A Questão Do Sentido em Psicoterapia - Humanista

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A

José Mauricio de Carvalho*

Revista de Filosofia
Resenha

FRANKL, Victor. A questão do sentido em psicoterapia. Campinas: Papirus, 1990.

O livro de Victor Frankl foi publicado ditada: como é o sentido da vida humana? A
há muitos anos, mas conserva atualidade vida vale a pena ou o suicídio é o que se nos
pelo diálogo que obriga entre a Filosofia e a oferece como alternativa mais plausível? O
Psicologia. Ele possui introdução, três confe- filósofo francês trata a questão do sentido nos
rências e um esboço autobiográfico. Nestes romances A Peste e O Estrangeiro, bem como
textos enfrenta uma questão fundamental nas peças de teatro Calígula e Os Justos. Ao
que ocupou parte significativa dos filósofos optar pelo sentido construído pelo existente
no século XX: possui a vida humana um coloca em evidência o problema da liberda-
sentido? Esta questão se mistura a outras de humana, pois nela reside o sentido e não
de caráter existencial que ajudam a clareá-la. numa construção lingüística rebuscada ou
Eis algumas: será que a finitude da existência erudita. Este sentido da vida como expres-
aniquila seu sentido? O sofrimento físico e são de liberdade é assunto fundamental dos
mental contribui para a elaboração do sen- existencialistas observa outro filósofo francês
tido ou o destrói? Como pensar o sentido Roger Garaudy. A vida não tem um sentido
diante daquilo que nos acontece? Exemplo prévio ou pronto, ele diz, “como se tem uma
do que nos ocorre é uma doença incurável casa ou uma conta no banco. Seria (se assim
ou ser levado para o campo de extermínio. fosse) um cenário já escrito, fora de nós e sem
É para enfrentar estas questões que Frankl nós; teríamos apenas que representar apa-
escreveu este livro. A pergunta é essencial- rentando crer em nossa liberdade.” (Palavra
mente filosófica e ela será tratada assim. No de homem, p. 52).
entanto, o autor estende as conseqüências A questão do sentido para Frankl vai
da meditação para o campo da Psicologia além da meditação filosófica porque o pro-
ao colocar a questão do sentido como eixo blema expresso pelo sentimento de vazio
orientador de uma abordagem psicológica de sentido obrigou as pessoas hoje em dia a
que ele desenvolve. Entender o modo como procurar o psicólogo e o psiquiatra. O vazio
filosoficamente Frankl pensa o problema do existencial e a depressão são as doenças do
sentido e depois perceber os resultados que século XXI e isto aumenta o interesse pelo
daí deriva para a Psicologia é o que confere livro de Frankl. O homem não sabe o que quer
nexo ao livro. e esta ignorância não apenas serve para ele
Victor Frankl começa sua obra retoman- meditar melhor sobre a vida, “a sensação de
do a questão que Albert Camus consagrou falta de sentido é patogênica, isto é, leva a
como a única digna de ser efetivamente me- doenças, a neuroses específicas.” (p. 20). Este


Doutor em Filosofia e Professor da UFSJ-MG.

