100+anos+da+Revolução+Russa+PD ESPECIAL
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DA
REVOLUÇÃO
RUSSA
Fundação Astrojildo Pereira
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Política Democrática
Revista de Política e Cultura
www.políticademocratica.com.br
Conselho de Redação
Editor Executivo Alberto Aggio George Gurgel de Oliveira
Francisco Inácio de Almeida Anivaldo Miranda Giovanni Menegoz
Caetano E. P. Araújo Ivan Alves Filho
Davi Emerich Luiz Sérgio Henriques
Dina Lida Kinoshita Raimundo Santos
Conselho Editorial
100
REVOLUÇÃO
ANOS
DA
RUSSA
Dezembro/2017
Apresentação
P
or sugestão de um de seus membros e por deliberação quase
unânime, os Conselhos de Redação e Editorial da Revista
Política Democrática organizaram esta edição especial para
relembrar e comemorar os 100 anos da Revolução Russa, um dos
maiores acontecimentos do século XX.
Trata-se de uma rica oportunidade não apenas de tornar
conhecido ou relembrar um momento histórico dos mais destaca-
dos do século passado, para as gerações que viveram suas conse-
quências, para as atuais e para as vindouras, graças aos resulta-
dos altamente positivos que promoveu na sociedade humana, em
diferentes lugares do planeta, assim como também pelos erros e
equívocos cometidos junto à sociedade soviética e à de outros
lugares do planeta.
Os autores, que colaboram com seus ensaios aqui expostos, se
revelam muito honestos em destacar a verdade sobre o primeiro
centenário de uma das maiores façanhas revolucionárias ocorri-
das no mundo, abordando seus aspectos mais ricos e variados,
assim como procuram evitar uma visão de vertente religiosa, de
que só teriam ocorrido acertos e nenhum erro na sua construção
e na sua expansão. Trata-se de um amplo e rico material a ser
lido e discutido, amplamente
No tocante aos aspectos positivos, eles podem ser resumidos
não apenas no que diz respeito ao espaço geográfico da Rússia
monarquista, que se tornou - com a chegada ao poder dos bolche-
viques - uma das maiores potências políticas e econômico-finan-
ceiras, em muito pouco tempo, sendo responsável principal pelas
vitórias positivas obtidas pelas forças progressistas, no desfecho
tanto da I como da II Guerra Mundial, ambas tendo como palco o
território da Europa.
Graças à existência da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS), e sob sua inspiração, foram enfrentadas e
derrotadas as forças coloniais e imperialistas, pondo-se fim ao
desumano e escravagista sistema colonial, que era comandado
sobretudo pela Grã-Bretanha, França e Estados Unidos, particu-
larmente nos continentes africano e asiático, e em algumas áreas
das Américas.
5
No plano político, particularmente no de caráter ideológico, a
URSS estimulou e deu assistência na construção dos Partidos
Comunistas, que foram surgindo em diferentes regiões do planeta,
como o nosso PCB, fundado em março de 1922, por um variado
grupo de nove intelectuais e lideranças sociais, à frente Astrojildo
Pereira, e envolvendo pessoas com as mais variadas posturas,
desde o marxismo, passando pelo trotskismo, anarquismo etc.
É importante ressaltar que, nas análises a seguir expostas,
seria recomendável nos concentrar – considerando a importância
para a continuidade da nossa batalha diária por uma sociedade
mais democrática e mais justa – nos erros que foram sendo come-
tidos por nossas lideranças russas, não apenas no processo de
conquista do poder, mas particularmente nas ações para se cons-
truir a nova sociedade, sem donos e patrões.
Destaque-se também, e como um elemento central, mas que
foi posto de lado – a democracia, subestimada como uma faceta
decisiva para quem quer construir uma nova sociedade. Não só o
nosso querido Vladimir Ilitch, o Lênin, como outros líderes desse
rico e exemplar processo político, foram se deixando envolver em
desvios que, com o tempo, foram se apresentando e revelando
suas funestas consequências, como bem demonstradas logo após
a ascensão de Josef Stálin, sobretudo no que diz respeito às liber-
dades e à importância da direção coletiva.
Dois momentos que precisam ser melhor estudados e dos
quais, lamentavelmente, não tivemos tempo de obter material
para exposição nestas páginas e para aprofundamento no debate,
se referem aos períodos e atitudes dos líderes soviéticos Nikita
Kruschëv, nos anos 1950 e 1960, e de Michail Gorbachëv, nos
anos 1980. Vamos continuar nossa pesquisa.
Boa leitura e bons debates!
Os editores
6
Sumário
Claudio de Oliveira1
J
ulius Martov foi uma das mais proeminentes personagens
da Revolução Russa de 1917. Líder dos internacionalistas,
facção de esquerda dos mencheviques, ele se opôs à partici-
pação dos socialistas nos governos provisórios após a Revolução
de Março e a abdicação do czar Nicolau II.2 Foi também contrário
à permanência da Rússia na I Guerra Mundial. A continuidade no
conflito agravou a crise econômica do país e a insatisfação popu-
lar abriu caminho para a Revolução de Novembro, quando, então,
os bolcheviques tomaram o poder, liderados por Vladimir Lenin.3
No dia 8 de novembro, dia seguinte à insurreição, durante o 2º
Congresso dos Sovietes – os conselhos de representantes de
operários, camponeses, soldados e marinheiros – Martov propôs a
formação de um governo de união de todas as correntes do socia-
lismo russo para evitar que o país mergulhasse no caos. Para
desespero de Martov, a maioria dos mencheviques e socialistas
revolucionários se retirou do encontro em protesto contra o
levante. O gesto dificultou a negociação apoiada por líderes
bolcheviques como Grigori Zinoviev e Lev Kamenev. No entanto, a
resposta da maioria bolchevique à proposta veio de Leon Trotski:
1 Jornalista e cartunista.
2 Mencheviques – ala moderada do Partido Operário Social Democrata Russo,
banido em 1921.
3 Bolcheviques – ala radical do Partido Operário Social Democrata Russo que, a
partir de 1918, denominou-se Partido Comunista.
9
As massas populares seguiram nosso estandarte e nossa
insurreição é vitoriosa. E agora nos dizem: Renunciem à vitó-
ria, façam concessões, cedam. A quem? Eu pergunto: a estes
grupos deploráveis que nos abandonaram ou a quem apresenta
tal proposta? [...] Ninguém na Rússia continua ao lado deles.
Um acordo só pode ser firmado entre partes iguais [...]. Mas
aqui não há acordo possível. Àqueles que nos deixaram e àque-
les que nos aconselham a transigir, respondemos: Vocês são
corruptos miseráveis, sua função acabou; vão para onde devem
ir – para a lata de lixo da história.
4 Partido Socialista Revolucionário – banido durante a guerra civil. A ala direita foi
acusada de apoiar o Exército Branco. A ala esquerda, inicialmente participou do
governo soviético, porém foi excluída ao se opor ao Tratado de Brest-Litovsky, de
paz com a Alemanha.
5 Trudovique — membro do Partido Trabalhista, dissidência do Partido Socialista
Revolucionário, surgido em 1905 e desintegrado após a Revolução de Novembro.
10 Claudio de Oliveira
Israel Getzler (1920-2012), professor da Universidade de Jerusa-
lém, e continua inédita no Brasil.
A questão democrática
A obra de Getzler traz as polêmicas entre Martov e Lenin, como
a de 1903, durante o 2º Congresso do Partido Operário Social
Democrata Russo (POSDR), sobre a organização do partido: se diri-
gido por um comitê centralizado, mas aberto à filiação de todos os
que aderissem ao seu programa, como defendido por Martov, ou se
por um círculo composto exclusivamente de revolucionários profis-
sionais, como queria Lenin. A proposta vencedora foi a de Martov.
O livro relata a ação posterior de Lenin para alcançar a maioria,
pois, mesmo vencendo no Congresso, Martov e seus partidários
ficaram em minoria no Comitê Central, o que causou a divisão do
POSDR em duas alas: mencheviques (partidários da minoria, em
russo) e bolcheviques (partidários da maioria).
A discussão sobre a forma de organização partidária revelava
duas questões de fundo que marcarão todas as divergências
entre Martov e Lenin: a avaliação que faziam do nível de desen-
volvimento econômico da Rússia e a concepção de cada um sobre
o Estado e a democracia. Lenin acreditava que o capitalismo
estava suficientemente desenvolvido para uma revolução socia-
lista e defendia um governo forte e centralizado – a ditadura do
proletariado. Martov avaliava que o país não estava suficiente-
mente industrializado, possuía um operariado pequeno e uma
grande massa de camponeses analfabetos. Propunha uma estra-
tégia democrática e reformista, como já praticada por socialistas
franceses e alemães.
Tais diferenças ficarão profundamente marcadas com a
chegada dos bolcheviques ao poder, quando os conceitos de demo-
cracia e ditadura do proletariado serão alvos de controvérsias
entre Lenin, Martov e Karl Kautsky, influente teórico do Partido
Social Democrata Alemão. Para estes dois últimos, a democracia
era um valor intrínseco ao ideário socialista. Para Lenin, apenas
uma formalidade. A visão leninista justificou a dissolução da
Constituinte e a repressão a todos os adversários, dos liberais aos
socialistas, como Martov.
Outra polêmica se estabeleceu a partir de 1914, com o início da
I Guerra Mundial e o colapso da II Internacional, a organização que
congregava os partidos socialistas europeus, dissolvida em 1916.
12 Claudio de Oliveira
tuinte, protestar contra o esvaziamento dos poderes dos sovietes
e lutar para transformá-los em órgão de poder democrático e
parlamentar. Apesar de então se opor à contrarrevolução, o
partido menchevique sofreu a repressão dos bolcheviques, alter-
nando momentos de legalidade, proscrição e semiclandestinidade,
até ser definitivamente banido em 1921, ao defender as reivindica-
ções da revolta dos marinheiros bolcheviques do Kronstadt.
O jornal menchevique Avante foi fechado várias vezes. O próprio
Martov ficou em prisão domiciliar por cinco dias, e só teria esca-
pado da repressão da Tcheka, a polícia secreta que antecedeu a
KGB, por proteção de Lenin. Na ocasião da proscrição do POSDR,
Martov estava na Alemanha para tratamento de saúde.
A terceira via
Em 1920, Martov foi autorizado a deixar a Rússia para trata-
mento de saúde na Alemanha e participar da convenção do Partido
Independente Social-Democrata Alemão (cuja sigla em alemão era
USPD), na cidade de Halle. Naquele ano, o USPD havia sido o
segundo partido mais votado, com 17,9% dos votos, abaixo apenas
do governante Partido Social-Democrata, o SPD, que conquistara
21,7%. Martov fora convidado pelos moderados do USPD para
convencer os socialistas alemães a não aderirem à Internacional
Comunista (IC), a III Internacional, criada em 1919 por Lenin, e
que estimulou os radicais dos partidos socialistas a fundarem os
partidos comunistas. Para fazer o contraditório com Martov, a ala
esquerda do USPD convidou o presidente da IC, Grigori Zinoviev.
Com a saúde abalada e a voz fraca, Martov não conseguiu termi-
nar o seu discurso, lido então por um dos presentes. A proposta
de adesão à IC ganhou o apoio de 236 contra 150 dos convencio-
nais e a ala esquerda aderiu ao PC alemão. Porém, três quartos
da bancada de 81 deputados permaneceram no USPD.
Como resultado da intervenção de Martov, o USPD se articulou
com o Partido Social-Democrata Operário da Áustria e outros para
fundarem, em janeiro de 1921, a União de Partidos Socialistas para
a Ação Internacional, conhecida também como a Internacional de
Viena ou a Internacional Dois e Meio, que buscou uma via interme-
diária entre o comunismo da III Internacional e a socialdemocracia
da II Internacional. Martov fez parte da direção da Internacional de
Viena ao lado de líderes socialdemocratas da Áustria, como Otto
14 Claudio de Oliveira
Bauer. Chamados de austromarxistas, o programa de reformas
sociais e econômicas dos socialdemocratas austríacos influenciará
posteriormente na constituição do Estado do Bem-Estar Social nos
países escandinavos. E também inspirará, na década de 1970,
Enrico Berlinguer, secretário-geral do PC italiano, a formular o
eurocomunismo, com o qual reconhece a democracia como valor
universal e oficializa o rompimento dos comunistas italianos com o
modelo soviético. A Internacional de Viena existiu até 1923, quando
se fundiu à II Internacional, reorganizada em 1920, para criar a
Internacional Operária e Socialista.
Martov morreu na Alemanha em abril de 1923, meses antes
de completar 50 anos de idade, vítima de tuberculose. Em 1922,
Lenin havia sofrido um primeiro acidente vascular cerebral.
Afastado do poder, agora sob o mando de Stalin, paralisado do
lado esquerdo e com dificuldades de falar, Lenin teria tentado se
reconciliar com Martov. Em cadeira de rodas, costumava apon-
tar para livros de Martov em sua estante e pedia que um moto-
rista o levasse até ele. Geztler cita Reminiscências de Lenin,
livro de memórias de Nadezhda Krupskaya, mulher do fundador
da União Soviética, para descrever o abatimento dele ao receber
a notícia da gravidade da doença do antigo amigo e camarada:
“Vladimir Ilyich estava seriamente doente quando me falou certa
vez com muita tristeza: ‘Dizem que Martov está morrendo
também’”. Lenin morreu em janeiro de 1924 aos 53 anos, menos
de um ano depois de Martov.
No Brasil, a inexistência de obras de e sobre Martov contrasta
com a profusão de biografias e de livros de autoria de Lenin,
sustentando a persistência da influência do leninismo em parce-
las expressivas da esquerda brasileira. Num momento em que
setores esquerdistas na América Latina flertam com soluções
autoritárias, o resgate de Martov e de suas ideias democráticas
talvez fosse útil ao debate público.
Referências
FIGES, Orlando. A tragédia de um povo. A Revolução Russa 1891-
1924. Rio de Janeiro: Record, 1999.
Getzler, Israel. Martov – A Political Biography of a Russian Social
Democrat. Cambridge Univesity Press/Melbourne University Press,
2003.
O anarquismo no Brasil
Embora houvesse lutas sociais e revoltas de escravos desde o
Brasil Colônia, e uma greve memorável de gráficos, no Rio de
Janeiro, em 1852, um movimento operário, ainda que incipiente,
começou a se organizar logo após ser abolida a escravidão em
1888, e a proclamação da República, no ano seguinte.
Último país da América a abolir a escravidão, até esta data,
praticamente não havia mão de obra livre no Brasil, essencial-
mente agrário. As primeiras levas de imigrantes europeus chega-
ram na década de 80 do século 19 para substituir a mão de obra
escrava nas lavouras cafeeiras, bem como para estabelecer um
novo tipo de produção agrícola nas colônias do Paraná, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul. Estes imigrantes chegaram de
vários países europeus: poloneses, lituanos e ucranianos do Impé-
rio da Rússia czarista, Alemanha, Itália e Espanha entre outros.
