Interpretação Do Brincar Na Clínica PDF
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BRASÍLIA
JUNHO DE 2003
MARIANA BALDUINO DE MELO
Introdução.............................................................................................................. 4
Capítulo 1: O brincar nas relações objetais........................................................ 7
1.1 A função do jogo......................................................................................... 11
Capítulo 2: A interpretação na psicanálise ....................................................... 17
2.1 Considerações a respeito da transferência ................................................ 17
2.2 A interpretação propriamente dita .............................................................. 20
Capítulo 3: A interpretação do brincar .............................................................. 25
3.1 O brincar como linguagem.......................................................................... 25
3.2 O trabalho do psicanalista de crianças ....................................................... 28
Capítulo 4: Estudo de caso ................................................................................ 33
Conclusões .......................................................................................................... 45
Anexos ................................................................................................................. 48
Referências Bibliográficas ................................................................................. 51
Resumo
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precisar em que se constituem as interpretações nem em que momentos elas são
significantes dentro de um contexto de tratamento.
Nesse sentido, este estudo tem como objetivo geral a compreensão da
técnica de interpretação na psicanálise, em especial na análise infantil. Buscar-
se-á compreender a importância do brincar dentro do desenvolvimento infantil e as
formas como o jogo pode operar na criança. Propõe-se um estudo psicanalítico do
brincar, tendo como objetivo descrever as técnicas psicanalíticas sobre as quais a
análise está calcada, enfatizando o fenômeno da interpretação.
O presente trabalho será organizado em quatro partes. A primeira tem
como intuito ampliar a compreensão do brincar como um fenômeno infantil.
Pretende-se estabelecer uma conceituação do brincar ao indicar suas
características, seus significados e ao relacioná-lo com as relações de objeto que
a criança vai desenvolvendo. Em um segundo momento, serão realizadas
algumas considerações sobre o método utilizado na clínica psicanalítica, sem a
especificidade da análise infantil. Serão objetos de estudo a análise da
transferência e a abordagem interpretativa dos conflitos, enfatizando a importância
desse último processo na prática da psicanálise. A partir das relações das teorias
sobre o brincar na visão psicanalítica com os conceitos fundamentais desse
método, o presente estudo realizará uma articulação do brincar com a
verbalização, considerando tanto a produção do paciente como a interpretação do
analista.
Esse trabalho consistirá ainda em um capítulo que abordará um estudo de
caso da análise realizada com uma criança (pela autora desse trabalho), com o
intuito de ilustrar o fenômeno do brincar na clínica e a abordagem interpretativa do
analista.
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Capítulo 1: O brincar nas relações objetais
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reações dos dois pólos emerge. A insuficiência psíquica do bebê é compensada
pela intuição da mãe.
Spitz (1954/1968) denominou essa fase de anobjetal, uma vez que o bebê
e a mãe estão fundidos, não há a representação de objeto para este último. As
percepções do bebê são denominadas por esse autor de percepções de contato,
fundamentalmente diferentes das percepções à distância, como a percepção
visual ou auditiva.
Após os primeiros meses do bebê, é necessário um desinvestimento
gradual por parte da mãe, que permita a ele ir construindo uma certa autonomia
de funcionamento. Winnicott (1971/1975) afirma que não é necessário nenhum
sacrifício para que a mãe realize este movimento. A mãe suficientemente boa
continua presente fisicamente para o bebê, mas começa a ser tomada por outras
preocupações que não o seu filho – sua relação amorosa com seu parceiro, seu
trabalho e outros. Assim, o bebê começa a experimentar a falta e a partir daí surge
um início de atividade psíquica, que precede a vida fantasmática deste (Resende,
1997).
Dessa maneira, o bebê vai se desenvolvendo e vai se tornando uma
unidade diferenciada; ele consegue estabelecer uma espécie de membrana que
delimita o interior e o exterior, constituindo, assim, uma realidade interna – que
nos primórdios da infância ainda é bastante precária e limitada – diferente da
realidade externa que é constituída pelos objetos do ambiente.
Graças à integração contínua do ego da criança, ela consegue localizar e
identificar os objetos como externos a ela mesma, sendo que o primeiro objeto
para o qual convergem as pulsões – tanto amorosas quanto agressivas – dessa
criança será sua figura materna.
De acordo com Spitz (1954/1968), a conduta materna diante da forma como
seu bebê se apresenta será um dos elementos norteadores que constituirá as
relações de objeto do bebê. Dessa forma, as vivências deste estarão intimamente
relacionadas às vivências maternas. O comportamento da mãe vai dar o
significado – gratificante ou frustrante – de cada situação vivida pelo bebê. É
assim que a criança se tornará capaz de adaptar-se ao princípio da realidade.
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Winnicott (1971/1975) propôs um terceiro momento intermediário, situado
entre o primeiro estágio do bebê de dependência absoluta em relação à sua mãe
e o estágio seguinte, em que ele reconhece e aceita a realidade. Trata-se de uma
área entre o subjetivo e o que é objetivamente percebido; é um espaço composto
pela substância da ilusão.
O bebê relaciona-se com um objeto que não pode ser conceituado como o
primeiro objeto de suas relações, mas sim como sua primeira possessão. Esta
está relacionada com as atividades auto-eróticas que o bebê experimenta, tal
como sugar o polegar, e também com o primeiro boneco macio escolhido pelo
bebê. Essa possessão incorpora-se ao ritual dessas atividades, como por
exemplo, o bebê chupa o polegar enquanto acaricia o próprio rosto com um
pedaço de lençol que o cobre. Esse lençol, então, torna-se vitalmente importante
para o bebê e se constitui em uma defesa contra suas ansiedades.
Winnicott (1971/1975) denominou essas experiências de fenômenos
transicionais, por se situarem em uma realidade intermediária. Dentro de um
estudo teórico, ele postulou alguns princípios a respeito desses fenômenos, tais
como: “o objeto transicional representa a mãe ou o seu seio – objeto parcial – ou o
objeto da primeira relação. Este objeto precede o teste da realidade estabelecido.
Na relação com o objeto transicional, o bebê passa do controle onipotente
(mágico) para o controle de manipulação (envolvendo o erotismo muscular e o
prazer de coordenação)” (p.23).
Esse objeto vai sendo continuamente descatexizado por meio de uma
adaptação ativa da mãe às necessidades do bebê. Com o tempo, este vai sendo
capaz de tolerar experiências de frustração e isso faz com que o bebê tenha que
procurar respostas para seus incômodos no mundo externo, tornando, assim, os
objetos reais para ele.
Observa-se que a aceitação da realidade nunca é completada, há sempre a
angústia de relacionar a realidade interna com a externa e um possível alívio para
esse fato só se dá nessa área intermediária de experiência, que não é contestada.
Winnicott (1971/1975) compara esse espaço intermediário com a área do
brincar da criança. Enfocando a seqüência de relacionamento bebê/objeto, pode-
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se dizer que em um primeiro momento, o brincar se daria em um espaço potencial
entre mãe e bebê, estando situado entre o mundo interno deste e a realidade
concreta ou externa vivida por ele. A criança traz para dentro dessa área objetos
ou fenômenos oriundos do mundo externo, mas utiliza-os a serviço de algum
aspecto derivado de sua realidade, dando significado a essas situações e, assim,
elaborando e construindo o seu mundo.
Primeiramente, como já foi dito, o bebê e o objeto (sendo este a mãe) estão
fundidos um no outro. Em um momento seguinte, o objeto é repudiado, aceito de
novo e objetivamente percebido. Esse processo depende, essencialmente, do
relacionamento mãe/bebê e da confiança que é estabelecida nessas experiências.
Nessa fase, a brincadeira é bastante excitante porque é a partir dela que o bebê
obtém significações a respeito dos objetos que estão à sua volta.
Nesse momento, pode-se dizer que o bebê deve ser capaz de fazer uso do
objeto e não apenas de se relacionar com ele. Para usar um objeto, segundo
Winnicott (1971/1975), o sujeito precisa reconhecê-lo como externo à sua
realidade; isso faz parte da mudança do princípio do prazer para o princípio da
realidade.
Em um primeiro estágio, o bebê consegue apenas se relacionar com um
objeto (que pode ser ainda subjetivo). Depois, o objeto está em processo de ser
encontrado pelo bebê; ele começa a perceber que não foi ele que colocou o objeto
no mundo. O bebê, então, destrói o objeto. Se este sobreviver à destruição, ele se
torna externo ao mundo do bebê e ele pode, então, usá-lo.
Dessa forma, cria-se um mundo de realidade compartilhada em que o bebê
pode usar o objeto. Dentro da seqüência de relacionamento bebê/objeto, pode-se
dizer que a criança agora já tem a capacidade de brincar sozinha na presença de
alguém que está disponível e lhe proporciona segurança. Como Winnicott
(1977/1994) coloca “essa pessoa é sentida como se refletisse de volta o que
acontece no brincar “(p.71).
Em um terceiro estágio, a criança consegue brincar com alguém,
geralmente sua mãe. Em primeiro lugar, a mãe se ajusta às necessidades do
bebê. Depois, ela vai introduzindo suas próprias regras e a criança vai aceitando
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outras idéias que não as suas. Assim, traça-se um caminho para um brincar
conjunto em um relacionamento.