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sentimento se manifesta de muitos modos mas tentar desmascarar o problema do sen-
como: na chamada crise de meia idade ou tido produz uma deshumanização, porque
no medo do domingo tão comum em nosso estamos diante de “um fenômeno que não
tempo. Em ambos os fenômenos o que ver- se deixa desmascarar porque é autêntico” (p.
dadeiramente aparece é a falta de sentido. 41). A conclusão de Frankl é que “o homem
Esta falta de sentido coloca em evidência o é um ser à procura de sentido” (p. 45). E
problema de ir além de si, trata-se da auto- considera que esta questão fundamental da
transcendência sem a qual a vida parece ficar filosofia existencial seja o centro de sua uma
sem sentido. Afirma o autor: orientação psicológica. A raiz desta linha
psicológica é
O homem não é apenas um ser que
reage e ab-reage, mas também que se a intencionalidade no sentido de Bren-
autotranscende. E a existência humana tano, Husserl e Scheler, que produz a
aponta para além de si mesma, mostra relação com os sujeitos intencionais, ou
sempre algo que não é de novo ela mes- seja, entre os atos intencionais que deles
ma – a algo ou alguém, a um sentido, ou provém e os objetos intencionais. Tão logo
a um ser companheiro. (p. 29). deixemos de contemplar o ser sujeito do
sujeito, nós perdemos de vista que ele tem
O que há de singular nesta posição de objetos próprios. (p. 35).
Frankl é que ele coloca a questão do sentido
como sendo de interesse primário do homem Trata-se, portanto, de uma psicologia
e não como meditação que lhe confere algo fenomenológica como as de Karl Jaspers,
a mais, algo que lhe adensa o sentido, mas Ludwig Binswanger, o representante da Es-
sem o qual é possível viver. O sentido para cola gestáltica de Berlim Wolfgang Köhler,
Frankl é questão fundamental. Ao referir- além do que escreveu o existencialista e
se ao comportamento dos prisioneiros nos personalista Gabriel Marcel, filósofos e psi-
campos de concentração fica claro o que ele cólogos cujos nomes Frankl cita textualmente
quer dizer: “não foi menos importante a lição em sua autobiografia, o último dos textos do
que eu pude levar para casa de Auschwitz e livro (p. 112).
Dachau: que os mais capazes, inclusive de As questões associadas ao sentido fo-
sobreviver a tais situações-limite, eram os ram desenvolvidas em três conferências que
direcionados para o futuro, para algo ou al- Frankl pronunciou sobre o sentido e valor da
guém que os esperava.” (p. 34). Esta questão vida na Universidade para o povo em Viena-
filosófica fundamental foi deixada de lado Ottaring. Ele entende que o pensamento
pelos psicólogos, comenta o autor. Os psi- europeu reconheceu a dignidade humana
canalistas a consideram parte dos processos com a formulação ética de Immanuel Kant,
psicodinâmicos e os comportamentalistas mas depois vieram as guerras e em especial
um tipo de aprendizagem que precisa ser a Segunda Guerra Mundial onde o homem
removido para que o sujeito fique “esponta- foi colocado a serviço da morte. Nos campos
neamente curado.” (p. 37). Ora o problema de refugiados os presos não valiam o prato
não pode ser resolvido deste modo, a falta de sopa e a vida humana foi exterminada
de sentido é um tipo de sofrimento, mas em massa, a sociedade européia desonerou-
não uma doença no sentido médico ou uma se da dignidade. Esta atitude não foi uma
ignorância a ser suprimida. Também não se decisão coletiva, o reconhecimento do valor
confunde falta de sentido com desespero, da vida é singular. Isto se demonstra pela
pois este último só ocorre quando a pessoa atitude do chefe nazista que gastava o pró-
não enxerga sentido para o sofrimento. E aqui prio dinheiro para comprar remédio para os
surgem questões fundamentais: A vida tem doentes do campo. No mesmo Campo havia
sentido e se tem podemos nós comunicá-lo? prisioneiros mais antigos que maltratavam
Frankl considera que a vida tem sentido e que os companheiros recém-chegados. A direção
podemos percebê-lo. Com isto não invalida o fundamental assumida por Frankl remonta a
trabalho dos psicanalistas, pois muita coisa Kant, viver é um dever. Há alegria na vida,
tida como sentido deve ser desmascarada, mas ela não é um fim, apenas o resultado.