Os imigrantes destes dois últimos países se estabeleceram com
maior facilidade, uma vez que existiam maiores afinidades linguís-
ticas e religiosas. Entre italianos e espanhóis havia um grande
contingente de anarquistas e os italianos chegaram a estabelecer
colônias (KUPPER, 1993), e também passaram a influenciar o
movimento operário no seu nascedouro. Embora já houvessem
pequenos círculos de “socialistas vulgares” entre a intelectuali-
17
dade brasileira, desde a segunda metade do século 19, o movi-
mento anarquista se espraiou pelo país, publicando jornais
(SODRÉ, 1966), e organizando sindicatos e centros operários, com
o que adquiriu grande expressão. Em 1906, foi organizado um
grande Congresso, que deu origem à Confederação Operária Brasi-
leira (COB), em 1908. No entanto, não havia nenhuma preocupa-
ção em organizar um partido devido a princípios ideológicos.
Com a eclosão da I Guerra Mundial (1914-1918), o Brasil teve
sua primeira industrialização de “substituição de importações”,
uma vez que os tradicionais fornecedores europeus não tinham
mais como suprir os produtos necessários ao consumo brasileiro.
Isto acarretou um expressivo crescimento numérico da classe
operária e as ideias anarquistas tinham uma grande penetra-
ção, apesar da repressão ferrenha do poder estabelecido. Entre-
tanto, “os anarquistas continuavam rejeitando a luta política do
proletariado, dirigindo-a para o plano eminentemente econô-
mico” (Bandeira, 1967). Este ciclo de movimento operário e
sindical teve seu auge em 1917, quando os anarquistas estavam
na linha de frente do proletariado, num contexto em que a I
Guerra Mundial agravou as condições de vida das massas brasi-
leiras. “Os gêneros alimentícios sumiram do mercado. Os
aluguéis atingiram níveis proibitivos. Fecharam-se as pequenas
operações de crédito. Os agiotas pululavam nas portas das fábri-
cas e nas repartições públicas. Os industriais agravavam ainda
mais as condições de trabalho do proletariado. Os comerciantes
estocavam mercadorias aguardando melhores preços ou condi-
ções de aumentá-las” (Bandeira, 1967). Tudo isto gerava uma
enorme revolta e a eclosão de movimentos grevistas em todos os
Estados importantes do país. Apesar do denodo e heroísmo dos
anarquistas, estes não possuíam suficiente organização e todo o
movimento entrou em colapso.
No entanto, é preciso notar que práticas anarquistas são
ressuscitadas pelo PT e entidades sociais vinculadas a este
partido. Como exemplos pode-se citar a luta sindical, meramente
por melhorias salariais, sem se dar conta das mudanças acarre-
tadas pela globalização e pela Revolução Técnico Científica, além
de ser contrário a mudanças de uma legislação trabalhista
copiada da Carta del Lavoro do fascismo italiano ou das escolas
do Movimento dos Sem Terra (MST), que se parecem com as
“colmeias” (La Ruche) dos anarquistas franceses do passado.
Fundação do PCB
Diferentemente dos países do Cone Sul da América Latina, as
ideias marxistas chegaram tardiamente ao Brasil. Nunca houve
um partido socialista expressivo no país, como os partidos socia-
listas do Uruguai, Argentina ou Chile, fundados em fins do século
19 ou nos primórdios do século 20. Mesmo sem raízes nos movi-
mentos sociais organizados, somente no II pós-guerra, em 1947, é
que surgiu no Brasil um Partido Socialista que se mantém até hoje.
Mas foram intelectuais anarquistas brasileiros que se deram
conta dos motivos do colapso. Astrojildo Pereira, um ex-anar-
quista, um dos fundadores do PCB, constata: “As grandes greves e
agitações de massas do período de 1917/20 puseram a nu a inca-
pacidade teórica, política e orgânica do anarquismo para resolver
todos os problemas de direção de um movimento revolucionário de
envergadura histórica, quando a situação objetiva do País (em
conexão com a situação mundial criada pela guerra imperialista
de 1914/18 e pela vitória da Revolução operária e camponesa na
1932. Assistiu à reunião da SSA da IC, em Buenos Aires, onde foi criticado por
“divulgar a teoria da revolução democrática pequeno-burguesa”, em 1930.
Referências
ALMEIDA, F. I. (Org), O último secretário – as lutas de Salomão
Malina. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2002.
BANDEIRA, M.; Melo, C.; Andrade, T. O ano vermelho – a Revolução
Russa e seus reflexos no Brasil, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1967.
BRANDÂO, G. M. A esquerda positiva: as duas almas do Partido
Comunista –1920/1964. São Paulo: Hucitec, 1997
CARONE, E. Uma polêmica nos primórdios do PCB: o incidente
Canellas e Astrojildo in: Memória e História. São Paulo: E.L. Ciências
Humanas, 1981.
CARONE. E. O Estado Novo (1937-1945). São Paulo/Rio de Janeiro:
Difel, 1977.
CARVALHO, A. Vale a pena sonhar. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
DULLES, J. W. F. O comunismo no Brasil, 1935-1945: repressão em
meio ao cataclismo mundial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985
GROL, T., Gueshtaltn un Perzenlikhkeitn in der idisher un veltlekher
gueshikhte. Paris: E. do Autor, 1976.
JEIFETS L.; JEIFETS V. L. América Latina en la Internacional
Comunista. Diccionario biográfico. Santiago de Chile: Laguna, 2015.
KUPPER, A. Colônia Cecília, uma experiência anarquista, São Paulo:
FTD AS, 1993.
MALINA, S. Última entrevista concedida por Malina, a Eduardo
Rocha. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2002.
O Manifesto de Agosto. Encarte do jornal A Classe Operária, agosto
de 1950.
PEREIRA, A. Formação do PCB. Rio de Janeiro: Vitória, 1962.
Ernesto Caxeiro1
A
narrativa dos acontecimentos da Revolução mostra a distor-
ção da utopia. Por ela vemos quais as razões que distorce-
ram o ideal da revolução, ou como a utopia se perverteu.
A base da discussão para os descaminhos da Revolução Russa
já está, de há muito, estabelecida, nas cartas trocadas por Marx e
Engels com os narodniks russos (populistas), publicadas no livro
de Michel Lowy, As Lutas de Classe na Rússia. A mínima conclusão
de que se pode ter desta troca é que não há nenhuma, quer dizer,
nenhuma afirmação quanto à sua legitimidade. A dúvida persiste
na cabeça dos fundadores do comunismo moderno. Ora Marx diz
ser possível ora Engels a condiciona à revolução no Ocidente.
Tal discussão era conhecida por Lenin e Trotsky, quando a
revolução eclodiu e como nos mostra Luciano Gruppi no livro
O Pensamento de Lenin, publicado nos anos 80 do século passado,
este último passou-se de “malas e bagagens” para a concepção de
revolução permanente de Trotsky, como se esta fosse uma inova-
ção em relação ao pensamento de Marx e Engels.
Mas a concepção de Trotsky revela, num período em que os
escritos de juventude e mesmo as cartas com os narodniks não
eram conhecidos bem, o conhecimento mais profundo dos funda-
mentos do comunismo de Marx e Engels por parte do compa-
nheiro de Lenin. Num livro de 1903, Trotsky disse que o futuro da
33
Revolução dependia da classe operária, a qual foi estimada por ele
em 2 milhões e 500 mil pessoas, em seu livro A Revolução Russa.
Como diz José Paulo Netto, no texto “O que é stalinismo”, a
classe operária praticamente se reduziu a nada, no período da
guerra civil, de 1918 a 1919, e depois nos esforços de levar a Revo-
lução ao Ocidente, através da Hungria (Bela Kun) e através da
Polônia, via Guerra Russo-Polonesa, em 1920, dentro daquele
desembarque citado por Gruppi.
No âmbito da construção da URSS, em 1922, Lenin quis
manter o espírito internacionalista associando a Rússia a outras
repúblicas, em termos de igualdade, pensando assim em ferir de
morte o chauvinismo grão-russo. Para isto e como sua base social,
estabeleceu uma aliança operário-camponesa, que já não corres-
pondia muito bem à realidade social.
Como efeito desta destruição da classe fundamental da “revo-
lução proletária” e também pela constatação da não adesão clara
do campesinato, desde 1918 até 1929 (e além), os líderes bolchevi-
ques foram aconselhados por outros partidos comunistas da
Europa Ocidental a fazer uma transição, uma vez que a sua base
social não existia. Isaac Deutscher em seu O profeta armado,
sobre a participação de Trotsky na Revolução, cita uma das
primeiras destas sugestões.
Bordiga, em uma carta, se referiu à proposta dos comunistas
austríacos. Numa carta ao austro-marxista Korsch, ele diz:
Por exemplo, o seu "modo de se exprimir" sobre a Rússia
parece-me incorreto. Não se pode dizer que "a revolução russa
é uma revolução burguesa". A Revolução de 17 foi uma revolu-
ção proletária, se bem que seja um erro generalizar suas lições
"táticas". Agora, coloca-se o problema: que acontecerá com a
ditadura do proletariado num país se não houver a sequência
da revolução nos outros países? Pode acontecer uma interven-
ção externa, pode acontecer uma continuidade degenerada
cujos sintomas e reflexos dentro dos partidos comunistas
precisamos descobrir e definir.
E depois:
Não se pode dizer simplesmente que a Rússia é um país onde
se expande o capitalismo. A coisa é muito mais complexa:
trata-se de novas formas da luta de classes que não têm prece-
dentes históricos; trata-se de demonstrar como qualquer
concepção das relações com a classe média, sustentada pelos
34 Ernesto Caxeiro
stalinistas, é uma renúncia ao programa comunista. Parece-
me que você exclui a possibilidade de uma política do Partido
Comunista russo que não equivalha à restauração do capita-
lismo. Isto equivaleria a dar uma justificativa a Stálin ou a
sustentar a política inadmissível de "demitir-se do poder".
É necessário, ao contrário, dizer que uma política correta e
classista na Rússia teria sido possível sem a série de graves
erros de política internacional cometidos por toda a "velha
guarda leninista" junta. (grifo meu).
36 Ernesto Caxeiro
inimigas da Revolução. Daqui, a discussão se deu entre o controle
do Estado e este controle com a liberdade econômica. Para fazer a
transição ao socialismo, era preciso acumular, produzir, mas divi-
dir, segundo o Estado de orientação comunista, pela população.
O discípulo dileto de Lenin, Bukharin, tentou uma alterna-
tiva que era uma relativa continuação da NEP, enquanto que
Stalin e Trotsky cada vez mais apoiavam uma intervenção do
Estado na economia. Desta discussão nascerá a hegemonia do
stalinismo, a divisão do partido bolchevique (criticada, em uma
carta, por Gramsci).
Na medida em que a situação piorou, as hesitações de Trotsky
o prejudicaram. Além do mais, o camponês atacava progressiva-
mente os bolcheviques e Stalin usou este fato para fazer o mais
simples: forçar, pelo alto, a coletivização e implantar a partir daí
o seu poder. De 1928 (quando Trotsky e os trotskistas foram
exilados) a 1933, incluindo aí a questão da Ucrânia, Stalin foi de
uma ditadura simples para o culto à personalidade, que é a
forma de seu totalitarismo.
Para um artigo sobre a Revolução Russa é importante concluir
aqui até onde ela foi realmente Revolução. A Revolução Francesa
parece ter acabado quando Napoleão III deu o golpe de 2 de dezem-
bro de 1852, porque os interesses nacionais da França se torna-
ram dominantes e não o seu papel transformador de país revolu-
cionário. Trotsky, com o seu conceito de Termidor e dentro destas
discussões anteriormente citadas, afirmou que a Revolução Russa
acabou aí, com o totalitarismo stalinista. Concordamos com ele,
pois já não se tratava da Revolução, mas do predomínio de uma
figura sobre o movimento, agora estancado. Parafraseando um
outro comentário de Tolstoi a respeito de Napoleão no mesmo
texto, o francês, ao se tornar Imperador, passou a ser mais impor-
tante do que a Revolução. Com Stalin, mutatis mutandi, o movi-
mento comunista ficou refém da personalidade e se paralisou.
Trotsky esperava um retorno do impulso revolucionário, mesmo
na Rússia, mas este não veio até hoje.
38 Ernesto Caxeiro
tico-discursiva que uniu Stalin a Lenin e foi com ela que Lukács
ficou. O “Socialismo num só país”, conceito muito discutível, já
que Stalin nunca perdeu a perspectiva da Revolução no Ocidente,
teria fundamento real neste programa que atendia aos interesses
tanto do proletariado, já muito reduzido, como do campesinato.
De modo geral, Lukács e os comunistas aceitaram este
“realismo”, este “pragmatismo”. Lenin-Stalin-Lukács e no período
de implantação do totalitarismo stalinista, com suas violências,
acrescentou(-aram) a necessidade de preservar o socialismo diante
da ameaça fascista e do mundo capitalista, no pós-2ª guerra.
Este pragmatismo é resumido na famosa frase do último, sempre
citada por todos, na hora em que a crítica dos opositores se fazia
presente: “O pior socialismo é melhor do que o melhor capitalismo”,
ou seja, a Albânia, de Henver Hodja, era melhor do que a Suíça.
Num certo sentido, com isto ele chancelou o stalinismo (que
depois o prendeu) e criou o chamado “ marxismo-leninismo”, legi-
timando as políticas de Stalin como uma resposta possível diante
de todo o quadro internacional de isolamento da URSS.
O que parece ter mudado a concepção de Lukács, quanto ao
desvio stalinista, foi a descoberta dos escritos do jovem Marx, fato
que abalou a todos, desde o stalinismo, que procurou soterrar
estes textos, mas também a futura direita do marxismo, que
começou a destruir o marxismo-leninismo e a buscar a conexão
com a filosofia, especialmente Kant, que já era importantíssimo
no austro-marxismo (Korsch-Bauer).
Aqui é preciso fazer uma correção no desenvolvimento do pensa-
mento marxista-leninista: o uso do pensamento de Plekhanov, por
Stalin (seguindo Lenin), é uma fraude, talvez não intencional, mas,
ainda assim, uma fraude, pois nesta elaboração não se diz que
Plekhanov era menchevique. Isto é importante porque Lukács refle-
tiu sobre as mudanças, associando erradamente Plekhanov ao stali-
nismo, opondo o seu suposto sociologismo à filosofia contida agora
no marxismo. Até então, sem os textos do jovem Marx, esta conexão
não existia e os marxistas, inclusive Plekhanov, foram acusados de
reducionismo materialista e mecanicista, por resumirem tudo às
“condições materiais de existência”, quando o problema da cultura
surge e já possuía base nos textos fundadores.
O que está por trás de tudo isto é a pergunta: qual é a filosofia
do marxismo? Até Althusser e Habermas, passando por Poulant-
40 Ernesto Caxeiro
Referências
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GRAMSCI, Antonio. Carta ao Comitê Central Bolchevique, 1926.
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[2002].
TROTSKI, História de la Revolución Russa. Izquierda Revolucionaria,
2008.
Flávio R. Kothe1
M
arx achava que uma revolução só acontece quando as
relações de produção não permitem mais o desenvol-
vimento das forças produtivas. O capitalismo somente
seria superado quando se esgotassem seus potenciais. A revolu-
ção não poderia ocorrer, portanto, onde a industrialização não
tivesse se completado. Estranhamente, Marx queria a revolução
para aumentar a produtividade, ambição do capitalista, que assim
consegue aumentar sua taxa de lucro.