De acordo com Lebovici & Soulé (1970/1980) “com os primeiros progressos
da diferenciação objetal, o jogo torna-se cada vez mais um procedimento
simbólico a fim de dominar as relações desagradáveis com as imagens
introjetadas” (p. 162).
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A criança mostrava somente o perturbador costume de jogar longe de
si, a um canto do quarto, sob a cama, ou em lugares análogos, todos os
pequenos objetos que podia agarrar, de maneira que achar os brinquedos
não era tarefa fácil. Enquanto realizava o manejo descrito, costumava
produzir com expressão interessada e satisfeita, um agudo e largo som –
oooooo – que ao meu juízo e da mãe não correspondia a uma interjeição,
mas significava fora (fort). Observei, por último, que tudo aquilo era um jogo
inventado pela criança e que esta utilizava seus brinquedos para brincar com
eles de “estar fora”. Mais tarde, presenciei algo que confirmou minha
suposição: a criança tinha um carretel de madeira atado a um cordão e não
lhe ocorreu jamais levá-lo arrastado pelo solo, isto é, brincar de carro; mas
tendo-o amarrado pelo extremo do cordão, jogava-o com grande habilidade
por cima da tela de seu berço, fazendo-o desaparecer. Lançava, então, seu
significativo oooooo e puxava a corda até trazer de volta o carretel, saudando
sua aparição com um alegre “hei-lo aqui” (da). Este era, pois, o brinquedo
completo: desaparição e reaparição, jogo do qual quase nunca levava a cabo
mais que a primeira parte, a qual era incansavelmente repetida por si só,
apesar do maior prazer estar, indubitavelmente ligado ao segundo ato
(p.159).
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que ela mesma quer que a mãe saia. Ambas as interpretações representam
tentativas da criança de elaborar a ansiedade de separação.
A partir dessas observações, Freud (1920/1976) postulou algumas
características mais gerais a respeito do jogo. Este se baseia no princípio do
prazer; possibilita a transformação do passivo em ativo, sendo esta uma das
formas que a criança elabora experiências traumáticas; e satisfaz a compulsão à
repetição por meio do aprendizado obtido e do prazer derivado da própria
repetição.
Pode-se perceber que a criança repete, em seus jogos, tudo o que lhe
causou uma forte impressão na vida real, tanto prazerosa quanto desagradável.
Dessa forma, ela pode obter o controle da situação e revivê-la, dando um novo
significado à percepção dos fatos.
Alguns teóricos da psicanálise colocaram em discussão se esse jogo do
carretel, por não supor uma relação de duas pessoas, poderia ser considerado
uma atividade lúdica. Ajuriaguerra (1964) apud Lebovici & Soulé (1970/1980)
propõe que os movimentos autônomos da criança podem ser vistos como uma
preparação para o jogo, uma vez que eles proporcionam experiências de prazer
corporal que se manifestam a partir da presença da mãe. Dessa forma, todas
essas atividades funcionais podem ser denominadas de atividades pré-lúdicas.
Lebovici & Diatkine (1962/1985) acreditam que o que melhor define as
atividades pré-lúdicas é que elas permitem, graças à carga libidinal da função,
atuar sobre a mãe, a princípio de forma direta e, mais tarde, indiretamente,
quando as atividades se transformam verdadeiramente em jogos substitutivos.
Esse jogo do carretel pode ser considerado como uma atividade pré-lúdica
no sentido de que corresponde ao manejo de um objeto material substituto da
mãe. E esse manejo proporciona um prazer sensorial pela descarga de tensões
acumuladas na criança.
Essa atividade só pode ser denominada de jogo por causa da intervenção
do outro. Bénassy (1957) apud Lebovici & Diatkine (1962/1985) afirma que “é essa
relação mãe – filho, chamada relação objetal, que constitui toda a originalidade do
jogo. Este não implica somente em uma ação sobre o meio, mas também em uma
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ação sobre o ambiente, sobre as pessoas“(p.26). Somente em um momento
posterior no seu desenvolvimento que a criança é capaz de atuar em jogos mais
elaborados.
Existe também um outro aspecto da brincadeira que diz respeito ao desejo
da criança de crescer e poder agir como os adultos. Dessa maneira, ela tende a
imitar e repetir o comportamento dos adultos que estão à sua volta.
Erik Erikson (1959/1973) retomou o estudo do brincar da criança e propôs
três fases na evolução dos jogos. Na primeira, o desenvolvimento do jogo se dá
na “auto–esfera”, onde a criança explora sensações extra ou interperceptivas
relacionadas com o seu corpo ou com as pessoas que realizam seus cuidados
corporais, caracterizando as atividades pré-lúdicas supracitadas.
Na segunda fase, a criança brinca na “microesfera”, onde ela faz uso de
pequenos jogos representativos pelos quais exterioriza suas fantasias. Esta fase
ainda está interposta pela primeira, visto que, muitas vezes, a criança sofre
interrupções no jogo causadas por movimentos regressivos, que são basicamente
de ordem corporal.
Posteriormente, a criança realiza o jogo na “macroesfera”, onde ela já
consegue relacionar-se com os adultos, iniciando seu processo de socialização.
Erikson (1959/1973) enfatiza que, muitas vezes, o adulto desvaloriza o jogo
da criança, como uma atividade não responsável e sem muita importância. Porém,
é somente o adulto que pode conceder uma significação social para esta atividade
a partir de suas atitudes e sentimentos em relação ao jogo da criança. Assim, esta
encontra no jogo uma forma de incorporar a realidade social que a cerca.
Melanie Klein foi uma das percussoras no estudo da psicanálise infantil e
contribuiu de forma muito importante para a compreensão do brinquedo,
destacando seu papel estruturante no desenvolvimento emocional da criança.
Klein (1948/1970) apontou uma equivalência entre a forma de brincar e as
associações livres na análise de adultos, levando em consideração as diferentes
maneiras do brincar e suas respectivas fantasias inconscientes. Para a autora, a
mente humana pensa, desde o início, em termos de objetos. Parte do
desenvolvimento natural da criança é buscar novos objetos como substitutos dos
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anteriores. De acordo com Hinshelwood (1984/1992), Klein acreditava que o
brinquedo e os companheiros de jogos são uma forma de praticar uma
simbolização desse tipo.
Klein (1948/ 1970) postulou a tese da personificação nos jogos das
crianças, analisando as relações entre os personagens lúdicos, considerando
esses mecanismos como exemplos de diferentes formas de enfermidades. A partir
daí, a autora retoma o mecanismo de splitting, em que os objetos internos são
projetados sobre os brinquedos, que se transformam em suportes projetivos. Este
mecanismo está na origem da projeção lúdica e é um dos fatores que possibilita a
diminuição dos conflitos internos no brincar.
Aberastury (1971/1992) também realizou vários estudos a respeito do
processo lúdico. Ela afirma que o brinquedo – por ter características de objetos
reais, mas ser de tamanho reduzido, ser algo que a criança exerce domínio com a
permissão do adulto – transforma-se em um instrumento para o domínio de
situações penosas e traumáticas que ocorrem na relação com objetos reais. Além
disso, por ser substituível, o brinquedo permite que a criança repita situações
prazerosas e dolorosas que ela não pode reproduzir no mundo real.
A autora concorda com Klein, quando diz que, ao brincar, a criança projeta
para o exterior seus medos, angústias e problemas internos e domina-os por meio
da ação. No brincar, a criança pode vivenciar papéis e situações que seriam
proibidas na vida real e pode também repetir situações prazerosas.
Lebovici & Soulé (1970/1980) colocam que é muito comum em meninos
brincadeiras de combates violentos, que permitem, de certa maneira, que eles
dominem seus medos. Assim como a menina, que ao brincar de boneca pode
estar dominando seu medo e sentimento de culpa em relação à mãe, que está
sendo vivenciada como uma rival edipiana. Percebe-se, então, uma função
autocurativa do jogo espontâneo.
Winnicott (1971/1975) afirma que o brincar se dá em uma área transicional
e é, por essência, satisfatório. Isto só não é assim quando a brincadeira conduz a
um alto grau de ansiedade que resulta insuportável e destrói o brincar. O autor diz
ainda que somente no brincar é possível a comunicação, pois apenas nessa
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situação que a criança pode ser criativa e utilizar sua personalidade integral e é
somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self). “O brinquedo é,
primariamente, uma atividade criativa (tal como o sonho) desempenhada em
termos do real e em condições nas quais a criança tem confiança em alguém.
Através do brinquedo, a criança lida criativamente com a realidade
externa”(Winnicott, 1977/1994, p.50).
Lebovici & Soulé (1970/1980) lembram que, em muitos casos, a criança
constrói em seus jogos um mundo que possui um valor representativo, o qual nem
sempre exprime o que ela gostaria de construir. Esses lapsos de jogos mostram
que a organização do jogo representativo pode ser considerada como significativa
da organização psíquica.
