incapaz de dar respostas a questões elementares de liberdade e
progresso, poder propenso a reproduzir ao infinito o uso da violên-
cia, força que perdera irremediavelmente o impulso revolucioná-
rio”. (Pons, 2014, p. 35, 479 e 561-562).
Um grupo dirigente do PCUS procurou ainda, nos anos 1980,
sob o comando de Mikhail Gorbachev, renovar o socialismo real,
para preservá-lo, por meio de reformas econômicas e da demo-
cratização do Estado (perestroika e glasnost). Mas ao fazer isso,
despertou forças e energias, interesses e ideologias, que estavam
latentes, porém adormecidas ou contidas – estas ganharam uma
dimensão e dinâmica incontroláveis que levaram à sua derro-
cada. Por outro lado, certamente, o processo de reestruturação
capitalista e de globalização desencadeado no último quartel do
século 20, teve papel primordial no colapso do socialismo real.
“Déficit de capacidade hegemônica, imobilidade dogmática e
marginalidade cultural prepararam o terreno para a crise final”.
(Pons, 2014, p. 35).
No terceiro quartel do século 20, o socialismo real entrou
numa crise irreversível que acarretou sua ruína na URSS, no
leste europeu e em outras partes do mundo de forma fulminante
e até mesmo inesperada, expondo seus caracteres autoritário-bu-
rocráticos em toda sua crueza.
Se, no limiar do século 20 e nas décadas seguintes, a história
parecia indicar que o capitalismo estava condenado e que o futuro
seria do socialismo – que prometia o paraíso terreno e/ou a eman-
cipação dos pobres e oprimidos – já em seu término, a situação
inverteu-se totalmente. Ele passou a ser identificado com autori-
tarismo e opressão.

Revolução Russa e O capital 71


Erick Hobsbawm (1992, p. 96), logo após o desmoronamento
dos regimes do “socialismo real” no Leste Europeu e da iminente
ruína da URSS, constatou de forma lúcida: “Estamos testemu-
nhando não uma crise de um tipo de movimento, regime ou
economia, mas seu fim. Aqueles que nós pensávamos que a
Revolução de Outubro era a porta para o futuro mundial prova-
ram estar equivocados”.
O fim trágico do socialismo real revelou para a esquerda em
geral (comunistas, socialistas ou socialdemocratas, trabalhistas,
cristãos etc.) uma situação dramática e trouxe em seu bojo proble-
mas e elementos capazes de abalar não só a práxis do movimento,
mas os próprios ideais do socialismo, além de legitimar, por tempo
imprevisto, o capitalismo. Gramsci, se vivo estivesse – no ensejo
do sesquicentenário da obra capital de Marx – provavelmente,
advertiria que estaríamos carecendo de uma revolução não contra,
mas a favor de O capital.
Dessa forma, o processo histórico que desembocou nos fatos e
acontecimentos que redundaram no colapso do “socialismo real”,
criou uma situação dramática e sem precedentes, e com desdobra-
mentos ainda difíceis de se visualizar, devendo ter longa duração.
O que teria levado uma utopia/projeto tão generoso como o
socialista – que chegou a tornar-se alternativa concreta à opres-
são, alienação e exploração capitalista – à situação de infortúnio,
que se encontra já há quase três décadas. Significaria isso a vitó-
ria da superioridade do capitalismo sobre o socialismo? Ou como
proclamou Francis Fukuyama, teríamos enfim chegado ao “fim
da história” com o triunfo definitivo do liberalismo e do livre
mercado? Teria sido obra da traição, capitulação e do oportu-
nismo de determinados lideres, grupos ou partidos? Deve-se à
degenerescência burocrática operada pelo stalinismo? Ou que, na
verdade, aqueles países onde se proclamava viver sob o “socia-
lismo real” não passavam de formações econômico-sociais de
capitalismo de Estado?
Evidentemente existem outras explicações tão ou mais simplis-
tas ou outras mais complexas e sofisticadas para tal situação.
Pensamos, no entanto, que para compreender a extensão e a
profundidade do problema, é necessária uma análise da gênese e
trajetória histórica das experiências socialistas, inclusive suas
elaborações teóricas e seus elementos de previsão, sua metamor-
fose e sua conformação real e concreta. É claro que isso exige um

72 José Antonio Segatto


trabalho e análise extensa e profunda. O que procuramos fazer
aqui foi apontar algumas questões histórico-políticas gerais.
A situação criada com o colapso do “socialismo real” coloca
para as forças de esquerda, que desejam a ultrapassagem do capi-
talismo, imensos desafios e a necessidade de repensarem e refaze-
rem sua teoria e prática. Sem isso não será possível recriar uma
motivação histórico-política em torno dos ideais socialistas ou
repensar a possibilidade do reino da liberdade, igualdade e felici-
dade numa sociedade complexa como a do início do século 21.

Referências
GRAMSCI, A. Escritos políticos (1910-1920). Org. e trad. Carlos
Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, v. 1,
p. 126-130.
______.Cadernos do cárcere. Trad. Luiz Sérgio Henriques. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, v. 5.
HOBSBAWM, E. J. Adeus a tudo aquilo. In: BLACKBURN, R. (Org.).
Depois da queda. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1922, p. 93-106.
MARX, K. Prefácio à Contribuição à crítica da economia política. In:
FERNANDES, F. (Org.). Marx e Engels. São Paulo: Ática, 1983, p.
230-235 (Coleção Grandes Cientistas Sociais, v. 36).
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trad. Antônio R. Bertelli, Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1988.
LEWIN, M. O século soviético. Trad. Silvia de Souza Costa. Rio de
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LUXEMBURGO, R. A revolução russa. Trad. Isabel M. Loureiro.
Petrópolis-RJ: Vozes, 1991.
PONS, S. A revolução global – história do comunismo internacional:
1917-1991. Trad. Luiz Sérgio Henriques. Brasília; Rio de Janeiro:
FAP/Contraponto, 2014.

Revolução Russa e O capital 73


As duas vidas da Revolução Soviética

José Arlindo Soares1

A
Revolução Russa de 1917 marcou o início do século 20, com
a introdução, no cenário mundial, de um novo paradigma
político-econômico absolutamente oposto ao liberalismo do
século 19, tendo, como uma de suas causas, a eclosão da primeira
grande guerra mundial, que assinalou a incapacidade do próprio
sistema liberal de resolver suas contradições no interior do próprio
mercado. Uma revolução que, contrariando o próprio marxismo
clássico, explodiu em um país atrasado, e mudou radicalmente
tanto a geopolítica do planeta, como a divisão do pensamento
político da humanidade, não apenas nos setenta anos em que o
regime se manteve vigente na União Soviética (URSS).
Para a historiadora Sheila Fitzpatrick, 2 as revoluções têm
duas vidas. A primeira destas é inseparável do presente, da polí-
tica contemporânea, dos fatos que realmente existiram. Na
segunda vida, elas deixam de ser parte do presente e se movem
para a história das lendas nacionais e internacionais. Acrescento
que a Revolução Soviética virou lenda muito antes mesmo de
completar a primeira vida. Ela caminhou sob a proteção da ideo-
logia, enquanto a história real fazia milhões de vítimas em diver-

1 Sociólogo, professor voluntário do Programa de Pós-Graduação de Sociologia da


Universidade da Paraíba, consultor em Políticas Públicas Locais e diretor do
Centro Josué de Castro, Recife-PE.
2 Fitzpatrick, Sheila. A Revolução Russa – trad. José Geraldo Couto, edição
brasileira: São Paulo: Todavia, 2017. Edição publicada mediante acordo com a
Oxford University Press.

75
sas escalas, desde a censura absoluta aos intelectuais, até os
fuzilamentos de opositores, chegando aos campos de concentra-
ção e trabalhos forçados, além do deslocamento físico de popula-
ções inteiras de camponeses que não se adaptaram à coletiviza-
ção forçada imposta pelo regime.
Na disputa geopolítica, que fazia nascer uma nova potência
militar, a segunda vida da Revolução foi-se moldando à antítese
do que foi o seu ideário inicial, terminando por confundir-se com
a lenda, cuja essência custou a ser percebida por parte dos forma-
dores de opinião, no mundo todo. Em virtude da polarização e da
luta ideológica com o capitalismo, inúmeros intelectuais do
Ocidente fecharam os olhos, por exemplo, para as montagens
grosseiras dos processos de Moscou.
Todo o arsenal de contradições entre doutrina e realidade não
a impediu de manter o discurso da solidariedade internacional
aos explorados, com a promessa de uma vida idílica na fase do
comunismo, ou da ajuda aos povos colonizados, mantendo a pola-
rização permanente com as potências capitalistas. Assim, a luta
ideológica criou uma realidade autorreferida, enquanto um
processo brutal de acumulação primitiva, por meio da expropria-
ção quase absoluta do excedente produzido, foi construindo uma
burocracia poderosa, o que não deixava de ser um canal de
promoção para uma elite operária, e de recompensa para as
adesões tardias ao partido.
Em sua fase de consolidação, nos anos 1937/40, o terror se
esmerou com prisões, fuzilamentos e campos de concentração,
que vitimaram milhares de “inimigos fabricados”, entre eles a
grande maioria de membros do próprio Comitê Central Bolchevi-
que, à época da Revolução. Praticamente dois terços dos bolchevi-
ques históricos foram presos e fuzilados como “inimigos do povo”,
em cenários macabros para desmoralizar os “traidores”, com
destaque para as lideranças históricas do Bolchevismo, como
Kamenev, Zinoviev e Bukharin, sem falar no exílio e assassinato
de Leon Trotski, organizador do Exército Vermelho, que garantiu
a manutenção do poder soviético no período da guerra civil.
Muitas análises atribuem a um desvio patológico de Stalin a
transformação da ditadura do proletariado em totalitarismo de
Estado, quando, de fato, a natureza que o regime assumiu já
estava dada na própria doutrina do partido. Estava tanto no Que
Fazer e Estado e Revolução, como na prática política dos primei-
ros momentos do governo. Prática que foi transformando uma

76 José Arlindo Soares


ideologia revolucionária/libertadora (vide Dez Dias que Abalaram
o Mundo) em uma máquina burocrática de guerra e repressão,
aperfeiçoada por mais de três décadas.
O que foi aparentemente paradoxal é que muitos dirigentes,
que vieram a ser vítimas, contribuíram para a consolidação do
regime ditatorial. Na verdade, o arcabouço do Estado Totalitário,
que favoreceu a ascensão de Stalin, foi estabelecido com os votos
de membros proeminentes da futura oposição, inclusive de Trot-
sky. O modelo foi-se consolidando com medidas de cerceamento
das liberdades civis e políticas, com destaque para a proibição da
existência de tendências no próprio partido; com o fechamento de
todos os jornais não bolcheviques, inclusive com a proibição de
funcionamento de outros partidos de esquerda, como os Menche-
viques e Socialistas Revolucionários.
Logo após a Revolução, os bolcheviques simplesmente desti-
tuíram a Assembleia Constituinte, onde eles não obtiveram maio-
ria, numa clara demonstração de que iria vigorar a norma do
partido único. Em pouco tempo, os Sóviets (conselhos populares
de base) deixaram de ser organismos de massa, com representa-
ção de várias tendências, e se tornaram uma mera correia de
transmissão do partido bolchevista.
O outro lado do modelo soviético que consolida o mito da Revo-
lução foi a rápida industrialização, como símbolo do caminho para
o socialismo. O primeiro Plano Quinquenal – 1927/1932 lançou as
bases de uma indústria pesada, que conseguiu um crescimento
vertiginoso, a curto prazo, não importando que ocorresse pela
expropriação quase absoluta do excedente camponês, com a mili-
tarização da produção industrial, com os sindicatos submetidos
completamente às diretrizes do Partido. Um crescimento industrial
que possibilitou o surgimento de uma potência militar, mas sem
nunca ter conseguido transportar a tecnologia do setor da indús-
tria de base para o setor de bens de consumo de massa.
A importância e a grandiosidade da Revolução Russa, que vai
do “arado à bomba atômica”, têm que ser deslindadas em capítu-
los e compêndios que não cabem em um artigo. Com o marco
emblemático de um século de sua eclosão, e depois de todas as
suas distorções serem conhecidas, o fenômeno da Revolução
Soviética ainda merece a atenção de estudiosos em todo o mundo.
De acordo com matéria do caderno “Aliás” do jornal Estado de S.
Paulo (edição de 19/03), apenas no Brasil mais de 50 títulos deve-
riam ser lançados até o final deste ano, com as mais diferentes

As duas vidas da Revolução Soviética 77


abordagens, desde ensaios ortodoxos clássicos como o Estado e a
Revolução, de Lenin, até a Teoria Geral do Direito e Marxismo, de
1924, ainda da fase romântica, antes de seu autor, o jurista Evegni
Pachukanis, ter sido forçado a negar a sua teoria e reconhecer
seus erros pela polícia stalinista, o que não impediu que fosse
preso e fuzilado a mando de Stalin, em 1937.

78 José Arlindo Soares


O plano menchevique
e a NEP de Lenin

Júlio Martins1

E
m julho de 1919, o Partido Operário Social Democrata Russo
(POSDR), chamado de menchevique, apresentou um plano
com o objetivo de tirar a Rússia de uma profunda crise
política, social e econômica. As dificuldades vinham da exaustão
provocada pela I Guerra Mundial. Em novembro de 1917, a crise
havia se agravado com a tomada de poder pelos bolcheviques. Em
minoria, eles haviam fechado a Assembleia Constituinte, eleita
no final daquele mês. Depois, colocaram na ilegalidade o Partido
Constitucional Democrático e levaram o país à guerra civil. Em
seguida, o Partido Socialista Revolucionário foi banido, acusado
de apoiar a contrarrevolução.
Em 1918, os bolcheviques – a ala radical do POSDR que, àquela
altura, funcionava como partido independente – haviam se conver-
tido no governante Partido Comunista. Os mencheviques do
POSDR, agora comandados por Julius Martov, líder da facção de
esquerda denominada internacionalistas, foram tolerados. Apesar
de crítico em relação à repressão bolchevique, o POSDR apoiou o
Exército Vermelho contra o Exército Branco, resolveu aceitar o
regime dos sovietes (conselhos de representantes de operários,
camponeses, soldados e marinheiros) e lutar para transformá-los
em órgãos de poder democrático e parlamentar.
Com a guerra civil, os bolcheviques implantaram o “comu-
nismo de guerra”, de estatização total da economia. Sob a lide-

1 Jornalista e ensaísta.

79
rança de Vladimir Lenin, o novo governo distribuiu terra, porém
obrigou os camponeses a venderem a produção a baixos preços
exclusivamente para o Estado. As medidas do “comunismo de
guerra” levaram à desorganização da economia, causaram protes-
tos da população e revolta dos camponeses, obrigados à entrega
dos produtos agrícolas nas requisições forçadas. Somada à seca
no rio Volga, a situação caótica levou ao desabastecimento das
cidades e estima-se que cerca de cinco milhões de pessoas morre-
ram de fome, em 1921.
Diante da crise, o POSDR havia proposto, ainda em julho de
1919, um plano econômico de emergência, alternativo ao “comu-
nismo de guerra”. Articulado por Martov e intitulado “Que fazer?”,
o plano foi elaborado por uma comissão de mencheviques, alguns
deles economistas, encabeçada por Vladimir Gustavovich Groman,
Fedor Andreevich Cherevanin e Lev Mikhailovich Khinchuk, 2 com
as seguintes propostas:

Medidas econômicas
1 – Os camponeses devem reter, de forma coletiva ou individual,
à medida que possam decidir livremente, as terras públicas e priva-
das que eles apreenderam e dividiram no momento da revolução.
Outras terras, ainda não distribuídas, devem ser arrendadas, a
longo prazo, a camponeses necessitados e associações campone-
sas, com exceção das terras em que a criação de modelos de cultivo
em larga escala está sendo, e pode continuar a ser, realizada pelo
Estado ou pelos arrendatários. Os decretos de abolição dos Comi-
tês dos Pobres devem ser efetivados, sem exceção.
As comunas agrícolas não devem ser estabelecidas pela força,
direta ou indiretamente. Os suprimentos, implementos agrícolas
e sementes governamentais devem ser distribuídos de forma equi-
tativa não apenas entre as comunas, mas também para todos os
camponeses que as necessitam em comunas e terras soviéticas.
2 – O presente sistema de abastecimento de alimentos deve ser
substituído por um com base no seguinte:
a – O Estado deve comprar grãos a preços acordados envol-
vendo uma grande aplicação do princípio de permuta; devem
então ser vendidos a preços baixos para os moradores mais pobres

2 Getzler, Israel. Martov – A Political Biography of a Russian Social Democrat.


Cambridge University Press/Melbourne University Press, 2003.

80 Júlio Martins
da cidade e do país, com o Estado compensando a diferença.
O Estado deve fazer compras por intermédio de seus agentes,
cooperativas ou comerciantes privados com base em comissão.
b – O Estado deve comprar, a um preço igual ao custo de
produção, uma certa proporção dos excedentes de grãos mantidos
pelos camponeses mais desfavorecidos nas províncias mais
férteis, sendo a proporção decidida com o conselho de represen-
tantes livremente eleitos do campesinato local.
c – O grão deve ser comprado por cooperativas e organizações de
trabalhadores, que devem, ao mesmo tempo, superar os estoques
que adquiriram aos órgãos governamentais ligados ao fornecimento
de alimentos. O Estado mantém o direito de requisitar os forneci-
mentos de grandes proprietários de terras que deliberadamente os
acumulam para fins especulativos. A logística de transporte está
sob o controle primário do Estado, de cooperativas e organizações de
trabalhadores. Todos os destacamentos antiespeculadores devem
ser dissolvidos. A transferência de produtos alimentares de uma
localidade específica não deve ser proibida, salvo em circunstâncias
excepcionais e por decisão da legislatura central.
O Estado deve assistir materialmente e por medidas adminis-
trativas a transferência de trabalhadores e suas famílias de luga-
res onde os alimentos são mais escassos e seu reassentamento
em áreas férteis.
3 – O Estado deve manter o controle das principais empresas
industriais que são fundamentais para a vida econômica, como
minas, planta metalúrgica, os principais ramos da indústria
metalúrgica etc. No entanto, em todos os lugares onde isso parece
melhorar ou animar a produção ou a extensão da sua variedade,
pode-se recorrer à organização de tais empresas por meio de uma
combinação de capital estatal e privado, pela formação obrigató-
ria de um truste sob controle do Estado ou, em casos excepcio-
nais, por meio de concessão.
Todas as outras grandes empresas industriais, exceto quando
o controle do Estado é desejável por razões fiscais ou outras e que
não seja prejudicial para a produção em geral, devem ser transfe-
ridas gradualmente para mãos privadas, arrendadas a uma
cooperativa ou a um novo empreendedor ou ao antigo proprietá-
rio, na condição de ele aceitar a obrigação de restaurar e organi-
zar a produção. O Estado deve regular a distribuição de combus-

O plano menchevique e a NEP de Lenin 81


tível e matérias-primas para diferentes ramos de produção,
empresas e áreas.
4 – A indústria em pequena escala não deve, em caso algum,
ser nacionalizada.
5 – O Estado deve regular a distribuição para diferentes áreas,
de acordo com um plano fixo, dos principais artigos de consumo em
massa, como têxteis, implementos agrícolas, sal, materiais de ilumi-
nação, etc, com a ajuda de cooperativas e comerciantes privados.
6 – No que diz respeito ao comércio de outros artigos de primeira
necessidade e também dos de luxo, o Estado deve abster-se de
impor restrições e deve permitir que as cooperativas e as empresas
privadas funcionem livremente, exceto nos casos em que a regula-
mentação ou mesmo o monopólio seja desejável devido à escassez
extrema do produto (por exemplo suprimentos médicos).
7 – O sistema de crédito deve ser reorganizado de forma a faci-
litar, em todos os aspectos, o uso no comércio e na indústria de
fundos disponíveis acumulados pelos produtores da cidade e do
país e dar margem para a iniciativa privada no comércio, indús-
tria e agricultura.
8 – A repressão da especulação e os abusos comerciais devem
ser deixados aos tribunais e regidos por disposições legais especí-
ficas. Todos os atos arbitrários de requisição, confisco e detenção
de bens devem ser punidos. A lei deve proteger os direitos de
propriedade no caso de todas as empresas industriais e comer-
ciais liberadas da nacionalização. No futuro, quando a expropria-
ção for exigida pelo interesse público, ela deve ocorrer com base
em uma decisão dos órgãos legislativos supremos e nas condições
determinadas por eles.
9 – Os sindicatos de trabalhadores, além de participarem dire-
tamente nas atividades dos órgãos reguladores, são também e prin-
cipalmente representantes dos interesses do proletariado em rela-
ção aos empreendedores estatais e privados. Nessa última função,
devem ser totalmente independentes de qualquer órgão estatal.
10 – As taxas salariais nas empresas estatais devem ser aumen-
tadas e as taxas mínimas fixadas para as empresas privadas, de
acordo com o nível de preços comercial dos bens necessários.
11 – O decreto sobre as comunas dos consumidores deve ser
revogado. As cooperativas de trabalhadores e as cooperativas em
geral devem ser preservadas como organizações autônomas, sem

82 Júlio Martins
a imposição de nomeados ou outra interferência em seus assun-
tos internos. Eles também devem ter o direito de exercer ativida-
des não comerciais, como publicação, educação etc.

Medidas políticas
1 – O direito de votar pelos membros dos sovietes deve ser
alargado a todos os trabalhadores de ambos os sexos. Os sovietes
da cidade e da aldeia devem ser eleitos por todos os trabalhado-
res, com uma cédula secreta e liberdade de prospecção de boca
em boca e pela imprensa. Os sovietes e os comitês executivos
devem ser sujeitos à reeleição em intervalos fixos. Os sovietes não
terão o direito de excluir membros ou grupos individuais de seu
meio por motivos políticos. Todos os funcionários e órgãos públi-
cos devem estar subordinados aos sovietes locais e aos Comités
Executivos Centrais.
2 – O Comitê Executivo Central dos Sovietes deve, mais uma
vez, funcionar como o supremo órgão legislativo e administrativo,
sendo seus procedimentos abertos à observação pública. A lei não
entrará em vigor sem ser discutida e aprovada pela CEC.
3 – A liberdade de imprensa, de assembleia e de associação
deve ser restaurada, e qualquer parte que represente os trabalha-
dores tenha o direito e a permissão para usar instalações para
reuniões, materiais de papelaria e impressoras etc. Qualquer
restrição deste direito que possa ser exigido pela guerra contra a
contrarrevolução deve ser estabelecida e claramente definida pela
legislatura; não deve violar a liberdade básica e deve ser aplicada
apenas pelos tribunais e instituições sob seu controle direto.
4 – Os Tribunais Revolucionários serão reorganizados de tal
forma que os juízes sejam eleitos por todos os trabalhadores.
Juntamente com suas comissões de investigação subordinadas,
eles serão os únicos responsáveis pelo
​​ combate à contrarrevolu-
ção. Todos os funcionários devem responder diretamente ​​ em
ações judiciais ante estes Tribunais por atos ilegais cometidos no
exercício de suas funções, no processo da parte lesada em cada
caso. O terror será eliminado como um instrumento de governo; a
pena de morte será abolida e, igualmente, todos os órgãos inves-
tigadores e punitivos independentes dos tribunais, como a Comis-
são Extraordinária (CHEKA).

O plano menchevique e a NEP de Lenin 83


5 – As instituições e as células partidárias devem ser priva-
das da autoridade estatal e os membros dos partidos de todos os
privilégios materiais.
6 – O aparelho burocrático deve ser simplificado pela extensão
do governo autônomo local.
7 – Uma política de entendimento deve ser perseguida em rela-
ção às nacionalidades que, por qualquer motivo, foram separadas
da Rússia, a fim de pôr um fim rápido à guerra civil e restaurar a
unidade do Estado com base na autodeterminação nacional. Os
distritos cossacos – Don, Kuban, Tersa, Os Urais, Astrakhan,
Orenburg etc. – devem ter a maior autonomia possível e não deve
haver interferência em seus assuntos internos ou sistema de
posse da terra. A Sibéria deveria ter autonomia regional e a inde-
pendência da Finlândia e da Polônia deveriam ser reconhecidas.