Lenin contrapôs a tese de que o sistema capitalista seria uma
corrente formada por elos, que se rompe onde houver o elo mais
fraco. O capitalismo não era avançado na Rússia em 1917, mas o
país estava metido numa guerra com a Alemanha. Lenin foi levado
à Rússia com ajuda do governo alemão e, conseguindo tomar o
poder enfraquecido, retirou o país da guerra, o que lhe rendeu
imediato apoio de milhões que estavam perdendo seus familiares
e amigos em batalhas sem sentido, de uma monarquia metida em
conflitos entre primos. Logo veio, porém, a guerra civil, que o
exército vermelho conseguiu vencer, até que teve de enfrentar
uma coalizão de direita na Segunda Guerra.
Não só no Brasil, muito já se falou mal da Revolução Russa,
como houve também exaltação desbragada. Seu centenário não
foi rememorado nas universidades brasileiras, para proporcionar
uma reflexão sobre fato tão relevante. Preferiu-se o silêncio, que é
43
sintomático da acomodação vigente nos quadros acadêmicos. Os
cursos atuais geram apenas técnicos, diplomados tão depressa
quanto possível, sem proporcionar pensamento crítico mais
amplo. Os centros acadêmicos deixaram de ser locais geradores
de pensamento político. Não se tem um curso que dê formação
humanística, filosófica, política e artística capaz de gerar quadros
de elite para a alta administração do Estado.
A geração que era jovem, na época do golpe de 1964, e enfren-
tou a repressão, está ora se acabando e, com ela, o pendor crítico.
A Ditadura Militar catou as melhores cabeças pensantes da
universidade e cortou. O critério não era ser ou não marxista,
mas ser capaz de pensar e fazer pensar. Os que restaram e subi-
ram, esses geraram quadros acadêmicos acomodados, que
procriaram, por sua vez, uma geração que hoje, com seus trinta
ou quarenta anos, faz uma opção tecnicista, sem formação
humanística e incapaz de pensar criticamente. Wikipédia e
Power Point são ferramentas para ralos dados de informação,
sem que se desenvolva a capacidade de reflexão mais profunda e
acurada. Não se consegue avaliar o quanto a universidade ainda
hoje está prejudicada pelas decapitações feitas pela Ditadura.
Aliás, isso nem interessa.
A quem não interessa? A quem não quer a concretização dos
ideais de igualdade, liberdade e fraternidade, consagrados pela
Revolução Francesa e que Lenin quis que deixassem de ser prin-
cípios jurídicos formais para se tornarem práticas sociais efeti-
vas. O modelo soviético foi apenas um dos caminhos para chegar
a isso. O dramaturgo Heiner Müller, sucessor de Bertolt Brecht,
na Alemanha Oriental, disse uma vez que o capitalismo era liber-
dade sem igualdade e o comunismo era igualdade sem liberdade.
De fato, porém, no capitalismo, a liberdade é proporcional ao
dinheiro que se tem. A fraternidade é o que se esqueceu aí. Esque-
ceu-se também de questionar os fundamentos teológicos desses
princípios, a maneira como devem ser entendidos. Igualdade não
é igualar tudo, nivelando tudo por baixo, e sim distinguir a dife-
rença do desigual. Mesmo que se dessem as mesmas oportunida-
des a todos, nem todos iriam aproveitá-las igualmente, mas isso
não significa que todos não deveriam tê-las.
Marx achava que, desfazendo-se o conflito entre classes,
seria possível aos homens finalmente se tornarem irmãos. Niet-
zsche lembrou, contudo, que os maiores ódios se dão entre
pessoas próximas. A natureza é conflito permanente, em que
44 Flávio R. Kothe
árvores disputam luz, animais maiores comem os menores e
todos são comidos pelos bem pequenos. Sendo a história da
“civilização”, o relato da existência de uma espécie de animal,
não é de se admirar que ela seja feita de conflitos que não cessam
nunca. Embora Marx assumisse a história como luta de classes,
queria que ela deixasse de ser luta, para que afinal aflorasse o
anjo escondido em cada homem. O marxismo é uma teologia
cristã, salvacionista. Faz parte da história do platonismo. Ignora
isso, quando se proclama materialista.
No socialismo de Estado, quem quisesse fazer da existência a
busca do luxo estaria no lugar errado. Não havia necessidade de
se exibir como melhor por ser mais rico. No capitalismo, sempre
se paga mais pelas mercadorias do que custou produzi-las. No
socialismo de Estado, os preços eram estranhos: ou baratos
demais, ou caros demais. Aquilo que se supunha seria do consumo
do trabalhador (inglês, na época de Marx) era vendido abaixo do
custo de produção; o que fosse considerado luxo era muito mais
caro no mundo socialista do que no capitalista. O sistema todo
era artificial, com os preços ditados por um comitê central.
O problema é que um televisor, um telefone ou um carro se torna-
ram propriedades comuns para o trabalhador no capitalismo
avançado, mas não eram para o trabalhador que estava a cami-
nho, e de pé no chão, do paraíso socialista.
Na aparência do sistema, todos tinham emprego, mesmo que
fosse para fingir que trabalhavam. A velocidade da caravana é,
porém, a do camelo mais lento, a não ser que ele seja comido. Se
todos tinham direito a emprego, se o diretor da empresa precisava
arranjar novo emprego para os funcionários mais relapsos antes de
mandá-los embora – e eles tinham pouca demanda –, acabava
havendo uma acomodação geral que corroía a produtividade. Depois
de anos iniciais de entusiasmo, todos acabavam produzindo tanto
quanto quem menos produzia. Os salários eram muito parecidos,
não fazia diferença ficar se matando no serviço. Quem produzia
mais tinha de esconder que produzia, se tornava inimigo dos cole-
gas. Garçons não queriam fregueses, pois davam trabalho.
O sistema de produção, dominado por um partido que não
admitia alternância – incapaz, portanto, de se reformar –, faliu
por dentro. O que pretendia ser revolucionário se tornou tão
reacionário que foi incapaz de fazer sequer as reformas que o
salvassem. Não apenas cidadãos comuns, mas muitos membros
do Partido alertaram sobre a necessidade de reformas, mas a
46 Flávio R. Kothe
direito de voto, como se voto formal bastasse para a cidadania;
exigiam direito de expressão, como se ele não fosse inversamente
proporcional ao público potencial.
Será o homem um ser insatisfeito por natureza? Sempre a
buscar outra coisa, a querer mais? – Assim formulada, a pergunta
pouco adianta. Alimentação – sim –, mas que tipo de alimenta-
ção? Moradia – sim –, mas de que tamanho? Saúde – sim –, mas
quem pagaria? Emprego – sim –, mas com que prédios e máqui-
nas? No socialismo, havia muitas fábricas com janelas quebra-
das, máquinas antigas e pifadas. No capitalismo, uma minoria de
ricos desperdiça em luxo o que falta à maioria em comida, escola,
saúde, moradia. A questão humana começa, porém, depois que as
necessidades primárias estiverem atendidas. O que a um faz feliz
é a desgraça para o outro.
Perseguido no Brasil, fui professor titular visitante na Univer-
sidade de Rostock, de 1988 a 1992, tendo vivenciado, desde dentro,
o último período e o colapso do socialismo de Estado. Escrevi em
1990 um romance, O Muro, em que registrava o embate entre os
dois sistemas. Meu único leitor foi, então, Jorge Amado, que estava
em Paris. Ele quis publicar a obra na editora de que era mais
próximo, mas depois me disse que havia problemas no momento.
Eu quis deixar que o tempo depurasse o que eu havia escrito e
decidi guardar o texto por 25 anos, até que o publiquei em 2016.
Cito aqui uma parte do capítulo IX, 2 Rerik, em que se refletem,
num simpósio de latino-americanistas em 1988, portanto antes
da Queda do Muro, tensões então presentes e que continuam de
algum modo atuais:
– Não se compensa mais atraso econômico com culto à personali-
dade – interveio um colega barbudo, Hans-Theodor, um biólogo. Stálin
não executou a política que Lenin queria e não fez boa industrializa-
ção: sentou em cima da baioneta, e isso não é cômodo. Não vai dar
certo fazer ciência, arte e tecnologia só na Europa, no Japão e na
América do Norte. Cientistas de países pobres são mais baratos, às
vezes até mais competentes, mas as metrópoles não querem perder o
domínio técnico. Cuba insistiu em plantar somente cana: o preço do
açúcar despencou no mercado, não industrializaram o país. Planejar
a economia pode ser tão ruim quanto a antiga anarquia capitalista.
No Brasil, constroem estádios e pontes sem uso em vez de ferrovias,
hospitais, escolas. A América Latina não pode condenar o esforço de
48 Flávio R. Kothe
Um alemão respondeu que o dogmatismo da esquerda era a
face inversa do fascismo no poder, que o avanço da politização
faria superar, por dentro, esse autoritarismo, mas que as esquer-
das não tinham maior importância, não seria por elas que passa-
ria a decisão da história. A globalização enfraqueceria as burgue-
sias nacionais. Os trabalhadores teriam pouco respaldo na
burguesia nacional, para criarem juntos um mercado interno forte
e melhor distribuição de renda.
Nesse momento, o professor Ziembinski não se conteve e irrom-
peu a dizer:
– Só com aumento de liberdade se vai conseguir maior atenção
para os problemas ecológicos. Os problemas coletivos não podem ser
deixados somente na mão dos políticos, precisam ser debatidos em
público, com posições contraditórias, para se encontrar o bem
comum. A burguesia latino-americana está tão imbricada com o
capital internacional que já foi superada a antiga tese de que teriam
interesses antagônicos. O capital internacional tem tecnologia mais
avançada, pode aceitar formas mais distributivas de produção e
transpor para países em desenvolvimento mais cuidados com o meio
ambiente. A população nem está exigindo isso. As empresas estão
preocupadas com a maximização do lucro e não são instituições de
caridade; elas manipulam dados sobre investimentos, negócios e
lucros, mas não vejo uma consciência mais avançada brotar por si
em uma população mantida na ignorância pelas oligarquias locais.
Não espero que questões de poluição, de lixo biodegradável, de
produtos tóxicos sejam capazes de provocar no povo uma reação que
imponha mudanças imediatas. Há medo de perder empregos. Não
se espere da imprensa ou da escola melhor solução: jornalistas e
professores não decidem sobre o que o povo vai ver e ouvir.
O dr. Altenberg, da Escola Superior de Economia, de Berlim,
interveio:
– Os países industrializados estão ficando cada vez mais ricos e
os pobres proporcionalmente mais pobres, ainda que melhorem.
Esta bomba vai estourar, um dia. Com mais força, se não houver
mais a alternativa socialista. A década de 1980 tem sido marcada
pela estagnação e regressão econômica na América Latina.
O encerramento dos governos militares traz insegurança para o
capital transnacional, só que a garantia que eles davam era peri-
gosa. Introduziram o capitalismo no campo. Ditaduras são insegu-
ras. Se a burguesia nacional brasileira tivesse sido revolucionária,
poderia ter distribuído melhor a renda. A industrialização maior foi
50 Flávio R. Kothe
contrários ao seu povo. A segunda alternativa, o aumento de impos-
tos, iria contrariar os interesses da classe média e da burguesia,
mas iria reduzir o poder de compra, levar à recessão, o que, aliás,
um confisco da economia popular também provocaria. Se eu conheço
o Brasil, um aumento de taxas provocaria aumento da sonegação,
sem que houvesse um aumento proporcional de receita...
Nesse momento, o dr. Altenberg ficou com o olhar parado, um
leve sorriso nos lábios, como se estivesse lembrando antigas histó-
rias. Ele percorria túneis da memória. Todos ficaram esperando,
alguns riram, o homem era conhecido por suas distrações. Ele
continuou, no entanto, a falar:
– Eu tinha esquecido uma coisa: a privatização de empresas
estatais, especialmente das lucrativas, como os partidos de direita
vêm propondo há tempos e que os militares, por seu nacionalismo,
não fizeram, apesar de terem cedido espaço a empresas estrangei-
ras. Isso representaria uma entrada de dinheiro, como quem vende
um anel, mas não resolveria nada. A solução estaria em conter as
contas e aumentar a produção, contando com taxas cambiais
melhores. Mas isso é utopia.
O sexagenário passou a mão pelos cabelos grisalhos, deu um
suspiro como quem está demasiado cansado com o peso do mundo,
olhou para os presentes e continuou:
– A terceira alternativa prejudica diretamente os interesses dos
funcionários públicos, da pesquisa, da assistência médica, da
atividade cultural e assim por diante; indiretamente, prejudica a
todos os que poderiam ser beneficiados pela assistência social,
pelos resultados da pesquisa, pela ativação do patrimônio cultural
e assim por diante. Como essa última alternativa atinge o fator
mais fraco e pode beneficiar o capital, inclusive por lançar mais
mão de obra barata no mercado, como ela oferece o argumento de
que o governo está cortando excessos em benefício do povo, como
ela serve para enfraquecer o aparelho de Estado facilitando a
imposição dos interesses dos grandes investidores, é provável que
seja este o caminho preferencial. Como não há de solucionar a
crise, em breve será necessário conjugar elementos das diversas
alternativas. Se o Brasil, enquanto maior país da América Latina,
não consegue enfrentar os interesses do FMI, não se pode esperar
que os países menores possam. Há força militar e policial para
controlar qualquer rebelião. Seriam necessários vários anos de
superávit nas exportações para pagar a dívida, o que pode ocorrer
se houver valorização das commodities. Países pobres não têm
52 Flávio R. Kothe
se diz. Notam-se as deficiências do planejamento centralizado, da
falta de concorrência entre empresas e de renovação do maquinário.
Gastos excessivos na área militar, investimentos de menos na estru-
tura de produção. Diz-se que se fez uma socialização da economia
sem fazer a socialização da política: talvez nem isso tenha sido feito.
O sistema cava a própria cova, por impasses internos: quem não se
renova, morre. Deveria haver mais liberdade para criar empresas
mistas e serviços. No mercado, necessidades e bens se encontram e
se socializam: como ele ensina o que o povo quer, devia-se aprender
a ouvi-lo. Partidos comunistas, como representantes de um socia-
lismo real em crise, não têm mais chances. No terceiro mundo, as
diferenças sociais extremas levam a sonhar com igualdade. O socia-
lismo não foi um aborto da história, embora pareça. Como apache
da ciência, saúdo os irmãos: owgh!
Todos tiveram de rir com esse final: o dr. Altenberg gostava do
papel de bobo da corte, ironizando contradições em geral silencia-
das. Não era um risco calculado, na esperança de que não houvesse
algum informe secreto. Também não era que o dr. Altenberg contasse
com a sua imagem de bobo da corte ou que, devido à idade, supu-
sesse que nada mais tinha a perder. Tinha se acostumado a dizer
o que pensava, ele considerava urgente radicalizar teses: queria
salvar o socialismo através de reformas. Queria ganhar tempo
para o socialismo se reencontrar. Quanto menos tempo pressentia
haver, maior sua acidez. Ele criticava o socialismo real para preser-
var sua utopia humanista.