Na clínica infantil, o jogo é o veículo que dá acesso ao inconsciente da
criança e permite que se estabeleça uma análise dentro daquele contexto. Ele
adquire um caráter particular na psicanálise a partir do momento que o analista
fornece interpretações do material que surge nas atividades lúdicas. O capítulo
seguinte tem como objetivo analisar o fenômeno da interpretação dentro da
psicanálise, para que, em um próximo momento, seja possível a articulação
desses dois fenômenos, o brincar e a interpretação psicanalítica.
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Capítulo 2: A interpretação na psicanálise
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Sousa e Abuchaim (1994) afirmam que quando o analista passa a fazer
parte do mundo psíquico do analisando – e na psicanálise busca-se esse tipo de
relação logo no início do tratamento, como condição para que este possa se
estabelecer – o terapeuta alcança as condições necessárias para levar o paciente
a reconhecer as transferências que atuam no vínculo entre os dois. Inicia-se,
assim, o processo de análise.
Freud (1912/1976) fornece uma explicação bastante clara de como a
transferência é ocasionada no tratamento analítico. Ele diz que cada indivíduo, por
meio da combinação de sua disposição inata e da influência sofrida pelo ambiente,
constituiu uma forma própria de conduzir-se na vida erótica. Cada sujeito tem um
método específico de enamorar-se e relacionar-se com objetos e isso que irá
determinar o processo de desenvolvimento psíquico do indivíduo.
Freud (1912/1976) observou que parte dessas pulsões que determinam a
vida erótica do sujeito são conscientes e são dirigidas para a realidade, porém,
outra parte delas permanece retida no inconsciente e impedida de expressar-se,
podendo apenas (quando pode) manifestar-se por meio da fantasia. O autor
coloca que:
Se a necessidade que alguém tem de amar não é inteiramente
satisfeita pela realidade, ele está fadado a aproximar-se de cada nova
pessoa que encontra com idéias libidinais antecipadas; e é bastante provável
que ambas as partes de sua libido tenham sua cota na formação dessa
atitude. Assim, é perfeitamente normal e inteligível que a catexia libidinal de
alguém que se acha parcialmente insatisfeito, uma catexia que se acha
pronta por antecipação, dirija-se também para a figura do médico (p. 27).
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características do paciente; estas vão se revelando para o analista ao longo do
tratamento.
Dentro da análise, inicialmente, a transferência se manifesta como uma
resistência ao tratamento. Ao se analisar um sintoma ou um complexo patogênico,
percebe-se que pulsões eróticas recalcadas que estavam destinadas a objetos
amorosos são transferidas para a figura do analista. Esses sentimentos
conseguem penetrar na consciência, porém o paciente não consegue associá-los
aos reais objetos de seu destino.
O paciente não consegue recordar seus sentimentos e idéias recalcadas,
mas, por uma espécie de compulsão à repetição, revive com o analista sua forma
de relacionar-se com os objetos amorosos, configurando seu método específico
de conduzir sua vida erótica. Por exemplo, Freud (1912/1976) coloca que um
paciente não diz que recorda de ser desafiador em crítico em relação à autoridade
dos pais, mas comporta-se de maneira desafiadora e crítica em relação à figura do
analista.
Nota-se, então, que a transferência já se constituiu como um fragmento de
repetição de um passado não lembrado, que ocorre não apenas com o analista,
mas com todas as atividades e relacionamentos do paciente naquele momento.
Assim, a transferência se configura como um elemento de resistência,
porém, ao mesmo tempo, ela pode (e deve) ser usada como um veículo de cura e
condição de sucesso do tratamento. É a partir dos fenômenos de transferência
que as pulsões eróticas recalcadas tornam-se imediatas e manifestas. Tornando a
transferência consciente, o analista desliga de sua pessoa o destino das pulsões e
estas podem ser trabalhadas em uma esfera psíquica da vida real e não mais da
doença ou do sintoma.
A partir das reações repetitivas que ocorrem na transferência, analista e
paciente vão sendo conduzidos a lembranças que estavam esquecidas e
impedidas de vir à tona por causa da resistência. Tornando a resistência – que
está operando pelo processo da transferência – consciente, o paciente, ao longo
da análise, vai se familiarizando com ela e torna-se capaz de superá-la e elaborá-
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la. Vislumbram-se, assim, novas opções mais saudáveis para a configuração da
vida erótica do paciente.
Em resumo, pode-se dizer que a técnica psicanalítica opera da seguinte
forma: o analista revela, a partir da fala do analisando, as resistências que são
desconhecidas a este último; quando essas tiverem sido vencidas, o paciente,
gradativamente, relaciona as situações e vinculações esquecidas. Para identificar
essas resistências, que operam na transferência, e torná-las conscientes ao
paciente, o analista se utiliza de um procedimento especial que é um dos vértices
da metodologia psicanalítica, a interpretação.
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fantasias inconscientes; levantar os recalques, reconhecendo o que se quer
desconhecer; e outros.
Vale lembrar, como Freud (1900/1976) mostrou em seu livro “A
Interpretação dos Sonhos”, que interpretar não se restringe a dar um significado
dicionarizado de símbolos do inconsciente. É preciso buscar um sentido próprio
para cada sujeito para todo um contexto em que o símbolo se manifesta.
Hermann (1992) se utiliza do mito de Proteu, que é contado na quarta
rapsódia da Odisséia, para fazer uma comparação com a análise. Na fábula,
Menelau, marido de Helena, havia naufragado e estava agarrado, em meio ao
oceano, aos destroços do barco, munido de um fio de esperança. Surgiu uma
deusa das águas, Idotéia, disposta a ajudá-lo. Menelau perguntou como retornar à
sua casa. Porém, como age o analista com o paciente, a deusa não respondeu-lhe
diretamente, mas deu-lhe uma indicação: “Vá interrogar apropriadamente Proteu,
o Velho do Mar”.
Proteu sabia muito sobre o oceano e era incapaz de mentir, mas, assim
como o desejo humano, não gostava de ser interrogado; fugia se não fosse
agarrado; e se o fosse, se transformava em vários seres para tentar desvencilhar-
se. Menelau teria que agarrar o Deus Proteu quando este estivesse dormindo e
agüentar as conseqüências.
E assim o fez. Menelau enfrentou muitas adversidades na gruta onde o
Deus se entocava, assim como é o percurso para o inconsciente. E, com a
paciência requerida de um analista, esperou que ele dormisse. E então, saltou
sobre o Velho do Mar e o agarrou vigorosamente, desencadeando as
metamorfoses divinas. Depois de muita luta, cansado, vencido e talvez, admirado
com a persistência de Menelau, Proteu pronunciou-se dizendo o rumo que
Menelau deveria seguir para retornar à sua pátria e concedendo-lhe imortalidade.
É possível aludir à análise em várias passagens dessa fábula. Na situação
analítica, o paciente fala, mas seu desejo não se escuta. É preciso que o analista,
assim como Menelau, se agarre a esse desejo, que vai sofrer transformações
potenciais, colocando o analista em diferentes lugares transferenciais .
21
O analista deve deixar-se tomar pelos objetos de desejo do paciente, porém
sem, de fato, ocupar esse lugar. Ele não finge, mas também não desilude o
paciente em sua fantasia.
Por isso é importante, como coloca Hermann (1992), não confundir pessoa,
fantasia e desejo do paciente. “A pessoa há de ser tratada como se trata a todos
os demais (...) Às fantasias, reserva-se um tratamento mais tosco e sutil (agarrá-
las), não devem ser tratadas como se fossem gente (...) E o desejo não se trata;
ele se impõe, se revela no trato da fantasia. Ele é a matriz simbólica das emoções
que, na análise, aparecem como fantasia.” (p. 87-88) O analista deve, então, estar
bem agarrado às fantasias do paciente para esboçar-lhe o desejo.
Dessa forma, a interpretação está mais próxima de um desvendar único e
específico de cada paciente do que de uma formulação científica do discurso
deste.
Na análise, a sucessão de temas vai revelar uma área comum, sob a qual
vai se centrar a interpretação. Percebe-se que, na verdade, é a lacuna existente
entre os diversos temas que vai fornecer o rumo para a interpretação. O analista
deve dirigir sua atenção para os valores afetivos do discurso do paciente,
procurando encontrar o sentido emocional deste. Com o tempo, é possível
identificar uma lógica organizada deste discurso e o analista deve tentar torná-la
consciente para o paciente.
Deve-se levar em conta também, como afirmam Sousa e Abuchaim (1994),
o valor disposicional do discurso do paciente, isto é, a maneira pela qual se
dispõem os dois interlocutores do diálogo psicanalítico no campo transferencial,
tentando-se compreender o lugar emocional que o analista e o analisando ocupam
naquele momento.
Nota-se, assim, que a maneira mais eficaz de se interpretar é na
transferência, vivenciando-a juntamente com o paciente. Recebendo e
decodificando o impacto do aqui e agora na relação com o paciente, o analista
pode oferecer a ele um campo de transferência com a máxima intensidade
vivencial e, consequentemente, com amplas possibilidades de saídas alternativas
para as situações conflitantes.