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Quanto ao sentido a questão se apresenta na corredor. Deste sofrimento poderá nascer um
pergunta: “O que a vida quer de mim? Que novo sentido, talvez até se torne uma pessoa
tarefa a vida espera que eu realize?” (p. 69). melhor apesar de não ter uma perna. Frankl
A resposta não pode ser retirada da situação relata que uma senhora internada que ouvia
concreta, o aqui e agora do sujeito. Ela não se vozes se mostrava feliz por não ser surda,
separa da condição existencial do su­jeito. E mesmo sabendo quanto sofrimento as vo-
se a vida de que falamos for a de um humilde zes traziam. Aqueles que diante da morte
auxiliar de alfaiate, a vida dele tem sentido? sentem-se realizados com o que a vida lhes
Ela o terá se este alfaiate não espera possuir proporcionou são exemplos de pessoas que
outras responsabilidades de pessoas que souberam passar pelo sofrimento sem afetar
ele inveja. Dá-se sentido à vida amando e a questão do sentido. Eis o que nos fica desta
todos podem fazê-lo até o mais humilde dos segunda conferência: “se a vida se nos apre-
alfaiates. No entanto a questão não se limita senta pura e simplesmente plena de sentido,
ao amor, dá-se sentido à vida também com o então resultará mais tarde que também o
sofrimento, pois com o sofrimento o homem sofrimento será integrado no sentido, fará
“toma posição em relação à limitação de parte do sentido da vida.” (p. 95).
suas possibilidades de vida, enquanto elas Na terceira conferência Frankl examina
dizem respeito a seu agir e ao seu amar, o comportamento dos presos no Campo de
assim como ele se comporta com essas li- Concentração. Em seu trabalho diário estes
mitações – como assume seu sofrimento sob homens sofridos e doentes pensavam apenas
tais circunstâncias.” (p. 73). Se a vida tem um no prato de sopa que lhes seria servido à
sentido, o sofrimento que o ajuda a responder noite. Não tinham as preocupações comuns
às questões da vida também terá. A questão das pessoas como ir ao trabalho, pagar as
do sentido termina com a finitude? Não res- contas da casa, levar os filhos na escola. Esta
ponde o autor do livro, se fossemos imortais perda da vida singular e da própria história
não teríamos nenhuma urgência de realizar começava com a chegada do prisioneiro no
qualquer tarefa. É porque somos mortais que Campo. Do preso eram retirados todos os
parece cheio de sentido se dedicar a algo. “A pertences, ficavam somente os óculos e o
morte significa a pressão para tal. Assim a suspensório. Até o cabelo era raspado. Junto
morte constitui o fundo sobre o qual o nosso com os pertences retidos era como se o seu
ser é exatamente um ser responsável.” (p. passado também ali fosse entregue, diz o
75). Assim se chega ao fim da primeira das autor: “ele toma como inexistente toda sua
conferências com a seguinte conclusão: “a existência até o presente.” (p. 98). Passada a
morte pertence à vida tão plenamente como fase da eliminação do passado o homem cai
o sofrimento. Nenhum dos dois torna a exis- numa existência pouco digna, especialmente
tência do homem sem sentido, mas antes quando se dedica a autoconservação ele
plena de sentido.” (p. 76). perde toda dinâmica da vida interior. Então
A conferência seguinte enfrenta mais ele se torna um animal disputando alimento,
especificamente a questão do sofrimento. sonha com o prato de comida e maltrata os
Há um tipo especial de sofrimento que não mais fracos. Ele se faz um animal de manada,
é do corpo, mas do espírito. A vida psíqui- esconde-se no meio dos demais para não ser
ca pode adoecer, mas o pensamento não. notado, faz um enorme esforço para diluir-se
Gostaríamos de apagar o sofrimento de na massa. Mesmo sendo esta a atitude mais
nossa vida? Apagar tudo de triste de nossa comum entre os prisioneiros, havia alguns
memória, as desilusões amorosas, as perdas que “ao invés de regredir, progrediram muito
financeiras, as pessoas que nos deixaram. mais interiormente.” (p. 100). Quais eram os
Responderemos que não, pois “sabemos o homens que conseguiam manter a dignidade
quanto estamos inteiramente amadurecidos, e até elevar-se espiritualmente em circuns-
ainda que em áreas e tempos marcados pelo tância tão desfavorável? Aqueles que tinham
desprazer de nossa existência.” (p. 83). Um uma direção para onde ir, um apoio trans-
homem que perdeu a perna só perde o sen- cendente à própria vida. “Esse apoio podia
tido se sua vida pudesse ser reduzida a ser existir de duas formas: ou tratava-se de um