Vendo a seriedade das questões, o professor Ziembinski
interveio:
− Vou dizer algo que não se costuma dizer entre nós. O
marxismo se fez como frente de combate, para defender interes-
ses dos trabalhadores, mas ele perde o dente da dialética se fica
acomodado no poder. Ser radical, dizia Marx, é examinar as ques-
tões pela raiz. Temos de ver os fundamentos, as contradições nos
fundamentos. Examinando a história, Marx concluiu que a revolu-
ção das relações de produção ocorre sempre que a estrutura delas
impossibilita o desenvolvimento das forças de produção. Isso é
atribuir à história uma vontade de produtividade crescente.
A igualdade é uma necessidade do capital, para que todos possam
oferecer o que quiserem e todos possam comprar no mercado o
que quiserem e puderem. Valores como igualdade e liberdade são
aí vetores necessários para o funcionamento do sistema, assim
como a fraternidade serve para controlar a concorrência e a misé-
54 Flávio R. Kothe
antiga tese soviética de que tudo caminhava para o socialismo. O
boliviano insistiu que, se o capitalismo vinha sendo capaz de
desenvolver-se não só na tecnologia, mas na distribuição social
dos produtos, isso não valia para a maior parte da América Latina:
era necessário que algum país de peso virasse socialista para que
ele se tornasse “bonzinho” no continente. Sem tal alternativa, os
latino-americanos ficariam expostos aos interesses das grandes
metrópoles e seriam ordenhados como nunca.
Como os alemães calassem e o boliviano ficasse pendurado no
ar, Mário disse que o surgimento de uma Cuba socialista tinha
provocado o contrário, ou seja, a instalação de ditaduras milita-
res por todo o continente e que os países socialistas não apare-
ciam como alternativa tecnológica viável para o terceiro mundo e
não estavam sendo vistos como alternativa ecológica. A ciência, a
tecnologia e a arte sul-americanas talvez só fossem levadas a
sério se a educação ampla e de qualidade fosse um programa
permanente de Estado, como havia sido na Prússia com Frede-
rico, o Grande. Se não, o que se desenvolveria seria a emigração
devido à diferença entre primeiro e terceiro mundo. Não é alterna-
tiva − acrescentou com ironia − regredir aos valores das culturas
indígenas, desistir da modernidade, reproduzir demais e morrer
cedo. Se os países industrializados só quisessem explorar, quanto
menos riqueza e trabalho houvesse, menos teriam eles a explorar.
Essa poderia ser uma estratégia secular de resistência.
O dr. Altenberg interveio sarcástico:
– Diversão lá, trabalho aqui! Bom programa!
Um sociólogo de Leipzig comentou a expressão corrente de que
“os alemães vivem para trabalhar em vez de trabalhar para viver”,
para dizer que só assim tinha sido possível sair da fome e conseguir
progresso. Não adiantava o terceiro mundo ficar chorando miséria,
acusar europeus e americanos para depois bater à sua porta
exigindo ajuda. Ele que tratasse de resolver seus problemas: se
vendia a preço de banana não só a banana, mas a madeira, o miné-
rio e a própria força de trabalho, se era incapaz de se organizar de
modo mais produtivo e menos corrupto, não podia viver de crédito,
tinha de pagar o preço. O boliviano se levantou, dizendo que a dívida
externa da América Latina era uma ficção para legitimar uma desca-
rada exploração e que não se devia pagar mais nada, controlar toda
remessa de lucro e proibir toda exportação de recursos naturais.
56 Flávio R. Kothe
Proletários de todo o mundo,
perdoem-nos!
Hubert Alquéres1
A
Revolução Bolchevique, de novembro de 1917, pelo calen-
dário gregoriano, e de outubro, pelo calendário juliano, foi
a mola propulsora da grande utopia do século 20: o comu-
nismo. Para o bem e para o mal – e mais para o mal – marcou a
vida e a morte, sonhos e pesadelos, como diz o historiador italiano
Silvio Pons. E foi, ao mesmo tempo, “realidade e mitologia, ideo-
logia progressista e dominação imperial, utopia libertadora e
sistema concentracionário”.
A bipolaridade também caracterizou os descendentes de Vladi-
mir Ilyich Lenin que se espraiaram pelo mundo. Os comunistas
foram vítimas de regimes ditatoriais e artífices de Estados poli-
ciais, protagonistas de lutas sociais e libertárias e fundadores de
regimes totalitários e liberticidas, na genial definição de Pons em
seu livro A Revolução Global.
Sim, os comunistas estiveram na primeira trincheira das
lutas pela jornada das oito horas, pelo direito de greve, pelos
direitos da mulher no trabalho e ao voto, no enfrentamento do
fascismo e do nazismo, entre tantas e tantas batalhas. O surgi-
mento do primeiro país socialista incidiu sobre as sociedades
capitalistas no sentido de consagrar em seu arcabouço conquis-
tas sociais que perduram até hoje.
57
Os anseios por equidade e igualdade despertados pela Revolu-
ção Russa teve a sua melhor resposta no Estado de Bem-Estar
Social, no qual a justiça social se concretizou em uma economia
de mercado sem a supressão da democracia e das liberdades.
Mas ao se erigirem em poder geraram ditaduras atrozes. Do
seu passivo fazem parte regimes tirânicos como o de Nicolae
Ceausescu, na Romênia; Erich Honecker, na Alemanha Oriental;
Pol Pot, no Camboja; o terror da era Josef Stalin ou da Revolução
Cultural Chinesa.
A instalação do socialismo em um país atrasado teve seu
preço: a consolidação da ditadura do partido único, por meio do
terror e do extermínio de todas as correntes políticas – inclusive
as com raízes operárias e camponesas, como os mencheviques de
esquerda, liderados por Julius Martov, e os esseristas de esquerda
(socialistas revolucionários com base sólida no campesinato).
Os fundamentos teóricos para o poder totalitário que viria a se
instalar foi dado por Lenin, às vésperas da Revolução, por meio do
seu livro O Estado e a Revolução. Stalin não foi um desvio de rota.
Foi a versão do leninismo levada às últimas consequências.
Como julgar uma revolução que prometia construir o paraíso
terrestre por meio de uma sociedade sem classes, sem Estado, e
da qual brotaria o homem novo – o homo sovieticus – e 74 anos
depois ruiu por causa do seu obsoletismo tecnológico, por sua
incapacidade de produzir bens de consumo moderno e por ter se
transformado na sociedade da escassez?
A revolução de 1917 produziu feitos homéricos. Em poucas
décadas, a Rússia secularmente atrasada e autocrática dos
tempos do czarismo transformou-se na segunda potência mundial,
rivalizando com os Estados Unidos nas corridas espacial e
armamentista.
Não se podem ignorar as páginas épicas que escreveu, como a
derrota das tropas de Adolf Hitler às portas de Moscou, Stalin-
grado, Leningrado, assim como a vitória do Exército Vermelho na
batalha final de Berlim. Os soviéticos foram capazes de mandar o
primeiro ser vivo a orbitar o planeta – a cadela Laika – e a levar
o primeiro homem ao espaço sideral, o major Yuri Gagarin.
Mas nem por isso merecem a absolvição da história.
Já nos estertores da Pátria Mãe do socialismo, Mikhail Gorba-
chev indagava como era possível uma nação dominar inteiramente
58 Hubert Alquéres
a tecnologia espacial e ser incapaz de fabricar um sapato ou uma
calça de qualidade.
Há uma explicação lógica: para fazer frente à corrida nuclear
e espacial, que ao final perdeu para os EUA – a URSS teve de
deslocar volumosos recursos de outras áreas. A consequência
disso foi a escassez de produtos de primeira necessidade.
Para a população dos países que experimentaram o “socia-
lismo real”, o comunismo está indissoluvelmente associado à
fome, ao terror, à falta de liberdade, ao Muro de Berlim, às KGB e
Stassi, às ditaduras de Stalin, Honecker e Ceaucesco.
Na sua fase terminal, já não se discutia mais na URSS se sua
história tinha sido um desastre; os debates eram sobre as razões
dos desastres. E responsabilizava-se Lenin por ter dado o tom do
poder soviético com o Terror Vermelho e os primeiros campos de
concentração.
O melhor balanço dos 74 anos da experiência socialista sovié-
tica veio em forma de ironia em uma faixa de uma das manifesta-
ções multitudinárias de Moscou: “Proletários de todo mundo,
perdoem-nos!”. Para quem viveu sob o tacão da tirania do partido
único não há como oferecer a outra face e perdoar.
E para a história não há como não ser implacável em seu
julgamento sobre os cem anos da Revolução Russa.
O
século 20 – um século breve, conforme a definição do
historiador marxista britânico Eric Hobsbawm – come-
çou e acabou na Rússia. Teve início em 1917, quando os
revolucionários bolcheviques liderados por Vladimir Illitch Lenin
tomaram de assalto o Palácio de Inverno, num sete de novembro,
em São Petersburgo. E terminou com o fim da experiência sovié-
tica – iniciada em 1921 –, com a queda de Mikhail Gorbachev, o
último secretário-geral do Partido Comunista, em 1991.
Muito já se escreveu a propósito do desmoronamento do socia-
lismo realmente existente. O sistema teria sido minado por seus
próprios desvios burocráticos. Ou sucumbido à poderosa propa-
ganda ideológica do inimigo capitalista. Ou, ainda, desdenhado a
questão da democracia política. Para outros, a corrida armamen-
tista deslanchada pelo campo ocidental, sobretudo pelos norte-a-
mericanos, enfraqueceria de maneira irreversível as economias
socialistas, (historicamente debilitadas, se comparadas com o
desenvolvimento das potências capitalistas, com o ponto de
partida delas). Tudo isso é verdade. Mas existe um outro aspecto
nunca lembrado nessa questão do desmoronamento da União
Soviética: o país não soube – ou não pôde – se dotar de uma base
material que possibilitasse sustentar no topo relações de produ-
ção de novo tipo, livres de qualquer exploração do homem pelo
61
homem, conforme estabelecia o ideário marxista. E sem uma base
material nova, não existe modo de produção historicamente novo.
É o que a marcha da História nos ensina.
O fato é que a antiga URSS fez uma revolução política mas
herdou a base material por excelência do sistema capitalista – a
unidade fabril. E não criou nada no lugar dela. E o mais dramá-
tico ainda estaria por vir: a base material da sociedade sem clas-
ses – representada pela revolução técnico-científica em curso no
mundo há pelo menos três décadas, com base na automação –
surgiria primeiro no Ocidente capitalista. A base técnica dessa
sociedade, bem entendido – e não a sua base social e política. É
como se a Revolução Russa de 1917 tivesse colocado a política na
frente da economia (ou das forças produtivas, mais concreta-
mente) e o Ocidente tivesse feito justamente o contrário disso.
Seja como for, a União Soviética não somente deixaria de
modificar essa base material (o capitalismo, diga-se de passagem,
mudou a base do feudalismo, o que possibilitou explodir de fato
com as relações servis de produção, reforçando assim o próprio
capitalismo) como também manteria as relações assalariadas de
produção já presentes no capitalismo. E o que é ainda mais sinto-
mático, o capital permaneceria intocado também no interior do
socialismo real. A pergunta parecia ser: o que fazer com ele?
O que o socialismo real modificaria estruturalmente, então?
Na verdade, apenas o estatuto formal dos meios de produção,
doravante sob o controle do Estado, não necessariamente sociali-
zado. É preciso reconhecer isso. Não é demérito. É que não havia
condições de se caminhar mais longe do que isso, dadas as condi-
ções da sua implantação. No fundo, os bolcheviques contavam
com o pipocar da revolução na Alemanha, área mais avançada,
para viabilizar de fato a Revolução Russa. Tanto que o idioma
oficial da III Internacional, criada em 1919, era o alemão.
Problemas fundamentais que têm que ver com o caráter da
gestão, tão ou mais importantes até do que o próprio estatuto da
propriedade, foram praticamente postos de lado. Afinal, se apro-
priar dos meios de produção é inseparável de se apropriar dos
meios de gestão – ou deveria ser. Pior ainda: a ideia de socialismo
se restringia à esfera econômica, mais concretamente às naciona-
lizações operadas no âmbito da indústria. Vale destacar ainda
que o próprio Karl Marx evitava se referir ao termo socialismo:
para o filósofo e ativista alemão o que havia, na realidade, eram
Um século russo 63
nal – é preciso dizer – também fizeram sua parte na luta contra a
barbárie. Lamentavelmente, por momentos também mergulha-
ram nela, como no período stalinista.
No fundo, a grande diferença entre a proposta comunista e a
capitalista é de natureza antropológica. Ou seja, reside na batalha
pela desalienação do homem em todos os planos da sua existência,
do econômico ao modo de vida. Uma batalha pela superação daquilo
que Marx denominava por "pré-história" do homem. Não basta
mudar a sociedade; é preciso também mudar a própria civilização.
A rigor, a Revolução Russa ficará para a História como uma espécie
de ala esquerda da sociedade industrial.
A História ensina que, com todas as limitações de uma primeira
experiência revolucionária, a luta pela preservação da Revolução e
a montagem de um Capitalismo de Estado – a definição é do próprio
Lenin, em seus escritos sobre o caráter da Rússia pós-1917, mais
exatamente em seus artigos econômicos – liberaria uma energia
extraordinária, como que represada por longos anos na velha
Rússia dos czares. É que havia a esperança de uma mudança radi-
cal no modo de vida. E, em vários setores do conhecimento e da
prática humanas, essa esperança se concretizou. E isso também é
inegável, é preciso que se reconheça. Da servidão à industrializa-
ção: a Rússia, em pouquíssimas décadas, passou de um país de
servos a um país onde os proletários almejavam, pela primeira vez
na História, chegar ao poder. Tudo isso não é pouco mesmo.
Os artistas e a arte russa e soviética materializariam esse
início de mudança – para melhor, imagino – das fontes da vida no
chamado socialismo real. É o que a própria realidade objetiva nos
diz. Vejamos a coisa de perto. O cinema documental, com Dziga
Vertov à frente, nasceu durante o processo revolucionário russo.
Seu belíssimo “Três cânticos para Lenin” até hoje emociona as
plateias do mundo inteiro, pela força de suas imagens, até por
uma certa aspereza que delas emana. Fascinante, realmente.
Serguei Eisenstein, pelo lado do cinema ficcional, dirigiu e montou
verdadeiras obras-primas, como “Outubro”, “Ivan, o terrível” e
“Que viva México!” (este último inacabado. Os soviéticos chega-
ram então a sondar Glauber Rocha para terminar o filme.). Como
esquecer um criador como Eisenstein, se ele já pertence ao patri-
mônio cultural da humanidade?
Se caminharmos para o lado das artes plásticas, impossível
deixar de mencionar os nomes dos criadores russos Marc Chagall
(que chegou a ser comissário do povo ou ministro no novo governo
Um século russo 65
Revolução Russa e O capital
H
á um século, em outubro de 1917, o processo revolucioná-
rio desencadeado na Rússia em fevereiro – com o colapso
do império czarista – sofreu drástica inflexão e ganhou
curso imprevisto com o movimento disruptivo sob a direção do
partido bolchevique.
Ainda no calor da hora, um jovem militante socialista italiano,
Antonio Gramsci, escreveu um pequeno e instigante artigo intitu-
lado “A revolução contra O capital”. Segundo o autor, a conquista
do Estado pelos bolcheviques contrariava as diversas tendências
do movimento socialista europeu e também russo (mencheviques
e socialistas revolucionários). O que Gramsci, na verdade, procu-
rava chamar a atenção era para a necessidade de reposição do
protagonismo do sujeito e da iniciativa política, que haviam sido
obscurecidos pelo fato dos partidos socialistas ou socialdemocra-
tas terem se impregnado pelo positivismo e pelo naturalismo.