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Existem várias maneiras de se efetuar uma interpretação. Essa é uma
questão complexa dentro da técnica psicanalítica, pois existem muitas facetas no
processo pelo qual os pacientes superam conflitos internos e conquistam níveis
mais elevados de integração do ego. Giovacchini (1990/1995) coloca a
interpretação como uma área técnica obscura porque envolve os mecanismos
subjacentes aos fatores de cura do tratamento, tais como os processos de
recordar, repetir e elaborar, já mencionados anteriormente.
Muitos clínicos enfatizam o objetivo da interpretação de tornar consciente
conteúdos que estão recalcados/inconscientes. O analista rompe com a
resistência de seu paciente e, por meio de interpretações, ajuda-lhe a alcançar
insights que são, de alguma maneira, curativos. Porém, não é suficiente que o
paciente apenas conheça seus sentimentos recalcados, é preciso que haja uma
elaboração - que seria o trabalho do tratamento – que se relaciona com revivência
de traumas iniciais ou com uma recriação do ambiente da infância no setting
terapêutico, onde muitos papéis transferenciais são atribuídos ao analista e a
tarefa terapêutica envolveria, então, interpretar vários elementos desse cenário.
Giovacchini (1990/1995) afirma que a análise tem que criar um setting em
que o paciente possa experienciar, assim como compreender, situações e traumas
infantis frustrantes e assustadores. Esse setting se constitui a partir de um
relacionamento transferencial/contratransferencial, em que o inconsciente do
analista ressoa com o do paciente. Ele afirma que o terapeuta tem de processar
todos os estímulos que recebe de fontes inconscientes do processo primário e,
então, reuni-los em uma organização e síntese do processo secundário, para que
possa adquirir um entendimento profundo e sensível de como funciona a mente do
paciente e saber o que está acontecendo no momento. É essa síntese que o
analista transmite ao paciente, que o capacita a experienciar-se em um contexto
maior e de forma mais abrangente.
Sousa e Abuchaim (1994) afirmam que “uma interpretação proporciona ao
analisando apropriar-se de um fragmento de si, até então alienado, mediante um
insight e um processo elaborativo que aponta à solução de um conflito, cujas
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expressões costumam ser intrasubjetivas (relações de objeto), intersubjetivas
(transferenciais com o analista) e transubjetivas (vínculos sociais) (p. 256).
Winnicott (1971/1975) enfatiza que apenas o material que o paciente
produz espontaneamente pode ser submetido à interpretação. Assim, esta deve
ser articulada para atingir, naquele momento, uma pessoa parcial, refletindo
apenas o que o paciente disse.
Porém, muitas vezes, é a partir da interpretação dada pelo analista desses
fragmentos de conteúdos do paciente, que este vai conseguir elaborar insights
que o permitem emergir dessa área limitada de materiais dissociados para a
integração de sua estrutura psíquica.
Ao se pensar de onde surgem as interpretações do analista, descobre-se
que elas provêm de variadas fontes presentes simultaneamente no processo de
análise. Sousa e Abuchaim (1994) enumeram algumas dessas fontes, tais como
as teorias utilizadas pelo analista, que são constantemente atualizadas na
experiência com o analisando; a análise do discurso verbal e os indícios eliciados
pelo discurso não-verbal do paciente; a análise da transferência e da
contratransferência; e a análise do si mesmo do analista, que os autores definem
como as equações pessoais deste.
A interpretação origina-se em conteúdos inconscientes do analista que são
ativados pelo discurso do paciente. A sentença interpretativa atrai sobre si mesma
toda a carga do material do analisando que estava recalcado, dessa forma, após o
tempo de elaboração do paciente, ela possibilita uma descarga que proporciona
alívio e prazer para este.
Chiozza (1987) apud Sousa e Abuchaim (1994) coloca que são esses fatos
que conferem um caráter especial à interpretação psicanalítica. Esta se distancia
de questões relativas ao pensar lógico e racional da consciência e aproxima-se
mais do modo de operar do inconsciente, transcendendo a palavra em si e
constituindo um nexo entre as representações visuais e as verbais.
24
Capítulo 3: A interpretação do brincar
25
Roza (1999) esclarece que não, que essas duas práticas não são
equivalentes; o jogo também é uma linguagem, porém distingue-se da linguagem
verbal em muitos aspectos. Para se analisar essa linguagem, primeiramente,
deve-se considerar que o discurso verbal pode ser sistematizado por duas
diferentes formas de expressão, uma por meio de palavras e outra em que
predominam as imagens, as ações e a gestualidade.
Lacan (1955/1987) afirma que qualquer proposta que vise trabalhar o
brincar em sua função na clínica psicanalítica tem por obrigação situá-lo no campo
da linguagem, em especial do estudo dos signos lingüísticos. “Dizer que o brincar
é uma linguagem significa, de imediato, conferir-lhe um caráter de prática
significante. Assim, é possível relacioná-lo à estruturação subjetiva, pois a ordem
humana é caracterizada pela intervenção da função simbólica” (Lacan, 1955,
p.44).
Retomando o jogo do fort da analisado por Freud (1920/1976)1, nota-se
que, vinculado à constituição do sujeito, o jogo torna-se o protótipo de uma
atividade simbólica, onde o carretel e seus movimentos são símbolos – que fazem
alusão à mãe, que ora está presente, ora está ausente – bem como as palavras
que acompanham os gestos. Lacan (1955) coloca que, no jogo em questão, a
articulação da ação com os vocábulos que a acompanham é o que confere um
valor interpretativo a este jogo, pois foi por meio dessa articulação que Freud
conseguiu compreender o significado do discurso da criança.
Baseando-se em todos esses pressupostos teóricos, Roza (1999) situa o
jogo no conjunto que compõe a linguagem analógica, isto é, o campo do discurso
que abarca os gestos, as posturas, as expressões, inflexões e imagens.
Essa linguagem possui algumas particularidades que a caracterizam como
tal. De acordo com Roza (1999), o predomínio semântico e a deficiência sintática
da linguagem lúdica definem seu caráter de ambigüidade e imprecisão; de
referência a uma contextualidade; e de impossibilidade de negação, marcando
assim uma diferença lógica em relação à linguagem verbal.
1
Ver capítulo 1
26
A linguagem própria do brincar é constituída por uma articulação entre
imagens que estão em ação e gestos e palavras que possuem uma lógica própria,
não possuindo relações preestabelecidas. Dessa forma, nem sempre o brincar vai
transmitir uma mensagem, é uma atividade que pode ou não assumir essa função.
Kristeva (1969) assinala que a linguagem analógica pode traduzir
modalidades do discurso, tais como ordem, dúvida ou solicitação, mas o faz
imperfeitamente quanto às categorias gramaticais – substantivo, verbo, adjetivo –
o gesto é polissêmico e a linguagem não obedece à ordem sintática habitual; essa
linguagem assemelha-se ao discurso infantil e às línguas primitivas, acentuando o
concreto e o presente, procedendo por antíteses, entre outros mecanismos.
Nota-se, então, como a linguagem do brincar pode ser encaixada nesse
formato de discurso, observando também seu caráter de realidade fictícia, de
montagem, de combinatória contextual, de presença de imagens polissêmicas, de
engendramento positivo, etc.
Sendo assim, percebe-se que o jogo não permite informar nem denotar
situações e relações da criança; ele traduz o mundo imaginário desta por meio de
conotações e evocações, tornando presente uma experiência, porém, sem nomeá-
la. “Na linguagem analógica, tudo é sempre mais ou menos” (Wilden, 1984 apud
Roza, 1999, p. 62). Esse mesmo autor elaborou alguns esquemas, para maiores
esclarecimentos, que permitem paralelos entre a linguagem analógica, onde o
jogo está inserido e a linguagem que ele chamou de digital, que estaria mais
próxima do sistema lingüístico (vide anexo).
Dessa forma, o brincar como linguagem é importante porque permite trocas
entre os sistemas inconsciente e pré-consciente/consciente a partir da articulação
das imagens com o significante lingüístico. De posse de todas essas informações,
discutir-se-á como o analista pode agir na clínica.
27
3.2 O trabalho do psicanalista de crianças
O trabalho do psicanalista, como afirma Ledoux (1979/1990), trata-se de
uma comunicação da verdade inconsciente do sujeito, que diz respeito somente a
ele e não pode ser submetida a regras gerais.
No conteúdo manifesto do jogo, o analista depara-se com uma realidade
distorcida ou ocultada por imposições do recalque. A partir disso, o analista deve –
por meio de um percurso associativo realizado pelo sujeito – alcançar o núcleo
psíquico que manifesta o desejo. No jogo do fort da, por exemplo, pode-se iniciar
esse percurso pelo questionamento acerca dos motivos que levaram a criança a
associar o carretel com sua mãe. Freud (1920/1976), articulando o jogo de
imagens, a emissão de palavras e a situação histórica da criança, pôde
empreender uma interpretação, assinalando que existia entre esses dois signos
uma associação de significados estabelecida por semelhança: ambos são
capazes de desaparecer e reaparecer.