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apoio no futuro, ou tratava-se de um apoio (p. 114). Apesar dos estudos de Psicologia e
na eternidade.” (p. 101). Daí a comprovação Medicina, Frankl lembra que foi sempre um
prática da importância do sentido conclui o leitor atento de Filosofia. Ele comenta que
autor “lembrando as palavras de Nietzsche, em 1939 “foi despertado do sono, desperta-
que certa vez pronunciou a seguinte frase: do do psicologismo. Picou-me o conhecido
quem tem um porque para viver, suporta Max Scheler, cujo Formalismo da ética... eu
quase tudo como [...] (como – são aquelas cir- levava comigo feito uma bíblia.” (p. 118). A
cunstâncias de vida que faziam tão difíceis a técnica psicoterápica que desenvolveu du-
vida no Campo).” (p. 103). A última parte des- rante estes anos de sua vida tinha vínculo
ta psicologia do prisioneiro trata do momento estreito com a fenomenologia existencial. Por
de sua libertação. Liberto não se alegrava, isto a denominou Análise existencial, nome
precisava aprender a sentir de novo. Ao re- que adotou a partir de 1933. Em seguida
tornar a sua cidade o ex-prisioneiro se magoa relata como sua experiência no campo de
com o fato de que as pessoas ou diziam não concentração funcionou como uma espécie
saber de sua situação ou afirmavam que tam- de experimento sofrido das ideias filosóficas
bém sofreram. O desconhecimento confesso que meditava. Ali a vontade de sobrevivência
da maioria da população fez surgir a noção se manifestou como vontade de sentido e au-
de culpa coletiva pelo que se passou nos totranscendência, uma autotranscendência
campos de extermínio. Frankl não a aceita. pensada como estratégia de sobrevivência
Talvez todos tenham tido responsabilidade e não apenas como problema teórico. Neste
no que ocorreu, mas se pode ter responsa- texto esclarece melhor sua rejeição à tese
bilidade sem ter culpa, como ocorre quando da culpa coletiva, pois diz que apesar de sua
adoeço e vou ao médico. Mesmo sem culpa família ter sido dizimada (perdeu pai, mãe,
pela doença adquirida sou responsável por irmão e primeira mulher) houve que cuidou
pagar o profissional que cuida de mim. Os de outros parentes seus. Lembra de uma se-
sobreviventes do campo tinham um pensa- nhora católica que protegeu sua prima com
mento que os deprimia, eles sabiam que os o risco da própria vida e do comandante do
melhores não saíram vivos do Campo. Eis a campo de extermínio que os prisioneiros se
lição fundamental: de que o sentido da vida negaram a entregar aos americanos e só o
preservou a dignidade e deu forças a quem fizeram com a concordância de que nenhum
o tinha para passar pelos momentos mais mal lhe seria feito. “O comandante das tropas
difíceis. A conclusão das três conferências nomeou o homem da SS de novo comandante
é a seguinte: “o homem apesar de tudo – do campo e ele organizou a coleta de víveres
apesar da necessidade e da morte (primeira e roupas para nós junto à população das
conferência), apesar do sofrimento físico ou aldeias locais.” (p. 125). Assim a questão da
mental (segunda conferência), ou sob o peso culpa é pessoal, não faz sentido falar de culpa
do destino no campo de concentração (ter- coletiva. A questão ética da culpe atinge às
ceira conferência) – pode dizer sim à vida.” pessoas individualmente. Depois de relatar
(p. 109). sua vida profissional no período pós-guerra
O livro termina com um texto autobio- retoma a crítica à psicanálise no mesmo sen-
gráfico. Nele Frankl relata os principais fatos tido que Jaspers também fazia ao dizer que “o
de sua vida, associando-os as conclusões de psicólogo, porém, que também lá não pode
suas conferências. O principal é que “a tran- parar de desmascarar, desmascara apenas a
sitoriedade da vida não aniquila seu sentido.” sua tendência inconsciente de desvalorizar
(p. 112). Ele relata que durante a Guerra leu o autêntico, o humano no homem.” (p. 132).
os escritos dos filósofos da natureza Wilhelm E conclui que o sentido da própria vida é
Oswald e Gustav Theodor Fechner (p. 113). “ajudar os outros a verem o sentido de suas
Em sua vida profissional como médico estu- vidas.” (p. 132).
dou com especial interesse a psicologia ex- O livro de Victor Frankl é encantador
perimental e a psicanálise. Em relação a esta ou talvez seja a sua vida que encante. Ele
última travou contato com discípulos diretos traz para o campo da Psicologia aspectos
de Freud: Eduard Hitschmann e Paul Schilder fundamentais da filosofia da existência, no-

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tadamente a importância do sentido da vida a um problema psíquico como desejaram
como algo que não é feito de antemão, mas médicos e psicanalistas? O autor observa
que decorre das escolhas. que este não é o caminho e que o autênti-
Temos uma vida que tece o seu sentido. co no homem não pode ser revelado pelas
E a absurdidade do sentido diante da finitude ciências, pois o homem no que se refere à
humana mencionada por Camus e Sartre, o determinação do sentido e no exercício de
que ele diz? Frankl observa que a questão do sua liberdade existencial não pode ser re-
sentido é algo que se capta na experiência duzido a objeto.
da vida mesma, o sentido é comprovado na O homem não é um feixe de reações ao
vida. E quanto ao fato das ciências ajudarem meio externo ele é o porta-voz de questões
a formular a questão do sentido ou reduzi-la que dirigem sua existência.

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