Isso teria implicado numa compreensão evolutiva e fatalista da
história – o amadurecimento do capitalismo levaria inexoravel-
mente à abertura da transição socialista; ou seja, o desenvolvi-
mento das forças produtivas e das relações sociais de produção
capitalistas, secundado por uma revolução democrático-bur-
guesa, seria o pressuposto básico e necessário para o socialismo.
Concepção essa que – derivada de uma certa leitura da obra
capital de Marx (que, aliás, completava naquele exato momento,
67
50 anos da publicação de seu primeiro volume em 1867) e cujos
fundamentos já haviam sido anunciados sinteticamente no
famoso prefácio à Contribuição à crítica da economia política
(1859) – fora erigida em cânone incontestável pela II Internacio-
nal Socialista. No referido preâmbulo, o intelectual alemão asse-
verou: “Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam
desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter, e as
relações de produção novas e superiores não tomam jamais seu
lugar antes que as condições materiais de existência dessas
relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha socie-
dade. Eis porque a humanidade não se propõe nunca senão os
problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a análise,
ver-se-á sempre que o próprio problema só se apresenta quando
as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias
de existir”. (Marx, 1983, p. 233).
A propósito e posteriormente, no início dos anos 1930, nos
Cadernos do cárcere, Gramsci retomaria esse excerto para dele
deduzir o conceito de revolução passiva. (2002, p. 321).
Para Gramsci, as agruras da guerra (com o morticínio de 5
milhões de soldados russos) teriam criado condições (vontade
coletiva), de maneira célere e inusitada, para a tomada do poder
pelos bolcheviques num país atrasado, de capitalismo incipiente
como a Rússia. Sem dúvida, a guerra potencializou a crise estru-
tural que já era latente em todo o imenso império russo, abar-
cando inúmeros problemas acumulados secularmente: dominân-
cia tirânica da autocracia czarista, subjugação de nacionalidades
não russas, brutal opressão do campesinato, bloqueios à organi-
zação da sociedade civil, inexistência de direitos mínimos (tanto
civis como políticos) etc.
Em 1917, a crise irrompe com tal força que desintegrou o todo
poderoso império czarista. “A autocracia czarista não foi exata-
mente derrubada por ninguém: desapareceu de cena em meio à
guerra, sem que existisse qualquer alternativa óbvia para assu-
mir o poder. A Duma [parlamento russo], que desfrutava de
prestígio zero, era incapaz de substituí-la. Apenas produziu um
governo provisório e saiu da cena política” (Lewin, 2007, p. 341).
Criara-se uma situação caótica que se agravou com a constitui-
ção de um governo provisório privado de credibilidade dirigente
e impotente para enfrentar as graves circunstâncias. “Nesse
contexto sombrio, o Governo Provisório, composto principal-
mente de socialistas revolucionários e mencheviques (...), perce-
Referências
GRAMSCI, A. Escritos políticos (1910-1920). Org. e trad. Carlos
Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, v. 1,
p. 126-130.
______.Cadernos do cárcere. Trad. Luiz Sérgio Henriques. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, v. 5.
HOBSBAWM, E. J. Adeus a tudo aquilo. In: BLACKBURN, R. (Org.).
Depois da queda. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1922, p. 93-106.
MARX, K. Prefácio à Contribuição à crítica da economia política. In:
FERNANDES, F. (Org.). Marx e Engels. São Paulo: Ática, 1983, p.
230-235 (Coleção Grandes Cientistas Sociais, v. 36).
Lenin, V. I. O Estado e a revolução. São Paulo: Global, 1987.
______. Estado, ditadura do proletariado e poder soviético. Org. e
trad. Antônio R. Bertelli, Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1988.
LEWIN, M. O século soviético. Trad. Silvia de Souza Costa. Rio de
Janeiro: Record, 2007.
LUXEMBURGO, R. A revolução russa. Trad. Isabel M. Loureiro.
Petrópolis-RJ: Vozes, 1991.
PONS, S. A revolução global – história do comunismo internacional:
1917-1991. Trad. Luiz Sérgio Henriques. Brasília; Rio de Janeiro:
FAP/Contraponto, 2014.
A
Revolução Russa de 1917 marcou o início do século 20, com
a introdução, no cenário mundial, de um novo paradigma
político-econômico absolutamente oposto ao liberalismo do
século 19, tendo, como uma de suas causas, a eclosão da primeira
grande guerra mundial, que assinalou a incapacidade do próprio
sistema liberal de resolver suas contradições no interior do próprio
mercado. Uma revolução que, contrariando o próprio marxismo
clássico, explodiu em um país atrasado, e mudou radicalmente
tanto a geopolítica do planeta, como a divisão do pensamento
político da humanidade, não apenas nos setenta anos em que o
regime se manteve vigente na União Soviética (URSS).
Para a historiadora Sheila Fitzpatrick, 2 as revoluções têm
duas vidas. A primeira destas é inseparável do presente, da polí-
tica contemporânea, dos fatos que realmente existiram. Na
segunda vida, elas deixam de ser parte do presente e se movem
para a história das lendas nacionais e internacionais. Acrescento
que a Revolução Soviética virou lenda muito antes mesmo de
completar a primeira vida. Ela caminhou sob a proteção da ideo-
logia, enquanto a história real fazia milhões de vítimas em diver-
75
sas escalas, desde a censura absoluta aos intelectuais, até os
fuzilamentos de opositores, chegando aos campos de concentra-
ção e trabalhos forçados, além do deslocamento físico de popula-
ções inteiras de camponeses que não se adaptaram à coletiviza-
ção forçada imposta pelo regime.
Na disputa geopolítica, que fazia nascer uma nova potência
militar, a segunda vida da Revolução foi-se moldando à antítese
do que foi o seu ideário inicial, terminando por confundir-se com
a lenda, cuja essência custou a ser percebida por parte dos forma-
dores de opinião, no mundo todo. Em virtude da polarização e da
luta ideológica com o capitalismo, inúmeros intelectuais do
Ocidente fecharam os olhos, por exemplo, para as montagens
grosseiras dos processos de Moscou.
Todo o arsenal de contradições entre doutrina e realidade não
a impediu de manter o discurso da solidariedade internacional
aos explorados, com a promessa de uma vida idílica na fase do
comunismo, ou da ajuda aos povos colonizados, mantendo a pola-
rização permanente com as potências capitalistas. Assim, a luta
ideológica criou uma realidade autorreferida, enquanto um
processo brutal de acumulação primitiva, por meio da expropria-
ção quase absoluta do excedente produzido, foi construindo uma
burocracia poderosa, o que não deixava de ser um canal de
promoção para uma elite operária, e de recompensa para as
adesões tardias ao partido.
Em sua fase de consolidação, nos anos 1937/40, o terror se
esmerou com prisões, fuzilamentos e campos de concentração,
que vitimaram milhares de “inimigos fabricados”, entre eles a
grande maioria de membros do próprio Comitê Central Bolchevi-
que, à época da Revolução. Praticamente dois terços dos bolchevi-
ques históricos foram presos e fuzilados como “inimigos do povo”,
em cenários macabros para desmoralizar os “traidores”, com
destaque para as lideranças históricas do Bolchevismo, como
Kamenev, Zinoviev e Bukharin, sem falar no exílio e assassinato
de Leon Trotski, organizador do Exército Vermelho, que garantiu
a manutenção do poder soviético no período da guerra civil.
Muitas análises atribuem a um desvio patológico de Stalin a
transformação da ditadura do proletariado em totalitarismo de
Estado, quando, de fato, a natureza que o regime assumiu já
estava dada na própria doutrina do partido. Estava tanto no Que
Fazer e Estado e Revolução, como na prática política dos primei-
ros momentos do governo. Prática que foi transformando uma
Júlio Martins1
E
m julho de 1919, o Partido Operário Social Democrata Russo
(POSDR), chamado de menchevique, apresentou um plano
com o objetivo de tirar a Rússia de uma profunda crise
política, social e econômica. As dificuldades vinham da exaustão
provocada pela I Guerra Mundial. Em novembro de 1917, a crise
havia se agravado com a tomada de poder pelos bolcheviques. Em
minoria, eles haviam fechado a Assembleia Constituinte, eleita
no final daquele mês. Depois, colocaram na ilegalidade o Partido
Constitucional Democrático e levaram o país à guerra civil. Em
seguida, o Partido Socialista Revolucionário foi banido, acusado
de apoiar a contrarrevolução.
Em 1918, os bolcheviques – a ala radical do POSDR que, àquela
altura, funcionava como partido independente – haviam se conver-
tido no governante Partido Comunista. Os mencheviques do
POSDR, agora comandados por Julius Martov, líder da facção de
esquerda denominada internacionalistas, foram tolerados. Apesar
de crítico em relação à repressão bolchevique, o POSDR apoiou o
Exército Vermelho contra o Exército Branco, resolveu aceitar o
regime dos sovietes (conselhos de representantes de operários,
camponeses, soldados e marinheiros) e lutar para transformá-los
em órgãos de poder democrático e parlamentar.
Com a guerra civil, os bolcheviques implantaram o “comu-
nismo de guerra”, de estatização total da economia. Sob a lide-
1 Jornalista e ensaísta.
79
rança de Vladimir Lenin, o novo governo distribuiu terra, porém
obrigou os camponeses a venderem a produção a baixos preços
exclusivamente para o Estado. As medidas do “comunismo de
guerra” levaram à desorganização da economia, causaram protes-
tos da população e revolta dos camponeses, obrigados à entrega
dos produtos agrícolas nas requisições forçadas. Somada à seca
no rio Volga, a situação caótica levou ao desabastecimento das
cidades e estima-se que cerca de cinco milhões de pessoas morre-
ram de fome, em 1921.
Diante da crise, o POSDR havia proposto, ainda em julho de
1919, um plano econômico de emergência, alternativo ao “comu-
nismo de guerra”. Articulado por Martov e intitulado “Que fazer?”,
o plano foi elaborado por uma comissão de mencheviques, alguns
deles economistas, encabeçada por Vladimir Gustavovich Groman,
Fedor Andreevich Cherevanin e Lev Mikhailovich Khinchuk, 2 com
as seguintes propostas:
Medidas econômicas
1 – Os camponeses devem reter, de forma coletiva ou individual,
à medida que possam decidir livremente, as terras públicas e priva-
das que eles apreenderam e dividiram no momento da revolução.
Outras terras, ainda não distribuídas, devem ser arrendadas, a
longo prazo, a camponeses necessitados e associações campone-
sas, com exceção das terras em que a criação de modelos de cultivo
em larga escala está sendo, e pode continuar a ser, realizada pelo
Estado ou pelos arrendatários. Os decretos de abolição dos Comi-
tês dos Pobres devem ser efetivados, sem exceção.
As comunas agrícolas não devem ser estabelecidas pela força,
direta ou indiretamente. Os suprimentos, implementos agrícolas
e sementes governamentais devem ser distribuídos de forma equi-
tativa não apenas entre as comunas, mas também para todos os
camponeses que as necessitam em comunas e terras soviéticas.
2 – O presente sistema de abastecimento de alimentos deve ser
substituído por um com base no seguinte:
a – O Estado deve comprar grãos a preços acordados envol-
vendo uma grande aplicação do princípio de permuta; devem
então ser vendidos a preços baixos para os moradores mais pobres
80 Júlio Martins
da cidade e do país, com o Estado compensando a diferença.
O Estado deve fazer compras por intermédio de seus agentes,
cooperativas ou comerciantes privados com base em comissão.
b – O Estado deve comprar, a um preço igual ao custo de
produção, uma certa proporção dos excedentes de grãos mantidos
pelos camponeses mais desfavorecidos nas províncias mais
férteis, sendo a proporção decidida com o conselho de represen-
tantes livremente eleitos do campesinato local.
c – O grão deve ser comprado por cooperativas e organizações de
trabalhadores, que devem, ao mesmo tempo, superar os estoques
que adquiriram aos órgãos governamentais ligados ao fornecimento
de alimentos. O Estado mantém o direito de requisitar os forneci-
mentos de grandes proprietários de terras que deliberadamente os
acumulam para fins especulativos. A logística de transporte está
sob o controle primário do Estado, de cooperativas e organizações de
trabalhadores. Todos os destacamentos antiespeculadores devem
ser dissolvidos. A transferência de produtos alimentares de uma
localidade específica não deve ser proibida, salvo em circunstâncias
excepcionais e por decisão da legislatura central.
O Estado deve assistir materialmente e por medidas adminis-
trativas a transferência de trabalhadores e suas famílias de luga-
res onde os alimentos são mais escassos e seu reassentamento
em áreas férteis.
3 – O Estado deve manter o controle das principais empresas
industriais que são fundamentais para a vida econômica, como
minas, planta metalúrgica, os principais ramos da indústria
metalúrgica etc. No entanto, em todos os lugares onde isso parece
melhorar ou animar a produção ou a extensão da sua variedade,
pode-se recorrer à organização de tais empresas por meio de uma
combinação de capital estatal e privado, pela formação obrigató-
ria de um truste sob controle do Estado ou, em casos excepcio-
nais, por meio de concessão.
Todas as outras grandes empresas industriais, exceto quando
o controle do Estado é desejável por razões fiscais ou outras e que
não seja prejudicial para a produção em geral, devem ser transfe-
ridas gradualmente para mãos privadas, arrendadas a uma
cooperativa ou a um novo empreendedor ou ao antigo proprietá-
rio, na condição de ele aceitar a obrigação de restaurar e organi-
zar a produção. O Estado deve regular a distribuição de combus-
82 Júlio Martins
a imposição de nomeados ou outra interferência em seus assun-
tos internos. Eles também devem ter o direito de exercer ativida-
des não comerciais, como publicação, educação etc.
Medidas políticas
1 – O direito de votar pelos membros dos sovietes deve ser
alargado a todos os trabalhadores de ambos os sexos. Os sovietes
da cidade e da aldeia devem ser eleitos por todos os trabalhado-
res, com uma cédula secreta e liberdade de prospecção de boca
em boca e pela imprensa. Os sovietes e os comitês executivos
devem ser sujeitos à reeleição em intervalos fixos. Os sovietes não
terão o direito de excluir membros ou grupos individuais de seu
meio por motivos políticos. Todos os funcionários e órgãos públi-
cos devem estar subordinados aos sovietes locais e aos Comités
Executivos Centrais.
2 – O Comitê Executivo Central dos Sovietes deve, mais uma
vez, funcionar como o supremo órgão legislativo e administrativo,
sendo seus procedimentos abertos à observação pública. A lei não
entrará em vigor sem ser discutida e aprovada pela CEC.
3 – A liberdade de imprensa, de assembleia e de associação
deve ser restaurada, e qualquer parte que represente os trabalha-
dores tenha o direito e a permissão para usar instalações para
reuniões, materiais de papelaria e impressoras etc. Qualquer
restrição deste direito que possa ser exigido pela guerra contra a
contrarrevolução deve ser estabelecida e claramente definida pela
legislatura; não deve violar a liberdade básica e deve ser aplicada
apenas pelos tribunais e instituições sob seu controle direto.