Assim, afirma Roza (1999), a pluralidade semântica da linguagem não
verbal faz com que o campo de interpretabilidade seja determinado pelas relações
contextuais, a partir de sua associação com outros signos lingüísticos e não
lingüísticos e de sua posição em um determinado discurso.
A análise se efetua, como assinala Lacan (1955/1987), porque esse
discurso da criança é dirigido a um outro. Sendo esse outro o analista, ele vai se
posicionar de maneira impessoal, como em um espaço invisível e, assim, o
sentido do discurso pode se revelar. Esse discurso vai se desdobrando, fazendo
surgir as identificações a partir das quais o ego se organizou e,
conseqüentemente, a intenção significativa que é empreendida por meio do
simbolismo.
Ledoux (1979/1990) coloca que a partir do que a criança diz e do que ela
representa em suas atividades lúdicas, é possível identificar a realidade em torno
da qual o imaginário construiu as fantasias. A análise consiste em pesquisar o que
a criança repete do desejo que não pôde exprimir-se; em descobrir os afetos que
cercam os desejos recalcados.
28
Tendo em vista todas as funções do brincar analisadas no presente
trabalho – tais como seu papel na constituição do sujeito; sua função nas
operações que constroem a realidade psíquica; sua capacidade de elaborar
fantasias e fantasmas por meio das trocas entre os sistemas inconsciente e pré-
consciente/consciente – o analista deve proceder com as interpretações de
maneira cautelosa, realizando um trabalho de elucidação do inconsciente e
favorecendo a fluência das cadeias associativas de signos empreendidas pela
criança.
Ao realizar interpretações, o analista corre o risco de efetuar traduções
imediatas das brincadeiras da criança, desvendando apenas suas características
manifestas, podendo inclusive basear-se em códigos preestabelecidos de
interpretação de jogos infantis. Essa proposta considera o discurso da criança
como mera manipulação de objetos e a interpretação assume um caráter
adivinhatório, em que há a imposição de uma significação pré-concebida.
Winnicott (1971/1975) considera a interpretação imediata como doutrinação
que pode produzir submissão da criança em relação ao analista. Essa forma de
interpretação dogmática deixa a criança apenas com a alternativa de aceitá-las ou
rejeitá-las, sendo possível que amplie essa rejeição ao analista e ao processo
psicanalítico. Assim o autor ressalta que somente o paciente tem o direito de
atestar sobre o significado de seu brincar.
Roza (1999) entende que a palavra do analista tem uma função significante
e é a garantia de uma abertura de sentido. Assim, se estabelece uma ponte
lançada entre o inconsciente e o pré-consciente/consciente. A autora considera,
então, que é função do analista intervir sempre no sentido de facilitar essa ponte.
Sendo assim, alguns autores questionam se o brincar em si próprio,
englobando as imagens em ação, os gestos e as palavras, já não seria a
interpretação, visto que ele tem uma função autocurativa e de auto-realização.
Winnicott (1971/1975) acredita que sim, que até mesmo sem interpretações o
brincar possui efeitos terapêuticos. “O momento significativo é aquele em que a
criança se surpreende e não o momento de minha brilhante interpretação”
(Winnicott, 1971/1975, p.59).
29
No entanto, observa-se que, mesmo aqueles psicanalistas que consideram
a função interpretativa do brincar em si, produzem interpretações no processo de
análise. Pode-se pensar, então, como afirma Roza (1999), que a função do
analista é possibilitar que a brincadeira cumpra o seu papel, isto é, fazer circular
na linguagem os significantes, mobilizando a fixidez que configurou os sintomas.
Dolto (1981/1984) ressalta que, para a emergência da dimensão simbólica
na análise de crianças, faz-se necessário um material mediador entre o corpo dela
e ela mesma, uma ocupação paralela que permita o relaxamento e um discurso
fácil e não controlado. Isto seria a atividade lúdica. Além disso, o brinquedo
permite que a criança se exprima em nome de um outro objeto, experimentando
emoções que ela não reconhece conscientemente como suas,obtendo daí o
benefício do distanciamento e da reflexão.
A partir desse fato – que é o brincar que produz a interpretação na análise –
Roza (1999) faz uma colocação muito interessante, qual seja, que as intervenções
do analista não devem restringir-se ao plano da palavra. Ela afirma que:
O processo interpretativo que o brincar é capaz de promover – por
conter em si múltiplos aspectos que permanecem flutuantes – é facilitado
pelo analista não apenas pelo que ele diz, mas também e principalmente
pelo que ele brinca. Fala-se, então, de uma interpretação que se efetua no
nível da linguagem do jogo; com ela é possível propor questões, ressaltar e
sublinhar determinados movimentos da brincadeira pela imitação, inverter
papéis e produzir cortes (p.. 128).
30
coloca para ressaltar, por meio de uma brincadeira, um sentido já exposto pela
criança com seu brincar e com suas palavras.
Relacionando o brincar com o espaço potencial 2, Winnicott (1971/1975)
afirma que é nessa área intermediária entre a realidade interna do indivíduo e a
realidade compartilhada do mundo externo em que se efetua o brincar. O analista
deve, então, propiciar oportunidades para a experiência amorfa, isto é, o brincar
rudimentar e também para os impulsos criativos, motores e sensórios que
constituem a matéria-prima desse brincar.
Evidencia-se, assim, a função do analista de favorecer as cadeias
associativas do paciente. No processo de análise, os signos não lingüísticos – em
que a atividade lúdica está inserida – se manifestam por meio de uma sequência
de imagens e ações produzidas pelo paciente e provocam uma reação
interpretante no analista, por conta de seu poder de evocação e conotação,
característico da linguagem analógica.
Esse fenômeno nada mais é do que a transferência discutida no capítulo
dois do presente estudo. Uma vez estabelecida, o analista deve explicitá-la à
criança. Ledoux (1979/1990) afirma que é a análise daquilo que o analista vivencia
em sua relação inconsciente, pré-consciente e consciente com a criança que
constitui o guia do tratamento. Assim, é a transferência que permite a realização
do processo analítico.
Corroborando com essa idéia, Winnicott (1971/1975) afirma que se deve
permitir ao paciente criança entre os brinquedos no chão, que comunique uma
sucessão de idéias, pensamentos, impulsos e sensações sem conexão aparente,
que é a forma dele manifestar seu material simbólico. O analista deve visar à
remoção dos bloqueios que impedem essa sucessão e conseqüentemente,
impedem o desenvolvimento da criança no plano simbólico.
Removendo esses bloqueios torna-se possível o processo de recordar,
repetir e elaborar elucidado por Freud (1914/1976) que conduzirá a novas
significações mais saudáveis do material inconsciente da criança, o que pode ser
configurado como processo de cura.
2
Ver capítulo 1
31
Benjamin (1987) afirma que é essa lei da repetição que rege o mundo da
brincadeira em sua totalidade. A repetição é a essência do brincar. Lacan
(1955/1987) afirma que o verdadeiro segredo do lúdico é a diversidade que
constitui a repetição em si mesma. É no brincar que a criança encontra o
enriquecimento de sua condição humana, na procura de significar o desconhecido.
Para esse autor, o brincar é a realização do sujeito inconsciente e por isso é tão
importante.
No capítulo seguinte, far-se-á o estudo de uma análise realizada pela
autora dessa monografia com uma criança, com o intuito de ilustrar como se
efetua a interpretação no processo psicanalítico de crianças, explicitando alguns
aspectos dessa técnica comentados no presente trabalho.
32
Capítulo 4: Estudo de caso
3
Todos os nomes foram alterados para preservar a ética e o sigilo profissional das pessoas envolvidas.
33
Nota-se que não houve expectativas por parte da mãe em relação ao nascimento
de seu bebê, a fantasia que rondava era a de “prender” seu marido.
Antunes saiu de casa para morar com outra mulher, Regina, e sua filha -
que na ocasião do tratamento possuía cinco anos de idade - Bárbara, quando
Joana tinha três anos. Nice não aceitou o fim do casamento e o relacionamento
entre os dois é cercado de conflitos. Joana sentiu muito a falta do pai, que era
quem lhe prestava toda a assistência. Ela ficou morando com a mãe e a avó
paterna, que foi quem assumiu a função de mãe de Joana, desempenhando de
forma adequada este papel.
Porém, quando Joana tinha mais ou menos cinco anos, sua avó morreu em
um acidente de trânsito, o que desestabilizou toda família. Antunes, então, decidiu
levar sua filha para morar com ele e sua mulher. Esta não aceitou o fato, porém o
pai acreditava que Joana não podia morar com uma mãe alcoólatra e negligente.
Não houve preparação com Joana para a mudança,nem tampouco com Regina,
que dividiria a casa com a menina.
Regina rejeitava Joana de todas as formas, não aceitava sua presença.
Tratava a menina com desprezo e agressividade. Fazia uma grande diferenciação
entre a forma como tratava a própria filha, Bárbara e Joana. Regina afirma que
não pode e também não quer ocupar o lugar de uma mãe que existe; ela acredita
que Joana deveria morar com Nice e entender-se com ela. Já Joana, respeita e
obedece Regina como uma mãe, porém esta não aceita o afeto que a criança lhe
dispensa, causando tristeza e mágoa em Joana.