Comitê Central do Partido Operário Social Democrata Russo,


12 de julho de 19193
Os bolcheviques argumentavam que foram forçados à estati-
zação pela necessidade de defender a revolução durante a guerra
civil. Mas, posteriormente, Nikolai Bukharin admitiu que havia
uma ânsia para pôr fim à propriedade privada, uma ideia fixa dos
maximalistas, não só bolcheviques, como também anarquistas,
que, de início, apoiaram a revolução. Houve um evidente exagero:
mais de 2/3 dos empreendimentos industriais estatizados
possuíam menos de 15 operários.4 Numa economia predominan-
temente agrária, a questão camponesa precisava ser urgente-
mente resolvida: as requisições forçadas causaram revoltas no
campo; a falta de abastecimento das cidades levou a greves de
operários, base social dos bolcheviques. Porém, foi a Revolta de
Kronstadt, em 1921, de marinheiros no Báltico, até então um dos
fortes sustentáculos militares da revolução, que obrigou Lenin a
abandonar o “comunismo de guerra” e a adotar a Nova Política
Econômica (NEP).

3 ASCHER, Abraham. The Mensheviks in the Russian Revolution. Thames & Hudson,
London, 1976, p. 111-117. Citado em: https://spiritofcontradiction.eu/bron-
terre/2012/08/11/what-is-to-be -done-the-menshivik-programme-july-1919.
4 HEGEDÜS, András. “A construção do socialismo na Rússia, o papel dos sindi-
catos, a questão camponesa, a Nova Política Econômica”. In: História do Mar-
xismo. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 1986. v. VII.

84 Júlio Martins
A NEP foi, em essência, a parte econômica do programa menche-
vique de 1919, cujo conceito era de um capitalismo de Estado, como
via intermediária para o socialismo, há tempos defendido pela II
Internacional. A NEP sofreu forte oposição da esquerda bolchevi-
que, encabeçada por Leon Trotski e pelo economista Ievguêni Preo-
brajenski. Mas a NEP conseguiu tirar o país da crise e garantiu
sustentação política ao governo soviético, ao permitir que os campo-
neses negociassem metade de sua produção no livre mercado, e,
assim, diminuísse o descontentamento no campo.
Após a morte de Lenin, em 1924, Bukharin se tornou o princi-
pal defensor da NEP. Ele se opôs ao seu abandono por Josef Stalin,
em 1928, ao promover a industrialização acelerada e a coletiviza-
ção forçada das terras, levando o país a outra guerra civil. Bukha-
rin foi fuzilado em 1938 e reabilitado 50 anos depois, em 1988,
pelo último líder soviético, Mikhail Gorbachev. Aliás, a tentativa
de tirar a economia soviética da estagnação, na segunda metade
dos anos 1980, a chamada perestroika (reestruturação), teve
inspiração na NEP. Como também as reformas econômicas
empreendidas por Deng Xiaoping, as quais tornaram a China
uma potência mundial. Em 1978, a China ainda era um país
agrário, como a velha Rússia, e não por acaso as reformas come-
çaram na agricultura, setor em que trabalhavam 90% da popula-
ção. Deng Xiaoping acabou com a coletivização das terras e intro-
duziu a propriedade familiar, com apenas uma parte da produção
vendida obrigatoriamente ao Estado.5
Em 1921, os mencheviques foram favoráveis às reivindicações
dos marinheiros de Kronstadt, mas não apoiaram a revolta. Toda-
via, os bolcheviques nunca foram dados a sutilezas. Acusado de
antissovietismo, o POSDR foi então definitivamente banido da
vida pública, seus líderes foram presos e vários deles fuzilados na
década de 1930. Experiências de economias mistas, semelhantes
à proposta pelos mencheviques, foram colocadas em prática na
Suécia, nos anos 1930, e na Europa ocidental do pós-guerra.
Segundo o historiador britânico Tony Judt, a combinação dos
setores público e privado foi um dos fatores determinantes para o
êxito da reconstrução europeia no ocidente.6

5 ZEIDAN, Rodrigo. Paradoxos da China: lições das reformas microeconô-


micas. Folha de S. Paulo. 23/08/2017. Disponível em: http://temas.folha.uol.
com.br/paradoxos-da-china/analise/licoes-das-reformas-microeconomicas.
shtml#s01e05.
6 JUDT, Tony. Pós-Guerra: uma história da Europa desde 1945. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2008.

O plano menchevique e a NEP de Lenin 85


Eles eram justos e puros

Luiz Carlos Azedo1

F
altava tudo em Moscou e os mineiros de Donetsk, na Ucrânia,
estavam em greve, inclusive na legendária Mina Outubro,
onde surgiu o movimento stakhanovista. A vaia em Gorba-
chëv, na Praça Vermelha, em pleno desfile de Primeiro de Maio, fora
o sinal de que a Revolução de Outubro havia se esgotado.
Voltava eu de Moscou para Buenos Aires, lendo As Mil e Uma
Noites (Brasiliense), num longo e enfumaçado voo da Aeroflot, lotado
de pescadores, que bebiam desesperadamente e fumavam papi-
roskas, como caiporas. A frota soviética do Pacífico Sul era formada
por verdadeiras fábricas flutuantes de pescado enlatado.
“Você vai morrer!”, repetiu o rei. “Aliás, agora você morreria
nem se fosse apenas para eu ouvir sua cabeça falar depois de
separada do corpo”. Dubane, o médico suspeito de espionar, fora
condenado à morte, mas desafiou o rei a ler um livro que faria sua
cabeça falar após ter sido decapitada.
“O rei obedeceu, molhando os dedos com a própria saliva para
separar as páginas do livro... E o veneno foi penetrando em seu
corpo. Viram-no ensaiar um passo, vacilar e cair”. A cabeça de
Dubane, exangue num prato, então, compreendeu que a droga
havia produzido seus efeitos e recitou estes versos:

1 Jornalista. Colunista do Correio Braziliense.

87
Eles julgaram a seu modo
E se acumpliciaram nesse trabalho.
Dentro em pouco, seu poder parecerá que
nunca existiu.
Poderiam ter permanecidos justos e puros
mas abusaram do poder
e o mundo por seu turno os oprimiu
assim como a adversidade e a provação.
Ei-los vivendo na miséria. Seu presente
É tão somente o fruto do seu passado.
Quem pensará em censurar o mundo
Por os ter tratado assim.

A poesia foi um raio na minha cabeça, parecia que o avião ia


cair: Somos nós, os comunistas, pensei. Eu voltava atordoado
pelo que vira e ouvira em Moscou e Leningrado (hoje novamente
chamada pelo seu nome de batismo, São Petersburgo). Era o mês
de maio de 1990, Mikhail Gorbachëv ainda gozava de enorme
prestígio mundial, mas a União Soviética já estava se desman-
chando. A viagem fora um choque terrível, que eu ainda não
conseguia digerir. Sentia-me o próprio homem das cavernas da
fábula de Platão, quando estava cego pela luz e não sabia se
voltava para a escuridão, onde já não enxergava mais, ou perma-
neceria definitivamente à superfície.

A vaia na Praça Vermelha


Havia viajado para uma reunião de representantes dos
jornais comunistas de todo o mundo, em Moscou, no auge da
perestroika. A Voz da Unidade havia sido convidada, apesar de
ser um pequeno semanário, insignificante até, diante do L'Hu-
manité, do PCF, fundado por Jean Jaurès, o líder socialista fran-
cês assassinado ao tentar evitar a Primeira Guerra Mundial, ou
o l’Unità, fundado por Antônio Gramsci, do PCI, que morreu nas
masmorras do fascismo italiano de Mussolini. Modesto ainda
mais diante do poderio do Pravda, cujo novo diretor, Ivan Frolov,
era a estrela do encontro. Ele havia substituído Victor Afanasiev,
que comandou o jornal de 1976 a 1989, quando entrou em rota
de colisão com Gorbachëv.
Havia uma esquizofrenia no cerimonial do evento, que seguia
a hierarquia do partido para o tratamento dado aos convidados.
Como eu era membro da Comissão Executiva e do Secretariado do

88 Luiz Carlos Azedo


Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), deram-me
importância maior do que aquela que o jornalista realmente mere-
cia. Sabia disso porque, no ano anterior, havia feito a cobertura
da XIX Conferência Política do PCUS, na qual Gorbachëv derro-
tara seus adversários para poder avançar com a perestroika.
O tratamento era outro, o apartamento no qual me alojaram
era o mesmo no qual se hospedara Giocondo Dias, pela última
vez, segundo me disse a tradutora, Natália Kffeinia, que era dublê
de informante da KGB, como quase todos os tradutores do PCUS.
A lógica soviética era de que a hierarquia do partido se sobrepu-
nha à do Estado. Desse modo, nessa viagem, estava sendo tratado
como se fosse ministro no Brasil, onde o partido estava isolado e
fraco, mas tinha um candidato a presidente da República, o líder
do PCB na Câmara, Roberto Freire.
Minha primeira grande surpresa na viagem foi saber que
faltava tudo em Moscou e que os mineiros de Donetsk, na Ucrânia
(que hoje se declara uma república independente e quer ser
anexada à Rússia), estavam em greve, inclusive na legendária
Mina Outubro. Foi nela que surgiu o movimento stakhanovista,
símbolo da produtividade do trabalho na Era Stálin. Aliás, havia
greves por todas as regiões da União Soviética.
Anatole Petrovitch Evchenco, o membro do Comitê Central do
PCUS encarregado das relações com o Brasil, me contou que fora
obrigado por Gorbachëv a negociar o fim de uma paralisação de
mineiros nos Urais, onde fica a Rússia profunda. “Depois de
fechar o acordo, eles exigiram que distribuíssemos o estoque de
conhaque Napoleon que havia no armazém do partido para voltar
ao trabalho. Veja que absurdo, os dirigentes da mina tinham do
bom e do melhor e os mineiros passavam necessidades com suas
famílias”, disse-me. Anatole hoje é um dos donos de uma fábrica
de helicópteros, cujas ações “herdou” do pai.
O meu maior espanto aconteceu nas comemorações do
Primeiro de Maio, na Praça Vermelha, cujo desfile assistiria ao
lado de outros comunistas do mundo inteiro. Jamais imaginei
que Gorbachëv, que arrancara aplausos de populares em todos
os lugares onde esteve, inclusive no Brasil e nos Estados Unidos,
fosse receber uma bruta vaia na festa mais importante para os
trabalhadores de todo o mundo. No alto de um palanque ao lado
do mausoléu de Lenin, os líderes comunistas assistiam ao desfile
de pioneiros, estudantes e trabalhadores, quando surgiram os
protestos. Gorbachëv retirou-se do desfile sob apupos, após ver

Eles eram justos e puros 89


os manifestantes trazendo faixas nas quais se lia: "Abaixo
Gorbachëv! Abaixo o Socialismo e o Império Vermelho fascista".
O líder soviético não era um ator como Ronald Reagan, o
presidente dos Estados Unidos, mas era um governante caris-
mático, que irradiava simpatia e estava sempre sorridente. Não
parecia sinistro como Stálin, não era grosseiro como Kruschev,
ou senil como Brejnev. Muito menos temido, como Andropov ou,
simplesmente, apático como fora Chernenko. Assim eram seus
antecessores na secretaria-geral do PCUS. Encarnava o sonho
de democratização do “socialismo real” para a opinião pública
mundial e, creio, para a maioria dos comunistas. Simbolizava o
fim da guerra fria, pois o acordo do desarmamento nuclear lhe
valeu o Prêmio Nobel da Paz. Representava o sonho de renovação
do movimento comunista.
No dia seguinte ao desfile, numa reunião com diretores dos
jornais, os discursos dos funcionários do partido eram de duras
críticas à oposição, cujos líderes foram chamados de sujos,
vagabundos e provocadores. Mas a grande preocupação era
com a repercussão da vaia nas demais cidades soviéticas e o
destaque dado ao fato pela mídia mundial, relatara-me Oleg
Tsukanov, professor de Economia na Escola de Quadros do
PCUS, muito querido entre os brasileiros. Ele acabou por morrer
voltando ao Brasil, onde procurou trabalho depois que os comu-
nistas deixaram o poder (morava em Brasília e dava aulas na
Universidade Católica).
Ao longo da Rua Arbat, a rua de pedestre mais famosa da capi-
tal, não se falava de outra coisa, a não ser na vaia do Primeiro de
Maio, para espanto de outro camarada, Hudson Correia de
Lacerda, que era locutor da Rádio Central de Moscou e me levara
para ver a situação na cidade sem os filtros do aparatchik. Ele
falava russo sem sotaque e vivia como um autêntico moscovita.
A agitação era impressionante. Havia de tudo, de comícios relâm-
pagos a protestos individuais e silenciosos. Aquilo me lembrava o
centro do Rio de Janeiro entre a campanha das Diretas Já e a
eleição de Tancredo Neves, já nos estertores do regime militar.

A crise de desabastecimento
Numa conversa após o Primeiro de Maio, o economista Ygor
Gaidar, um dos editores de Economia do jornal Pravda, que
mais tarde viria ser o ministro da Fazenda de Boris Yeltsin,

90 Luiz Carlos Azedo


fez-me um balanço da situação. Ele criticava o que chamou de
grande equívoco de Gorbachëv na condução do país: entregar o
comando da economia aos engenheiros que dirigiam os gran-
des combinados industriais.
“Eles cortaram 10% das importações de bens de consumo e
compraram máquinas e equipamentos que vão ficar por aí enfer-
rujando”, disparou. Segundo ele, a reforma deveria começar pelas
privatizações de serviços e manufaturas, além da liberação da
pequena produção mercantil e do comércio em geral para os
empreendedores familiares, e pela abertura da economia para a
entrada das montadoras de automóveis e fábricas de eletroeletrô-
nicos das multinacionais, como a China acabou fazendo depois.
A “aceleração”, como Gorbachëv batizara inicialmente a sua
reforma econômica, estava sendo um fracasso. De imediato,
pensei na polêmica do Bukharin com Stálin. O líder russo,
assassinado nos processos de Moscou, defendia um modelo de
“acumulação socialista”, que se baseava na produção capitalista
no campo e no barateamento da produção da indústria ligeira
para formação da poupança necessária ao financiamento da
industrialização pesada.
Diante da necessidade de armar o país para enfrentar a guerra
iminente com a Alemanha, porém, Stálin deu um basta a isso,
com as "coletivizações forçadas" no campo, que expropriou a
pequena burguesia rural. O movimento stakhanovista era uma
espécie de trabalho compulsório, mascarado de emulação socia-
lista. Também rasgou a Constituição de 1935, que transformaria
a URSS num Estado de direito socialista. Bukharin foi proces-
sado e fuzilado como traidor, depois de obrigado a assinar a
própria confissão, em meio à onda de assassinatos do grande
expurgo promovido pelos chamados “Processos de Moscou”.
A ascensão de Stálin se deu sobre os cadáveres de milhares de
quadros bolcheviques. Começou após a morte de Sverdlov, vítima
de tifo, quando Lenin perdeu o principal organizador do partido
bolchevique, que foi substituído por uma comissão na qual Stálin
despontaria. Mas a liderança absoluta viria mesmo após a morte
de Lenin, com o assassinato de Kírov, o secretário do comitê de
Leningrado, que era o mais popular dos bolcheviques. O crime,
mais tarde atribuído ao próprio Stálin, deu início à onda de expur-
gos que consolidaria o poder do ditador soviético.

Eles eram justos e puros 91


Voltemos, porém, à crise do modelo soviético. No verão russo
de 1982, durante o Congresso do Konsomol, no Kremlin, Leonid
Brejnev quase caiu ao discursar. O velho líder soviético já estava
meio gagá, mas gozava de uma conjuntura econômica favorável:
havia abundância de frutas tropicais nas ruas de Moscou e as
lojas do GUM (Glavny Universalny Magazin), na Praça Vermelha,
estavam abarrotadas de produtos importados, dos perfumes fran-
ceses aos sapatos italianos. A URSS faturava com a elevação do
preço do petróleo e do gás.
Na crise do petróleo, que a liderança soviética erroneamente
interpretou como uma nova crise geral do capitalismo, Brejnev
havia lançado a consigna “Estado de todo o povo, rumo ao comu-
nismo”. Os americanos haviam sido derrotados no Vietnã e foram
corridos do Irã; os comunistas estavam no poder nas colônias
portuguesas. A América Latina fervia com a revolução sandinista
na Nicarágua e a ofensiva guerrilheira dos comunistas em El
Salvador. Até que a invasão do Líbano por Israel mostrou que o
outro lado ainda era capaz de arreganhar os dentes.
Vinte anos depois, porém, a conta do atraso havia chegado.
O velho problema detectado por Bukharin, e que fora atalhado
por Stálin, estava estrangulando a economia soviética: a produ-
ção do campo não era suficiente para alimentar o povo e a indús-
tria de bens de consumo padecia de baixa produtividade e péssima
qualidade. Enquanto isso, o mundo capitalista ingressara na
terceira revolução industrial, com o toyotismo, os sistemas de
produção flexíveis, os novos materiais e supercondutores, a
microeletrônica e a telemática. Os grandes combinados russos,
engessados pelos planos quinquenais, já tinham ficado para trás.
Nas ruas de Moscou, as “bichas” (filas) se formavam do nada.
O sujeito chegava com uma sacola e entrava na fila, esperava
alguém mais chegar e pedia para guardar o seu lugar. Só então
verificava o que estava sendo vendido. Se achasse que era algo
que iria faltar, comprava o que os rubros permitissem e ele conse-
guisse carregar, para estocar ou fazer câmbio negro. O povo apro-
veitava para falar mal do Gorbachëv e dos comunistas. O abaste-
cimento se tornara completamente caótico.

92 Luiz Carlos Azedo


O despejo do Smolni
No dia seguinte, me despacharam para Leningrado. Fui rece-
bido por um membro da direção do partido no berço da Revolu-
ção de 1917 que, neste 7 de novembro de 2014, completaria 97
anos. Com muita gentileza, mas meio sem jeito, disse-me que o
secretário-geral do partido não poderia me receber: “Você não
sabe da maior, acabamos de ser despejados do Smolni; está a
maior confusão por aqui”.
O Instituto Smolni, antigo convento da aristocracia russa, foi
a primeira sede do governo soviético, o local onde se realizou o II
Congresso dos Sovietes. Nele, os comunistas tomaram o poder e
Lenin anunciou as primeiras medidas da revolução: proposta de
paz imediata a todas as nações beligerantes; entrega da terra aos
camponeses; controle operário de toda a produção e distribuição
de bens e o controle estatal das instituições bancárias. Em
seguida, outras medidas de larga repercussão foram sendo toma-
das, tais como a abolição de todas as desigualdades de classe,
sexo, nacionalidade ou credo religioso, nacionalização dos bancos
e das estradas de ferro, entre outras. Foram dez dias que abala-
ram o mundo, como disse John Reed em seu livro famoso.
Com a transferência da sede do governo para Moscou, os
bolcheviques se instalaram no local e nunca mais saíram. Ocorre
que Gorbachëv havia aprovado um decreto apartando os bens do
partido dos bens do Estado e o prefeito de Leningrado, Gavril
Popov, aliado de Yeltsin, rompeu com o PCUS e mandou a milícia
pôr os dirigentes e funcionários do partido na rua. Não havia
nada que legitimasse a posse do imóvel, nem mesmo uma conta
de luz ou água paga pelos comunistas desde a tomada do prédio,
manu militari, pelos soldados e marinheiros que garantiram o
poder dos comunistas em 1917.
Diante do constrangimento, minha viagem a Leningrado virou
um grande passeio turístico. Fundada por Pedro, o Grande, às
margens do rio Neva, São Petersburgo é a primeira grande cidade
planejada do mundo e a quarta da Europa em população, atrás
apenas de Londres, Paris e Moscou. Fui ao Hermitage, à Catedral
de Pedro e Paulo, conheci o legendário cruzador Aurora e me
encantei com o balé Kírov. Caminhei pela famosa Avenida Nevski
até a famosa Estação Finlândia, pensando em Maiakovski, na
Flauta Vertebrada:

Eles eram justos e puros 93


Eu medito.
Os pensamentos, coágulos de sangue,
enfermos, ardendo,
porejam de meu crânio.
Eu,
criador de tudo que é festa,
não tenho com quem ir à festa.
Agora mesmo irei atirar-me
de cabeça
no empedrado da avenida Nevski.

A desintegração da URSS
De volta a Moscou, tinha um encontro marcado com o brasi-
lianista russo A. Karavaiev, autor do livro Brasil, passado e
presente do capitalismo periférico, que havia me chamado a aten-
ção porque defendia uma tese heterodoxa diante dos cânones da
III Internacional: a de que o nosso país poderia se tornar desen-
volvido por uma via não socialista. No dogma comunista, nenhum
país dependente teria chance de chegar lá por outra via que não
fosse a tomada do poder numa revolução nacional-libertadora,
seguida da construção do socialismo.
“Não vou conversar com você sobre o Brasil, que é um grande
país e hoje tem menos problemas que o nosso”, disse-me Kara-
vaiev. Tenso, o que ele queria falar era outra coisa: “a União Sovié-
tica está à beira da dissolução”. Fiquei perplexo: “Como assim,
vocês não resolveram a questão das nacionalidades?” A resposta
dele foi nua e crua. “Com o regime de partido único, a União
Soviética não sobreviverá. Os comunistas das repúblicas serão os
primeiros a declarar independência para permanecer no poder”,
disparou. Não deu outra.
No dia 8 de dezembro de 1991, Yeltsin, sem consultar Gorba-
chëv, comunicaria ao presidente Bush, o pai, que acabara de
extinguir a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Para Eric Hobsbawn, a queda da URSS e do socialismo no Leste
Europeu selou o fim do próprio século 20. Ninguém esperava isso,
mas também não foi um passe de mágica e sim o esgotamento de
um modelo de sociedade. O colapso político se deu quando os
militares sequestraram Gorbachëv e tentaram um golpe de
Estado, entre 19 e 21 de agosto daquele ano. Era outra pedra
cantada, na qual não quis acreditar.

94 Luiz Carlos Azedo


A conspiração dos militares
O primeiro cara a me falar do golpe foi o jornalista brasileiro
José Arbex, então correspondente da Folha de S. Paulo, em
Moscou. Eu o havia convidado para almoçar no novo hotel do
partido, que o povo chamava de Spaciba Bolshoi, considerado
então o mais luxuoso de Moscou e destinado aos dirigentes do
PCUS e não aos empresários e turistas que chegam à capital
soviética. Era um hotel cinco estrelas como outro qualquer, mas
comparado ao Hotel Moscou, da época de Stálin, ou ao velho
Spaciba, nos fundos do Teatro Bolshoi, o hotel do partido desde
a década de 1920, aquilo era um escândalo. Tanto que o secretá-
rio-geral Yuri Andropov, que foi o grande padrinho de Gorbachëv,
recusou-se a inaugurá-lo.
Arbex entrou no hotel observando tudo, pois nunca antes
havia posto os pés por lá. Mas conhecia a fama do lugar e fez uma
gozação ao ver o buffet farto do hotel, enquanto tudo faltava para
o povo lá fora. “Quanta mordomia, camarada Azedo!”. Foi uma
longa e divertida conversa. Não acreditei no que ele me falou sobre
os militares: “Azedo, você prestou atenção no pronunciamento do
ministro da Defesa, no Dia da Vitória?”. O desfile do Exército
Vermelho, no dia 9 de maio, é o ponto alto das comemorações da
Grande Guerra Patriótica, como os russos chamam ainda hoje a
II Guerra Mundial. Eu prestara atenção, fora um discurso duro
contra a oposição, o imperialismo e em defesa do socialismo, mas
dentro da velha retórica soviética. Não interpretei aquilo como a
senha para um golpe de Estado.
“Você está com teorias conspiratórias, esses generais são
heróis de guerra e velhos bolcheviques, vão fazer o que o partido
decidir”, disse-lhe. Arbex riu e rebateu: “Este é o problema, o
partido está contra o Gorbachëv". É óbvio que eu não acreditei no
que ele estava falando. Tudo indicava que o golpe realmente estava
em marcha, mas eu me recusava a encarar a realidade.
Mais tarde, já no Brasil, durante um encontro de partidos de
esquerda com Fidel Castro em São Paulo, da qual participei ao
lado do então secretário-geral do PCB, Salomão Malina, o líder
cubano disse com todas as letras que estava contra Gorbachëv e
que tinha informações de que era crescente a resistência do
partido, inclusive dos militares, à perestroika – que ele também
considerava uma traição ao socialismo. O dirigente cubano sabia
do que estava falando.