4 – Os Tribunais Revolucionários serão reorganizados de tal
forma que os juízes sejam eleitos por todos os trabalhadores.
Juntamente com suas comissões de investigação subordinadas,
eles serão os únicos responsáveis pelo
combate à contrarrevolu-
ção. Todos os funcionários devem responder diretamente em
ações judiciais ante estes Tribunais por atos ilegais cometidos no
exercício de suas funções, no processo da parte lesada em cada
caso. O terror será eliminado como um instrumento de governo; a
pena de morte será abolida e, igualmente, todos os órgãos inves-
tigadores e punitivos independentes dos tribunais, como a Comis-
são Extraordinária (CHEKA).
3 ASCHER, Abraham. The Mensheviks in the Russian Revolution. Thames & Hudson,
London, 1976, p. 111-117. Citado em: https://spiritofcontradiction.eu/bron-
terre/2012/08/11/what-is-to-be -done-the-menshivik-programme-july-1919.
4 HEGEDÜS, András. “A construção do socialismo na Rússia, o papel dos sindi-
catos, a questão camponesa, a Nova Política Econômica”. In: História do Mar-
xismo. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 1986. v. VII.
84 Júlio Martins
A NEP foi, em essência, a parte econômica do programa menche-
vique de 1919, cujo conceito era de um capitalismo de Estado, como
via intermediária para o socialismo, há tempos defendido pela II
Internacional. A NEP sofreu forte oposição da esquerda bolchevi-
que, encabeçada por Leon Trotski e pelo economista Ievguêni Preo-
brajenski. Mas a NEP conseguiu tirar o país da crise e garantiu
sustentação política ao governo soviético, ao permitir que os campo-
neses negociassem metade de sua produção no livre mercado, e,
assim, diminuísse o descontentamento no campo.
Após a morte de Lenin, em 1924, Bukharin se tornou o princi-
pal defensor da NEP. Ele se opôs ao seu abandono por Josef Stalin,
em 1928, ao promover a industrialização acelerada e a coletiviza-
ção forçada das terras, levando o país a outra guerra civil. Bukha-
rin foi fuzilado em 1938 e reabilitado 50 anos depois, em 1988,
pelo último líder soviético, Mikhail Gorbachev. Aliás, a tentativa
de tirar a economia soviética da estagnação, na segunda metade
dos anos 1980, a chamada perestroika (reestruturação), teve
inspiração na NEP. Como também as reformas econômicas
empreendidas por Deng Xiaoping, as quais tornaram a China
uma potência mundial. Em 1978, a China ainda era um país
agrário, como a velha Rússia, e não por acaso as reformas come-
çaram na agricultura, setor em que trabalhavam 90% da popula-
ção. Deng Xiaoping acabou com a coletivização das terras e intro-
duziu a propriedade familiar, com apenas uma parte da produção
vendida obrigatoriamente ao Estado.5
Em 1921, os mencheviques foram favoráveis às reivindicações
dos marinheiros de Kronstadt, mas não apoiaram a revolta. Toda-
via, os bolcheviques nunca foram dados a sutilezas. Acusado de
antissovietismo, o POSDR foi então definitivamente banido da
vida pública, seus líderes foram presos e vários deles fuzilados na
década de 1930. Experiências de economias mistas, semelhantes
à proposta pelos mencheviques, foram colocadas em prática na
Suécia, nos anos 1930, e na Europa ocidental do pós-guerra.
Segundo o historiador britânico Tony Judt, a combinação dos
setores público e privado foi um dos fatores determinantes para o
êxito da reconstrução europeia no ocidente.6
F
altava tudo em Moscou e os mineiros de Donetsk, na Ucrânia,
estavam em greve, inclusive na legendária Mina Outubro,
onde surgiu o movimento stakhanovista. A vaia em Gorba-
chëv, na Praça Vermelha, em pleno desfile de Primeiro de Maio, fora
o sinal de que a Revolução de Outubro havia se esgotado.
Voltava eu de Moscou para Buenos Aires, lendo As Mil e Uma
Noites (Brasiliense), num longo e enfumaçado voo da Aeroflot, lotado
de pescadores, que bebiam desesperadamente e fumavam papi-
roskas, como caiporas. A frota soviética do Pacífico Sul era formada
por verdadeiras fábricas flutuantes de pescado enlatado.
“Você vai morrer!”, repetiu o rei. “Aliás, agora você morreria
nem se fosse apenas para eu ouvir sua cabeça falar depois de
separada do corpo”. Dubane, o médico suspeito de espionar, fora
condenado à morte, mas desafiou o rei a ler um livro que faria sua
cabeça falar após ter sido decapitada.
“O rei obedeceu, molhando os dedos com a própria saliva para
separar as páginas do livro... E o veneno foi penetrando em seu
corpo. Viram-no ensaiar um passo, vacilar e cair”. A cabeça de
Dubane, exangue num prato, então, compreendeu que a droga
havia produzido seus efeitos e recitou estes versos:
87
Eles julgaram a seu modo
E se acumpliciaram nesse trabalho.
Dentro em pouco, seu poder parecerá que
nunca existiu.
Poderiam ter permanecidos justos e puros
mas abusaram do poder
e o mundo por seu turno os oprimiu
assim como a adversidade e a provação.
Ei-los vivendo na miséria. Seu presente
É tão somente o fruto do seu passado.
Quem pensará em censurar o mundo
Por os ter tratado assim.
A crise de desabastecimento
Numa conversa após o Primeiro de Maio, o economista Ygor
Gaidar, um dos editores de Economia do jornal Pravda, que
mais tarde viria ser o ministro da Fazenda de Boris Yeltsin,
A desintegração da URSS
De volta a Moscou, tinha um encontro marcado com o brasi-
lianista russo A. Karavaiev, autor do livro Brasil, passado e
presente do capitalismo periférico, que havia me chamado a aten-
ção porque defendia uma tese heterodoxa diante dos cânones da
III Internacional: a de que o nosso país poderia se tornar desen-
volvido por uma via não socialista. No dogma comunista, nenhum
país dependente teria chance de chegar lá por outra via que não
fosse a tomada do poder numa revolução nacional-libertadora,
seguida da construção do socialismo.
“Não vou conversar com você sobre o Brasil, que é um grande
país e hoje tem menos problemas que o nosso”, disse-me Kara-
vaiev. Tenso, o que ele queria falar era outra coisa: “a União Sovié-
tica está à beira da dissolução”. Fiquei perplexo: “Como assim,
vocês não resolveram a questão das nacionalidades?” A resposta
dele foi nua e crua. “Com o regime de partido único, a União
Soviética não sobreviverá. Os comunistas das repúblicas serão os
primeiros a declarar independência para permanecer no poder”,
disparou. Não deu outra.
No dia 8 de dezembro de 1991, Yeltsin, sem consultar Gorba-
chëv, comunicaria ao presidente Bush, o pai, que acabara de
extinguir a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Para Eric Hobsbawn, a queda da URSS e do socialismo no Leste
Europeu selou o fim do próprio século 20. Ninguém esperava isso,
mas também não foi um passe de mágica e sim o esgotamento de
um modelo de sociedade. O colapso político se deu quando os
militares sequestraram Gorbachëv e tentaram um golpe de
Estado, entre 19 e 21 de agosto daquele ano. Era outra pedra
cantada, na qual não quis acreditar.
A travessia do deserto
Numa das passagens de As Mil e Uma Noites, o vizir diz para
Sherazade o seguinte: “Aquele que não sabe adaptar-se às reali-
dades do mundo sucumbe infalivelmente aos perigos que não
soube evitar. Aquele que não prevê a consequência dos seus atos
não pode conservar os favores do século”.
103
Em vez da recapitulação impossível, mais vale nos determos
no “pecado oriental” daquele Estado e dos outros que, depois da
2ª Guerra, a ele se somaram por força de ocupação e constituíram
o “campo socialista”, com as instituições politicamente iliberais
que nasceram no começo acidentado e aventuroso do bolchevismo
no poder. Um patriarca da esquerda italiana, Pietro Ingrao, iden-
tificou como “vício de origem” da ideologia comunista o repúdio à
democracia e a escolha da violência revolucionária como método
privilegiado de ação. Um método que por definição exclui, divide e
mata, como se viu na coletivização forçada dos anos 1930 – de
fato, uma guerra civil disfarçada que teve como alvo o vasto
mundo dos camponeses, produzindo a fome, a carestia e o gulag.
O repúdio à democracia prolongar-se-ia pelas décadas afora e
se materializaria numa rígida estrutura estatal ocupada pelo
partido único, incapaz de se renovar, mesmo quando as condições
iniciais de cerco se desvaneceram ou se atenuaram razoavel-
mente, como foi o caso do quadro que se abriu com a vitória sobre
o nazismo e o fascismo – uma contribuição extraordinária da
antiga URSS, não por acaso ao lado das potências do capitalismo
democrático. Aqui, certamente por causa da natureza do mal
absoluto de que se revestia o nazismo, os comunistas de Stalin
assumiram-se corajosamente como a ala esquerda das democra-
cias, em defesa do patrimônio comum ameaçado.
Estruturas enrijecidas, no entanto, têm dificuldades hegemôni-
cas intrínsecas. Não importavam muito o desfile dos tanques na
Praça Vermelha, a ruptura do monopólio americano da bomba ou a
paisagem azul vista por Gagarin do espaço. Quem não tem capaci-
dade de direção pode se esconder sob o disfarce de atitudes agressi-
vas, mas no fundo não agrega nem atrai. O anticapitalismo, enten-
dido como contínua reproposição de confronto com o outro campo,
sobrepunha-se nos fatos ao antifascismo: o primeiro é uma espécie
de chamado das selvas, um convite a cerrar fileiras e a falar grosso;
o segundo, ao adotar valores “burgueses”, cedo ou tarde obriga a um
repensamento e a uma revisão dos métodos e da própria concepção
do mundo. Algo muito mais difícil e arriscado, naturalmente.
Não se sabe muito bem quando a URSS e o campo soviético
perderam a disputa com o Ocidente, fosse ela direta e confli-
tuosa, fosse redefinida nos termos da competição econômica e
da “coexistência pacífica”. Talvez mais cedo do que normalmente
se pensa, o século 20 transformou-se no “século americano” por
excelência. O americanismo, tal como percebido no cárcere por
1917 105
1917-2017 – Cem anos
que abalaram o mundo
Marly de A. G. Vianna1
A
Revolução Russa foi a primeira revolução proletária do
mundo. Foi o primeiro acontecimento mundial a mostrar que
o capitalismo não é o fim da história, que é possível cons-
truir uma sociedade sem que um grupo humano explore outro,
uma sociedade solidária para além de suas fronteiras nacionais.
Esta era uma utopia que a Revolução Russa concretizou e por
ter sido tão radical em sua transformação da sociedade, é natural
que polarize opiniões: de um lado, como disse Marx, os que nada
tinham a perder e todo um mundo a ganhar; de outro, aqueles
que defendiam sua sobrevivência enquanto classe dominante.
Inevitável polarização, de ideias e de atitudes.
Para aqueles que se colocam na firme defesa da Revolução de
Outubro cabe entendê-la, tanto nos seus acertos, que foram imen-
sos, quanto nos seus erros e descaminhos, que foram também
muitos e que levaram a que se encerrassem ingloriamente os 70
anos do Estado soviético.
Muito já se escreveu sobre a Revolução Russa, tanto no sentido
de procurar entendê-la e explicá-la quanto no sentido de denegri
-la. Há algum tempo tentava-se apagar os acontecimentos de
1917, dando-os como coisa passada e ultrapassada, jurássica. Já
nesses cem anos da Revolução a tentativa é de desqualificar os
107
acontecimentos de outubro de 1917: um golpe, uma aventura, que,
como no pecado original, guardava em si os embriões do stali-
nismo. Mas, “quaisquer que sejam as palavras para expressá-lo,
o comunismo é irredutível às suas falsificações burocráticas”.2
Sobre a atualidade das questões que se colocaram há cem
anos para os bolcheviques destaco as discussões sobre o caráter
da revolução – reforçar um governo liberal burguês (um avanço
diante do tzarismo) ou avançar para o socialismo? Uma revolu-
ção por etapas ou uma revolução permanente? Nacional “demo-
crática” (democrática ainda mantendo o capitalismo...) ou socia-
lista? Para avançar na resposta a estas questões é preciso
avaliar: qual a força ou quais as forças fundamentais da revolu-
ção? Qual o instrumento para organizá-las? Qual a política de
alianças a ser procurada?
Tais questões foram sendo respondidas por Lenin – Vladimir
Ilitch Ulianov (1870-1924), no decorrer dos acontecimentos revo-
lucionários, levando em conta a situação concreta em que os fatos
se desenrolaram. Para entender a revolução é preciso considerar
seus antecedentes. Vejamos.
Os Romanov
A dinastia dos Romanov durava há três séculos, fundada que
fora em 1613. Deles, interessa-nos aqui o último tzar, Nicolau II,
Nicolau Alecssandrovitch Romanov (1868-1918) e sua maneira de
encarar o poder e administrar o império. Papel importante nos
acontecimentos do final da dinastia teve a tzarina, Alecssandra,
neta da rainha Vitória (1819-1901). Seu nome de batismo era Alicy
Victória de Hesse e ao adotar a religião ortodoxa para casar-se
com o tzar recebeu, como era de praxe, o nome de Alecssandra
Feodoróvna (1872-1918). Consta que um dia a rainha Vitória lhe
disse que governar era difícil e seria preciso cultivar e fortalecer o
amor dos súditos, ao que Alecssandra teria respondido:
A senhora está equivocada, querida avó. A Rússia não é a Ingla-
terra. Aqui não precisamos ganhar o amor do povo. O povo
russo reverencia seus tzares como se fossem divinos. [...] No
que diz respeito à sociedade de Petersburgo isso se pode esque-
cer totalmente.3
A Revolução de 1905
O domingo sangrento – 9 de janeiro de 1905 – ocorreu quando
centenas de trabalhadores endomingados dirigiam pacificamente
uma petição ao tzar e foram brutalmente reprimidos, o que provo-
cou o primeiro grande abalo à dinastia Romanov. Operários,
camponeses e trabalhadores pobres se rebelaram e durante mais
de um ano, por toda a Rússia, protestaram de armas nas mãos
contra o tzarismo. Apesar da derrota e da brutal repressão que se
seguiu, foi um grande aprendizado político para o povo. Da revolta
surgiu a inovadora forma de organização política que foram os
sovietes, forma de organização e de governo adotada mais tarde
pela revolução de 1917.
Apesar de resistir a mudanças, Nicolau acabou por assinar,
em agosto de 1905, a concessão de direitos políticos a todos e
um parlamento, a Duma [parlamento russo], que seria eleita por
sufrágio quase universal. As concessões duraram pouco e a
repressão foi violenta. Com a aprovação do imperador, os rebel-
des foram dizimados. O tzar aconselhava a um subordinado em
Kiev: “Faça com que os revoltosos sejam aniquilados e suas
casas incendiadas”. Houve mais de 15 mil mortos e 45 mil depor-
tados.5 Progroons mataram mais de 80 judeus, em Odessa, e
três mil, de Vilna a Kicheniev. Criou-se a União do Povo Russo,
que tinha como divisa “Tzar, fé e pátria”, uma ala direitista das
milícias Centúrias Negras, nacionalistas brutais que perse-
6 Idem.
A guerra
Com o início da Primeira Guerra Mundial, surgiu um bloco
progressista na Duma, que pretendia mudanças constitucionais.