Joana mostrou-se uma criança errante, que não sente que tem um lugar
em nenhuma das casas que habita. Ela mostra uma preferência por morar com o
pai, mas percebe que há uma rejeição de Regina por ela. Sofreu várias perdas
durante sua vida e estas têm conseqüências diretas sobre sua maneira de reagir
às situações.
Nota-se que a relação de Joana com sua madrasta também se caracteriza
por perda, configurada em termos de uma rejeição por parte de Regina. No início
do tratamento, Regina ignorava Joana em sua casa e quando se relacionava com
ela tratava-a mal. Ela relata que tem tentado melhorar sua relação com a criança,
34
mas não está disposta a recebê-la como filha. Mais uma vez, Joana sente uma
falha no ambiente e não recebe os cuidados e a sustentação de que necessita.
Antunes sente-se muito mal com a forma que Regina trata sua filha, mas
sente-se impotente diante do fato. Diz para a filha que vai tentar melhorar a
situação, que a ama, mas pede que ela tenha paciência com a “tia Regina”. A
maior parte das brigas entre o casal está relacionada com Joana e com a situação
que sua presença configura dentro da casa. Todos da família acham isso,
inclusive a própria. Depois de algumas sessões de terapia, Antunes decidiu tomar
atitudes em defesa da filha. Desde então, a situação na casa tem melhorado. Eles
agora se vêem como uma família. Porém, Regina relatou que continua
apresentando dificuldades em receber o afeto de Joana, diz que está disposta a
ensiná-la como fazer as coisas, mas não está disposta a ser uma mãe para ela,
vai sempre tratar sua própria filha de maneira um pouco diferenciada.
Joana se relaciona bem com “a irmã por parte de Deus” (sic) - Bárbara não
tem laços sangüíneos com Joana - mas diz que gostaria de ser como ela ou até
mesmo gostaria de ser ela. Vale a pena dizer que Bárbara também se submetia a
terapia na mesma época em que Joana, também por indicação do terapeuta dos
pais. Em alguns momentos Joana apresenta ciúmes declarado – outras vezes ele
ocorre de forma velada – de Bárbara por esta obter carinho e compreensão e ela
não. Ao longo do tratamento, Joana conseguiu expressar melhor seu ciúme e sua
agressividade em relação à irmã.
O maior problema relatado e observado atualmente é a relação de Joana
com sua mãe Nice. A menina sente que tem que visitá-la sempre e cuidar dela; ela
diz que gostaria de passar os finais de semana com o pai, mas não se sente à
vontade para dizer isso à mãe. Esta age com Joana com negligência e às vezes
com maus tratos. Em uma das últimas entrevistas com o pai, ele revelou que
pretende entrar na Justiça para conseguir a posse de Joana e, assim, tentar
regularizar a situação. O tratamento foi interrompido e não se sabe se esta medida
foi tomada.
Joana sempre demonstrou uma grande demanda pelo tratamento, inclusive
verbalizando suas angústias e sentimentos. Já na primeira sessão,ela relatou uma
35
fantasia em que se evidenciou o conflito sentido em relação ao convívio com a
madrasta. “Um dia, eu tava brincando com a Bárbara e ela viu um homem todo
preto na árvore, ela ficou com medo e nós entramos. Dentro de casa, ela estava
fazendo um bolo, ela não é minha mãe! E eu e Bárbara começamos a lanchar(...) “
(sic). Nesse primeiro momento, a terapeuta não efetuou nenhuma interpretação,
com o intuito de construir um vínculo para possibilitar o estabelecimento da
transferência.
Desde as primeiras sessões, Joana também expressou uma forte angústia
em questões relacionadas à separação. Isto pode ser evidenciado em algumas
manifestações da criança, tal como a inquietação com o tempo. Ao final de várias
sessões, ela começava a olhar no relógio e contar os minutos, em uma espécie de
corrida contra o tempo para não ter que se separar, o que gerava muita
ansiedade. Foi relatado que ela age assim em outros contextos também.
Nas primeiras sessões em que isso ocorreu, a terapeuta apenas pontuou o
fenômeno para que a criança tomasse consciência de seus atos. Posteriormente,
foram emitidas interpretações com o intuito de explicitar essa maneira de se
comportar da paciente e elucidar os seus significados, realizando a ponte entre o
material pré-consciente/consciente e o inconsciente. Exemplo: na quinta sessão,
Joana disse duas vezes seguidas, olhando ansiosa para o relógio, que o tempo
estava acabando. A terapeuta interpretou dizendo como era difícil separar-se das
pessoas que gostamos. Da segunda vez, Joana disse de forma triste “Eu tenho
raiva de ficar sozinha”.
Ainda em relação à angústia de separação, destacam-se algumas atitudes
de Joana em relação ao desenho. Algumas vezes, ela perguntava à terapeuta se
esta guardava os desenhos que ela tinha feito nas sessões anteriores e pedia
para vê-los, se aborrecendo se, por algum motivo, eles não estavam disponíveis.
Além disso, Joana fazia vários desenhos e cartinhas e dava de presente para a
terapeuta. Esta explicitava para Joana sua necessidade de certificar-se a todo o
momento que as pessoas que estão a sua volta gostam dela e vão continuar ao
seu lado.
36
Em uma das sessões em que isto ocorreu, Joana reagiu à interpretação
com tristeza por perceber que ninguém fazia o mesmo – valorizar sua presença e
oferecer presentes - com ela. Esse esclarecimento possibilitou que a criança
manifestasse seu sentimento em relação à negligência de seus familiares e seu
desejo – outrora recalcado - de mais atenção e cuidados.
Pode-se observar como essa criança aderiu rapidamente ao processo de
análise, visto que, em muitas ocasiões, ela nem mesmo precisava do brinquedo
como instrumento mediador entre seu corpo e a terapeuta, para facilitar a
emergência do discurso, este ocorria de forma direta.
No entanto, Joana sempre se mostrou muito confusa e ansiosa em seu
discurso. Nas primeiras sessões, não conseguia se fixar em um jogo e se utilizava
de todos os brinquedos ao mesmo tempo. Nas duas primeiras sessões, nem ao
menos sentou no chão para brincar, ficava andando ou se posicionava de cócoras
apenas por alguns minutos. Ao longo do tratamento, a terapeuta se utilizava
dessas manifestações, entre outras, para verificar a ansiedade da paciente, no
intuito de avaliar o momento oportuno de realizar as intervenções.
Quando Joana estava nesse estado emocional, observou-se que as
interpretações provocavam uma ansiedade ainda maior, muitas vezes
impossibilitando a continuidade da brincadeira. Como afirmou Winnicott
(1971/1975), nessas situações, o manejo, antes que a interpretação, é de extrema
importância. O manejo pode ser entendido como uma espécie de holding, isto é,
cria-se um ambiente favorável que possa suprir as necessidades de sustentação
do paciente e promover a transferência, para depois se aplicar a técnica clássica.
Em momentos como esses, é preferível dar continuidade ao jogo para não
despertar defesas e ansiedades na criança.
Assim, deve-se avaliar de forma cuidadosa o momento em que o terapeuta
deve atuar realizando interpretações dos conflitos inconscientes, ou deve
satisfazer uma necessidade do paciente, que pode estar solicitando um ambiente
sustentador e até mesmo o amor materno (Winnicott, 1971/1975).
No caso analisado pode-se destacar alguns exemplos de interpretações
que geraram ansiedade. Na sessão de número seis, Joana estava muito
37
regressiva e falando com um bebê, dizendo que era sua irmã Bárbara – que não é
um bebê. A terapeuta interpretou que Joana gostaria de ser como a irmã. Ela
concordou afirmando: “Queria ser como essa menina linda” (sic). A terapeuta
acrescentou que Joana gostaria de obter tudo que Bárbara tem para ser feliz.
Nesse momento, a criança ficou muito ansiosa, falando de forma confusa e
ativando seus mecanismos defensivos.
Seria preferível, nesse momento, que a terapeuta permitisse que Joana se
comportasse como um bebê, propiciando condições para satisfazer essa
necessidade dela, para em outra ocasião efetuar uma interpretação.
Em outro momento, na sessão de número 16, observou-se que Joana já
estava ansiosa antes mesmo de entrar no consultório, por causa de um encontro
hostil entre seu pai e sua mãe na sala de espera da clínica. Durante a sessão, a
paciente jogava a bola com força tentando acertar a terapeuta. Esta explicitou a
intenção do ato de Joana – acertá-la. A criança concordou, porém suspendeu o
jogo e estabeleceu que as duas iriam jogar sentadas para evitar que alguém se
machucasse.
Percebe-se que essa interpretação gerou ansiedade, porém, o acréscimo
feito pela terapeuta suscitou um sentimento interessante. Esta disse à Joana que
poderia continuar jogando a bola, pois não estava lhe machucando. A criança
respondeu brava: “Está machucando sim, eu sinto”. E a terapeuta interpretou
dizendo que Joana sentia que machucava as pessoas à sua volta.