Eles eram justos e puros 95


O equilíbrio estratégico-militar
A Revolução Russa de 1917 foi a maior tentativa já feita de supe-
ração do capitalismo, depois da brevíssima Comuna de Paris, de
1871, que inspirou Lenin. Na verdade, tomou o rumo dado pelos
bolcheviques em consequência da Primeira Guerra Mundial, que
interrompeu a primeira experiência de governo socialdemocrata do
mundo, na Alemanha. A II Internacional, que reunia, num só movi-
mento, os principais líderes operários e a intelectualidade marxista
do começo do século passado, implodiu.
A social-democracia alemã, ao aprovar os créditos de guerra,
“traiu” o restante do movimento socialista. O Partido Trabalhista
britânico, obviamente, engajou-se no esforço de guerra da Ingla-
terra. Na França, Jaurès, o grande líder socialista que lutava pela
manutenção da paz, fora assassinado. Lenin, então, opôs-se feroz-
mente à participação da Rússia na guerra, A velha consigna bolche-
vique lançada por ocasião da Guerra da Crimeia estava mais válida
do que nunca: “Pão, paz e terra!”.
Foi nessa esquina da História que o chamado “socialismo real”
se impôs como alternativa para a construção de uma nova socie-
dade, em contraposição à experiência fascista em diversos países,
cuja ascensão começou com a chegada de Mussolini ao poder na
Itália. Depois da derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial,
a expansão comunista veio no rastro dos tanques soviéticos. O
“socialismo real” no Leste Europeu funcionou como uma via de
industrialização tardia. Só não se contava com o sucesso do Plano
Marshall, que possibilitou a retomada da experiência socialdemo-
crata na Europa Ocidental, com seu Estado de Bem-estar Social, e
com a guerra fria, que submeteu a economia soviética a um esforço
permanente de guerra com a chamada “corrida armamentista”.
Na doutrina comunista, o equilíbrio estratégico militar entre a
URSS e os EUA era a chave do avanço revolucionário no resto do
mundo. Permitiria neutralizar o imperialismo ianque e avançar
nas lutas de libertação nacional, como aconteceu na China, em
Cuba e no Vietnã. Do ponto de vista do Ocidente, a visão não era
muito diferente, apenas tinha sinal trocado. No histórico encontro
de julho de 1945, em Potsdam, nos arredores de Berlim, Josef
Stálin, Harry Truman e Winston Churchill, respectivos líderes da
URSS, dos EUA e da Inglaterra, traçaram o destino do mundo –
especialmente a partilha da Alemanha, que havia se rendido em
maio, e o desfecho da guerra contra os japoneses, que ainda não
haviam se rendido.

96 Luiz Carlos Azedo


Truman comentou com Stálin que os EUA estavam de posse
de uma nova arma, com "inusitado poder destrutivo". Como bom
jogador, o líder soviético agradeceu a informação e desejou que os
americanos usassem o novo artefato com "sucesso contra o
Japão". Um mês depois, as primeiras bombas atômicas foram
lançadas em Hiroshima e Nagasaki.
A decisão de lançar as bombas sobre o Japão não teve como
objetivo apenas abreviar o desfecho da Segunda Guerra. Era o
começo de um novo tipo de tensão mundial: a Europa seria divi-
dida em duas zonas de influência: a Ocidental, capitalista, sob
atração dos EUA, e a Oriental, comunista, ajudada pela URSS.
A fronteira entre "as duas Europas" seria a própria Alemanha,
também dividida. O que realmente estava em jogo era a hegemo-
nia mundial. Os EUA adotaram uma estratégia de domínio indi-
reto; o intervencionismo militar da URSS, ao contrário do que
aparentava, porém, seria muito mais frágil.

A debacle do socialismo real


Os comunistas chegaram ao poder na Polônia, Hungria,
Bulgária, Romênia, Tchecoslováquia e Alemanha Oriental com o
apoio dos tanques soviéticos, diante de uma economia em franga-
lhos e elites locais que, na maioria dos casos, havia colaborado
com o nazismo. O preço a ser pago pela igualdade econômica era
a perda da liberdade política. Foi assim na Hungria, em 1956, e
na Tchecoslováquia, em 1968 – a famosa Primavera de Praga.
A antiga Iugoslávia e a China eram casos à parte.
Na Europa Ocidental, Berlim Ocidental era uma vitrine relu-
zente, uma ilha capitalista encravada na República Democrática
Alemã. Quando percebeu que a tal "vitrine" exercia uma enorme
atração sobre os berlinenses, que preferiam trabalhar no lado
ocidental da cidade, a administração do setor oriental viu-se obri-
gada a erguer, em 1961, o Muro de Berlim.
Como se sabe, entre a década de 1930 e o início da década de
1960, a consolidação da URSS como potência industrial foi feita
com base num "crescimento extensivo", com muita mão de obra
barata e abundância de recursos naturais. Na década de 1970, no
Ocidente, fábricas projetadas para produzir em série determina-
dos produtos passaram a ser substituídas por plantas industriais
automatizadas e muito mais flexíveis, capazes de se adaptar às
variações de demanda no mercado consumidor.

Eles eram justos e puros 97


A linha de montagem criada por Henry Ford já não dava
conta do recado. Mas fora a fonte de inspiração de Lenin para
conceber todo o arcabouço do chamado “socialismo real”, do
modelo de partido único, da estrutura do Estado soviético e dos
sindicatos como correias de transmissão do partido. O socia-
lismo tornara-se anacrônico.
Ao mesmo tempo, havia uma batalha ideológica entre o
chamado “americanismo” do Ocidente e a “proletarização” do
Leste Europeu. Essa batalha ganhou uma nova dimensão quando
o cardeal polonês Carol Wojtyla foi eleito papa. Como João Paulo
II, ele desempenharia um papel importante na desestabilização
dos regimes socialistas do Leste Europeu, a começar pela Polônia.
Um pouco da crise da URSS se deve também a isso, por causa da
independência da Estônia, Letônia e Lituânia, republicas de
maioria católica da URSS que haviam sido anexadas por Stálin.
Em agosto de 1980, no estaleiro Lenin, na cidade de Gdansk, o
eletricista Lech Walesa anunciou a criação do Solidariedade – o
primeiro sindicato independente de um país comunista. O dogma
de que a vanguarda da classe operária eram os comunistas veio
abaixo no Leste Europeu. O partido deixara de ser “a consciência
do proletariado”, se tornara uma espécie de nova classe dominante,
uma burocracia autoritária e corrompida, encastelada no poder.
Num dos intervalos do encontro promovido pelo Pravda, fui
procurado por um dos diretores da agência de notícias Tass, uma
das maiores do mundo. Ele era casado com a filha do ministro da
Pesca e queria um contato com um grande estaleiro do Brasil
para iniciar um grande negócio: criar uma joint-venture para
prestar serviços à frota de pesqueiros russa do Atlântico Sul, que
passariam a ser reabastecidos e sofreriam reparos em Niterói. Ou
seja, a plutocracia que enriqueceria com as privatizações de Yelt-
sin já estava em posição de combate.
O presidente americano na época, Ronald Reagan, e a primeira-
ministra britânica, Margareth Thatcher, diante da crise, perce-
beram a oportunidade de uma grande ofensiva neoliberal. O
comunismo já era um animal ferido de morte. Encararam como
missão resgatar a reputação do capitalismo no Ocidente e afas-
tar de vez o fantasma comunista que rondava o mundo desde o
Manifesto de Marx e Engels, de 1848. Gorbachëv, que chegou ao
poder em 1985, era uma resposta a essa ofensiva, mas já era
tarde demais. A reestruturação econômica (perestroika) e a
transparência política (glasnost) não teriam o mesmo sucesso

98 Luiz Carlos Azedo


que os acordos de desarmamento que o fizeram um notável líder
mundial, até hoje respeitado no Ocidente.
Gorbachëv surpreendia o mundo com discursos liberalizantes
e democráticos, mas a pressão interna no Leste Europeu crescia.
A explosão começou em 1989, ano do bicentenário da Revolução
Francesa. Em junho, depois que o líder soviético deu a entender
ao novo primeiro-ministro da Hungria que reconhecia que a
revolta de 1956 tinha começado em virtude da insatisfação do
povo, mais de 200 mil húngaros sentiram-se à vontade para ir à
cerimônia do "novo funeral" de Imre Nagy, que liderara a revolta e
fora executado por ordem de Kruschev. Três meses depois, com a
retirada da cerca de arame farpado ao longo da fronteira entre a
Hungria e a Áustria, milhares de alemães orientais cruzaram o
território húngaro para o Ocidente.
Na Polônia, o sindicato Solidariedade ganhou as eleições; em
Berlim Oriental, no dia 9 de novembro, ou seja há 25 anos atrás,
o mundo inteiro assistiu pela TV a derrubada do Muro de Berlim.
Na Bulgária, Todor Zhivkov, no poder desde 1954, anunciou seu
afastamento. Sete dias depois, na Tchecoslováquia, um governo
de coalizão liderado por Alexandre Dubcek, líder da Primavera de
Praga, em 1968, tomou o poder dos comunistas pelos braços do
povo. Na Romênia, o líder Nicolau Ceausescu foi destituído e
enforcado ao lado de sua mulher, depois de uma revolta popular
que terminou com o seu julgamento sumário.
Finalmente, Gorbachëv foi vítima de sequestro, numa tenta-
tiva de golpe militar. A resistência democrática foi liderada por
Boris Yeltsin – o mesmo homem que, no dia 8 de dezembro de
1991, decretaria o fim da URSS. No Natal daquele ano, o pai da
perestroika passou a Yeltsin os códigos necessários para disparar
um ataque nuclear. E assinou o decreto oficial do fim da URSS, no
dia 31 de dezembro de 1991.

A travessia do deserto
Numa das passagens de As Mil e Uma Noites, o vizir diz para
Sherazade o seguinte: “Aquele que não sabe adaptar-se às reali-
dades do mundo sucumbe infalivelmente aos perigos que não
soube evitar. Aquele que não prevê a consequência dos seus atos
não pode conservar os favores do século”.

Eles eram justos e puros 99


Aparentemente, esses foram os erros de Gorbachëv, mas isso
não passa de uma simplificação de tudo o que ocorreu. Velhos
camaradas culpam o líder soviético, mas há muitas interpreta-
ções sobre o que houve de fato. Entre os comunistas, como sempre,
as divergências são profundas.
Os trotskistas veem a restauração capitalista no Leste Europeu
como a confirmação das teses de Leon Trotsky, o líder bolchevique
assassinado por ordem de Stálin durante o exílio no México e que
acaba de ter sua memória resgatada pelo fabuloso romance O homem
que amava os cachorros, do escritor cubano Leonardo Padura.
Os maoístas, mais pragmáticos, corroboram a velha tese
chinesa de que Kruschev havia traído a revolução ao denunciar o
culto á personalidade e os crimes de Stálin. Sobre isso é muito
interessante o relato de Henry Kissinger no livro Sobre a China,
no qual mostra como a liderança do PCCh se aliou aos Estados
Unidos para derrotar a União Soviética, em plena guerra fria.
Os antigos eurocomunistas, críticos do modelo soviético,
aprofundaram suas análises e tentam encontrar um caminho
para um projeto transformador assentado na ampliação da
democracia, porém, cada vez mais distante do que poderia se
chamar de socialismo.
Os comunistas viraram uma espécie de alma penada, com um
enorme fardo histórico sobre os ombros. A perplexidade de Lúcio
Magri, da esquerda do PCI, diante da dissolução da URSS e do
próprio partido italiano, muito bem retratada na sua obra auto-
biográfica, intitulada O Alfaiate de Ulm, levou o líder do grupo Il
Manifesto à depressão e ao suicídio.
Aqui no Brasil, o colapso da União Soviética implodiu o PCB,
que já vinha de duas crises na década de 1980, uma provocada
pela saída de Luiz Carlos Prestes e outra pela dissidência do
grupo renovador de Armênio Guedes.
Como dirigente do partido, diante da situação que se colocava,
tinha minhas próprias opiniões, mas fui muito influenciado por
duas pessoas próximas: minha mãe, Aparecida Azedo, ex-campo-
nesa que virou pintora naïf, e Salomão Malina, o então secretá-
rio-geral do PCB, com quem trabalhava diretamente.
Ao chegar de Moscou, em conversa com a minha mãe, relatei-
lhe o que estava acontecendo e, para minha surpresa, a antiga
boia fria e operária têxtil, que havia sobrevivido ao Massacre de

100 Luiz Carlos Azedo


Tupã e passara por tantas agruras pessoais e políticas, disse-me
sem mais delongas: “meu filho, o partido está morrendo, não
consigo recrutar mais ninguém!” Era a tradução de que o poder
de atração do "socialismo real" deixara de existir com o colapso
do Leste Europeu.
Por causa dessa conversa, escrevi um artigo para o Jornal do
Brasil defendendo uma renovação radical no PCB, com o aban-
dono do símbolo da foice e do martelo e a mudança de sigla.
Malina soube do artigo quando passei o jornal para ele, num
comício de Roberto Freire, na Cinelândia, em plena campanha
presidencial de 1989. Ficou muito contrariado.
Eu era o coordenador do grupo encarregado de elaborar as
teses do 9º Congresso do PCB, da qual participavam os historia-
dores Alberto Aggio e José Antônio Segatto e os economistas
Eduardo Rocha e Raul Paixão. Durante oito anos, convivera com
Malina quase diariamente, na sede do partido em São Paulo, e
sabia que ele comungava do mesmo ponto de vista, mas precisava
convencer os demais dirigentes históricos do PCB de que era
preciso dar um passo audacioso nessa direção.
Atalhar a discussão, na sua avaliação, organizaria a resistên-
cia interna antes que a maioria no Comitê Central estivesse
consolidada. Ele tinha certa razão, mas a pressão para a mudança
precisaria ser feita de fora para dentro, porque a força de inércia
do dogmatismo era grande. A mudança não seria possível com
uma discussão intramuros.
Os trunfos da renovação, porém, eram a liderança de Roberto
Freire, que seria o sucessor natural de Malina depois do
congresso, e de seu candidato a vice, o médico sanitarista e cien-
tista Sérgio Arouca. Foi dramática a reunião do Comitê Central
do PCB que aprovou as teses do Congresso, intituladas “Novo
socialismo, novo partido".
Velho judeu comunista, herói da Força Expedicionária Brasi-
leira (FEB) na tomada de Montese, na Itália, Malina teve um papel
decisivo na direção partidária e no congresso. Ele era um dos que
mais estudava os novos marxistas, lia os anglo-saxões nos origi-
nais em inglês. Havia ficado dois anos preso, na década de 1950.
Nesse período, na cadeia, porém, só podia ler a Bíblia. Sua inter-
venção foi inspirada na saga dos hebreus: “As mudanças no capi-
talismo ainda estão em curso, não temos massa crítica para
produzir uma nova síntese teórica. Mas temos algumas bandeiras

Eles eram justos e puros 101


e uma cultura política a preservar, até que uma nova geração
encontre o caminho para a sociedade desejada”.
Citando Moisés, disse que nós estamos como os judeus “que,
por terem sido escravizados, não tinham cabeça para construir
uma sociedade livre” após aqueles 40 anos de travessia do deserto.
Será preciso que uma nova geração o faça.

102 Luiz Carlos Azedo


1917

Luiz Sérgio Henriques1

Papel democratizador dos velhos comunistas, no Ocidente,


deveria ser lembrado por todos
Os cem anos da revolução bolchevique provavelmente não nos
darão – ainda! – a trégua necessária para pôr em perspectiva
acontecimentos que estiveram no cerne da “segunda guerra euro-
peia dos 30 anos” e, mais do que isso, lançaram ondas de choque
por toda parte – não em último lugar, sobre o vasto mundo então
colonial. E talvez não seja para menos: o comunismo histórico,
assim como várias outras correntes do século passado, foi inten-
samente vivido como uma das tais religiões laicas em choque de
vida e morte, com sua vontade de assaltar os céus e torná-los
uma realidade imediatamente terrena.
Impossível recapitular, mesmo sumariamente, as vicissitudes do
“primeiro Estado operário”, surgido entre os escombros da guerra de
1914 e da guerra civil subsequente. Um Estado operário erguido,
ainda por cima e contraditoriamente, num país de ampla base rural
e costumes autocráticos profundamente enraizados. A dirigir isso
que hoje parece uma tarefa irrealizável estiveram o leninismo e,
depois, o stalinismo: modalidades militarizadas da política não
exatamente iguais, mas, ambas, com um déficit fatal de pensamento
democrático ou, caso se queira, com uma visão jacobina de demo-
cracia avessa às conquistas do liberalismo, o que daria uma fisiono-
mia despótica à construção do socialismo soviético.

1 Tradutor e ensaista, um dos organizadores das Obras de Gramsci no Brasil.

103
Em vez da recapitulação impossível, mais vale nos determos
no “pecado oriental” daquele Estado e dos outros que, depois da
2ª Guerra, a ele se somaram por força de ocupação e constituíram
o “campo socialista”, com as instituições politicamente iliberais
que nasceram no começo acidentado e aventuroso do bolchevismo
no poder. Um patriarca da esquerda italiana, Pietro Ingrao, iden-
tificou como “vício de origem” da ideologia comunista o repúdio à
democracia e a escolha da violência revolucionária como método
privilegiado de ação. Um método que por definição exclui, divide e
mata, como se viu na coletivização forçada dos anos 1930 – de
fato, uma guerra civil disfarçada que teve como alvo o vasto
mundo dos camponeses, produzindo a fome, a carestia e o gulag.
O repúdio à democracia prolongar-se-ia pelas décadas afora e
se materializaria numa rígida estrutura estatal ocupada pelo
partido único, incapaz de se renovar, mesmo quando as condições
iniciais de cerco se desvaneceram ou se atenuaram razoavel-
mente, como foi o caso do quadro que se abriu com a vitória sobre
o nazismo e o fascismo – uma contribuição extraordinária da
antiga URSS, não por acaso ao lado das potências do capitalismo
democrático. Aqui, certamente por causa da natureza do mal
absoluto de que se revestia o nazismo, os comunistas de Stalin
assumiram-se corajosamente como a ala esquerda das democra-
cias, em defesa do patrimônio comum ameaçado.
Estruturas enrijecidas, no entanto, têm dificuldades hegemôni-
cas intrínsecas. Não importavam muito o desfile dos tanques na
Praça Vermelha, a ruptura do monopólio americano da bomba ou a
paisagem azul vista por Gagarin do espaço. Quem não tem capaci-
dade de direção pode se esconder sob o disfarce de atitudes agressi-
vas, mas no fundo não agrega nem atrai. O anticapitalismo, enten-
dido como contínua reproposição de confronto com o outro campo,
sobrepunha-se nos fatos ao antifascismo: o primeiro é uma espécie
de chamado das selvas, um convite a cerrar fileiras e a falar grosso;
o segundo, ao adotar valores “burgueses”, cedo ou tarde obriga a um
repensamento e a uma revisão dos métodos e da própria concepção
do mundo. Algo muito mais difícil e arriscado, naturalmente.
Não se sabe muito bem quando a URSS e o campo soviético
perderam a disputa com o Ocidente, fosse ela direta e confli-
tuosa, fosse redefinida nos termos da competição econômica e
da “coexistência pacífica”. Talvez mais cedo do que normalmente
se pensa, o século 20 transformou-se no “século americano” por
excelência. O americanismo, tal como percebido no cárcere por

104 Luiz Sérgio Henriques


um marxista singular, não era só um método de produção revo-
lucionário ou uma nova concepção de fábrica, implantada pelo
fordismo, mas uma matriz de comportamentos individuais e um
projeto de sociedade mais racional. No entanto, para a maior
parte dos marxistas, a falsa percepção de catástrofe iminente
impediu a compreensão do modo como o capitalismo se autorre-
formava e seguia adiante com êxito, especialmente quando o
idioma liberal era falado com sotaque universalista. Sirvam
como exemplo algumas experiências já dos anos 1930, como o
New Deal rooseveltiano, e as do segundo pós-guerra, quando as
socialdemocracias, secundadas em alguns casos por poderosos
partidos comunistas, capitanearam as modificações que desa-
guaram na “era de ouro” do capitalismo reformado.
Difícil fazer um balanço equilibrado da trajetória comunista.
No poder, o modelo bolchevique produziu estruturas autoritárias
ou, reconheça-se, totalitárias, que afinal se mostraram frágeis e
ruíram. Fora do poder, deve-se admitir que aquela trajetória teve
luzes às vezes intensas. O próprio Ingrao, cuja capacidade auto-
crítica destacamos, constatou a ação positiva dos comunistas na
organização de uma classe – a dos trabalhadores, mas não só – e
na sua integração à sociedade inclusiva, ampliando regras e valo-
res da democracia – rigorosamente, um bem coletivo.
Eric Hobsbawm convidou-nos a uma visão livre de uma das
muitas ironias que a História, essa dama caprichosa, acabou por
nos reservar: o fato de a revolução russa, que parecia encarnar o
mais temido dos fantasmas, na verdade ter salvado duplamente a
civilização “adversária”. Na guerra, aniquilando Hitler; na paz,
estimulando, até pelo medo de algum novo evento revolucionário,
sua reforma e sua capacidade de se expandir além da feição origi-
nal. Descartado cabalmente o método da violência, o papel demo-
cratizador dos velhos comunistas, no Ocidente, deveria ser
lembrado por todos nesta hora difícil.

1917 105
1917-2017 – Cem anos
que abalaram o mundo

Marly de A. G. Vianna1

A
Revolução Russa foi a primeira revolução proletária do
mundo. Foi o primeiro acontecimento mundial a mostrar que
o capitalismo não é o fim da história, que é possível cons-
truir uma sociedade sem que um grupo humano explore outro,
uma sociedade solidária para além de suas fronteiras nacionais.
Esta era uma utopia que a Revolução Russa concretizou e por
ter sido tão radical em sua transformação da sociedade, é natural
que polarize opiniões: de um lado, como disse Marx, os que nada
tinham a perder e todo um mundo a ganhar; de outro, aqueles
que defendiam sua sobrevivência enquanto classe dominante.
Inevitável polarização, de ideias e de atitudes.
Para aqueles que se colocam na firme defesa da Revolução de
Outubro cabe entendê-la, tanto nos seus acertos, que foram imen-
sos, quanto nos seus erros e descaminhos, que foram também
muitos e que levaram a que se encerrassem ingloriamente os 70
anos do Estado soviético.
Muito já se escreveu sobre a Revolução Russa, tanto no sentido
de procurar entendê-la e explicá-la quanto no sentido de denegri
-la. Há algum tempo tentava-se apagar os acontecimentos de
1917, dando-os como coisa passada e ultrapassada, jurássica. Já
nesses cem anos da Revolução a tentativa é de desqualificar os

1 Professora aposentada da UFCCar, atualmente leciona no PPG Mestrado e Dou-


torado, da Universo.

107
acontecimentos de outubro de 1917: um golpe, uma aventura, que,
como no pecado original, guardava em si os embriões do stali-
nismo. Mas, “quaisquer que sejam as palavras para expressá-lo,
o comunismo é irredutível às suas falsificações burocráticas”.2
Sobre a atualidade das questões que se colocaram há cem
anos para os bolcheviques destaco as discussões sobre o caráter
da revolução – reforçar um governo liberal burguês (um avanço
diante do tzarismo) ou avançar para o socialismo? Uma revolu-
ção por etapas ou uma revolução permanente? Nacional “demo-
crática” (democrática ainda mantendo o capitalismo...) ou socia-
lista? Para avançar na resposta a estas questões é preciso
avaliar: qual a força ou quais as forças fundamentais da revolu-
ção? Qual o instrumento para organizá-las? Qual a política de
alianças a ser procurada?
Tais questões foram sendo respondidas por Lenin – Vladimir
Ilitch Ulianov (1870-1924), no decorrer dos acontecimentos revo-
lucionários, levando em conta a situação concreta em que os fatos
se desenrolaram. Para entender a revolução é preciso considerar
seus antecedentes. Vejamos.