O tzar continuava a rejeitá-las, pressionado pela tzarina que, por
sua vez, obedecia às ordens de Rasputin. Alecssandra escreveu ao
tzar: “Seja mais autocrático, meu querido, nunca se esqueça de
que você é e deve se manter imperador autocrático. Não estamos
preparados para um governo constitucional”.7
Quando Nicolau, no segundo semestre de 1916, resolveu assu-
mir pessoalmente o comando do Exército, Alecssandra passou a
responder pelo governo, sempre assessorada por Rasputin, o que
piorou muito a situação da dinastia. A tzarina era absolutamente
antipovo e o povo a odiava. Em dezembro de 1906, por exemplo,
declarara: “... a Rússia gosta de sentir o chicote – é a natureza
dela – amor com ternura e depois mão de ferro” – acreditava firme-
mente nisso e jamais incentivou qualquer concessão.
Os problemas causados pela guerra, em especial o recruta-
mento forçado, o despreparo das tropas mal equipadas e a péssima
administração foram minando o tzarismo. As sugestões de seus
vários ministros para a realização de algumas reformas liberali-
zantes foram sempre desconsideradas – Nicolau não aceitava
qualquer mudança.
A revolução de fevereiro
Com os revezes que o exército russo vinha sofrendo, em espe-
cial a partir de 1915-16, as deserções aumentaram muito. Contam-
se aos milhões as vítimas russas da guerra – cerca de dois milhões
de mortos, muito maior número de feridos e mutilados e outros
tantos feitos prisioneiros. A situação da população piorava a olhos
vistos e crescia a insatisfação. Não havia comida, a exploração da
7 Idem, p. 726.
8 A cidade foi fundada em 1703, por Pedro, o Grande, com o nome de São
Petersburgo. Em 1914, pela guerra contra a Alemanha, o nome, com origem
germânica, foi mudado para Petrogrado. Em 1924, depois da morte de Lenin,
passou a ser Leningrado. Com o fim do socialismo, voltou-se ao nome original de
São Petersburgo.
As “Teses de Abril”
As “Teses de Abril” são o documento mais importante da Revo-
lução Russa, sua “certidão de nascimento”. Nelas estão concen-
tradas todas as diretivas fundamentais para o momento revolu-
cionário. Lenin defendia que nenhuma concessão deveria ser feita
ao defensismo revolucionário (tese 1); que o atual momento na
Rússia se caracterizava pela passagem da primeira etapa da revo-
lução, que deixou o poder nas mãos da burguesia, às mãos do
proletariado e dos camponeses pobres (tese 2); nenhum apoio
deveria ser dado ao governo provisório (tese 3); era preciso reco-
nhecer que os bolcheviques ainda eram minoria nos sovietes. Era
preciso explicar às massas, até convencê-las, que a única forma
possível de governo eram os sovietes (tese 4); não era possível
Os acontecimentos de junho-outubro
De junho a outubro de 1917, a situação política foi se radicali-
zando. Em junho, como ministro da Guerra, Kerenski resolveu
desencadear uma ofensiva militar, que fracassou. Foi um momento
de grande agitação, pretexto para o governo atacar os bolchevi-
ques, proibindo seus jornais, fechando suas sedes e prendendo
vários de seus líderes. Lenin teve que se exilar na Finlândia.
A 23 de julho, Kerenski formou um novo governo, pretendendo
consolidar-se no poder e manter a guerra. A desvalorização do
rublo e as agitações operárias fizeram com que muitos industriais
fechassem suas fábricas, aumentando o desemprego e a fome,
situação que levou a que os operários começassem a apoiar o
controle operário proposto pelos bolcheviques. A cada dia ficava
mais claro que eram eles que tinham razão.
No campo, organizavam-se comitês e tomavam-se as terras,
fazendo com que também os camponeses se aliassem aos bolche-
viques, os únicos que consequentemente defendiam sua causa,
pela qual o governo provisório nada fizera.
Aproveitando-se da situação conturbada e apavorados com a
mobilização popular, industriais e generais de direita se uniram
para depor o governo provisório e controlar a situação. A 25 de
agosto, o general Lavr Gueorguievitch Kornilov (1870-1918) tentou
um golpe de Estado, mas os sovietes organizaram a defesa contra
o golpe e Kerenski foi obrigado a aceitar – a pedir – a ajuda dos
Outubro
A 31 de agosto, o Sóviet de Petrogrado votou a resolução apre-
sentada pelos bolcheviques de que todo o poder fosse entregue aos
sovietes. Os conselhos de vários outros lugares e regiões apoiam
o de Petrogrado. A 23 de outubro, Trotski (Lev Davidovitch Brons-
tein – 1879-1940) foi eleito presidente do Sóviet de Petrogrado.
Estava ficando evidente que o II Congresso dos Sovietes de Solda-
dos, Operários e Marinheiros de toda a Rússia, marcado para 25
de outubro, exigiria o poder para si, acabando com qualquer
opinião favorável à conciliação com a burguesia do governo provi-
sório. Lenin estava convencido de que, tendo conseguido a maio-
ria nos sovietes das principais capitais, era a hora de convocar o
povo a tomar o poder.
Ivar Tenissovitch Smilgá (1892-1937), que era presidente
do Sóviet Regional do Exército e da Marinha e dos operários da
Finlândia, conspirava com Lenin contra a maioria do comitê
central que ainda não estava convencida que chegara a hora da
tomada do poder. Trotski e Stalin propuseram o boicote ao
pré-parlamento que deveria surgir da Conferência Democrática
convocada por Kerenski e venceram no comitê central, por nove
votos a oito.
Já os bolcheviques de Moscou exigiam a insurreição e, no dia
9 de outubro, Trotski conseguiu aprovar a formação de um comitê
militar revolucionário para organizar um estado maior da revolu-
ção.15 No dia 11, delegados bolcheviques que chegavam para o II
congresso foram convocados a Petrogrado, enquanto que os navios
da Marinha colocaram suas rádios a serviço dos bolcheviques.16
No dia 16 de outubro, reuniu-se o comitê central ampliado
que, por 19 votos contra dois e quatro abstenções, rechaçou
proposta de Grigori Yevseeievitch Zinoviev (1883-1936) de que se
17 Idem, p. 97.
18 DEUTSCHER, Isaac. Trotski, O profeta armado. Tradução de Waltensir Dutra.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 315- 316.
19 BROUÉ, P., op. cit., p. 98.
20 REED, John. 10 dias que abalaram o mundo. Trad. de Armando Gimenez. São
Paulo: Fulgor, 1963, p. 157.
A guerra civil
Em maio de 1918, começou a guerra civil, com o levante da
Legião Tchecoeslovaca, 27 a que se juntaram voluntários russos
contrarrevolucionários. Vinham de oeste e ocuparam Cheliabinsk
e Omsk até alcançar o Volga Central. Os aliados iniciaram a
intervenção: tropas anglo-franceses desembarcam em Murmansk
e depois em Arkangel. Guerrilheiros ucranianos combatiam os
alemães na Ucrânia quando os aliados desembarcam cem mil
homens em Vladivostok. No sul, o general monarquista Anton
Ivanovitch Denikin (1872-1947) mobilizou um exército de voluntá-
rios e, em novembro, o almirante Alecssandre Vassilievitch
Kolchak (1874-1920) assumiu o comando contrarrevolucionário.
Tropas francesas desembarcaram em Odessa e ocuparam o sul
da Ucrânia e a Crimeia, e os ingleses o Cáucaso, Kuban e o leste
do Don. No início de 1919, os soviéticos estavam cercados.
Os aliados estavam divididos entre continuar ou não a ofen-
siva e acabaram por resolver pelo fornecimento de armas aos
russos contrarrevolucionários, abandonando o campo de bata-
lha. Em maio de 1919, Kolchak chegou aos Urais; Denikin tomou
o Sul; Nikolai Nikolaievch Yudenich (1862-1933) desceu da Estô-
nia e ameaçou Petrogrado, que sofria com epidemia de tifo e com
a fome. A 19 de outubro chegou a 15 km da cidade. Trotsky, em
seu trem blindado, conseguiu derrotá-lo e pouco depois o 5º Exér-
cito Vermelho expulsou Kolchak de Omsk, destruindo completa-
mente o exército branco, em janeiro de 1920. Kolchak foi preso e
fuzilado. No entanto, o barão Piotr Nicolaiev Wrangel (Peter Von
Wrangel – 1878-1928), tzarista, conseguiu reunir restos do exér-
cito de Denikin e atacou a Ucrânia, sendo derrotado em novembro
de 1920, o que pôs fim à guerra civil, durante a qual os bolchevi-
ques contaram com o apoio decisivo dos grupos anarquistas, em
Concluindo
Não houve revolução no mundo. A guerra civil havia deixado o
país arruinado e o comunismo de guerra, com as requisições no
campo, deixava os camponeses revoltados. Nas cidades, o povo
estava faminto e eram muitas as reivindicações, o que acabou por
provocar o levante dos marinheiros de Kronstadt. A situação
interna era desesperadora e o inimigo externo aguardava qual-
quer oportunidade para intervir em ajuda aos brancos. Também
não foi possível sair da guerra sem perdas importantes.
Com a assinatura do tratado de Brest-Litovski, os social revolu-
cionários de esquerda se retiraram do governo, do qual os outros
social revolucionários e os mencheviques já tinham saído. “Nenhum
destes pensou que, diante do regime nascido de outubro, pudesse
se abrir um futuro de esperanças”.30 E não só isso, começaram a
atuar contra os bolcheviques. O próprio Lenin sofreu um atentado
por parte da revolucionária anarquista Fany Kaplan, que conside-
rou a assinatura do tratado uma traição à revolução.
A Nova Política Econômica, NEP, foi estabelecida depois da
morte de 5 milhões de pessoas, no inverno de 1921-22. Acabava-
Referências
AVRICH, Paul. La tragédie du Cronstadt, 1921. Paris: Ed. du Seuil,
1975.
BROUÉ, Pierre. O partido bolchevique. Trad. de Paula Maffei e
Ricardo Alves. São Paulo: Sundermann, 2014
D
urante a visita do presidente norte-americano Richard
Nixon à China, em 1972, o primeiro-ministro chinês
Zhou en Lai, perguntado sobre o impacto da Revolução
Francesa, respondeu que era ainda muito cedo para avaliar. Se
isso é verdade sobre um evento ocorrido há mais de três séculos,
o que dizer de uma revolução como a russa, que completa este
ano “apenas” cem anos?
Ainda assim, a efeméride da revolução russa e da sociedade
que dela nasceu não pode esperar o amadurecimento da História;
sua importância exige uma avaliação, mesmo que parcial, daquele
evento que o historiador inglês Eric Hobsbawm elegeu como o
“início do século 20” e cujo colapso, em 1991, marcou, segundo
ele, o final do século passado.
Para todos aqueles que, de uma forma ou de outra, se inspira-
ram na Revolução de 1917 – partidos políticos, movimentos,
pensadores, ativistas etc. –, a reflexão sobre o legado daquele
evento é especialmente espinhosa. A inspiração que a revolução
gerou para a luta contra as desigualdades econômicas, sociais e
políticas do capitalismo, a esperança em uma sociedade socia-
lista, a vitória da União Soviética contra o nazismo, os notáveis
êxitos do país no campo das ciências e o apoio aos movimentos
contra o colonialismo são conquistas que foram, por sua vez,
contrabalançadas pelo evidente autoritarismo do regime comu-
125
nista: a sistemática violação dos direitos humanos – que durante
o período stalinista transformou-se em perseguições e massacres
generalizados –, o domínio asfixiante da burocracia, o controle
das manifestações artísticas e, por fim, o lento e agonizante declí-
nio econômico e político que culminou com o desmoronamento do
império soviético, em 1991.
Que herança devemos então acolher da experiência da Revo-
lução Russa, e o que dela devemos rechaçar? Sem a pretensão de
apresentar uma resposta conclusiva a estas questões, argu-
mento nestas breves linhas que a genuína Revolução Russa
ocorreu em fevereiro de 1917, e não em outubro. A tomada do
poder pelos bolcheviques, em larga medida, desvirtuou o curso
dos acontecimentos após a queda do czar em fevereiro, impe-
dindo a revolução de construir uma ordem democrática. Contudo,
para compreendermos os acontecimentos que levaram à Revolu-
ção Russa, é necessário abordar alguns aspectos da sociedade e
do Estado russos, que criaram as condições para a revolução e
a queda do regime czarista.
Referências
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. São Paulo: Companhia das
Letras, 2016 [1963].
BLACKBURN, R. (Org.) Depois da queda. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1992.
GURKO, V. I. Figures and Features of the Past. Stanford University,
Stanford, CA, 1939.
LENIN, V. I. Obras escolhidas, em três tomos. São Paulo: Alfa-
Ômega, 1979.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas em três tomos.
Lisboa: Avante, 1985.
PIPES, Richard. The Russian Revolution. New York: Random House,
1991.
Raimundo Santos1
C
elso Furtado, entre 1961 e janeiro de 1964, escreveu
vários textos sobre a superação do subdesenvolvimento
brasileiro que são bem expressivos da sua influência na
cena pública. Teve incidência inclusive na esfera governamental,
chegando a formular, no final de 1962, como ministro do Planeja-
mento, o Plano Trienal (1963-65) do governo de João Goulart. No
mais conhecido desses textos, “Reflexões sobre a pré-revolução
brasileira”, publicado no seu livro A pré-revolução brasileira, em
agosto de 1962, ele propõe uma estratégia de reformas graduais,
sob vigência permanente das liberdades, como único caminho
para firmar uma sociedade aberta e pluralista no Brasil. Escrito
sob influxo dos debates sobre a reconstrução econômica europeia
do segundo pós-guerra, o autor procura com ele singularizar as
condições de concretização desse reformismo democrático inter-
pelando a Revolução de 1917 e seu modelo de sociedade socialista.
O autor discute, em primeiro lugar, os princípios da estratégia
reformista, em diálogo com o marxismo, à época largamente
aceito pelos estudantes universitários a quem dirigia chama-
mento à ação política transformadora. Ele salienta três dos seus
pontos doutrinários de grande convencimento: o marxismo
denuncia a ordem social existente como uma ordem “em boa
medida” baseada na exploração do homem pelo homem, revela o
137
caráter histórico da realidade social, indicando ser possível iden-
tificar-se “os fatores estratégicos que atuam no processo social”, e
abre a porta à “política consciente de reconstrução social”
(Furtado, 1962a, p. 17). Vê, neste ponto, sua “atitude positiva e
otimista, com respeito à ação política, e bem corresponde aos
anseios da juventude” (Furtado, 1962a, p. 17). Assim resume
suas observações sobre o marxismo: “...aí encontramos, por um
lado, o desejo de liberar o homem de todas as peias que o escravi-
zam socialmente, permitindo que ele se afirme na plenitude de
suas potencialidades, e, por outro, descobrimos uma atitude
otimista com respeito à autodeterminação consciente das comu-
nidades humanas. Trata-se, em última instância, de um estádio
superior do humanismo; pois, colocando o homem no centro das
preocupações, reconhece, contudo, que a plenitude do desenvolvi-
mento do indivíduo somente pode ser alcançada mediante a orien-
tação racional das relações sociais” (Furtado, 1962a, p. 17).