Minutos depois, Joana foi mostrar suas pernas à terapeuta, que estavam
com machucados. Percebe-se aí um fenômeno interessante que o brincar
possibilita na clínica, a inversão de papéis (Roza,1999). Primeiramente, a criança
diz que machuca os outros, mostrando sua percepção de que causa problemas
em seu ambiente. A partir da intervenção da terapeuta, ela assume a posição de
machucada, se colocando no papel do outro – seu pai, sua mãe, sua madrasta -
para elaborar e resignificar seu lugar.
Nos dois exemplos citados, percebem-se conflitos da paciente em relação
aos seus familiares. Em várias sessões, Joana exaltava sua irmã, mostrando que
fazia tudo para agradá-la e também para ser como ela. Na sessão três, a paciente
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estava fazendo palhaçadas tentando fazer com que a terapeuta risse dela. Em
seguida, Joana mesma fez uma analogia dizendo que se comportava assim em
casa com Bárbara, para diverti-la. Logo depois afirmou que queria ser Bárbara.
A terapeuta, evitando realizar uma interpretação avassaladora que poderia
ativar as defesas da criança, optou por uma pergunta “O que sua irmã tem que
você não tem?” e Joana respondeu “Ela é gordinha e tem bochechinha e eu sou
magra, sou um palito”. Nessa resposta, a paciente evidencia seu sentimento de
inferioridade em relação à irmã e seu desejo de possuir qualidades que, ao seu
ver, a tornariam uma pessoa amada.
Outro fragmento também pode evidenciar esses sentimentos de Joana em
relação à sua irmã. Na décima sessão, a paciente construiu um jogo – que se
repetiu por várias sessões - em que ela era a aluna e a terapeuta, a professora.
Uma das tarefas era escrever o próprio nome no papel e Joana,
espontaneamente, escreveu Bárbara. A terapeuta interpretou dizendo que parecia
que Joana gostava mais de sua irmã do que dela mesma e a paciente respondeu
assertivamente “Exatamente”.
A partir das intervenções da terapeuta ao longo do tratamento, Joana foi
conseguindo demonstrar sua raiva e seu ciúme de sua irmã, pela posição que esta
ocupa nas relações familiares. Na décima segunda sessão, a paciente brincou de
maneira bastante eufórica de vários jogos – boliche, amarelinha, futebol e outros –
sempre enfatizando que a terapeuta não poderia participar, pulando sua vez,
trapaceando-a e ignorando-a. Esta atitude destoou da forma como Joana
costumava brincar nas outras sessões e assemelhou-se – de acordo com o relato
dos pais - à forma como Bárbara compartilha seus jogos com Joana.
A terapeuta interpretou que, nesse jogo, Joana era Bárbara e a terapeuta
era Joana. Ela não disse nada; porém, ficava cada vez mais entusiasmada com o
jogo que estava realizando, evidenciando mais uma vez o efeito terapêutico da
inversão de papéis na brincadeira.
Ainda em relação à dinâmica familiar de Joana, pôde-se observar que a
relação com sua mãe é frágil e conflituosa. A paciente demonstrou que não teve
os cuidados maternais básicos de forma suficiente em sua infância inicial. A
39
terapeuta teve um cuidado especial para estabelecer um ambiente de holding no
setting analítico, uma vez que, de acordo com Winnicott (1971/1975), este fornece
uma oportunidade para que as relações ineficazes do passado possam vir à luz e
serem revividas e reelaboradas. Estando em análise, é possível que o paciente
viva a dependência em função da relação transferencial, para depois elaborar
essa posição e poder experienciar outros dentro dessa relação.
Nas últimas sessões, Joana colocou-se como um bebê, colocando a
terapeuta no lugar transferencial de sua mãe, uma mãe boa que provê afeto,
cuidados e atenção (muitas vezes, essa mãe vem como a professora, que é vista
como alguém que é solícito aos alunos/filhos). Ela exigia cada vez mais da
terapeuta, mostrando-se dependente, frágil e fazendo pedidos, alguns até mesmo
de ordem concreta, como um presente no dia das crianças.
Isso pôde ser observado na sessão dezoito. Joana propôs uma brincadeira
de “mamãe e filhinha”. A terapeuta perguntou quantos anos ela teria e ela disse
sete, com voz de bebê. A terapeuta interpretou então, dentro do contexto da
brincadeira, que parecia que essa filha era um bebê. Joana riu um pouco
constrangida, mas assumiu o papel. Dessa forma, a terapeuta efetuou
interpretações brincando – dando mamadeira à criança, colocando-a para dormir,
entre outros – para que Joana pudesse vivenciar uma relação mãe-bebê
idealizada que fracassou na realidade. A terapeuta também assumiu o papel que
lhe foi proposto pela paciente, com a finalidade de vivenciar a transferência.
A partir desses jogos mãe-bebê vivenciados na análise e das interpretações
efetuadas pela terapeuta, Joana foi conseguindo demonstrar, também, raiva de
sua mãe, por ter sido negligenciada. Em várias sessões, ela confidenciava à
terapeuta que não queria passar o final de semana com sua mãe e uma vez
referiu-se a ela como “aquela gorda que bebe” (sic).
O fato de sentir raiva foi permitindo à paciente que começasse a elaborar
sua condição de não ser amada por sua mãe, fazendo com que ela buscasse em
outras relações – com a professora; com Regina; e com a terapeuta – os cuidados
que sua mãe não lhe proporcionou.
40
Essa busca se dava de forma bastante ansiosa, uma vez que Joana sentia,
a todo momento, que não tinha um lugar em suas relações familiares. Desde a
segunda sessão foi possível perceber esse fato. A paciente escolheu o jogo
“Lince” e armou - o no chão. Quando estava com a peça da casa na mão, não
conseguia encontrá-la no tabuleiro e construiu uma espécie de jogo paralelo, em
que em cada momento ela se sentava em lugar do consultório, colocava a
terapeuta em outro e o jogo no meio. Quando decidiu se estabelecer em um local,
disse ”Você mudou tudo de lugar, agora eu não sei mais onde as coisas ficam.
Onde está a casa?” A terapeuta afirmou que Joana não gostava quando as
pessoas mudavam as coisas em sua vida, porque aí ela não conseguia mais
saber onde elas ficavam. A interpretação veio refletir o que Joana estava dizendo,
para elucidar o conteúdo inconsciente de sua fala.
A partir disso, Joana manifestou que aquele lugar em que o jogo se
encontrava não estava bom, porque “(...) está caindo tudo”. A terapeuta
interpretou que o lugar em que elas se encontravam não estava bom naquele
momento e que elas teriam que dar um jeito de torná-lo melhor dentro daquele
espaço. A interpretação se utilizou de um aspecto do jogo para fazer referência a
uma situação da realidade, a inadequação que ela sentia dentro de sua própria
casa.
Na quinta sessão, Joana quis brincar de casinha, mas, ao pegar os objetos
afirmou que não sabia montar uma casa, apenas Bárbara era capaz disso. A
terapeuta interpretou dizendo que Joana não tinha uma casa arrumada e por isso
não estava conseguindo montar uma. A criança ficou bastante mobilizada; tentou
convencer a terapeuta de que sua casa era arrumada, mas não conseguiu,
demonstrando que queria convencer a si mesma desse fato. Então, entregou os
objetos para a terapeuta e pediu que ela a ajudasse a montar a casinha,
demonstrando sua demanda em obter um auxílio que a levasse a um estado de
organização, tanto externo como interno.
Quando a casinha estava montada, Joana pegou uma boneca e disse que
era um bebê. Fazendo uma leitura dessa linguagem, pôde-se entender que o bebê
era um signo que representava ela própria. Ela tentou colocar o bebê dentro da
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casa e não conseguiu, então ficou com raiva e derrubou todos os móveis. A
terapeuta interpretou dizendo que parecia não haver um lugar para esse bebê
dentro daquela casa. Joana não aceitou a interpretação - demonstrando que
também não estava conseguindo aceitar sua condição dentro de casa - e arrumou
um lugar para o bebê fora da casa, dizendo que lá ele estava confortável. Nesse
momento, deve-se permitir que a criança se molde em suas condições, buscando
possibilidades e soluções para seu conflito dentro da brincadeira.
Observa-se, também, nesse exemplo, o efeito do distanciamento propiciado
pelo jogo, que permite que a criança se exprima em nome de um outro. Em muitos
outros momentos da análise, pôde-se perceber também os benefícios
proporcionados pela interpretação que é efetuada dentro da linguagem do jogo.
Na nona sessão, Joana estava jogando bola de gude com a terapeuta de
forma a deixá-la ganhar sempre e se comprazendo com isso. A terapeuta
explicitou a conduta da criança e esta disse “Eu prefiro ajudar os outros do que
ganhar”. A terapeuta, utilizando-se da linguagem da criança, interpretou dizendo
que dessa forma, a paciente fazia com que as pessoas ficassem felizes e não
brigassem com ela. Logo depois, perguntou se alguém lhe ajudava. Joana
respondeu que não e em seguida afirmou “Eu sinto tanta falta da minha vó” (sic).
Por essa interpretação da terapeuta, abriu-se um espaço para um conteúdo
conflituoso que estava inconsciente e Joana pôde expressar sua tristeza pela
perda da avó, dizendo que conversava com esta todas as noites da mesma forma
que rezava para Jesus.
Na décima quinta sessão, ocorreu um fato interessante, que ilustra como a
linguagem analógica pode tornar presente uma situação, sem, no entanto, nomeá-
la. A terapeuta havia feito uma entrevista com o pai da criança nesse mesmo dia,
no horário anterior ao dela. Esperava-se que ela estivesse ansiosa por saber o
que foi dito naquela sessão, uma vez que, em todos os momentos anteriores que
a terapeuta havia realizado sessões com os pais ou com a madrasta da criança,
esta passava os minutos iniciais de sua sessão tentando descobrir como havia
sido a sessão e o que a terapeuta havia dito a seu respeito para os membros de
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sua família. No entanto, Joana não perguntou diretamente nada a respeito da
entrevista com o pai.
A menina chegou contando de um filme sobre uma fada, que dizia que
ninguém poderia quebrar uma promessa. A terapeuta remeteu essa fala à
entrevista com o pai e interpretou dizendo que, uma vez fez uma promessa à
Joana de que tudo que era dito naquela sala seria mantido como segredo –
contrato inicial – e que Joana não se preocupasse, pois ela não havia quebrado
essa promessa, isto é, não tinha revelado nada a ninguém. Essa interpretação
reduziu a ansiedade da criança, que conseguiu, a partir daí, engajar-se em um
jogo, sem mencionar mais a sessão com o pai.
Em um outro momento do tratamento, pôde-se observar como o brincar
serviu de instrumento mediador, permitindo o relaxamento do discurso e a
emergência de conflitos. Havia sido marcada uma entrevista com a mãe de Joana,
Nice, no horário seguinte ao do atendimento da criança. Porém, esta insistiu para
entrar junto com a mãe, alegando que a terapeuta poderia ensinar sua mãe a
brincar com ela. “Minha mãe não sabe brincar comigo, ela não sabe do que eu
gosto. Aí a gente ensina para ela, você mostra para ela como a gente faz aqui”
(sic). Evidencia-se aí como a criança se utilizou de um aspecto de sua vida, o
brincar, para mostrar sua insatisfação por sua mãe não lhe conhecer e não se
interessar por suas questões.
A terapeuta permitiu que a criança entrasse no consultório e realizou-se
uma sessão conjunta. O jogo permitiu que mãe e filha vivenciassem os conflitos
como se fossem personagens e, dentro desse enredo, buscassem soluções que
satisfizessem os dois lados. Por exemplo, Joana propôs um jogo de queimada.
Ora era do time de sua mãe, aliando-se a ela e fortificando os laços, ora era do
time da terapeuta, podendo expressar sua raiva tentando “queimar” sua mãe. O
tempo todo Joana instruía sua mãe de como ela devia se portar – “Mãe me
queima (...) Não, mãe, agora me ajuda” (sic) – e a terapeuta realizava
intervenções com o intuito de traduzir as falas das duas, intermediando o diálogo.
De acordo com Aberastury (1971/1992), o brinquedo – por ter
características de objetos reais, mas ser de tamanho reduzido, ser algo que a
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criança exerce domínio com a permissão do adulto – transforma-se em um
instrumento para o domínio de situações penosas e traumáticas que ocorrem na
relação com objetos reais. Percebe-se que esse jogo possibilitou que Joana
vivenciasse uma situação desprazerosa com sua mãe, porém, projetando para o
exterior suas angústias e satisfações e dominando-as por meio da ação, o brincar.
Além disso, este foi um momento de alegria na sessão, evidenciando
também a função autocurativa que o jogo em si já contém. Winnicott (1971/1975)
acredita que a brincadeira é própria da saúde e facilita o crescimento. O brincar
em si satisfaz.
Diante desse relato, pode-se vislumbrar alguns aspectos que mostram
como o jogo e sua interpretação consistem no guia para o tratamento psicanalítico
de crianças. Ao analisar a postura de seu marido como terapeuta, Clare Winnicott
(1977) apud Winnicott (1977/1994) diz que este deve perceber e aceitar a
transferência, e mais, deve dar vida à ela, interpretando os vários papéis que lhe
são destinados. Ela afirma ainda que:
A dramatização do mundo interior permite à criança experimentar
aquelas fantasias que mais a perturbam, enquanto brinca com elas. Isso
ocorre em doses pequenas e em um contexto que se torna suficientemente
seguro graças à habilidade do terapeuta. A tensão criativa na transferência é
mantida e o grau de ansiedade e expectativa é conservado dentro da
capacidade da criança, de tal forma que o jogo possa continuar (p.09).
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Conclusões
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Concluiu-se que o fenômeno lúdico na análise deve ser entendido como
uma manifestação que pertence ao campo da linguagem, vinculada ao processo
de estruturação subjetiva. Nesse sentido, procurou-se estabelecer a importância
do brincar, entendido como representações analógicas que compõem um sistema
de signos capaz de gerar efeitos de significado por meio de sua ligação com as
representações lingüísticas.
Por ser uma linguagem caracterizada fundamentalmente por imagens,
gestos e ações, tornou-se necessário distingui-la da linguagem verbal a partir do
auxílio da semiótica.
No entanto, por uma revisão bibliográfica constatou-se que o brincar não
pode ser considerado como um equivalente pleno das associações livres; primeiro
por seu caráter ambíguo e impreciso e também por suas diferenças lógicas em
relação à linguagem verbal. Para a compreensão do processo psicanalítico, fez-se
necessária uma ampliação da definição do conceito de brincar, definido-o como
uma manifestação não-linguística capaz de engendrar sentidos, produzir
associações e, principalmente, proporcionar a articulação com o significante
lingüístico.
Dessa forma, concluiu-se que o brincar, na clínica psicanalítica, possibilita
uma expansão da circulação da criança no plano simbólico. Como afirma Roza
(1999), ele permite as trocas entre os sistemas consciente/ pré-consciente e
inconsciente proporcionando novas significações. Assim, o brincar tem não só
uma função interpretativa, como também curativa. Constatou-se que a intervenção
do analista se faz necessária em função dos aspectos transferenciais que estão
em jogo na análise e tem como objetivo permitir o andamento da cadeia
significante.
A autora afirma ainda que “situando-se no plano da transferência, o analista
põe em jogo significantes que permitem o desdobramento de novas associações
como um agente facilitador que o brincar tem a cumprir” (Roza, 1999, p.134).
A partir daí, confirmou-se um fato interessante que fundamenta o método
psicanalítico inaugurado por Winnicott: as intervenções não devem se restringir ao
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plano da palavra, podendo estar inseridas no nível do próprio jogo, como
linguagem analógica.
Nesse sentido, o presente estudo permitiu constatar que há uma lacuna no
que se refere à bibliografia relacionada a este tema. Por se tratar de um fenômeno
subjetivo que foi sendo estruturado a partir de constatações clínicas, muitos
autores analisam a interpretação de maneira esquiva e obscura, muitas vezes
informando apenas o que não deve ser feito na clínica. Alguns teóricos deram
contribuições a esse tópico por meio de estudos de caso, que evidenciam, a partir
da prática, como a interpretação opera e de que maneiras ela se mostrou eficaz.
Por considerar valiosa e esclarecedora essa forma de expor um tema tão
subjetivo, o presente estudo optou também por realizá-la, no sentido de explicitar
os vários aspectos da interpretação do brincar discutidos ao longo dos capítulos.
Além disso, constatou-se também que as reflexões e considerações
advindas do presente trabalho possibilitaram uma melhor atuação na área clínica,
uma vez que o tema discutido tem implicações diretas na metodologia
psicanalítica.
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Anexos
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Tabela 2: Distinções entre as linguagens analógica e a digital. (Wilden,
1980 apud Roza, 1999, p.64)
Linguagem
Analógica Digital
Recusa, rejeição Negação
Referente Palavra
Relação Conceitos
Evocação Informação
Conotação Denotação
Presente Passado, presente, futuro
Poesia Prosa
Evocação de imagens Informação sobre conceitos
Shifters Substantivos
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Tabela 3: Distinções entre as formas de comunicação analógica e a digital.
(Wilden, 1980 apud Roza, 1999, p.63)
Comunicação Humana
Aspecto analógico Aspecto digital
Emoção Razão
Presentificação Nomeação
Ambigüidade Precisão
Posição, contexto, situação Texto, mensagem
Memória Rememoração
Representação-coisa Representação-palavra
Interativa Individual
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Referências Bibliográficas
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_____________ Além do Princípio do Prazer. Edição Standard Brasileira
das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho
original publicado em 1920)
KREISLER, FAIN & SOULÉ (1981) A Criança e seu Corpo. Rio de Janeiro:
Zahar Editores. (Trabalho original publicado em 1974)
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LEDOUX, M. H. (1990) Introdução à Obra de Françoise Dolto. Rio de
Janeiro: Zahar Editores. (Trabalho original publicado em 1979)
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