Os Romanov
A dinastia dos Romanov durava há três séculos, fundada que
fora em 1613. Deles, interessa-nos aqui o último tzar, Nicolau II,
Nicolau Alecssandrovitch Romanov (1868-1918) e sua maneira de
encarar o poder e administrar o império. Papel importante nos
acontecimentos do final da dinastia teve a tzarina, Alecssandra,
neta da rainha Vitória (1819-1901). Seu nome de batismo era Alicy
Victória de Hesse e ao adotar a religião ortodoxa para casar-se
com o tzar recebeu, como era de praxe, o nome de Alecssandra
Feodoróvna (1872-1918). Consta que um dia a rainha Vitória lhe
disse que governar era difícil e seria preciso cultivar e fortalecer o
amor dos súditos, ao que Alecssandra teria respondido:
A senhora está equivocada, querida avó. A Rússia não é a Ingla-
terra. Aqui não precisamos ganhar o amor do povo. O povo
russo reverencia seus tzares como se fossem divinos. [...] No
que diz respeito à sociedade de Petersburgo isso se pode esque-
cer totalmente.3

2 BEMSAÏD, Daniel. Os irredutíveis: teoremas da resistência para o tempo pre-


sente. Trad. de Wanda Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 71.
3 MONTEFIORI, Simon Sebag. Os Románov – 1613-1918. Trad. de Claudio Carina,

108 Marly de A. G. Vianna


A Rússia era governada a ferro e fogo. A situação da classe
operária era de miséria e nenhum direito. Além do mais, a reli-
giosidade retrógrada dos tzares propiciou a influência do místico
charlatão Grigori Rasputin (1869-1916), que chegou a demitir e a
nomear ministros. Havia também uma política de russificação e
um antissemitismo brutal, que por qualquer motivo promovia
progroons. Na Páscoa de 1903, por exemplo, houve um deles, na
capital da Bessarábia, Kichiniev e aprovando-o, disse Nicolau:
“Foram baionetas e não diplomatas que fizeram a Rússia, e os
problemas do Oriente Médio devem ser resolvidos a baionetas e
não com canetas”.4

A Revolução de 1905
O domingo sangrento – 9 de janeiro de 1905 – ocorreu quando
centenas de trabalhadores endomingados dirigiam pacificamente
uma petição ao tzar e foram brutalmente reprimidos, o que provo-
cou o primeiro grande abalo à dinastia Romanov. Operários,
camponeses e trabalhadores pobres se rebelaram e durante mais
de um ano, por toda a Rússia, protestaram de armas nas mãos
contra o tzarismo. Apesar da derrota e da brutal repressão que se
seguiu, foi um grande aprendizado político para o povo. Da revolta
surgiu a inovadora forma de organização política que foram os
sovietes, forma de organização e de governo adotada mais tarde
pela revolução de 1917.
Apesar de resistir a mudanças, Nicolau acabou por assinar,
em agosto de 1905, a concessão de direitos políticos a todos e
um parlamento, a Duma [parlamento russo], que seria eleita por
sufrágio quase universal. As concessões duraram pouco e a
repressão foi violenta. Com a aprovação do imperador, os rebel-
des foram dizimados. O tzar aconselhava a um subordinado em
Kiev: “Faça com que os revoltosos sejam aniquilados e suas
casas incendiadas”. Houve mais de 15 mil mortos e 45 mil depor-
tados.5 Progroons mataram mais de 80 judeus, em Odessa, e
três mil, de Vilna a Kicheniev. Criou-se a União do Povo Russo,
que tinha como divisa “Tzar, fé e pátria”, uma ala direitista das
milícias Centúrias Negras, nacionalistas brutais que perse-

Denise Bottmann, Donaldson M.Garschagen, Renata Guerra e Rogério W.


Galindo. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 627.
4 Idem, p. 637.
5 Idem, p. 659-660.

1917-2017 – Cem anos que abalaram o mundo 109


guiam os revolucionários e exterminavam judeus. Nicolau era
membro honorário delas.6
A Duma não durou muito. Era composta por grande número
de liberais constitucionalistas e o tzar opunha-se – e se opôs até
o fim – a uma Constituição. Uma segunda Duma reuniu-se em
fevereiro de 1907 e contava com 118 socialistas, depois que Lenin
e Martov (Yuri Osipovitch Tzerdebaum – 1873-1923) apoiaram a
participação nela. Nicolau e seu ministro Piotr Arkadievitch
Stolypin (1862-1911) exigiram a saída dos socialistas da Duma, e
não tendo sucesso nisso fecharam-na em junho e prenderam seus
membros considerados extremistas.
Uma terceira Duma, que durou até 1912, era composta por
nobres, empresários e tinha a maioria dos que foram chamados de
outubristas, que apoiavam uma autocracia semiconstitucional em
que todos os cargos de governo tinham que ser ocupados por russos.
Tentando situar as diversas forças políticas, pode-se dizer,
com base nos autores consultados, que à extrema direita estava a
União do Povo Russo; os outubristas formavam a centro-direita;
parte dos liberais que rejeitava o Manifesto de Outubro era
composta por uma burguesia radical que se constituiu nos kadets
– KD (democratas constitucionalistas), que se poderia considerar
como centro-esquerda. Antigos socialistas revolucionários forma-
ram os trudoviques (trabalhistas), entre eles Kerenski, uma
chamada esquerda, em que se colocavam também os menchevi-
ques; e, na extrema esquerda, estavam os socialistas revolucioná-
rios, os anarquistas e os socialdemocratas bolcheviques.
Ligados aos anarquistas estavam os populistas do Naródnaia
Vólia (Vontade do Povo), conhecidos como naródniki; outros popu-
listas militavam no grupo Terra e Liberdade e acabaram por se
ligar ou aos mencheviques ou aos bolcheviques. Os mais atuantes
eram os social-democratas (bolcheviques e mencheviques), os
anarquistas e os socialistas revolucionários.
Apesar da repressão que se seguiu à derrota da revolução de
1905, a atividade política na Rússia aumentara muito depois
desse ano. Os grupos antes citados – a esquerda, na maior parte
do tempo atuou na clandestinidade – pleiteavam reformas e se
posicionavam contra o absolutismo, aceitando uma monarquia
constitucional. A maioria deles participou de fevereiro de 1917 e

6 Idem.

110 Marly de A. G. Vianna


apoiou a República. Esta, evidentemente, era um grande avanço
em relação à autocracia tzarista, o que levou a que muitos dos
que se posicionavam à esquerda, inclusive boa parte dos bolche-
viques, considerassem ser mais correto consolidar a república
liberal burguesa. Foi a genialidade de Lenin que impediu o erro,
como veremos adiante.

A guerra
Com o início da Primeira Guerra Mundial, surgiu um bloco
progressista na Duma, que pretendia mudanças constitucionais.
O tzar continuava a rejeitá-las, pressionado pela tzarina que, por
sua vez, obedecia às ordens de Rasputin. Alecssandra escreveu ao
tzar: “Seja mais autocrático, meu querido, nunca se esqueça de
que você é e deve se manter imperador autocrático. Não estamos
preparados para um governo constitucional”.7
Quando Nicolau, no segundo semestre de 1916, resolveu assu-
mir pessoalmente o comando do Exército, Alecssandra passou a
responder pelo governo, sempre assessorada por Rasputin, o que
piorou muito a situação da dinastia. A tzarina era absolutamente
antipovo e o povo a odiava. Em dezembro de 1906, por exemplo,
declarara: “... a Rússia gosta de sentir o chicote – é a natureza
dela – amor com ternura e depois mão de ferro” – acreditava firme-
mente nisso e jamais incentivou qualquer concessão.
Os problemas causados pela guerra, em especial o recruta-
mento forçado, o despreparo das tropas mal equipadas e a péssima
administração foram minando o tzarismo. As sugestões de seus
vários ministros para a realização de algumas reformas liberali-
zantes foram sempre desconsideradas – Nicolau não aceitava
qualquer mudança.

A revolução de fevereiro
Com os revezes que o exército russo vinha sofrendo, em espe-
cial a partir de 1915-16, as deserções aumentaram muito. Contam-
se aos milhões as vítimas russas da guerra – cerca de dois milhões
de mortos, muito maior número de feridos e mutilados e outros
tantos feitos prisioneiros. A situação da população piorava a olhos
vistos e crescia a insatisfação. Não havia comida, a exploração da

7 Idem, p. 726.

1917-2017 – Cem anos que abalaram o mundo 111


força de trabalho aumentara muito – principalmente sobre as
mulheres, que substituíam nas fábricas e no campo a mão de
obra masculina que fora enviada à guerra. Eram elas as respon-
sáveis por alimentar a família e eram seus filhos, maridos, pais e
irmãos que estavam sendo massacrados nos campos de batalha.
A revolução de fevereiro não teve dirigentes conhecidos, nem
grandes nomes e nem partidos; foram as mulheres que deram
início ao processo revolucionário.
No dia 18 de fevereiro de 1917, entraram em greve os operários
da fábrica Putílov, em Petrogrado,8 na qual as mulheres eram a
maioria. A greve foi total e outras fábricas começaram a parar,
num grande movimento de solidariedade operária. No dia 23 de
fevereiro, justamente no Dia Internacional das Mulheres (a
Rússia usava o calendário Juliano, que tem 13 dias de diferença
para o atual e nosso, o calendário gregoriano), comícios e motins
de rua se avolumavam. No dia 27, o Palácio Tauride, sede da
Duma, foi invadido pela multidão, em grande parte composta
por mulheres. No dia 28, com a população já dominando a cidade
e com medo que a movimentação popular avançasse, o tzar abdi-
cou, deixando o trono a seu irmão, o grão-duque Miguel Alecs-
sandrovitch Romanov (1878-1918), que não aceitou o cargo. Foi
então proclamada a República e estabelecido um governo
provisório, tendo como primeiro ministro o príncipe Georgui
Ievguenievitch Lvov (1861-1925), constitucionalista, e como
ministro da Guerra o deputado socialista Alecssander Fiodoro-
vitch Kerenski (1881-1970).
No dia 3 de março, na estação de Mogliliov, um general comu-
nicou ao tzar que a dinastia terminara.
A revolução de fevereiro foi chamada também de “revolução
anônima”, pela sua espontaneidade e participação popular. As
reivindicações que levaram os operários às ruas eram as mais
simples: oito horas de trabalho, segurança no emprego, acabar
com inúmeras multas e frequentes humilhações que sofriam.
Formou-se um governo provisório e em oposição a ele organi-
zou-se outro poder, o Sóviet de Petrogrado, na realidade, uma
dualidade de poderes. O povo inteiro estava mobilizado politica-

8 A cidade foi fundada em 1703, por Pedro, o Grande, com o nome de São
Petersburgo. Em 1914, pela guerra contra a Alemanha, o nome, com origem
germânica, foi mudado para Petrogrado. Em 1924, depois da morte de Lenin,
passou a ser Leningrado. Com o fim do socialismo, voltou-se ao nome original de
São Petersburgo.

112 Marly de A. G. Vianna


mente e ia à ação: operários tomavam fábricas, camponeses
terras, soldados desertavam. Foi nesse ambiente de intensa luta
popular e revolucionária que se travou, até outubro, a luta polí-
tica que discutia principalmente se se deveria apoiar o governo
provisório ou avançar ao socialismo; dirigir a luta por uma “demo-
cracia” representativa, segundo uma Constituição liberal republi-
cana ou pela democracia direta dos sovietes.
Apesar da efervescência política, não havia um pensamento
homogêneo, nem mesmo entre os socialdemocratas. Quando Lenin
chegou à Rússia, em abril, quase todas as forças políticas propu-
nham a defesa da república liberal promulgada em fevereiro, consi-
derando que não havia forças suficientes para avançar rumo ao
socialismo. Os próprios bolcheviques, entre eles Lev Borissovitch
Kamenev (1883-1936) e Stalin (Josef Vissarionovitch Djugashvili –
1878-1953), defendiam, pelo jornal Pravda, que a guerra deveria
continuar, como defesa contra o imperialismo alemão.9
Ao chegar do exílio e apresentar suas Teses de Abril, Lenin
defendeu que as questões da paz, da terra e do pão, fundamentais
para o povo, não poderiam ser resolvidas pelo governo burguês,
que as tarefas democráticas da revolução só poderiam ser resolvi-
das pelo socialismo. Em sua chegada à estação Finlândia, ainda
na plataforma do vagão, Lenin discursou: “O povo necessita de
paz; o povo necessita de pão; o povo necessita de terra. E eles lhe
dão guerra, fome em vez de pão e deixam a terra aos latifundiá-
rios. Devemos lutar por uma revolução social, lutar até o fim, até
a vitória completa do proletariado”.10
Deste momento até a revolução de outubro, Lenin travou uma
luta, às vezes muito dura, contra aqueles – inclusive no comitê
central bolchevique – que consideravam a revolução socialista
uma aventura. Não era admissível, dizia Lenin, confiar no governo
provisório e apoiá-lo; era preciso preparar a insurreição, denun-
ciar alianças espúrias, transformar a guerra imperialista em
guerra civil. E aos poucos foi ganhando a maioria dos bolchevi-
ques para suas posições, tendo o apoio dos socialistas revolucio-
nários de esquerda e dos anarquistas.

9 BROUÉ, Pierre. O partido bolchevique. Tradução de Paula Maffei e Ricardo Alves.


São Paulo: Sundermann, 2014, p. 83.
10 Cf. FONTANA, Josep. El siglo de la revolución. Una historia del mundo desde
1914. Barcelona, Crítica, 2017, p. 85.

1917-2017 – Cem anos que abalaram o mundo 113


As conhecidas como “Teses de Abril” foram publicadas pelo
Pravda a 7 de abril, com o título “As tarefas do proletariado na
presente revolução”. “Não se pode terminar uma guerra numa paz
democrática sem vencer o capitalismo”, dizia Lenin.11
No comitê central bolchevique, Lenin não tinha a maioria.
Muitos achavam que conclamar à revolução socialista seria a
revolução permanente e se posicionavam contra as teses leninis-
tas. Foi preciso muita luta para convencer a maioria do comitê
central bolchevique. Kamenev, por exemplo, defendia que era
preciso apoiar e controlar atentamente o governo provisório, ao
que Lenin contra-argumentava: “Para controlar é preciso ter o
poder! Não existe controle quando os controlados são os que têm
os canhões!”.12 Aleksei Ivanovitch Rykov (1881-1938), outro diri-
gente bolchevique, dizia:
A julgar pela situação de conjunto e pelo nível pequeno-bur-
guês da Rússia, a iniciativa da revolução socialista não nos
pertence. Não contamos com forças suficientes nem com as
necessárias condições objetivas. Nos é colocado o problema da
revolução proletária, mas não devemos superestimar nossas
forças. Diante de nós se apresentam gigantescas tarefas revo-
lucionárias, mas sua realização não nos levará além do âmbito
do sistema democrático-burguês.13

As “Teses de Abril”
As “Teses de Abril” são o documento mais importante da Revo-
lução Russa, sua “certidão de nascimento”. Nelas estão concen-
tradas todas as diretivas fundamentais para o momento revolu-
cionário. Lenin defendia que nenhuma concessão deveria ser feita
ao defensismo revolucionário (tese 1); que o atual momento na
Rússia se caracterizava pela passagem da primeira etapa da revo-
lução, que deixou o poder nas mãos da burguesia, às mãos do
proletariado e dos camponeses pobres (tese 2); nenhum apoio
deveria ser dado ao governo provisório (tese 3); era preciso reco-
nhecer que os bolcheviques ainda eram minoria nos sovietes. Era
preciso explicar às massas, até convencê-las, que a única forma
possível de governo eram os sovietes (tese 4); não era possível

11 LENIN, Vladimir Ilitch. Obras Escogidas, v. 2. Moscou: Progresso, 1975, p.


35-38.
12 CF. BROUÉ, P., op. cit., p. 87.
13 Idem.

114 Marly de A. G. Vianna


apoiar uma república parlamentar depois das experiência dos
sovietes, pois isso seria um retrocesso (tese 5); dever-se-ia organi-
zar sovietes no campo e tomar as terras, efetuar o confisco e
nacionalização das terras (tese 6); promover a fusão imediata de
todos os bancos do país num banco nacional único (tese 7); a
implantação do socialismo não era a tarefa imediata dos bolche-
viques, mas sim passar ao imediato controle da produção e da
distribuição dos produtos (tese 8); como tarefas partidárias,
chamava à convocação imediata de um congresso para mudar o
programa mínimo do partido, já ultrapassado, discutir sobre o
imperialismo e a guerra, analisar o papel do Estado e afirmar a
reivindicação bolchevique do Estado-comuna (tese 9); finalmente,
constituir uma nova internacional (tese 10).14

Os acontecimentos de junho-outubro
De junho a outubro de 1917, a situação política foi se radicali-
zando. Em junho, como ministro da Guerra, Kerenski resolveu
desencadear uma ofensiva militar, que fracassou. Foi um momento
de grande agitação, pretexto para o governo atacar os bolchevi-
ques, proibindo seus jornais, fechando suas sedes e prendendo
vários de seus líderes. Lenin teve que se exilar na Finlândia.
A 23 de julho, Kerenski formou um novo governo, pretendendo
consolidar-se no poder e manter a guerra. A desvalorização do
rublo e as agitações operárias fizeram com que muitos industriais
fechassem suas fábricas, aumentando o desemprego e a fome,
situação que levou a que os operários começassem a apoiar o
controle operário proposto pelos bolcheviques. A cada dia ficava
mais claro que eram eles que tinham razão.
No campo, organizavam-se comitês e tomavam-se as terras,
fazendo com que também os camponeses se aliassem aos bolche-
viques, os únicos que consequentemente defendiam sua causa,
pela qual o governo provisório nada fizera.
Aproveitando-se da situação conturbada e apavorados com a
mobilização popular, industriais e generais de direita se uniram
para depor o governo provisório e controlar a situação. A 25 de
agosto, o general Lavr Gueorguievitch Kornilov (1870-1918) tentou
um golpe de Estado, mas os sovietes organizaram a defesa contra
o golpe e Kerenski foi obrigado a aceitar – a pedir – a ajuda dos

14 LENIN, v. I., op. cit., p. 35 a 38.

1917-2017 – Cem anos que abalaram o mundo 115


sovietes. Os marinheiros de Kronstadt seguiram para Petrogrado
e os conservadores recuaram. A situação, especialmente depois
da tentativa de golpe de Kornilov, radicalizou-se ao extremo e os
bolcheviques passaram a ter maioria nos sovietes: afinal, eram
eles que tinham razão. Intensificam-se as ocupações de terras e
cresciam as deserções no Exército.

Outubro
A 31 de agosto, o Sóviet de Petrogrado votou a resolução apre-
sentada pelos bolcheviques de que todo o poder fosse entregue aos
sovietes. Os conselhos de vários outros lugares e regiões apoiam
o de Petrogrado. A 23 de outubro, Trotski (Lev Davidovitch Brons-
tein – 1879-1940) foi eleito presidente do Sóviet de Petrogrado.
Estava ficando evidente que o II Congresso dos Sovietes de Solda-
dos, Operários e Marinheiros de toda a Rússia, marcado para 25
de outubro, exigiria o poder para si, acabando com qualquer
opinião favorável à conciliação com a burguesia do governo provi-
sório. Lenin estava convencido de que, tendo conseguido a maio-
ria nos sovietes das principais capitais, era a hora de convocar o
povo a tomar o poder.
Ivar Tenissovitch Smilgá (1892-1937), que era presidente
do Sóviet Regional do Exército e da Marinha e dos operários da
Finlândia, conspirava com Lenin contra a maioria do comitê
central que ainda não estava convencida que chegara a hora da
tomada do poder. Trotski e Stalin propuseram o boicote ao
pré-parlamento que deveria surgir da Conferência Democrática
convocada por Kerenski e venceram no comitê central, por nove
votos a oito.
Já os bolcheviques de Moscou exigiam a insurreição e, no dia
9 de outubro, Trotski conseguiu aprovar a formação de um comitê
militar revolucionário para organizar um estado maior da revolu-
ção.15 No dia 11, delegados bolcheviques que chegavam para o II
congresso foram convocados a Petrogrado, enquanto que os navios
da Marinha colocaram suas rádios a serviço dos bolcheviques.16
No dia 16 de outubro, reuniu-se o comitê central ampliado
que, por 19 votos contra dois e quatro abstenções, rechaçou
proposta de Grigori Yevseeievitch Zinoviev (1883-1936) de que se

15 BROUÉ, P. op. cit., p. 95.


16 Idem, p. 96.

116 Marly de A. G. Vianna


suspendessem os preparativos da revolução até que o congresso
dos sovietes fosse ouvido. Kamenev, que também era contrário à
insurreição, renunciou ao comitê central (o que não foi aceito) e
tanto ele quanto Zinoviev tornaram públicas suas opiniões.
A 22 de outubro, a tripulação bolchevique do cruzador Aurora
recebeu ordens para manter o navio atracado, o que contradizia
as ordens do governo de levantar âncoras. No dia seguinte, 23,
foram enviados delegados a todas as unidades militares, cujos
representantes divulgaram documento em que afirmavam não
reconhecer a autoridade do governo provisório.17 “Na verdade, os
defensores da insurreição representavam a energia e a coragem
indômita da revolução, enquanto seus adversários manifestavam
as dúvidas que a revolução tinha de si mesma”.18
No dia 24, véspera da insurreição, houve distribuição de armas
nos quartéis a todos os destacamentos operários e, à tarde, os
marinheiros de Kronstadt chegam a Petrogrado. Do Smolni, sede
do Sóviet de Petrogrado, partiram destacamentos para ocupar
pontos estratégicos da cidade. Apesar de suas posições, Kamenev
e Zinoviev participaram dos acontecimentos ativamente.
Na madrugada do dia 25 de outubro, foi tomado o Palácio de
Inverno e caiu o governo provisório sem qualquer reação ou derra-
mamento de sangue. O governo fugiu, deixando um batalhão de
mulheres a guardar o palácio.
O II Congresso dos Sovietes de Operários e Soldados e Mari-
nheiros de toda a Rússia realizou-se no mesmo dia, 25 de outubro
(7 de novembro). Quando chegaram as notícias da tomada do
Palácio de Inverno e de que as tropas enviadas por Kerenski para
combater os revolucionários se passaram para a insurreição, uma
minoria menchevique e a ala direita dos socialrevolucionários
abandonou a sala. Mas o Congresso, em sua imensa maioria,
apoiou a insurreição e votou seus primeiros decretos sobre paz,
pão e terra, e elegeu os comissários do povo: foram 15 bolchevi-
ques, quatro deles operários. Elegeu também um Comitê Execu-
tivo com 71 bolcheviques e 29 social revolucionários de esquerda,
em 15 horas seguidas de debate.19

17 Idem, p. 97.
18 DEUTSCHER, Isaac. Trotski, O profeta armado. Tradução de Waltensir Dutra.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 315- 316.
19 BROUÉ, P., op. cit., p. 98.

1917-2017 – Cem anos que abalaram o mundo 117


Os primeiro decretos
A aprovação dos decretos sobre a paz, a terra e a questão das
nacionalidades ampliou muito as bases da revolução, uma revolu-
ção amplamente democrática.
Com o desenvolvimento do processo revolucionário, as opiniões
sobre o caráter da revolução e sua continuidade eram motivo de
discussões e, às vezes, de luta acerbada. Por discordâncias, afas-
taram-se dos sovietes os mencheviques defensivistas, enquanto
que os internacionalistas colaboravam com os bolcheviques.
Em todo o país, ocorriam assembleias de operários, campone-
ses e soldados, discutia-se a insurreição. John Reed comentou o
violento debate no regimento motorizado de metralhadoras do
Exército, debate vencido pelo bolchevique Nicolay Vassilievitch
Krilenko (1885-1938):
Imagine-se essa luta em todos os quartéis da cidade, de todos
os distritos, em toda a frente, na Rússia inteira. Imagine-se, em
todos os quartéis, os Krilenkos caindo de cansaço, correndo de
um lugar para outro, discutindo, ameaçando, suplicando.
Imagine-se, finalmente, as mesmas cenas em todos os sindica-
tos, nas fábricas, nas aldeias, em todos os navios da esquadra
espalhados pelos mais longínquos mares. Imagine-se, em todo
o país, centenas de milhares de russos, operários, campone-
ses, soldados e marinheiros, com os olhos cravados nos orado-
res, esforçando-se intensamente para compreender e em
seguida resolver, pensando com todas as suas forças... para,
afinal, com a mesma unanimidade, tomarem idêntica decisão.
Eis o que foi a Revolução Russa.20

O decreto sobre a terra acabou com a propriedade privada no


campo e a terra passou a ser propriedade da nação e seus frutos
dos que nela trabalhassem.
Entretanto, os alemães avançavam e os líderes revolucionários
consideravam que, se não houvesse um levante na Alemanha, a
paz teria que ser aceita nas piores condições.
O argumento de que não havia democracia entre os bolchevi-
ques não se sustenta.
De fato, nenhum argumento é mais eficaz, na hora de
desmentir abertamente a lenda do partido bolchevique mono-

20 REED, John. 10 dias que abalaram o mundo. Trad. de Armando Gimenez. São
Paulo: Fulgor, 1963, p. 157.

118 Marly de A. G. Vianna


lítico e burocratizado do que o relato das lutas políticas, dos
conf litos ideológicos, das indisciplinas públicas que, defini-
tivamente, nunca foram punidas. São as massas revolucio-
nárias que sancionam as decisões que, por sua vez, sua
iniciativa tinha sugerido. 21

Dirigindo-se a operários e camponeses disse Lenin: “Lembrem-


se que na atualidade são vocês mesmos que dirigem o Estado:
ninguém os ajudará se não permanecerem unidos, impondo-se
em todos os assuntos do Estado”.22 E ainda:
Os sovietes locais podem, segundo as condições de lugar e
tempo, modificar, expandir e completar os princípios básicos
estabelecidos pelo governo. A iniciativa criadora das massas:
este é o fator fundamental da nova sociedade [...] O socialismo
não é o resultado de decretos vindos de cima. O automatismo
administrativo e burocrático é estranho a seu espírito, o socia-
lismo vivo, criador, é obra das próprias massas populares!23

Sobre a ocorrência da revolução socialista na Rússia e não em


um país industrialmente mais avançado, Vladímir Ilitch disse:
Não foi a nossa vontade, mas as circunstâncias históricas, a
herança do regime tzarista e a debilidade da burguesia russa
as causas de que nosso destacamento tenha se antecipado aos
outros destacamentos do proletariado industrial. Não quería-
mos, foram as circunstâncias que nos impuseram. Mas deve-
mos permanecer em nosso posto até que nosso aliado, o prole-
tariado internacional, nos acuda.24

E para Pier Broué:


Se, anos mais tarde, os sovietes acabaram reduzidos a uma mera
casca vazia perante o todo-poderoso aparato bolchevique, será
porque, fundamentalmente, na época em que os sovietes ainda
eram organismos vivos, o partido bolchevique foi o único a defen-
der seu poder, enquanto os mencheviques e os socialistas revolu-
cionários, leais oponentes ou colaboradores da republica
burguesa, se negaram a desempenhar seu papel na República
Soviética dos Conselhos de Operários, Camponeses e Soldados.25

21 BROUÉ, P., op. cit., p. 101.


22 Cf. Idem, 311.
23 Idem.
24 LENIN, V. I. Oeuvre, Paris: Éditions Sociales/Moscou: Édition du Progré. 1961,
p. 395.
25 BROUÉ, P., op. cit., p. 112.

1917-2017 – Cem anos que abalaram o mundo 119


Em janeiro de 1918, a Constituinte, que contava com apenas
25% de bolcheviques, não quis jurar a Declaração de Direitos do
Povo Trabalhador e foi fechada. Em março, o governo foi obrigado
pelas circunstâncias a assinar o Tratado de Brest-Litovski, 26 o
que foi um terrível golpe, felizmente anulado quando da revolução
na Alemanha no final do ano.

A guerra civil
Em maio de 1918, começou a guerra civil, com o levante da
Legião Tchecoeslovaca, 27 a que se juntaram voluntários russos
contrarrevolucionários. Vinham de oeste e ocuparam Cheliabinsk
e Omsk até alcançar o Volga Central. Os aliados iniciaram a
intervenção: tropas anglo-franceses desembarcam em Murmansk
e depois em Arkangel. Guerrilheiros ucranianos combatiam os
alemães na Ucrânia quando os aliados desembarcam cem mil
homens em Vladivostok. No sul, o general monarquista Anton
Ivanovitch Denikin (1872-1947) mobilizou um exército de voluntá-
rios e, em novembro, o almirante Alecssandre Vassilievitch
Kolchak (1874-1920) assumiu o comando contrarrevolucionário.
Tropas francesas desembarcaram em Odessa e ocuparam o sul
da Ucrânia e a Crimeia, e os ingleses o Cáucaso, Kuban e o leste
do Don. No início de 1919, os soviéticos estavam cercados.
Os aliados estavam divididos entre continuar ou não a ofen-
siva e acabaram por resolver pelo fornecimento de armas aos
russos contrarrevolucionários, abandonando o campo de bata-
lha. Em maio de 1919, Kolchak chegou aos Urais; Denikin tomou
o Sul; Nikolai Nikolaievch Yudenich (1862-1933) desceu da Estô-
nia e ameaçou Petrogrado, que sofria com epidemia de tifo e com
a fome. A 19 de outubro chegou a 15 km da cidade. Trotsky, em
seu trem blindado, conseguiu derrotá-lo e pouco depois o 5º Exér-
cito Vermelho expulsou Kolchak de Omsk, destruindo completa-
mente o exército branco, em janeiro de 1920. Kolchak foi preso e
fuzilado. No entanto, o barão Piotr Nicolaiev Wrangel (Peter Von
Wrangel – 1878-1928), tzarista, conseguiu reunir restos do exér-
cito de Denikin e atacou a Ucrânia, sendo derrotado em novembro
de 1920, o que pôs fim à guerra civil, durante a qual os bolchevi-
ques contaram com o apoio decisivo dos grupos anarquistas, em

26 Assinado a 3 de março de 1918 entre a Rússia Revolucionária, a Alemanha,


Áustria-Hungria, Bulgária e Turquia.
27 FONTANA, J., op. cit., p. 73.

120 Marly de A. G. Vianna


especial do líder revolucionário guerrilheiro Néstor Ivanovitch
Maknó (1889-1934), na Ucrânia.
Com a guerra civil, foi instalado o comunismo de guerra que
proibia qualquer empreendimento privado e estabelecia a expro-
priação do excedente no campo, para alimentar os exércitos, o
que colocou muitos camponeses contra os bolcheviques. Em
meados dos anos 20, os soviéticos conseguiram sair vitoriosos da
luta, mas o país estava arrasado.
Lenin contava com que depois da guerra civil os revolucioná-
rios pudessem começar a construção do socialismo, ainda mais
com as esperanças que depositava numa revolução mundial que
não aconteceu. Na Alemanha, depois da guerra, no final de 1918,
a revolução havia começado, o kaiser fugira, o tratado de Brest
-Litovski foi rasgado. Houve insurreição também na Baviera e
em Budapest, mas foram todas derrotadas e a Revolução Russa
ficou isolada.
Os fatos são conhecidos e foram mencionados para ajudar a
entender as questões levantadas. Que nos interessa hoje? O que
temos a aprender, analisando as diversas situações colocadas em
1917? A que revolução podemos aspirar? Quais as tarefas a
cumprir? Quais as forças fundamentais de revolução e qual a
melhor forma política para organizá-las? Qual a política de alian-
ças a ser buscada?
Todas essas questões foram resolvidas pela Revolução Socia-
lista de Outubro, questões essas já colocadas em fevereiro de
1917. O fundamental das discussões, naquela época, foi princi-
palmente: apoiar uma revolução liberal burguesa ou tentar
avançar rumo ao socialismo? Uma revolução por etapas, ou
permanente? A que levaria a república liberal burguesa? Onde
levaram as políticas nacionais patrióticas? Estas levaram não só
ao apoio à guerra, mas ao apoio aos patrões, em nome das neces-
sidades da guerra. Já os bolcheviques não só propuseram, mas
atenderam às reivindicações operárias, que eram também da
maior parte do povo.

A posição do capitalismo internacional


A Revolução Socialista de Outubro de 1917 levou os operários
ao poder e mostrou que o capitalismo não era o fim da história.
Os donos do capital não podiam ficar indiferentes, combatendo o

1917-2017 – Cem anos que abalaram o mundo 121


inimigo de todas as formas. O inimigo era “imenso, indefinido e
universal, nascido não da observação da realidade, mas dos
medos obsessivos dos políticos que faziam ver o comunismo atrás
de qualquer greve ou protesto coletivo”.28
Fontana cita a guerra fria para mostrar como a grande ques-
tão era combater as ideias anticapitalistas:
O objetivo não era defender a democracia, mas a livre empresa.
Mossadeq não foi derrubado no Irã porque colocava em perigo
a democracia, mas porque convinha às companhias de petró-
leo; Lumumba não foi assassinado por defender a liberdade dos
congoleses, mas as companhias que exploravam as minas de
urânio de Katanga, de onde havia saído o mineral com que se
elaborou a bomba de Hiroshima [...] não se foi ao Viet Nam
defender a democracia porque o que havia no Sul era uma dita-
dura militar.29

Concluindo
Não houve revolução no mundo. A guerra civil havia deixado o
país arruinado e o comunismo de guerra, com as requisições no
campo, deixava os camponeses revoltados. Nas cidades, o povo
estava faminto e eram muitas as reivindicações, o que acabou por
provocar o levante dos marinheiros de Kronstadt. A situação
interna era desesperadora e o inimigo externo aguardava qual-
quer oportunidade para intervir em ajuda aos brancos. Também
não foi possível sair da guerra sem perdas importantes.
Com a assinatura do tratado de Brest-Litovski, os social revolu-
cionários de esquerda se retiraram do governo, do qual os outros
social revolucionários e os mencheviques já tinham saído. “Nenhum
destes pensou que, diante do regime nascido de outubro, pudesse
se abrir um futuro de esperanças”.30 E não só isso, começaram a
atuar contra os bolcheviques. O próprio Lenin sofreu um atentado
por parte da revolucionária anarquista Fany Kaplan, que conside-
rou a assinatura do tratado uma traição à revolução.
A Nova Política Econômica, NEP, foi estabelecida depois da
morte de 5 milhões de pessoas, no inverno de 1921-22. Acabava-

28 FONTANA, Josep. A revolução Russa e nós. História e luta de classes. N. 23,


março/2017, p. 87.
29 Idem, p. 89.
30 BROUÉ, P., op. cit., p. 103.

122 Marly de A. G. Vianna


se com o comunismo de guerra e foi aberto espaço para a econo-
mia privada em alguns setores.
A Revolução de Outubro foi o fato político mais importante do
século 20. Não só levou ao poder a classe operária como mostrou
ao mundo que o capitalismo não era eterno, abrindo infinitas
esperanças para todos os que lutavam contra a exploração do
homem pelo homem e pela fraternidade entre os povos.
Foram grandes os percalços, as dificuldades e o período
chamado de stalinismo que, mantendo as bases econômicas da
revolução, castrou a participação do povo, num processo – expli-
cável, mas não justificável – de substituição do povo revolucioná-
rio por um punhado de dirigentes autocráticos e repressores. Os
ganhos, entretanto, para todo o mundo, graças à revolução, foram
imensos, o que de nenhuma maneira significa que necessaria-
mente teriam de ocorrer da forma que ocorreram.
A história não é uma linearidade previamente estabelecida.
Diante dos impasses com que se defrontou a revolução, vários
caminhos teriam sido possíveis, mas não cabe no âmbito desse
trabalho fazer tal análise, nem mesmo desenvolver porque deter-
minado caminho foi o trilhado.
Quero terminar salientando as vitórias, de significado mundial,
conquistadas pela URSS, além do que já foi dito. Em primeiro lugar,
ter mostrado que o capitalismo não era o fim da história. A vitória
contra o nazifascismo deveu-se principalmente à União Soviética,
que impingiu aos nazistas suas primeiras grandes derrotas: a
Batalha de Moscou (de setembro de 1941 a abril de 1942) e a de
Stalingrado (julho de 1942 a fevereiro de 1943), que custaram aos
soviéticos milhões de mortos. Mas venceram.
Foi o socialismo soviético que apoiou de muitas maneiras a
descolonização, que garantiu a não intervenção ianque em Cuba,
que foi um freio à expansão desmesurada do capital. E, principal-
mente, foi a imensa esperança para a humanidade.

Referências
AVRICH, Paul. La tragédie du Cronstadt, 1921. Paris: Ed. du Seuil,
1975.
BROUÉ, Pierre. O partido bolchevique. Trad. de Paula Maffei e
Ricardo Alves. São Paulo: Sundermann, 2014

1917-2017 – Cem anos que abalaram o mundo 123


CARR, E. H. A Revolução Russa de Lenin a Stalin (1917-1929). Trad.
Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
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FONTANA, Josep. El siglo de la revolución. Una historia del mundo
desde 1914. Barcelona: Crítica, 2017.
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HILL, Christopher. Lenin e a Revolução Russa, 2. ed., trad. Geir
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______. Obras Escogidas, v. 2. Moscou: Progresso, 1975.
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Obras Escogidas, v. 2. Moscou: Progresso, 1975.
MONTEFIORI, Simon Sebag. Os Románov – 1613-1918. Trad. de
Claudio Carina, Denise Bottmann, Donaldson M. Garschagen,
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Letras, 2016.
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Unesp, 2003.

124 Marly de A. G. Vianna


A Revolução Russa de 1917:
fevereiro ou outubro?

Paulo César Nascimento1

D
urante a visita do presidente norte-americano Richard
Nixon à China, em 1972, o primeiro-ministro chinês
Zhou en Lai, perguntado sobre o impacto da Revolução
Francesa, respondeu que era ainda muito cedo para avaliar. Se
isso é verdade sobre um evento ocorrido há mais de três séculos,
o que dizer de uma revolução como a russa, que completa este
ano “apenas” cem anos?
Ainda assim, a efeméride da revolução russa e da sociedade
que dela nasceu não pode esperar o amadurecimento da História;
sua importância exige uma avaliação, mesmo que parcial, daquele
evento que o historiador inglês Eric Hobsbawm elegeu como o
“início do século 20” e cujo colapso, em 1991, marcou, segundo
ele, o final do século passado.
Para todos aqueles que, de uma forma ou de outra, se inspira-
ram na Revolução de 1917 – partidos políticos, movimentos,
pensadores, ativistas etc. –, a reflexão sobre o legado daquele
evento é especialmente espinhosa. A inspiração que a revolução
gerou para a luta contra as desigualdades econômicas, sociais e
políticas do capitalismo, a esperança em uma sociedade socia-
lista, a vitória da União Soviética contra o nazismo, os notáveis
êxitos do país no campo das ciências e o apoio aos movimentos
contra o colonialismo são conquistas que foram, por sua vez,
contrabalançadas pelo evidente autoritarismo do regime comu-

1 Professor de Ciência Política da Universidade de Brasília-UnB.

125
nista: a sistemática violação dos direitos humanos – que durante
o período stalinista transformou-se em perseguições e massacres
generalizados –, o domínio asfixiante da burocracia, o controle
das manifestações artísticas e, por fim, o lento e agonizante declí-
nio econômico e político que culminou com o desmoronamento do
império soviético, em 1991.
Que herança devemos então acolher da experiência da Revo-
lução Russa, e o que dela devemos rechaçar? Sem a pretensão de
apresentar uma resposta conclusiva a estas questões, argu-
mento nestas breves linhas que a genuína Revolução Russa
ocorreu em fevereiro de 1917, e não em outubro. A tomada do
poder pelos bolcheviques, em larga medida, desvirtuou o curso
dos acontecimentos após a queda do czar em fevereiro, impe-
dindo a revolução de construir uma ordem democrática. Contudo,
para compreendermos os acontecimentos que levaram à Revolu-
ção Russa, é necessário abordar alguns aspectos da sociedade e
do Estado russos, que criaram as condições para a revolução e
a queda do regime czarista.

Modernização e política na Rússia czarista


É impossível não associar a instabilidade política da Rússia
czarista a partir do século 19, que se expressou em diversas
rebeliões, levantes, atentados terroristas e revoluções, com os
esforços de modernização do país conduzidos por vários czares.
O objetivo dessas estratégias de desenvolvimento acelerado do
país era projetar a Rússia como potência no cenário europeu.
Seu início se deu com as reformas de Pedro, o Grande, no século
18, que iniciou um processo de ocidentalização de uma Rússia
até então alienada dos costumes e da cultura dos países da
Europa Ocidental, culminando com a construção de São Peters-
burgo, a nova capital do império, que desempenharia para a
Rússia o papel de “janela para o Ocidente”.
A modernização da Rússia envolveu volumosos investimentos
estatais e estrangeiros na infraestrutura econômica do país,
industrialização acelerada, expansão da rede ferroviária e das
forças armadas, investimentos na área de produção de petróleo
etc. Por volta de 1900, a Rússia já tinha se tornado a quinta
potência industrial do mundo e a primeira em produção de
petróleo. Mesmo a agricultura, onde os esforços de moderniza-

126 Paulo César Nascimento


ção foram menos acentuados, continuava sendo importante
fonte de riqueza para o país.
Contudo, o desenvolvimento do país, a expansão de sua
infraestrutura econômica e os esforços para projetá-lo mundial-
mente nunca foram acompanhados de reformas significativas nas
instituições políticas nacionais. A Rússia czarista iria permane-
cer, até 1917, uma autocracia patrimonialista, sem liberdades
civis e políticas, e sem instituições representativas relevantes. Ela
não possuía nem mesmo um gabinete ministerial com prerrogati-
vas específicas, ou uma burocracia governamental formada com
base no conceito de meritocracia, realidade existente há muito
tempo no Ocidente. Os funcionários do governo prestavam jura-
mento ao czar, não ao Estado. Todo o poder, enfim, estava concen-
trado em torno da figura do imperador.
Para manter este poder, o czar contava com a burocracia
governamental, a polícia secreta, o exército, a decadente nobreza
russa e a Igreja Ortodoxa, esta última servindo de esteio ideoló-
gico para a legitimação do poder absoluto czarista, principal-
mente junto ao campesinato russo, que constituía a grande maio-
ria da população do país (cerca de 85%, no início do século 20).
Obedecendo a seus próprios costumes e tradições, fechado em si
mesmo, com forte ethos patriarcalista, o campesinato russo era a
classe social mais avessa a qualquer tipo de modernização.

A ausência de reformas e a instabilidade política


É certo que, ao longo do século 19 e início do século 20, as
autoridades governamentais russas tentaram realizar algumas
reformas. Geralmente, eram reformas tímidas, conduzidas a
contragosto pelos czares, e resultantes de fracassos militares da
Rússia em suas estratégias geopolíticas. Este foi o caso, por exem-
plo, da abolição da servidão em 1861, decretada pelo czar Alexan-
dre I, em seguida à derrota da Rússia pelas forças franco-britâni-
cas na guerra da Crimeia (1853-1856).
Da mesma forma, a derrota da Rússia na guerra contra o
Japão em 1904-1905 desencadeou uma crise que levou a uma
greve geral e à primeira Revolução Russa, em 1905, reprimida
com alguma dificuldade pelo exército e a polícia.
Nicolau II, o último czar da Rússia, foi convencido por membros
mais liberais de seu governo a realizar reformas que pudessem

A Revolução Russa de 1917: fevereiro ou outubro? 127


aplacar o descontentamento generalizado existente em todo o país.
Uma das medidas propostas foi uma Constituição moderna para a
Rússia, até então regida por leis tradicionais que garantiam o poder
absoluto dos czares. Tal proposta foi rechaçada pelo imperador.
Outra sugestão de reformistas próximos ao czar, como Sergei
Witte, foi a criação de um órgão legislativo eleito democratica-
mente que servisse como instituição representativa das classes e
grupos sociais da Rússia. Esse parlamento – a Duma – foi final-
mente constituído em 1906, mas com uma série de limites às suas
funções. Se Nicolau II teve de conceder e criar a Duma com certo
poder legislativo (sua ideia era constituir um órgão com funções
apenas consultivas), por outro lado ele garantiu que as classes
proprietárias tivessem maior peso no colegiado, além de impedir
que o parlamento escolhesse os ministros – que continuaram a
ser indicados pelo czar. Além disso, o imperador tinha o poder de
dissolver a Duma a seu critério, sempre quando os deputados
mostrassem excessiva independência, como foi feito com as duas
primeiras legislaturas.
Da mesma forma, tentativas de reforma agrária, como a
elaborada por Piotr Stolypin, importante membro do governo
czarista nos anos que se seguiram à revolução fracassada de
1905, não lograram êxito. Seu plano de formar uma grande
classe de pequenos proprietários rurais que pudesse aplacar a
instabilidade na Rússia rural nunca recebeu apoio do czar, da
nobreza ou da burocracia conservadora. Para qualquer área que
se olhasse na Rússia, seja a política, a social ou a cultural, a
necessidade de reformas que acompanhassem a acelerada
modernização do país saltava aos olhos.
Foi este gap entre uma ocidentalização parcial, voltada para
fins estritamente geopolíticos, e a falta de reformas políticas signi-
ficativas, a verdadeira fonte da instabilidade política na Rússia,
do início do século passado. Instabilidade esta que se expressava
em revoltas e greves sempre que uma derrota militar revelava os
pés de barro em que se assentava o império russo.
Esta realidade, aliás, não era desconhecida à época por libe-
rais, conservadores ou radicais. Para alguns, a saída preferida
seria uma monarquia constitucional, aos moldes da Grã-Bretanha.
Outros tendiam para uma república liberal. Os diferentes grupos
marxistas, por outro lado, propunham saídas mais radicais, como
uma república democrática que servisse de transição para uma
revolução socialista. Quase todos admitiam a necessidade de uma

128 Paulo César Nascimento


Assembleia Nacional Constituinte que elaborasse um novo regime
para o país. O czar Nicolau II e sua corte, em um incrível autismo
político, eram os únicos que não enxergavam ou não queriam
enxergar o abismo que se abria a seus pés. Dessa forma, a questão
que se colocava, no início do século 20, era qual força política iria
galvanizar o descontentamento geral de quase todas as classes e
grupos sociais da Rússia e liderar as mudanças.

Lenin e o movimento revolucionário


Em termos de ideias, o marxismo foi a doutrina que teve a maior
recepção no país, pois contemplava aspectos fundamentais do
imaginário russo. A promessa de uma sociedade socialista, que
superasse o desenvolvimento dos países ocidentais, satisfazia, a
seu modo, a antiga aspiração dos eslavófilos de que a Rússia se
tornasse uma “terceira Roma”. Certo é que os intelectuais conser-
vadores eslavófilos que enalteciam o ethos eslavo e depreciavam o
Ocidente não tinham nada a ver com o marxismo. Os revolucioná-
rios russos, por sua vez, não tinham nenhuma simpatia pelos inte-
lectuais eslavófilos. Mas ambos compartilhavam da ideia messiâ-
nica de que a Rússia se tornaria o grande centro da Europa, ainda
que a fonte desse messianismo, para os revolucionários russos,
fosse uma doutrina ocidental racionalista: o marxismo.
Não estavam de todo errados. Passando a ser a sede da III
Internacional Comunista, após a tomada de poder pelos bolchevi-
ques, a Rússia tornou-se o centro do movimento comunista, e
como União Soviética, uma das superpotências mundiais, levando
os sonhos dos eslavófilos a dimensões que eles próprios nunca
poderiam imaginar.
Mas o fator que desempenhou o papel principal na Revolução
Russa não foi o fato de o marxismo ter conquistado corações e
mentes de intelectuais e ativistas – a intelligentsia russa. Estes
possuíam uma variedade muito grande de organizações, que se
baseavam em interpretações distintas sobre como o marxismo
deveria ser aplicado às condições nacionais. O elemento que
selou os destinos da Revolução Russa, na realidade, foi o partido
criado por Lenin.
Desde o 2º Congresso da Social Democracia Russa (como eram
denominados os partidos que se alinhavam com a tradição
marxista da II Internacional fundada por Marx e Engels), Lenin
preocupava-se em formar um partido de militantes, disciplinado

A Revolução Russa de 1917: fevereiro ou outubro? 129


e organizado, que pudesse dirigir a classe operária e conduzi-la
para ações políticas concretas. Buscava também atrair os elemen-
tos mais ativos do movimento revolucionário russo em torno de
um programa claro de atuação política.
Foi pela época desse Congresso, no início do século passado,
que Lenin publicou seu opúsculo Que fazer?, onde expõe, com
bastante franqueza, a sua desconfiança tanto em relação a
outras agremiações da esquerda russa, quanto à própria classe
operária. Esta, para o líder político bolchevique, sem um partido
de vanguarda que a dirija “desde fora”, jamais iria passar do
nível de atividade sindical.
No entanto, poucos anos após ter escrito essas linhas, Lenin
viu surgir, durante a Revolução Russa de 1905 – a qual, como a
de fevereiro de 1917, foi em larga medida espontânea –, uma inusi-
tada organização autônoma de trabalhadores em São Petersburgo,
logo conhecida como Sóviet (Conselho), criada para comandar a
greve geral na cidade. Como prova de que os sóviets não foram
criados por partidos, nem eram por eles controlados inicialmente,
basta lembrar que dos 31 membros do Comitê Executivo do Sóviet
de São Petersburgo os partidos socialistas só conseguiram empla-
car nove representantes: três bolcheviques, três mencheviques e
três socialistas revolucionários. Além disso, tais representantes
só tinham poder consultivo.
Ao contrário do que pensava Lenin, o sóviet, na realidade,
provou que a classe operária possuía condições de se elevar acima
da luta meramente sindical, pois tornou-se um polo de poder polí-
tico até ser reprimido pelas autoridades czaristas, em 1905, e
após outubro de 1917, pelas próprias autoridades bolcheviques.
Lenin chegou a elogiar a iniciativa dos operários de São Peters-
burgo e a criação dos sóviets, mas, pelos próximos doze anos – da
supressão da revolução de 1905 até a revolução de fevereiro de 1917,
quando os sóviets reapareceram no cenário político russo – não
encontramos nos escritos leninistas nenhuma reflexão ou análise
sobre a experiência desses conselhos. Ao contrário, ele continuou
empenhando todos seus esforços na construção do partido bolchevi-
que, opondo-se ao estabelecimento de alianças políticas, e com uma
estratégia de tomada de poder, a qualquer custo.

130 Paulo César Nascimento


A Revolução de Fevereiro de 1917
Esta foi a autêntica Revolução Russa, se associarmos o
conceito de revolução ao de liberdade. Diferentemente de 1905, o
czar não conseguiu suprimi-la. Ao contrário, foi a Revolução de
Fevereiro que causou sua renúncia. E, como em 1905, pegou de
surpresa, em sua espontaneidade, todos os partidos políticos.
O reaparecimento dos sóviets espraiou-se pelo país, abarcando
soldados, marinheiros e camponeses, além de diversos tipos de
trabalhadores. Do legislativo, a Duma, formou-se um governo
provisório. A Rússia passou a ter uma dualidade de poderes, mas
isso não significava antagonismo radical entre as duas instân-
cias. Existiam divergências entre os sóviets e o governo provisó-
rio, mas também alguma colaboração. Até porque, nos meses que
se seguiram a fevereiro, tanto o governo provisório como boa parte
dos sóviets passaram ao domínio de forças de esquerda modera-
das – principalmente os mencheviques e social-revolucionários.
Entre outras medidas, o governo provisório decretou a anistia
geral aos presos políticos, a volta dos exilados, as liberdades de
imprensa, associação e manifestação. O ativismo das massas,
nesses meses que se seguiram a fevereiro, foi algo extraordinário.
“É o país mais livre do mundo”, teria dito Lenin, à época.
Destituída a monarquia, era óbvio que a nova forma de governo
da Rússia seria uma república, declarada oficialmente no dia 1°
de setembro de 1917. Os esforços do governo provisório concentra-
ram-se em organizar uma Assembleia Nacional Constituinte que
formulasse uma nova ordem constitucional e uma nova forma de
governo para a Rússia.
Mas, se a Revolução de Fevereiro seguiu o padrão convencio-
nal das turbulências políticas russas – derrotas militares, desta
vez na 1ª Guerra Mundial, seguidas de deserções em massa no
exército, colapso no abastecimento das regiões urbanas etc. –,
estes mesmos reflexos da fragilidade socioeconômica e institucio-
nal do país iriam agora atormentar o governo provisório. Pior
ainda, este não retirou a Rússia do atoleiro da guerra, avançou
pouco em questões sociais como a reforma agrária e viu sua legi-
timidade ser paulatinamente minada junto às massas.

A Revolução Russa de 1917: fevereiro ou outubro? 131


Outubro de 1917: golpe ou revolução?
Quando Lenin retornou à Rússia, em abril de 1917, surpreen-
deu a todos – inclusive seus correligionários – com a veemência
com que atacou o governo provisório, procurando enfraquecê-lo e
derrubá-lo. Para isso, procurou antagonizar os sóviets com o
governo provisório, lançando a palavra de ordem “todo o poder
aos sóviets”. Sobre esse ponto, a posição dele sempre foi ambígua.
Sentia uma admiração genuína pela forma como os operários,
marinheiros, camponeses, ferroviários e trabalhadores em geral
instituíram os conselhos como entidades alternativas de poder.
Por outro lado, se sentia visivelmente incomodado com a autono-
mia dos sóviets, e principalmente com a hegemonia de outras
forças de esquerda, como os mencheviques e os social-revolucio-
nários, nos comitês executivos dos conselhos em toda a Rússia.
Uma prova da ambiguidade dos bolcheviques, em relação ao poder
dos sóviets, pode ser encontrada em uma resolução do 6º
Congresso do Partido Bolchevique, em julho de 1917, que recolheu
a palavra de ordem “todo poder aos sóviets” devido à hegemonia
menchevique nos conselhos. Após a revolução, como se sabe, os
sóviets perderam totalmente sua independência, virando instru-
mentos do poder comunista.
A posição do Partido Bolchevique, no entanto, foi gerando seus
frutos. Em uma situação política caótica como a dos meses que
antecederam outubro, com o perigo da tomada do poder por mili-
tares de direita, e as ambiguidades das forças de esquerda mais
moderadas, os bolcheviques apareciam como o único partido com
coerência e autoconfiança suficiente para ganhar o apoio das
massas. Embora continuassem minoritários até meses depois de
chegarem ao poder, os bolcheviques foram conquistando sindica-
tos, comitês de soldados e até o importante Sóviet de Petrogrado,
entre outros conselhos.
Muito do crescimento do partido se devia ao papel pessoal
desempenhado por Lenin. Sua aguda intuição política e percep-
ção da fragilidade do governo provisório, somada a uma enorme
capacidade de luta, determinação e liderança, uniram os parti-
dários e lhes deram a confiança de que podiam governar a Rússia
e tirá-la do atoleiro em que se encontrava. A entrada de Trotsky
no partido foi igualmente um fator decisivo para o sucesso da
empreitada bolchevique. Presidente do Sóviet de Petrogrado, a
partir de fins de setembro, Trotsky era extremamente popular,

132 Paulo César Nascimento


possuía fortes qualidades de liderança, oratória cativante e
enorme capacidade de organização.
Não era segredo para ninguém que os bolcheviques almejavam
derrubar o governo provisório e tomar o poder. Aleksandr
Kerenski, socialista moderado e primeiro-ministro do governo
provisório a partir de julho de 1917, chegou a ordenar a prisão de
Lenin e de outros líderes bolcheviques por conspiração, mas isso
pouco afetou o curso dos acontecimentos, até porque foi uma
repressão tímida e pouco duradoura – ninguém na esquerda
moderada se sentia confortável em reprimir outra força de
esquerda. Lenin e Trotsky, no entanto, não sofreriam tal descon-
forto quando coube a eles fazê-lo.
A questão, assim, se resumia a quando e de que forma a
tomada do poder pelos bolcheviques iria ocorrer. Lenin não queria
nem esperar o 2º congresso dos sóviets, cuja data não havia ainda
sido marcada, porque temia que os bolcheviques não conquistas-
sem a maioria dos membros do comitê executivo dos sóviets. No 1º
Congresso dos Sóviets, realizado em maio/junho de 1917, os
bolcheviques ficaram em terceiro lugar em número de delegados,
sendo superados pelos social-revolucionários e mencheviques. Da
mesma forma, Lenin temia que as eleições para a Assembleia
Nacional Constituinte, marcadas para novembro de 1917, não
contemplassem uma nítida maioria de seus partidários. Não se
convenceu nem dos argumentos de colaboradores próximos como
Kamenev e Zinoviev, de que o bolchevismo era uma força em
ascensão e que, por isso, a tomada do poder pela força, naquele
momento, poderia ser prejudicial ao partido.
Impacientes, Lenin e Trotsky acabaram por forçar a realização
de um congresso geral de trinta sóviets controlados pelos bolche-
viques, entre eles os de Moscou e Petrogrado, sendo que este
último formou um comitê militar revolucionário que organizou a
derrubada do governo provisório no dia 25 de outubro de 1917.
Quanto à Assembleia Nacional Constituinte, apesar do bom
desempenho do partido bolchevique nas eleições de 12 de novem-
bro daquele ano, a hegemonia permaneceu com os socialistas-re-
volucionários e outras forças mais moderadas, o que acabou por
selar o destino da assembleia: foi declarada ilegal no primeiro dia
da reunião de seus delegados, no dia 28 de novembro.
Apesar do crescimento de sua popularidade nos últimos meses
que antecederam outubro, impossível não qualificar a tomada do
poder pelos bolcheviques como um golpe que interrompeu o

A Revolução Russa de 1917: fevereiro ou outubro? 133


processo revolucionário democrático iniciado em fevereiro de
1917. E foi um golpe não contra uma autocracia, mas contra um
governo legítimo da esquerda moderada.

A questão social e a democracia


Seria injusto e simplista atribuir à intolerância e ao radica-
lismo do partido bolchevique a sede de poder incontrolável oculta
na psicologia de seus líderes. Na realidade, a explicação mais
plausível parece indicar a maior relevância, para os comunistas
da tradição leninista, das questões sociais em relação aos ideais
de liberdade e democracia. Esta é, evidentemente, uma possível
leitura do marxismo, já que Karl Marx concentrou sua análise do
capitalismo sobre os aspectos da exploração econômica e as desi-
gualdades sociais daí advindas e os sistemas democráticos do
século 19, inclusive o da Inglaterra de seu tempo, ainda eram
oligárquicos e elitistas.
Mas outras leituras do legado de Marx também são possíveis.
O próprio Engels testemunhou, no final do século 19, o notável
crescimento eleitoral dos partidos socialdemocratas, principal-
mente o alemão, tornando possível a ideia de se chegar ao socia-
lismo pela via democrática. Lenin, contudo, apesar de viver muitos
anos na Europa Ocidental, nunca se sentiu à vontade com esta
tradição da socialdemocracia europeia. Ao contrário, a modera-
ção socialdemocrata, o apoio aos seus respectivos governos nacio-
nais na eclosão da 1ª guerra mundial, só o fizeram se desiludir de
vez da via democrática ao socialismo. Seu marxismo tosco e
dogmático, adaptado à cultura autoritária russa e preocupado
com o atraso social e econômico daquele país, forjaram em Lenin
uma mentalidade política voluntarista e impaciente, que se
expressou, em sua plenitude, no desprezo à construção de uma
ordem democrática a partir da queda do czarismo.
Assim, a questão social foi colocada na Rússia como o objetivo
mais importante de todos. Após o golpe de outubro, ao mesmo
tempo em que, por um lado, a propriedade privada era abolida, a
terra era redistribuída aos camponeses e a jornada de trabalho
era fixada em oito horas, e, por outro lado, os partidos eram colo-
cados na ilegalidade, a imprensa era censurada, os conselhos
eram instrumentalizados pelo sistema de partido único e toda e
qualquer voz oposicionista era calada.

134 Paulo César Nascimento


Esta foi a tradição que a III Internacional, criada em 1919,
adotou e tentou generalizar para todos os países. Com isso,
gerou nos partidos a ela ligados uma visão instrumental da luta
pela democracia, com sérios prejuízos à sua atuação política.
Quanto à Rússia, tornou-se, como União Soviética, uma super-
potência mundial, mas a um custo humano altamente proibi-
tivo. Tanto que, este ano, a comemoração da revolução foi banida
do calendário oficial do governo russo. “Seria para celebrar o
quê?”, perguntou Dmitri Peskov, porta-voz do Kremlin. Na
Rússia atual, a celebração mais importante passou a ser o dia 9
de maio – data da vitória final da URSS sobre a Alemanha
nazista, evento patriótico que une todo o país.
O trágico destino da União Soviética e a desilusão com o golpe
que a engendrou talvez abram espaço, no futuro, para que os ecos
distantes da Revolução de Fevereiro sejam ouvidos pelos historia-
dores. E talvez seja então possível que aquela fantástica experiên-
cia da queda do czarismo e do surgimento, pela primeira vez na
história da Rússia, de um espaço público onde uma apaixonada
pluralidade de ideias políticas se manifestava, ganhe o lugar que
merece nas páginas da história.

Referências
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. São Paulo: Companhia das
Letras, 2016 [1963].
BLACKBURN, R. (Org.) Depois da queda. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1992.
GURKO, V. I. Figures and Features of the Past. Stanford University,
Stanford, CA, 1939.
LENIN, V. I. Obras escolhidas, em três tomos. São Paulo: Alfa-
Ômega, 1979.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas em três tomos.
Lisboa: Avante, 1985.
PIPES, Richard. The Russian Revolution. New York: Random House,
1991.

A Revolução Russa de 1917: fevereiro ou outubro? 135


O reformismo de Celso Furtado
e a Revolução de 1917

Raimundo Santos1

C
elso Furtado, entre 1961 e janeiro de 1964, escreveu
vários textos sobre a superação do subdesenvolvimento
brasileiro que são bem expressivos da sua influência na
cena pública. Teve incidência inclusive na esfera governamental,
chegando a formular, no final de 1962, como ministro do Planeja-
mento, o Plano Trienal (1963-65) do governo de João Goulart. No
mais conhecido desses textos, “Reflexões sobre a pré-revolução
brasileira”, publicado no seu livro A pré-revolução brasileira, em
agosto de 1962, ele propõe uma estratégia de reformas graduais,
sob vigência permanente das liberdades, como único caminho
para firmar uma sociedade aberta e pluralista no Brasil. Escrito
sob influxo dos debates sobre a reconstrução econômica europeia
do segundo pós-guerra, o autor procura com ele singularizar as
condições de concretização desse reformismo democrático inter-
pelando a Revolução de 1917 e seu modelo de sociedade socialista.
O autor discute, em primeiro lugar, os princípios da estratégia
reformista, em diálogo com o marxismo, à época largamente
aceito pelos estudantes universitários a quem dirigia chama-
mento à ação política transformadora. Ele salienta três dos seus
pontos doutrinários de grande convencimento: o marxismo
denuncia a ordem social existente como uma ordem “em boa
medida” baseada na exploração do homem pelo homem, revela o

1 Autor do ensaio introdutório ao livro O marxismo político de Armênio Guedes,


Rio de Janeiro/Brasília: Contraponto/FAP, 2012.

137
caráter histórico da realidade social, indicando ser possível iden-
tificar-se “os fatores estratégicos que atuam no processo social”, e
abre a porta à “política consciente de reconstrução social”
(Furtado, 1962a, p. 17). Vê, neste ponto, sua “atitude positiva e
otimista, com respeito à ação política, e bem corresponde aos
anseios da juventude” (Furtado, 1962a, p. 17). Assim resume
suas observações sobre o marxismo: “...aí encontramos, por um
lado, o desejo de liberar o homem de todas as peias que o escravi-
zam socialmente, permitindo que ele se afirme na plenitude de
suas potencialidades, e, por outro, descobrimos uma atitude
otimista com respeito à autodeterminação consciente das comu-
nidades humanas. Trata-se, em última instância, de um estádio
superior do humanismo; pois, colocando o homem no centro das
preocupações, reconhece, contudo, que a plenitude do desenvolvi-
mento do indivíduo somente pode ser alcançada mediante a orien-
tação racional das relações sociais” (Furtado, 1962a, p. 17).
O autor divisa na filosofia social de Marx os “anseios profundos
do homem moderno”, cujas raízes mais vigorosas, diz ele
ampliando o ponto, “vêm do humanismo renascentista que reco-
locou na pessoa humana o foco do seu destino, e seu otimismo
congênito emana da Revolução Industrial que deu ao homem
controle do mundo externo”. (Furtado, 1962a, p. 17-18).
No seu diálogo com a juventude da época, Furtado define os
objetivos fundamentais da estratégia proposta, relegando a
segundo plano aquilo que chama de “simplesmente operacional”.
Um exemplo é a propriedade privada dos meios de produção, a
empresa privada, à qual, diz ele, não se pode atribuir mais que
um caráter operacional (Furtado, 1962a, p. 18). Ela é simples
forma descentralizada de organizar a produção que deve estar
subordinada a critérios sociais. E sempre que exista conflito entre
os objetivos sociais da produção e sua forma de organização em
empresa privada, medidas para assegurar o interesse social deve-
riam ser tomadas (Furtado, 1962a, p. 18). Menciona ainda o
fato de que, “à medida que, em fases avançadas de desenvolvi-
mento”, vai-se alcançando maior abundância na oferta de bens,
menos importância vão tendo as formas de organização da produ-
ção, passando a ser mais relevante o controle dos centros do poder
político, de onde saem normas de distribuição e de utilização da
renda social sob as formas de consumo público ou privado
(Furtado, 1962a, p. 18). O seu ponto é a definição dos objetivos
irredutíveis “ligados à nossa própria concepção de vida”, evitando-
se confundir meios e fins (Furtado, 1962a, p. 18). Ele cita

138 Raimundo Santos


também a situação internacional então marcada pelo problema
da preeminência russa ou americana. Diz o autor que, estando
fora de alcance interferir nessa questão, a impotência pode signi-
ficar maior margem de liberdade no que se refere à determinação
dos nossos próprios objetivos. (Furtado, 1962a, p. 18).
Tendo essa “tela de fundo de autodeterminação e consciência
de responsabilidade”, Furtado anuncia os objetivos da sua convo-
catória à ação política: “Creio que esses objetivos poderiam ser
facilmente traduzidos, tomando por base a análise anterior, nas
expressões: humanismo e otimismo com respeito à evolução mate-
rial da sociedade. Em linguagem mais corrente: liberdade e desen-
volvimento econômico”. (Furtado, 1962a, p. 19).
O otimismo em relação à “vida material” tem valor estraté-
gico na busca de uma nova sociedade: “O desenvolvimento
econômico é, em sentido estrito, um meio. Contudo, constitui
um fim em si mesmo”, frisa o autor, “um elemento irredutível da
forma de pensar da nova geração, a confiança em que o alarga-
mento das bases materiais da vida social e individual é condição
essencial para a plenitude do desenvolvimento humano”.
(Furtado, 1962a, p. 20).
Furtado recusa a visão obscurantista quanto ao futuro,
pondo-se em posição “antitética da lenda do bom selvagem”, não
se deixando seduzir pelas miragens de “uma nova Idade Média”,
nem se comovendo diante das inquietações daqueles “que veem
no progresso técnico as sementes da destruição do ‘homem essen-
cial’” (Furtado, 1962a, p. 20). Ao contrário, viria trazer a ques-
tão ocidental da “falsa dicotomia” entre a liberdade e o desenvol-
vimento econômico para o contexto dos países subdesenvolvidos.
Em segundo lugar, ele contrapõe sua estratégia reformista ao
modelo de crescimento econômico da União Soviética, àquela
época considerado paradigma do desenvolvimento não capitalista.
A questão da prevalência dos “fins verdadeiros” sobre os objetivos
intermediários na transformação das sociedades constitui o
“ponto central” das suas reflexões sobre as experiências das revo-
luções socialistas: “É este um problema complexo, pois a expe-
riência histórica dos últimos decênios criou a aparência de uma
forçada opção para os países subdesenvolvidos entre a liberdade
individual e o rápido desenvolvimento material da coletividade".
(Furtado, 1962a, p. 21).

O reformismo de Celso Furtado e a Revolução de 1917 139


A revolução socialista de 1917 na Rússia, país atrasado com
vastos contingentes rurais (“um oceano de camponeses”, na
expressão de Lenin), significa para ele o exemplo de um processo
de transformação social doutrinariamente dirigido que perde os
seus “fins últimos”. Furtado descreve o êxito da União Soviética
como um crescimento econômico alcançado “com base parcial-
mente em métodos anti-humanos”, enumerando as “expropria-
ções dos excedentes agrícolas, destinados a financiar o desenvol-
vimento industrial, feitas manu militari” mediante “coletivização
compulsiva e repressão violenta de toda resistência” (Furtado,
1962a, p. 21). Registra que o “método drástico” da apropriação
direta do produto excedente do setor camponês, realizada por
“método administrativamente mais fácil”, resultou no “enorme
preço em vidas humanas” (Furtado, 1962a, p. 21-22). E realça
também o fato de que esse tipo de avanço econômico “tem sido
acompanhado de formas de organização político-social em que se
restringem, além dos limites do que consideramos tolerável, todas
as formas de liberdade individual”. (Furtado, 1962a, p. 22).
O rápido crescimento da economia soviética se difundira no
mundo dos Partidos Comunistas (PCs) e fora dele como modelo
exitoso. Furtado vê essa tese como uma questão “obscurecida”
por “uma confusão de conceitos, inconsciente ou propositada”
(Furtado, 1962a, p. 24). O essencial nessa discussão, volta a
dizer, é que façamos “uma clara distinção entre aqueles objetivos
últimos, dos quais não devemos nos afastar na luta pelo aperfei-
çoamento das formas de convivência – os quais foram incorpora-
dos à filosofia de Marx, mas constituem elementos de uma concep-
ção do mundo mais ampla e em gestação no Ocidente desde o
Renascimento – das técnicas elaboradas para a consecução total
ou parcial desses objetivos” (Furtado, 1962a, p. 24-25). Ele se
refere ao marxismo-leninismo como uma doutrina que postula
uma revolução “inevitavelmente violenta” sob a liderança de um
partido de “revolucionários profissionais” (a propósito, ver Que
Fazer?, de Lenin, 1902). Uma revolução cujo fim era construir
“uma nova ordem que deverá ser assegurada por um regime dita-
torial, o qual perdurará durante um período de duração indefi-
nida”; “forjada e aperfeiçoada na luta pela destruição de uma
estrutura político-social totalmente rígida, a tzarista”. (cf.
Furtado, 1962, p. 25).
Furtado também menciona os países da Europa central, onde
revoluções “de fora para dentro” mostraram que as “grandes máqui-

140 Raimundo Santos


nas partidárias de orientação marxista-leninista ficaram trauma-
tizadas diante de uma realidade político-social em permanente
mutação” (Furtado, 1962, p. 25). A explicação dessa ineficácia
do modelo da revolução russa de 1917 no Ocidente, registra ele,
devia-se ao fato de que o Estado, nessas sociedades, não se reduz
a órgão de dominação de classe, a mera “força especial de repres-
são”. Essa era a simplificação com que o marxismo-leninismo
unificava a ação revolucionária dirigida à captura dos seus apara-
tos estatais (Furtado, 1962, p. 25). Daí extrai um ponto-chave
para o argumento reformista: “A partir do momento em que o
Estado deixa de ser uma simples ditadura de classe para transfor-
mar-se num sistema compósito, representativo de várias classes,
se bem que sob égide de uma, aquela técnica revolucionária perde
eficácia. A necessidade de discriminar entre o que o Estado faz de
bom e de ruim, do ponto de vista de uma classe, exige uma capaci-
dade de adaptação que não pode ter um partido revolucionário
monolítico”. (Furtado, 1962, p. 25-26).
As críticas do autor ao socialismo e ao marxismo-leninismo
procuram mostrar seu reformismo como uma estratégia apro-
priada a uma sociedade complexa: “O problema fundamental que
se apresenta é, portanto, desenvolver técnicas que permitam
alcançar rápidas transformações com os padrões de convivência
humana de uma sociedade aberta. Se não lograrmos esse obje-
tivo, a alternativa não será o imobilismo, pois as pressões sociais
abrirão caminho, escapando a toda possibilidade de previsão e
controle” (Furtado, 1962, p. 26). Segundo Furtado, elas apon-
tam também para o outro lado da questão que são as consequên-
cias do fracasso de uma revolução democrática: "Ter logrado
formas superiores de organização político-social representa uma
conquista pelo menos tão definitiva quanto haver atingido altos
níveis de desenvolvimento material. Deste ponto de vista, em uma
sociedade aberta, onde foram alcançadas formas de convivência
complexas, a revolução de tipo marxista-leninista representa
óbvio retrocesso político. (Furtado, 1962, p. 27).
Tendo como pano de fundo essas reflexões, o autor associa as
possibilidades do caminho reformista democrático no Brasil à
questão camponesa. Para equacioná-la numa perspectiva cons-
trutiva, recorre à experiência das sociedades capitalistas na
qual tiveram papel decisivo as classes, a luta de classes e o
marco institucional e suas flexibilizações, favorecendo o desen-
volvimento econômico. E das críticas ao socialismo oriundo da

O reformismo de Celso Furtado e a Revolução de 1917 141


Revolução de 1917 traz a questão da preservação das liberdades
democráticas como condição do êxito do desenvolvimentismo
proposto, diversamente das estratégias de ativação camponesa
dirigidas a constituir uma outra ordem social à semelhança da
Revolução Russa de 1917.
Para Furtado, a questão da institucionalidade adquire grande
realce no processo de mudança social. Aqui ela vai significar ao
mesmo tempo flexibilizar as “estruturas básicas” e abrir o sistema
político à integração dos desvalidos do mundo agrário na vida
nacional. Assim ele faz esta associação: “... a classe camponesa,
no Brasil, é muito mais suscetível de ser trabalhada por técnicas
revolucionárias do tipo marxista-leninista do que a classe operá-
ria, se bem que do ponto de vista marxista ortodoxo, esta última
deveria ser a vanguarda do movimento revolucionário. É que
nossa sociedade é aberta para a classe operária, mas não para o
camponês. Com efeito: permite o nosso sistema político que a
classe operária se organize para levar adiante, dentro do jogo
democrático, as suas reivindicações. A situação dos camponeses,
entretanto, é totalmente diversa. Não possuindo qualquer direito,
não podem eles ter reivindicações legais. Se se organizam, infere-
se que o fazem com fins subversivos. A conclusão necessária que
temos a tirar é a de que a sociedade brasileira é rígida em um
grande segmento: aquele formado pelo rural. E com respeito a
esse segmento é válida a tese de que as técnicas marxista-leninis-
tas são eficazes”. (Furtado, 1962, p. 28).
Essa situação envolve duas questões. A primeira é a da capa-
cidade do sistema político para absorver os conflitos, questão a
que busca atender o gradualismo da estratégia furtadiana: “Na
medida em que vivemos numa sociedade aberta, a consecução
dos supremos objetivos sociais tende a assumir a forma de apro-
ximações sucessivas. Na medida em que vivemos numa sociedade
rígida, esses objetivos sociais tenderão a ser alcançados por uma
ruptura cataclísmica” (Furtado, 1962, p. 28-29). A outra ques-
tão se refere propriamente às ações dos atores, particularmente
na urgência das soluções positivas para as reformas e, é preciso
relevar este ponto, na sustentação política ao governo da qual
depende o processo reformista.
Furtado observa que as mudanças sociais necessitavam que
os acontecimentos seguissem curso normal, mas prevê duas
situações em que se poderia chegar a um impasse: “Na medida em
que este (o setor agrícola – RS) se conserve com a rigidez atual,

142 Raimundo Santos


todo movimento reivindicativo que surge nos campos tenderá a
assimilar técnicas revolucionárias, de tipo marxista-leninista.
Temos, assim, na corrente do processo revolucionário, um impor-
tante setor de vocação marxista-leninista que em determinadas
condições poderá liderá-lo. A consequência prática seria o predo-
mínio, na revolução brasileira, do setor de menor desenvolvimento
político-social. Os autênticos objetivos do nosso desenvolvimento,
anteriormente definidos em termos do humanismo, estariam
parcialmente frustrados de antemão”. (Furtado, 1962, p. 29)..
A outra possibilidade de ocorrer uma revolução marxista-leni-
nista seria um retrocesso na estrutura política no país: “A impo-
sição de uma ditadura de direita tornando rígida a estrutura polí-
tica, criaria as condições propícias para uma efetiva arregimentação
revolucionária de tipo marxista-leninista” (Furtado, 1962, p.
29). O ponto do autor passa a ser este: “Sem condições objetivas
determinadas por um retrocesso político-social no país, com a
destruição da capacidade de defesa do setor urbano, que já
desfruta de formas de convivência política superiores, a única
possibilidade decorre da persistência da estrutura agrária anacrô-
nica” (Furtado, 1962, p. 30). Ele observa que, devido à demora
das modificações nas “estruturas básicas”, ao crescimento contí-
nuo das ansiedades coletivas, tendo o desenvolvimento econômico
se tornado um “imperativo político”, já se vivia uma '“autêntica
fase pré-revolucionária”. A questão das técnicas de transformação
social havia passado “ao primeiro plano das preocupações políti-
cas”. (Furtado, 1962, p. 30).
A interdição do caminho democrático não seria um evento
naturalístico vindo de um céu azul: “Para evitar um retrocesso
social não basta desejá-lo: é necessário criar condições objetivas
de caráter preventivo. O retrocesso na organização político-social
não virá ao acaso, e sim como reflexo do pânico de certos grupos
privilegiados em face da pressão social crescente. Não permitindo
as rígidas estruturas adaptações gradativas, a maré montante
das pressões tenderá a criar situações pré-cataclísmicas”
(Furtado, 1962, p. 31). Na mesma passagem, o autor volta à
questão institucional: “Nessas situações é que os grupos domi-
nantes são tomados de pânico e se lançam às soluções de emer-
gência ou golpes preventivos. Fossem as modificações progressi-
vas ou gradativas, e o sistema político-social resistiria”. (Furtado,
1962, p. 31).

O reformismo de Celso Furtado e a Revolução de 1917 143


Entretanto, a argumentação furtadiana a favor do refor-
mismo gradualista com vigência permanente das liberdades
democráticas também apresenta aporias. A principal delas diz
respeito ao fato de o Estado assumir, dada a ausência das clas-
ses e das lutas de classes que exerceram papel progressista nas
sociedades capitalistas, funções demiúrgicas no desenvolvi-
mento nacional. O autor propõe que o Estado tome medidas
visando à formação da classe empresarial, à reorientação dos
investimentos, a uma mais rápida acumulação de capitais, à
redução de riscos, entre outras, ampliando muito suas atuações
na área econômica. (Furtado, 1962b).
Nesse processo de desenvolvimento, sob auspícios do Estado,
a intelectualidade ocupa lugar protagonista privilegiado. Não por
acaso, Furtado conclui seu texto “Reflexões sobre a pré-revolução
brasileira”, dizendo que a tarefa imediata da ação política era
“organizar a opinião pública para que ela se manifeste organica-
mente”. E convoca os intelectuais para, ao lado de estudantes,
operários, empresários e incipientes organizações camponesas,
iniciar “o debate franco daquilo que esperam dos órgãos políticos
do país. Os problemas mais complexos devem ser objeto de estu-
dos sistemáticos por grupos de especialistas, devendo as conclu-
sões ser objeto de debate geral. O país está maduro para começar
a refletir sobre seu próprio destino” (Furtado, 1962a, p. 32).
Esperava que outras discussões e manifestações da opinião
pública ensejassem plataformas “que servirão de base para a
renovação da representação popular”. (Furtado, 1962a, p. 32).
Chama a atenção o fato de que, nos dois textos de 1962 aqui
citados, Furtado não menciona os partidos políticos no seu papel
de mediador de interesses diversos e fragmentados, terreno onde
cumprem tarefa tematizadora na formação das correntes de
opinião e dos governos.2 Com razão, Daniel Pécaut observa que o
autor tem dificuldade em reconhecer a especificidade da política
como tal, quando associa a ação política transformadora à ideia
de nação como sujeito político (Pécaut, 1990), não rompendo
com a cultura política nacional-popular que predominava na
esquerda brasileira daquela época.

2 Em texto publicado no final de 1962, Caio Prado considera os partidos políticos


protagonistas importantes daquele tipo de mobilização, reclamando, porém, da
superficialidade das suas ideias e programas que os incapacitava então de formar
governos “político-administrativos”. Também denunciava o governo de Jango por
incentivar agitações em função de interesses personalistas, que desviavam o foco
das “forças progressistas e democráticas”. (cf. PRADO JR., 1962; 2007).

144 Raimundo Santos


Referências
Furtado, Celso. Reflexões sobre a pré-revolução brasileira. In: A
pré-revolução brasileira. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1962a.
______. Subdesenvolvimento e Estado democrático. In: A pré-
revolução brasileira. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1962b.
Pécaut, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil. Entre o povo
e a nação. São Paulo: Ática, 1990.
Prado Jr., Caio. Perspectivas da política progressista e popular
brasileira. Revista Brasiliense, n. 44, nov.-dez./1962.

O reformismo de Celso Furtado e a Revolução de 1917 145


Um marco na Humanidade

Roberto Freire1

A
Revolução Russa – in­dependente da visão de quem a analise
e da ava­liação ser profunda ou não – se constitui o maior
acontecimento do breve século 20. Não é gra­t uito, portanto,
que, no mês de novembro, em todo o plane­t a, os mais importantes
veículos da mídia lhe dedicaram reportagens, artigos, entrevis-
tas e programas especiais, e em muitas universidades e centros
de investigação e pesquisa ocorreram e ainda estão ocorrendo os
mais diversos tipos de debates na busca de fazer um balanço dos
"dez dias que abala­ram o mundo", há 100 anos atrás.
Sem deixar de considerar os desvios e distorções que foram
ocorrendo, no decorrer do pro­cesso revolucionário na pátria de
Leon Tolstoi, comuns, aliás, a todas as grandes rupturas his­tóri-
cas, de que é exemplo mais eloquente a Revolução Francesa, deve-
mos começar por destacar os imensos ganhos obtidos pela socie-
dade humana nessa vira­gem promovida pelo povo russo e com
repercussões em todos os continentes.
A consequência mais positiva para todos os povos, sem dúvi­da, foi
o fim do Império Russo e da Monarquia corrupta e atra­biliária que lhe
dava sustentação. Controlada por czares e uma nobreza proprietária
de grandes glebas de terra, que mantinham sua vida de luxo e para-
sitária, a sociedade russa era talvez a mais desigual, injusta e arbitrá­
ria então existente na Europa, apoiada na exploração de milhões de

1 Advogado, deputado federal (PPS-SP).

147
famí­lias camponesas despossuídas de terra, de liberdade, de educa-
ção, e no domínio escravagista sobre outros povos.
Com a sacudida revolucionária, os trabalhadores russos, uma
grande parte trans­ formados compulsoriamente em soldados e
servindo de bucha de canhão para os fins belicistas do seu
governo, conquistaram a tão almejada paz (pondo fim à I Guerra
Mundial) e os direitos elementares de que careciam. E tão impor-
tante quanto isso: fizeram de um país reconheci­damente atra-
sado, em apenas 30 anos, uma das potências econô­micas e mili-
tares do mundo.
No plano das relações inter­nacionais, destaque-se que a antes
belicista e expansionista Rússia, a partir de então se tornou um
país cuja nova direção se preocu­pava com a paz entre os povos, o
que teve evidência maior quando dos acontecimentos da II Guerra
Mundial, de 1939 a 1945. Estão aí nos registros históricos que
quem mais sofreu o peso da últi­ma carnificina foi a então União
Soviética, destruída material­mente pelos bombardeios aéreos e
invasões da "razzia" das tropas hitleristas, e a que teve maior
número de perdas humanas.
Tal­vez o destino da Humanidade não fosse o mesmo se não
tives­se sido derrotada a máquina de guerra alemã, graças sobre-
tudo à coragem e à capacidade de re­sistência e de luta dos sovié-
ticos. É uma dívida que a Europa, em particular, e o mundo, no
plano geral, têm para a conquista da tão ansiada paz.
A saga russa – a partir do seu exemplo concreto de que é pos­
sível se chegar ao poder e fazer mudanças – foi um dos elemen­tos
decisivos também para deto­ nar um rico processo de grandes
batalhas e movimentos em favor da libertação dos povos e da des­
colonização pelos continentes, tendo como paradigma a inde­
pendência negociada pelo gover­no dos sóvietes e as lideranças do
país vizinho pondo fim ao domí­nio russo sobre a Finlândia.
Ine­gável que o mapa mundi mudou completamente, após o
Outu­bro Vermelho, graças sobretudo ao apoio moral e material
dado à autodeterminação dos povos, um dos principais valores e
ban­deiras levantados pelos comu­nistas dentro de sua visão inter­
nacionalista. Isso é tão evidente que hoje existem apenas alguns
resquícios de colônias, exceção que confirma a regra geral.
Outro elemento forte a con­siderar diz respeito à imensa re­per-
cussão de como um partido aguerrido, mesmo que pouco nume-
roso, porém consciente do seu papel histórico a desempe­nhar e do

148 Roberto Freire


seu alto nível de or­ganização, pode comandar um processo revo-
lucionário, enfren­t ar os maiores obstáculos, e sair vitorioso. Não
é gratuito que, em grande parte dos países, a Revolução tenha
sido saudada com manifestações de todo tipo e tenham surgido
lideranças in­teressadas em construir em seu território um agru-
pamento ca­paz de ser o impulsionador do processo de mudança.
Os trabalhadores, em qualquer lugar, particularmente no con­
tinente europeu, pelo seu nível de informação e de consciência
das questões sociais, deram nova dinâmica aos seus movimentos
reivindicatórios e sentiram ter se ampliado o campo para o avan­
ço de suas conquistas, nos vários planos, particularmente o polí-
ti­co. Nesse processo, não apenas os comunistas, mas sobretudo
os socialdemocratas, aproveitando­-se do temor do avanço verme-
lho por parte das elites burguesas, criaram condições para dura­
douras conquistas nos planos econômico, social e político.
A Revolução Russa destravou, no plano cultural, novas e
adorme­cidas forças, nas principais for­mas de manifestação artís-
tica. Na literatura (tanto na prosa como na poesia), no cinema,
nas artes plásticas e na dramaturgia, para ficar apenas nos mais
desta­cados, aflorou um grande núme­ro de nomes, cada qual o
mais criativo e inovador, e que rapida­mente ganharam projeção
inter­
nacional e muitos dos quais se tornaram e permanecem
como referências. Desnecessário no­ minar mais que Gorki,
Maiako­ vski, Essenin, Eisenstein, Vertov, Chagall, Malevitch,
Kandinsky, Bloch, Meierhold e Stanislavski, verdadeiros ícones
da moderni­dade em suas áreas.
Num país atrasado, também do ponto de vista educacional, em
que a gigantesca maioria dos seus cidadãos era analfabeta e em
que era mínimo o número dos que tinham acesso aos estabele­
cimentos educacionais, o proces­ so revolucionário provocou uma
mudança radical nessa situação, fazendo com que se garantisse
oportunidade de transferência de conhecimento a toda a popu­
lação. Não só pela construção de novas escolas, preparação de pro­
fessores e diretores, mas sobretu­do pela implantação de novos e
científicos métodos pedagógicos e por sistemas de estímulo à po­pu-
lação quanto à importância para a vida e para o avanço de cada
um e da sociedade em geral a ampliação dos conhecimentos.
No que se refere à questão da mulher, esta conquistou um
sta­t us antes inteiramente desconhe­cido, qual seja o de ter o direito
e a oportunidade de ser reconheci­da no mesmo pé de igualdade
do homem e de poder agir livremen­te, sem as amarras das leis

Um marco na Humanidade 149


atra­biliárias, da cultura e dos costu­mes da servidão. No território
asiático, dominado pelo Império russo, as mulheres conquista-
ram também não apenas assento nos Conselhos de gestão pública
e nas cooperativas, mas inclusive o direito de ser ouvidas nas
próprias relações familiares, o que antes lhes era interditado.
A experiência soviética, nos seus 70 anos (da sua efetiva
im­plantação, em 1921, até o seu desmoronamento, com a derru­
bada de Mikhail Gorbachov, o último secretário-geral do Parti­do
Comunista e o último gover­nante, em 1991), coloca muitos inter-
rogantes sobre este comple­xo e rico processo de ruptura. A ques-
tão essencial é a respeito do que teria ocorrido que não permitiu
que se ultrapassasse o capitalismo, com o seu natural sistema de
exploração de uns ho­ mens sobre outros, e não se te­ nha cons-
truído a nova sociedade de interesses comuns.
Argumenta-se que o siste­ma foi minado por seus desvios buro-
cráticos, ou que sucumbiu à poderosa propaganda ideoló­g ica do
inimigo, ou que não se preocupou com os avanços cien­t íficos e
tecnológicos senão na área da corrida armamentista no enfrenta-
mento da "guerra fria" deixando de lado as necessida­des quotidia-
nas da sociedade (a URSS foi a primeira no mundo a colocar um
satélite artificial na órbita da Terra, a mandar um ser vivo para o
espaço cósmico – a cadela Laika, a enviar o primei­ro homem, Y ­ uri
Gagarin, ao espaço cósmico etc), ou desdenhou a questão das
liberdades e da de­mocracia política.
Erros foram muitos e não podemos fechar os olhos diante deles,
nem muito menos tentar justificá-los, até por conta do necessário
aprendizado que a so­ciedade humana realiza perma­nentemente.
Não se trata apenas de terem assassinado a família real, de fecha-
rem a Assembleia Constituinte, de promoverem a coletivização
forçada da massa camponesa, de atropelarem di­reitos elementares
em determi­nados momentos do processo revolucionário, de terem
dizi­mado milhares de descontentes com o que estes chamavam de
"desvios de rumo" da revolução, de ter se implantado num longo
período uma ditadura unipessoal e totalitária em torno do culto à
personalidade de Stalin e da eliminação física de alguns dos melho-
res quadros revolucioná­r ios que pudessem fazer sombra ou amea-
çar a liderança do "guia genial dos povos".
Porém, o essencial a extrair dessa rica experiência histórica,
em nosso entender, foi, de um lado, e principalmente, não ter
construído uma sociedade efe­tivamente democrática e partici­
pativa, com a vigência das mais amplas liberdades e dos direitos

150 Roberto Freire


essenciais da pessoa humana, não ter combatido a implanta­ç ão
de um sistema de poder uni­ p essoal, seguido de um poder de
uma casta burocrática de partido único, controlador de todas as
atividades existentes na máquina estatal, e se imiscuindo e dire-
cionando todas elas; e, de outro, a subesti­mação da importância
dos avan­ços científicos e tecnológicos para dar um salto de
qualidade no país, no plano concreto do bem-estar, e de efetiva
contribui­
ç ão para ser um exemplo a todos os povos sobre as
qualidades da nova sociedade.

Um marco na Humanidade 151


A Revolução Russa de 1917
Erros – Acertos – Ensinamentos

Sergio Augusto de Moraes1

M
uito se falou da Revolução de 1917 na Rússia. Hoje quase
exclusivamente fala-se mal, em especial nas grandes
mídias, sempre a serviço do grande capital. Mas também
se fala mal em boa parte daquilo que se conhece como esquerda.
Esquerda? Já que estamos falando de revolução me permito uma
citação de alguém que estudou seriamente o assunto:
[...] uma organização social nunca desaparece antes que se
desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter;
nunca relações de produção novas e superiores se lhe substituem
antes que as condições materiais de existência destas relações se
produzam no próprio seio da velha sociedade.2

Alguém duvida que Lenin e os dirigentes da revolução de 1917


conheciam de cor e salteado esta tese de Marx? Que eles sabiam
que no seio da sociedade russa daquela época não existiam
“condições materiais” para que “relações de produção novas”
surgissem? Mas, por contraditório que possa parecer, surgiram
condições políticas. E o partido mais preparado para assumir o
poder era o partido bolchevique (comunista).
Quando da vitória da revolução em 1917, na Rússia, então
um país que era definido como “um mar de camponeses”, eles
não tinham dúvidas: ela só poderia se consolidar se outras revo-

1 Engenheiro, mestre em Econometria pela Universidade de Genebra.


2 MARX, Karl. Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p. 6.

153
luções acontecessem nos países de capitalismo avançado, em
particular na Alemanha.
A revolução ocorreu durante a primeira guerra mundial, de
1914 a 1918, na qual a Rússia sofreu perdas gigantescas. É o
governo revolucionário que, enfrentando enormes dificuldades
consegue assinar um tratado de paz em março de 1918, o que lhe
permite respirar. Logo depois a reação interna, apoiada nos exér-
citos de 14 países, inicia uma outra guerra, desta vez para derro-
tar a revolução, causando uma destruição indescritível.
No fim da guerra civil, em 1921, o proletariado urbano quase
que desaparecera na Rússia. Moscou tinha apenas a metade e
Petrogrado 1/3 de seus habitantes de antes da guerra. Lenin diz,
no 2º Congresso dos Servidores Políticos da Educação, em 17/10/21:
Um proletariado industrial que, por causa da guerra, da ruína
e das terríveis destruições, perdeu sua posição de classe, foi
afastado de seu caminho de classe e deixou de existir como
proletariado [...] e considerando que a grande indústria capita-
lista está arruinada e que as fábricas e oficinas estão imobili-
zadas, o proletariado desapareceu. Fizemô-lo algumas vezes
figurar como tal, de uma maneira formal, mas a verdade é que
não tinha raízes econômicas.

Assim, a guerra mundial e depois a guerra civil, tinham devas-


tado a Rússia e minado as bases para a implantação de uma demo-
cracia proletária. A mais poderosa organização que emerge da
guerra civil é o Exército Vermelho, com seus 5 milhões de homens.
Seu chefe e líder indiscutido é Trotski. Além do Exército, só havia
duas forças capazes de dirigir a Rússia: o Partido Comunista e a
burguesia internacional. O Partido e o Exército Vermelho estavam
unidos e resolvem plantar as bases de um outro sistema.
Diante desta situação, Lenin diz “Sim, a ditadura de um partido!
Sobre este terreno estamos pisando e não podemos sair dele, já que
se trata de um Partido que conquistou, ao longo de décadas, a posi-
ção de vanguarda de todo o proletariado fabril e industrial”. Em
março de 1922, em carta a Molotov, então secretário do CC, diz:
Se não quisermos fechar os olhos à realidade, teremos de admi-
tir que no momento o caráter proletário da política do Partido é
determinado não pela composição de classe de seus membros,
mas pela enorme e indivisa autoridade daquela pequena
camada de membros que poderia ser chamada de velha guarda
do Partido.

154 Sergio Augusto de Moraes


Nestas condições, os revolucionários russos se davam conta
de que a consolidação da revolução na Rússia, mantendo pontos
fundamentais de seu programa, só poderia se efetivar se outras
revoluções acontecessem nos países de capitalismo avançado.
Esta esperança é enterrada definitivamente, em 1923, com a
derrota da revolução na Alemanha.
A direção do Partido resolve, então, enfrentar a tarefa de recons-
truir não só o país como também o proletariado russo; isto nas
condições de um cerco implacável por parte dos grandes países
capitalistas. E o faz com grandes erros, mas também com acertos.
Apenas um indicador: na segunda guerra mundial, Hitler joga na
frente leste dois terços de seus principais exércitos e quem assesta
os golpes decisivos no nazifascismo é o Exército Vermelho e não os
ingleses ou norte-americanos, como tentam nos impingir as gran-
des mídias ocidentais nos seus filmes ou nas reportagens e progra-
mas de televisão sobre a segunda guerra mundial.
Qualquer observador, no século 21, não terá dificuldades para
encontrar críticas, umas poucas sérias mas em geral descabidas,
sobre o que se fez na URSS entre 1917 e 1991. Difícil é encontrar
alguém que aponte seus êxitos e ensinamentos fundamentais
para quem pensa em construir um futuro não capitalista: a revo-
lução socialista não pode abrir mão da democracia mais avan-
çada; ela só poderá se desenvolver em uma série de países de
capitalismo de ponta cuja força seja capaz de impedir seu sufoca-
mento pelo que restar de capital internacional; ela deverá se
apoiar nas classes e camadas que já tenham desenvolvido uma
forma de viver internacionalista; o planejamento e a distribuição
da produção e do lazer deverá ser obra de toda a sociedade; um
novo tipo de ética entre o homem e a natureza deverá abrir espaço,
etc, etc. São incontáveis os ensinamentos que se pode tirar dos
erros e dos acertos da Revolução de 17 e da construção da URSS.
Não só olhando para o futuro mas também no presente da
humanidade, a Revolução de Outubro e a URSS imprimem, no dia
a dia, suas marcas quando, por exemplo, se considera os direitos
dos trabalhadores e da mulher.
Quem pensa o futuro da humanidade não pode repetir que a
derrota da URSS fez a esquerda do século 21 “perder sua narra-
tiva”. Isto seria esquecer que, diante da possível derrota da
Comuna de Paris (1871), Marx que, anteriormente, havia manifes-
tado sua discordância com a oportunidade dessa revolução, diz:
“Graças à Comuna de Paris, a luta da classe operária contra a

A Revolução Russa de 1917 Erros – Acertos – Ensinamentos 155


classe dos capitalistas e contra o Estado que representa os inte-
resses desta última entra agora em uma nova fase. Seja qual for o
desenlace imediato, conquistou-se dessa vez um ponto de partida
novo de importância histórico-mundial”.3
Mutatis mutandi, poderíamos dizer, no século 21, o mesmo da
Revolução de 1917 e da construção da URSS: com elas, conquis-
tou-se um novo ponto de partida de importância histórico-mun-
dial para a construção de um mundo onde a riqueza não será
mais realizada pela exploração do trabalho alheio e a medida da
riqueza social não será mais o tempo de trabalho, mas sim o
tempo disponível.

3 MARX, Karl. Carta a L. Kugelmann, 17 de abril de 1871, em Marx e Engels,


Obras Escolhidas, v. 3, p. 264, Rio de Janeiro: Vitória Ltda., 1963.

156 Sergio Augusto de Moraes


A encruzilhada da revolução

Sérgio C. Buarque1

N
o rigoroso inverno de Petrogrado, um grupo de soldados
montava guarda no pátio externo do Instituto Smolny.
Circulando em torno de uma pequena fogueira, o cabo
Volódia acendeu um cigarro, apontou para a sala iluminada no
segundo andar do edifício e comentou: “Camaradas, alí está sendo
decidido o futuro da revolução”. Naquela sala estava reunida a
direção do Partido Bolchevique, para avaliar a situação política
criada pela composição da Assembleia Constituinte (AC), eleita
em novembro e empossada no dia anterior.
Victor Chernov, destacado líder do Partido Socialista Revolu-
cionário, fora eleito presidente da AC, refletindo uma aliança
majoritária de socialistas revolucionários e mencheviques. Depois
do sucesso da insurreição de outubro (novembro no calendário
gregoriano), os bolcheviques pareciam atordoados com a derrota
eleitoral que os jogava numa desconfortável minoria na Consti-
tuinte. Nuvens densas acentuavam o frio inverno russo, emoldu-
rando o clima tenso da discussão dos bolcheviques diante de uma
dramática escolha. Todos pareciam perceber que estavam numa
bifurcação da história, num ponto de inflexão que marcaria defi-
nitivamente o futuro da revolução. Combinando o prestígio polí-
tico com a sua força retórica, Leon Trotski foi o primeiro orador a
defender a dissolução imediata do órgão constituinte.

1 Economista, mestre em Sociologia e professor aposentado da FCAP/UFPE.

157
– Camaradas. O partido e os sóviets de operários, soldados e
camponeses assumimos o poder e controlamos a Rússia. Este é o
poder legítimo do proletariado que acabou com a monarquia e cons-
truirá o socialismo. Não podemos agora, simplesmente, retroceder e
ceder o poder à burguesia e aos seus aliados mencheviques. Com a
insurreição de outubro, nós destituímos o governo provisório domi-
nado pelos mesmos socialistas revolucionários que agora mandam
na Constituinte. Esta eleição já foi um grande equívoco. Deixar que,
agora, os inimigos da revolução elaborem uma Constituição que tira
o poder dos Sóviets será uma traição histórica. Proponho a imediata
dissolução desta Assembleia Constituinte.
Tumulto na sala misturava aplausos e gritos de repulsa à
proposta de Trotski. Quase ao seu lado, Lev Kamenev levantou da
cadeira num gesto dramático, esperou que se fizesse silêncio e
argumentou, com voz pausada e monótona mas convincente,
contra a dissolução da Constituinte. “Decisão tão drástica e auto-
ritária – argumentou – é um desrespeito à maioria da população,
trabalhadores e camponeses que elegeram os socialistas revolu-
cionários e os mencheviques, além dos liberais burgueses. Nós
garantimos as eleições e participamos do pleito e não podemos,
agora, porque ficamos em minoria, anular tudo. O que vamos
dizer ao povo russo e ao mundo?”.
Lenin ouvia os argumentos das duas tendências e acompa-
nhava o debate em torno da decisão que definiria o futuro da
revolução. Ele sabia que, com apenas 24% dos delegados na AC,
os bolcheviques não poderiam impedir a elaboração de uma Cons-
tituição que, seguramente, decidiria por um sistema parlamentar
de governo com base no sufrágio universal, derrubando o poder
dos sovietes. Não gostaria, contudo, de um gesto duro de simples
dissolução de uma instituição que tinha sido eleita após a insur-
reição e com a participação do partido. Quando a discussão avan-
çou para gritos e acusações dos beligerantes, Lenin se levantou,
provocando um rumor carregado de expectativa, e disse:
– Camaradas. O camarada Trotski tem razão quando adverte
para o retrocesso de uma Constituinte com maioria reformista e libe-
ral. Mas Kamenev levantou aspectos relevantes na defesa da Assem-
bleia onde somos minoria, é verdade, mas precisamos considerar a
sua reflexão na nossa avaliação da realidade e na nossa decisão.
Fez uma pausa, olhando as caras inquietas, e concluiu:
– Vamos respeitar a Constituinte. Nossos deputados devem
formar alianças com os socialistas revolucionários de esquerda e

158 Sérgio C. Buarque


com os mencheviques para defender a consolidação da revolução e
do poder soviético. O Partido liderou a tomada do poder pelos
Sóviets, mas a maioria dos eleitores russos preferiu, nestas elei-
ções, os reformistas. A Assembleia Constituinte representa, portanto,
as relações de poder na sociedade russa na qual os operários ainda
são uma minoria isolada nas grandes cidades, uma pequena ilha
cercada pela grande massa de camponeses. Enquanto a Consti-
tuinte trabalha, nós ganhamos tempo para consolidar e ampliar o
poder. E, principalmente, para concluir um acordo de paz que acabe
com esta brutal guerra que está matando os nossos soldados, afun-
dando a nossa economia e empurrando nosso povo para a miséria.
Tudo isso é ficção, claro. Na verdade, em janeiro de 1918, os
bolcheviques dissolveram a Assembleia Constituinte, iniciando o
processo de ruptura com as outras tendências socialistas e avan-
çando, rapidamente, para a ditadura do proletariado que, em
última instância, era o sistema do partido único que controlava
os Sóviets. Esta decisão foi o marco definidor da história da Rússia
com todas as implicações internas e seus desdobramentos na
disputa geopolítica mundial.
E, no entanto, naquele longo e tumultuado período que vai da
revolução de fevereiro até janeiro de 1918, no meio de uma
sangrenta guerra e passando pela insurreição de outubro, as
relações de força e as divergências em todos os partidos poderiam
ter levado a um caminho bem diferente na encruzilhada política
da Rússia. Se a Assembleia Constituinte tivesse sido respeitada e
os bolcheviques tivessem negociado com os socialistas revolucio-
nários e os mencheviques, poderia ter sido elaborada uma Cons-
tituição reformista e democrática.
Nesta hipótese, muito provavelmente, a Rússia e os países do
ex-império czarista teriam evoluído para um modelo socialdemo-
crata nos termos dos países nórdicos e, mais tarde, da Europa
Central e Ocidental, negociando a paz com a Alemanha e avan-
çando nas reformas sociais. Difícil, nas condições sociais e na
radicalização política, mas não improvável.
De fevereiro de 1917 até janeiro de 1918, a Rússia viveu um
período de grande efervescência e instabilidade política, com
uma acirrada disputa de poder no meio de uma violenta guerra
contra a Alemanha e o império austro-húngaro. A Revolução de
Fevereiro (março no calendário gregoriano) demoliu o czarismo e
implantou uma república democrática com base numa aliança
dos Socialistas Revolucionários com os liberais do Partido Cons-

A encruzilhada da revolução 159


titucional Democrata, apoiada pelos mencheviques, facção
moderada do Partido Operário Socialdemocrata Russo, e mesmo
por algumas lideranças bolcheviques (facção majoritária lide-
rada por Vladimir Ilitch Lenin).
O Governo Provisório, formado em fevereiro, decretou imediata
anistia política e aprovou uma das legislações mais liberais da
Europa da época, com liberdade de expressão, de imprensa e reunião,
e separação entre Estado e Igreja. Ao mesmo tempo, convocou elei-
ções para uma Assembleia Constituinte, com sufrágio universal e
voto secreto, eleições que foram realizadas em novembro.
A democratização estimulou a organização da população e a
proliferação de jornais e panfletos, com intensa discussão e duras
controvérsias políticas, ao mesmo tempo em que continuava a
guerra contra os impérios do Ocidente, acentuando o desgaste
social e a desorganização econômica da Rússia. A marca deste
período foi o duplo poder: o Governo Provisório, baseado na Duma
(parlamento russo), convivendo com a organização dos Sóviets
(conselhos de operários, soldados e camponeses).
Do apoio inicial à Revolução de Fevereiro, com o tempo, os
Sóviets foram se distanciando e disputando espaços de poder na
caótica situação do país, refletindo a insatisfação latente dos
operários das grandes cidades e dos soldados que, por quase
quatro anos, arriscavam a vida na frente de batalha. Embora
também tivessem representantes na Duma, os bolcheviques
tinham hegemonia nos Sóviets, o que levou Lenin a articular e
executar a insurreição de outubro (novembro no calendário grego-
riano) com o lema “Todo o poder aos Sóviets”. Com a insurreição,
os bolcheviques assumiram o poder na Rússia, mas ainda divi-
diam espaços com os socialistas revolucionários e os menchevi-
ques e, o que é mais significativo, realizaram as eleições para a
Assembleia Constituinte.
A divisão de poder entre a Duma e os Sóviets não era uma
simples disputa ideológica e de espaços de instâncias de governo
com diferentes formas de eleição, voto universal no primeiro e
representação direta no segundo. A divisão refletia, no fundo, a
estrutura social da Rússia predominantemente rural, apesar do
processo recente de modernização e industrialização que formava
uma incipiente e frágil burguesia e uma emergente classe operá-
ria. A Rússia de 1917 era uma ilha de cidades, com grande concen-
tração de indústrias e operários, cercada de uma multidão de
camponeses que representavam mais de 80% da população.

160 Sérgio C. Buarque


Os Socialistas Revolucionários, que lideraram o Governo Provi-
sório e a Duma, tinham uma grande base política entre os campo-
neses, enquanto os bolcheviques eram, sobretudo, um partido do
proletariado, classe minoritária e concentrada nas cidades. Com
esta minoria isolada nas cidades, a insurreição de outubro foi
possível apenas pela capacidade de Lenin de mobilizar e atrair a
enorme insatisfação da população e, principalmente, dos Sóviets
dos soldados, complementando a organização dos operários com o
poder militar. Desde sua chegada do exílio, com as suas “Teses de
abril”, Lenin já defendia a tomada do poder pelos Sóviets e a saída
da Rússia da guerra, com o lema “Paz, terra e pão”. Paz era tudo o
que os soldados queriam ouvir depois de quase quatro anos de
guerra, mortes, mutilações e sofrimentos.
A disputa de poder, dos bolcheviques contra mencheviques e
principalmente socialistas revolucionários, refletia também a dife-
rença de percepção da realidade da Rússia e, principalmente, do
seu potencial revolucionário. No entendimento de Lenin, domi-
nante entre os bolcheviques, em determinadas condições históri-
cas (a Rússia em guerra e desestruturada), um partido profissional
e disciplinado poderia tomar o poder e dar um salto histórico para
a construção do socialismo mesmo com operariado claramente
minoritário. A dissolução da Assembleia Constituinte partiu desta
aposta, mesmo rompendo com antigos aliados que discordavam
deste salto e pretendiam começar com a implantação de uma repú-
blica democrática, em conjunto com os liberais e democratas.
Os mencheviques e os socialistas revolucionários achavam, ao
contrário de Lenin, que o capitalismo não estava desenvolvido na
Rússia, de modo a criar as condições para a revolução socialista.
Entendendo que não seria viável o salto de uma sociedade social,
política e economicamente atrasada para o socialismo, os reformis-
tas consideravam historicamente necessária a formação de uma
coalizão com a burguesia e os liberais para consolidar a democra-
cia e implementar as reformas sociais, o que, supunham, evitaria
a guerra civil. Mesmo alguns líderes bolcheviques, entre eles Zino-
viev e Kamenev, duvidavam do salto revolucionário proposto por
Lenin e da emergente revolução proletária na Europa ocidental.
O fato é que, com o desgaste da guerra, a desagregação social
e a desorganização da economia, o Governo Provisório mostrou-se
frágil e incompetente, adiando as grandes decisões, principal-
mente a negociação de um armistício com a Alemanha, desejo da
população sofrida com a violência da guerra e a miséria no campo

A encruzilhada da revolução 161


e na cidade. Demorou muito também para eleger a Assembleia
Constituinte. Nestas circunstâncias, ao longo do ano, foi cres-
cendo a dualidade de poder entre a Duma, com maioria de refor-
mistas e liberais, e os Sovietes, liderados pelos bolcheviques,
levando à insurreição de outubro.
A estrutura de classes se refletiu diretamente na composição da
Assembleia Constituinte, com esmagadora votação do Partido
Socialista Revolucionário, graças à sua grande influência entre os
camponeses (teria recebido 80% dos votos do campesinato rural).2
Os bolcheviques receberam cerca de 24% dos votos totais do país,
quase metade dos 42% dos socialistas revolucionários, que teriam
maioria na Assembleia Constituinte (52% da representação) em
aliança com os socialistas revolucionários de esquerda e os menche-
viques. Ao contrário da votação dispersa dos camponeses no vasto
território russo, os bolcheviques ostentavam uma maioria indiscu-
tível na população das cidades, que concentravam a classe operá-
ria, e entre os soldados da frente de combate. Em Moscou, os
bolcheviques contaram com quase 48% dos votos contra apenas
8% do que alcançaram os socialistas revolucionários.
A dissolução da Assembleia Constituinte, em janeiro de 1918,
impondo a hegemonia do partido bolchevique, foi o verdadeiro
marco divisório da história da Rússia e, em grande parte, do
mundo, pelas implicações da futura potência soviética nas rela-
ções internacionais. Aos poucos, as outras organizações partidá-
rias foram jogadas na ilegalidade e os jornais de oposição foram
proibidos e perseguidos. Ao mesmo tempo em que negociava um
acordo de paz com a Alemanha, assinado em março de 1918
(pouco depois da dissolução da Constituinte), o Governo Bolchevi-
que se isolava politicamente dos socialistas revolucionários, dos
mencheviques, dos liberais e de grupos anarquistas.
Rompido com estas outras forças socialistas, o Governo
Bolchevique foi atacado, em várias frentes, pelo Exército Branco,
formado por nobres, oficiais monarquistas e cossacos, afundando
o ex-império russo numa violenta guerra civil. Desta forma, a
guerra com as potências ocidentais foi substituída por uma não
menos violenta e insensata guerra interna entre as forças políti-
cas de diversas tendências, impedindo a recuperação e o desen-
volvimento econômico e social da Rússia.

2 Os dados não são muito precisos e apresentam diferença, a depender da fonte,


mas sem alterar as proporções da votação dos diferentes partidos.

162 Sérgio C. Buarque


O que seguiu é conhecido de todos. Mas, poderia ter sido
diferente? Qual teria sido a história da Rússia e do mundo se o
Partido Bolchevique, mesmo minoritário, tivesse mantido a
Assembleia Constituinte e aceito os resultados dos seus traba-
lhos que, muito provavelmente, consolidaria a república demo-
crática e avançaria em algumas reformas moderadas? E se o
Governo Provisório tivesse se antecipado à insurreição de outu-
bro, convocando as eleições para a Constituinte, e aberto as
negociações de paz com a Alemanha?
Dois grandes líderes mencheviques, Julius Martov e Paul Axel-
rod, vinham insistindo, desde abril, para que o Governo Provisório
abrisse negociações de paz com as potências ocidentais. Ao contrá-
rio disso, em meados de 1917, o primeiro ministro Alexander
Kerenski lançou nova ofensiva na frente de combate, aumentando
a indignação e provocando insubordinação dos soldados.
Com as “jornadas de julho”, espontâneas manifestações
contra o Governo Provisório de uma população indignada com a
guerra, o desabastecimento e a fome, a situação se agravou
dramaticamente. Crise ministerial, desgaste do Governo Provi-
sório, tentativa de golpe militar de direita e intensificação dos
preparativos da insurreição pelos bolcheviques, acentuam o
caos e a desordem política e social. Embora os bolcheviques
tenham sido atropelados pela iniciativa dos soldados e operá-
rios, o Governo Provisório radicalizou mandando prender os
seus principais dirigentes (Trotsky foi preso; Lenin e Kamenev
tiveram que fugir para não ser aprisionados).
Os bolcheviques sabiam que o futuro da revolução na Rússia
dependia dos movimentos socialistas na Europa central e ociden-
tal, principalmente na Alemanha, onde o Partido Socialdemocrata
tinha grande influência política. Como a Rússia, a Alemanha
sofria as consequências nefastas da guerra em duas frentes de
combate, grande efervescência política que levou ao fim da monar-
quia de Guilherme II e à implantação da República de Weimar. As
forças socialistas também se dividiram na Alemanha entre refor-
mistas e revolucionários, o Partido Socialdemocrata, por um lado,
e a sua fração de esquerda liderada por Rosa Luxemburgo e Karl
Liebknecht (espartaquistas), por outro. Inspirada na revolução
russa de outubro, os espartaquistas realizaram, em novembro de
1918, uma insurreição fracassada, acabando com as esperanças
de Lenin e Trotsky de uma revolução na Alemanha para fortalecer
o projeto socialista na Rússia.

A encruzilhada da revolução 163


A República de Weimar se consolidou sob a liderança refor-
mista do Partido Social-Democrata, ao mesmo tempo em que os
mencheviques e socialistas revolucionários russos perdiam o
poder com a dissolução da Assembleia Constituinte. Se a derrota
dos espartaquistas na Alemanha enfraqueceu o governo bolchevi-
que, a frágil República de Weimar ganharia força se, na Rússia, a
Assembleia Constituinte tivesse iniciado um processo de constru-
ção de uma democracia social. Ao longo de 1917 e 1918, os dois
países – Rússia e Alemanha – viviam processos semelhantes de
convulsão social e avanço dos partidos socialistas, que poderiam
ter evoluído para repúblicas democráticas e reformistas ou para
governos socialistas autoritários no estilo bolchevique.
Diante da encruzilhada histórica, cada país terminou esco-
lhendo um caminho diferente que, no futuro, se transformou em
aberta rivalidade. Rivalidade que cobrou um alto preço social nos
dois países. Enquanto a dissolução da Constituinte na Rússia
levou a uma ditadura voluntarista que, mais tarde, esmagou os
opositores e críticos e massacrou os camponeses, o fracasso da
República de Weimar, na Alemanha, abriu caminho para o
nazismo. Na década de 30 do século passado, quase ao mesmo
tempo, Hitler assumiu o poder na Alemanha e Stalin implantou o
terror na União Soviética. A social-democracia voltou a se instalar
na Alemanha apenas depois da segunda guerra mundial, e o
desmonte da União Soviética, na virada da década de 90, deu
margem a um capitalismo de Estado com governo autoritário.
Se, ao contrário do movimento real da história, a Assembleia
Constituinte na Rússia tivesse formado um governo democrático e
social – aliança dos bolcheviques com os socialistas revolucioná-
rios, mencheviques e liberais – ao mesmo tempo em que a Repú-
blica de Weimar tivesse se consolidado com a liderança do Partido
Social-Democrata, o mundo seria outro. O socialismo democrático
teria emergido mais cedo nos dois países, evitando o stalinismo na
Rússia e o nazismo na Alemanha, ganhando reconhecimento e
respeitabilidade pela combinação de democracia com Estado de
Bem-Estar Social. Provavelmente, o mundo teria sido poupado da
guerra fria que dominou a geopolítica mundial em quase todo o
século 20, incluindo o “equilíbrio do terror” nuclear.
A história tem esses descompassos e descontinuidades que
refletem as circunstâncias de cada país e suas lideranças políti-
cas sempre muito desiguais.

164 Sérgio C. Buarque


Legados do comunismo?
Nacionalismo e Estado autoritário

Silvio Pons1

“O
comunismo não deixou nenhuma herança ideal ou
cultural, nem mesmo no Ocidente. Mas, na China
contemporânea, vemos em ação a sua herança princi-
pal: a capacidade de dirigir a modernização como obra do Estado”.
Com Silvio Pons, presidente da Fundação Instituto Gramsci de
Roma e um dos maiores estudiosos europeus do comunismo sovi-
ético e ocidental (entre outras obras, é um dos organizadores de
uma monumental coleção Cambridge History of Communism,
recentemente publicada, em três volumes), discutimos o centená-
rio da revolução bolchevique, completado recentemente. (Andrea
Romano, Democratica, 2 nov./2017).
Andrea Romano – Naquele dia 7 de novembro de 1917, em
Petrogrado, verificou-se o nascimento de uma experiência histó-
ria complexa e dramática. Hoje, o que podemos dizer que foi, para
o bem ou para o mal, a herança histórica do comunismo?
Silvio Pons – Quando caiu o comunismo soviético, entre 1989
e 1991, o senso comum (intelectual, político e histórico) era que
aquele colapso não havia deixado nenhuma herança. François
Furet, no seu trabalho fundamental O passado de uma ilusão,
escreve que se a Revolução Francesa havia deixado um patrimô-
nio institucional e cultural muito além dos limites franceses, o
mesmo não se poderia dizer do comunismo.

1 Professor de História da Europa Oriental na Universidade de Roma Tor Vergata


e diretor da Fundação Instituto Gramsci.

165
Hoje, ao contrário, devemos levar em conta que as coisas não
são assim. A permanência da China comunista, como quer que a
definamos, nos obriga a ver a continuidade desses regimes, mesmo
no novo século. É obvio que a China abandonou a organização
econômica de tipo socialista e atualmente representa uma econo-
mia capitalista integrada à economia mundial, mas a sua concep-
ção de Estado e a capacidade de dirigir a modernização por meio
da máquina estatal derivam diretamente do comunismo. Para o
bem ou para o mal, é esta a principal herança do comunismo.
Isso se vê também na Rússia de Putin, onde a herança do
comunismo soviético é subterrânea, mas não menos forte. Se
Putin é o novo czar, como agora é moda dizer, a referência do seu
autoritarismo estatal não é Nicolau II, mas diretamente Stalin, ou
seja, uma ideia de Estado com uma precisa fisionomia naciona-
lista, em continuidade com o comunismo soviético. Por outro lado,
à capacidade de modernização autoritária, dirigida pelo Estado
na China e parcialmente na Rússia, corresponde a ausência de
qualquer legado cultural. Hoje, não existe em nenhuma formação
da esquerda mundial uma herança ideal específica de derivação
comunista: a aspiração à igualdade e à emancipação já era patri-
mônio do movimento socialista e não se pode definir certamente
como produto do comunismo.
AR – Mas se poderia falar de um legado específico do comu-
nismo ocidental?
SP – Tudo o que ocorreu, depois do fim da guerra fria, demonstra
que o comunismo ocidental nunca representou um sujeito significa-
tivo, incisivo e identificável como tal. Só vale a pena refletir sobre a
Itália, único país onde o comunismo europeu deixou uma marca
nacional. Aqui, o pós-comunismo constituiu um protagonista da
segunda república, com todos os seus limites, e um recurso da
democracia italiana, sobretudo se considerarmos a defesa das insti-
tuições republicanas e os valores da integração europeia e suprana-
cional. Mas não é casual que esse legado não tenha se traduzido
tanto na capacidade de dar vida a verdadeiros sujeitos políticos
quanto na obra e no testemunho de algumas personalidades, entre
as quais a principal me parece a de Giorgio Napolitano.
AP – Eric Hobsbawm sustentava que, se o comunismo não
alcançou os seus objetivos, certamente obrigou o capitalismo a
se renovar.
SP – É uma afirmação que tem certamente fundamento, no
sentido de que, no curso do século 20, seguiu-se ao medo do

166 Silvio Pons


comunismo uma competição que criou uma interação entre capi-
talismo e comunismo. Da mesma forma, é indiscutível que, depois
da experiência da Grande Depressão, o capitalismo se reformou
inclusive sob influência direta do comunismo. Por outro lado, se
considerarmos a segunda metade do século 20 e, consequente-
mente, a fase da mais poderosa e abrangente reforma do capita-
lismo, veremos que as forças que construíram os sistemas de
welfare state eram precisamente aquelas socialdemocracias que o
comunismo havia combatido com grande violência. E aqui emerge
todo o limite do comunismo, a média e longa distância.
AP – A Revolução de Outubro viu irromper, na cena da histó-
ria, massas que antes eram mantidas à margem. A partir disso,
podemos ainda extrair algumas sugestões para o nosso presente,
marcado por uma discussão sobre o papel dos “sujeitos invisíveis”
na afirmação dos populismos?
SP – O comunismo do século passado respondeu à urgência
de uma política de massas, realizando uma socialização autori-
tária sob as promessas de progresso social e de emancipação.
Hoje, em relação ao século 20, a diferença principal é que a
dimensão do individualismo prevalece e tira o espaço das repre-
sentações coercivas da emancipação coletiva. Nesta nova dimen-
são da política de massas, em que o único elemento de integra-
ção é a sociedade de consumo, não vemos respostas igualmente
eficazes quanto à capacidade de integrar, pela força, massas
anônimas e excluídas. Não conseguem fazê-lo nem mesmo na
Rússia, de Putin, ou na China, de Xi, concentradas antes na sua
modernização do que na socialização.
AP – Vamos tentar, em conclusão, um exercício de história alter-
nativa. Sem o golpe de mão bolchevique de 7 de novembro de 1917, a
Rússia poderia ter tido outra evolução econômica e política?
SP – Responderia citando Max Weber que, em abril de 1917 (e,
portanto, muito antes de outubro), escreveu que a Rússia pare-
cia orientar-se para alguma forma de autoritarismo tradicional
ou socialista. Retrospectivamente, é difícil imaginar um cami-
nho diverso para a Rússia de 1917-1918, porque por certo havia
em seu interior áreas muito avançadas do ponto de vista indus-
trial ou cultural, mas a permanência radical de duas sociedades
contrapostas pressionava por si só para uma conflagração de
resultados autoritários. Por outro lado, a história alternativa
poderia ser aplicada também ao período 1989-1991: se o sistema
soviético não tivesse desmoronado e se tivessem prevalecido

Legados do comunismo? Nacionalismo e Estado autoritário 167


outras opções, por parte de algum componente da elite comu-
nista mais consciente da fragilidade da URSS (penso, por exem-
plo, em Iuri Andropov), a Rússia comunista talvez pudesse ter
seguido o percurso que depois seria seguido pela China. Mas
esta é uma outra história.
Fonte: Esquerda Democrática & Gramsci e o Brasil.
Tradução: Alberto Aggio

168 Silvio Pons


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