O autor divisa na filosofia social de Marx os “anseios profundos
do homem moderno”, cujas raízes mais vigorosas, diz ele
ampliando o ponto, “vêm do humanismo renascentista que reco-
locou na pessoa humana o foco do seu destino, e seu otimismo
congênito emana da Revolução Industrial que deu ao homem
controle do mundo externo”. (Furtado, 1962a, p. 17-18).
No seu diálogo com a juventude da época, Furtado define os
objetivos fundamentais da estratégia proposta, relegando a
segundo plano aquilo que chama de “simplesmente operacional”.
Um exemplo é a propriedade privada dos meios de produção, a
empresa privada, à qual, diz ele, não se pode atribuir mais que
um caráter operacional (Furtado, 1962a, p. 18). Ela é simples
forma descentralizada de organizar a produção que deve estar
subordinada a critérios sociais. E sempre que exista conflito entre
os objetivos sociais da produção e sua forma de organização em
empresa privada, medidas para assegurar o interesse social deve-
riam ser tomadas (Furtado, 1962a, p. 18). Menciona ainda o
fato de que, “à medida que, em fases avançadas de desenvolvi-
mento”, vai-se alcançando maior abundância na oferta de bens,
menos importância vão tendo as formas de organização da produ-
ção, passando a ser mais relevante o controle dos centros do poder
político, de onde saem normas de distribuição e de utilização da
renda social sob as formas de consumo público ou privado
(Furtado, 1962a, p. 18). O seu ponto é a definição dos objetivos
irredutíveis “ligados à nossa própria concepção de vida”, evitando-
se confundir meios e fins (Furtado, 1962a, p. 18). Ele cita
Roberto Freire1
A
Revolução Russa – independente da visão de quem a analise
e da avaliação ser profunda ou não – se constitui o maior
acontecimento do breve século 20. Não é grat uito, portanto,
que, no mês de novembro, em todo o planet a, os mais importantes
veículos da mídia lhe dedicaram reportagens, artigos, entrevis-
tas e programas especiais, e em muitas universidades e centros
de investigação e pesquisa ocorreram e ainda estão ocorrendo os
mais diversos tipos de debates na busca de fazer um balanço dos
"dez dias que abalaram o mundo", há 100 anos atrás.
Sem deixar de considerar os desvios e distorções que foram
ocorrendo, no decorrer do processo revolucionário na pátria de
Leon Tolstoi, comuns, aliás, a todas as grandes rupturas históri-
cas, de que é exemplo mais eloquente a Revolução Francesa, deve-
mos começar por destacar os imensos ganhos obtidos pela socie-
dade humana nessa viragem promovida pelo povo russo e com
repercussões em todos os continentes.
A consequência mais positiva para todos os povos, sem dúvida, foi
o fim do Império Russo e da Monarquia corrupta e atrabiliária que lhe
dava sustentação. Controlada por czares e uma nobreza proprietária
de grandes glebas de terra, que mantinham sua vida de luxo e para-
sitária, a sociedade russa era talvez a mais desigual, injusta e arbitrá
ria então existente na Europa, apoiada na exploração de milhões de
147
famílias camponesas despossuídas de terra, de liberdade, de educa-
ção, e no domínio escravagista sobre outros povos.
Com a sacudida revolucionária, os trabalhadores russos, uma
grande parte trans formados compulsoriamente em soldados e
servindo de bucha de canhão para os fins belicistas do seu
governo, conquistaram a tão almejada paz (pondo fim à I Guerra
Mundial) e os direitos elementares de que careciam. E tão impor-
tante quanto isso: fizeram de um país reconhecidamente atra-
sado, em apenas 30 anos, uma das potências econômicas e mili-
tares do mundo.
No plano das relações internacionais, destaque-se que a antes
belicista e expansionista Rússia, a partir de então se tornou um
país cuja nova direção se preocupava com a paz entre os povos, o
que teve evidência maior quando dos acontecimentos da II Guerra
Mundial, de 1939 a 1945. Estão aí nos registros históricos que
quem mais sofreu o peso da última carnificina foi a então União
Soviética, destruída materialmente pelos bombardeios aéreos e
invasões da "razzia" das tropas hitleristas, e a que teve maior
número de perdas humanas.
Talvez o destino da Humanidade não fosse o mesmo se não
tivesse sido derrotada a máquina de guerra alemã, graças sobre-
tudo à coragem e à capacidade de resistência e de luta dos sovié-
ticos. É uma dívida que a Europa, em particular, e o mundo, no
plano geral, têm para a conquista da tão ansiada paz.
A saga russa – a partir do seu exemplo concreto de que é pos
sível se chegar ao poder e fazer mudanças – foi um dos elementos
decisivos também para deto nar um rico processo de grandes
batalhas e movimentos em favor da libertação dos povos e da des
colonização pelos continentes, tendo como paradigma a inde
pendência negociada pelo governo dos sóvietes e as lideranças do
país vizinho pondo fim ao domínio russo sobre a Finlândia.
Inegável que o mapa mundi mudou completamente, após o
Outubro Vermelho, graças sobretudo ao apoio moral e material
dado à autodeterminação dos povos, um dos principais valores e
bandeiras levantados pelos comunistas dentro de sua visão inter
nacionalista. Isso é tão evidente que hoje existem apenas alguns
resquícios de colônias, exceção que confirma a regra geral.
Outro elemento forte a considerar diz respeito à imensa reper-
cussão de como um partido aguerrido, mesmo que pouco nume-
roso, porém consciente do seu papel histórico a desempenhar e do
M
uito se falou da Revolução de 1917 na Rússia. Hoje quase
exclusivamente fala-se mal, em especial nas grandes
mídias, sempre a serviço do grande capital. Mas também
se fala mal em boa parte daquilo que se conhece como esquerda.
Esquerda? Já que estamos falando de revolução me permito uma
citação de alguém que estudou seriamente o assunto:
[...] uma organização social nunca desaparece antes que se
desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter;
nunca relações de produção novas e superiores se lhe substituem
antes que as condições materiais de existência destas relações se
produzam no próprio seio da velha sociedade.2
153
luções acontecessem nos países de capitalismo avançado, em
particular na Alemanha.
A revolução ocorreu durante a primeira guerra mundial, de
1914 a 1918, na qual a Rússia sofreu perdas gigantescas. É o
governo revolucionário que, enfrentando enormes dificuldades
consegue assinar um tratado de paz em março de 1918, o que lhe
permite respirar. Logo depois a reação interna, apoiada nos exér-
citos de 14 países, inicia uma outra guerra, desta vez para derro-
tar a revolução, causando uma destruição indescritível.
No fim da guerra civil, em 1921, o proletariado urbano quase
que desaparecera na Rússia. Moscou tinha apenas a metade e
Petrogrado 1/3 de seus habitantes de antes da guerra. Lenin diz,
no 2º Congresso dos Servidores Políticos da Educação, em 17/10/21:
Um proletariado industrial que, por causa da guerra, da ruína
e das terríveis destruições, perdeu sua posição de classe, foi
afastado de seu caminho de classe e deixou de existir como
proletariado [...] e considerando que a grande indústria capita-
lista está arruinada e que as fábricas e oficinas estão imobili-
zadas, o proletariado desapareceu. Fizemô-lo algumas vezes
figurar como tal, de uma maneira formal, mas a verdade é que
não tinha raízes econômicas.
Sérgio C. Buarque1
N
o rigoroso inverno de Petrogrado, um grupo de soldados
montava guarda no pátio externo do Instituto Smolny.
Circulando em torno de uma pequena fogueira, o cabo
Volódia acendeu um cigarro, apontou para a sala iluminada no
segundo andar do edifício e comentou: “Camaradas, alí está sendo
decidido o futuro da revolução”. Naquela sala estava reunida a
direção do Partido Bolchevique, para avaliar a situação política
criada pela composição da Assembleia Constituinte (AC), eleita
em novembro e empossada no dia anterior.
Victor Chernov, destacado líder do Partido Socialista Revolu-
cionário, fora eleito presidente da AC, refletindo uma aliança
majoritária de socialistas revolucionários e mencheviques. Depois
do sucesso da insurreição de outubro (novembro no calendário
gregoriano), os bolcheviques pareciam atordoados com a derrota
eleitoral que os jogava numa desconfortável minoria na Consti-
tuinte. Nuvens densas acentuavam o frio inverno russo, emoldu-
rando o clima tenso da discussão dos bolcheviques diante de uma
dramática escolha. Todos pareciam perceber que estavam numa
bifurcação da história, num ponto de inflexão que marcaria defi-
nitivamente o futuro da revolução. Combinando o prestígio polí-
tico com a sua força retórica, Leon Trotski foi o primeiro orador a
defender a dissolução imediata do órgão constituinte.
157
– Camaradas. O partido e os sóviets de operários, soldados e
camponeses assumimos o poder e controlamos a Rússia. Este é o
poder legítimo do proletariado que acabou com a monarquia e cons-
truirá o socialismo. Não podemos agora, simplesmente, retroceder e
ceder o poder à burguesia e aos seus aliados mencheviques. Com a
insurreição de outubro, nós destituímos o governo provisório domi-
nado pelos mesmos socialistas revolucionários que agora mandam
na Constituinte. Esta eleição já foi um grande equívoco. Deixar que,
agora, os inimigos da revolução elaborem uma Constituição que tira
o poder dos Sóviets será uma traição histórica. Proponho a imediata
dissolução desta Assembleia Constituinte.
Tumulto na sala misturava aplausos e gritos de repulsa à
proposta de Trotski. Quase ao seu lado, Lev Kamenev levantou da
cadeira num gesto dramático, esperou que se fizesse silêncio e
argumentou, com voz pausada e monótona mas convincente,
contra a dissolução da Constituinte. “Decisão tão drástica e auto-
ritária – argumentou – é um desrespeito à maioria da população,
trabalhadores e camponeses que elegeram os socialistas revolu-
cionários e os mencheviques, além dos liberais burgueses. Nós
garantimos as eleições e participamos do pleito e não podemos,
agora, porque ficamos em minoria, anular tudo. O que vamos
dizer ao povo russo e ao mundo?”.
Lenin ouvia os argumentos das duas tendências e acompa-
nhava o debate em torno da decisão que definiria o futuro da
revolução. Ele sabia que, com apenas 24% dos delegados na AC,
os bolcheviques não poderiam impedir a elaboração de uma Cons-
tituição que, seguramente, decidiria por um sistema parlamentar
de governo com base no sufrágio universal, derrubando o poder
dos sovietes. Não gostaria, contudo, de um gesto duro de simples
dissolução de uma instituição que tinha sido eleita após a insur-
reição e com a participação do partido. Quando a discussão avan-
çou para gritos e acusações dos beligerantes, Lenin se levantou,
provocando um rumor carregado de expectativa, e disse:
– Camaradas. O camarada Trotski tem razão quando adverte
para o retrocesso de uma Constituinte com maioria reformista e libe-
ral. Mas Kamenev levantou aspectos relevantes na defesa da Assem-
bleia onde somos minoria, é verdade, mas precisamos considerar a
sua reflexão na nossa avaliação da realidade e na nossa decisão.
Fez uma pausa, olhando as caras inquietas, e concluiu:
– Vamos respeitar a Constituinte. Nossos deputados devem
formar alianças com os socialistas revolucionários de esquerda e
Silvio Pons1
“O
comunismo não deixou nenhuma herança ideal ou
cultural, nem mesmo no Ocidente. Mas, na China
contemporânea, vemos em ação a sua herança princi-
pal: a capacidade de dirigir a modernização como obra do Estado”.
Com Silvio Pons, presidente da Fundação Instituto Gramsci de
Roma e um dos maiores estudiosos europeus do comunismo sovi-
ético e ocidental (entre outras obras, é um dos organizadores de
uma monumental coleção Cambridge History of Communism,
recentemente publicada, em três volumes), discutimos o centená-
rio da revolução bolchevique, completado recentemente. (Andrea
Romano, Democratica, 2 nov./2017).
Andrea Romano – Naquele dia 7 de novembro de 1917, em
Petrogrado, verificou-se o nascimento de uma experiência histó-
ria complexa e dramática. Hoje, o que podemos dizer que foi, para
o bem ou para o mal, a herança histórica do comunismo?
Silvio Pons – Quando caiu o comunismo soviético, entre 1989
e 1991, o senso comum (intelectual, político e histórico) era que
aquele colapso não havia deixado nenhuma herança. François
Furet, no seu trabalho fundamental O passado de uma ilusão,
escreve que se a Revolução Francesa havia deixado um patrimô-
nio institucional e cultural muito além dos limites franceses, o
mesmo não se poderia dizer do comunismo.
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Hoje, ao contrário, devemos levar em conta que as coisas não
são assim. A permanência da China comunista, como quer que a
definamos, nos obriga a ver a continuidade desses regimes, mesmo
no novo século. É obvio que a China abandonou a organização
econômica de tipo socialista e atualmente representa uma econo-
mia capitalista integrada à economia mundial, mas a sua concep-
ção de Estado e a capacidade de dirigir a modernização por meio
da máquina estatal derivam diretamente do comunismo. Para o
bem ou para o mal, é esta a principal herança do comunismo.
Isso se vê também na Rússia de Putin, onde a herança do
comunismo soviético é subterrânea, mas não menos forte. Se
Putin é o novo czar, como agora é moda dizer, a referência do seu
autoritarismo estatal não é Nicolau II, mas diretamente Stalin, ou
seja, uma ideia de Estado com uma precisa fisionomia naciona-
lista, em continuidade com o comunismo soviético. Por outro lado,
à capacidade de modernização autoritária, dirigida pelo Estado
na China e parcialmente na Rússia, corresponde a ausência de
qualquer legado cultural. Hoje, não existe em nenhuma formação
da esquerda mundial uma herança ideal específica de derivação
comunista: a aspiração à igualdade e à emancipação já era patri-
mônio do movimento socialista e não se pode definir certamente
como produto do comunismo.
AR – Mas se poderia falar de um legado específico do comu-
nismo ocidental?
SP – Tudo o que ocorreu, depois do fim da guerra fria, demonstra
que o comunismo ocidental nunca representou um sujeito significa-
tivo, incisivo e identificável como tal. Só vale a pena refletir sobre a
Itália, único país onde o comunismo europeu deixou uma marca
nacional. Aqui, o pós-comunismo constituiu um protagonista da
segunda república, com todos os seus limites, e um recurso da
democracia italiana, sobretudo se considerarmos a defesa das insti-
tuições republicanas e os valores da integração europeia e suprana-
cional. Mas não é casual que esse legado não tenha se traduzido
tanto na capacidade de dar vida a verdadeiros sujeitos políticos
quanto na obra e no testemunho de algumas personalidades, entre
as quais a principal me parece a de Giorgio Napolitano.
AP – Eric Hobsbawm sustentava que, se o comunismo não
alcançou os seus objetivos, certamente obrigou o capitalismo a
se renovar.
SP – É uma afirmação que tem certamente fundamento, no
sentido de que, no curso do século 20, seguiu-se ao medo do
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Distribuição: